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  • Instituto Politcnico de Portalegre

    Escola Superior de Educao de Portalegre

    IDENTIDADE E ALTERIDADE:

    A LITERATURA INFANTIL COMO

    OPORTUNIDADE DE ABORDAGEM AOS

    VALORES NA EDUCAO PR-ESCOLAR

    Relatrio Final - Prtica e Interveno Supervisionada

    Mestrado em Educao Pr-Escolar

    Ana Filipa Mendes Ferreira

    Orientadora: Professora Doutora Teresa Mendes

    Maro de 2013

  • 2

    Instituto Politcnico de Portalegre

    Escola Superior de Educao de Portalegre

    IDENTIDADE E ALTERIDADE:

    A LITERATURA INFANTIL COMO OPORTUNIDADE DE

    ABORDAGEM AOS VALORES NA EDUCAO PR-ESCOLAR

    Relatrio Final - Prtica e Interveno Supervisionada

    Mestrado em Educao Pr-Escolar

    Ana Filipa Mendes Ferreira

    Orientadora: Professora Doutora Teresa Mendes

    Maro de 2013

  • 3

    Um dia, o meu av perguntou-me quais eram

    as coisas mais belas do mundo, e eu no soube

    o que dizer.

    Pensei que podia ser o pr do sol ou o mar

    (). Ele sorriu e perguntou-me outra vez se

    no havia de ser a amizade, o amor, a

    honestidade e a generosidade, o ser-se fiel,

    educado, o ter-se respeito por cada pessoa e

    cada coisa.

    Perguntou-me se o mais belo do mundo no

    seria fazer-se o que se sabe e pode para que a

    vida de todos seja melhor. ()

    Valter Hugo Me, 2010

  • 4

    RESUMO

    A nossa sociedade vem enfrentando com alguma dificuldade a emergncia dos

    paradigmas sociais, econmicos e culturais perante os quais a globalizao nos colocou.

    Ao longo deste processo to complexo, os valores que geriam a nossa forma de ser e de

    viver, connosco prprios, com os outros e com a sociedade, perderam a sua nitidez, o

    que gerou uma dificuldade crescente em percebermos como orientar as nossas condutas.

    Perante este perigoso panorama, urge a necessidade de as nossas escolas assumirem

    a sua responsabilidade fundamental de formar cidados esclarecidos, ativos e

    responsveis. essencial que, desde o Jardim de Infncia, as crianas sejam

    incentivadas a refletir sobre os seus modos de agir, sobre si prprias, sobre o outro,

    sobre as relaes que se estabelecem entre os dois. S um ambiente rico em

    experincias que coloquem a criana perante a dvida e a necessidade de refletir, mas

    que a ajudem simultaneamente a encontrar uma resposta (em que a liberdade necessria

    seja, no entanto, sempre assegurada), pode conduzir a um desenvolvimento pleno, em

    que a identidade e a alteridade se formem com clareza e harmonia, assegurando ao

    indivduo a integridade necessria para viver numa sociedade que o coloca

    permanentemente perante a mudana, perante a novidade, e tantas vezes, e cada vez

    mais, perante a dificuldade.

    Particularmente no Jardim de Infncia, a Literatura Infantil assume-se, pela sua

    riqueza esttica e literria, mas tambm pela relao to singular e to estreita que se

    forma entre a criana e o livro, como um meio de excelncia para a abordagem e a

    reflexo sobre os valores.

    Palavras-chave: Educao Pr-Escolar; Literatura Infantil; Valores.

  • 5

    ABSTRACT

    Our society has been struggling with the emergence of social, economic and

    cultural paradigms which globalization has brought. During this complex process, the

    values which defined our way of being and living, with ourselves, with each other and

    in society, have lost clarity, and this has created a growing difficulty on figuring out

    how to behave.

    In face of this dangerous scenario, there is a great need for our schools to take on

    the responsibility of educating enlightened, active and responsible citizens. It is

    essential that, as early as Kindergarten, children are encouraged to think about their

    ways of behaving, about their selves, about others, about the relation between the two.

    Only an environment enriched with experiences that put the child face to face with

    doubt and with the need to think, but that also helps him to find an answer (where free

    will is always to be respected), may lead to a full development. Identity and alterity will

    then be formed with clarity and harmony, assuring the integrity that the individual will

    need to live in a society that constantly makes him face change, novelty, and, so many

    times, and constantly more so, difficulty.

    Particularly in Kindergarten, Childrens Literature becomes an exceptional means to

    discuss and think about values, not only because of its aesthetical and literary richness,

    but also because of the close and unique relationship formed between the child and the

    book.

    Key-words: Preschool Education; Childrens Literature; Values.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Tantos foram os momentos difceis em que toda a esperana e coragem pareceram

    abandonar-me Em cada um desses momentos, foi nestas pessoas que encontrei a

    fora e a confiana necessrias para continuar, sem abdicar, nem pelo mais breve

    segundo, da certeza de que nada menos do que o melhor de mim era aceitvel neste

    percurso.

    Para comear, Professora Teresa Mendes, orientadora deste Relatrio, mas

    tambm amiga, cuja sabedoria me guiou incessantemente. Algum que confiou no meu

    trabalho no raras vezes at mais do que eu, e que, com as suas palavras doces, sempre

    me fez acreditar que este dia haveria de chegar e nos haveramos de orgulhar muito do

    produto final de tanto trabalho e tanta dedicao.

    Depois, Professora Ana Soares, que embora no tenha participado diretamente

    na elaborao deste Relatrio, foi uma inspirao permanente e uma professora sempre

    disponvel durante a criao e aplicao das atividades que constituem este projeto, mas,

    mais at do que isso, foi pela sua mo que descobri a magia da Literatura Infantil.

    Tambm Professora Amlia Marcho, cuja boa vontade e incrvel dedicao me

    permitiram ultrapassar algumas dificuldades que facilmente se teriam constitudo como

    impedimentos a tantas conquistas futuras; e a todos os Professores deste curso, pelo

    altrusmo com que nos deram tudo de si e olharam por ns em cada passo deste

    caminho.

    Ainda amiga com quem partilhei cada momento, a Jlia, com quem criei uma

    relao de confiana inabalvel ao longo do trabalho com o grupo de crianas,

    construda com base numa disponibilidade total e num apoio constante, e cujo resultado

    acabaria por ser uma amizade verdadeira, que ficar para a vida. Tambm amiga Ana

    L., por tantos bons momentos partilhados.

    Por ltimo, e por me terem recebido na sua sala com o maior afeto e bondade, s

    Crianas (tantos momentos felizes, tanto para ensinar aos adultos) e Educadora

    Titular, que me mostraram verdadeiramente o valor da infncia e a importncia desta

    profisso to exigente mas to bela, que, agora mais do que nunca, ambiciono com

    todas as foras.

  • 7

    E depois daqueles que me acompanharam de forma mais direta nesta etapa do meu

    percurso acadmico, que se revelou, mais do que isso, determinante no curso da minha

    vida, no posso deixar de agradecer queles que estiveram incondicionalmente a meu

    lado nos bastidores.

    Em primeiro lugar, e porque sem a sua existncia talvez nunca tivesse nascido em

    mim esta chama, minha mana Lara, a menina mais bonita e especial deste mundo,

    cujos olhos negros brilham como se abrigassem um sol de vero e aquecem o meu

    corao mesmo nas noites mais frias.

    Em segundo, quele que foi o companheiro de todas as horas, o meu futuro marido,

    Miguel, rochedo que me suportou sempre que os vendavais agitavam a minha

    confiana, farol que iluminou o meu corao quando, nas horas mais escuras, se sentia

    perdido, e abrigo onde, depois de cada dia de luta, cheio de vitrias e de derrotas, me

    refugiei e me alimentei de coragem para continuar.

    Em terceiro, ao meu pai e amigo Paulo, que nunca duvidou da minha capacidade

    para atingir todos os meus desejos, e me vem acompanhando, orgulhosamente, enquanto

    conquisto cada um deles, neste longo caminho para a felicidade.

    Sem o apoio de cada um de vs, no teria sido possvel chegar at aqui.

    OBRIGADA a todos.

  • 8

    SIGLAS E ABREVIATURAS

    DGIDC Direo Geral de Inovao e de Desenvolvimento Curricular

    DQP Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias

    ECERS-R Escala de Avaliao do Ambiente em Educao de Infncia Edio

    Revista

    Ed. E. Educadora Estagiria

    EEL Effective Early Learning

    ESEP Escola Superior de Educao de Portalegre

    LGP Lngua Gestual Portuguesa

    MAEPE Metas de Aprendizagem - Educao Pr-Escolar

    MEM Movimento Escola Moderna

    NEE Necessidades Educativas Especiais

    OCEPE Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar

    OCS Observao e Cooperao Supervisionada

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PIS Prtica e Interveno Supervisionada

    S.d. Sem data

    S.p. Sem pgina

  • 9

    NDICE GERAL

    INTRODUO .................................................................................................... 11

    PARTE I ENQUADRAMENTO TERICO.................................................... 14

    CAPTULO I OS VALORES NA SOCIEDADE E NA ESCOLA: QUE

    CIDADOS QUEREMOS FORMAR? ............................................................... 15

    1. Sociedade, Valores e Educao para a cidadania na (e desde a) Educao Pr-

    Escolar ................................................................................................................... 15

    2. Os valores nas Orientaes Oficiais para a Educao Pr-Escolar ....................... 20

    3. A promoo de valores na Educao Pr-Escolar: o papel do Educador .............. 27

    CAPTULO II A LITERATURA INFANTIL COMO OPORTUNIDADE DE

    ABORDAGEM AOS VALORES ........................................................................ 32

    1. Especificidade da Literatura Infantil e seu contributo para o desenvolvimento da

    criana .................................................................................................................... 32

    1.1. Relao texto-imagem no livro para crianas: a educao esttico-literria ...... 38

    2. A Literatura Infantil como oportunidade de abordagem aos valores: o papel do

    educador como mediador da leitura ........................................................................ 42

    PARTE II PROJETO DE INVESTIGAO-AO ...................................... 48

    CAPTULO I PERCURSO E CONTEXTO..................................................... 49

    1. Percurso ............................................................................................................. 49

    1.1 A opo por uma metodologia de permanente reflexo: a Investigao-Ao .... 49

    1.1.1. Ponto de partida ............................................................................................ 50

    1.1.2. Coligir .......................................................................................................... 52

    1.1.3. Interpretar ..................................................................................................... 56

    2. Contexto ............................................................................................................. 57

    2.1. Estabelecimento educativo onde decorreu a ao ............................................. 57

    2.1.1. Caracterizao da sala de atividades .............................................................. 59

    2.2. Constituio e caracterizao do grupo de crianas .......................................... 64

    CAPTULO II AO EM CONTEXTO ......................................................... 67

    1. Descrio, fundamentao e reflexo da Prtica e Interveno Supervisionada ... 67

    2. Descrio, fundamentao e reflexo do projeto de Investigao-Ao ............... 72

    2.1. Atividades propostas no mbito do Projeto de Investigao-Ao .................... 73

  • 10

    2.1.1. Atividade 1 A Lagarta que Rugia, de Michael Lawrence ............................ 74

    2.1.2. Atividade 2 O Ponto, de Peter Reynolds .................................................... 76

    2.1.3. Atividade 3 Pequeno Azul e Pequeno Amarelo, de Leo Lionni ................... 77

    2.1.4. Atividade 4 Corao de Me, de Bernardo Carvalho e Isabel M. Martins .. 79

    2.1.5. Atividade 5 Ainda Nada?, de Christian Voltz ............................................. 81

    2.1.6. Atividade 6 Coragem, Pequena Semente!................................................... 83

    2.1.7. Atividade 7 Grisela, de Anke de Vries e Willemien Min ............................ 85

    2.1.8. Atividade 8 Nadadorzinho, de Leo Lionni.................................................. 87

    2.1.9. Atividade 9 Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak ......................... 91

    2.1.10. Atividade 10 Reunio ............................................................................... 93

    2.1.11. Atividade 11 Avs, de Chema Heras e Rosa Osuna .................................. 99

    2.2. Reflexo Final do Projeto de Investigao-Ao ............................................ 100

    CONCLUSO .................................................................................................... 101

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................ 103

    ANEXOS ............................................................................................................. 108

    ANEXO 1 Resultado da Aplicao da Subescala Linguagem-Raciocnio da

    ECERS-R ............................................................................................................. 109

    ANEXO 2 Fotografias do estabelecimento educativo e da sala de atividades ..... 110

    ANEXO 3 Inqurito realizado Educadora ....................................................... 112

    ANEXO 4 Produes das crianas no mbito da Atividade 2 ............................ 119

    ANEXO 5 Fuso Pequeno Azul e Pequeno Amarelo ...................................... 121

    ANEXO 6 Ilustraes criadas para a leitura da obra Corao de Me ............... 122

    ANEXO 7 Produes das crianas no mbito da Atividade 4 ............................ 123

    ANEXO 8 Texto Coragem, Pequena Semente! ................................................. 124

    ANEXO 9 Produes das crianas no mbito da Atividade 7 ............................ 127

    ANEXO 10 Guio de orientao do grupo para atividade de relaxamento ......... 128

    ANEXO 11 Fotos atividade de expresso dramtica (Atividade 9) .................... 129

    ANEXO 12 - Produes das crianas no mbito da Atividade 9 ........................... 130

    NDICE DE QUADROS

    Quadro 1 ................................................................................................................ 64

    Quadro 2 ................................................................................................................ 73

  • 11

    INTRODUO

    O presente relatrio pretende revelar, de uma forma abrangente e devidamente

    fundamentada, todo o trabalho realizado durante a Prtica e Interveno Supervisionada,

    numa sala de Pr-Escolar da rede pblica da cidade de Portalegre, no mbito do

    Mestrado em Educao Pr-Escolar da Escola Superior de Educao de Portalegre.

    Como no poderia deixar de ser, este trabalho evidencia igualmente, e de forma quase

    indistinta, o percurso realizado no 1. Semestre, no mbito da unidade curricular de

    Observao e Cooperao Supervisionada.

    Naturalmente, a nfase ser colocada no projeto integrador selecionado e

    desenvolvido durante a PIS, Identidade e Alteridade A Literatura Infantil como

    Oportunidade de Abordagem aos Valores na Educao Pr-Escolar. A escolha do tema

    foi feita de uma forma muito natural, uma vez que a necessidade de o abordar emergiu

    espontaneamente.

    No que diz respeito aos valores, e mais particularmente aos que se relacionam com

    a formao da identidade e para a alteridade, foi atravs da observao das interaes

    entre as crianas e com os adultos que se evidenciou o facto de algumas apresentarem

    dfices potencialmente graves de autoestima e autoconfiana. Isto manifestava-se, por

    exemplo, ao se recusarem a realizar determinada atividade, por exemplo, de desenho,

    por afirmarem no saber desenhar. Tambm em situaes em que era pedida uma

    opinio a qualquer respeito, algumas crianas hesitavam em se manifestar por receio das

    reaes dos colegas, acabando por seguir cegamente as opes de outros. Assim, pude

    facilmente perceber, na altura, que as crianas em questo enfrentavam dificuldades ao

    nvel da construo e expresso da sua identidade. Por outro lado, observei situaes em

    que as crianas revelavam dificuldades em lidar com a alteridade, desrespeitando os

    colegas, fazendo comentrios depreciativos face diferena, recusando-se a partilhar e a

    colaborar, etc.

    Embora no se observassem de todo casos extremos, era um facto que as situaes

    acima referidas poderiam constituir um entrave ao desejvel desenvolvimento pleno e

    harmonioso das crianas. Pude observar que na relao da educadora com as mesmas

    transpareciam os valores pessoais e sociais universais, e esta fazia frequentemente

    comentrios de valorizao das conquistas pessoais, de incentivo, assim como de

  • 12

    repreenso perante atitudes reveladoras de valores socialmente indesejveis. No entanto,

    escasseavam as atividades que convidassem a uma abordagem explcita e consequente

    reflexo sobre os valores, sobre os modos de ver e de viver o mundo, sobre as formas de

    agir.

    Uma vez que a temtica das atitudes e valores se insere na rea de Formao

    Pessoal e Social, uma rea absolutamente transversal, integradora e abrangente,

    emergia, agora, a necessidade de encontrar uma estratgia pedaggica facilitadora da

    abordagem que se pretendia realizar, que permitisse uma relao de plena interligao

    com a temtica, mas que no se constitusse unicamente como um meio para chegar a

    um fim, ou seja, que valesse por si s, contribuindo para o desenvolvimento das

    crianas.

    A literatura infantil acabou por se apresentar como a resposta bvia a esta

    necessidade. Existiam na sala rotinas relacionadas com a leitura, assim com um espao

    dedicado ao livro, onde as crianas podiam explor-lo livremente. No entanto, isto

    parecia no ser suficiente, uma vez que as crianas se mostravam ainda sedentas de

    contacto com o livro, manifestando um interesse e curiosidade inabalveis quando

    tinham contacto com novas obras. Por outro lado, quando a educadora dinamizava

    momentos de leitura, as crianas mostravam-se verdadeiramente entusiasmadas e

    pediam a oportunidade de intervir, de fazer comentrios, de dar as suas opinies. No

    entanto, era prtica da educadora limitar esses comentrios, permitindo-os unicamente

    no final, e em nmero reduzido, at porque era habitual realizar a leitura antes do

    almoo, numa altura em que a disponibilidade temporal era muito reduzida.

    Compreendi, assim, que uma seleo cuidada e responsvel de obras de qualidade,

    que abordassem de uma forma subtil os valores, e integradas em momentos de leitura

    dirios (no mnimo) e sem barreiras temporais, em que as crianas fossem incentivadas

    a participar, a manifestar-se, a partilhar opinies, poderia ser uma oportunidade singular

    e cheia de potencialidades pedaggicas. Isto no significa, de forma alguma, que se

    pretendesse desrespeitar a magia do momento de leitura, com interrupes abruptas

    para comentar. Significa, isso sim, manter regras de participao, nomeadamente de

    saber ouvir e saber esperar pela sua vez, salvaguardando sempre, no entanto, que todas

    as opinies seriam consideradas e bem-vindas, desde que justificadas. No fundo, o que

  • 13

    se pretendia era dar voz s crianas, valorizando as suas opinies, as suas vivncias, a

    sua identidade singular, em desenvolvimento.

    Identificado, ento, o tema integrador que orientaria o projeto, este foi desenvolvido

    numa metodologia de Investigao-Ao, que exigiu um processo constante de

    planificao-ao-reflexo, baseado numa observao atenta. Procurei desenvolver uma

    prtica responsvel, responsiva, reflexiva, que no perdesse de vista que a noo mais

    fundamental para quem trabalha com crianas num contexto educativo , justamente,

    centrar a sua ao e a sua intencionalidade na criana, e que tal se evidenciar atravs

    do seu bem-estar emocional, da sua plena integrao no grupo, do respeito e valorizao

    das suas potencialidades e da sua identidade nica, assim como da sua to singular

    condio de crianas.

    Em termos estruturais, o presente relatrio organiza-se em duas partes, dedicando-

    se a primeira a um Enquadramento Terico do tema selecionado, e a segunda

    Apresentao do Projeto de Investigao-Ao.

    Na primeira parte, realizada uma abordagem terica s temticas em questo,

    procurando-se, dessa forma, fundamentar as opes prticas ao nvel da abordagem aos

    valores atravs da literatura infantil. Assim, esta organiza-se em dois captulos distintos

    mas interligados e co-dependentes, intitulando-se o primeiro Os Valores na Sociedade e

    na Escola: Que Cidados Queremos Formar? e o segundo A Literatura Infantil como

    Oportunidade de Abordagem aos Valores.

    A segunda parte foca-se mais particularmente, por um lado, na apresentao do

    Percurso e Contexto, com uma fundamentao das opes metodolgicas, alm de uma

    caracterizao do estabelecimento, e mais particularmente da sala, em que se desenrolou

    a ao, assim como do grupo de crianas, e por outro, na Ao em Contexto, com uma

    descrio, fundamentao e reflexo sobre a PIS, e mais particularmente uma

    apresentao reflexiva das atividades propostas no mbito do mesmo (incluindo as

    contribuies das crianas, claramente reveladoras dos seus progressos, das suas

    conquistas, do seu desenvolvimento enquanto crianas e enquanto futuros cidados).

    Por fim, apresentada a Concluso, e, naturalmente, a Bibliografia em que se

    alicerou o presente relatrio.

  • 14

    PARTE I ENQUADRAMENTO TERICO

    ___________________________________________________

  • 15

    CAPTULO I OS VALORES NA SOCIEDADE E NA ESCOLA: QUE

    CIDADOS QUEREMOS FORMAR?

    1. Sociedade, Valores e Educao para a cidadania na (e desde a) Educao

    Pr-Escolar

    Vivemos num mundo em constante transformao. O que ontem era, hoje j no

    , e amanh certamente voltar a alterar-se. As sociedades enfrentam importantes

    mudanas polticas, tecnolgicas, cientficas, culturais, econmicas e sociais, que nos

    envolvem num clima de insegurana, na medida em que se torna impossvel

    compreender inteiramente uma ordem global to instvel (Giddens, 2000: 19). Nada

    certo, nada garantido.

    De acordo com Anthony Giddens (2000: 18), o processo de globalizao que vive a

    atual sociedade traduz-se na transmisso constante de imagens por todo o mundo,

    colocando todas as pessoas, todas as culturas, todas as comunidades em contacto

    permanente com outras pessoas, com outras culturas e com outras comunidades, e que,

    embora possam partilhar entre si aspetos que as aproximem, possuem tambm

    necessariamente formas de pensar e de viver muito distintas.

    Alain Torraine (1997) defende que a cultura de massa leva a que s vivamos

    juntos na medida em que fazemos os mesmos gestos e utilizamos os mesmos objetos,

    mas sem sermos capazes de comunicar entre ns, para alm dos signos da

    modernidade. (Torraine, 1997: 14). Segundo o autor, a globalizao, nos moldes em

    que se tem processado, no conduz ao surgimento de uma desejvel e verdadeira

    sociedade mundial, pois tal s seria possvel atravs da fuso das vrias pequenas

    sociedades que constituem o nosso mundo. Mas esta fuso no passa de uma utopia,

    pelo menos enquanto continuarmos a assistir, isso sim, a uma perda crescente dos traos

    culturais e dos sistemas de valores que costumavam governar as nossas pequenas

    comunidades, assegurando a sua manuteno (Torraine, 1997: 14).

    De facto, as prprias instituies que antes vamos como responsveis pela

    veiculao da cultura e dos valores, como a famlia, a escola e at a igreja, vm

    perdendo o seu poder, medida que o seu espao vai sendo invadido por mensagens

    que chegam de todo o lado, e que nos colocam perante dilemas constantes, levando-nos

    ao ponto de colocarmos em questo essas mesmas instituies, anteriormente

  • 16

    inquestionveis. Torraine chega a afirmar, neste seguimento, que a fronteira entre o

    normal e o patolgico, o permitido e o proibido, perde a nitidez (1997: 13).

    Esta descaracterizao das comunidades em que nos costumvamos sentir

    integrados conduz, necessariamente, a uma descaracterizao de ns mesmos. De

    acordo com Torraine, Isto faz pesar sobre ns uma dificuldade crescente de definir a

    nossa personalidade que, com efeito, perde irremediavelmente toda a unidade medida

    que deixa de ser um conjunto coerente de papis sociais. (1997: 18).

    O autor defende que, embora vivamos por um lado mais juntos, resultado da

    aproximao que nos traz a globalizao, em geral, e os meios de comunicao, em

    particular, nos encontramos simultaneamente mais afastados, mais sozinhos, e menos

    capazes de comunicar, pelo menos na verdadeira essncia da comunicao.

    Por outro lado, Valente Pires (2007) afirma que a sociedade atual se caracteriza

    por uma fugacidade que se manifesta na forma como vivemos o dia a dia, como

    encaramos o futuro, como tratamos os prprios objetos, mas inclusivamente nas

    relaes interpessoais, cada vez mais efmeras e superficiais. A prpria famlia vtima

    desta fragilidade, e os laos familiares mostram-se instveis e enfraquecidos,

    quebrando-se primeira dificuldade. A autora defende que o homem atual est a

    perder a sua capacidade de vincular-se, o que dificulta a integrao social e o sentido

    de pertena a uma comunidade (Pires, 2007: 77). De acordo com a mesma:

    O homem moderno tem algo de nmada espiritual e afetivo. Muda de

    ideologias, de princpios, de valores como muda de emprego, de amigos, ou

    de marido/mulher. Vagueia pelo mundo sem criar razes. Tornou-se incapaz

    de construir vnculos por onde se possa alimentar e que o prendam ao solo da realidade. (2007: 97)

    No assumindo um discurso to radical, Rosa (1998) defende que a identidade do

    indivduo se inscreve no espao/tempo de uma comunidade e de um mundo que lhe so

    igualmente constitutivos (Rosa, cit. por Pires, 2007: 99). Trata-se de se sentir inserido

    num espao, num grupo, e este sentimento de pertena, segundo o autor, baseia-se

    acima de tudo nos valores estabelecidos e partilhados pelos membros da comunidade,

    valores estes que so a base da identidade dessa mesma comunidade. Pode deduzir-se,

    assim, que ao perder a capacidade de se enraizar numa sociedade, numa comunidade,

  • 17

    numa cultura, o Homem perde simultaneamente os alicerces em que basearia a

    construo da sua prpria identidade.

    Face a esta to ntida crise de valores, que se manifesta em todas as reas da nossa

    sociedade e coloca em risco a felicidade das geraes atuais, mas mais ainda das

    futuras, seria de esperar uma interveno urgente por parte da escola na educao para

    (a recuperao d) os valores, no mbito do seu to fundamental papel de

    responsabilidade na educao das crianas e jovens. Amlia Marcho (2011) enquadra

    com clareza esta urgncia, descrevendo-a da seguinte forma:

    A necessidade do sistema educativo se adaptar s novas realidades

    nacionais, enquadradas tambm num quadro internacional de globalizao e

    motivadas pela diversidade cultural, pela complexidade tecnolgica, pelas

    incertezas e instabilidades sociais, econmicas e at cientficas e polticas indiscutvel e aceite unanimemente. Por tal facto, recai sobre os sistemas

    educativos e sobre as escolas e os professores, em particular, a rdua tarefa

    de regenerao da vida econmica e cultural, da ressuscitao de valores e sentidos morais (). (Marcho, 2011: 86)

    O sistema educativo deve, portanto, ser permevel mudana e adaptar-se s novas

    realidades sociais, culturais, econmicas, atendendo individualidade de cada criana e

    naturalmente ao contexto em que cada uma se insere. A interveno pedaggica dos

    educadores e dos professores deve portanto privilegiar e colocar no centro do processo

    educativo a criana, e implicar naturalmente as famlias, atravs de um dilogo

    frequente e construtivo que permita compreender a criana no seu todo. S atravs dessa

    interao permanente se podero delinear estratgias comuns que permitam educar a

    criana para os valores e para a cidadania, favorecendo assim a sua integrao plena

    numa sociedade em constante mudana e ajudando-a a construir e consolidar a sua

    personalidade.

    Ramiro Marques (2003) recupera, a este propsito, as palavras de Sousa acerca

    da importncia dos valores no equilbrio da personalidade (Sousa, cit. por Marques,

    2003: 15). Neste aspeto, parece consensual que a personalidade do ser em crescimento

    se vai formando e definindo gradualmente atravs das experincias do quotidiano, das

    ilaes que a criana espontaneamente delas vai retirando, mas tambm, naturalmente,

    atravs da partilha de opinies com as outras crianas e com os adultos que com ela

    interagem. Educar para os valores morais, sociais e democrticos , pois, uma tarefa

    rdua, no dizer de Amlia Marcho, mas o educador e as famlias no se podero

  • 18

    demitir dessa misso e dessa responsabilidade. Obviamente no se trata de impor

    modelos de conduta nem de formatar o pensamento da criana, mas sim de ajud-la a

    refletir por si, sobre si prpria e sobre a sua relao com os outros, partindo das suas

    vivncias ou criando, em contexto educativo, situaes que suscitem um dilogo

    significativo e enriquecedor para a criana e para o grupo. Educar para os valores ,

    pois, uma tarefa que se reveste de questes muito sensveis, ocupando uma em

    particular um papel de destaque: que valores abordar?

    Como j foi referido, uma das caractersticas mais proeminentes da sociedade

    contempornea a proximidade irreal entre pessoas que, coabitando num mesmo

    espao mundial cada vez mais prximo e aberto, se afastam, por outro lado, em funo

    de uma heterogeneidade de valores que a sua crescente incapacidade de comunicar faz

    parecer abismal. Ao mesmo tempo, os valores confundem-se e tornam-se difceis de

    distinguir, conduzindo a uma crescente dificuldade em orientar as condutas. Por outro

    lado, durante demasiado tempo a escola seguiu um modelo tradicional de educao que

    se limitava a impor ideologicamente os valores que se coadunavam com as polticas

    vigentes, numa cultura fechada e conservadora (Simes, 1986), que no tinha

    minimamente em conta as opinies e preferncias das crianas nem a sua identidade.

    Felizmente, os tempos mudaram tambm a esse nvel, pelo que a autora entendia, j

    na dcada de 80, que era fundamental que as escolas assumissem o objetivo de formar

    cidados sensveis e profundamente responsveis, que conhecessem os seus direitos e as

    suas responsabilidades, e que compreendessem que, para exigir dos outros, era

    necessrio exigir acima de tudo de si prprios. Mais de duas dcadas volvidas,

    indiscutvel que esta ideia se mantm atual, e na presente conjuntura cresce a

    necessidade de as nossas escolas a assumirem como um dos alicerces da educao.

    Mas como faz-lo? Helena Marchand (s.d.) defende que possvel identificar um

    pequeno nmero de valores que constitua uma base tica comum, sendo estes aqueles

    em que se alicera a Declarao Universal dos Direitos do Homem (Organizao das

    Naes Unidas, 1948), e que podemos resumir nos seguintes pontos:

    1. Fraternidade e solidariedade;

    2. Igualdade;

    3. Justia;

    4. Segurana;

  • 19

    5. Tolerncia e respeito pelo outro;

    6. Liberdade.

    A autora defende ainda que:

    Se para alguns, a defesa de princpios morais universais parece pr em

    questo o respeito pelas diferentes culturas, minorias ticas e religiosas,

    possvel, e legtimo, advogar-se, tal como alguns autores o fazem (), que tais princpios universais, pelo contrrio, esto na base do respeito e da

    tolerncia pela diferena cultural, tnica e religiosa. (s.d: 5)

    Podemos ento assumir que existe uma necessidade urgente de as nossas escolas (e

    tambm, obviamente, os nossos jardins de infncia) se envolverem de uma forma mais

    clara e mais ativa na educao para os valores, que pode basear-se na referida base

    tica comum mas que s poder resultar verdadeiramente na formao de cidados

    ativos e responsveis se acontecer num ambiente de liberdade, e recusando

    terminantemente a ideia de imposio, ou seja, atravs de uma abordagem que permita e

    fomente a criatividade, o esprito crtico, a comunicao e o debate, e acima de tudo o

    respeito, de forma que cada um descubra de uma forma livre e harmoniosa aquilo que

    valoriza. At porque, como afirma Bruno Bettelheim (1998: 12):

    A criana precisa de ideias sobre como pr a casa interior em ordem e, nessa base, conseguir dar sentido sua vida. Precisa [] de uma educao

    moral em que com subtileza apenas se lhe transmitam as vantagens de um

    comportamento moral, no atravs de conceitos ticos abstratos mas atravs do que parece palpavelmente acertado e portanto com sentido para a

    criana.

    Ser de reforar que, ao contrrio do que muitos podero pensar, a educao para os

    valores e para a cidadania deve iniciar-se o mais cedo possvel. Em casa, mesmo sem se

    aperceberem disso, as famlias contribuem muitas vezes desde cedo para o

    desenvolvimento de atitudes como a partilha (por exemplo dos brinquedos com o irmo

    ou com um amigo), o respeito (quando a criana revela qualquer atitude de desrespeito

    para com a me ou o pai), a entreajuda (ajudar o irmo a arrumar o quarto), a

    solidariedade (incentivando a criana a oferecer alguns dos seus brinquedos a uma

    instituio de solidariedade social) entre tantas outras que surgem naturalmente no dia a

    dia. Ora, o jardim de infncia, que fornece uma teia de contactos e relaes to

    diversificada, acaba por se constituir como um meio ainda mais propcio educao

    para os valores, uma vez que o quotidiano absolutamente recheado de oportunidades

  • 20

    passveis de serem exploradas numa perspetiva de abordagem e reflexo sobre os

    diferentes modos de agir perante ns prprios, perante os outros e perante a sociedade.

    2. Os valores nas Orientaes Oficiais para a Educao Pr-Escolar

    A importncia da educao para os valores claramente reconhecida pelas

    Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar (ME, 1997), que se enquadram

    e fundamentam na Lei-Quadro da Educao Pr-Escolar, de 10 de Fevereiro de 1997.

    Esta valorizao apresenta-se, desde logo, no princpio-geral estabelecido pela Lei-

    Quadro, que defende o favorecimento da formao e o desenvolvimento equilibrado da

    criana, tendo em vista a sua plena insero na sociedade como ser autnomo, livre e

    solidrio. (Lei 5/97 de 10 de Fevereiro). Ora, precisamente, a autonomia, a liberdade e

    a solidariedade so valores fundamentais para a formao da criana, que lhe permitiro

    uma integrao eficaz na sociedade, se entretanto os diversos contextos educativos em

    que se insere (a famlia, o jardim de infncia e mais tarde a Escola) contriburem para a

    formao da sua identidade, para a aceitao de si e para a valorizao do outro, com

    base no respeito e na tolerncia. Por outro lado, de destacar a igualdade de

    oportunidades que deve caracterizar a educao pr-escolar, constituindo-se como um

    meio que possibilite e fomente na criana e no grupo a aprendizagem da vida em

    sociedade, em que todos so iguais (sendo, no entanto, diferentes).

    Alis, Amlia Marcho (2012) refora precisamente essa ideia estipulada pela Lei-

    Quadro da Educao Pr-Escolar (Lei 5/97 de 10 de Fevereiro), ao sublinhar que ()

    a educao pr-escolar deve promover na criana: o desenvolvimento pessoal e social

    numa perspectiva de educao para a cidadania; o desenvolvimento global

    individualizado; a socializao e a aprendizagem de atitudes atravs da relao e da

    compreenso do mundo (Marcho, 2012: 36).

    Tambm os objetivos pedaggicos decorrentes desse princpio-geral enunciado pela

    Lei-Quadro destacam a importncia dos valores na educao pr-escolar,

    nomeadamente ao nvel dos valores democrticos, numa dupla perspetiva de incluso e

    de educao para a cidadania. Em estreita articulao com a Lei-Quadro da Educao

    Pr-Escolar, as OCEPE destacam igualmente a participao, a justia, a

    responsabilizao, a cooperao (ME, 1997: 54), que conduzem necessariamente a

    um maior sentido de responsabilidade, de respeito pelo outro e pelas diferenas

  • 21

    individuais, sobretudo se o educador promover um ambiente favorvel s interaes e

    ao dilogo com e entre as crianas.

    A noo de educao para todos norteia, pois, as Orientaes Curriculares para a

    Educao Pr-Escolar, assumindo-se o respeito pela diferena, a incluso e a resposta

    s necessidades individuais como pilares de uma escola inclusiva, em que as crianas

    diferentes so includas no grupo e beneficiam das mesmas oportunidades educativas,

    o que, s por si, se assume como uma possibilidade riqussima ao nvel da educao

    para os valores, uma vez que as crianas so incentivadas diariamente a lidar de uma

    forma positiva e valorativa com a diferena, desenvolvendo naturalmente sentimentos e

    atitudes de unio, de colaborao e de solidariedade (ME, 1997: 19). O conceito de

    escola inclusiva, apresentada neste documento como aquela que procura dar resposta a

    todas e a cada uma das crianas, atravs de uma pedagogia diferenciada, centrada na

    cooperao, que inclua todas as crianas, aceite as diferenas, apoie a aprendizagem,

    responda s necessidades individuais (ME, 1997: 19), pressupe igualmente uma

    educao para a diversidade aos nveis sexual, cultural, social e tnico, em que a

    igualdade de oportunidades seja sempre uma prioridade e at mesmo um princpio

    orientador, em que haja lugar para as diferentes maneiras de ser, de aprender, de saber e

    de fazer, sempre dentro do respeito e da valorizao do outro.

    As Orientaes Curriculares atribuem ao educador um papel fundamental neste

    processo, essencialmente no que diz respeito forma como se relaciona com as crianas

    e ao tipo de relacionamento que promove entre as mesmas. Cabe ao educador

    proporcionar condies para uma formao saudvel e coesa do grupo, em que as

    crianas usufruam de oportunidades diversificadas de conhecimento do outro, de

    ateno s suas caractersticas e necessidades e, principalmente, de respeito e

    valorizao das mesmas, num ambiente de dilogo, de confiana e de tolerncia. Uma

    participao ativa de cada criana dentro do grupo, em que todos sejam chamados a

    realizar tarefas, a fazer escolhas (identificando, assim, necessariamente critrios que as

    fundamentem), a tomar decises e a justific-las, tudo isto em nome do bem coletivo,

    constitui uma oportunidade valiosa de experienciar a vida democrtica, sendo da

    responsabilidade do educador organizar e fomentar com frequncia este tipo de

    experincias, tornando-as inclusivamente rotineiras no dia a dia da sala de atividades.

  • 22

    Estas vivncias democrticas desenvolvem no grupo valores fundamentais,

    como a participao, a cooperao, a justia ou a responsabilizao, determinantes na

    vida em sociedade. Ao mesmo tempo, e ao atribuir criana a responsabilidade de

    fazer escolhas, de formar e partilhar opinies, de desempenhar tarefas autnomas, no

    fundo ao depositar confiana nas suas capacidades, o educador no s contribui para a

    formao do esprito crtico, base da educao para a cidadania, como fomenta o

    desenvolvimento, por um lado, da autonomia, e por outro, da autoconfiana e da

    autoestima, at porque, de acordo com as Orientaes Curriculares para a Educao

    Pr-Escolar (1997), a educao pr-escolar deve promover a autoestima e

    autoconfiana de cada criana, incentivando-a a reconhecer as suas capacidades e

    progressos (ME, 1997: 18).

    Os valores assumem um papel ainda mais vincado na rea de Formao Pessoal e

    Social, que as Orientaes Curriculares consideram transversal, por se cruzar, no

    fundo, com todas as componentes curriculares previstas para a educao pr-escolar.

    Esta rea apresentada com os objetivos de favorecer a aquisio do esprito crtico e a

    interiorizao de valores espirituais, estticos, morais e cvicos. Deste modo, pretende--

    se promover [nas crianas] atitudes e valores que lhes permitam tornarem-se cidados

    conscientes e solidrios, capacitando-os para a resoluo dos problemas da vida (ME,

    1997: 51).

    A rea de Formao Pessoal e Social fundamenta-se, por um lado, na tradio

    socializadora da educao pr-escolar em Portugal, e por outro, na perspetiva de que o

    ser humano se constri em interao social, sendo influenciado e influenciando o meio

    que o rodeia (ME, 1997: 51). Assim, atravs da interao social que a criana

    encontra e constri referncias que lhe permitam orientar a sua ao e formar a sua

    identidade, muito particularmente ao compreender a distino entre o certo e o errado e

    ao interiorizar os direitos e deveres que norteiam a relao consigo mesma e com os

    outros.

    As Orientaes Curriculares para a Educao Pr-Escolar destacam, assim, o

    papel desta rea no desenvolvimento da identidade da criana, e que se prende, acima

    de tudo, com o reconhecimento e a valorizao das caractersticas individuais prprias e

    com a compreenso e respeito pelas caractersticas do outro, incluindo, naturalmente, as

    suas limitaes e potencialidades. Ao sentir-se integrada num grupo de pares, a criana

  • 23

    aprende a respeitar e valorizar o papel e os contributos individuais de cada um dentro

    desse grupo, o que contribui, dia a dia, para a construo do eu, apoiada sempre e muito

    fortemente na interao com o outro.

    Apesar de a famlia ser indiscutivelmente o contexto socializador de excelncia nos

    primeiros anos de vida da criana, a educao pr-escolar assume-se como um contexto

    mais alargado e diversificado, que lhe permitir interagir com outros adultos e crianas

    fora do seu contexto familiar, o que fomentar a tolerncia e a aceitao e valorizao

    da diferena. Desta forma, a criana vai usufruindo de oportunidades ricas e frequentes

    de tomar conscincia de si e do outro, o que garante educao pr-escolar, e muito

    particularmente ao educador, um papel da maior relevncia na educao para os valores.

    A Lei-Quadro da Educao Pr-Escolar destaca precisamente o papel da educao

    pr-escolar como complementar da ao educativa da famlia, com a qual deve

    estabelecer estreita relao (Lei 5/97 de 10 de Fevereiro). Partindo desta noo, as

    OCEPE referem a necessidade de assegurar uma articulao permanente entre jardim de

    infncia e famlias, em que o contexto familiar, social e cultural de origem seja

    verdadeiramente tido em conta, e possa constituir uma base, um ponto de partida,

    assumindo-se, deste modo, a educao pr-escolar como mediadora entre as culturas

    de origem das crianas e a cultura de que tero de se apropriar para terem uma

    aprendizagem com sucesso (ME, 1997: 22).

    Por ltimo, as OCEPE sublinham que a rea de Formao Pessoal e Social deve

    contribuir para a formao e desenvolvimento de valores estticos, muito relacionados

    com a organizao do ambiente educativo. Por isso, acentuam a importncia de que o

    ambiente educativo da sala e da instituio equipamentos, materiais, decorao

    corresponda a critrios estticos que favoream a educao do gosto (ME, 1997: 55).

    Para alm disso, a educao esttica surgir naturalmente ao permitir criana o

    contacto com diferentes formas de expresso artstica, que sero meios de educao da

    sensibilidade (ME, 1997: 55). As Orientaes Curriculares referem ainda que a

    educao esttica tambm se fomenta pelo contacto com o meio envolvente, com a

    natureza e com a cultura, na medida em que esse contacto permitir () s crianas

    apreciar a beleza em diferentes contextos e situaes (ME, 1997: 55).

    De entre as diferentes formas de expresso artstica com as quais as crianas devem

    contactar, o livro institui-se como um objeto fundamental no desenvolvimento da

  • 24

    sensibilidade esttica e na descoberta do prazer da leitura. Com efeito, uma das mais

    importantes funes do cdigo escrito, de acordo com as OCEPE, dar prazer e

    desenvolver a sensibilidade esttica, partilhar sentimentos e emoes, sonhos e

    fantasias (ME, 1997: 70), e neste mbito os livros possuem um papel insubstituvel.

    nos livros, escolhidos com base numa anlise seletiva e fundamentada em critrios de

    qualidade ao nvel da esttica literria e plstica, que o educador encontra igualmente

    oportunidades ricas e diversificadas de abordar os valores fundamentais formao e

    desenvolvimento da criana, para l das vivncias quotidianas da sala de atividades.

    Nessa medida, o livro pode revelar-se um precioso recurso pedaggico para o

    educador, como veremos mais adiante, por permitir, alm da educao esttico-literria

    e do desenvolvimento de comportamentos emergentes de literacia, abordagens

    transversais s vrias reas curriculares e aos mais diversos temas da vida quotidiana, de

    forma integradora e obviamente no numa perspetiva escolarizada. Atravs dos livros, e

    muito particularmente no caso dos livros inseridos no paradigma da literatura infantil, a

    criana descobre outros mundos possveis, desenvolve a sua capacidade imaginativa,

    retira ilaes e constri sentidos de acordo com as suas experincias de vida. Para alm

    disso, quando devidamente estimulada pelo educador, a criana adota uma atitude

    reflexiva sobre os textos que ouve ler, que fundamentar a construo de um quadro de

    valores que a ajudar a construir a sua identidade e a relacionar-se com os outros com

    base na tolerncia e na aceitao da diferena.

    As conversas mantidas em grupo a propsito dos livros (e a partir deles)

    contribuem para a formao do pensamento crtico e para a conscincia cvica das

    crianas, ao mesmo tempo que as auxiliam a desenvolver a sua expresso oral e

    naturalmente a sua competncia comunicativa. neste ambiente educativo rico em

    interaes verbais construtivas, em que as opinies das crianas so tidas em conta e

    valorizadas, que se proporcionam aprendizagens significativas e se promove o

    desenvolvimento cognitivo, lingustico, psicoemotivo e relacional do ser em

    crescimento.

    A este propsito, as Metas de Aprendizagem - Pr-Escolar (ME, 2009), que

    derivam e se fundamentam nas OCEPE (complementando-as) definem o conjunto de

    aprendizagens que desejvel terem sido realizadas pelas crianas no final dessa etapa

    educacional, ou seja, antes da entrada no 1. ciclo do ensino bsico, e que, portanto,

  • 25

    constituiro as bases dos novos conhecimentos a desenvolver da em diante. Com a

    enunciao destas metas, pretende-se contribuir para esclarecer e explicitar as

    condies favorveis para o sucesso escolar indicadas nas Orientaes Curriculares

    para a Educao Pr-Escolar, facultando um referencial comum que ser til aos

    educadores de infncia para planearem processos, estratgias e modos de progresso de

    forma a que todas as crianas possam ter realizado essas aprendizagens antes de

    entrarem para o 1. ciclo (ME, 2009: 3). Por outro lado, estas metas podero

    igualmente constituir uma orientao para os pais e outros adultos envolvidos na

    educao da criana, possibilitando-lhes conhecer melhor os objetivos e contedos da

    educao pr-escolar, e inclusivamente contribuir de forma esclarecida, informada e

    comprometida para as aprendizagens da decorrentes, nomeadamente em situaes

    informais do quotidiano, que, por surgirem com naturalidade, podero assumir-se at

    como mais significativas para a criana (por exemplo, ao discutir que atividade realizar

    no fim de semana, e tendo conscincia da importncia de fomentar as aprendizagens

    relacionadas com a vida democrtica, os pais podero incluir a criana na discusso,

    valorizando a sua opinio e incentivando-a a fundament-la).

    As metas de aprendizagem definidas para a rea de Formao Pessoal e Social

    apontam, pois, para um processo em construo, que est intimamente relacionado

    com o tipo e a qualidade de experincia de vida em grupo que so proporcionados no

    jardim de infncia (ME, 2009: 3), ficando assim clara a importncia do papel do

    educador como impulsionador, orientador e at modelo ou exemplo, pois a forma como

    as crianas se vo relacionar entre si ser um espelho da forma como este se relaciona

    com cada criana e com o grupo. Tambm a abordagem feita aos diversos contedos,

    no s nesta rea, mas tendo em conta a sua transversalidade e o seu potencial de

    articulao, com todas as outras, ser fundamental, at porque todas as ocasies so

    pertinentes para a formao da criana enquanto pessoa e enquanto ser social, num

    processo em construo, gradual mas que se pretende constante.

    As metas finais definidas para a rea de Formao Pessoal e Social dividem-se em

    cinco domnios:

    Identidade/Autoestima;

    Independncia/Autonomia;

    Cooperao;

  • 26

    Convivncia Democrtica/Cidadania;

    Solidariedade/Respeito pela Diferena.

    Analisando os diversos domnios, e mais particularmente as metas que os

    constituem, facilmente sobressaem noes que nos remetem para valores fundamentais,

    nomeadamente o sentimento positivo de identidade, baseado na autoestima e na

    valorizao das caractersticas individuais; o sentimento de pertena a diferentes grupos

    e de unio; a confiana; a responsabilidade, o empenho e a noo de compromisso; a

    procura e crescente conquista da autonomia; a capacidade de escolha e de deciso

    fundamentadas; o esprito crtico; a perseverana; a partilha e a solidariedade; o respeito

    e valorizao do outro; a cooperao; o dilogo; etc.

    Foi nas orientaes definidas por estes dois documentos, OCEPE e Metas de

    Aprendizagem Pr-Escolar, e muito especificamente no que concerne s reas de

    Formao Pessoal e Social e tambm de Expresso e Comunicao, que se baseou todo

    o projeto de abordagem aos valores aplicado durante a Prtica e Interveno

    Supervisionada. Como j havia sido referido, e como o comprovam as orientaes

    oficiais para a educao pr-escolar, o jardim de infncia constitui-se como um meio de

    excelncia para a educao para os valores e para a cidadania, cabendo ao educador a

    responsabilidade de gerir as oportunidades que vo espontaneamente brotando do solo

    to frtil que o quotidiano da sala de atividades, mas tambm de criar ele prprio,

    intencionalmente, um espao de reflexo e de partilha em que todos, educador includo,

    devem expressar as suas opinies e manifestar-se face s situaes observadas e

    vivenciadas no contexto educativo, ou fora dele, e tambm, naturalmente, a partir dos

    comportamentos adotados pelas personagens das histrias lidas ou contadas1.

    Para j, importa perceber de que modo o educador pode e deve promover

    genericamente os valores no contexto da sua prtica educativa, atendendo ao perfil

    especfico do desempenho profissional do educador de infncia, legalmente consagrado,

    e aos contributos tericos de alguns autores de referncia no domnio das pedagogias

    participativas.

    1 Voltaremos a esta questo no captulo dois deste relatrio.

  • 27

    3. A promoo de valores na Educao Pr-Escolar: o papel do Educador

    O Decreto-Lei n. 241/2001, de 30 de Agosto, aprova os perfis especficos de

    desempenho profissional do educador de infncia e do professor do 1. ciclo do ensino

    bsico.

    No que diz respeito ao perfil do educador de infncia, este documento destaca um

    conjunto de deveres e responsabilidades a ter em conta pelo mesmo no desempenho das

    suas funes profissionais, entre os quais possvel identificar alguns que se prendem

    com a educao para os valores, ainda que no lhe seja feita uma meno clara.

    No mbito da observao, planificao e avaliao, previsto que o educador

    planifique em funo das necessidades de cada criana, em particular, mas tambm do

    grupo, em geral, o que reflete claramente uma perspetiva de escola inclusiva. O

    educador dever observar atentamente cada criana nos variados contextos e situaes

    do dia a dia da sala de atividades, assegurando uma avaliao e planificao eficazes e

    centradas na diversidade do seu grupo. Por outro lado, e ainda neste ponto, destacada a

    importncia de ter em conta os conhecimentos que as crianas j possuem e que podero

    estar intimamente relacionados com o contexto social e cultural de onde provm, o que

    remete para a valorizao da diversidade tnica e sociocultural, mas tambm para o

    respeito pelas diferentes experincias de vida das crianas e atendendo ao seu nvel de

    maturao cognitivo e psicoemotivo.

    A este respeito destaca Gabriela Portugal (2009) a importncia de o educador ser

    centrado na criana, ou seja, o educador deve possuir a capacidade para reconhecer e

    compreender a diversidade (Portugal, 2009: 12), quer cultural, quer do nvel de

    desenvolvimento em que cada criana se encontra, quer inclusivamente da experincia

    de vida que a marca e influencia, tanto positiva como negativamente. Trata-se de

    possuir tambm a capacidade para aceder perspetiva da criana (Portugal, 2009: 12),

    tendo sempre em ateno que a sua forma de ver, de percecionar e de viver o mundo e a

    realidade no a mesma do adulto, e que ir ao encontro do mundo da criana exige uma

    sensibilidade especial. O educador deve ainda possuir capacidade para articular e

    integrar num espao de vida coletivo () a diversidade de interesses e necessidades

    (Portugal, 2009: 12), o que exige uma ateno e entrega permanentes na busca do

    equilbrio entre os interesses da criana e aquilo que o adulto, de acordo com o currculo

    e com a sua experincia e sensibilidade, considera essencial. Ainda na perspetiva de

  • 28

    Gabriela Portugal, o educador deve possuir a () capacidade para (re)construir

    continuadamente o seu conhecimento sobre as crianas e sobre como aprendem

    (Portugal, 2009: 12), atravs de uma preocupao constante em adequar e melhorar o

    seu desempenho, que deve ser claramente apoiado na teoria, o que pressupe um

    processo de aprendizagem incessante (Portugal, 2009: 12). Esta atitude educativa

    permitir um envolvimento afetivo e de confiana com o grupo em geral, e com cada

    criana em particular, sendo que, como defende a autora, Um educador aceder ao

    significado e motivaes da criana, quando for capaz de estabelecer contacto com a

    criana, ganhar a sua confiana, fazendo com que esta queira partilhar os seus

    sentimentos, experincias e opinies. (Portugal, 2009: 13).

    Ora, justamente no mbito da relao e da ao educativa, e de acordo com o Perfil

    Especfico de Desempenho Profissional do Educador de Infncia, caber ao educador

    nortear a sua relao com as crianas por um permanente incentivo ao desenvolvimento

    da autonomia, que necessariamente se relacionar com valores como a confiana, a

    responsabilidade e a autoestima, muito importantes na formao da identidade. No que

    diz respeito ao incentivo da autonomia, o educador dever, desde logo, atribuir uma

    ateno especial no que toca disposio e organizao dos materiais na sala de aula,

    garantindo que as crianas conseguem autonomamente aceder aos materiais e realizar

    atividades por iniciativa prpria. Por outro lado, dar s crianas a oportunidade de

    proporem e desenvolverem projetos da sua autoria (embora o educador esteja sempre

    disponvel para ajudar), que podero ter sido inspirados por um programa visto na TV,

    por um livro ou revista, por um irmo, ou simplesmente por uma atividade ou

    personagem admirada, assim como implic-las diretamente e de forma responsvel nas

    rotinas dirias (uma criana desempenha por um dia um conjunto de responsabilidades,

    como regar as plantas, fazer a chamada dos colegas, etc.), so formas de atribuir

    responsabilidades s crianas, tornando-as progressivamente mais autnomas.

    Tambm o fomento da cooperao solidria entre as crianas e a integrao plena

    de todas no grupo pressupem a interiorizao de valores como a colaborao, o

    respeito e valorizao do outro, a igualdade e a solidariedade, que se constituem como a

    base da socializao e da vivncia democrtica. Tais valores devero ser abordados

    numa perspetiva de educao para a cidadania, essencial para a formao da criana

    como membro integrante de uma sociedade, desejavelmente ativo e responsvel. Os

    valores democrticos podem surgir naturalmente, atravs de hbitos e regras como

  • 29

    esperar pela sua vez de falar, saber escutar, expor e justificar as suas opinies, respeitar

    as opinies diferentes, entre outras, ou atravs de estratgias propostas pelo educador na

    sua prtica pedaggica, como, por exemplo, a realizao de reunies para tomar

    decises em grupo. Deste modo, segundo Portugal (2009: 14):

    () uma prtica pedaggica adequada () inclui um acompanhamento por

    parte de um educador responsivo, que apoia, informa, modela, explica, questiona, canaliza o interesse da criana para objetivos socialmente

    desejveis, mas que no domina o pensamento da criana nem interfere na

    sua liberdade de escolha, promovendo a sua autonomia, criatividade e empreendedorismo.

    Um educador responsivo um educador atento e empenhado. O empenhamento (ou

    ausncia do mesmo) do educador pode condicionar ou fomentar o desenvolvimento da

    criana, pois, como assinala Carl Rogers (cit. por Bertram & Pascal, 2009: 136), [as

    crianas] aprendem mais e comportam-se melhor em presena de nveis elevados de

    compreenso, de interesse e de autenticidade do que quando estes se manifestam em

    baixos nveis. Rogers identificou inclusivamente algumas das qualidades que devem

    transparecer na atitude do educador e que facilitam a aprendizagem, nomeadamente a

    sinceridade e autenticidade na relao com a criana; a aceitao e valorizao da

    identidade do ser em crescimento e das suas opinies; e a compreenso emptica, que

    pressupe a capacidade do educador para se colocar no lugar da criana, procurando

    olhar as situaes do seu ponto de vista (cit. por Bertram & Pascal, 2009: 136).

    Indiretamente, ao caracterizar a sua conduta por este conjunto de qualidades, o

    educador est a transmiti-las igualmente s crianas, pois como sabido, na relao

    com o outro que aprendemos muitas vezes a gerir as nossas prprias atitudes e a formar

    os nossos prprios valores. Um educador sincero, autntico, que aceita e valoriza o

    outro, que confia nele e o compreende, vai influenciar muito positivamente o

    desenvolvimento das crianas, ao mostrar-lhes a importncia de serem elas prprias

    autnticas e nicas; ao demonstrar-lhes que a vida em grupo ou em sociedade

    enriquecida pela diversidade que proporciona, e que por isso h que valorizar aquele

    que diferente de ns; ao incentiv-las, com a sua confiana, a avanarem, a fazerem

    conquistas, a crescerem, a serem autnomas; e a mostrar-lhes que ser compreendido

    exige que se compreenda tambm, para se poder viver socialmente num clima saudvel,

    de partilha e harmonia.

  • 30

    Outro ponto fundamental a afetividade. Numa sociedade em que as relaes

    enfraquecem e se tornam cada vez mais virtuais, por um lado, e menos seguras e

    estveis, por outro, os afetos so frequentes vezes negligenciados. Ora, os afetos so

    uma das bases da vida. Com efeito, como sabemos, os vnculos afetivos, o amor, a

    amizade, as relaes familiares harmoniosas e tranquilas, so fatores determinantes da

    felicidade individual e do bem-estar comum. A criana necessita de se sentir amada e de

    ser incentivada a mostrar o seu amor. S assim encontrar um ambiente seguro para

    crescer e desenvolver-se em plenitude e alegria, sem medo de arriscar, de ir mais alm,

    pois compreende que qualquer eventual erro seu no coloca em risco o amor e o apoio

    daqueles que a rodeiam. O educador deve, portanto, possuir a sensibilidade necessria

    para perceber e acudir s necessidades afetivas das suas crianas, mostrando-lhes a sua

    disponibilidade absoluta para responder s suas inquietaes e inseguranas, e

    garantindo-lhes um espao de paz, de respeito, de carinho, de segurana, de confiana,

    onde as emoes podem e devem ser vividas, e onde as crianas se podero sentir

    vontade para expressarem livremente as suas opinies, as suas formas de pensar, sem

    receio de serem criticadas. Desta forma se potencia o desenvolvimento do pensamento

    crtico e divergente, tal como afirma Amlia Marcho (2011: 133):

    No mundo atual, em que a globalizao o cenrio enquadrador dos

    movimentos culturais, histricos e polticos, potencia-se a necessidade da pessoa usar o pensamento independente, por oposio ao pensamento linear,

    dado que o primeiro permite a reflexo e o sentido crtico diante das

    diferentes fontes de informao e, mais facilmente, permite reconhecer a

    validade e a preciso dos dados com que a pessoa se confronta. ainda neste contexto que emerge e se elcita a utilizao do pensamento divergente.

    Cabe ento ao educador criar oportunidades para mobilizar o pensamento crtico

    das crianas, por um lado no que diz respeito s competncias a desenvolver ao nvel

    das aprendizagens formais, mas por outro, e que aquele que mais nos interessa neste

    ponto, numa perspetiva de fomentar o esprito crtico, interessado e curioso da criana,

    que no se satisfaz com respostas vazias, que quer descobrir sempre mais e perceber o

    funcionamento do mundo que a rodeia. O educador deve, pois, incentivar as suas

    crianas a pensar sempre mais alm, a questionar, a procurar, e muito particularmente a

    refletir. Pensar criticamente, como afirma Marcho, relaciona-se muito diretamente com

    o conceito de pensamento divergente, por oposio ao pensamento convergente, que

    caracterizou durante muitos anos a educao em Portugal, orientando os alunos para o

    seguimento cego de ideias e formas de agir definidas superiormente como as corretas,

  • 31

    sem oferecer ou sequer possibilitar qualquer espcie de fuga s mesmas. Atualmente, e

    muito particularmente tendo em conta a heterogeneidade que caracteriza o mundo

    contemporneo, essencial educar as nossas crianas para pensarem por si, para no

    seguirem pensamentos formatados, para fugirem ao esteretipo, para formarem a sua

    identidade essencialmente na valorizao da diferena, na criatividade, na confiana, na

    autonomia, na busca da verdade e da justia. S aqueles que possurem a capacidade de

    pensar por si conseguiro formar construtivamente a sua identidade, pois orientaro os

    seus modos de agir com base numa reflexo aprofundada e constante sobre aquilo que

    consideram correto e que valorizam efetivamente.

    No seguimento desta ideia, no podemos deixar de referir novamente a importncia

    da educao esttica. Indo, no fundo, ao encontro do que o esprito crtico, a educao

    esttica fomenta, justamente, a sensibilidade ao que belo, ao que novo, diferente e

    criativo, por oposio ao que banal e vazio, ao que no nos desafia, ao que no nos

    fora a ultrapassar constantemente os nossos limites. O educador deve, ento, ser ele

    prprio sensvel esteticamente, e transmiti-lo s suas crianas atravs da seleo de

    materiais esteticamente atrativos, interessantes e que motivem as crianas a ver muito

    alm das primeiras impresses, mas tambm ao propor atividades que fomentem a

    observao atenta, a formao e partilha de opinies fundamentadas, com vista

    discusso rica e produtiva. As crianas interessam-se naturalmente pelo que novo, e

    saber aproveitar esse interesse canalizando-o para materiais e experincias de qualidade

    superior uma competncia que exige uma criatividade e sensibilidade muito

    particulares, que o educador, mais do que ningum, deve possuir.

    A literatura infantil, e em particular os lbuns para a primeira infncia, podem

    revelar-se um recurso pedaggico precioso para o educador empenhado em contribuir

    para a formao do gosto e da sensibilidade artstica das crianas que tem sua

    responsabilidade e uma excelente oportunidade de abordar no s os valores estticos,

    mas tambm os morais, sociais e democrticos. o que tenciono demonstrar em

    seguida.

  • 32

    CAPTULO II A LITERATURA INFANTIL COMO OPORTUNIDADE DE

    ABORDAGEM AOS VALORES

    1. Especificidade da Literatura Infantil e seu contributo para o desenvolvimento da criana

    A literatura infantil tem vindo, nas ltimas dcadas, a assumir-se como um

    subsistema literrio perfeitamente autnomo e legitimado pela teoria e pela crtica

    literrias, sendo hoje consensual que se trata de um objeto de estudo de enorme

    potencial, sujeito a abordagens crticas e a estudos cientficos e acadmicos que tm

    permitido o reconhecimento da sua especificidade e da sua qualidade esttico-literria.

    Os prprios educadores, professores, psiclogos e outros agentes educativos tm

    vindo a reconhecer a relevncia da literatura especialmente dirigida aos mais novos para

    o desenvolvimento global infantil, nomeadamente pela capacidade de assim se permitir

    alargar a imaginao da criana (pr)leitora, de desenvolver o seu pensamento

    divergente e a sua sensibilidade artstica e, naturalmente, a sua competncia leitora, ou

    seja, a sua capacidade de extrair sentidos plurais dos textos que l ou ouve ler e alargar

    o seu modo de ver o mundo e de nele se integrar, reconhecendo-se assim criana o seu

    papel dinmico, ativo e interpretativo no que respeita ao ato de ler (ou ouvir ler) desde

    tenra idade.

    Longe vai, portanto, o tempo em que a criana era vista como uma mera miniatura

    do adulto, sem que as suas caractersticas particulares, em termos de desenvolvimento

    psicoemotivo e cognitivo, fossem minimamente reconhecidas ou consideradas.

    Atualmente reconhecida criana a sua singularidade, primeiramente expressa na

    Declarao Universal dos Direitos do Homem (Organizao das Naes Unidas, 1948),

    que lhe atribui os mesmos direitos e liberdades do adulto, reconhecendo-lhe, no entanto,

    o direito extraordinrio de receber proteo e assistncia especiais que lhe garantam,

    nomeadamente atravs do direito educao, um desenvolvimento harmonioso.

    Posteriormente, em 1959, este reconhecimento foi aprofundado pela Declarao dos

    Direitos da Criana, que visa, em primeiro lugar, o direito a uma infncia feliz e ao

    gozo, para bem da criana e da sociedade (Organizao das Naes Unidas, 1959). Na

    verdade, como se pode no princpio 2. da Declarao dos Direitos da Criana:

  • 33

    A criana gozar de uma proteo especial e beneficiar de oportunidades e

    servios dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se

    fsica, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudvel e normal, assim como em condies de liberdade e dignidade. (ONU, 1959)

    Sendo a criana um ser em crescimento, natural, portanto, que possua algumas

    limitaes culturais, vivenciais e outras decorrentes da fase de desenvolvimento em

    que se encontra, mas tais limitaes so hoje em dia entendidas como naturais e como

    fazendo parte do processo de desenvolvimento infantil, reconhecendo-se criana os

    seus direitos e a sua singularidade. Aceite esta especificidade condicionante da criana

    (que resulta do estdio de desenvolvimento psicoemotivo e intelectual em que esta se

    encontra a priori, como nos demonstrou a Psicologia do Desenvolvimento,

    nomeadamente atravs dos estudos de Piaget, Vigotsky e seus seguidores), seria, pois,

    natural, que a literatura infantil se impusesse gradativamente como um territrio

    artstico que valorizasse o Ser criana e que atendesse s diferentes fases do seu

    desenvolvimento intelectivo, da sua maturidade socioafetiva e, naturalmente, dos seus

    diferentes nveis de desempenho da leitura. E, na realidade, a produo literria para os

    mais novos acompanhou a tendncia de valorizao da criana e inundou nos ltimos

    anos o mercado editorial de obras de grande qualidade que se direcionam para os pr-

    leitores, para os leitores iniciais, para os leitores medianos e para os leitores

    autnomos2.

    Aqui chegados, importa ento clarificar o que os especialistas nesta rea entendem

    por literatura infantil e perceber qual a sua especificidade.

    Na sua Teoria de la Literatura Infantil, uma obra incontornvel no quadro da teoria

    literria neste domnio especfico, Juan Cervera (1992) apresentou uma definio que,

    volvidos mais de vinte anos, continua a ser uma das mais concisas do fenmeno literrio

    denominado literatura infantil. De acordo, pois, com o autor, a literatura infantil

    toda a produo que tem como veculo a palavra com um toque artstico ou criativo e

    como destinatrio extratextual as crianas (Cervera, 1992: 11), semelhana do que j

    haviam assumido autores como Vtor Aguiar e Silva, em 1981, quando postulou que a

    literatura infantil a literatura que tem como destinatrio extratextual as crianas

    2 Esta classificao tem na sua base uma proposta elaborada pela equipa de investigadores e de crticos literrios que integraram o projeto casadaleitura.org, e que subdivide os leitores tendo em conta o seu grau de proficincia na leitura, proposta que vem substituir a classificao dos leitores (e dos livros supostamente que lhe seriam destinados) por faixas etrias, pois, como sabemos, duas crianas com a mesma idade tm diferentes nveis de desenvolvimento

    da leitura, diferentes interesses e vivncias que no podero ser descurados no momento da seleo dos livros.

  • 34

    (Silva, 1981: 11) ou Marisa Bortolussi, para quem a literatura para crianas a obra

    artstica destinada a um pblico infantil (Bortolussi, 1985: 2).

    Nestas definies de literatura infantil (ou literatura para crianas) sobressaem dois

    critrios fundamentais: a dimenso artstica do texto e o pblico-alvo infantil.

    Naturalmente que os interesses de leitura por parte das crianas devero ser tidos em

    conta ( o prprio Cervera quem o defende (Cervera, 1984: 15)), mas no so os

    interesses ou os gostos da criana que atribuem aos textos a sua literariedade. O

    educador/professor deve estar por isso consciente que muitos dos livros apreciados pela

    criana no possuem qualidade esttico-literria, apesar de tal no implicar, obviamente,

    que se desvalorize as preferncias da criana. Pelo contrrio, at porque ela encontra

    nos livros uma resposta s suas necessidades ntimas e afetivas (Cervera, 1992: 14), essa

    relao afetiva com o livro no pode ser menosprezada; mas imprescindvel dar

    criana alternativas de qualidade para que desenvolva a sua sensibilidade esttica e v

    apurando o gosto.

    Mesquita (1999), embora no se afaste desta noo, e destaque igualmente o papel

    da literatura infantil na resposta s necessidades da criana, considera que a sua

    finalidade primria promover na criana o gosto pela beleza da palavra, o deleite pela

    criao de mundos de fico (Mesquita, 1999: 3), e assim alargar o capital lexical da

    criana, promover a sua educao literria e estimular a sua entrada no mundo da

    imaginao. Na verdade, o autor defende que a literatura infantil, como toda a obra de

    arte, exerce influncia sobre o indivduo, neste caso a criana, contribuindo para a

    formao do pensamento e apresentando-lhe representaes do real a partir de modelos

    alternativos que contribuem para a sua construo pessoal e do mundo:

    A literatura procura pr perante os olhos da criana alguns fragmentos de vida, do mundo, da sociedade, do ambiente imediato ou longnquo, da

    realidade exequvel ou inalcanvel, mediante um sistema de representaes,

    quase sempre com uma chamada fantasia. (Mesquita, 1999: 3).

    Na sua reivindicao pela autenticidade artstica da literatura infantil, Mesquita

    considerava, j em 1999, que seria fundamental, em primeiro lugar, revalorizar o

    discurso literrio, abandonando de uma vez por todas os infantilismos e adotando um

    discurso que permitisse identificar a literatura infantil como verdadeira literatura, sem

    restries. Por outro lado, o autor destacava a necessidade de oferecer criana o

  • 35

    contacto com obras abertas, assim designadas por Umberto Eco, que pela sua estrutura

    possibilitadora de leituras mltiplas, asseguram ao leitor maior liberdade, na medida em

    que lhe permitem intervir, diretamente, na reconstruo da sntese lingustica proposta

    pelo sujeito-emissor (Mesquita, 1999: 5).

    Tambm Juan Cervera destacava, em 1992, este aspeto, analisando-o do ponto de

    vista da linguagem, e distinguindo, assim, a linguagem artstica da linguagem utilitria.

    De acordo com o autor, enquanto a linguagem utilitria se caracteriza pela clareza,

    procurando evitar ao mximo equvocos de forma a garantir uma compreenso

    unilateral por parte de todos os recetores, a linguagem artstica aquela que, pela sua

    ambivalncia e plurissignificao, favorece a diversidade de interpretaes, o que

    possibilita a incluso do recetor no processo de (re)criao.

    Esta uma nova forma de ver o texto, que torna a criana (pr)leitora numa

    instncia constitutiva do texto artstico (Mesquita, 1999: 6), reconhecendo-a como,

    mais do que destinatria passiva, uma recetora ativa, que no s recebe como interage e

    atua sobre a obra, produzindo novos significados com base na sua criatividade e na sua

    imaginao, preenchendo os vazios discursivos propositadamente deixados em aberto,

    como defendeu Umberto Eco (1962). Essa perspetiva de Mesquita (e de tantos outros

    seguidores da teoria de cooperao textual preconizada por Eco) visvel no seguinte

    excerto: No texto literrio, se que literrio, sempre existe uma parte no escrita,

    isto , espaos por resolver que estimulam a ao do leitor. (Mesquita, 1999: 7).

    Deste modo, para que a criana possa efetivamente participar e apropriar-se do

    texto, fundamental, em primeiro lugar, a sua cumplicidade para com a leitura. O texto

    literrio para crianas faz parte, portanto, de um circuito comunicativo que se inicia no

    emissor (o escritor) e que chega ao recetor infantil pela escrita literria, cabendo

    criana a tarefa de lhe dar continuidade e de se apropriar do que leu (ou do que ouviu

    ler). Se certo que a capacidade intelectiva da criana e a sua viso do mundo ainda

    diferem das do adulto, por motivos bvios, no se pode, contudo, pensar que a

    linguagem que lhe dirigida deva ser simplista ou infantilizante, at porque, como

    defende Fraga de Azevedo, o discurso para crianas deve centrar-se na riqueza da

    densidade semntica da linguagem literria (Azevedo, 2004: 6), pois s o contacto com

    textos literrios de qualidade permitir o desenvolvimento da competncia literria dos

  • 36

    mais novos. Mas naturalmente importante que seja uma linguagem percetvel e

    apelativa para a criana, garantindo o seu envolvimento e cooperao.

    Assim se compreende que o contacto precoce e sistemtico da criana com o livro

    de qualidade uma mais-valia no seu processo formativo a vrios nveis. Para alm de

    surpreender e de provocar deslumbramento, de alargar o capital lexical e estimular a sua

    compreenso leitora, a literatura infantil permite criana, pela mediao da

    ficcionalidade e da construo de mundos possveis, alternativos ao real, a compreenso

    da realidade que a rodeia e um posicionamento crtico e judicativo face a essa mesma

    realidade e face aos seus prprios modos de agir e de pensar. Atravs do livro, a criana

    vai realizando avanos e conquistas no processo de (auto) conhecimento, de conexo e

    de insero no mundo e na sociedade, mas tambm no seu universo emocional e

    cognitivo (Veloso, 2005: 5). Alis, defende o autor:

    () [a criana] um ser para quem a fico corresponde natural

    necessidade de compreender o mundo. O que as histrias contam criana

    permite um estilhaar de paredes de vidro que a limitam, levando-a a

    penetrar num mundo que quer conquistar, mas tambm lanam luz em zonas obscuras do seu ntimo, clarificando dvidas, desfazendo medos,

    construindo, enfim, uma identidade. (Veloso, 2005: 3)

    Na realidade, pela sua (j referida) inexperincia de vida, a criana tem muitas

    vezes dificuldade em identificar e compreender os seus sentimentos, emoes e

    necessidades mais ntimos. Por isso, procura no livro momentos ldicos associados

    descoberta do seu mundo interior e do mundo envolvente; ela quer crescer, mas pede-

    nos segurana e afeto. (Veloso, 2005: 10). A literatura infantil tem a capacidade de ir

    ao encontro desse mundo interior e de colocar sobre ele uma luz que permita criana a

    tranquilidade e segurana de que necessita para um desenvolvimento harmonioso,

    nomeadamente ao nvel da formao da sua identidade, mas tambm no que diz respeito

    sua relao com a alteridade e com o mundo que a rodeia.

    Deste modo, as histrias, lidas ou contadas, permitem criana a entrada no

    mundo ficcional mas tambm uma compreenso do mundo circundante, na medida em

    que confrontada com situaes vividas pelas personagens, assim como com os seus

    diversos modos de atuao e com a forma como estes se refletem tanto nas prprias

    personagens, como naqueles que as rodeiam. Ao projetar-se nessas personagens, que

    vivem por vezes dramas pessoais ou enfrentam situaes de dvida ou conflito, a

    criana aprende por si, ou atravs da mediao do adulto, que a vida nem sempre

  • 37

    linear e que os problemas com que se deparam as personagens (e porventura ela prpria)

    podero ser resolvidos, o que apazigua medos e inseguranas prprios do estdio de

    desenvolvimento em que as crianas em idade pr-escolar se encontram.

    Assim, as histrias tm um papel decisivo na construo da identidade e na relao

    com a alteridade, indo ao encontro dos receios e angstias das crianas. Se certo que

    as histrias tradicionais maravilhosas vincavam sobremaneira a polarizao das

    personagens (boas ou ms, inocentes ou malficas), facilitando o desejo de identificao

    das crianas com as personagens cuja conduta era a considerada mais correta

    (Bettelheim, 1998), a literatura infantil contempornea (e em particular os lbuns)

    mais subtil na abordagem aos valores. A criana ter de retirar ilaes a partir de

    histrias que, partida, no pretendem moralizar, mas sim ajudar o pblico infantil a

    desenvolver o seu esprito crtico e reflexivo, e, naturalmente, o seu pensamento

    divergente, pelas mltiplas possibilidades interpretativas que texto e imagem oferecem

    ao (pr)leitor. o caso dos lbuns narrativos que fazem parte do projeto de

    investigao-ao que implementei em contexto de Prtica e Interveno

    Supervisionada, de que falarei mais adiante livros de grande beleza plstica e literria

    mas que veiculam subtilmente valores, implicando a criana no ato da leitura na medida

    em que, intuitivamente ou pela mediao do adulto, poder interpretar (e pronunciar-se

    sobre) as mensagens veiculadas pelos livros e os valores que lhes esto implcitos3.

    Naturalmente que, para alm da leitura, tambm a atividade de contar histrias

    decisiva para o desenvolvimento global e harmonioso da criana. Ler e contar histrias

    so, portanto, duas atividades que devem ser constantemente includas no plano de

    atividades semanal de qualquer educador de infncia, concedendo-se particular destaque

    Hora do Conto4 (uma rotina existente na sala onde foi realizada a PIS, mas que, por

    explorar mais a leitura do que o conto, era designada como Hora da Leitura ou Hora

    do Livro). Alis, Rui Marques Veloso refere-se influncia que o ato de ler e contar

    histrias exerce sobre a criana, funcionando (tambm) como um banho lingustico

    (Veloso, 2005: 5), tal como defendia Aguiar e Silva, em 1981, quando, referindo-se ao

    3 Mas para alm deste contributo na compreenso do mundo e de si prprias, tambm de realar o papel do livro e das histrias no desenvolvimento da linguagem, nomeadamente por permitirem alargar o capital lexical da criana e a construo de frases progressivamente mais complexas, tal como preconizado quer pelas OCEPE quer pelas Metas de Aprendizagem. 4 Ftima Albuquerque reflete na sua Hora do Conto (2000) sobre a arte de contar histrias na escola e no jardim de infncia, destacando a magia e o encanto com que as crianas so envolvidas nesses momentos, mas que igualmente contribuem para o fomento e desenvolvimento do dilogo permanente entre crianas e com o adulto, e ainda para o

    desenvolvimento articulado de variadssimas atividades pedaggicas.

  • 38

    livro infantil, o perspetivava como um complexo e subtil laboratrio lingustico, na

    medida em que ajuda a criana a conhecer a lngua materna, os seus mecanismos

    sintticos, semnticos e pragmticos, e isso significa poder modelizar de forma mais

    consciente e livre o mundo (Aguiar e Silva, 1981: 14).

    Desta forma, o livro pode e deve acompanhar a criana desde tenra idade,

    devendo estar ao lado do bibero, como afirma Rui Marques Veloso (2001: 3), por

    um lado atravs da leitura realizada pelos pais e educadores (mediadores), que devem

    promover um envolvimento significativo da criana com o universo lingustico, esttico

    e literrio temperado por cargas afetivas permanentes (Veloso, 2001. 3); e, por outro,

    ao colocarem ao inteiro dispor da criana o objeto-livro, fomentando a sua manipulao

    e espontnea explorao por parte da criana.

    No fundo, h que deixar que o livro fornea criana momentos de prazer, seja

    atravs do simples toque e manipulao, do seu folhear, seja atravs da observao mais

    ou menos atenta das ilustraes, o que lhe permitir fazer previses sobre a histria e

    construir a sua prpria narrativa (em grande medida atravs da narrativa visual),

    procedendo assim a criana a uma leitura do livro mesmo antes de saber ler. Nessa

    medida, o dilogo intersemitico entre texto e imagem, devido complementaridade

    entre as duas linguagens artsticas, facilita esse processo de deslumbramento e de

    adeso ao livro, por parte da criana, ao mesmo tempo que promove a educao

    esttico-literria e a compreenso da leitura, como procurarei demonstrar no subcaptulo

    seguinte.

    1.1. Relao texto-imagem no livro para crianas: a educao esttico-literria

    A relao texto imagem nos livros para crianas tem sido nos ltimos anos alvo

    de interesse e estudo por parte de numerosos autores5 que parecem reconhecer

    ilustrao e forma como se relaciona com o texto verbal uma complexidade e

    originalidade dignas de uma investigao mais aprofundada. Em simultneo, vimos

    assistindo ao surgimento crescente no panorama editorial de obras que, justamente, se

    apresentam na forma de uma simbiose entre o discurso literrio e o discurso pictrico,

    em que se estabelece um dialogismo entre uma escrita necessariamente literria e

    narrativa e um conjunto de formas visuais artsticas, duas componentes que, em

    5 Destacam-se, entre outros, os nomes de Perry Nodelman (1988), Lawrence Sipe (1998), Maria Nikolajeva & Carole

    Scott (2001) e Peter Hunt (2005).

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    consonncia, produzem significao, promovendo um processo de comunicao

    particular (Silva, 2006: 2): os lbuns.

    De uma forma muito genrica, poderia justificar-se a importncia das ilustraes

    numa qualquer obra de literatura infantil com o simples facto de, como afirma Sara Reis

    da Silva, se assumirem como Fator promotor de (des)gosto em face do objeto-livro

    (Silva, 2006: 1). De facto, inegvel o impacto das ilustraes no leitor infantil, e tanto

    assim que, no raras vezes, assistimos a momentos de leitura dos mais pequenos que,

    com a maior ateno e interesse, mas sem conhecerem o cdigo escrito, folheiam um

    livro lendo o que transmitem as imagens que povoam as suas pginas, e conseguindo

    facilmente resumir o livro, dizer quais as suas personagens, quais as peripcias pelas

    quais vo passando, quais as emoes que vo experienciando, etc. Esta motivao inata

    da criana confirmada por Teresa Mergulho, que destaca que a criana procede, de

    forma natural, espontnea e intuitiva, mesmo sem a interveno de um adulto mediador,

    explorao das imagens de um livro que lhe especialmente destinado (ou no).

    (Mergulho, 2008b: 50).

    Mas, quando aliadas ao discurso verbal, o papel das ilustraes assume uma

    importncia maior, revelando-se estas determinantes ao nvel da perceo, na

    descodificao e na concretizao dos sentidos explcitos e implcitos do discurso

    verbal (Silva, 2006: 1). Na verdade, a noo de lbum pressupe efetivamente uma

    relao de complementaridade entre os dois discursos, verbal e pictrico, em que se

    estabelece um dilogo intersemitico entre dois modos de representao e de

    significao da realidade (Mergulho, 2008a: 1). A singularidade do lbum6 reside,

    alis, nesta relao de interdependncia, que resulta no facto de s ser possvel

    compreender verdadeiramente a histria atravs da leitura dos dois discursos que a

    contam, e que Perry Nodelman clarifica da seguinte forma: Uma vez que as palavras e

    as imagens se definem e amplificam mutuamente, nenhuma to limitada ou ind