linguística geral
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Um introdução ao formalismo RussoTRANSCRIPT
LINGUÍSTICA GERAL SAUSSUREANA
PARTE I
Conteudista
Prof. Me. VICTOR HUGO CRUZ CAPARICA
FUNDAMENTOS DA LINGUISTICA SAUSSUREANA
Nesta semana, abordaremos a história da formação do campo científico
da linguística, seu contexto, seus propósitos e seus principais fundadores.
Nossa meta será construir um entendimento acerca de como o ser humano ao
longo de sua evolução foi, crescentemente, se preocupando em desvendar as
minúcias de nossa mais poderosa faculdade, a comunicação.
Quando nos aproximamos dos estudos linguísticos, o nome mais
proeminente a se encontrar é certamente o do gramático suíço Ferdinand Du
Saussure (1857-1913), autor do principal referencial moderno para tal campo, o
Curso de Linguística Geral (BALLY & SECHEHAYE, 1916).
Já de antemão, há dois esclarecimentos a se notar acerca disso.
Primeiro, que como a referência denuncia, o Curso de Linguística Geral não foi
publicado por Saussure, que falecera três anos antes, mas sim por Charles
Bally e Albert Sechehaye, dois de seus estudantes que, como os discípulos do
filósofo grego Sócrates, compilaram e organizaram as teorias do mestre em
uma obra formalizada. Segundo, ainda que Saussure seja, de fato, divisor de
águas no que toca o estudo da linguagem, seus trabalhos realmente são o
resultado de um processo histórico, que se iniciou muitos séculos antes quando
os primeiros homens começaram a questionar-se sobre as línguas humanas e
a registrar algumas reflexões interessantes a respeito. Assim, para chegarmos
de maneira adequada ao pensamento de Saussure cabe, primeiramente,
retornar um bom tanto no tempo.
NA ÍNDIA
Retornaremos à Antiguidade Clássica da Índia, em um período
culturalmente remoto, por volta do século 4 a.C. Lá, encontramos o primeiro
ancestral da linguística, ou seja, a Hermenêutica.
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A Hermenêutica foi, muito provavelmente, a primeira forma organizada
de estudo sobre a produção linguística humana e consistia, fundamentalmente,
em estabelecer normas e procedimentos para a leitura e interpretação dos
textos sagrados – quaisquer que fossem – da forma tida como adequada.
Na Antigüidade Clássica da Índia, por volta do século 4 a.C, esses textos
sagrados eram os Veda do Hinduísmo, e sua Hermenêutica se dividia em seis
subgrupos, referentes a pronúncia (Shiksha), etimologia (Nirukta), métrica
poética (Chandas), datação astrológica (Jyotisha), orientação ritualística
(Kalpa) e, finalmente, gramática (Vyakarana). Esta última, dedicada à correta
interpretação das estruturas do idioma sânscrito, está fundamentada na obra
Ashtadhyaye ( “Os Oito Capítulos”), do estudioso indiano Panini. Nela, o autor
expõe, de forma sistemática (mas não didática, visto que não se tratava de livro
para ensinar sânscrito, mas sim de um compêndio para consulta referencial),
as 3959 regras do sânscrito, constituindo não apenas as bases da Vedanga
Vyakarana (Entendimento Gramático dos Veda), mas efetivamente a peça de
estudos linguísticos mais antiga que possuímos.
Façamos aqui uma brevíssima pausa para um parêntese, mais do que
justificado ao se tratar de historiografia do conhecimento. São raros os casos
na história da ciência em que uma nova tecnologia é descoberta por um só
indivíduo em um só lugar. Grandes descobertas são, em geral, fruto de
processos históricos que ocorrem em lugares diversos e separados. Com os
estudos sobre a linguagem não foi diferente, e suas origens na Grécia, China e
Arábia serão logo adiante abordadas.
Mas, por que então tanta ênfase em Panini e nos gramáticos indianos
por ele influenciados? Porque é nessas obras que encontramos as raízes de
numerosos e fundamentais conceitos até hoje empregados para entender a
escrita, como a noção de unidades maiores (frase, sentença e verso) formadas
pela articulação de unidades menores (palavras, partículas e fonemas), bem
como a noção de que os verbos constituíam a categoria mais antiga de
palavras e que a etimologia dos substantivos residia sempre em ações.
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O etimologista Yaska, contemporâneo de Panini, também já
apresentava a ideia de que o sentido da enunciação residia nas frases
completas, e que o sentido de cada palavra era determinado não na palavra
em si, mas em sua posição e uso na frase, o que indica uma reflexão já
avançada sobre a função da sintaxe para além da morfologia.
Além disso, é nos textos de Panini e seus seguidores que encontramos
o primeiro sistema formal de mapeamento fonético de um idioma, ou seja, uma
lista completa e estruturada dos diferentes sons que se articulavam para
compor a pronúncia do sânscrito. Nessa sistematização, já estava presente,
por exemplo, a noção de universais sonoros (similar ao atual conceito de
fonema), uma categorização das consoantes baseadas em constrição da
cavidade oral e das vogais, baseadas em duração e altura. Essa ideia foi
apresentada, inicialmente, pelo gramático paniniano Barthari (século 5 d.C), o
qual propõe que as unidades da linguagem eram também as unidades do
pensamento, algo muito próximo do atual conceito de determinismo linguístico.
Barthari também considerava a frase como precedente na construção do
sentido, o que significa que as palavras têm seu sentido dado por sua função
dentro da frase. Também é de Barthari o estudo sobre os significados das
palavras com sua doutrina denominada Sprho’a, que chegou ao conhecimento
dos teóricos europeus por volta do século XVIII, tornando-se modelo de várias
reflexões teóricas da época e de estudiosos subsequentes como Leonard
Bloomfield, Ferdinand Du Saussure e Roman Jakobson.
Fritz Staal, em analisar tais gramáticos, afirma que as descobertas
acerca da natureza da linguagem, bem como as conclusões por eles obtidas,
não apenas demoraram até o século XVIII para serem redescobertas na
Europa, como constituem influência majoritária na forma como se estudou
linguística dali para frente. Após comparar diversos textos e apontamentos
dessas gramáticas antigas, ele concluiu que todo o conceito de estabelecer
regras formais da lógica matemática ao estudo das línguas, aparece primeiro
em Panini. o qual poderíamos considerar como um Euclides do seu tempo.
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Essa afirmação se fortalece quando nos aproximamos da biografia de
Ferdinand du Saussure e descobrimos uma longa série de estudos em
sânscrito por parte do mestre suíço.
Muito bem, aqui deixaremos nossos ancestrais indianos de lado, uma
vez que já observamos suas numerosas contribuições para a construção dessa
estradinha de reflexões que, lá na frente, ganhará o nome de Linguística.
Agora, com um pequeno e modesto salto, tanto em tempo como em espaço,
partiremos para a região da Ática, onde os gregos também somavam novas
ideias ao processo.
NA GRÉCIA ANTIGA
Entre os gregos, a preocupação com a linguagem é tão antiga quanto a
introdução da escrita nas antigas Pólis. Com a adaptação do alfabeto fenício
nas conhecidas letras do alfabeto grego, as grandes epopéias de Homero - que
até então eram transmitidas apenas pela tradição oral graças à habilidade dos
Aedos e Rapsodos, poetas mnemônicos que carregavam na memória os
milhares de versos da Ilíada e da Odisséia -, foram registradas e,
subseqentemente, passaram a ser estudadas. Essa tradição de estudos
literários na Grécia voltava sua atenção especialmente para as questões de
métrica poética e seus usos, mas de modo algum estavam muito distantes dos
Vedanga Vyakarana de Panini e Barthari.
A partir do domínio da linguagem escrita, os gregos deram início a uma
longa tradição de estudos gramáticos e também filosóficos. Em Platão,
encontramos os mais antigos estudos sobre a natureza e a origem da
faculdade da linguagem. Um dos principais pontos de reflexão dessa a época,
era se a linguagem era um artefato humano, um produto natural da sociedade
ou algum tipo de força sobrenatural – visto que a raça humana raramente
excedia o impulso primitivo de resolver o desconhecido com a explicação
sobrenatural.
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Em Platão, encontraremos a hipótese naturalista, cujo argumento era
que o significado das palavras surgiria de um processo natural e independente
de seus falantes. Outros pensadores gregos como os socráticos e os sofistas,
assentaram a dialética como novo gênero do discurso, o que direcionaria as
obras filosóficas posteriores para o entendimento do aspecto argumentativo e
racional da linguagem. Aqui, chegamos a um dos mais relevantes nomes nas
origens clássicas da linguística, Aristóteles.
Poucos pensadores na história do conhecimento contribuíram tanto e em
tão diversas áreas como Aristóteles. Ainda que muitas de suas afirmações
sobre ciência natural, posteriormente, tenham sido provadas incorretas ou
imprecisas, elas foram inegável base de partida para o desdobramento do que
hoje chamamos método científico. Além disso, se nas ciências naturais muitas
de suas afirmações são hoje, de fato, conhecimento obsoleto, nas ciências
humanas – em particular, nas ciências da linguagem e do discurso – os
ensinamentos do velho mestre de Estagira continuam basilares. Cabe aqui
mencionar três grandes contribuições de Aristóteles para nosso entendimento
da linguagem humana: sua arte poética, onde estabelece as bases da teoria e
crítica literária - amplamente usadas nos dias de hoje; sua arte retórica, talvez
a obra clássica que menos envelheceu em termos de aplicabilidade prática; e o
conceito, oposto a Platão, de que as palavras tinham seu significado definido
por convenções sociais geralmente implícitas. Além disso, foi o interesse de
Aristóteles pela linguagem e pela lógica que uniu os dois campos do saber,
trazendo um novo universo de perspectivas teóricas acerca da lógica dos
discursos sociais, e aqui cabe frisar que “logos”, em grego, significa tanto
“discurso” quanto “razão”
Em seu livro “Sobre a Interpretação”, Aristóteles analisa categorias
gramaticais e delineia uma série de procedimentos para classificar e definir
formas linguísticas básicas, tais como palavras simples e proposições
discursivas, verbos e substantivos e afirmações e negações lógicas, o que
certamente somou-se ao arcabouço teórico que, como pretendemos
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demonstrar, vem se formando desde os primórdios como um verdadeiro
processo histórico, ainda que com seus altos e baixos.
Ainda na cultura clássica greco-romana, é muito importante mencionar a
contribuição dos filósofos estóicos para o entendimento da linguagem. O
Estoicismo, movimento helenístico filosófico fundado por Zenão de Cítio no
século III a.C, pregava uma unidade entre o divino e o mundano no Cosmos,
uma máquina una e homogênea de funcionamento íntegro e perfeito. Entre as
contribuições importantes dos estóicos para nossos fins, encontra-se o
conceito de signo linguístico, que muito posteriormente será retomado
juntamente com as teorias do indiano Barthari nos conceitos de Significante e
Significado de Ferdinand Du Saussure. Foram os estudos dos estóicos que
trouxeram a unidade da sílaba para o centro das reflexões acerca da fonética e
fonologia das línguas, e que também contribuíram com uma grande variedade
de terminologias, ainda hoje empregadas, como o já citado signo. Ainda,
analisando escritos dos gramáticos da velha Alexandria, encontramos
pontuações interessantes sobre o papel da analogia e da metáfora nas
construções linguísticas, apontando para a ideia de que as formas linguísticas
seriam formadas por processos de analogia e paradigma, ou seja, grandes
arcabouços de palavras estabelecidas sobre variações análogas.
Posteriormente, o texto "Techné grammatiké” (século I a.C) possivelmente
escrito por pelo gramático Dionísio de Thrax, divide o discurso em oito áreas e
organiza um compêndio da morfologia do idioma grego incluindo suas
estruturas gramaticais e sintáticas. Tal obra foi empregada na Roma antiga, por
exemplo, como guia pedagógico para ensino de grego aos não-falantes
nativos.
Entre os gramáticos citados de Alexandria, talvez o mais proeminente –
tanto nos dias atuais quanto na época – tenha sido Apolonius Dyscolus, que
escreveu algumas dezenas de tratados sobre sintaxe, semântica e morfologia.
Muito infelizmente, apenas três dessas dezenas de obras de que temos notícia
chegaram intactas até nós, o que já permite desenhar mais um pouco desse
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trajeto histórico do interesse do homem por sua própria habilidade de
comunicar-se.
No século IV d.C, o gramático romano Aelius Donatus compila sua Ars
Gramatica, que passou a ser o texto definidor do gênero gramático por toda a
Idade Média. Posteriormente, uma versão resumida, com o nome Ars Minor,
cobria uma lista menor de tópicos, e foi um dos primeiros livros a ser impresso
a partir da invenção de Gutenberg no século XV. Esse modelo de prescrição de
uma norma culta e suas características morfossintáticas passou a ser a
definição, até hoje, estabelecida para uma gramática.
Uma das questões mais centrais ao se traçar uma história de qualquer
aspecto cultural humano e, ainda mais, em um tão predominante como a
linguagem, é a inevitável divisão Ocidente-Oriente. De fato, para o nível
tecnológico dos transportes da época, os Montes Urais da Rússia e os imensos
desfiladeiros do Afeganistão promoveram uma barreira cultural que demorou
muitos séculos para ser rompida, o que causou um desenvolvimento quase que
totalmente independente dos estudos linguísticos na Grécia e na Índia – que na
antiguidade clássica se encontrava muito mais inserida no contexto Ocidental
do que no Oriental – em relação à China, por exemplo, como veremos a
seguir.
NA CHINA
Os estudos básicos sobre idioma começaram na China, de maneira
pouco original em relação aos demais lugares já mencionados. A disciplina do
Xiaoxue (sim, os nomes podem e irão ficar um pouco mais complicados neste
tópico), como forma de estudo filológico, tem início na necessidade de se
codificar uma maneira de interpretação oficial para os ensinamentos da dinastia
Han. Por volta do século III a.C., o conhecimento do Xiaoxue era dividido em
três grandes áreas: o Xungu (Exegese), o Wenzi (Análise) e o Yinyun (Estudo
dos Sons); e atingiu seu apogeu de desenvolvimento no século XVII, durante a
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dinastia Qing. O compêndio denominado Glossário de Erya (século III a.C) é
considerado na cultura do idioma chinês como a primeira obra de linguística no
país. No dicionário Shuowen Jiezi (século II a.C), primeira compilação
conhecida de ideogramas chineses, foi organizava os símbolos por seus
radicais morfológicos, o que viria a ser imitado pelos lexicógrafos posteriores.
Outros grandes nomes (que vale mais conhecer do que memorizar) da tradição
clássica chinesa foram Fangyan, primeira obra em chinês a tratar da questão
dos diferentes dialetos, e Shiming, dedicado à etimologia.
Como na Grécia antiga, os pensadores da linguagem, na China,
estavam interessados em compreender a relação entre as palavras e a
realidade que estas representavam. Confúcio, o famoso filósofo do século VI
a.C, propunha que as palavras possuíam e precisavam possuir uma relação de
comprometimento com os conceitos e coisas que representavam. Ele atribuía,
em seus textos, a degradação dos costumes sociais à desatenção das pessoas
quanto ao significado das palavras. Assim, para que a sociedade se
mantivesse bem e em ordem, era preciso que o pai agisse como pai, o filho
como filho, o governante como governante e assim sucessivamente, com uma
visão, no mínimo, reacionária e integralista da ordem social.
Xun Zi (século III a.C) revisita esse conceito de relação das palavras
(Zengming), mas ao contrário de Confúcio, propõe que o significado dos nomes
precisa ser constantemente revisado para representar sempre algo mais
próximo da realidade atual. Essa visão, onde o texto teórico se propõe a
retratar a língua e não a prescrevê-la, representa um grande avanço na
reflexão sobre a finalidade das gramáticas. Um ponto de vista muito mais
consistente com o argumento de que a linguagem é oriunda de acordos sociais
mais ou menos implícitos, e não um produto da natureza ou de algo superior.
O estudo do aspecto fonológico da linguagem teve, na China, um início
tardio e totalmente influenciado pela tradição indiana, quando o budismo
começou a se espalhar pelo Oriente.
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São dessa época os primeiros dicionários chineses de rimas com
palavras organizadas por tonalidade e sonoridade, o que facilitava a
uniformização de determinados padrões de pronúncia. Os estudos de filologia
iniciaram-se na dinastia Qing, com Duan Yucai e Wang Niansun como figuras
centrais. O último grande filólogo desse período foi Zhang Binglin, que
igualmente ajudou a definir os moldes da linguística chinesa atual. O sistema
europeu de linguística comparativa foi introduzido na China pelo pesquisador
Bernard Carl Green, que foi o primeiro a decodificar o chinês antigo no alfabeto
romano, que utilizamos no Ocidente. Atualmente, na China, alguns dos
linguistas modernos mais relevantes incluem Y. R. Chao, Luo Changpei, Li
Fanggui e Wang Li. Novamente, os nomes são dados apenas para que não se
perca de vista a representatividade desses teóricos, que raramente são
mencionados no Ocidente, mas não nos caberá, em absoluto, a tarefa de
decorar esses nomes. Finalmente, para que possamos encerrar nossa
passagem pela China – e também pela antiguidade – cabe notar que, mesmo
tendo esse tipo de estudo uma tradição bastante longa entre os chineses, a
primeira gramática, propriamente dita, surgiu apenas no século XIX, e com
grande influência do formato das gramáticas latinas.
NA IDADE MÉDIA
Com a expansão do islamismo ao longo dos séculos VIII e IX, uma
grande quantidade de povos – incluindo os portugueses – passou a utilizar o
árabe como língua franca, o que suscitou o surgimento de uma grande
quantidade de tratados e estudos sobre a língua árabe produzidos por falantes
não-nativos. O mais antigo gramático da língua árabe conhecido por nós, é Abd
Allah ibn Abi Isaq al-arami (735 d.C). Depois dele, o trabalho conjunto de três
gerações de gramáticos deu, enfim, origem ao livro do gramático persa
Sibawayhi (790 d.C), que consiste de uma longa e detalhada descrição da
língua árabe, o Al-kitab fi al-nahw (O Livro da Gramática, em tradução livre).
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Na Europa, o primeiro dicionário etimológico foi o irlandês Cormaec
Sanas, que era uma espécie de dicionário enciclopédico, o primeiro a ser
produzido em idioma não-clássico (isto é, nem em grego, nem em latim). Em
sua obra “Sobre a Eloquência do Vernacular”, no século XIV, Dante Alighieri
discorre sobre a inclusão das línguas neolatinas nos estudos da linguística, o
que apontaria para o surgimento das primeiras gramáticas das novas línguas
nos séculos seguintes.
A LINGUÍSTICA HISTÓRICA E O CONTEXTO DE SAUSSURE
Façamos uma breve recapitulação, para não perder de vista o rumo de
nossa jornada pelos séculos. Partimos dos remotos séculos da antiguidade
clássica, onde pudemos observar que, tão logo a escrita era introduzida nos
povos, tinham início os esforços do ser humano para estudar e entender os
detalhes e regras de funcionamento de sua mais poderosa habilidade.
Recolhendo os vestígios desse passado tão distante, a obra mais antiga que
encontramos, onde um autor discorre sobre sua língua, data do século IV a.C,
e é atribuída ao indiano Panini. Enquanto isso, na Grécia, estudos se
desenvolviam tanto acerca da literatura homérica quanto da retórica e oratória,
e na China os primeiros estudos linguísticos, ainda que primitivos, começam na
mesma época.
Essa necessidade de entender a própria língua, começou com a
interpretação dos textos sagrados e, posteriormente, desdobrou-se para a
literatura, política e, ainda mais posteriormente, para todas as áreas da
linguagem. Com o fim da antiguidade clássica e início da Idade Média, vimos
surgir os primeiros dicionários etimológicos, alguns até enciclopédicos, e
conforme nos aproximamos da Renascença, esses estudos deixam de se ater
exclusivamente às línguas clássicas como latim, grego, sânscrito e árabe, para
também preocupar-se com a produção vernacular de uma Europa cujas atuais
fronteiras culturais encontravam-se em formação. Em formação, e em
constante e ativo contato cultural umas em relação às outras.
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E, com esse contato, passou-se a possuir uma vasta gama de idiomas
conhecidos e coexistentes, o que trouxe à cena um novo campo de reflexões,
qual seja: as relações de parentesco entre as diferentes línguas, algo que, em
um mundo industrializado que investia pesadamente nos meios de transporte,
se tornava finalmente possível.
A linguística histórica – muitas vezes referida como linguística diacrônica
– é o campo do conhecimento, estabelecido por volta do fim do século XVII
com o aumento do interesse pelas mudanças que ocorriam nos idiomas ao
longo do tempo. Entre as preocupações científicas da linguística histórica
encontram-se a descrição de mudanças ocorridas em uma determinada língua
em um período de tempo, a reconstrução de um panorama hierárquico da
evolução das línguas pré-históricas até as contemporâneas, além de
desenvolver um entendimento consolidado sobre como e por que as línguas se
alteram, descrevendo assim vários aspectos antropológicos e históricos de
seus falantes, a partir da observação de sua evolução linguística. Também faz
parte da linguística histórica diacrônica (o termo significa “entre os tempos”,
indicando o estudo de uma faixa temporal entre dois momentos), a etimologia,
cujo entendimento acerca da origem das palavras e de suas mudanças de
significado está completamente contextualizado na proposta histórico-
diacrônica.
A linguística histórica tem início no fim do século XVII, como
desdobramento de uma disciplina muito mais antiga, a Filologia, que remonta à
antiguidade clássica. A priori, seus estudos se restringiam à linguística
comparativa, ou seja, à análise de idiomas por meio da comparação de formas
análogas entre estes, inferindo a partir daí conclusões sobre suas relações
parentais. Seu objetivo inicial concentrava-se no estudo das línguas hindo-
europeias, muitas das quais já completamente desaparecidas, com poucos e
fragmentários vestígios escritos. De lá para cá, esses estudos se
desenvolveram em ramos diferenciados, expandindo-se inclusive para além
das línguas europeias.
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Atualmente, a área da linguística comparativa encontra-se, ela própria,
no campo maior da linguística histórica.
Nesse contexto, chegamos a meados do século XIX e vamos
diretamente para a Suíça, quando os estudos diacrônicos de gramática
histórico-comparativa encontravam-se em pleno desenvolvimento. Lá,
encontraremos o jovem Ferdinand Du Saussure, filho de cientistas bastante
conhecidos de sua época, que em Genebra estudou o sânscrito, entrando
assim, em contato com as preciosas ideias de Panini. Posteriormente, foi
estudar o método comparativo em Leipzig, onde entrou em contato com o
círculo de pesquisadores que, mais tarde, seriam denominados neogramáticos.
Brugmann, em particular, foi seu mentor, mas ele também foi muito próximo de
Karl Verner e de outros do mesmo círculo.
Em 1878, aos 21 anos, Ferdinand du Saussure publicou um artigo
extremamente precoce e de grande relevância para a linguística histórica
intitulado “Notas sobre o sistema primitivo das vogais hindo-europeias”, onde
ele explicava, de forma objetiva e impressionantemente clara, as
peculiaridades do antigo sistema de vogais de uma proto-língua hindo-europeia
a partir de observações de formas arcaicas do sânscrito. De fato, as
observações de Saussure foram tão precisas que o famoso pesquisador de
línguas hindo-europeias, Jerzy Kurylowicz, apontou posteriormente que o
Hittite, a mais recente descoberta em línguas hindo-europeias, fazia emprego
de consoantes exatamente do modo que os estudos de Saussure
preconizavam que deveriam fazê-lo línguas daquele grupo.
Esse início, absolutamente brilhante, não foi seguido por nenhuma
explosão de publicações ou novas ideias, mas continha, desde então, a raiz
das reflexões de Saussure sobre a importância de se estudar o sistema da
língua para compreendê-la. A principal contribuição desse pensamento foi a
noção de que o fenômeno linguístico podia ser estudado não apenas como
produto histórico de sucessivas mudanças, mas também como um sistema
sincrônico, ou seja, um recorte temporal onde serão analisados, não os laços
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de um sistema com seus sucessores e predecessores, mas sim
compreendendo as relações entre suas estruturas internas de acordo com suas
funções. As ideias de Saussure se espalharam rapidamente pela Europa
quando, após sua morte, seus alunos Charles Bally e Albert Sechaye
compilaram materiais e anotações de diversos outros alunos do mestre
genebrino e, no ano seguinte, publicaram tais conhecimentos, de forma muito
bem organizada, com o título Curso de Linguística Geral. O material, que
prontamente foi introduzido entre os eruditos franceses, passou a exercer uma
irreversível influência na forma como se entendia o método e a finalidade de se
estudar o fenômeno linguístico. Em 1959, sua primeira tradução para o inglês é
feita por Wade Baskin, levando as teorias de Saussure para a América.
As teorias de Ferdinand Du Saussure não foram importantes apenas
para os estudos linguísticos. Sua forma de interpretar sistemas culturais pela
abordagem estruturalista, ou seja, reduzindo as formas a oposições funcionais,
em que o valor de uma estrutura é dado por suas funções no sistema, foram
amplamente aplicadas em outras áreas das ciências humanas, como nos
famosos trabalhos de antropologia das estruturas parentais em sociedades
humanas, publicados pelo estudioso Claude Levi-Strauss. Além disso, o
estruturalismo tornou-se uma das mais produtivas formas de abordagem e
análise de sistemas culturais no século XX, rendendo frutos principalmente nas
áreas mais influenciadas pela teoria da literatura, e também em outros
segmentos, como na moderna ciência da informação.
Nosso objetivo, com toda essa viagem de 2400 anos, foi o de desenhar
um quadro mais ou menos linear de como o conhecimento humano sobre sua
habilidade em se comunicar pela palavra foi construído, geração após geração,
até culminar na formalização científica da linguística e do estruturalismo como
métodos de compreensão. Apenas um guia de leitura, cujo aprendizado se
complementa com a pesquisa sobre as obras citadas.