ideologia e cultura moderna thompson

24

Click here to load reader

Upload: heluanaquintas

Post on 24-Nov-2015

631 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Ideologia e a era moderna

JOHN B. THOMPSONIDEOLOGIA E CULTURA MODERNA

1. Conhecendo o autor e sua obra

John B. ThompsonsocilogoeprofessordaUniversidade de Cambridge. Seus estudos se dirigem notadamente para o papel da mdia nas sociedades contemporneas. Reconhecido internacionalmente no campo das cincias sociais, John Thompson tem trs livros publicados no Brasil, Ideologia e cultura moderna: teoria social crtica na era dos meios de comunicao de massa, A mdia e a modernidade: uma teoria social da mdia e O escndalo poltico: poder e visibilidade na era da mdia, todos pela editora Vozes.

2. Texto aula do livro Ideologia e cultura moderna: teoria social crtica na era dos meios de comunicao de massa

Ideologia e a era moderna

Comecemos reconstruindo o conjunto de pressupostos referentes s transformaes culturais associadas com o surgimento das sociedades industriais modernas. Esses pressupostos constituem um referencial terico geral, uma narrativa terica abrangente que configurou muitos dos problemas e debates na anlise social e poltica, incluindo alguns dos debates referentes natureza e ao papel da ideologia nas sociedades modernas. Os elementos originais dessa grande narrativa da transformao cultural, podem ser discernidos nos escritos de Marx e Weber, embora tenha sido somente em 1950 e 1960 que essa histria adquiriu certo desvelamento. Ao examinar essa narrativa terica, no vou me restringir ao trabalho de nenhum pensador em particular. Pois essa narrativa no tanto um argumento terico claramente formulado que pode ser discernido nos escritos de um ou de vrios autores, mas , antes, uma histria que deve ser pinada de uma variedade de textos e que, quando reconstruda desta maneira, oferea uma viso das principais transformaes culturais associadas com o desenvolvimento das sociedades modernas. Dentro dessa histria, as ideologias tm um papel a desempenhar como sistemas seculares de crenas que emergiram s vsperas do abandono da religio e da magia, e que serviram para mobilizar a ao poltica num mundo libertado da tradio. Quero reconstruir essa histria e examinar as escaramuas deste enredo dramtico, no apenas porque ele oferece uma viso que foi fortemente influente na teoria social e poltica, mas tambm porque ela apresenta uma explicao das transformaes culturais associadas ao desenvolvimento das sociedades modernas e, em particular da natureza e do papel da ideologia nessas sociedades, que , no meu ponto de vista, enganadora em certos aspectos fundamentais.

Podemos sintetizar os elementos-chave dessa grande narrativa em funo de trs pontos principais:1. O surgimento do capitalismo industrial na Europa e em outros lugares foi acompanhado pelo declnio das crenas e prticas religiosas e mgicas que eram prevalentes em sociedades pr-industriais. O desenvolvimento do capitalismo industrial, em nvel da atividade econmica, foi acompanhado, na esfera da cultura, pela secularizao das crenas e prticas e pela progressiva racionalizao da vida social.2. O declnio da religio e da magia prepararam o campo para a emergncia de sistemas de crenas seculares ou ideologias que servem para mobilizar a ao poltica, sem referncia a valores ou a seres de outro mundo. A conscincia religiosa e mtica da sociedade pr-industrial foi substituda pela conscincia prtica enraizada nas coletividades sociais e animada pelos sistemas seculares de crenas.3. Esses desenvolvimentos deram o lugar era das ideologias, que culminou em movimentos revolucionrios radicais no final do sculo XIX e comeo do sculo XX. Esses movimentos de acordo com alguns tericos que escreviam na dcada de 1950 e 1960 foram as ltimas manifestaes da era das ideologias. A poltica de hoje cada vez mais um problema de reforma gradual e de acomodao pragmtica de interesses conflitantes. A ao social e poltica cada vez menos animada por sistemas seculares de crena que exigem mudana social radical. Por isso estamos presenciando, de acordo com alguns proponentes desta teoria, no apenas o fim da era das ideologias, mas o fim da ideologia como tal.

Vamos especificar brevemente cada um desses pontos.

No Manifesto do Partido Comunista,Karl Marx e Friedrich Engels difundiram de maneira sinttica sua concepo de filosofia e de histria.Publicado pela primeira vez em21 de fevereirode1848, constitui um dos documentospolticosde maior influncia mundial.1 A idia de que o surgimento do capitalismo industrial foi acompanhado pelo declnio das crenas religiosas e mgicas uma idia que foi partilhada por muitos pensadores do final do sculo XIX e comeo do sculo XX incluindo Marx e Weber. Para Marx, o tipo de sociedade que surgiu com a emergncia do capitalismo industrial radicalmente diferente das sociedades pr-capitalistas anteriores. Enquanto as sociedades pr-capitalistas eram, basicamente, conservadoras em seu modo de produo, a sociedade capitalista moderna est constantemente em expanso, modificando-se, transformando-se; a sociedade capitalista moderna desintegra tambm as tradies e as formas culturais incluindo as tradies religiosas que eram caractersticas das sociedades pr-capitalistas. No captulo anterior, realcei essa nfase que particularmente marcante no Manifesto do Partido Comunista no carter progressivo, desmistificador, da era moderna. A atividade incansvel e incessante do modo capitalista de produo retira das relaes sociais aquele sqito de crenas e opinies tornadas venerveis pelo tempo que as ocultava no passado; tudo o que slido e estvel se volatiliza, tudo o que sagrado profano. A desmistificao das relaes sociais , na explicao de Marx, um aspecto inerente do desenvolvimento do capitalismo. esse processo de desmistificao que possibilita aos seres humanos, pela primeira vez na histria, ver suas relaes sociais como aquilo que elas so realmente isto , relaes de explorao. este processo que coloca a humanidade no limiar de uma nova era, uma era que pode ser e ser anunciada por uma transformao iluminada da sociedade, isto , uma transformao baseada num conhecimento partilhado de relaes sociais desmistificadas. Esse processo de desmistificao inerente ao desenvolvimento do capitalismo , pois, uma precondio essencial para a eliminao final das relaes de classe exploradoras mesmo se, como indiquei no captulo anterior, Marx s vezes tenha reconhecido que as formas simblicas transmitidas no passado possam persistir no corao do presente e desviar a trajetria da mudana social revolucionria.

Para Weber, os ideais ascticos do calvinismo favoreceram o capitalismo, no enquanto impulso de ter ou a nsia por lucro, mas oferecendo uma compreenso deste sistema como baseado na moderao do mpeto, um tempero racional para a cobia. Nesta reflexo, concluiu que a noo de trabalho como um fim em si mesmo o fator que se ope ao tradicionalismo.Weber tambm se interessou em realar os laos entre o desenvolvimento do capitalismo industrial e a transformao da cultura e da tradio. Como Marx, ele viu uma relao entre o surgimento do capitalismo industrial e a dissoluo dos valores e crenas tradicionais. Mas a explicao de Weber difere daquela de Marx em vrios aspectos importantes. Em primeiro lugar, Weber argumentou que as mudanas na esfera da cultura e da tradio no eram apenas subprodutos do desenvolvimento autnomo do capitalismo: pelo contrrio, certas transformaes nas idias e prticas religiosas eram precondies culturais para a emergncia do capitalismo no Ocidente. E mais: Weber vai adiante argumentando que, uma vez que o capitalismo industrial se estabeleceu como a forma predominante da atividade econmica no curso dos sculos XVII e XVIII, adquiriu uma fora prpria e dispensou as idias e prticas religiosas que tinham sido necessrias para sua emergncia. O desenvolvimento do capitalismo, junto com o nascimento simultneo do Estado burocrtico, racionalizou progressivamente a ao e adaptou o comportamento humano a critrios de eficincia tcnica. Os elementos puramente pessoais, espontneos e emocionais da ao tradicional foram limitados pelas exigncias de um clculo racional interesseiro e pela eficincia tcnica. Embora os primeiros Puritanos tenham assumido a atividade econmica racional como uma vocao, para as geraes subseqentes essa atividade se tornou uma necessidade, um poder impessoal que circunscreveu as vidas das pessoas e aprisionou-as dentro da inexorabilidade de uma priso de ferro.

Sendo que o ascetismo pretendeu remodelar o mundo e concretizar seus ideais no mundo, os bens materiais adquiriram um poder sempre mais crescente e, ao final um poder inexorvel sobre as vidas dos homens como em nenhum outro perodo anterior da histria. Hoje em dia, o esprito do ascetismo religioso finalmente, quem sabe? escapou de sua priso. Mas o capitalismo vitorioso, pelo fato de se apoiar em bases mecnicas, no necessita mais de seu apoio. O rosado florescer de seu herdeiro risonho, o Iluminismo, parece tambm estar desaparecendo de uma maneira inexorvel, e a idia da obrigao de ser fiel a uma vocao paira sobre nossas vidas como o esprito de defuntas crenas religiosas (WEBER, 1964).

Embora tanto Marx como Weber tenham discernido uma conexo entre o desenvolvimento do capitalismo industrial e a dissoluo das crenas religiosas tradicionais, o tom de suas explicaes totalmente diferente. Enquanto Marx falou da desmistificao das relaes sociais e colocou isso como uma precondio para emancipao ltima das relaes de explorao de classe, Weber falou, ao invs disso, do desencantamento do mundo moderno, em que alguns dos valores tradicionais e distintivos da civilizao ocidental foram submersos por uma racionalizao sempre crescente e por uma burocratizao da vida social, e ele viu isso com certa pena, como o destino dos tempos modernos.

OAntigo RegimeouAncien Rgime(dofrancs) refere-se originalmente ao sistema social e polticoaristocrtico naFrana, entre ossculos XVIeXVIII. Nesse perodo, a sociedade francesa encontrava-se dividida em trs estamentos: oclero(Primeiro Estado), anobreza(Segundo Estado) e oTerceiro Estado, que representava aburguesiae oscamponeses.2 As perspectivas de Marx e Weber, entre outros, apresentaram o pano de fundo contra o qual alguns pensadores argumentaram que a formao e a difuso de ideologias uma caracterstica distintiva da era moderna. Este argumento, j evidente no trabalho de Mannheim (1976), foi desenvolvido nos anos recentes por uma variedade de autores (LEFORT, 1986). Tentarei, aqui, reconstruir a argumentao de uma maneira geral, sem me apoiar estreitamente no trabalho de nenhum terico em particular. Durante o final do sculo XVIII e comeo do sculo XIX assim que a argumentao se apresenta o processo secularizao comeou a se firmar nos centros industriais da Europa. medida que, mais e mais pessoas estavam sendo expulsas do campo para as cidades a fim de formar a fora de trabalho para a expanso das fbricas do capitalismo industrial, as velhas tradies, as religies e os mitos comearam a perder sua influncia sobre a imaginao coletiva. Os velhos laos de servido entre Senhores e Escravos, laos construdos no tecido da lealdade e da reciprocidade, foram sendo, cada vez mais, questionados, medida que os indivduos estavam sendo forados a entrar num novo conjunto de relaes sociais baseadas na propriedade privada dos meios de produo e na troca de mercadorias e fora de trabalho no mercado. Ao mesmo tempo em que esse novo conjunto de relaes sociais estava sendo formado, o poder poltico estava sempre mais concentrado nas instituies do Estado secularizado isto , um Estado baseado na noo de soberania e de imprio formal da lei e justificado por um apelo a valores, regras e direitos universais, e no por um apelo a algum valor ou ser religioso ou mstico, que confeririam ao poder poltico a autoridade de uma vontade divina. O Estado moderno se distingue das instituies polticas do Ancien Rgime, entre outras coisas, pelo fato de que ele est localizado inteiramente dentro do mundo scio-histrico e, por isso, a luta pelo exerccio do poder se torna um assunto mundano que est inserido na linguagem da razo e da cincia, dos interesses e dos direitos.

A cosmoviso pode ser definida como o modo pelo qual a pessoa interpreta a realidade, ou sua viso de mundo. A secularizao da vida social e do poder poltico criou as condies para a emergncia e difuso das ideologias. Nesse contexto, ideologias so entendidas, principalmente, como sistemas seculares de crenas que tm uma funo mobilizadora e legitimadora. O fim do sculo XVIII e o comeo do sculo XIX marcaram o comeo da era das ideologias nesse sentido, como ficou expresso nas grandes revolues polticas da Frana e da Amrica e na proliferao das doutrinas polticas, ou dos ismos, desde o socialismo e comunismo at o liberalismo, o conservadorismo e o nacionalismo. A difuso das doutrinas polticas foi facilitada, e sua eficcia realada, por mais dois desenvolvimentos caractersticos do sculo XIX: a expanso da indstria do jornal e o crescimento da alfabetizao. Esses desenvolvimentos capacitaram, cada vez mais, as pessoas a lerem sobre o mundo social e poltico e a partilharem a experincia dos outros com os quais eles no interagiam na vida diria. Os horizontes dos indivduos, com isso, expandiram-se; tornaram-se participantes potenciais da espera pblica, em que os problemas eram debatidos e as posies questionadas, ou apoiadas, atravs de raciocnios e argumentos. Foi no espao aberto da esfera pblica que o discurso das ideologias apareceu, constituindo sistemas organizados de crenas que ofereciam interpretaes coerentes dos fenmenos sociais e polticos e que serviam para mobilizar movimentos sociais e justificar exerccios de poder. As ideologias, ento, propiciaram marcos referenciais de sentido, por assim dizer, que possibilitaram s pessoas se orientarem num mundo caracterizado por certo sentimento de falta de fundamento, uma sensao produzida pela destruio de estilos de vida tradicionais e pela morte de cosmovises religiosas e mticas.

3 Se as transformaes culturais associadas ao surgimento das sociedades modernas industriais criaram um novo espao, dentro do qual as ideologias puderam florescer, esse era um espao que poderia, na viso de alguns tericos, ser fechado pelo desenvolvimento subseqente das sociedades modernas. A idia de que a era das ideologias chegou a um fim no nova, nem uma idia que seja compartilhada por todos os tericos que argumentaram que as ideologias so uma caracterstica distintiva da era moderna; uma idia absolutamente no partilhada de modo geral, que pode ser vista como sendo uma expresso particular da grande narrativa da transformao cultural. A tese do assim chamado fim da ideologia foi, originalmente, apresentada por um conjunto de pensadores liberais e conservadores, incluindo Raymond Aron (2010), Daniel Bell (1960), Seymour Lipset (1959) e Edward Shils (1958), embora um eco dessa tese possa ser ouvida hoje em debates tericos correntes. Na sua formulao original, a tese do fim da ideologia era uma argumentao sobre o suposto declnio das doutrinas polticas radicais ou revolucionrias nas sociedades industriais desenvolvidas tanto na Europa Oriental como da Ocidental. s vsperas da Segunda Guerra Mundial, da derrota do fascismo e do nazismo, dos julgamentos de Moscou, da denncia contra o stalinismo e outros desenvolvimentos polticos e atrocidades dos ltimos anos, as velhas ideologias que surgiram no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX perderam, argumentou-se, muito de seu poder persuasivo. Essas ideologias se firmaram, principalmente, entre grupos de intelectuais que tinham-se desiludido com as instituies sociais e polticas existentes e que expressaram sua insatisfao apelando para uma mudana radical. Mas os acontecimentos polticos do incio do sculo XX mostraram a ingenuidade e o perigo de tais apelos. Tornava-se cada vez mais claro, aos intelectuais e a outros, que os problemas que as sociedades industriais desenvolvidas estavam enfrentando no podiam ser resolvidos pelo tipo de mudana social radical, adotada pelo marxismo e comunismo, pois esse tipo de mudana dera origem a problemas semelhantes e a novas formas de violncia e represso. Por isso, os tericos do fim da ideologia vislumbraram a emergncia de um novo consenso: a velha poltica ideolgica estava abrindo caminho para um novo senso de pragmatismo nas sociedades industriais desenvolvidas. A paixo revolucionria estava definhando e estava sendo substituda por uma perspectiva pragmtica, gradual, de mudana social dentro do macro referencial ao menos no Ocidente de uma economia mista e de um Estado de bem-estar redistributivo. Os tericos do fim da ideologia geralmente aceitam que as ideologias continuaro a florescer em sociedades menos desenvolvidas, e eles de modo algum descartam a possibilidade de que paixes revolucionrias possam, ocasionalmente, reaparecer em sociedades industriais desenvolvidas, atravs de levantes isolados e sem grandes conseqncias. Mas eles sustentaram que, como uma situao geral onde a arena poltica animada por doutrinas radicais e revolucionrias que despertam paixo e conflito intenso, a era das ideologias est ultrapassada e a ideologia cessou de ser uma caracterstica significativa nas sociedades industriais modernas.

Na verdade, os tericos do fim da ideologia estavam usando o termo ideologia num sentido muito especial. As ideologias, em seu modo de entender, no seriam sistemas seculares de crenas de algum tipo especfico: ao contrrio, elas seriam doutrinas abrangentes, totalizantes, que oferecem uma viso coerente do mundo scio-histrico e que exigem um alto grau de ligao emocional. Para muitos desses tericos, nesse sentido o marxismo era a encarnao da ideologia. O marxismo oferecia uma viso sistemtica, totalizante, do mundo scio-histrico. Predizia um futuro que seria radicalmente diferente do presente e que somente poderia acontecer atravs da ao dedicada aos indivduos que acreditassem fervorosamente em sua causa. Estas seriam as caractersticas da ideologia: totalizante, utpica, apaixonada, dogmtica. O fim da ideologia, neste sentido, no seria, necessariamente, o fim do debate e do conflito polticos, de programas polticos opostos que expressassem diferenas genunas de interesses e opinies. Mas esses debates, conflitos e programas no seriam mais animados por vises totalizantes e utpicas que incitariam os indivduos para a ao revolucionria e cegariam-nos a quaisquer outras consideraes que fossem contrrias sua viso. Com o passar da era das ideologias, os processos polticos poderiam ser institucionalizados de uma maneira sempre crescente dentro de um referencial pluralista em que os partidos polticos ou grupos competiriam pelo poder e implementariam polticas pragmticas de reforma social. As ideologias no seriam tanto uma caracterstica endmica da era moderna, mas um sintoma passageiro de modernizao, um sintoma que iria desaparecendo gradualmente, medida em que as sociedades industriais alcanassem um estgio de maturidade econmica e poltica.

Reconstitu esta grande narrativa da transformao cultural a fim de levantar uma srie de problemas sobre a natureza e o papel das ideologias nas sociedades modernas. uma narrativa com diferentes elementos e muitas ramificaes, e como indiquei anteriormente no desejo dar a idia de que toda histria pode ser encontrada no trabalho de algum autor especfico. Abstive-me de variaes detalhadas e de elaboraes, a fim de demarcar uma linha geral de argumentao que est profundamente inserida na literatura da teoria social e poltica e que continua a estruturar os debates sobre a natureza e o papel da cultura e de ideologia nas sociedades modernas. Desejo, agora, passar da reconstruo para uma avaliao crtica. Ao fazer isso, no quero sugerir que no exista nada de valor permanente nesta grande narrativa: meu objetivo no rejeitar esta narrativa inteiramente mas realar certos aspectos em que ela, no meu ponto de vista, enganadora. Restringirei minha ateno a dois pontos principais. Existem muitos outros pontos que poderiam ser discutidos neste contexto: uma linha de argumentao to ampla em seu objetivo est fadada a levantar muitas questes e problemas. Mas meu interesse menos com dificuldades especficas do que com limitaes bastante gerais; quero tentar mostrar que, por razes essenciais, a grande narrativa da transformao cultural no um referencial apropriado dentro do qual se possa analisar a natureza e o papel das ideologias nas sociedades modernas.

A primeira e principal limitao da grande narrativa que, ao caracterizar as transformaes culturais relacionadas ao surgimento das sociedades industriais modernas primariamente em termos dos processos de secularizao e racionalizao, essa teoria minimiza a importncia do que chamei de midiao da cultura moderna. O problema, aqui, no simplesmente que os processos de secularizao e racionalizao possam ter sido menos avassaladores e menos uniformes do que os tericos sociais anteriores algumas vezes sugeriram embora seja provvel que esses processos tenham sido por demais enfatizados e que as crenas e prticas religiosas sejam caractersticas mais persistentes das sociedades modernas do que os tericos sociais anteriores imaginaram[footnoteRef:2]. Mais importante ainda, o problema que a preocupao com os processos de racionalizao e secularizao tendeu a trancar um desenvolvimento que era de muito maior significado para a natureza das formas culturais das sociedades modernas isto , o desenvolvimento de um conjunto de instituies relacionadas com a produo, e com a distribuio massivas de bens simblicos. Documentarei esse desenvolvimento e tirarei da algumas de suas implicaes em captulos subseqentes. Aqui, ser suficiente dizer que, enquanto a narrativa tradicional negligencia este desenvolvimento, ela oferece uma explicao enganadora muito grave das transformaes culturais associadas com o surgimento das sociedades modernas. As instituies e processos de comunicao de massa assumiram uma importncia to profunda nas sociedades modernas que nenhuma teoria da ideologia e da cultura moderna pode dar-se ao luxo de ignor-las. [2: Embora tenha havido um declnio na participao organizada de igrejas crists em muitas sociedades industrializadas desde o sculo XIX, persiste a situao de que uma grande proporo de pessoas declaram possuir crenas religiosas de alguma espcie. Ademais, as igrejas crists continuam a exercer alguma influncia nas questes sociais e polticas dos Estados modernos, o que varia consideravelmente de um contexto nacional para outro.]

, sem dvida, verdade que alguns dos tericos que poderia ser associados com a grande narrativa da transformao cultural fizeram comentrios sobre o desenvolvimento da comunicao de massa. Por exemplo, Alvin Gouldner (1976), baseando-se na obra inicial de Habermas, discutiu as maneiras como o desenvolvimento da imprensa e da indstria do jornal facilitou a formao de uma esfera pblica em que os assuntos polticos eram debatidos e as ideologias floresceram. Mas a discusso de Gouldner , quando muito, limitada e parcial; e ele quase nem toma em considerao as implicaes das formas mais recentes de comunicao de massa, particularmente aquelas que envolvem estocagem eletrnica e transmisso. Na verdade, Gouldner tende a conceber as ideologias como sistemas simblicos isolados que se concretizam sobretudo na escrita, e que servem, enquanto algo escrito, enquanto discurso racional, para informar projetos pblicos de reconstruo social. Conseqentemente, Gouldner levado a concluir que o crescimento dos meios eletrnicos, tais como o rdio e a televiso, marca o declnio do papel da ideologia nas sociedades modernas. A ideologia , cada vez mais, deslocada da sociedade como um todo, onde a conscincia moldada, mais e mais, pelos produtos dos meio eletrnicos; a ideologia , cada vez mais, confinada esfera restrita das universidades, onde os intelectuais continuam a cultivar o mundo escrito. Essa no exatamente uma verso da tese do fim da ideologia, pois Gouldner reconhece um papel contnuo, embora restrito, para a ideologia nas sociedades contemporneas. Mas, ao argumentar que a ideologia goza de uma relao privilegiada com a escrita e que, por isso, no pode estar implicada com o desenvolvimento da comunicao eletrnica, oferece, no mnimo, uma viso pobre, pois ela separa a anlise da ideologia das prprias formas da comunicao de massa, que so da maior importncia nos dias de hoje. Assim, embora o desenvolvimento da comunicao de massa no tenha sido totalmente descuidado por alguns autores que poderiam estar associados grande narrativa da transformao cultural, pode-se colocar em dvida se eles apresentaram uma explicao satisfatria desse desenvolvimento e de suas implicaes para a anlise da ideologia.

A segunda limitao importante da grande narrativa se refere s maneiras como o conceito de ideologia empregado dentro dela. Esse conceito usado de maneiras diferentes por pensadores diferentes, e seria falso sugerir que ele possui um sentido claro e unvoco dentro da grande narrativa. Mas, se ns abstrairmos as diferenas no uso, podemos ver que este conceito , geralmente, usado para referir-se a sistemas de crenas isolados ou a sistemas simblicos que emergiram s vsperas da secularizao e que serviram para mobilizar movimentos polticos e /ou legitimar poder poltico nas sociedades modernas; este uso generalizado, em outras palavras, consistente com o que chamei de concepo neutra de ideologia, e recebe uma variao especfica por parte de tericos, ou grupos de tericos especficos. Vimos, por exemplo, que Gouldner tende a usar a ideologia para se referir a sistemas simblicos que se concretizam principalmente na escrita e que informam projetos pblicos de reconstruo social atravs do discurso racional. Os tericos do fim da ideologia, ao contrrio, tendem a usar o termo para se referir quele subconjunto especfico de sistemas de crena polticos discretos, ou doutrinas que so abrangentes e totalizantes, tais como o marxismo e o comunismo. essa limitao do termo que possibilita a eles predizer com uma confiana que, sem dvida, contm uma grande dose de imaginao que a era das ideologias acabou.

O problema principal com esse uso generalizado do termo ideologia, e com suas variaes especficas, que ele tende a minimizar ou a dissolver o elo entre ideologia e dominao. No captulo anterior examinei essa situao e situei-a em relao s concepes principais de ideologia que emergiram no curso dos ltimos dois sculos. Se nos apoiarmos agora nessa anlise e aceitarmos a concepo crtica de ideologia proposta no captulo anterior, podemos perceber que o uso generalizado de ideologia da grande narrativa questionvel sob dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, obriga-nos a ver a ideologia como um fenmeno essencialmente moderno, isto , como um fenmeno singular dessas sociedades que emergiram do decurso da industrializao capitalista durante os sculos XVII, XVIII e XIX. Mas esta viso me parece uma viso claramente restrita. No necessrio definir o conceito ideologia em termos de um corpo particular de doutrinas polticas, de sistemas de crenas ou de sistemas simblicos que caracterstico de certas sociedades unicamente num determinado estgio de seu desenvolvimento histrico. O conceito admite, como vimos, muitas outras definies, e, absolutamente, no evidente que restringir o conceito s sociedades modernas seja a maneira mais plausvel e iluminadora de proceder. Deveramos aceitar que no tem sentido falar de ideologia em sociedades que antecederam a industrializao capitalista na Europa, que no tem sentido falar em ideologia na Europa pr-industrial ou em sociedades no-industriais existentes em outras partes do mundo? Penso que no. Parece-me que perfeitamente possvel elaborar uma concepo defensvel de ideologia que no esteja restrita a um corpo particular de doutrinas que emergiram na era moderna.

O uso generalizado de ideologia na grande narrativa tambm enganador, pois dirige nossa ateno para doutrinas polticas isoladas, para sistemas polticos ou para sistemas simblicos, e, dessa maneira, afasta nossa ateno das muitas maneiras como as formas simblicas so usadas, em contextos diferentes da vida cotidiana, para estabelecer e sustentar relaes de dominao. No existe justificao clara e convincente que possa ser estabelecida, seja a partir da histria do conceito de ideologia, seja a partir da reflexo sobre as maneiras como o poder perpetuado, para restringir a anlise da ideologia ao estudo das doutrinas polticas especficas, aos sistemas de crenas ou aos sistemas simblicos. Proceder assim seria assumir uma viso abertamente estreita da natureza e do papel da ideologia nas sociedades modernas e esquecer uma ampla gama de fenmenos simblicos que legitimam formas de poder nos contextos sociais da vida cotidiana. Repetindo, no se pode dizer que todos os autores associados com a grande narrativa defendem uma concepo consistente das ideologias como doutrinas polticas especficas, como sistemas polticos ou como sistemas simblicos. Na maior parte das vezes, cada um desses autores emprega o termo ideologia de maneiras diferenciadas em trabalhos diferentes, at dentro de um mesmo livro. Mas inquestionvel que a concepo das ideologias como doutrinas polticas isoladas aparece proeminentemente entre esses empregos, e principalmente como tal acepo que os supostos surgimento e queda das ideologias na era moderna discutido. Se colocarmos de lado essa concepo, podemos tambm colocar de lado a viso de que as ideologias apareceram pela primeira vez com o despertar da era moderna, e de que, posteriormente, desapareceram do campo social e poltico; e podemos reorientar o estudo da ideologia para as mltiplas e diferentes maneiras como as formas simblicas foram usadas, e continuam a ser, a servio do poder, dentro das sociedades ocidentais modernas ou dos contextos sociais situados em diferentes pontos no tempo ou no espao.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

ARON, Raymond (2010), L'opium des intellectuels, Paris: Hachette.

BELL, Daniel (1960), The end of ideology. Glencoe: Free Press.

GOULDNER, Alvin (1976), The dialectic of ideology and technology, Londres: Macmillian.

LEFORT, Claude (!986), The political forms of modern society, Cambridge: Polity Press.

LIPSET, Seymour (1959), Political man: the social bases of politics, Londres: Heinemann.

MANNHEIM, Karl (1976), Ideologia e utopia, Rio de Janeiro: Zahar.

SHILS, Edward (1958), "Ideology and civility", The sewanee rewiew, 66, pp. 450-480.

WEBER, Max (1964), Lethique protestante et lesprit du capitalisme, Paris: Plon