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ICMSRoque Antonio Carrazza

18ª ediçãorevista e ampliada

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Capítulo IIIA BASE DE CÁLCULO “POR DENTRO” DO ICMS.

SUA INCONSTITUCIONALIDADE

1. Generalidades e definição. 2. Funções da base de cálculo. 3. Consequência importante. 4. A lei complementar e a base de cálculo dos tributos. 5. A base de cálculo do ICMS na Lei Complementar 87/1996. A inconstitucionalidade de seu art. 13, § 1o, I: 5.1 Colocações prelimi-nares – 5.2 Desenvolvimento da ideia – 5.3 Majoração indevida das alíquotas do ICMS – 5.4 Esclarecimentos. 6. O modo de apurar a base de cálculo do ICMS, tal como preconizado na legislação ordinária. Sua insubsistência: 6.1 Considerações gerais – 6.2 Das inconstituciona-lidades da legislação estadual no que respeita à base de cálculo do ICMS. 7. Outros desdobra-mentos. 8. Síntese conclusiva.

1. Generalidades e definição

Para criar um tributo a pessoa política vale-se, sempre, do seguinte mecanismo jurídico: descreve, por meio de lei, um fato (a hipótese de incidência ou fato gerador in abstracto) a cuja realização vincula o nascimento da obrigação de pagar determina-da importância em dinheiro (obrigação tributária).

Isto só, porém, não basta. Deve, ainda, descrever os critérios que permitirão fixar, com exatidão, a quantidade de dinheiro a pagar após a realização do fato imponível (fato gerador in concreto).

Fixar a quantidade de dinheiro a pagar é o mesmo que quantificar a obrigação tributária; ou, se quisermos, é o mesmo que quantificar a dívida que o sujeito passivo do tributo terá que pagar ao Fisco.1

A quantificação do tributo é feita pela base de cálculo e pela alíquota que sobre ela é aplicada.

A base de cálculo dá critérios para a mensuração correta do aspecto material da hipótese de incidência tributária. Serve não só para medir o fato imponível (Aires Barreto) como para determinar – tanto quanto a hipótese de incidência – a modalidade do tributo que será exigido do contribuinte (imposto, taxa, imposto sobre a renda, im-posto sobre operações mercantis etc.).

Em suma: como já vimos no capítulo anterior, a base de cálculo dimensiona o aspecto material da hipótese de incidência tributária.

1. Cf. José Juan Ferreiro Lapatza, Curso de Derecho Financiero Español, 12a ed., Madri, Marcial Pons, 1990, p. 545.

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2. Funções da base de cálculo

A base de cálculo tem duas funções: (a) quantificar a prestação do sujeito pas-sivo, devida desde o momento em que nasce o tributo, com a ocorrência, no mundo fenomênico (mundo em que vivemos), do fato imponível; e (b) afirmar (ou confirmar) a natureza jurídica do tributo.

De fato, a base de cálculo é fundamental à identificação jurídica dos tributos. Precisa ter congruência com a hipótese de incidência tributária.

Esta peculiaridade vem ressaltada por Juan Ramallo Massanet:

(...) lo que debe entenderse por congruencia se habla de que la base, respecto del hecho imponible, debe estar “estrechamente entroncada” (Sáinz de Bujanda, Ferreiro, Araújo Falcão), que deve guardar “pertinencia” o “inherencia” (Araújo Falcão) y “adecuación” (Cortes), que debe estar vinculada “directamente” (Blumenstein, Jarach).2

Deve, pois, a base de cálculo guardar correlação lógica (conexão, relação de inerência) com a hipótese de incidência do tributo.

Como já havíamos acenado no início do Capítulo II, o que distingue um tributo de outro é seu binômio hipótese de incidência/base de cálculo.

Só cotejando estes dois elementos da norma jurídica tributária é que podemos proclamar, cientificamente, se estamos diante de um imposto, de uma taxa ou de uma contribuição de melhoria. Mais: com eles, ficamos em condições de averiguar qual espécie tributária temos diante de nós.3

Melhor esclarecendo: se o tributo é sobre a renda, sua base de cálculo deverá, ne-cessariamente, levar em conta uma medida da renda (v.g., a renda líquida); se o tributo é sobre a propriedade, sua base de cálculo deverá, necessariamente, levar em conta uma medida da propriedade (v.g., o valor venal da propriedade); se o tributo é sobre serviços, sua base de cálculo deverá, necessariamente, levar em conta uma medida dos serviços (v.g., o valor dos serviços prestados), e assim por diante.

Estamos, com tais colocações, querendo significar que o legislador, ao definir a base de cálculo dos tributos – inclusive do ICMS –, não pode manejar grandezas alheias ao aspecto material da hipótese de incidência dos mesmos. Antes, deve existir uma conexão, uma relação de causa e efeito, entre a hipótese de incidência tributária e a base de cálculo in abstracto, que permitirá apurar quanto exatamente o contribuin-te deverá recolher (quantum debeatur) aos cofres públicos a título de tributo, após a ocorrência do fato imponível.4

Paulo de Barros Carvalho tece, a respeito, oportunas considerações:

2. “Hecho imponible y cuantificación de la prestación tributaria”, RDTributário 11-12/31, São Pau-lo, Ed. RT.

3. Não é à toa, pois, que o art. 154, I, da CF exige, implicitamente, tenham todos os tributos hipó-tese de incidência e base de cálculo. Esta última atrai, de modo inafastável, a alíquota, critério legal que, conjugado à base de cálculo, revela a quota tributária, isto é, a quantia exata que deverá ser recolhida aos cofres públicos, à guisa de tributo.

4. Cf.: Matias Cortés Domíngues, Ordenamiento Tributario Español, Madri, Tecnos, 1968, pp. 444 e ss.

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Uma das duas funções da base de cálculo é medir a intensidade do núcleo do fato impo-nível, que se consubstancia num comportamento de uma pessoa. Este atributo, além da carac-terística mensuradora, é fator de enorme significação, pois revela ao estudioso precisamente aquilo que está sendo dimensionado, equivale a dizer, firma e declara, com solidez e exatidão, a natureza do fato que está sendo avaliado na sua magnitude. Pode ser utilizado, com ótimas perspectivas, para confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material das hipóteses tributárias. Confirmar, sempre que a grandeza eleita for apta para medir o núcleo que o legis-lador declara como a medula da previsão fáctica. Infirmar, quando a medida for incompatível com o critério material enunciado pela lei. E afirmar, na eventualidade de ser obscura a formu-lação legal, fixando-se, então, como critério material da hipótese, a ação-tipo que está sendo dimensionada.5

Deve haver, pois, perfeita sintonia entre a base de cálculo e a hipótese de inci-dência do tributo; do contrário ele se descaracteriza, como bem o demonstrou Alfredo Augusto Becker:

O critério de investigação da natureza jurídica do tributo, que se demonstrará ser o único verdadeiramente objetivo e jurídico, parte da base de cálculo para chegar ao conceito do tribu-to. Este só poderá ter uma única base de cálculo. A sua conversão em cifra é que poderá variar de método: ou peso e/ou medida e/ou valor. Quando o método é o do valor, surge facilmente o perigo de se procurar atingir este valor mediante a valorização de outro elemento que constitui-rá, logicamente, outra base de cálculo e com isto, ipso facto, desvirtuou-se o pretendido gênero jurídico do tributo. Haverá tantos distintos gêneros jurídicos de tributo, quantas diferentes bases de cálculo existirem.6

Rubens Gomes de Sousa pensa do mesmo modo:

Se um tributo, formalmente instituído como incidindo sobre determinado pressuposto de fato ou de direito, é calculado com base em uma circunstância estranha a esse pressuposto, é evidente que não se poderá admitir que a natureza jurídica desse tributo seja a que normalmente corresponderia à definição de sua incidência. Assim, um imposto sobre vendas e consignações, mas calculado sobre o capital da firma, ou sobre o valor do seu estoque, em vez de o ser sobre o preço da mercadoria vendida ou consignada, claramente não seria um imposto de vendas e consignações, mas um imposto sobre o capital ou sobre o patrimônio.7

Com tão sólidos subsídios doutrinários, podemos tranquilamente afirmar que, havendo descompasso entre a hipótese de incidência e a base de cálculo, o tributo não foi bem instituído e, de conseguinte, não pode ser validamente exigido.

3. Consequência importante

Diante do que acabamos de expor, depreende-se que a manipulação da base de cálculo do tributo acaba fatalmente alterando sua regra-matriz constitucional, deixan-do o contribuinte sob o império da insegurança. Com efeito, mudando-se a base de cálculo possível do tributo fatalmente se acaba por instituir exação diversa daquela

5. Curso de Direito Tributário, 4a ed., São Paulo, Saraiva, pp. 345-346.6. Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 1963, p. 339 (os grifos são do autor).7. Parecer publicado na RT 227/65, São Paulo, Ed. RT.

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que a pessoa política é competente para criar, nos termos da Carta Suprema. Em sínte-se: descaracterizada a base de cálculo, descaracterizado também estará o tributo.

Não é por outra razão que o divórcio entre a hipótese de incidência e a base de cálculo do tributo causa irremissível inconstitucionalidade.

A desvinculação entre ambas distorce o sistema tributário, como bem o percebeu o já citado jurista espanhol Juan Ramallo Massanet.8

Transplantando estas noções, apenas bosquejadas, para o ponto que faz aqui nos-sos cuidados, temos que, embora a Constituição não chegue a apontar expressamente a base de cálculo do ICMS, ela implicitamente dá diretrizes acerca do assunto, que nem o legislador nem o intérprete podem ignorar.

Realmente, nos termos da Constituição, a base de cálculo do ICMS deve, no mínimo, guardar referibilidade com a operação ou prestação realizada, sob pena de desvirtuamento do tributo.

Assim, a base de cálculo do ICMS deve necessariamente ser uma medida ou da operação mercantil, ou da prestação do serviço de transporte transmunicipal, ou, ain-da, da prestação do serviço de comunicação.

Estamos notando, pois, que a base de cálculo possível do ICMS nas operações mercantis é o “valor de que decorrer a saída da mercadoria”; e nas prestações de ser-viços de transporte transmunicipal ou de comunicação, o “preço do serviço prestado”9 – conforme, aliás, consta da legislação ordinária de todos os Estados-membros e do Distrito Federal (v.g., do art. 24 da Lei paulista 6.374/1989).

A própria Lei Complementar 87/1996 está afinada no mesmo diapasão (art. 13, I).Se a base de cálculo do ICMS levar em conta elementos estranhos à operação

ou prestação realizada, ocorrerá, sem dúvida, uma descaracterização do tributo, o que nosso direito positivo absolutamente não aceita.

Destarte – como melhor será demonstrado –, o montante de ICMS não pode in-tegrar sua própria base de cálculo, sob pena de se desnaturar o tributo e, o que é pior, de se infligir maus-tratos ao Estatuto do Contribuinte, constitucionalmente traçado.

Na verdade, não é possível inserir na base de cálculo do ICMS sua própria inci-dência (cálculo por dentro), ensejando a cobrança de imposto sobre o imposto.

É o que melhor veremos, em seguida.

8. “Hecho imponible y cuantificación de la prestación tributaria”, RDTributário 11-12/29.9. O ICMS é devido sobre o valor total da operação. Noutras palavras: a base de cálculo do ICMS

é o valor da operação ou prestação realizada. A Fazenda Pública do Estado-membro (ou do Distrito Fe-deral, conforme o caso) tem o direito de arrecadar uma porcentagem deste valor (v.g., 18%), fixada na lei específica.

O montante de ICMS a pagar é obtido com a simples aplicação da alíquota sobre a base: o valor da operação ou prestação submetida ao tributo. Isto se dá por ocasião da prática do ato administrativo do lançamento, que no mais das vezes é realizado pelo próprio contribuinte (autolançamento). Apenas, por força do princípio da não cumulatividade, este montante, ao invés de ser pago somente em moeda, é pago também em créditos (representados pelo montante de ICMS recolhido nas operações ou prestações ante-riores). Aliás, é o próprio contribuinte que, de regra, leva a efeito os cálculos que o levarão a fruir deste direito constitucional.

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4. A lei complementar e a base de cálculo dos tributos

As competências tributárias que as pessoas políticas receberam da Constituição Federal não podem ser nem restringidas, nem ampliadas nem, muito menos, anuladas por meio da lei complementar a que alude o art. 146 desse Diploma Magno:

Art. 146. Cabe à lei complementar: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II – regular as limita-ções constitucionais ao poder de tributar; III – estabelecer normas gerais em matéria de legis-lação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195 I, e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, “d”, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distri-to Federal e dos Municípios, observado que: I – será opcional para o contribuinte; II – poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado; III – o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respecti-vos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento; IV – a arre-cadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado o cadastro nacional único de contribuintes.

I – Com efeito, estas normas jurídicas hão de ser entendidas em perfeita harmonia com o sistema tributário nacional, forjado pela Constituição.

A lei complementar que vier a “dispor sobre conflitos de competência, em maté-ria tributária”, “regular limitações constitucionais ao poder de tributar” ou “estabele-cer normas gerais em matéria de legislação tributária” – tanto quanto qualquer outra lei complementar – subordina-se à Constituição e a seus grandes princípios.

Com isto pretendemos significar que esta lei complementar não tem a prerroga-tiva de buscar nela própria fundamento de validade. Muito pelo contrário: só poderá irradiar efeitos se e enquanto estiver dentro da pirâmide jurídica, em cuja cúspide se situam as normas constitucionais.

II – Também, a lei complementar, ao definir “o tratamento diferenciado e favo-recido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239” (art. 146, III, “d”, da CF), deverá limitar-se a explicitar a regra cogente do art. 179 da CF (“A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempre-sas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico dife-renciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”).

Parece-nos certo, no entanto, que tal lei complementar não poderá impor, acerca do assunto, regras de observância obrigatória para as pessoas políticas, sob pena de

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atropelar irremissivelmente os magnos princípios federativo e da autonomia munici-pal e distrital.

Os mesmos princípios constitucionais, se adequadamente interpretados, vedam, a nosso ver, que tal lei complementar venha a compelir as pessoas políticas a adotar “um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições”, com as determina-ções e faculdades veiculadas nos arts. 146, parágrafo único, e 146-A da CF.10 Tais determinações e faculdades extrapassaram os limites do poder de reforma da Cons-tituição – e, nesta medida, devem ser aplicadas com as devidas cautelas, de modo a preservar o livre exercício das competências tributárias, tal como assegurado pelo constituinte originário.

Sem embargo de eventuais opiniões em contrário dos leigos em Ciência Jurídi-ca, emenda constitucional, positivamente, não pode credenciar lei complementar a “dar ordens” às pessoas políticas, restringindo-lhes o pleno desfrute dos direitos que a Constituição lhes outorgou para instituir e arrecadar os tributos de suas competências.

III – Estas verdades científicas não podem ser contestadas.Admitimos, num esforço de arranjo, que a lei complementar sob foco temático

poderá iluminar os pontos mais ou menos obscuros de nosso sistema constitucional tributário desde que absolutamente não o altere nem, muito menos, o destrua.

Assim, temos por certo que a lei complementar prevista no art. 146 da CF só pode reforçar o perfil constitucional de cada tributo, desenhando-o mais em detalhe e cir-cunscrevendo seus exatos contornos, tudo para que, na prática, não surjam conflitos de competência tributária entre as pessoas políticas.11 Parafraseando Pontes de Miranda, podemos dizer que esta lei complementar é “uma lei sobre leis de tributação”.

10. O art. 146-A – também acrescentado pela Emenda Constitucional 42, de 19.12.2003 –, de fora parte sua redação canhestra (“Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, es-tabelecer normas de igual objetivo”), mal consegue esconder a infundada e incorreta ideia de que a União tem o direito de comandar o exercício da tributação dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

11. A experiência revela-nos, por exemplo, que podem, na prática, surgir “conflitos” entre o ISS e o IPI. A lei complementar de que ora cogitamos tentará evitá-los “declarando” com maior riqueza de deta-lhes a parte da Constituição Federal que cuida destes impostos.

Tomemos a situação criada pela recauchutagem de pneumáticos. Algumas pessoas podem entrever neste fato um processo de industrialização; outras, uma prestação de serviços, com aplicação de matérias--primas e emprego de maquinarias.

A questão está longe de ser bizantina. Pelo contrário, ela é fundamental, já que, se prevalecer a ideia de que a recauchutagem de pneumáticos é uma industrialização, competente para tributá-la será a União (por meio de IPI); se for considerada uma prestação de serviços, competente para tributá-la será o Muni-cípio (por meio de ISS).

Com verdade, a recauchutagem de pneumáticos é um serviço, que exige para se implementar a aplicação de matérias-primas e o emprego de maquinarias. Como bem o demonstrou Aires Fernandino Barreto, ao lado dos serviços ditos “puros”, que se desenvolvem sem o emprego de instrumentos ou mate-riais (v.g., as consultas que, de viva voz, o advogado dá ao seu cliente), serviços há que só são exequíveis: I – com utilização de maquinarias ou equipamentos; II – com emprego de materiais; e III – com ambos. Também estes três últimos são serviços, tributáveis por meio de ISS.

Portanto, a recauchutagem de pneumáticos é um serviço, que só o Município – não a União – pode tributar. Para isso não havia necessidade da edição de nenhuma lei complementar.

Mas, com o fito de afastar um possível “conflito” entre a União e o Município, acabou realmente sendo baixada uma lei complementar estabelecendo que a recauchutagem de pneumáticos é um serviço

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Portanto, também esta lei complementar tem natureza simplesmente declaratória.Segue-se, deste modo, que a regra-matriz constitucional de cada tributo não pode

ter seus contornos modificados pela lei complementar. Tal ocorreria se, eventualmen-te, esta desvirtuasse a base de cálculo possível dos tributos.

Estamos, pois, percebendo que à lei complementar não é dado alterar a base de cálculo possível dos tributos, definida no próprio Texto Magno.

Assim, a lei complementar que vier a cuidar da base de cálculo dos “impostos discriminados nesta Constituição” (art. 146, III, “a”) só poderá explicitar o que está implícito, a respeito, na Constituição. Não lhe é dado inovar, mas, apenas, declarar. Em razão de seu caráter declaratório, apenas pode tornar mais clara a base de cálculo possível dos impostos. Nunca a desvirtuar.

Logo, em rigor, a lei complementar, no caso, não define a base de cálculo, mas, apenas, detalha o assunto, olhos fitos nos rígidos postulados constitucionais.

5. A base de cálculo do ICMS na Lei Complementar 87/1996. A inconstitucionalidade de seu art. 13, § 1o, I

5.1 Colocações preliminares

Em face do exposto no item anterior, temos que a lei complementar, ao dispor sobre a base de cálculo do ICMS, não pode interferir na regra-matriz constitucional deste tributo.

Pensamos ser o caso de acrescentar que nem mesmo as conveniências arrecadató-rias poderão levar tal lei complementar a agregar elementos estranhos à base de cálcu-lo possível do ICMS, que, conforme demonstramos, está predefinida na Constituição, assegurando ao contribuinte o direito de só pagar, a título de tributo, uma parcela do valor da operação mercantil realizada ou do preço do serviço efetivamente prestado.

A propósito, as conveniências arrecadatórias, conquanto digam de perto com o interesse público, só prevalecerão quando legítimas. Estamos com isso querendo sig-nificar que não podem fazer tábula rasa dos direitos constitucionais dos contribuintes, como este de verem corretamente observada a base de cálculo possível do ICMS.

e que, destarte, só pode ser tributada pelo Município, por via de ISS (item 71 do art. 8o do Decreto-lei 406/1968, com a redação determinada pela Lei Complementar 56/1987).

Agora, porém, perguntamos: e se, ao invés disso, tal ato normativo tivesse estabelecido que recau-chutagem de pneumáticos é processo de industrialização e, como tal, tributável pela União, por meio de IPI?

Apressamo-nos em responder que ele seria inconstitucional, porque teria dilargado o campo tributá-rio da União (nele enxertando uma prestação de serviços) e, o que é pior, restringido o campo tributário dos Municípios (impedindo-os de virem a tributar uma modalidade de prestação de serviços).

Aliás, uma lei deste teor, caso tivesse sido editada, deveria ser desconsiderada, seja pelos legislado-res municipais (que buscam suas competências tributárias diretamente no Texto Supremo), seja pelo Poder Judiciário, que, dentre outras relevantíssimas funções, exerce, quando provocado, o controle da constitu-cionalidade dos atos normativos.

Confirmamos, portanto, com este exemplo, que a lei complementar prevista no art. 146, I, da CF tem por destinatário imediato o Poder Legislativo das várias pessoas políticas tributantes.

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Logo, nenhuma justificativa extrajurídica (v.g., o mero aumento das receitas) po-derá validamente levar a lei complementar a subverter a base de cálculo possível do ICMS e, por via de consequência, sua regra-matriz constitucional.

Assim agremiados, com facilidade notamos que é inconstitucional o art. 13, § 1o, I, da Lei Complementar 87/1996 quando estipula:

1o. Integra a base de cálculo do imposto, inclusive na hipótese do inciso V do caput deste artigo: I – o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle; (...).

Deveras, a lei complementar, ao estabelecer que a base de cálculo do ICMS cor-responde ao valor da operação ou prestação somado ao do próprio tributo, extrapolou os limites constitucionais. Ferindo a regra-matriz do tributo, determinou, por meio deste estratagema, a cobrança de ICMS sobre grandezas estranhas à materialidade de sua hipótese de incidência.

5.2 Desenvolvimento da ideia

A Lei Complementar 87/1996, mandando incluir o montante devido a título de ICMS em sua própria base de cálculo, desvirtuou o arquétipo constitucional deste tributo, levando, por via transversa, à criação de outro, diferente daquele cuja compe-tência a Carta Suprema reservou aos Estados-membros e ao Distrito Federal.

Sobremais, feriu direito subjetivo dos contribuintes, qual seja, o de serem tributa-dos na forma e nos limites contidos na Constituição.

Em outras palavras: a lei complementar, determinando a inclusão na base de cál-culo “do montante do próprio imposto”, abriu espaço a que os Estados e o Distrito Federal criem (como, de fato, já haviam criado) uma figura híbrida e teratológica, que não se ajusta aos modelos de nenhum dos cinco impostos que a Constituição, como vimos, rotulou de ICMS. Nem de qualquer outro atribuído à competência destas pessoas políticas.

Observamos, de passagem, que os Estados e o Distrito Federal só podem criar os impostos arrolados no art. 155, I a III, da CF. Nenhum mais. Trata-se, portanto, de numerus clausus, que milita em favor dos administrados (contribuintes). Estes têm o direito constitucional subjetivo de não pagar a tais pessoas políticas nenhum outro imposto, ainda que embutido num dos discriminados nos aludidos incisos.

Repisando argumentos já exibidos: se o imposto é sobre operações mercantis, sua base de cálculo só pode ser o valor da operação mercantil realizada. Se o imposto é sobre prestações de serviços de transporte transmunicipal ou de comunicação, sua base de cálculo só pode ser o preço do serviço prestado.

Obviamente, o valor das operações e prestações é o realmente praticado, ou seja, aquele que vigorava quando da incidência do imposto.

Do contrário cobra-se um adicional de ICMS, que nada tem a ver com a expres-são econômica da operação mercantil ou da prestação de serviço realizada.

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Tal adicional tem por hipótese de incidência o fato de alguém pagar ICMS. Sua base de cálculo é um percentual do ICMS pago.

Com isso, os Estados e o Distrito Federal estarão cobrando imposto sobre o im-posto a pagar.

Trata-se de caso típico de bis in idem, que nosso ordenamento constitucional absolutamente não abona.

E – o que é pior – de um imposto que não leva em conta a capacidade econômica do contribuinte (art. 145, § 1o, da CF), assumindo, assim, conotações nitidamente con-fiscatórias (art. 150, IV, da CF).

5.3 Majoração indevida das alíquotas do ICMS

Note-se, ademais, que a solução apontada pelo art. 13, § 1o, I, da Lei Comple-mentar 87/1996 leva, em última análise, à majoração indevida das alíquotas do ICMS.

Apenas para exemplificar, admitamos que operações mercantis sejam tributadas por meio de ICMS debaixo de uma alíquota de 18%.

Ora, ao determinar uma indevida elevação na base de cálculo do ICMS, com a inclusão do próprio tributo, a lei complementar em questão, por via indireta, exacerba a alíquota apontada.

Como já vimos, a base de cálculo possível do ICMS, in casu, é o valor da opera-ção da qual decorra a transmissão da mercadoria ao adquirente.

Para melhor ilustrarmos nossa ideia, digamos que uma venda de mercadoria foi efetuada, por comerciante, por R$ 100,00 e que a alíquota aplicável seja 18%. A equa-ção correta seria:

ICMS = base de cálculo × 18/100; ouICMS = 100 × 18/100 = 18.

Com a aplicação desta singela e correta fórmula resta impossível cobrar o ICMS em valor superior a 18% de sua base de cálculo.

Ocorre, porém, que a lei complementar em questão propõe outra equação, que se nos afigura totalmente inaceitável:

ICMS = base de cálculo × 18/base de cálculo – 18; ouICMS = 100 × 18/100 – 18 = 1.800/82 = 21,95.

Como vemos, resulta da primeira equação que a alíquota empregada corresponde a 18% ad valorem; a segunda, ao revés, leva a uma alíquota de 21,95% – o que, a todas as luzes, tipifica uma burla (por excesso) à alíquota legalmente prevista (18%).

Na hipótese, considerando a alíquota como sendo de 18%, não poderá a lei com-plementar prever a inserção na base de cálculo do ICMS do quantum referente à pri-meira incidência, sob pena de saltar fora dos trilhos do sistema, exigindo o pagamento de imposto sobre o imposto.

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Isto é, por evidente, um despautério jurídico, que, se por mais não fosse, deixa de levar em conta a capacidade econômica dos contribuintes. Tivesse a Constituição desejado fossem instituídos impostos sobre impostos, teria expressamente atribuído tal competência às pessoas políticas (ou, pelo menos, a uma delas).12 Como não o fez – nem mesmo na faixa residual reservada à União (art. 154, I, da CF) –, nenhum tributo pode incidir sobre qualquer outro ou sobre si próprio.

Trazendo a ideia para as nossas hostes: como, em relação ao ICMS, a Carta Mag-na quedou silente acerca da possibilidade de ele incidir sobre si mesmo, não é dado ao legislador complementar dilargar o âmbito de abrangência da base de cálculo deste tributo.

A prevalecer o disposto na Lei Complementar 87/1996, a base de cálculo do ICMS passa a ser o valor da operação mercantil (ou da prestação de serviços) realizada mais o valor resultante da primeira operação (ou prestação). Há, aí, nítido aumento do tributo, pela majoração de sua base de cálculo, circunstância que, indiretamente, acarreta aumento de sua alíquota. Esta deixa de ser, no exemplo acima apontado, de 18%, saltando para 21,95%.

Nem se diga que a lei complementar em questão, preconizando tal procedimen-to, teria operado validamente, já que teria simplesmente permitido que o legislador ordinário majorasse por via deste artifício as alíquotas do ICMS. É que as alíquotas máximas deste tributo devem ser fixadas por resolução do Senado (art. 155, § 2o, IV e V, da CF). Nunca por meio de lei complementar ou de lei ordinária que nela se estribe.

Estes tetos – que são garantias para os contribuintes – não podem ser superados por meio de artifícios.

5.4 Esclarecimentos

Nem se argumente que, na prática, o ICM (à época da Carta de 1967/1969) e o ICMS (a partir do advento da atual Constituição) sempre foram assim cobrados, sem qualquer insurgência da parte dos contribuintes.

Primeiro que tudo, é óbvio que não podemos justificar uma inconstitucionalidade presente com inconstitucionalidades passadas. A reiteração da inconstitucionalidade não a torna constitucional, como é cediço.

Depois, este aparente conformismo tem uma explicação lógica: quem, na quase totalidade dos casos, suporta a carga econômica do ICMS não é o realizador de seu fato imponível (o comerciante, o industrial ou o produtor), mas o consumidor final da mercadoria. Este vê incluído no preço da mercadoria que adquire o quantum de ICMS recolhido nas operações mercantis com ela anteriormente praticadas. Não é por outra razão que o ICMS é considerado pela Economia um “imposto indireto”.

Ora, na medida em que o tributo é suportado economicamente por terceira pessoa (o consumidor final), facilmente se entende o motivo pelo qual até hoje não houve

12. Quando a Constituição quis excepcionar esta regra ela o fez de modo expresso. Tal ocorreu, por exemplo, quando permitiu (expressamente) que a contribuição social sobre o lucro, prevista no art. 195, I, desse mesmo diploma, tivesse por base de cálculo expressão econômica já tributável por meio de imposto sobre a renda.

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inconformismos maiores contra este modo esdrúxulo de calcular o montante do tributo a pagar. Esdrúxulo porque leva a uma exacerbação da carga tributária devida, isto é, a um percentual superior ao previsto em sua alíquota, legalmente fixada.

Na hipótese em exame, tendo sido adotada, por exemplo, a alíquota de 18%, não poderia a lei complementar desenhar (como infelizmente desenhou) a base de cálculo possível do ICMS de modo a, na prática, aumentar este percentual. Desnecessário insistir que isto provoca majoração indireta do tributo a pagar. Melhor dizendo: nos termos da Constituição, só se pode aumentar o tributo alterando-se, para mais, sua alíquota, sua base de cálculo ou ambas. Outros caminhos estão vedados, tipificando verdadeiro desvio de poder legislativo, que é modalidade de abuso de direito.

É incontendível que nenhuma fórmula matemática ou nenhum ardil legislativo poderão atropelar o preceito constitucional de que a base de cálculo do ICMS é o preço praticado na operação mercantil (ou na prestação de serviço) realizada. Se não, ocorre o inconstitucional fenômeno pelo qual “a alíquota real suplanta a alíquota nominal” (Alcides Jorge Costa).

Os direitos do contribuinte, máxime os constitucionalmente traçados, não podem soçobrar em função de artifícios legislativos.

Diante do considerado, impõe-se, pois, o reconhecimento da inconstitucionali-dade do art. 13, § 1o, I, da Lei Complementar 87/1996, que, exigindo a inclusão do valor do ICMS sobre sua própria base de cálculo, acarreta uma elevação de alíquota (e, portanto, burla, por via oblíqua, as diretrizes constitucionais).

6. O modo de apurar a base de cálculo do ICMS, tal como preconizado na legislação ordinária. Sua insubsistência

6.1 Considerações gerais

Teorizando um pouco mais, a norma jurídica tributária define a incidência fiscal. Nela há sempre uma hipótese (ou antecedente) e um mandamento (ou consequente).

A hipótese descreve um fato, ao passo que o mandamento indica os efeitos ju-rídicos que a ocorrência deste mesmo fato desencadeará, isto é, a relação jurídica (obrigação tributária) que se instaurará quando ele se der. Assim, por exemplo, a lei que traçou a norma jurídica tributária do ICMS estatuiu que se um comerciante vender uma mercadoria (hipótese) deverá pagar à Fazenda Estadual 18% do preço desta ven-da mercantil (mandamento).

Tanto a hipótese como o mandamento devem apontar aspectos (critérios, da-dos identificativos). Esmiuçando a ideia, a hipótese deverá conter, necessariamente, um aspecto material (comportamento de uma pessoa), coordenado no tempo (aspecto temporal) e no espaço (aspecto espacial). Já, o mandamento indicará sempre o aspec-to pessoal (o sujeito ativo e o sujeito passivo do tributo) e o aspecto quantitativo (a base de cálculo e a alíquota do tributo).

É bom remarcarmos que cabe à lei da pessoa política tributante descrever todos os aspectos da norma jurídica tributária. Se omitir qualquer deles não terá criado in abstracto o tributo (que, portanto, não poderá nascer in concreto).

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Todavia, como já vimos, a lei, ao cuidar destes aspectos, deverá, semper et ad sem-per, levar em conta os moldes (os arquétipos) constitucionais do tributo em questão.

A liberdade do legislador, neste particular, é condicionada pela Constituição Fe-deral, inclusive em matéria de ICMS.

6.2 Das inconstitucionalidades da legislação estadual no que respeita à base de cálculo do ICMS

A legislação ordinária dos Estados e do Distrito Federal – seguindo na trilha do que vem disposto no art. 13, § 1o, I, da Lei Complementar 87/1996 – estabelece que a apuração do quantum debeatur do ICMS deve ser feita incluindo-se os valores devi-dos a título deste imposto em sua própria base de cálculo.13

Como já vimos, tal determinação é inconstitucional, porque não rima com a re-gra-matriz do ICMS e, o que é pior, compele o contribuinte a pagar um tributo confis-catório, que não leva em conta sua capacidade econômica.

Valem, a propósito, as lúcidas observações de Paulo Magalhães da Costa Coelho:

Como é cediço, os Estados-membros só podem instituir e cobrar tributos em relação àque-les que a Carta Magna lhes outorgou competência.

Dentre esses, é evidente, está o ICMS. No entanto, a Constituição Federal não lhes ou-torgou competência para tributar imposto sobre imposto, nem abriu exceção no que se refere ao valor da operação de circulação de mercadoria para afirmar devesse o imposto integrar sua base de cálculo.

Se a Carta Magna não contempla esta hipótese de imposto incidente sobre imposto, de forma alguma o legislador infraconstitucional poderia tê-lo instituído, ainda que fazendo-o in-tegrar sua própria base de cálculo.14

Ademais, a “fórmula” encontrada pela legislação no pertinente à base de cálculo do ICMS confere a este tributo o “efeito cascata”, ferindo, deste modo, o princípio da não cumulatividade.

Finalmente, tal “fórmula” leva a uma majoração indevida de alíquotas, costeando os preceitos previstos nas resoluções do Senado que cuidaram da matéria.

A sistemática de cálculo do ICMS conhecida como “cálculo por dentro” faz com que a alíquota recaia não só sobre o preço da mercadoria ou do serviço, senão também sobre o valor do próprio imposto.

O “cálculo por dentro” leva à quebra da alíquota legal, em favor da alíquota real, majorada sem lei e sem observância dos tetos fixados em resoluções do Senado.

13. Como já havíamos adiantado no capítulo anterior, a Lei paulista 6.374/1989, em seu art. 33, prescreve: “O montante do imposto, inclusive na hipótese do inciso IV, do art. 2o, integra sua própria base de cálculo, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle”. Idêntica a redação do art. 20 da Lei gaúcha 8.820/1989 e – pelo que nos é dado saber – de todas as leis dos demais Estados--membros e do Distrito Federal.

14. “A base de cálculo do ICMS nas operações de consumo de energia elétrica e telefonia”, Revista Dialética de Direito Tributário 11/88-89, São Paulo, Dialética.

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A respeito do tema, dignos de menção os considerandos expendidos pelo ilustre magistrado Roberto Marques de Freitas:

Não bastam retóricas aritméticas, não importa se o cálculo é efetuado “por dentro” (...) ou por fora; não importa semelhanças a outros tributos; diferentemente de como entende a im-petrada, que “a alíquota real não coincide com a alíquota legal” (...); importa, sim, no caso em tela, (...) que a alíquota real tem que coincidir com a alíquota legal.

Para ser legal a interpretação do texto tributário, o imposto incide sobre o preço final do produto e não sobre o preço do produto mais o imposto agregado.15

Na Constituição, como pensamos haver demonstrado, inexistem dispositivos ca-pazes de dar supedâneo a tal procedimento.

Inteira razão assiste ao eminente magistrado José Roberto Furquim Cabella quan-do, em memorável sentença, pontifica:

A propósito, note-se, nesse passo, que se o ICMS exigido do contribuinte recai sobre o va-lor do produto ou serviço tributável, mas já agregado do mesmo imposto, vai daí que a alíquota estabelecida acaba incidindo então sobre uma base de cálculo já tributada, o que inapelavel-mente implica no vício acima referido. (...).

Assim, é preciso ter coragem para reconhecer que o chamado “cálculo por dentro” nada mais representa mesmo do que fazer com que a alíquota do imposto incida por duas vezes no cálculo, uma sobre o preço e outra sobre este mesmo preço já tributado, numa manobra esperta e condenável, destinada a aumentar a arrecadação em prejuízo dos contribuintes.16

O que está aí dito, em síntese, é que, se a alíquota do ICMS é, por exemplo, de 18% sobre o valor da operação mercantil realizada e, feito este cálculo, aplica-se mais 18% sobre o valor apurado, o resultado é que não só a base de cálculo estará sendo indevidamente alargada como, sob outra perspectiva, a alíquota deixará de ser de 18%, transformando-se, como num passe de mágica, em 21,95%.

Sob qualquer dos enfoques tem-se situação totalmente divorciada dos princípios constitucionais tributários.

Além de tudo, a legislação que autoriza o “cálculo por dentro” do ICMS leva a um enriquecimento sem causa da Fazenda Pública.

De fato, recebendo, imposto sobre o imposto, ela, com base em lei inconstitucio-nal, locupleta-se às custas do contribuinte, em nome de interesses que positivamente não são públicos (como demonstrado no item 6.1, supra). Há, aí, ilícito enriquecimen-to fazendário, condenado pelo Direito, nos termos da vetusta parêmia nemo potest locupletari detrimento alterius.

Nem se diga que a lei é clara ao exigir o “cálculo por dentro” do ICMS e que, portanto, deve ser cumprida. Sendo, como cabalmente demonstrado, tal lei inconstitu-cional, por agressão ao “Estatuto do Contribuinte”, deve ser posta em oblívio.

15. Acórdão proferido no 1o TACivSP, 3a Câmara, na ACi 444.940-5, de São Paulo, em 17.9.1991.16. Sentença prolatada em 28.3.1994 no Processo 1.028/1993, da 2a Vara da Fazenda Pública do

Estado de São Paulo.

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É o caso de aqui lembrarmos as clássicas lições de Rui Barbosa, para quem a Administração Pública deve, quando for o caso (como agora), descumprir a lei para cumprir a Constituição, que é, afinal, a Lei das Leis.

As considerações até aqui feitas autorizam-nos a proclamar, com convicção, que a inclusão do valor do ICMS em sua própria base de cálculo não se sustenta, porque, adotando como fundamento um único e isolado preceito de legislação, atropela a es-trutura e o perfil constitucional deste tributo.

Nenhuma conduta ilícita pode ser imputada ao contribuinte que expurga da base de cálculo do ICMS elemento estranho – espúrio, mesmo –, que é o valor do próprio imposto, já que este não mede capacidade econômica, nem espelha o resultado das operações mercantis ou dos serviços realizados.

Indo além, podemos afirmar, sem nenhuma dose de exagero, que a consideração do valor do ICMS como matéria tributável implica erigir em hipótese de incidência deste tributo a circunstância de ele ter nascido, em concreto, pela ocorrência de seu fato imponível.

Se aceitarmos tão bizarra concepção, fatalmente teremos que concluir que aos cinco impostos que identificamos sob a sigla ICMS poderia o legislador, atendendo a interesses meramente arrecadatórios, acrescentar um “sexto”: o imposto sobre o paga-mento do próprio imposto, isto é, o imposto sobre o pagamento do ICMS.

Neste ponto de nosso raciocínio é o caso de lembrarmos que o Direito há de ser interpretado com inteligência e razoabilidade, justamente para que não se chegue a conclusões absurdas.

Ora, a aplicação literal, neste ponto, da legislação complementar e ordinária deve ser profligada, justamente porque leva a conclusões absurdas e, mais que isso, porque maltrata princípios que a Constituição consagra.

É sempre oportuno reiterarmos que o legislador, ao criar in abstracto o ICMS, absolutamente não pode desvirtuar sua norma-padrão de incidência, que tem sede constitucional. Isto fatalmente ocorreu quando “alterou” a base de cálculo possível do tributo, nela mandando inserir o valor do próprio imposto.

7. Outros desdobramentos

Tendo em vista tudo o que foi até aqui desenvolvido, entendemos ser inteiramente legítimo e possível ao contribuinte resistir às pretensões fiscais no que concerne à exi-gência da inclusão do valor do ICMS em sua própria base de cálculo.

Lembramos, ao propósito, que a Lei das Leis, máxime no § 2o de seu art. 5o, implicitamente lhe confere o direito de não pagar tributo criado ou lançado em desa-cordo com os ditames constitucionais. Este direito pode ser chamado de “direito de resistência à tributação indevida”.

Ademais, o atual diploma constitucional não se limitou a reconhecer a possibi-lidade de os contribuintes se insurgirem contra a tributação indevida. Também lhes assegurou os meios processuais adequados a este fim: o direito de livre acesso ao

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Judiciário, o direito de serem indenizados contra atos ou omissões ilegais dos agentes fiscais, o direito de repetição do indébito tributário etc.

No caso do ICMS, o ordenamento jurídico deu ao contribuinte o direito subjetivo de, ao efetuar o autolançamento deste tributo, tomar como matéria tributável apenas aquela diretamente relacionada com a expressão econômica da operação mercantil ou do serviço realizado. Nunca parte do próprio imposto que terá que pagar: o ICMS.

Para se acautelar ou defender de cobranças indevidas, bem assim de outras me-didas sancionatórias, por parte do Fisco, o contribuinte pode perfeitamente impetrar mandado de segurança, já que a questão envolve matéria exclusivamente de direito, comportando, assim, a produção de prova pré-constituída.

Pode, por igual modo, defender-se nas esferas administrativa e judicial por outros meios que a ordem jurídica lhe defere (defesas e recursos administrativos, embargos à execução fiscal, ação declaratória ou anulatória de débito fiscal etc.).

Se, eventualmente, for alvo de retaliações de ordem criminal, tem ao alcance da mão o remédio do habeas corpus para trancar, no nascedouro, a persecutio criminis.

A propósito, a exclusão do ICMS de sua própria base de cálculo não configura nenhum ilícito, conforme melhor veremos no capítulo final deste livro.

8. Síntese conclusiva

I – Do exposto, temos que não se enquadra no âmbito da competência estadual a criação de ICMS tendo como base de cálculo sua própria receita.

O valor do ICMS não expressa grandeza apta a compor sua própria base de cálcu-lo, porque, não sendo elemento quantificador das operações ou prestações realizadas, deixa de levar em conta a capacidade econômica do contribuinte, assume feições con-fiscatórias e afronta a regra-matriz constitucional deste imposto.

II – Tal forma de apuração do montante de ICMS – embora preconizado pelo Fisco – não se coaduna com as exigências de nosso sistema constitucional tributário.

Com efeito, a inclusão do ICMS em sua própria base de cálculo desvirtua o mo-delo constitucional deste tributo, que deixa de ser sobre “operações mercantis” para se transformar num “imposto sobre o imposto”, figura híbrida e teratológica, que, inclusive, viola o princípio da reserva das competências tributárias.

III – Temos por insofismável, assim, que a exclusão, pelo contribuinte, do valor do ICMS de sua própria base de cálculo não acarreta diminuição indevida do montante de tributo a pagar.

Melhor dizendo: inexiste qualquer artificialismo em tal exclusão, e nem dela de-corre maltrato à estrutura constitucional do tributo. Antes, este expediente ajusta a base de cálculo, de modo a torná-la compatível com a regra-matriz (constitucional) do ICMS (ou, se preferirmos, com as regras-matrizes de cada um dos tributos que a Constituição rotulou ICMS).

Pelo contrário, a inclusão do valor do ICMS em sua própria base de cálculo – tal como equivocadamente preconizado pela legislação – é que configura elevação, sem base em lei, das mesmas alíquotas.

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IV – Consequentemente, estamos convencidos de que nenhuma conduta ilícita – muito menos o crime de sonegação fiscal – pode ser imputada ao contribuinte que expurga da base de cálculo do ICMS o valor do próprio imposto, elemento estranho que não mede capacidade econômica, nem espelha o resultado das operações mercan-tis ou dos serviços realizados.

V – A Emenda Constitucional 33/2001 acrescentou uma alínea “i” ao art. 155, § 2o, XII, da Carta Magna, autorizando a lei complementar a “fixar a base de cálculo, [do ICMS] de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.17

Tentou-se, assim, convalidar, por via reflexa (com a cândida frase “também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”), o cálculo por dentro do ICMS, que aqui estamos zurzindo. Esta manobra capciosa, no entanto, não anula o capítulo que acabamos de escrever. Com efeito, não é dado ao poder constituinte de-rivado alterar a regra-matriz constitucional de tributo algum, modificando-lhe arbitra-riamente – como no caso em estudo – a base de cálculo possível.18

Aguardemos, esperançosos, o pronunciamento do Poder Judiciário.

17. Esclarecemos nos colchetes.18. Sustentável, no mínimo, que antes do advento da Emenda Constitucional 33/2001 o montante

do imposto não integrava a base de cálculo do ICMS “na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”.

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Capítulo IVA MANIFESTA INCONSTITUCIONALIDADE

DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA “PARA FRENTE” NO ICMS

1. Introdução. 2. A substituição tributária “para frente”: noções gerais e questões conexas: 2.1 A inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 3/1993 – 2.2 Ainda a tributação por “fato futuro”. 3. A substituição “para frente” e o art. 10 da Lei Complementar 87/1996: 3.1 A restituição do ICMS e o inusitado Decreto paulista 41.835/1997. 4. Substituição tributária “para frente” e tipicidade da tributação. 5. Outras inconstitucionalidades. 6. A inconstitu-cionalidade do “Convênio 66/1988” enquanto “cuidava” da substituição tributária “para frente”. 7. A uniformização de jurisprudência do STJ. 8. Novas considerações.

1. Introdução

I – Conforme vimos, o legislador não é livre para moldar o ICMS à sua vontade. Pelo contrário, deve seguir os arquétipos constitucionais desse tributo.

Tais assertivas valem também quando aponta quem deterá a capacidade tribu-tária passiva, vale dizer, quem será o sujeito passivo da obrigação tributária, quando esta nascer, com a ocorrência do fato imponível (fato gerador in concreto).

Ao eleger o sujeito passivo da obrigação tributária o legislador deve obedecer a uma regra básica: só poderá onerar quem participou da ocorrência do fato típico. Não pode fazer recair a carga tributária sobre pessoa estranha ao fato gravado pela incidên-cia fiscal. Noutro giro verbal: ninguém pode ser compelido pela lei a pagar tributo sem que tenha participado, de algum modo, da realização do fato imponível.

II – Isto se aplica também quando o legislador tributário cria a figura da respon-sabilidade tributária. A eleição da responsabilidade pelo débito tributário recai – é certo – sobre quem não tem relação pessoal e direta com o fato imponível desde que, porém, vinculado, de algum modo, a ele (v.g., o empregador, que é responsável pelo recolhimento do imposto sobre a renda na fonte incidente sobre o salário que paga a seu empregado).

Não é dado ao legislador escolher o responsável tributário fora da norma jurídica tributária. Exemplificando, para melhor esclarecer: não lhe é permitido direcionar as cargas tributárias sobre quem não está, de forma alguma, juridicamente relacionado com o realizador do respectivo fato imponível (fato gerador in concreto).

Há de haver entre o substituto e o substituído, no mínimo, uma vinculação jurídi-ca, de modo a justificar o repasse a este último do ônus econômico do imposto.

III – Muito bem, como já sabemos, uma das modalidades da responsabilidade tributária é a substituição.

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Sob a perspectiva da teoria geral do direito tributário, a substituição tributária pressupõe a escolha pelo legislador de um sujeito passivo da exação tributária que não tenha sido responsável pela realização do fato gerador, com a diferença, em relação a outros casos de responsabilidade tributária, de que a obrigação tributária já nasce afetando este terceiro, e não o contribuinte.

Logo, não é dado à lei complementar eleger, sem reserva nem restrição, substitu-tos tributários para o ICMS. Muito ao invés, deve fazê-lo de forma a resguardá-los do “empobrecimento sem causa” (a que, por força, corresponderia o enriquecimento sem causa dos verdadeiros contribuintes).

IV – De um modo geral, a doutrina concorda que, sempre que possível, os impos-tos devem ser exigidos do contribuinte, que, afinal, é o realizador do fato imponível. É ele que deve figurar no polo passivo da obrigação tributária. Mais: sempre que pos-sível, é seu patrimônio que deve ser atingido pela carga econômica do tributo.

Em circunstâncias especialíssimas, porém, admite-se que a carga tributária seja suportada, num primeiro momento, por terceira pessoa, juridicamente relacionada com o contribuinte: o substituto tributário.

Neste fenômeno, o substituto, embora não tenha realizado o fato imponível, é posto pela lei na posição de verdadeiro sujeito passivo da obrigação tributária, res-pondendo integralmente não só pelo adimplemento do débito tributário como também pelo cumprimento das obrigações acessórias (deveres instrumentais tributários) rela-tivas a todo o ciclo econômico percorrido pela mercadoria posta in commercium.

V – Também o substituto deve, no entanto, estar de algum modo vinculado ao fato imponível (fato que realizou o tipo do tributo).

Destarte, o substituto tributário é aquele que, submetido a uma obrigação típica e pessoal (a do substituto), antecipa o dever atribuído ao contribuinte (substituído), recolhendo o tributo que virá a ser devido por este. Trata-se (o substituto) de uma es-pécie de “intermediário” legalmente interposto como sujeito passivo responsável, para os fins de arrecadação tributária, mas com obrigação patrimonial própria.

Em contranota, o substituto passa a ter o direito subjetivo de se defender, seja na esfera administrativa, seja na judicial, de eventuais prejuízos que lhe venham a ser causados pelo ente tributante.

Como, no entanto, o substituto tributário paga o tributo a título alheio – vale dizer, em nome e por conta do contribuinte (o realizador do fato imponível) –, a lei deve assegurar-lhe reais condições para se ressarcir de plano, sem maiores ônus. Com o prestigioso abono de Geraldo Ataliba, entendemos que o substituto tributário não pode se ver na contingência de ingressar em juízo com uma ação de regresso contra o contribuinte. Isso, positivamente, não é ressarcir-se de plano.

VI – Preenche estes requisitos a substituição que há nome “retenção na fonte”, na qual terceira pessoa, vinculada ao fato imponível, separa parte da importância que paga ao contribuinte, para recolhê-la aos cofres públicos.

O cerne da sistemática da substituição tributária, para sua adequada compreen-são, consiste na resposta ao problema da natureza das relações jurídicas estabelecidas entre o substituto e o substituído.

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INCONSTITUCIONALIDADE DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA “PARA FRENTE” NO ICMS 331

Nesse sentido, o STJ, ao julgar o REsp 931.727-RS,1 sob a sistemática de recur-sos repetitivos, adotou expressamente as conclusões esposadas por Alfredo Augusto Becker, listadas em três itens, verbis:

As três referidas conclusões são as seguintes:Primeira conclusão: Não existe qualquer relação jurídica entre substituído e o Estado.

O substituído não é sujeito passivo da relação jurídica tributária, nem mesmo quando sofre a repercussão jurídica do tributo em virtude do substituto legal tributário exercer o direito de reembolso do tributo ou de sua retenção na fonte.

Segunda conclusão: Em todos os casos de substituição legal tributária, mesmo naqueles em que o substituto tem perante o substituído o direito de reembolso do tributo ou de sua re-tenção na fonte, o único sujeito passivo da relação jurídica tributária (o único cuja prestação jurídica reveste-se de natureza tributária) é o substituto (nunca o substituído).

Terceira conclusão: O substituído não paga “tributo” ao substituto. A prestação jurídica do substituído que satisfaz o direito (de reembolso ou de retenção na fonte) do substituto não é de natureza tributária, mas, sim, de natureza privada.2

Como se vê, apesar de realizar o fato gerador (fato imponível), o substituído não possui qualquer relação jurídica com o Estado. Ele não paga “tributo”; apenas arca com sua repercussão econômica sobre o valor praticado na operação.

VII – Nessa linha, parece-nos bem frisar que há na substituição tributária, (i) três relações jurídicas típicas (1. Fisco e substituto; 2. substituto e substituído; 3. Fisco e substituído), (ii) decorrentes de três fatos jurídicos distintos (1. sobre a operação do substituto – antecipação; 2. sobre a operação verificada entre o substituto e o substituído – ressarcimento; e 3. sobre a operação do substituído – presumida) e (iii) provenientes de três ordens de normas jurídicas, também distintas (1. a definidora do regime de substituição, que constitui o fato jurídico do substituto; 2. a que estabelece o regime de não cumulatividade; e 3. a que constitui a obrigação tributária material, constitucionalmente pressuposta, sendo essa a única com o poder de conferir de-finitividade ao pagamento efetuado na primeira ou garantir o afastamento daquele regime, fomentando a devolução dos valores antecipados, caso não se verifique o fato jurídico presumido).

VIII – Anote-se, ainda, que as três relações jurídicas acima mencionadas são exi-gidas peremptoriamente pelo art. 150, § 7o, da CF. A primeira (a relação entre o Fisco e o substituto), pela identificação do fato gerador presumido, que estabelece a conexão entre o Fisco e o substituído. A segunda (a relação entre o substituto e o substituído), que justifica a primeira. Ambas dependem da ocorrência do fato gerador in concreto. Caso, porém, este não ocorra, surge uma terceira relação jurídica, agora entre o Estado e o substituto por antecipação ou o substituído, garantindo a estes últimos a imediata e preferencial restituição da quantia paga.

IX – O instituto da substituição tributária subdivide-se em (a) substituição tribu-tária para trás e (b) substituição tributária para frente.

1. STJ, 1a Seção, REsp 931.727-RS, rel. Min. Luiz Fux, j. 26.8.2009, DJe 14.9.2009.2. Teoria Geral do Direito Tributário, 4a ed., São Paulo, Noeses, 2007, pp. 595-601.

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332 ICMS

Só a substituição tributária para trás pode prosperar no Brasil. A outra (a substi-tuição tributária para frente) – posto muito difundida, na prática – é inconstitucional, porque agride valores que nossa Lei Maior encampou e que os interesses fazendários não podem atropelar. Vejamos.

Na chamada substituição tributária para trás, a lei, tendo em vista comodidades arrecadatórias, estabelece que o tributo será recolhido, pelo substituto, na próxima operação jurídica (em nome do substituído). Destarte, a carga econômica do tributo não será suportada pelo realizador da operação jurídica (o substituído), mas por quem levar a cabo a seguinte (o substituto).

Em princípio este artifício é válido, isto é, ajusta-se aos ditames constitucionais.Aliás, em matéria de ICMS, a própria CF, em seu art. 155, § 2o XII, “b”, estatui

que cabe à lei complementar (federal) “dispor sobre substituição tributária”. Mesmo assim, tal lei complementar só poderá fazê-lo com grandes cautelas, de modo a não ferir direitos subjetivos do contribuinte.

Situação diversa ocorre com a substituição tributária para frente. Esta é absolu-tamente inconstitucional.

X – Mas não apenas isso. Como bem apontou Clélio Chiesa, a expressão “substi-tuição tributária” denota dois fenômenos distintos, verbis:

(a) a substituição propriamente dita, que consiste em colocar no polo passivo de uma obrigação tributária pessoa que não realizou o fato jurídico tributário, mas que, por uma opção do legislador, assim o faz por razões das mais diversas ordens; e (b) a tributação de fato futuro, cobrando antecipadamente de pessoa que não é a realizadora do fato jurídico tributário o tributo que seria devido posteriormente com a ocorrência no mundo fenomênico do fato descrito na hi-pótese da norma instituidora do tributo, como, v.g., exigir antecipadamente o ICMS devido em operações subsequentes. Vale dizer, presume-se que a operação posterior vai ocorrer e, desde já, antes de ocorrer, passa-se a tributá-la.

O legislador ordinário, principalmente o estadual, por sua vez, está regulamentando a substituição e a antecipação como se fossem institutos idênticos, sem qualquer distinção.3

Portanto, quando se fala em substituição tributária sujeição passiva não neces-sariamente se está a tratar do instituto “substituição tributária”, moldado no art. 150, § 7o, da CF.

Xa – É o que explica Hugo de Brito Machado, ao tratar da “substituição tributária sujeição passiva” e da “substituição tributária antecipação” no ICMS,4 verbis:

3. “A denominada substituição tributária ‘para frente’”, in Ives Gandra da Silva Martins e Edvaldo Brito (orgs.), Doutrinas Essenciais. Direito Tributário: Impostos Estaduais, 2a ed., vol. IV, São Paulo, Ed. RT, 2014, pp. 377-378 (grifamos).

4. Esta comparação também é feita por José Eduardo Soares de Melo (“ICMS – Substituição tribu-tária na entrada de mercadorias e não cumulatividade”, in Sistema Tributário Brasileiro e as Relações In-ternacionais, São Paulo, Noeses, 2013, p. 539) e por Caroline Said (“Substituição tributária e antecipação tributária. A importância da diferenciação das duas figuras”, in Direito Tributário: Obrigação Tributária – Formação da Obrigação Tributária – Sujeitos da Obrigação Tributária – Responsável pela Obrigação Tributária – Descumprimento da Obrigação Tributária, São Paulo, Ed. RT, 2014, p. 661).

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INCONSTITUCIONALIDADE DA SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA “PARA FRENTE” NO ICMS 333

A substituição tributária não implica necessariamente cobrança antecipada do imposto. Aliás, a cobrança antecipada constitui uma forma deturpada da substituição. (...).

A substituição tributária de que nos estamos ocupando, aqui, é denominada substituição tributária para a frente, na qual é atribuída ao fabricante, ou ao distribuidor, a condição de contribuinte substituto dos adquirentes de seus produtos. Nesta, que consideramos uma forma deturpada, reúnem-se a substituição propriamente dita e a antecipação.5

Xb – Tal modalidade de cobrança do ICMS também foi estudada por Aroldo Gomes de Mattos, verbis:

Diferentemente das operações com diferimento é a cobrança do ICMS, pura e simples, a título de antecipação, quando de entradas de mercadorias no estabelecimento do adquirente por conta do que seria devido na futura operação de saída.

Melhor explicando: numa operação entre as empresas A e B, além do imposto devido na saída da mercadoria da empresa A, é cobrado da empresa B quando de sua entrada o imposto que vier a ser devido em operações futuras, a título de antecipação. Há, pois, dupla incidência na mesma operação: na saída e na entrada. Resta saber se esta última tem suporte constitu-cional.6

A distinção merece destaque, uma vez que a substituição tributária para frente é regulada pelo art. 150, § 7o, da Carta Suprema, incluído pela Emenda Constitucional 3/1993, ao passo que a substituição tributária sujeição passiva se fundamenta, tam-bém, nos arts. 128, do CTN e 6o da Lei Complementar 87/1996.

XI – Outro ponto relevante para a exata compreensão deste último instituto é que somente se estará diante de substituição tributária sujeição passiva – fundada, a um tempo, nos arts. 128 do CTN, 6o da Lei Complementar 87/1996 e, 150, § 7o, da CF – nas hipóteses em que o substituto recolher o tributo antes da ocorrência do fato imponível (fato gerador in concreto).

É o que, de resto, constou do voto do Min. Teori Zavascki proferido no julgamen-to do RE 593.849-MG, verbis:

A base de cálculo, nessa forma de substituição tributária, [progressiva ou para frente] já não será “o valor da prestação ou da operação” (art. 8o, I, da Lei Complementar n. 87/1996), como ocorre em operações ou prestações concomitantes ou antecedentes. Será, sim, o valor a ser fixado segundo os critérios estabelecidos no inciso II do art. 8o da Lei Complementar n. 87/1996. E o será, portanto, definitivamente, como decidiu o STF na ADI n. 1.851.7

De mais a mais, a substituição tributária deve obedecer, para todos os tributos, aos princípios constitucionais (i) da estrita legalidade, (ii) da vedação ao confisco, (iii) da capacidade contributiva, (iv) da isonomia e (v) da expressa designação do contribuinte.

5. Aspectos Fundamentais do ICMS, São Paulo, Dialética, 1997, p. 113.6. ICMS – Comentários à Legislação Nacional, São Paulo, Dialética, 2006, p. 176 (grifamos).7. STF, Plenário, RE 593.849-MG, rel. Min. Edson Fachin, j. 19.10.2016, pp. 47-48 (esclarecemos

nos colchetes e grifamos).

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