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IC SIINCUSP 2016 TRABALHOS SELECIONADOS PARA A ETAPA INTERNACIONAL DO 23 O SIICUSP - SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA USP FAUUSP AGOSTO 2017 IC SIICUSP 2016 TRABALHOS SELECIONADOS PARA A ETAPA INTERNACIONAL DO 24 O SIICUSP - SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA USP

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IC SIINCUSP 2016TRABALHOS SELECIONADOS

PARA A ETAPA INTERNACIONALDO 23O SIICUSP - SIMPÓSIO

INTERNACIONAL DE INICIAÇÃOCIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

DA USP

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FAUUSPAGOSTO 2017

IC SIICUSP 2016TRABALHOS SELECIONADOS

PARA A ETAPA INTERNACIONAL DO24O SIICUSP - SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE

INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA USP

IC SIICUSP 2016TRABALHOS SELECIONADOS

PARA A ETAPA INTERNACIONAL DO24O SIICUSP - SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE

INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA USP

ORGANIZAÇÃOLEANDRO SILVA MEDRANO

FAUUSP

AGOSTO, 2017

Universidade de São PauloUniversidade de São PauloUniversidade de São PauloUniversidade de São PauloUniversidade de São PauloMarco Antonio Zago – ReitorVahan Agopyan – Vice-ReitorJosé Eduardo Krieger – Pró-Reitor de Pesquisa

Faculdade de Arquitetura e UrbanismoMaria Ângela Faggin Pereira Leite – DiretoraRicardo Marques de Azevedo – Vice-Diretor

Comissão de PesquisaLeandro Silva Medrano – Presidente da Comissão de PesquisaEugenio Fernandes Queiroga – Vice-PresidenteJoão Fernando Pires Meyer – AUT - TitularMarcelo Eduardo Giacaglia – AUT - SuplenteAndrea Buchidid Loewen – AUH - TitularLeandro Silva Medrano – AUH - SuplenteEugenio Fernandes Queiroga – AUP - TitularClice de Toledo Sanjar Mazzilli – AUP - SuplentePaulo Eduardo Fonseca Campos – AUP - TitularCibele Haddad Taralli – AUP - Suplente

OrganizaçãoOrganizaçãoOrganizaçãoOrganizaçãoOrganizaçãoLeandro Silva Medrano

Ficha Catalográfica

Serviço de Biblioteca e Informação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

SecretáriaSecretáriaSecretáriaSecretáriaSecretáriaElizabete Melchior dos Reis

Produção GráficaProdução GráficaProdução GráficaProdução GráficaProdução GráficaSeção Técnica de Produção EditorialCoordenação Didática – Profa. Dra. Clice de Toledo Sanjar MazzilliSupervisão Técnica – André Luis Ferreira

IC SIICUSP 2016: trabalhos selecionados para a etapa internacional do 24º.Simpósio Internacional de Iniciação Científica /organização de Leandro SilvaMedrano. — São Paulo: FAUUSP, 2017.

96 p.

ISBN: 978-85-8089-109-6

1. Planejamento Territorial Urbano (Simpósios) 3. Arquitetura (Simpósios)I. Medrano, Leando Silva,org. II. Simpósio Internacional de Iniciação Científica eTecnológica da USP (23: 2016 : São Paulo ). III.Título.

711.063 CDD

SUMÁRIO

IC ANUÁRIO 2017Leandro Silva Medrano

CONSTRUÇÃO DA CAMADA LIMITE ATMOSFÉRICA EM TÚNEL DE VENTOAPLICAÇÕES EM ARQUITETURA E URBANISMOAlberto Joseph Khouri

INTERVENÇÕES DE BAIXO IMPACTO PARA MELHORIA URBANÍSTICA EAMBIENTAL DE ASSENTAMENTOS INFORMAIS EM ÁREAS DE MANANCIAISAna Clara de Souza Santana

MULHER, CIDADE E ARQUITETURA NAS REPORTAGENS DE O CRUZEIROBeatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes

FORMAS DE MORAR NOS ESTADOS UNIDOS: RICHARD NEUTRAFelipe Kilaris Gallani

OS MORADORES DOS CONJUNTOS HABITACIONAIS DA FAVELA NOVAJAGUARÉ E SUAS RELAÇÕES COM A POPULAÇÃO LOCALLais Boni Valieris

ANÁLISE DE LUGARES PÚBLICOS NA METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA:ESTUDO DE CASO SOBRE A PRAÇA SÍLVIO ROMERO, SÃO PAULO - SPTeresa Cristina Barroso Vieira

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IC ANUÁRIO 2017

Leandro MedranoPresidente da Comissão de Pesquisa da FAUUSP

O desenvolvimento de uma pesquisa de Iniciação Científica (IC) é atividadede grande importância na formação do estudante no Ensino Superior. Poisalém de introduzir o aluno aos métodos e técnicas dos trabalhos acadêmicose estimular o surgimento de futuros pesquisadores e/ou professores, seusresultados muitas vezes são essenciais às pesquisas de docentes, laboratóriosou grupos de pesquisas.

A Comissão de Pesquisa da FAUUSP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismoda Universidade de São Paulo) tem procurado incentivar a realização deIniciações Científicas, apesar de nos últimos anos essa modalidade depesquisa ter sofrido cortes significativos das agências de fomento em relaçãoàs bolsas disponibilizadas. A divulgação de informes relacionados às ICs, acriação da modalidade “IC sem Bolsa” e a ampla difusão do SIICUSP(Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP) são alguns exemplosde ações da CPq FAUUSP que buscam inserir a Iniciação Científica nocotidiano acadêmico dos alunos de graduação da nossa Faculdade.

O presente anuário contém os trabalhos selecionados para a EtapaInternacional do 23º SIICUSP. Sua publicação pretende estimular odesenvolvimento de novas Iniciações Científicas e publicizar as pesquisasrealizadas pelos alunos e professores da FAUUSP.

Boa Leitura!

Prof. Leandro MedranoPresidente da Comissão de Pesquisa da FAUUSP

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do24o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP

8 ResumoA importância da análise da ação do vento em construções e meio urbanotorna-se cada vez maior nos estudos de engenharia civil e arquitetura,carecendo de túneis de vento precisos e que representem melhor os diversosambientes. Neste artigo descreve-se o processo de busca por melhorias noTúnel de Vento de Camada Limite Atmosférica da Faculdade de Arquitetura eUrbanismo da Universidade de São Paulo/FAUUSP, descrevendo a situaçãoinicial do equipamento sobre o qual trabalhamos e as mudanças que ele estásofrendo nos últimos meses devido a dois projetos de iniciação científica. Emseguida, descrevemos o comportamento do vento e como entendê-losegundo alguns parâmetros, os quais comporão parte das nossas análisesposteriores. Apresenta-se, também, o método dos elementos de Counihan eos resultados obtidos pela sua aplicação, com a construção da barreiraacastelada, dos geradores de vórtices e das rugosidades, os quais deverãonos auxiliar na geração de uma camada limite atmosférica mais condizente, afim de obterem-se resultados mais precisos em futuros testes sobre ação devento. Por fim, mostram-se os resultados dos primeiros testes feitos com ogerador de vórtice, buscando indicar a real influência que os elementostiveram no fluxo do ar.

Palavras-chaveVento; Ventilação; Conforto Ambiental; Túnel de Vento, Camada LimiteAtmosférica

CONSTRUÇÃO DA CAMADA LIMITEATMOSFÉRICA EM TÚNEL DEVENTO – APLICAÇÕES EMARQUITETURA E URBANISMO

Alberto Joseph Khouri

Orientadora: Alessandra Rodrigues Prata Shimomura

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22

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1.INTRODUÇÃO

As informações presentes nesse artigo fazem referência ao projeto de IniciaçãoCientífica - intitulado “Construção da Camada Limite Atmosférica em Túnel deVento – Aplicações em Arquitetura e Urbanismo”, realizado pelo Bolsista AlbertoJoseph Khouri. O projeto de pesquisa insere-se no projeto intitulado “Túnel deVento de Camada Limite Atmosférica. Pesquisas em Arquitetura e Urbanismo eaplicações potenciais em outras áreas do conhecimento”, coordenado pela Profa.

Dra. Denise Duarte. Juntamente a esta pesquisa, corre em paralelo o projeto deIniciação Científica da aluna Bruna Dallaverde de Sousa; sendo que esta pesquisatrabalhará em conjunto para definição de elementos que compõem os ensaios aserem adotados para pesquisas que envolvem a questão da ventilação naturalpara arquitetura e urbanismo.

Como fins deste estudo, espera-se modelar uma série de elementos, entre eles:barreira acastelada, gerador de vórtices e rugosidades, os quais contribuirão paraa geração de uma Camada Limite Atmosférica (CLA) que adeque-se asnecessidades dos usuários. Ou seja, como fruto deste projeto, espera-se que,com o uso destes elementos, possam-se simular diferentes terrenos, os quaiscaracterizam o entorno de modelos de ensaio, a fim de que haja maior precisãoquanto ao fluxo de vento gerado pelo túnel de vento sobre as maquetes.

Para a definição das medidas e características desteselementos, usou-se o método de modelagem de Counihan,referência na área de túneis de vento. Algumas adaptaçõesdeverão ser feitas para o túnel de vento em análise, vistoque o autor adota certos fatores de escala entre a CLA quese deseja produzir e as medidas dos elementos, abrindotambém espaço para que se permitam alterações quantoaos valores obtidos, adequando-se aos diferentes túneis devento e suas peculiaridades.

Por fim, o projeto prevê alguns testes com estes elementos,adotando diversas composições entre eles no túnel devento, para assim avaliar os diferentes efeitos que ascombinações podem ter. Dentre eles serão feitos ensaios deerosão, além de medidas de pressão em diferentes seçõesdo túnel de vento, com a finalidade de se desenhar perfis develocidade e pressão, podendo-se observar as variações aolongo do equipamento e com as diferentes configurações.

DESCRIÇÃO DO TÚNEL DE VENTO – FAUUSP

O túnel de vento (Figura 1), objeto de estudo destapesquisa, localizado no LAME - Laboratório de Modelos eEnsaios foi fruto de um projeto iniciado em 2005, numaparceria LABAUT/LAME, com orientação da Prof. Dra. DeniseDuarte e co-orientação do Prof. Dr. Reginaldo Ronconi. Comum projeto de Iniciação Científica deu-se continuidade naconstrução deste equipamento, o qual foi entregue emmeados de 2008.

Figura 1: Imagem do túnel de vento.Fonte: Denise Duarte (2008 e 2013)

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Objetivando estudos nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, Engenharia Estrutural,entre outros, optou-se pela construção de um túnel de vento do tipo N.P.L. -National Physics Laboratories com circuito aberto. Ou seja, o ar entrará por umacontração, localizada numa das extremidades, passa pelos módulos do túnel devento, onde são instalados os elementos de geração da CLA e os modelos deensaio, e, por fim, sai pelo conjunto difusor/ventilador, retornando para aatmosfera.

O motor instalado no túnel, em sua configuração atual, é capaz de produzir umfluxo de até 10 m/s aproximadamente, mas, com o incremento dos elementosgeradores de vórtices, de um novo módulo de ensaio e de uma colmeia, espera-se que o valor máximo de velocidade tenha uma redução. Apesar disso, estima-se que as velocidades que o túnel de vento atingirá ainda serão suficientes paraseus fins, não havendo perdas significativas.

2.1. Dimensões do túnel de vento

Visto o fato do túnel de vento da FAUUSP estar em processo de melhoria emudança, suas medidas serão alteradas após a construção do novo módulo,assim como pelo incremento da colmeia, sendo necessária a descrição dele tantoantes quanto depois das reformas previstas. Mas, como a mudança que maisinfluencia no nosso estudo é a instalação de um novo módulo, a sua diferençaestará apenas no comprimento.

Cada módulo do túnel tem 1,61 m de comprimento por 1,05 m de altura e 1,05m de largura externa, com paredes de espessura de 3 cm. Com isso, é notávelque a seção de testes do túnel seja quadrada com aproximadamente 1 m², vistoque a largura e altura internas são de 0,99 m. A contração apresenta 2,09 m decomprimento, enquanto o difusor tem apenas 1,36 m e o ventilador 0,6m,totalizando, atualmente, 7,27 m, mas chegando a 8,88 m após as alterações.Todo o equipamento está apoiado sobre uma estrutura metálica.

Para os cálculos futuros, os fatores mais relevantes dentre estas medidas são: ocomprimento dos módulos, contando que um deles não poderá ser utilizadopara colocação de elementos, já que estará reservado para se posicionar osmodelos a serem ensaiados; a altura interna dos módulos, sendo esta umalimitante para a altura da camada limite atmosférica a ser gerada; e, a largurainterna dos módulos, visto que este fator determina a quantidade de geradoresde vórtices que poderão ser posicionados, um ao lado do outro, no túnel.

Desta forma, temos duas situações possíveis: a do túnel com 3,22 m (Figura 2) ecom 4,83 m (medida após ser acrescentado um módulo) de comprimento dosmódulos somados, ambos com 0,99 m de altura e largura.

Figura 2: Geometria inicial dotúnel de vento da FAUUSP.Fonte: Alex Uzueli (2006).

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22

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3. CLA – CAMADA LIMITE ATMOSFÉRICA

A principal finalidade do túnel de vento da FAUUSP é a simulação de modelos,como edifícios ou pequenas regiões urbanas, buscando estudar seuscomportamentos sobre a ação do vento, analisando fatores como ventilaçãonatural, conforto de pedestres, dispersão de poluentes, entre outros. Para tal,precisa-se ter em mãos um túnel de vento que proporcione uma boa precisãodas características do fluxo, dependendo do tipo de terreno em torno do modeloe dos objetivos de quem o manuseia. Sendo assim, devemos elaborá-lo demaneira a produzir uma camada limite atmosférica adequada, a qual é o pontoprincipal no desenvolvimento deste estudo.

Primeiramente, deve-se ter claro que a CLA é a região da troposfera que sofreefeito direto das características superficiais da Terra, principalmente pelo arrastocausado pelas rugosidades ali presentes, tendo sua natureza alterada para cadaregião sobre a qual ela ocorre (LOREDO-SOUZA et al, 2004, p. 1). Podemos listartambém alguns aspectos que descrevem a CLA, como por exemplo, a alturagradiente ou espessura da CLA (äääää), o deslocamento do plano-zero (ddddd) e arugosidade aerodinâmica (yoyoyoyoyo), Figura 3.

A altura gradiente é um fator que descreve o quão espessa é a CLA, avaliandoseu desenvolvimento e até que ponto o fluxo pode atingir. Com isso, percebemosque a äääää depende da rugosidade da superfície local, posto que, quanto maisrugoso for o terreno, mais difícil será para a CLA se propagar, tendo menoresvelocidades e menor desenvoltura. Outro ponto fundamental nessa variável é ofetch, termo em inglês que representa a pista de sopro que o vento tem abarlavento, para poder se desenvolver na superfície, pois com maiores distânciaspara percorrer, mais tempo/espaço o fluxo terá para ampliar sua CLA.

Para conseguir explicar o deslocamento do plano-zero, faz-se essencial descreveruma divisão feita na CLA. O que afeta de fato o fluxo são as tensões superficiais(tensões aparentes de Reynolds ou tensões turbulentas), as quais causam umaperda de quantidade de movimento do fluido. A partir disso, podemos realizaruma separação da camada limite em duas partes: a camada superficial e acamada de Ekman.

A primeira representa a região de velocidades mais estável (e menor) e detensões mais constantes, variando em até 10% dos valores médios. Nesta região,pode-se identificar uma faixa na qual o transporte molecular se sobrepõe aotransporte turbulento, devido às baixas velocidades, definindo a altura destasubcamada em relação ao chão como sendo o deslocamento do plano-zero (ddddd).É intuitivo que, se tratarmos de uma área lisa como, por exemplo, campo abertoou o mar, estaremos em um caso que o ddddd tende a zero, pois as rugosidades nãosão significativas. Entretanto, para zonas urbanas ou florestas, devemos notar que,

Figura 3: : : : : Desenho ilustrativo daCLA mostrando linhas dodeslocamento do plano-zero eda rugosidade aerodinâmicasem escala.Fonte: Arquivo pessoal.

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devido aos grandes obstáculos, teremos uma região próxima ao chão onde oar tende a se estagnar e o fluxo cai bruscamente. Consequentemente, o valorde ddddd cresce e assume a altura média das formas de rugosidade do local,tomando como premissa que o vento passa a correr livremente apenas emcotas mais altas (acima dos obstáculos).

Por último, a rugosidade aerodinâmica dimensiona o espaço no qual avelocidade média do vento tende a zero, ou seja, é a altura abaixo da qual ofluxo de ar se aproxima de valores nulos. Esse termo caracteriza os diversostipos de terreno, uma vez que ele está diretamente ligado à quão rugosa é asuperfície e o quanto ela consegue barrar o vento que a atinge, inferindo que,locais com obstáculos mais aglomerados e mais altos impedem muito mais aação do vento nas proximidades do solo.

Pode-se notar que, levando em consideração a definição de deslocamento doplano-zero, esta nova zona está abaixo de ddddd, já que neste as velocidades nãosão tão próximas de zero, apesar de serem baixas, logo, não sofre mais tanto oefeito das rugosidades se comparado àquela. Fazendo agora uma comparaçãoentre eles, quando o vento corre sobre algo liso, concluímos anteriormente queo valor de ddddd tende a zero, portanto, a rugosidade aerodinâmica também seanula, estando ambas praticamente juntas. Porém, em lugares com maisobstruções, o ddddd tende a crescer mais e se fixar acima de yoyoyoyoyo, havendo umdesnível entre eles.

Retomando a divisão feita anteriormente sobre a CLA, falta explicar a camadade Ekman, a qual se estende para toda região acima da camada superficial.Nela, as tensões superficiais, aquelas que causam o decréscimo da quantidadede movimento do fluxo, começam a perder o efeito e impactam menos sobreo escoamento, até chegarem à altura gradiente, onde se anulam. Desse modo,o vento pode atingir sua máxima velocidade, se propagando livremente,sofrendo apenas efeitos das forças de pressão e algumas influências darotação da Terra, mas que são pequenos se comparados com os asadversidades próximas do solo.

4. DIMENSIONAMENTO DOS ELEMENTOS

Os elementos (barreira acastelada, o gerador de vórtice e as rugosidades)dimensionados nesta pesquisa têm como objetivo gerar uma CLA apropriadapara o ensaio de modelos no túnel de vento. Logo, utilizando o método demodelagem de Counihan, foram modelados estes elementos, observando asrelações de proporcionalidade.

A utilização destes elementos possibilitará o desenvolvimento mais rápido da CLA,necessitando de menos espaço para que ela atinja sua plenitude. Naturalmente,uma CLA pode alcançar seu estado de plena desenvoltura, mas, para tal, o ventoprecisa de uma pista de sopro muito grande, o que é um limitador no túnel devento da FAUUSP. Tendo essa dificuldade em mente, alguns métodosdesenvolvidos para se obter um crescimento acelerado da CLA permitem quemuitos túneis menores consigam oferecer resultados mais precisos e consistentes.Como exemplo, para Counihan, a maneira de se acelerar este processo foi pormeio da construção de geradores de vórtices e uma barreira acastelada a

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montante, além de utilizar rugosidades a jusante destes outros objetos paracaracterizar o terreno simulado, relatando em seus estudos (COUNIHAN, 1969 p.197 e 1971, p. 637).

É notável em seus relatos que, para o dimensionamento dos elementos, Counihantinha bem definida qual seria a altura desejada para sua camada limite, sendo estafundamental para se prosseguir com o projeto. Nos textos, o autor antecede asanálises dizendo que a altura da CLA desejada é de 6 in., aproximadamente 0,15m, o que equivale a um pouco mais de 80% da altura de seu túnel de vento.Para o nosso túnel de vento, com o auxílio do engenheiro Paulo Jabardo,pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas/IPT, decidiu-se adotar umaaltura de CLA de 0,60 m, aproximadamente 60% da altura dos módulos,considerando-se que as análises futuras seriam feitas principalmente para o túnelcom 3 módulos, visto que essa será sua configuração ideal futuramente.

4.1. Barreira Acastelada

A barreira acastelada tem um papel bem importante e definido, o de causar umdeslocamento vertical inicial do fluxo que vem da contração, deslocando a CLApara cima. Com isso, busca-se quebrar a homogeneidade do vento que vem dacontração, visto que este tem um perfil muito homogêneo, demorando mais parase desenvolver plenamente. Logo, a barreira acastelada irá criar uma perturbaçãoinicial nesse fluxo e contribuir para que ele tenha uma grande distância apercorrer já com uma heterogeneidade, o que gera turbulências.

É notável que esse elemento não possa ser posicionado imediatamente na saídada contração, uma vez que ele perderia sua função e apenas atrapalharia nobom funcionamento do túnel. Isso se deve ao fato que, nessa posição, a barreiraacastelada causaria uma grande perda de carga no fluxo, diminuindo em muitoas velocidades. Além disso, o vento vindo da contração adaptar-se-ia aoobstáculo, contornando-o por cima e, desta forma, não sofreria a perda dehomogeneidade esperada.

Empiricamente, Counihan (1969, p. 203) chegou numa relação que a barreiraacastelada deve ser posicionada, a partir da contração, a uma distância de 1/3 daaltura da CLA, o que equivale a 0,20 m para nosso caso. Apesar disso, ele relataque, caso o túnel em estudo não seja tão comprido e precise aproveitar melhoro espaço, a barreira acastelada pode ser aproximada da contração sem que hajagrandes mudanças no resultado final, o que poderá ser avaliado futuramente. Jápara a altura desse elemento, foi adotado um fator de escala de 1/8 da altura daCLA, representando 0,075 m. Caso se faça uma barreira maior, haverá umaumento na intensidade das turbulências e nos defeitos do perfil de velocidades,provavelmente devido ao espaço localizado a jusante, logo atrás da barreiraacastelada, no qual o ar a baixa pressão gera os redemoinhos pelodeslocamento das correntes de vento.

4.2. Geradores de Vórtices

Segundo Counihan (1969, p. 200-204), os geradores são de extremaimportância principalmente nos casos em que o túnel de vento apresentaturbulência constante em toda vertical, assim como naqueles em que aturbulência varia de máxima nas proximidades do chão a zero na altura dos

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geradores. Tendo isso em vista, os geradores elípticos, considerados de melhorformato pelo autor, podem causar, justamente pelo seu perfil, perturbações nasregiões de baixa turbulência (no topo dos geradores), e, ao mesmo tempo,deixando as regiões mais próximas do piso se desenvolver livremente, visto queelas têm maior importância nos ensaios.

Este tipo de gerador em formato de cunha elíptica, se visto lateralmente, tem oformato de 1/4 de elipse, com sua altura sendo o dobro de seu comprimento debase. Visto por cima, pode-se notar o formato de um triângulo isósceles, sendo osdois lados iguais muito maiores que o terceiro, posto que o ângulo entre eles éde pequena ordem, variando de 10o a 12o.

Todos os planos horizontais apresentam este mesmo formato, mantendoobrigatoriamente o mesmo ângulo no ponto de incidência do vento, o quegarante que os geradores não causem nenhuma assimetria no fluxo, evitandoperturbações direcionadas em um sentido. Para assegurar este estado decompleta simetria, deve-se também posicioná-los a uma mesma distância entreseus eixos centrais, garantindo que não haja sobreposição de efeitos em umaseção maior ou menor do que em outra.

A decisão de adotar pequenos ângulos para os geradores foi justificada porCounihan (1969, p. 203) pelo fato de que assim se obteria uma melhordistribuição dos vórtices na vertical, não os concentrando na base da pista desopro. Após alguns testes com geradores de 5º e 6º de semiângulo, foi provadoem seu estudo que a perda de uniformidade lateral do fluxo é maior paramaiores ângulos, logo, se utilizássemos o valor de 5º, deveríamos aproximar maiso geradores do que se adotássemos 6º.

Somando-se a isso, a preocupação em manter o ângulo constante em todos osplanos horizontais se baseia na tentativa de produzir turbulências constantes aolongo de toda altura dos geradores. É notável que diferenças ao longo da verticalpudessem deixar regiões com excesso de perturbações, enquanto outras teriamefeitos muito menores sobre o todo.

O espaçamento entre os geradores também é fator essencial para odesenvolvimento adequado da CLA, visto que o posicionamento adequado delesinfluencia diretamente na uniformidade do fluxo. Logo, deve-se determinar umlimite para a variação da turbulência ao longo de toda vertical, a qual foi delimitadaa 1% para Counihan (1969, p. 203). Outro ponto crucial em relação a esteposicionamento é que, caso os geradores estejam muito próximos, eles passam acanalizar o fluxo, afetando a frequência espectral da turbulência. Portanto, adisposição ideal dos elementos seria a mais espaçada possível, porém, respeitandoos limites adotados para a variação da turbulência, citados anteriormente.

Sabendo-se que a altura dos geradores equivale à altura da CLA desejada e queseu comprimento vale metade desta, conclui-se que os geradores do túnel devento da FAUUSP devem ter 0,60 m e 0,30 m para cada uma das respectivasdimensões. Além disso, para se estipular a distância ideal entre os geradores,Counihan (1969, p. 203) estudou os efeitos dessa variável para diferentesposições entre dois geradores, tanto para um par com ângulos de 10o quantopara um com 12o, chegando à conclusão de que, a melhor combinação seria degeradores com semiângulo de 6o e espaçamento da ordem de 0,5 a 0,6 alturasda camada limite desejada. Para o projeto retratado neste artigo, adotou-se o valor

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de 0,55, visto que a distância entre os eixos dos geradores seria de 0,33 m,possibilitando o posicionamento exato de três geradores.

Por fim, o último fator a ser determinado seria a distância dos geradores emrelação à barreira acastelada, a qual está a montante deles e deve ter seuposicionamento fixado previamente a esta etapa. Em seu trabalho, Counihan(1969, p. 203-204) avalia que este fator é obtido praticamente de formaarbitrária, variando a posição dos geradores até se obter o melhor resultadopossível, fazendo a ressalva que, se os dispositivos estiverem muito próximos, istopoderia causar problemas nas turbulências rentes ao chão. Levando tudo isto emconta, o pesquisador recomenda que os geradores estejam a 5/6 da altura daCLA a jusante da barreira, sendo que, caso sejam aproximados, haverá perdas naintensidade da turbulência. Ou seja, para o túnel de vento da FAUUSP, osgeradores estarão a 0,50 m de distância da barreira acastelada e a,aproximadamente, 0,70 m da contração.

4.3. Rugosidades

Na tentativa de simular um terreno de maneira mais fiel à realidade, utilizam-se asrugosidades para representar as características do contorno do modelo, sendo umfator determinante na forma com que o fluxo chega à seção de ensaio. Cada tipode região apresenta diferentes ocupações e, por isso, deve-se estipular mais deuma disposição das rugosidades, podendo simular vários ambientes em nossotúnel de vento.

Um dos principais parâmetros que iremos variar conforme o tipo de terreno é arugosidade aerodinâmica. Se desejarmos simular locais abertos, sem muitasedificações e com relevos mais constantes, como em campos lisos ou nasencostas, é fácil perceber que a superfície ali presente causa pouco efeito sobre ovento, concluindo que as rugosidades serão pequenas ou, em alguns casos,desnecessárias, tendo um yoyoyoyoyo (rugosidade aerodinâmica) tendendo à zero. Já paraos grandes centros urbanos, ou até mesmo em áreas suburbanas, as influênciasdas construções locais afetam sensivelmente o fluxo de vento, sendo essencial autilização de rugosidades para caracterizar estas áreas, o que não é algo intuitivocomo na outra situação descrita acima.

O método de analise descrito por Counihan (1971, p. 638) tem base no trabalhode Perry e Joubert (1963) para determinação da rugosidade aerodinâmica e odeslocamento do plano-zero, na situação bidimensional. Ele descreve que, se arelação da velocidade média local sobre a velocidade de corte for plotada contra ologaritmo natural da distância em relação ao piso, devemos obter uma reta, caso dddddseja nulo. Se esta condição não for satisfeita, faz-se necessário assumir diversosvalores para ele até que se ache uma variação linear para o gráfico. Em seguida,extrapolando essa relação com o logaritmo natural da distância vertical ao plano-zero, podemos chegar ao valor do logaritmo natural do yoyoyoyoyo.

Já para o caso tridimensional, Counihan (1971, p. 638) relata a necessidade de sedeterminar os perfis de velocidade em diversas posições, obtendo, assim, diversosvalores de rugosidade aerodinâmica, chegando a um valor médio. Com esse valorpodemos utilizar o método bidimensional descrito no parágrafo anterior.

Com os resultados obtidos por Counihan (1971, p. 639), nota-se pelo perfil develocidade média que, próximo às rugosidades, a velocidade se mantém

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aproximadamente constante, mas, acima de uma vez e meia a altura dasrugosidades, ela tende a crescer rapidamente e tende a velocidade de correntelivre. A partir disso, pode ser feita uma aproximação por uma curva, adotandovelocidade nula na altura do deslocamento do plano-zero, resultando em umafunção para tal.

Outro fator importante para o dimensionamento das rugosidades é a densidadedo elemento sobre o do túnel, sendo a área de rugosidade (ArArArArAr) sobre a áreatotal do piso (AAAAA). Analisando os resultados apresentados por Counihan (1971, p.640), em que ele faz uma comparação entre a relação de áreas descrita acima eos valores de rugosidade aerodinâmica sobre a altura das rugosidades ou odeslocamento do plano- zero e o mesmo denominador, duas situações ficamevidentes: quando a área de rugosidade sobre a área total vale zero ou um. Naprimeira situação temos o túnel sem rugosidade, o que proporciona o menorvalor possível de yoyoyoyoyo. Essa condição se estende para o segundo caso, em que opiso todo está coberto por rugosidades, logo, tendo uma superfície lisa e,considerando as faces desse elemento com mesma textura que o chão do túnel,com mesmo yoyoyoyoyo. Por outro lado, o deslocamento do plano-zero se comporta deoutra maneira: na primeira situação, este fator tende a zero, visto que não hásuperfície rugosa, mas, quando a relação se aproxima de um, o ddddd aproxima-se deseu máximo que se assume igual à altura das rugosidades, visto que se cria umnovo plano liso, onde não há forças de cisalhamento, logo, o escoamento fluilivremente nesta nova composição.

Além disso, foi feita uma divisão de dois tipos de regime de fluxo, A e B. QuandoAr/AAr/AAr/AAr/AAr/A varia de zero a 0,25, aproximadamente, nota-se na literatura que, tanto arelação da rugosidade aerodinâmica média quanto o deslocamento do plano-zero sobre a altura das rugosidades (hhhhh) cresce, sendo que o o/ho/ho/ho/ho/h chega a seuvalor máximo. Nesta condição, Counihan (1971, p. 640) avalia que cadaelemento de rugosidade está contribuindo da melhor forma possível com oconjunto, incrementando turbulência ao sistema, e eliminando efeitos secundáriosno fluxo, o que poderia atrapalhar na formação da CLA. Já para a situação emque Ar/A Ar/A Ar/A Ar/A Ar/A > 0,25, a proximidade entre cada elemento rugoso acaba por reduzir oefeito individual das outras peças, proporcionando condições melhores para osfluxos secundários se desenvolverem. Quando a relação de Ar/AAr/AAr/AAr/AAr/A tende a um,pode-se até considerar que a corrente de ar produzida no túnel passa por cimadas rugosidades, sem sofrer nenhuma perturbação pela presença delas,deixando os pequenos espaços entre elas livres para os fluxos diversos. Com issoem mente, devemos desconsiderar as situações em que Ar/AAr/AAr/AAr/AAr/A é maior que 0,25,assumindo apenas valores abaixo disso e acima de 0,1, o que representa bemregiões urbanas e suburbanas, segundo Counihan (1971, p. 640).

Por fim, Counihan (1971, p. 641) menciona a relação entre o/h o/h o/h o/h o/h com Ar/AAr/AAr/AAr/AAr/A e h/h/h/h/h/fffff, sendo fffff o fetch citado anteriormente. Variando tanto a altura das rugosidadesquanto o fetch, chegou-se na seguinte expressão:

Equação 1: Equação 1: Equação 1: Equação 1: Equação 1:

Sendo que, aproximando-se da condição de equilíbrio, em que h/fh/fh/fh/fh/f tende a zero,temos:

Equação 2: Equação 2: Equação 2: Equação 2: Equação 2:

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O que vale, apenas, para valores de Ar/AAr/AAr/AAr/AAr/A entre zero e 0,25.

Com essas expressões, Counihan (1971) pode fazer uma aproximação docomportamento de o/ho/ho/ho/ho/h com a variação de h/fh/fh/fh/fh/f se comportar de maneira linear,considerando que não havia necessidade de se chegar a uma relação maisprecisa neste estudo.

Segundo Davis (1970), citado no texto de Counihan (1971, p. 642), para umadensidade de rugosidade próxima a 0,15, podemos aproximar ?o/h = (Ar/2A),em situações em torno do equilíbrio. Somando-se a isso, com seus resultados, oautor concluiu que as densidades iguais a 0,15 e 0,20 foram as que melhor seadaptaram às equações acima, quando h/fh/fh/fh/fh/f estava em torno de 0,001, e que,para conseguir atingir uma condição que se assemelha ao equilíbrio, precisariade uma distância de mil vezes a altura da rugosidade.

Considerando a situação do túnel de vento da FAUUSP com três módulos,teríamos um fetch de 2 m e, além disso, considerando uma Ar/A = 0,15,

chegou-se a um valor plausível de 0,02 m de altura para asrugosidades, com base quadrada de 0,03 m de lado. Cada fileiraestará espaçada das outras por 0,03 m, assim como asrugosidades estarão separadas, na mesma fileira, em 0,06 m. Nototal, serão necessários 330 bloquinhos de rugosidade para estasituação descrita. Vale ressaltar que, é preciso que haja umcomprimento de aproximadamente mil vezes a altura doselementos rugosos para que a CLA atinja um estado deequilíbrio. Para o nosso caso, onde não há dimensões suficientespara tal, construiremos os elementos com apenas,aproximadamente, 100 vezes a altura de nossas rugosidades, afim de estudar quais serão os efeitos destas e analisar maneirasde aprimorá-las para melhor funcionamento.

5. CONSTRUÇÃO DOS ELEMENTOS

Como afirmado anteriormente, construiremos as peças referentesa uma CLA de 0,60 m de altura, projetando para o túnel de trêsmódulos (4,83 m de comprimento). Será necessário construiruma barreira acastelada de 0,075 m de altura e 0,99 m delargura, além de três geradores de vórtice com formato de cunhaelíptica, sendo um quarto de elipse com 0,60 m de altura e 0,30m de comprimento, com base triangular de 0,063 m de largura eângulo de incidência do vento de 12o, assim como serãoproduzidas 330 rugosidades de base quadrada de 0,03m delado, com altura de 0,02 m.

A construção e disposição dos elementos no túnel de vento daFAUUSP terá como meta chegar ao modelo mostrado na Figura4a. Apesar disso, com a configuração atual do túnel de vento, oqual ainda está com apenas dois módulos, impede que seposicionem todas as rugosidades necessárias. Logo, com todosos elementos construídos e posicionados, teremos umaconfiguração que segue o que está mostrado na Figura 4b.

Figura 4: Representação de dois possíveisesquemas para o túnel de vento com oselementos instalados.Fonte: Arquivo pessoal.

a.a.a.a.a. b.b.b.b.b.

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A barreira acastelada foi produzida com uma chapa de madeira de 0,009 m deespessura, tendo os 0,075 m de altura e 0,99 m de largura (Figura 5). Já asrugosidades foram feitas com uma chapa de madeira de 0,02 m de espessura,atendendo a altura estabelecida para os bloquinhos, e sendo cortadas emquadrados com 0,03 m de lado (Figura 6).

No que diz respeito aos geradores de vórtices, foram produzidas três peças,tendo cada uma 0,30 m de comprimento por 0,60 m de altura (Figura 7). Elasforam modeladas no LAME pela CNC, máquina que produz peças de diversosmateriais, sendo que utilizamos duas placas de isopor acartonado de 0,05 m deespessura, o qual é facilmente moldado e apresenta bom acabamento. Osgeradores foram produzidos em seis metades pela CNC, as quais foram coladas ereceberam acabamento em massa corrida, produzindo uma superfície mais lisapara o vento.

Vale ressaltar que, para a produção de todos os elementos, obteve-se ajuda doLAME para o manuseio das máquinas, além de informações para a seleção dosmateriais mais adequados. Todos os elementos foram parafusados em placas demadeira de 0,004 m de espessura, a fim de manter eles estáveis e evitar que aforça do vento deslocasse os objetos.

Figura 5: Imagens das barreirasacasteladas que foramconstruídas, posicionadas dentrodo túnel.Fonte: Arquivo pessoal.

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Figura 6: Imagens dasrugosidades que foramconstruídos, colocados dentrodo túnel.Fonte: Arquivo pessoal.

Figura 7: Vista dos geradoresde vórtices posicionados notúnel de vento com os outroselementos.Fonte: arquivo pessoal.

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6. PRIMEIROS TESTES

Com a construção dos elementos finalizada, deu-se início a uma série de testes notúnel de vento da FAUUSP. O primeiro que está sendo feito, no momento, consisteem instalar um manômetro de fio quente no meio da seção de ensaios do túnel,medindo a velocidade e a temperatura do ar instantânea. Neste ensaio, apenas, ogerador de vórtice é instalado em comparação ao túnel de vento sem nenhumelemento.

De partida, instalou-se o equipamento fazendo um furo no piso do túnel de vento,no último módulo, permitindo-se que o medidor do fio quente passasse. Estemedidor tem altura variável, possibilitando medir até a metade da altura da seção,logo, nos testes, foi-se variando a altura de 5 cm a 50 cm em relação ao chão,mudando de cinco em cinco centímetros.

Como a velocidade do vento medida varia muito para uma mesma rotação, ométodo de medida consistiu em pegar o menor e o maior valor de velocidade paracada ponto, obtendo, assim, um valor médio. Vale ressaltar que valores muitodiscrepantes foram desconsiderados, visto que não condiziam com os padrões vistose podem representar tanto uma perturbação externa ao túnel quanto erro na leiturado equipamento.

Os dados acima citados foram coletados para três valores de rotação distintos, 300,600 e 900 rpm, visando analisar as diferenças no fluxo para valores de rotaçãobaixos, médios e altos do túnel em questão. Após a mudança de rotação ouqualquer modificação feita no túnel de vento, deixou-se um período de estabilizaçãodo fluxo, por volta de 30 segundos, diminuindo a influência externa nos dados.

Os resultados já obtidos podem ser visto nas tabelas de 1 à 4:

Tabela 2 – Velocidade máximae mínima medida na seção deensaio do túnel sem geradores.

Tabela 1 – Velocidade eTemperatura na seção deensaio do túnel sem geradores.

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21Pode-se notar que, com os resultados para o túnel de vento da FAUUSP semelementos e com a inserção dos geradores de vórtices, ouve uma queda navelocidade do fluxo nesta seção de estudo, a qual se localiza após as posiçõesdos elementos. Para a menor rotação, houve uma queda de 13 % na maiormédia de velocidade observada, enquanto para a rotação intermediária ocorreuuma diminuição de 17 % entre as médias mais altas e, por fim, para o fluxo maisintenso, a redução foi de 18 %. Além disso, pode-se notar uma pequenaelevação na temperatura do ar em ambos os casos, sendo que se variou mais nasituação com os geradores de vórtices.

Esses resultados parciais podem indicar algumas conclusões já esperadas, comopor exemplo, que a utilização dos elementos construídos causaria umasignificativa queda na quantidade de movimento do fluxo, o que nos leva aredução de velocidade observada acima. Além disso, possivelmente pelo maioratrito sofrido pelo vento no contato com os elementos, houve uma maiorvariação da temperatura do ar na situação com os geradores de vórtices emrelação à outra mostrada.

Os futuros testes, com as diversas configurações dos elementos, poderão afirmaras hipóteses citadas aqui, comprovando o que já era esperado no túnel devento. Essas configurações testarão o túnel com das seguintes maneiras: apenascom barreira acastelada; apenas com as rugosidades; apenas com geradores devórtices e barreira acastelada; apenas com geradores de vórtices e rugosidades;apenas com rugosidades e barreira acastelada; com todos os elementos.

Tabela 4 – Velocidade máximae mínima medida na seção deensaio do túnel com geradores.

Tabela 3 – Velocidade eTemperatura na seção deensaio do túnel com geradores.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS-UZUELI, A. Pesquisa, projeto e construção de ferramentas de ensaio para modelos físicos emPesquisa, projeto e construção de ferramentas de ensaio para modelos físicos emPesquisa, projeto e construção de ferramentas de ensaio para modelos físicos emPesquisa, projeto e construção de ferramentas de ensaio para modelos físicos emPesquisa, projeto e construção de ferramentas de ensaio para modelos físicos emconforconforconforconforconforto ambiental – Túnel de Vto ambiental – Túnel de Vto ambiental – Túnel de Vto ambiental – Túnel de Vto ambiental – Túnel de Vento. Relatório Final de Iniciação Científica – Pento. Relatório Final de Iniciação Científica – Pento. Relatório Final de Iniciação Científica – Pento. Relatório Final de Iniciação Científica – Pento. Relatório Final de Iniciação Científica – PIIIIIBBBBBICICICICIC. Orientadora:Prof. Dra. Denise Duarte. Co-orientador: Prof. Dr. Reginaldo Ronconi. São Paulo: FAUUSP. 2007.

-LOREDO-SOUZA, A. M.; SCHETTINI, E. B. C.; PALUCH, M. J. Simulação da Camada LimiteSimulação da Camada LimiteSimulação da Camada LimiteSimulação da Camada LimiteSimulação da Camada LimiteAtmosférica em Túnel de VAtmosférica em Túnel de VAtmosférica em Túnel de VAtmosférica em Túnel de VAtmosférica em Túnel de Ventoentoentoentoento. ABCM – Associação Brasileira de Engenharia e Ciências Mecânicas,IV Escola de Primavera de Transição e Turbulência, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,Porto Alegre, 2004.

-COUNIHAN, J. An Improved Method of Simulating an Atmospheric Boundary Layer in a Wind An Improved Method of Simulating an Atmospheric Boundary Layer in a Wind An Improved Method of Simulating an Atmospheric Boundary Layer in a Wind An Improved Method of Simulating an Atmospheric Boundary Layer in a Wind An Improved Method of Simulating an Atmospheric Boundary Layer in a WindTTTTTunnelunnelunnelunnelunnel. Atmospheric Environment. Pergamon Press, vol. 3, pp. 197 – 214, 1969.

-COUNIHAN, J. WWWWWind Tind Tind Tind Tind Tunnel Determination of the Roughness Leght as a Funnel Determination of the Roughness Leght as a Funnel Determination of the Roughness Leght as a Funnel Determination of the Roughness Leght as a Funnel Determination of the Roughness Leght as a Function of the Function of the Function of the Function of the Function of the Fetchetchetchetchetchand the Roughness Density of Three-Dimensional Roughness Elementsand the Roughness Density of Three-Dimensional Roughness Elementsand the Roughness Density of Three-Dimensional Roughness Elementsand the Roughness Density of Three-Dimensional Roughness Elementsand the Roughness Density of Three-Dimensional Roughness Elements. AtmosphericEnvironment. Pergamon Press, vol. 3, pp. 637 – 642, 1971.

Alberto Joseph KhouriAluno de graduação da FAUUSP.

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24 ResumoO objetivo do projeto desenvolvido no Laboratório de Habitação eAssentamentos Humanos (LabHab) é desenvolver soluções nãoconvencionais de drenagem urbana articuladas à configuração física deassentamentos precários. O local de intervenção foi no bairro do Alvarenga,em São Bernardo do Campo/SP, às margens da represa Billings. A partir depesquisa e análise de dispositivos existentes, além de contínuos debates coma comunidade, foi definida a área de intervenção. O projeto foi desenvolvidocom o dimensionamento dos dispositivos de drenagem de águas pluviais econstruído pela metodologia de canteiro-escola. A obra foi realizada pelaequipe de pesquisadores, por trabalhadores da construção civil e pormoradores, com o apoio de órgãos públicos. Foram construídos uma escadacom rampa, jardins de chuva, sistema de captação de água da chuva e kitsde drenagem nas casas vizinhas. A obra construída, embora pontual e decaráter experimental, indica um novo caminho possível para a ocupação econsolidação de áreas públicas nos assentamentos informais, introduzindo aquestão ambiental e a participação da comunidade em todas as etapas comoestruturadores do programa.

Palavras-chaveDrenagem urbana; manancial; assentamento informal; meio ambiente;técnicas alternativas.

Ana Clara de Souza Santana

Orientadora: Prof. Dra. Maria Lucia Refinetti Rodrigues Martins

Colaboradores: Giuliano Salvatore Fiusa Magnelli e Priscila Yumi Endo

INTERVENÇÕES DE BAIXOIMPACTO PARA MELHORIAURBANÍSTICA E AMBIENTAL DEASSENTAMENTOS INFORMAIS EMÁREAS DE MANANCIAIS

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1. INTRODUÇÃO

Este documento apresenta o relatório final do projeto “Intervenções de baixoimpacto para melhoria urbanística e ambiental de assentamentos informais emáreas de mananciais”, com início em 22/02/2016 e término em 23/08/2016.Durante o período, foi possível envolver-se intensamente com uma dentre asdiversas atividades desenvolvidas no Laboratório de Habitação e AssentamentosHumanos - LabHab da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidadede São Paulo - FAUUSP, que desde 1997 interliga a prática de ensino, pesquisa eextensão universitária em um mesmo espaço, dando prioridade à formulação dealternativas para as demandas habitacionais, urbanas e ambientais que visem ainclusão social.

Os exercícios realizados no laboratório têm sempre um caráter experimental,constituindo-se em processo de formação e capacitação para análise crítica eação propositiva. No presente trabalho, a área de estudo/ intervenção élocalizada no Baixo Alvarenga, bairro do município de São Bernardo do Campo(figura 1). Toda a região é situada em área de manancial, às margens da represaBillings (figura 2), cuja ocupação se caracterizou por loteamentos irregulares aolongo de décadas, e que gradativamente passa por processos de regularizaçãofundiária e por intervenções urbanísticas.

De maneira geral, a urbanização dos grandes centrosurbanos no Brasil vem decorrendo de formadesigual e desordenada. E isso ocorre numa chavede precariedade das políticas habitacionais, poucoarticuladas com uma ocupação estratégica e eficientedo território urbano, favorecendo as ocupações emáreas de proteção ambiental (sobretudo pelaspopulações mais vulneráveis).

Na Grande São Paulo, nas imediações das áreas demanancial, os municípios apresentam uma gama decondições de precariedade no que diz respeito aosassentamentos urbanos. Muito disso em decorrênciade uma má articulação da política habitacional comos instrumentos legislativos ambientais do Estado

Figura 1 – Localização doAlvarenga na regiãometropolitana.

Figura 2 – Foto a partir do bairro Alvarengo em frente à represa Billings. Fonte: autoria própria.

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(pouco eficaz pois trata de modo simplista a diversidades das situaçõesencontradas nos municípios, dificultando as possíveis regularizações).

Em São Bernardo do Campo, foi instituído o programa de RegularizaçãoFundiária no Plano Local de Habitação de Interesse Social, vigente, que a partir de2009 adotou o Orçamento Participativo (OP), promovendo uma relação maisefetiva e dinâmica da população junto do planejamento municipal. Apósestruturar essa política habitacional, foram identificadas as tipologias dosassentamentos precários, definindo as ações necessárias para a regularização eurbanização. Os loteamentos do Alvarenga, área de estudo dessa pesquisa,receberam a tipologia 2, que os define como assentamentos parcialmenteconsolidados e irregulares, demandando execução e complementação dedeterminados serviços de infraestrutura. Essas áreas foram demarcadas comoZEIS no Plano Diretor.

As atividades de projeto expostas tiveram a colaboração - já estabelecida aolongo de anos de pesquisa e atuação do laboratório na região - das Secretariasde Habitação, Planejamento Urbano, Gestão Ambiental e Serviços Urbanos daPrefeitura do Município de São Bernardo do Campo. No plano acadêmico, éimportante ressaltar que o presente projeto tem diálogo com as demais 15equipes de diferentes universidades em todo o país que participam do projeto“Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano” (MAPLU 2), cuja coordenação geralcabe ao Prof. Nilo de Oliveira Nascimento (UFMG), com recursos da FINEP -Financiadora de Estudos e Projetos.

Este trabalho também se vincula ao projeto “Canteiro Escola Águas Urbanas”, como apoio da PRCEU (Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP).

O projeto “Canteiro Escola Águas Urbanas”, atividade de extensão universitária doLabHab, realizou oficinas na escola pública do bairro com o objetivo de promovera preservação das áreas de mananciais e busca da participação ativa dacomunidade na tentativa de ampliar a discussão ambiental e também de garantira manutenção dos dispositivos e consolidação da preservação.

2. OBJETIVOS

O objetivo do projeto é, a partir de um contexto urbano concreto, desenvolversoluções não convencionais de drenagem urbana que visem à recuperaçãourbana e ambiental de modo articulado à configuração física de assentamentosprecários, minimizando o impacto da ocupação urbana feita de modo informal,por autoconstrução, sem infraestrutura, em áreas de risco e/ou ambientalmenteprotegidas por lei.

A partir do recorte espacial do bairro do Alvarenga, o projeto visa planejar eexecutar obras de drenagem urbana integradas ao espaço de moradia e espaçospúblicos, utilizando técnicas compensatórias que podem ser aplicadas comocomplemento às redes convencionais existentes – ou que estão previstas noprocesso de regularização fundiária na região. Dessa forma, busca-se, para alémda salubridade e sustentabilidade da ocupação urbana, a possibilidade de aliar astécnicas alternativas, por meio do projeto, à qualificação do espaço público, queali tem condições de se integrar à paisagem natural e proporcionando espaçosde convivência e lazer.

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A participação na equipe do laboratório no projeto é uma oportunidade de atuardiretamente na elaboração de obras isoladas ou de obras interligadas àinfraestrutura convencional, que promovam melhorias ambientais e sejamexecutadas sob a forma de canteiro-escola. Ao longo do desenvolvimento dasatividades, a compreensão do processo de formação dos loteamentos periféricosinformais, a articulação entre os diversos agentes atuantes na área e aparticipação da comunidade durante todo o processo são consideradosessenciais para consolidar uma possível replicação dos projetos e para suamanutenção e bom funcionamento.

3. METODOLOGIA

A primeira etapa das atividades consistiu no contato com o material já produzidona pesquisa “Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano”, incluindo relatórios,manuais e estudos de campo para compreensão das características da área ecotejamento com levantamentos técnicos já disponíveis. Também foi possívelaprofundar o estudo de soluções ambientais, como cisternas, poços de retenção/ infiltração e ampliação de áreas permeáveis, jardins de chuva e poços deretenção / infiltração em vias e praças públicas a partir de pesquisa bibliográfica eestudos de dispositivos já construídos.

A partir da pesquisa e de debates com a comunidade, foi necessário especificar aárea onde seriam executadas as obras. Deu-se início ao estudo preliminar deintervenção nas possíveis áreas de interesse, cuja escolha foi pautada pela

Figura 3 – Caracterização damicrobacia. Fonte: LabHab.

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28Figura 4 –Fotomontagem das etapas da construção. Fonte: LabHab.

Figura 5 –Esquema das intervenções construídas.

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avaliação do impacto do local na bacia hidrográfica e da inserção no bairroenquanto espaço público (figura 3). Nessa etapa foram realizadas reuniõessemanais internas da equipe do laboratório e, principalmente para asespecificações técnicas, conversas com equipe da Escola Politécnica (Poli-USP),coordenada pelo Prof. José Rodolfo Scarati Martins.

A elaboração da proposição deu-se em meio ao ambiente colaborativo compostopelos próprios pesquisadores universitários e também pelos moradores,lideranças locais, secretarias, técnicos do poder público e trabalhadores daconstrução civil. Esse ambiente colaborativo é o início da prática do canteiro-escola, pois tem como objetivo uma formação emancipatória do trabalhador. É oinício de uma relação que, diferente da tradicional, visa real autonomia no pensare fazer. A equipe de pesquisadores realizou a elaboração do projeto técnico como dimensionamento dos dispositivos de drenagem que, mais tarde, seriamapresentados aos construtores como parte da prática do canteiro-escola. Com oapoio e participação de todos os agentes presentes na discussão, foramimplantados, enfim, alguns dispositivos alternativos de drenagem urbana.

Com a conclusão da obra, foi proposto aos construtores um total de quatroencontros, realizados na sede da Associação de Moradores Parque dosQuímicos, com a intenção de transmitir, no formato de oficinas, conhecimentossobre meio ambiente, orçamento, projeto (desenho) e propostas de alteração naobra. Nesse período, também se torna possível a análise e avaliação dosdispositivos construídos, a resposta da comunidade e, a partir de algunsencontros com todos os participantes, realizar eventuais acabamentos e reparos –como recolocação de mudas que não se fixaram nos canteiros . Dá-se início àetapa de consolidação do trabalho realizado pela elaboração de manuais paradivulgação das experiências e de seus produtos, por meio eletrônico e impresso,destinados ao setor público, comunidade local e meio universitário.

4. RESULTADOS

Ao longo de quatro semanas, o projeto foi construído pela equipe depesquisadores, por quatro trabalhadores da construção civil e por moradores,com o apoio das Secretarias de Habitação, Planejamento Urbano, GestãoAmbiental e Serviços Urbanos do município e da Associação de Moradores doParque dos Químicos (figura 4). O local de intervenção é um espaço público,uma viela entre a Rua da Evolução e a Rua das Oliveiras.

A escolha do local foi feita a partir do estudo da contribuição de cada parte dobairro na microbacia do córrego que recebe o escoamento da região até atingira represa - cujo ponto mais baixo sofre recorrentes enchentes. O bairro possuiuma grande área com cobertura vegetal preservada, localizada numa áreacentral de seu perímetro. Este maciço tem assumido a função de “wetland”natural, possibilitando que a vazão das águas pluviais e provenientes de esgotoe poluição difusa seja então retida e parcialmente filtrada, depois de serem aliencaminhadas por meio das escadas hidráulicas (obra da Prefeitura de SãoBernardo).

O potencial de atuação na Rua das Oliveiras foi ampliado pela importância narede urbana local, no ponto mais alto da topografia do bairro, por ser próxima

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ao ponto final da linha de ônibus que conecta o bairro à região do entorno, porser um ponto encontro dos moradores, por ser onde acontece semanalmenteuma feira livre e por se configurar como uma passagem de pedestres comdemanda de qualificação urbanística.

Foram construídos uma escada com rampa na lateral; jardins de chuva; umsistema de captação e armazenamento de água pluvial em uma das casasvizinhas à viela; kits de drenagem na calçada de duas casas vizinhas; e instaladospostes de iluminação pública (figura 5).

4.1. Projeto

Uma importante referência projetual foi o trabalho desenvolvido na tese dedoutorado de Newton Célio Becker de Moura, “Biorretenção – TecnologiaAmbiental Urbana para manejo das águas de chuva”, sob a orientação doprofessor doutor Paulo Renato Mesquita Pellegrino da FAUUSP e coorientação doprofessor José Rodolfo Scarati Martins da Escola Politécnica da USP, com quem oprojeto realizou parceria através do Departamento de Engenharia Hidráulica eAmbiental (PHD).

A tese é bastante elucidativa e propositiva nas suas experimentações, sendo umafonte de referência alinhada com o que se almeja propor como técnica alternativano manejo de águas pluviais a serem aplicadas especificamente no Alvarenga. Odoutorando explora o conceito de infraestrutura verde apostando numaurbanização sustentável e de baixo impacto, se utilizando de dispositivos debiorretenção de execução simples e baixa manutenção que garantem umamínima eficiência sem comprometer as funções de retenção e filtragem.

Um dos recortes da tese, que foi utilizado como objeto de estudo, é o processode concepção e execução de um protótipo de elemento de biorretenção,instalado nas imediações do Centro Tecnológico de Hidráulica-CTH na CidadeUniversitária Armando Salles de Oliveira. Foi proposto com a finalidade de medir avazão de efluentes e também coletar amostras de água para análise laboratorial.

Ao apropriar-se do desenho em questão, foram incorporados os conhecimentosa respeito da técnica de biorretenção por meio do dispositivo apresentado, noentanto a equipe do LabHab desenvolveu um desenho próprio, levando emconta tanto a limitação orçamentária como a viabilidade de execução no canteirode obras, fundamental para a exequibilidade da intervenção, que contaria com amão de obra profissional dos pedreiros moradores da região, mas também commão de obra de moradores em geral e também de estudantes e professores,pela metodologia de canteiro-escola e em mutirões programados.

4.2. Obra

As obras se iniciaram no dia 21 de março de 2016, com parte da equipe deobras e com os pesquisadores, que começaram a limpeza da viela. A demoliçãodo piso e da escada preexistentes e a retirada do entulho e de volume de terraforam auxiliadas por maquinário e mão de obra da Secretaria de ServiçosUrbanos, da Prefeitura de São Bernardo do Campo. No final da primeira semana,foi cavada a trincheira onde seria instalado o jardim de chuva, além de umsumidouro na calçada.

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Na segunda semana, já com a equipe de obras completa, com dois mestres deobra e dois pedreiros, foi iniciada a construção da escada em blocos deconcreto e dos jardins de chuva em degraus e a trincheira e os canteiros forampreenchidos com rachão. Na semana seguinte, os sarrafos foram postos aolongo da trincheira, deixando as laterais preparadas para receber o concreto dopiso. Também foram montados kits de drenagem na calçada das casas dosvizinhos da viela, que são compostos por dois jardins de chuva ligados a umapequena bacia de retenção.

Na quarta e última semana, um sistema de captação de água da chuva foimontado na casa de um dos vizinhos. E, finalmente, dois caminhões deconcreto chegaram à rua, e com a equipe ampliada e com o auxílio de umabomba, foi possível concretar toda a viela: as calçadas, os dois lados depassagem ao longo da trincheira, a escada e a rampa lateral.

O último dia para finalização das obras, no dia 16 de abril de 2016, foidestinado à colocação de mudas de plantas na trincheira e nos canteiros aolongo da escada por meio de mutirão. E a “viela ecológica” foi finalmenterecebeu o nome de “Francisco ‘Xiquinho’ da Silva”, em homenagem a umaatuante liderança do bairro, que já faleceu. O pedido para oficialização donome foi enviado à prefeitura. A inauguração teve a participação da equipe deobras, dos pesquisadores, de membros da associação, de moradores e dafamília de Xiquinho.

4.2.1 Canteiro-Escola

Durante o período de obra ficou nítido o domínio da técnica construtiva porparte dos trabalhadores e a falta de familiaridade da mesma pela equipe depesquisa, reafirmando a importância da discussão sobre a divisão tradicional dotrabalho. Com o término das atividades no canteiro, foi proposto aosconstrutores realizar quatro encontros em formato de oficinas na sede daAssociação de Moradores Parque dos Químicos, com a intenção de transmitirconteúdos ministrados nos espaços educacionais voltados para as elites a fimde proporcionar o início de uma autonomia em relação a essas -tradicionalmente consideradas - disciplinas. Nesses encontros foi possívelperceber o quanto a prática e a teoria da construção, e a separação dessas,permeia e determina tanto a formação do trabalhador da construção quantoda equipe de pesquisa.

O primeiro encontro foi sobre “meio ambiente”, onde foi discutido ofuncionamento da bacia hidrográfica, a importância da preservação ambientalnas áreas de manaciais e a inserção da técnica dos dispositivos construídos naescala do bairro e da metrópole, bem como seu funcionamento. O segundoencontro, sobre “orçamento”, foram abordadas questões sobre custos de obra,que incluíam cálculo de materiais e estimativa de tempo de execução.

O terceiro encontro foi sobre projeto, abordando a importância do desenho naprática da arquitetura em suas diversas linguagens e representações. O últimoencontro foi destinado a planejar o último dia de trabalho da atividade na viela,programado para realizar acabamentos, como aplicação de revestimentos eajustes, como recolocação de mudas que não se fixaram nos canteiros.

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4. 3. Os dispositivos e seu funcionamento

4.3.1. Jardins de chuva

Os jardins de chuva são dispositivos de drenagem que retêm, filtram e infiltramparte das águas pluviais, diminuindo o volume e a velocidade do escoamentosuperficial e melhorando a qualidade da água que retorna ao sistema hídrico dabacia. O funcionamento dos jardins ocorre em duas etapas principais. A primeiraetapa é a filtração, na qual o volume de água escoado das chuvas é direcionadopara o jardim que possui duas camadas: substrato (com vegetação) e materialagregado, separados por uma manta geotêxtil. As raízes das plantas, aocrescerem, perfuram a manta e compõem um importante fator na despoluiçãoda água.

Num primeiro momento (passagem da água pela camada de substrato atéalcançar a manta geotêxtil), são removidos sedimentos finos da água. Numsegundo momento, o volume de água avança pela manta geotêxtil e fica retidonos espaços vazios do material agregado. Pela ação das raízes das plantas e debactérias anaeróbicas, são retirados da água alguns metais e nutrientes poluidores.A segunda etapa consiste na infiltração do volume de água armazenado, quelentamente é absorvido pelo solo no local e retorna ao lençol freático.

Neste projeto, a mesma técnica do jardim de chuva foi utilizada sob duas formas,para se adaptar ao terreno da viela, que possui diferentes declividades. No trechomais plano, do lado da Rua da Evolução, o jardim foi disposto ao longo de umatrincheira de aproximadamente 30m de comprimento, 50cm de largura e 70cmde profundidade. Para aumentar a capacidade de retenção e de infiltração,alguns pontos foram escavados com maior profundidade, chegando aos 1.20m,com seção transversal circular de 20cm. A cobertura vegetal desse trecho foicomposta por “grama-amendoim”.

No trecho com maior declive, do lado da Rua das Oliveiras, o jardim de chuva foidisposto em cascatas, associada à escada; com largura variável entre cerca de30cm e 80cm e profundidade também variável entre cerca de 20cm e 80 cm. Odimensionamento dos dispositivos foi calculado a partir da área de contribuiçãodos telhados dos lotes lindeiros à viela, para serem capazes de reter uma chuvamédia de 10 min. A cobertura vegetal desse trecho foi composta por “pingo-de-ouro”, “maria-sem-vergonha”, “amarílis”, “dália” e “frésia”.

4.3.2 Kits de drenagem por lote

No tecido urbano, a área que recebe o maior volume de água da chuva écomposta pelos lotes privados das residências, que sistematicamente escoam aágua para as ruas, e o espaço público precisa drenar todo esse volume de água(cada vez maior pela impermeabilização do solo no espaço intra-lote). O kit dedrenagem por lote é um experimento que tem como objetivo reduzir o volumedo escoamento de água pluvial superficial advindo de cada lote particular, e que,se realizado em conjunto com outras residências de uma mesma rua, porexemplo, pode reduzir inundações e melhorar a qualidade de água em toda abacia. O kit de drenagem, tendo como área de contribuição a projeção dopróprio lote da casa, pode ser implantado na calçada, contribuindo também paraaumentar a qualidade paisagística da rua.

Ana Clara de Souza Santana – Intervenções de baixo impacto para melhoria urbanística eambiental de assentamentos informais em áreas de mananciais – p.24-35

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O funcionamento do kit de drenagem acontece em três etapas. A primeira etapaé a filtração, na qual o volume de água escoado do lote é direcionado para umpequeno jardim filtrante – análogo ao jardim de chuva- com camada desubstrato, manta geotêxtil e material agregado, que remove sedimentos finos,metais, nutrientes e bactérias. A segundo etapa é a retenção, quando o volumede água filtrado é direcionado para uma bacia de retenção que pode serpermeabilizada ou não, de acordo com o solo na área. Na terceira etapa, deinfiltração, o volume de água, dependendo das condições do solo no local, poderetornar ao sistema de drenagem urbana pelo escoamento superficial (sarjeta)ou subterrâneo (galerias), ou, ainda, infiltrar diretamente no lençol freático.

Neste projeto, foram construídos dois kits, na calçada das casas vizinhas à viela naRua das Oliveiras. Os dois pequenos jardins, dimensionados para reter chuvas deaté 10 minutos, se conectavam a uma mesma bacia de retenção, construída commanilhas de concreto e 2m de profundidade. O fundo da bacia não foiimpermeabilizado, o que permite a infiltração do volume de água armazenadodiretamente no solo.

4.3.3 Sistema de captação de chuva

Foi construído, ainda, um sistema de captação e armazenamento de águaspluviais em uma das residências vizinhas. O volume de água é direcionado dacobertura da casa para uma caixa d’água que, quando atinge sua capacidademáxima, desvia o volume excedente para o kit de drenagem por lote em frente àsua calçada. A água armazenada deverá ser usada na manutenção da vegetaçãodos jardins de chuva construídos, além de poder ser utilizada pelo morador parauso doméstico, como em limpeza de pisos por exemplo.

5. DIVULGAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS

Como produto dos encontros promovidos conjuntamente, será distribuído oterceiro número do “Navega Alvarenga”, informativo do bairro realizado emparceria com o LabHab. O objetivo da distribuição do informativo é promover aconscientização da importância da preservação ambiental na região, divulgar asatividades realizadas e explicar o funcionamento dos dispositivos construídos.

A difusão das técnicas para a comunidade local é essencial para o bomfuncionamento dos dispositivos, sobretudo nos serviços de manutenção queessas técnicas demandam, como reposição de mudas e substituição da mantageotêxtil que gradativamente acumula sedimentos e perde a capacidade defiltração. É importante, ainda, para estimular a replicação de intervenções noespaço urbano que utilizem técnicas de baixo impacto.

No plano acadêmico, o projeto prevê uma publicação pelo projeto FINEP -“Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano” (MAPLU 2). Há previsão deconsolidar o material com toda a pesquisa realizada ao longo do projeto,referências de projetos construídos e estudos publicados, documentação da obra,análise técnica dos resultados etc. O trabalho foi apresentado no 24º SIICUSP -Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP, foiselecionado para a Etapa Internacional e recebeu Menção Honrosa.

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6. CONCLUSÕES

O trabalho desenvolvido ao longo dos sete meses na equipe do laboratório foibastante enriquecedor pelo contato com o contexto urbano predominante nasperiferias da metrópole paulista e, ao mesmo tempo, com as particularidades dasáreas de mananciais. Estudar a viabilidade de urbanização pautada em questõesambientais através de intervenções de baixo impacto nas áreas informais revelaquestões desafiadoras por diversas questões, sobretudo pela lógica das obrastradicionalmente construídas pelo poder público após longos períodos denegligência nessas regiões.

Os processos de regularização fundiária e obras de infraestrutura urbana nobairro Alvarenga eram demandas dos moradores há anos e foram atendidosserviços elementares como saneamento básico, iluminação, pavimentação deguias e sarjetas etc. Nos trechos com altas declividades, também foramconstruídas escadas hidráulicas para direcionar o escoamento superficial da águapluvial ao córrego e, finalmente, à represa. Embora essas intervenções tenhamproporcionado melhorias e condições de habitabilidade em geral, aimpermeabilização do solo traz consequências como o aumento da velocidadedo escoamento das águas pluviais, centralizando os lugares de passagem daágua - gerando pontos de alagamento e de acúmulo de poluição. A viabilidadeda implantação de técnicas compensatórias, a fim de configurar uma rederesiliente formada por pequenas obras pontuais de baixo impacto, que implicammanutenção permanente, demandaria uma outra postura do poder público nogerenciamento desses espaços.

Outra questão presente nas etapas de pesquisa e de elaboração do projeto éem relação à inserção das técnicas no contexto urbano real no qual seriamconstruídas. As principais referências projetuais eram em sua maioriaimplementadas com caráter experimental em ambientes controlados ou emespaços públicos cujo uso formalizado tem parâmetros diferentes da realidadedos locais públicos dos espaços urbanos brasileiros. O desenho final dosdispositivos, portanto, não foi norteado somente pelo desempenho ambiental,mas a fim de compatibilizar a durabilidade da intervenção, os usos que já existiamno local, as demandas da comunidade, os materiais disponíveis, o orçamentopara a construção, tempo de execução etc.

A obra construída pelo presente projeto, embora pontual e de caráterexperimental, tem um potencial alcance por dois motivos principais: em primeirolugar, indica um novo caminho possível para a urbanização dessas áreas, umpadrão exequível de ocupação e consolidação das áreas públicas nosassentamentos informais, introduzindo a questão ambiental como estruturadordo programa. Outro aspecto é ter no diálogo e na participação da comunidade oelemento crucial da tomada de decisões, que neste projeto aconteceu desde osprimeiros levantamentos, discussões das problemáticas, definição das prioridadese na construção de fato. Além de ser um incentivo para a participação dosresidentes na preservação dos mananciais e na discussão de futuras intervençõesnessas áreas, é indispensável para o bom funcionamento e manutenção dasintervenções.

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Enquanto atividade de formação, o período foi uma oportunidade de sefamiliarizar com a elaboração de desenhos técnicos e dos aspectos construtivosconcretos, que também são indispensáveis no exercício da arquitetura e noprograma da formação universitária. A prática do canteiro-escola foi um grandeaprendizado sobre as técnicas construtivas a partir da prática dos trabalhadores.Mais ainda, foi uma oportunidade de refletir sobre a divisão do trabalho nocanteiro de obras e participar de uma vivência coletiva e autônoma na prática daarquitetura .

7. REFERÊNCIASBAPTISTA, Márcio Benedito. NASCIMENTO, Nilson de Oliveira. BARRAUD, Sylvie. TécnicasTécnicasTécnicasTécnicasTécnicascompensatórias em drenagem urbanacompensatórias em drenagem urbanacompensatórias em drenagem urbanacompensatórias em drenagem urbanacompensatórias em drenagem urbana. 2. ed. rev. Porto Alegre, 2011. 318p.

CHRISTOVAM, Mariane T. Infraestrutura de drenagem e áreas verdes na bacia do Córrego PInfraestrutura de drenagem e áreas verdes na bacia do Córrego PInfraestrutura de drenagem e áreas verdes na bacia do Córrego PInfraestrutura de drenagem e áreas verdes na bacia do Córrego PInfraestrutura de drenagem e áreas verdes na bacia do Córrego PonteonteonteonteonteAltaAltaAltaAltaAlta. Trabalho final de graduação apresentado na FAUUSP. São Paulo, 2013.

MOURA, Newton Célio Becker de. PELLEGRINO, Paulo Renato Mesquita (orient). MARTINS, JoséRodolfo Scarati (co-orient). Biorretenção : tecnologia ambiental urbana para manejo das águasBiorretenção : tecnologia ambiental urbana para manejo das águasBiorretenção : tecnologia ambiental urbana para manejo das águasBiorretenção : tecnologia ambiental urbana para manejo das águasBiorretenção : tecnologia ambiental urbana para manejo das águasde chuvade chuvade chuvade chuvade chuva. Tese de Doutorado apresentado na FAUUSP. São Paulo, 2013. 177 p. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16135/tde-30052014-104153/publico/FAUUSP_TESE_MOURA_NEWTON.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2016.

Stormwater Management ManualStormwater Management ManualStormwater Management ManualStormwater Management ManualStormwater Management Manual. City of Portland, 2016. Disponível em: < https://www.portlandoregon.gov/bes/article/582086>. Acesso em: 28 nov. 2016.

Projeto técnico: jardins de chuvaProjeto técnico: jardins de chuvaProjeto técnico: jardins de chuvaProjeto técnico: jardins de chuvaProjeto técnico: jardins de chuva. Manual sistematizado por FCTH e ABCP. Disponível em: < http://solucoesparacidades.com.br/wp-content/uploads/2013/04/AF_Jardins-de-Chuva-

Ana Clara de Souza SantanaAluna de graduação da FAUUSP.

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36 ResumoA iniciação científica que deu origem a este artigo buscou compreender oprocesso de disseminação de valores modernos no papel da mulher, nasconfigurações familiares e na arquitetura entre a população brasileira duranteos anos 1950. Para tanto, foi escolhida como objeto de análise a revistailustrada de variedades O Cruzeiro, de grande relevância no período. Seusconteúdos sobre os temas observados nos revelam os padrões correntes,aceitos e divulgados. A revista, enquanto mídia de grande circulação, pode serconsiderada ao mesmo tempo um reflexo da sociedade que retratava e ummecanismo influenciador de seus leitores, registrando e promovendotransformações em gostos, comportamentos e valores. Nesse texto,procuramos apresentar alguns aspectos dos debates travados na revistaacerca da mulher, das cidades e da arquitetura brasileiras.

Palavras-chaveArquitetura moderna, Gênero, O Cruzeiro

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes

Orientadora: Profa. Dra. Joana Mello de Carvalho e Silva

MULHER, CIDADE E ARQUITETURANAS REPORTAGENS DEO CRUZEIRO

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nasReportagens de O Cruzeiro – p.36-49

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INTRODUÇÃO

A revista O Cruzeiro foi uma revista ilustrada de variedades brasileira, parte dogrupo Diários Associados de Assis Chateaubriand, e que foi publicada denovembro de 1928 até possivelmente meados da década de 1980,1 quando amudança da direção do grupo, dívidas, a ascensão e a popularização da televisãocomo meio de comunicação e entretenimento teriam impulsionado seu fim. Suadistribuição contava com um sistema logístico que permitia um amplo alcance emescala nacional, como se verá no item a seguir. Ainda que com alguns dias dedefasagem, a revista chegava a municípios pequenos e muito distantes do Rio deJaneiro (sede da revista) – contando inclusive com uma versão internacional,distribuída na Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Peru, Bolívia, Venezuela, dentreoutros países de 1957 a 1965. A revista se orgulhava de possuir um agente emcada cidade brasileira e correspondentes nas principais cidades do mundo.

Os investimentos em novas tecnologias gráficas e as inovações no uso deimagens em revista contribuíram, dentre outros fatores, para que suas tiragensalcançassem uma escala impressionante para o período, confirmando a revistacomo uma publicação de sucesso do grupo e afirmando seu caráter devanguarda no campo editorial. A preocupação de O Cruzeiro com a questão daimagem pode ser observada através das fotorreportagens, gênero em cujo uso arevista foi pioneira, e do foto-teste “Aprenda a ver as coisas”, que tinha comoobjetivos educar e modernizar o olhar do leitor a partir da criação de umrepertório de referências imagéticas. Por ser concebida como uma revistailustrada, as imagens ocupavam papel central na publicação e na década de1950 é notória a evolução no uso das mesmas, com a utilização cada vez maiorde fotografias, em detrimento de desenhos, e o uso, a partir da segunda metadede 1952, de fotografias coloridas (BAHIA, 2009; BARBOSA, 2002; BURGI eCOSTA, 2012; FRANCISCHETT, 2015).

Desde sua inauguração, a revista procurou imbuir-se de uma imagem demodernidade identificada com a industrialização, a urbanização, o estilo de vidadas metrópoles e o progresso da sociedade. Por ser parte de um grupo editorialforte e de grande renome, O Cruzeiro sempre figurou entre os semanários maisprestigiados da imprensa nacional, porém em seus quase 60 anos de circulação,as décadas de 1940 e 1950 se destacam como o período áureo da revista pelasvendas em alta, grande quantidade de anunciantes e pelo momento deimplantação de novidades gráficas e renovação do layout (BARBOSA, 2002;BURGI e COSTA, 2012).

Um exemplar da revista O Cruzeiro consistia em um caderno de 25,5 por 32centímetros impresso em papel couchê na capa e papel jornal no miolo. Apublicação saía com frequência semanal (até 1975), todos os sábados e eracomercializada por venda avulsa ou assinatura anual. O número de páginas porexemplar ficava na faixa de 100 a 140 páginas, quantidade semelhante a desemanários atuais como Veja (editora Abril), Época (editora Globo) e IstoÉ(editora Três).

Seu principal público alvo eram, inquestionavelmente, as mulheres. Embora arevista não fosse considerada uma publicação feminina, muitas das seções darevista eram dedicadas especialmente ao gênero feminino. Elas estiverampresentes na maioria absoluta das capas ao longo da história da revista:modelos, misses, cantoras, atrizes, moças da alta sociedade brasileira, estrelas do

1 Embora a bibliografia sobre arevista considere que seu fimtenha acontecido em 1975, oúltimo exemplar disponível noacevo da Hemeroteca Digital daBiblioteca Nacional correspondeao mês de junho de 1985.

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cinema, “Madonnas” e crianças. No recorte históricoadotado por esta pesquisa, que compreende 616publicações da versão nacional da revista, menos de2% das capas continham apenas figuras masculinas.Nos casos observados figuraram nas capas Pe. Manoelda Nóbrega (representado em gravura), índios, CarlosGardel, Ernest Hemingway, o Papa Pio XII e JuscelinoKubitschek.

A predominância de figuras femininas nas capas darevista revela a dupla imagem que a mulher assume nacultura de massas ocidental: a mulher sujeito e amulher objeto. A mulher representada na capa podetanto gerar identificação com potenciais consumidorasda revista quanto despertar o desejo, pela mulher epela revista (FRANCISCHETT, 2015, p. 1).

Seus conteúdos eram dos mais variados possíveis,como matérias de sociedade, comportamento, política,história, eventos, celebridades, cinema, teatro, rádio,televisão, moda, folhetins, crônicas de diversos escritores,colunas variadas de humor, dicas de beleza, saúde,decoração e economia doméstica, receitas,aconselhamento por cartas e etc. Além dos conteúdoseditoriais, os anúncios publicitários também tinhamgrande peso na revista, aparecendo na maioria daspáginas da publicação.

A revista tem como sua principal referência cultural os Estados Unidos, porém aFrança também apresenta um papel de destaque, o que se exemplificaprincipalmente pelo espaço ocupado na revista pelo cinema hollywoodiano e pelaalta costura parisiense. Não à toa a revista é frequentemente relacionada àsrevistas Life e Paris Match (onde inclusive trabalhou um dos maiores nomes de OCruzeiro, o fotógrafo Jean Manzon), que são consideradas seus modelosinspiradores. De todo modo, considerando o conteúdo geral da revista noperíodo abordado, pode-se afirmar que O Cruzeiro foi um dos veículos dedivulgação do American Way of Life no Brasil.

Quanto ao seu posicionamento político, pode-se dizer que a revista seguia osinteresses de Assis Chateaubriand, sendo predominantemente de situação. Apesardisso, O Cruzeiro abria espaço para textos que criticavam o governo e em suasmatérias sobre política apareciam constantemente referências sobre as oposiçõesenfrentadas pelo governo, além da preocupação com a crise política. Asreportagens publicadas por Jean Manzon na década de 1960 criticando opresidente Juscelino Kubitschek são um exemplo dessa atitude. Além da situaçãopolítica, a revista também denunciava diversas mazelas do Brasil, como porexemplo o analfabetismo, as altas taxas de mortalidade infantil, a fome e miséria, ocrescimento do número de habitações em favelas, o trânsito e outros problemas.

Mesmo construindo alguns cenários negativos, deve-se dizer que o tompredominante na revista era de otimismo. Sobre o sentimento dúbio defrustração e esperança típico do pós II Guerra, vale destacar o lide de uma dasprincipais matérias da primeira edição de 1950:

O Cruzeiro, ano XXVIII, nº 22, 17/03/1956. Acervo ECA-USP.Imagem da autora.

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Cinquenta anos de Século XX trouxeram para o Ser Humano todas as maravi-lhas da técnica e todas as frustrações morais e sentimentais. A geração de1900 possui essa glória, que nenhuma outra jamais possuiu em qualquertempo – ver nascer e crescer uma civilização – e um desespero tambémjamais sentido em qualquer outra era – a certeza de que nunca o homem foitão infeliz quanto hoje (PEREIRA, 07/01/1950, p. 44).

Do lado positivo, no típico espírito dos anos dourados e das políticasdesenvolvimentistas, a revista acreditava no progresso do país, um Brasil emfranca industrialização e urbanização - processos que também eramconstantemente retratados nas páginas da revista, sobretudo a partir dosexemplos do Rio de Janeiro e São Paulo. Para O Cruzeiro, o futuro rumo ao qualseguia o Brasil era de desenvolvimento, crescimento econômico, superação dosproblemas denunciados e melhoria nas condições de vida, conduzindo osbrasileiros a uma vida parecida àquela da qual desfrutavam os cidadãos depaíses desenvolvidos, sobretudo no que dizia respeito ao consumo.

Além de otimista, pode-se dizer que a revista assumia também por vezes umcaráter propositivo. Exemplos disso são a divulgação dos avanços a ciênciareferentes ao parto e à medicina neonatal, o patrocínio aos concursos “10Municípios de Maior Progresso”, realizado pelo Instituto Brasileiro deAdministração Municipal e que teve três de suas edições em 1955, 1957 e 1960,e, com destaque, a publicação em outubro de 1957 da cartilha de alfabetização“O Cruzeiro”, divulgada como uma ação parte de uma campanha pelaerradicação do analfabetismo em nível nacional.

Quantos aos temas de gênero, cidades e arquitetura moderna brasileira,especificamente abordados neste trabalho, embora não fosse um periódicoespecializado em arquitetura ou urbanismo, as reportagens de O Cruzeiroabordaram tais temas em diversas ocasiões, conferindo-lhes maior destaque doque o observado nas revistas atuais e criando repertório e discussões a respeitoem seu público leitor. Os assuntos femininos eram muito mais explorados nasseções e colunas das revistas, assim como nos anúncios publicitários, mastambém figuraram frequentemente nas reportagens.

MULHER E FAMÍLIA

A presença das mulheres em O Cruzeiro começa na figura de sua presidente,Amélia Whitaker Gondim de Oliveira que, embora não tivesse uma atuação centralna definição do perfil editorial da revista, assumia uma posição de destaque. Alémdela, diversas outras mulheres constavam da equipe da revista como cronistas,colunistas e colaboradoras. Entretanto, nenhuma mulher, ao menos durante osanos 1950, chegou a ocupar na revista os postos de repórter ou fotógrafa.

As mulheres que O Cruzeiro mais gostava de retratar eram, em suma, as estrelasdo entretenimento (rádio, teatro, televisão e cinema) e as moças e senhoras daalta sociedade brasileira. Elas eram apresentadas como verdadeiras inspirações aserem seguidas e o desejo de toda mulher deveria ser o de se parecer com elas,vestir-se como elas e desfrutar da vida que elas tinham. Se não fosse possível, asimagens das revistas podiam lhes dar ao menos uma amostra, uma orientação.Em segundo plano, a mulher comum era representada sempre nos papéis deesposa, mãe e dona-de-casa, entendidos como essenciais para a satisfação do

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espírito feminino e cruciais para o bem-estar da família e, consequentemente, dopaís. Dentre estes papéis, tinha maior destaque o papel de mãe, pois amaternidade era considerada sagrada. Tornar-se mãe era a realização máxima navida de uma mulher, e a partir disso, todos os planos acerca de seu futurogirariam em torno dos filhos2 . Normalmente, a não ser quando se tratava decontar alguma história particular e individual ou noticiar algo inusitado, a mulhercomum de que falava a revista procurava refletir a realidade da classe média.

Em uma das raras exceções onde tal padrão foi quebrado, a mulher foirepresentada em outras funções que poderiam ser desempenhadas no dia-a-diado Rio de Janeiro. Eram estas – além da dona-de-casa e da mulher da alta

O Cruzeiro, ano XXVIII, nº 22, 17/03/1956. Acervo ECA-USP. Imagem da autora.

2 A sublime missão das mães. OCruzeiro, ano XXVI, nº 30, 08/05/1954, pp 48, 52-55.

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sociedade é claro – a funcionária pública, a estudante, a lavadeira, a policial, aartista, a balconista, a aeromoça, a frequentadora da praia e até mesmo amoradora de favelas e a prostituta, chamadas na reportagem respectivamente decabrocha e mariposa.3

Para reforçar a importância e naturalidade do pertencimento da mulher aoambiente doméstico e familiar e revesti-lo de certo ar de glória, era comum que arevista veiculasse reportagens sobre a vida íntima de celebridades. Uma dasfavoritas da revista durante os anos 1950 foi Martha Rocha, Miss Brasil em 1954,que continuou a ser notícia muito depois de passar seu título. Atrizes, cantoras,ou misses nacionais eram as que mais tinham sua vida particular retratada em OCruzeiro, talvez até como um mecanismo de aproximação com as leitoras. Amatéria “70 Bilhões”4 de 3 de dezembro de 1955 e três reportagens5 sobre asmisses Martha Rocha, Emília Lima e Maria José Cardoso de 6 de abril de 1957mostram respectivamente modelos norte-americanas e ex-Misses brasileiras emsuas casas, como mães esposas e donas-de-casa; dando atenção aos maridos,alimentando os filhos, fazendo as tarefas domésticas, usando até mesmo aventale touca, mas sem perder a beleza e o glamour que as caracterizavam.

O Cruzeiro, em “A Mulher em Nova Edição”,6 procurou definir quem era a mulherlatino-americana da metade do século XX, a partir de jovens de diferentes países.Chegou a conclusão de que a “nova mulher” buscava equilibrar “as virtudestradicionais e a liberdade da educação moderna, sem perder a feminilidade”. Aeducação moderna teria, segundo a revista, emancipado a existência da mulherem relação ao homem. O trabalho teria lhe dado independência econômica e aenriquecido psicologicamente, de modo que a mulher moderna seria maisdescontraída, com muitos interesses e ocupações. A mesma cultuaria ainda ahigiene e a prática de esportes, usando roupas mais “racionais”. A despeito dasmuitas transformações, a existência dessa “nova mulher” não colocava em risco asnoções de lar e família, exceto em algumas poucas camadas da população dosgrandes centros urbanos.

Mas nem só de imagens idealizadas se encheram as páginas da revista. Vez ououtra, reportagens denunciaram condições difíceis para as mulheres. Em janeirode 1951, no artigo “Das Desvantagens de Ser Mulher”,7 é denunciada umacondição social desigual entre homens e mulheres que se revela através deliberdades tolhidas desde a infância, pressões sobre a imagem, subestimação dainteligência e rotulação entre “bonitas” e “feias”. A respeito das desigualdades, arevista noticiou em 31 de agosto de 19578 a mobilização da União UniversitáriaFeminina em prol de mudanças no Código Civil, que considerava a mulherparcialmente incapaz no matrimônio conferindo ao marido o poder de autorizarque ela trabalhasse ou não. Em outubro de 1952, a revista noticiou a situaçãodas normalistas, que não tinham permissão para simultaneamente serem casadase cursarem a Escola Normal ou exercerem o magistério, por um alegado embateentre a vida de estudante, de esposa e dona-de-casa. Nesse caso, a revistadefendeu a liberdade das normalistas para o casamento.9 As mães brasileiras, emsua “árdua” e “heroica” missão, também não enfrentavam um cenário fácil, comdesassistência do poder público à maternidade e à infância e dificuldade deacesso à educação e a espaços de lazer para seus filhos.10

Além disso, a família também estava mudando, comentavam os artigos ereportagens da revista. No Rio de Janeiro, noticiava-se que diminuía o número de

3 Mulher, vida e alegria da cidade.O Cruzeiro, ano XXXII, nº 51, 01/10/1960, pp 22-25.

4 70 Bilhões. O Cruzeiro, anoXXVIII, nº 7, 03/12/1955, pp 36-42, 92.

5 O Cruzeiro, ano XXIX, nº 25, 06/04/1957, pp 4-9.

6 A mulher em nova edição. OCruzeiro, ano XXIX, nº 50, 28/09/1957, pp 24-33.

7 Das desvantagens de ser mulher.O Cruzeiro, ano XXIII, nº 12, 06/01/1951, p3.

8 Mulheres contra a lei doshomens. O Cruzeiro, ano XXIX, nº46, 31/08/1957, pp 14-18.

9 O direito de casar. O Cruzeiro,ano XXIV, nº 51, 04/10/1952, pp8-14.

10 Odisseia da mãe brasileira. OCruzeiro, ano XXIX, nº 30, 11/05/1957 pp 91-97.

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casamentos e crescia o de divórcios. Essa situação revelava, segundo O Cruzeiro,que não havia a mesma responsabilidade para com o casamento e a família,sendo comum o abandono de menores, a existência de lares desestruturados euma juventude “transviada”.11

Como se vê nesses poucos exemplos, a revista ao mesmo tempo em quenoticiava e promovia relações de gênero tradicionais, com as mulheresdesempenhando os papéis consagrados desde o século XIX de mãe, esposa edona-de-casa, dava mostras de que mudanças, ainda que lentas, estavam emcurso, apontando o aparecimento de novas atividades e lugares sociais ocupadospelas mulheres, especialmente as das camadas médias, nas cidades.

CIDADE

A revista O Cruzeiro se identificava com o estilo de vida das grandes metrópolesnacionais e internacionais que, não raras vezes, mostrou em suas páginas. Ascidades norte-americanas apareciam como exemplos do estilo de vida urbanodos países desenvolvidos, como modelos urbanísticos a serem referenciados. LosAngeles é apresentada por seu modelo rodoviarista e descentralizado, constituídoem subúrbios.12 Nova York é apresentada segundo seu dinamismo e suaimagem de cidade densa e vertical, aparecendo como um lugar onde haveria

O Cruzeiro, ano XXX, nº 22, 15/03/1958, pp 27 e 32. Acervo ECA-USP. Imagem da autora.

11 Desagregação da família,problema de uma época. OCruzeiro, ano XXXI, nº 44, 15/08/1959, pp 4-12, 106.

12 A cidade do automóvel. OCruzeiro, ano XXII, nº 28, 29/04/1950, pp 62-64, 76.

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diversidade populacional, tudo funcionaria, o sistema de metrô seria eficiente,todas as fiações e tubulações seriam subterrâneas, o tráfego seria organizado ehaveria muitas opções de comércio, lazer e cultura. As grandes obas viáriasfacilitariam o trânsito de automóveis e resultariam em “consequente progresso”.13

Quanto às principais cidades brasileiras naquele momento, uma matériapublicada por ocasião da visita do presidente de Portugal ao Brasil em 195714

permite saber, em um panorama um tanto romantizado, quais as virtudes que arevista via em cada uma delas. Salvador era símbolo do passado e do folclore,cidade de miscigenação racial, sem segregação; Rio de Janeiro, símbolo dopresente, capital da República, do samba e do futebol; Belo Horizonte, exemplode urbanismo moderno e digna de destaque pelo conjunto arquitetônico daPampulha; São Paulo, símbolo de pujança, maior cidade do Brasil em intensocrescimento urbano e industrialização; Brasília, por fim, a cidade do futuro, ondea máquina não destruiria a pessoa.

O Rio de Janeiro, claramente, foi a cidade que mais figurou nas páginas de OCruzeiro, que louvaram a honra digna de um Distrito Federal, mas tambémmostraram seus problemas. De um lado, um Rio que crescia de formaimpressionante, verticalizando Copacabana e construindo centenas deapartamentos para compradores de alta renda em tempo recorde – otimizadopela padronização, racionalização dos serviços, estocagem de material e extensãodas jornadas de trabalho – com uma

arquitetura própria, uma arquitetura de sol e luz, uma arquitetura funcional, sobcondições especiais, criando soluções novas para cada problema de residência,estabelecendo normas de conforto e bem estar jamais igualados noutra partedo mundo (600 milhões de cruzeiros em apartamentos. 17/01/1953, p. 31).

Por outro lado, esse mesmo Rio também enfrentava sérios problemas com aproliferação de habitações informais, sobretudo as favelas, fenômeno típicocarioca. Um programa de urbanização de favelas, que a revista noticiou em marçode 1956, construiria dez blocos de habitação de sete andares, com projetomoderno (edifício em lâmina, pilotis, janelas em fita) e equipamentos urbanosassociados (escola, posto de saúde, mercado e igreja) para realocar dois terçosda população da favela da Praia do Pinto. A iniciativa era da Cruzada SãoSebastião, órgão da Arquidiocese do Rio de Janeiro chefiado pro Dom HelderCâmara, com contribuições da Caixa Econômica e do Governo Federal. A intençãodo programa era urbanizar todas as favelas do Rio de Janeiro num prazo de deza doze anos.15

Além das favelas, o trânsito também despontava como uma questãoproblemática, com muitos engarrafamentos na cidade. Era preciso remodelar amalha viária para desafogar o trânsito com obras tais como o alargamento daAvenida Atlântica, a abertura de túneis e a construção da avenida perimetral16 .Não só o trânsito, mas também o ritmo de vida estressante típico das grandescidades deixavam as pessoas neuróticas e prejudicavam sua qualidade de vida etranquilidade.17

É exatamente neste momento histórico que São Paulo afirma sua rivalidade como Rio de Janeiro enquanto principal metrópole do país. Seu crescimento urbano,industrial e econômico era notório e sua população acabara de ultrapassa acarioca. Por ocasião de seu IV Centenário em 1954, a cidade foi bastanteenaltecida pela revista por sua pluralidade cultural e racial de caráter cosmopolita,

13 Nova York. O Cruzeiro, ano XXVIII,nº 3, 05/11/1955, pp 70-77;Caminhos livres em Nova York, OCruzeiro, ano XXVIII, nº 30, 12/05/1956, p18.

14 Brasil. O Cruzeiro, ano XXIX, nº34, 08/06/1957, pp 35-49.

15 Guerra às favelas. O Cruzeiro, anoXXVIII, nº 22, 17/03/1956, pp 76-80.

16 Rio, cidade estrangulada. OCruzeiro, ano XXVIII, nº 41, 28/07/1956, pp 104-113.

17 Este Rio de loucos. O Cruzeiro,ano XXIX, nº 52, 12/10/1957, pp6-12.

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sua “força realizadora” e seu ritmo ímpar de progresso. “Fabulosa metrópole” de“arquitetura arrojada”, São Paulo se afirmava para O Cruzeiro como a cidadenúmero um do Brasil.18

Estas reportagens e artigos sobre a cidade dão conta das transformações emcurso e dos ideias de modernidade em voga. Fica clara também a referência aoprocesso de modernização que alterava a paisagem da cidade por meio de umduplo movimento: a verticalização das áreas centrais e o espraiamento da manchaurbana. A cidade como suporte desses processos, de certa forma também ospromovia, possibilitando novos arranjos familiares, novas formas de morar e novospapéis de gênero, com as mulheres assumindo outras atividades e funções sociais.

ARQUITETURA

O Cruzeiro, mesmo não sendo uma revista especializada em arquitetura, nãodeixou de tratar deste tema, e o fez tanto em relação a um lado mais cotidiano epalpável para os leitores quanto em relação à arquitetura moderna brasileiracanônica, representada especialmente pela chamada “escola carioca”.

Em março de 1950 foi divulgado um projeto de vivenda rural do arquitetoÂngelo Murgel19 no intuito de facilitar aos leitores proprietários de terras nocampo ou sitiantes a construção de casa própria ou de veraneio. O projeto foipublicado com planta, quatro fachadas, um corte e uma perspectiva, todos emescala. O texto considerava o projeto moderno, segundo termo empregado naprópria matéria, porém “sem lançar mão de figurinos alienígenas, de exotismo, deformas imprevistas, cuja única finalidade seria diferir de tudo”. Tal consideração eraalimentada por uma crítica à arquitetura moderna de matriz funcionalista,europeia, cujas formas seriam disformes, esquisitas e despropositais.20

Ao longo da década, a arquitetura ganhou mais espaço na revista e a apreciaçãosobre o modernismo se tornou mais positiva. No final de 1955, ao noticiar umafeira de decoradores do Rio de Janeiro, onde figuravam tanto propostastradicionais como modernas, a reportagem comenta que o carioca se valia cadavez mais do trabalho destes profissionais que “sabem juntar o bonito aoprático”.21 Na nota “Arte e Repouso”, com imagens da cadeira Bowl, de Lina BoBardi, o texto comenta sobre a dificuldade do público em apreciar a artemoderna em contraposição à naturalidade com que se viam móveis de designarrojado, revelando as contradições acerca da aceitação da estética moderna emuma época marcada pela geometrização e o ideal de conforto.22

Cursos de decoração ministrados por Marília Escosteguy23 também foramnoticiados pela revista, como o curso intensivo de decoração voltado a mãescariocas, que relacionava a felicidade das crianças à qualidade do ambiente ondeviviam e contemplou conteúdos de aproveitamento de espaço, distribuição demóveis, influência da cor e iluminação.24 Realizou-se também o curso em PortoAlegre, com duração de sete meses, onde os alunos fizeram trabalhos cujapredileção era pelo “estilo modernista”.25

As primeiras obras de arquitetura moderna a serem mostradas na revista foram oMuseu de Arte de São Paulo (em sua primeira sede à Rua Sete de Abril),colocando-o como uma “cidadela da civilização”, de arquitetura “moderna,racional e funcional” e que, quando feita a reportagem, exibia uma exposição

18 São Paulo. O Cruzeiro, ano XXVI,nº 15, 23/01/1954, pp 22-42A,68.

19 Ângelo Murgel (1907-1978),arquiteto formado pela Escola deArquitetura da Universidade deMinas Gerais. Teve sua atuaçãoprofissional vinculada aoMinistério da Agricultura elecionou na Faculdade Nacionalde Arquitetura (antiga EscolaNacional de Belas Artes).

20 Vivenda rural. O Cruzeiro, anoXXII, nº 23, 25/03/1950, pp 6,92, 93.

21 Sucesso. O Cruzeiro, ano XXVIII,nº 3, 05/11/1955, pp 84, 85.

22 Arte e repouso. O Cruzeiro, anoXXVIII, nº 7, 03/12/1955, p98.

23 Marília Escosteguy era gaúcha etrabalhava promovendo cursosde decoração. Não se sabe suaformação profissional.

24 Filhos felizes com o lar bemdecorado. O Cruzeiro, ano XXVIII,nº 47, 08/09/1956, p106.

25 “Doutores” em decoração. OCruzeiro, ano XXIX, nº 25, 06/04/1957, p125.

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45sobre a obra de Le Corbusier.26 A publicação não é fortuita, uma vez que oMASP foi fundado por Assis Chateaubriand. Outra obra que figurou nas páginasda revista por ocasião de sua inauguração, em 1952, o Hotel da Bahia, deDiógenes Rebouças e Paulo Antunes.27

O Rio de Janeiro era a mais importante vitrine da arquitetura moderna brasileira,aquela que “renovou, no mundo todo, nosso renome artístico”, tendo Lucio Costacomo grande impulsionador e Oscar Niemeyer como grande executor, mastambém outros nomes de destaque como Jorge Moreira, Henrique Mindlin, SérgioBernardes, Affonso Reidy, Francisco Bolonha, Carmen Portinho e Roberto BurleMarx. Dentre os edifícios modernos marcantes na paisagem fluminense, a revistaaponta o Aeroporto Santos Dumont, o edifício sede da ABI (Associação Brasileirade Imprensa), o Ministério da Educação, Conjunto Habitacional do Pedregulho,Parque Guinle, Parque Proletário da Gávea, edifício Marquês de Herval e Clube deEngenharia.28 A revista também divulgou a maquete e fotomontagens do projetode Reidy para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro classificando o edifíciocomo digno da arte que abrigaria.29 As obras são exatamente aquelasconsagradas a partir dos anos 1940 pela crítica nacional e internacional, emexposições (GOODWIN, 1943); livros (MINDLIN, 1956) e revistas ecoando,portanto, o discurso especializado também nas páginas deste semanário.

A cidade de Belo Horizonte é colocada como “experiência notável no campo dasconstruções residenciais” e sua população teria aceitado integralmente os novossistemas construtivos e os novos padrões estéticos da arquitetura. Assim sendo,suas residências com jardins, piscinas, grandes panos de vidro e ambientes bem

O Cruzeiro, ano XXX, nº 22, 15/03/1958, p31. Acervo ECA–USP.Imagem da autora.

O Cruzeiro, ano XXVII, nº 37, 25/06/1955, p32. Acervo ECA–USP.Imagem da autora.

26 Museu de Arte de São Paulo,cidadela da civilização. OCruzeiro, ano XXII, nº 42, 05/08/1950, pp 94-103.

27 O mais belo hotel do Brasil. OCruzeiro, ano XXIV, nº 38, 05/07/1952, pp 112-114.

28 Rio. O Cruzeiro, ano XXX, nº 22,15/03/1958, pp 24-33.

29 Museu de Arte Moderna do Riode Janeiro. O Cruzeiro, ano XXVII,nº 37, 25/06/1955, pp 32,33.

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iluminados e ensolarados se tornaram referencias no campo da habitaçãomoderna.30 Em São Paulo, clubes esportivos, em uma espécie de “torneio dearquitetura moderna”, também contribuíam para a presença da arquitetura da“escola paulista” na paisagem da cidade.31

A figura que O Cruzeiro mais destacou no cenário arquitetônico nacional foicertamente Oscar Niemeyer. A maior parte das matérias publicadas sobre obrasde arquitetura versavam sobre a sua produção. O arquiteto carioca, tido comoum gênio pela revista, teria dado “novo e surpreendente rumo às formas básicas”,valendo-se da tecnologia, com graça e sutileza rompendo com os limites do“funcionalismo ortodoxo”. Suas obras retratadas nas páginas da revista foram:Colégio de Cataguases; Fábrica Duchen; o Conjunto da Pampulha, apresentadocomo o “maior conjunto arquitetônico do mundo”; o Iate Clube da Pampulha;Igreja de São Francisco de Assis; a sede das Empresas Gráficas O Cruzeiro; oedifício da Bienal de São Paulo, a Taba Tupi, projeto de edifício residencial nãoconstruído; e, é claro, Brasília.32

A presença dessas obras na revista se explica de um lado pela valoração que aarquitetura moderna alcançou internacionalmente, mas também pelo vínculo comAssis Chateaubriand, cuja ação cultural se deu vinculada aos modernistas, hajavista, as suas relações com o MASP e nomes importantes como Niemeyer,responsável por um dos edifícios de suas empresas no Rio de Janeiro.

Brasília foi um caso à parte. Não só foi considerada uma obra-prima daarquitetura moderna brasileira como também a materialização de um sonho deprogresso nacional. Brasília foi tema de reportagem em O Cruzeiro pela primeira

O Cruzeiro, ano XXXII, nº 8,05/12/1959, p71. Acervo ECA–USP. Imagem da autora.

30 Belo Horizonte, cidade sobmedida. O Cruzeiro, ano XXX, nº30, 03/05/1958, pp 26-31.

31 Clubes de São Paulo. O Cruzeiro,ano XXXI, nº 26, 11/04/1959, pp58-64.

32 Cataguases, uma réplica a OuroPreto. O Cruzeiro, ano XXII, nº 17,11/02/1950, pp 50-57, 64, 78.Niemeyer, o poeta das formas. OCruzeiro, ano XXIII, nº 11, 30/12/1950, pp 91-95.

Pampulha, uma capela em buscade Deus. O Cruzeiro, ano XXV, nº9, 13/12/1952, pp 62-68, 72.

A nova sede de “O Cruzeiro”. OCruzeiro, ano XXVI, nº 5, 14/11/1953, pp 62,63.Exposição do IV Centenário. OCruzeiro, ano XXVI, nº 47, 04/09/1954, pp 18-18G.

Taba Tupi. O Cruzeiro, ano XXIX,nº 7, 01/12/1956, pp 14-17.

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vez mais de três anos antes da inauguração da cidade e sua arquitetura jáilustrava as páginas da revista muito antes de 21 abril de 1960.

Em 1956, foram mostrados os primeiros croquis e maquetes da “cidade delinhas modernas”, cuja obra “desafia os brasileiros há 165 anos”. À época, onome da nova capital não havia ainda sido definido e falava-se em Brasil, SantaCruz, Tiradentes ou Deodoro.33 Anos depois, já com a cidade se materializando,a Brasília das construções modernas e funcionais era lida como a representaçãosimultânea do presente e do futuro; “marco da Nova Era Brasileira” e “a maismoderna capital do Século XX”. Juscelino Kubitschek, seu idealizador, a definiucomo a “mais arrojada obra de arquitetura e urbanismo da nossa História”,“entroncamento de vidas, de progresso e expansão do Brasil”.34

Inaugurada Brasília, estavam dissipadas todas as dúvidas sobre a realidade detamanho feito. Símbolo unificador de um povo que seguia com determinação emdireção ao futuro e seria capaz de “nivelar a dinâmica do progresso entre irmãosricos e pobres”, Brasília definitivamente “saltou por cima do Século XX. (...) É decimento e de sonho”.35 Brasília estava pronta para receber seus habitantes emresidências modernas, com grandes janelas de vidro e com uma vida urbanaplanejada para os cidadãos, que já contava com diversos serviços e com opçõesde lazer como cinemas, boates, restaurantes e locais para passeios.36 Brasíliaconsagrava, de uma vez por todas, a ousadia do plano de Lucio Costa e, maisainda, a genialidade criativa de Oscar Niemeyer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Cruzeiro veiculou o estilo de vida das grandes cidades, pautado em ideais deprogresso, desenvolvimento e consumo. As cidades brasileiras, naquele período,cresciam, se industrializavam, se adensavam e verticalizavam e teriam suapaisagem marcada cada vez mais por dois símbolos de modernidade:automóveis e edifícios de arquitetura moderna.

A arquitetura brasileira se renovava naquele momento e a “escola carioca” sedestacava no cenário internacional. A revista veiculou esta arquiteturaprincipalmente para ilustrar o desenvolvimento das cidades e do país, destacandoa obra de Oscar Niemeyer. Se no começo da década é possível dizer que haviaainda certa resistência às novas formas, no final dela havia plena aceitação danova arquitetura por parte da revista.

As mulheres com as quais O Cruzeiro dialogava eram esposas, mães, donas-decasa, habitantes das cidades e integrantes da classe média. As trabalhadorasurbanas, agricultoras ou donas-de-casa pobres tinham pouca representatividadeem suas páginas. Embora o quadro fosse de pouca alteração no papel damulher e em sua autonomia, algumas mudanças começavam a acontecer, comopor exemplo, a entrada de mulheres no mercado de trabalho, crescente, mesmoque não muito expressiva. Também passou a haver gradativa abertura paradenunciar condições de desigualdade às quais as mulheres estavam submetidas.

Em geral, nota-se a permanência de valores tradicionais simultânea à assimilaçãode valores modernos, tanto no papel da mulher quanto no espaço e cotidianodomésticos, configurando um momento de transição de mentalidade. Acoexistência do tradicional e do moderno é justamente a contradição da

33 A nova capital. O Cruzeiro, anoXXIX, nº 7, 01/12/1956, pp 106-113.

34 Isto é Brasília. O Cruzeiro, anoXXXII, nº 8, 05/12/1959, pp 62-71.

35 Brasília, o futuro já tem capital. OCruzeiro, ano XXXII, nº 30, 07/05/1960, pp I-XXI.

36 Conheça Brasília por dentro. OCruzeiro, ano XXXII, nº 33, 28/05/1960, pp 134-145.

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modernidade brasileira. Ela se deixa entrever, por exemplo, através daconceituação de uma mulher moderna, cuja virtude consiste em não abandonaros valores tradicionais, mas conciliá-los com o espírito dos novos tempos.

Por fim, conclui-se que dada a natureza dos conteúdos publicados, é possíveldizer que a contribuição da revista para a divulgação de ideais, princípios epadrões estéticos modernos foi real e certamente gerou impactos. Entretanto, épreciso pontuar que a influência de O Cruzeiro sobre os processos demodernização deve ser entendida na consideração do alcance real que a revistaobteve. Embora fosse uma das mais vendidas do período, a revista alcançava defato em suas edições cerca de 6% da população nacional, circulandoprincipalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que cria ressalvas quanto àextensão quantitativa e geográfica de seu impacto. A influência da revista pode tersido exercida da mesma forma por outros periódicos ou meios de comunicação,que também eram produto da mesma época e cultura. Embora muitos veículosde imprensa tenham contribuído para a assimilação da modernidade, O Cruzeiroainda pode ser tomado como o maior dos exemplos por se tratar da revista demaior alcance nacionalmente e por seu caráter assumidamente de vanguarda.

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Nota da AutoraNota da AutoraNota da AutoraNota da AutoraNota da AutoraEste artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica O morar moderno: oprocesso de transformação do espaço da casa e da vida doméstica pela revista“O Cruzeiro”, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo daUniversidade de São Paulo (FAUUSP), entre 2015 e 2016 com apoio da Fapesp(processo n. 2015/07441-8) e a orientação da Profa. Dra. Joana Mello deCarvalho e Silva, como parte da pesquisa O avesso da arquitetura moderna:domesticidade e formas de morar na habitação privada brasileira 1940-1960(Fapesp n. 2014/02756-8).

Beatriz dos Santos Alves Ventura FernandesAluna de graduação da [email protected]

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50 ResumoEste artigo tem por objetivo analisar os projetos residenciais do arquitetoRichard Joseph Neutra (1892-1970). A partir do levantamento de seusprojetos residenciais e da análise especial da Desert House (1946), tambémconhecida como Casa Kaufmann, avaliou-se o contexto histórico e o processocriativo do arquiteto, reconhecendo transformações sociais, especialmente notocante aos ideais de domesticidade, as relações de gênero e disciplinares.Contribuiu para a investigação o acesso à coleção Richard and Dion papers,1925-1970 (UCLA) que permitiu além da identificação de características dasociedade norte-americana a comprovação da singular relação que Neutramantinha com seus clientes em cada um dos projetos. Assim, entendendo acasa como um documento, a pesquisa pode contribuir para a história dahabitação moderna.

Palavras-chaveArquitetura moderna, domesticidade, Richard Neutra.

Felipe Kilaris Gallani

Orientadora: Profa. Dra. Joana Mello de Carvalho e Silva

FORMAS DE MORAR NOS ESTADOSUNIDOS: RICHARD NEUTRA

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65

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Este artigo tem o intuito de investigar mudanças nas formas de morar no Brasilem diálogo com os Estados Unidos da América. Para tanto, seu objeto de análisesão os projetos residenciais do arquiteto austríaco Richard Joseph Neutra (1892-1970). Radicado nos Estados Unidos desde os anos 1920, Neutra foi um nomefundamental da constituição de uma domesticidade específica, alinhada com osideais do American Way of Life, impactante entre clientes e arquitetos brasileiros,sobretudo aqueles que atuavam em São Paulo em meados do século XX.

Neutra parece entender as transformações nos modos de morar em cursonaquele país no segundo pós-guerra, desenvolvendo propostas não sóprojetuais, mas também técnicas para edifícios residenciais, compromissoassumido em vários trabalhos, inclusive no livro Architecture of Social Concern inRegions of Mild Climate (1948) que escreveu quando de sua passagem pelaAmérica Latina, quando travou contato com vários profissionais locais. Atento aosdesejos dos clientes que ele procurava atender, a obra do arquiteto permitecompreender as propostas disciplinares, os ideais de domesticidade e anseios desua época, as particularidades da sociedade norte-americana em processo deindustrialização no momento de constituição de sua hegemonia cultural. Deve-selembrar que a residência particular servia ainda como prova de sucesso de seuproprietário, o abrigo destinado a oferecer conforto aos seus moradores, aatender os ideais de democracia e ao elogio do empreendedorismo e dotrabalho.

Além dos aspectos já indicados, é característica do arquiteto sua convicção danecessidade de fornecer por meio da arquitetura a recuperação do contatohumano com a natureza, fundamental, do seu ponto de vista, por razõesfisiológicas. Justamente por um processo criativo que considerava o diálogo como encomendante, cada projeto do arquiteto é condicionado ao entendimentoespecífico do cliente, atrelado a conhecimentos científicos.

Ao longo da pesquisa, o diálogo com os clientes se tornou a questãofundamental, seja porque tratava-se de um aspecto recorrentemente indicadopela bibliografia, seja porque tais diálogos interessam na análise da assimilaçãodos preceitos da arquitetura moderna pela clientela privada no Brasil, questãocentral para a pesquisa da orientadora. A partir desses parâmetros e do limitetemporal de 1930 a 1960 definido para a pesquisa, foram selecionados osprojetos residenciais para John Nicholas e Anne Brown (1936-38), Stuart Bailey(1948) e Joseph e Sonia Staller (1955), de forma a avaliar a existência de umsingular processo criativo. Contudo, para uma investigação mais precisa eaprofundada da intimidade dos clientes que pudesse informar os ideais doarquiteto e daquela sociedade, optou-se por uma análise mais detida do projetoDesert House (1946), destinado ao casal Edgar e Liliane Kaufmann.

O aprofundamento da análise documental para este último projeto justifica-sepela busca de características recorrentes de sua obra em seus diálogos com umasociedade em processo de industrialização. Entendida como a materialização deuma somatória de documentos, suas casas permitem a compreensão nãoapenas da construção, mas, principalmente de seu processo de concepção; omodo como se estabeleciam as relações entre as partes envolvidas; a existênciade novos meios de produção e criação da arquitetura; as propostas de novasformas de morar que exprimem as características singulares de um ideal desociedade construído a partir dos Estados Unidos.

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Neste sentido, foi fundamental o grupo semanal de leituras e discussõesorganizado pela professora orientadora, voltado primeiramente ao contextointernacional e nacional de produção arquitetônica, concomitantes às leituras queauxiliassem na compreensão das formas e ideais de domesticidade em curso. Emsequência, foram lidos e discutidos textos específicos sobre a trajetória e a obrade Richard Neutra, de sua autoria ou de críticos, atentando-se para os diálogosentre Estados Unidos e Brasil. Além da revisão bibliográfica, a pesquisa se dedicoutambém a um amplo levantamento documental, analisando-se revistas de época -Habitat, Acrópole e Módulo -, projetos, ofícios e fotos relativos à produção doarquiteto na Califórnia. Parte desses documentos, fundamentais para acomprovação do seu processo criativo, seja do ponto de vista dos princípiosarquitetônicos, seja do ponto de vista das características, hábitos e desejos dosseus clientes, foram levantados nos arquivos da Universidade da Califórnia(UCLA), em sua Special Collections Library Department, no Getty Museum e noNeutra Institute for Survival Through Design.

De mesma importância também foram as entrevistas realizadas com Dion Neutra,arquiteto e filho de Richard Neutra, que destacou o processo investigativo de seupai aos clientes, a partir de um modelo-exemplo de “questionário”. A essecontato, pois, se deve a busca pelo que comprovaria o reconhecimento dacontribuição do cliente na concepção do projeto. Ademais, a recuperação inéditadeste documento seria a prova física e o caminho de descoberta dascaracterísticas mais íntimas daqueles que confiaram em Neutra e seu escritóriopara a criação de seus refúgios de privacidade.

Por este motivo, este artigo apresenta parte da pesquisa, enfatizando-se oempenho do arquiteto na extensa leitura do perfil de seus clientes. Aliás, éinegável que seus projetos assim tenham um valor histórico que ultrapassa ocampo disciplinar, afinal, eternizam os desejos da sociedade norte-americana emseu devido tempo e lugar. Resgatar tais nuances projetuais, estejam elas atreladasà escolha do material, do processo construtivo, da organização do espaço ou dasua relação com o meio ambiente, significa também o resgate da história dahabitação moderna.2

Para a análise da Desert House de Edgar e Liliane Kaufmann (1946), realizou-seuma minuciosa leitura dos duzentos e setenta e um documentos levantadosdiretamente na UCLA junto à busca por detalhes característicos não apenas dosclientes, como também dos ideais de domesticidade da sociedade norte-americana daquele período. Colaborou para a contextualização e odesenvolvimento do texto as interpretações de Adrian Forty, em seu livro Objetosde Desejo (2007).

Sabendo disso e lembrando do entendimento da casa como a celebração doencontro entre cliente e arquiteto, o início da construção da Desert House deveser visto a partir do pedido de uma residência para temporadas de inverno porEdgar J. Kaufmann e sua esposa Liliane [1], no dia 5 de Fevereiro de 1946 - umadécada após o mesmo casal solicitar ao arquiteto Frank Lloyd Wright a residênciaque ficou conhecida como Fallingwater (1935-1939).

Em sua carta, escrita em sequência à conversa telefônica com o arquiteto, Edgarformaliza alguns requerimentos, indicando as dimensões e a localização dosterrenos de seu interesse em Palm Springs. Segundo o cliente, a casa deveria tera sala de jantar à parte da sala de estar, uma cozinha com armários metálicos

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dimensionados de modo a guardar bem os eletrodomésticos. O quarto do casaldeveria ter um grande closet para a Liliane e, junto a ele, um ambiente para queo próprio Edgar pudesse se vestir. O quarto deveria ainda ter dois banheiros, umpara cada um dos membros do casal, e o ambiente para se vestir deveria ser detamanho considerável, com guarda-roupas e gavetas. Outros dois quartos,grandes o suficiente para dois leitos, deveriam ser previstos, cada qual com seubanheiro. Somente um dos banheiros deveria ter banheira, considerando que ocasal não tinha o hábito de usá-la. A casa deveria contar ainda com umagaragem e quarto com banheiro para os funcionários.

Esse primeiro documento já pode ser entendido como uma possibilidade dedescoberta de características daquela sociedade em seu devido tempo. EdgarKaufmann revela a preferência do casal para banheiros independentes,ressaltando a falta do hábito de uso de banheira. A indicação de banheirosindependentes revela a preocupação com a intimidade, mesmo entre os membrosdo casal. A partir deste primeiro sinal de confiança, com informações dos hábitosde uma rotina privada, o cliente progressivamente abre-se ao arquiteto, permitindoa elaboração de um projeto que atenda às suas particularidades. Mais do queisso, ao que parece, a preocupação com a higiene é evidenciada com adeterminação de revestimento metálico para a cozinha e área de serviço,indicando uma associação do material com a preservação da saúde.

A princípio curiosas e talvez excêntricas as primeiras solicitações do casal, deve-seatentar às duas primeiras décadas nos continentes europeu e norte-americano,com a divulgação do ideal moderno de casa estritamente associado não só aoideal de eficiência de tempo e de recursos, mas também ao de higiene, ditandoos novos modos de morar com a adesão de maior expressão nas décadas de1920 e 1930. Nesse sentido, é interessante a perspectiva do autor Adrian Fortyem seu capítulo “Higiene e Limpeza”, no qual recupera as mais famosas formasde expressão da beleza através do ideal de limpeza desde o “Manual daHabitação” de Le Corbusier, em Vers une Architecture (1923). Forty argumentaainda que o ideal higienista e a preocupação com a limpeza para além de seassociarem às ações reformistas de controle sanitário e moral por parte dasclasses médias e das classes operárias - ainda que de modos e com sentidosdiversos -, atenderiam a busca por conforto físico e psíquico, incluindo aíaspectos vinculados à beleza. As preocupações de Richard Neutra parecem seinserir dentro desse contexto.

No entanto, tal discurso enfrentou dificuldades de aceitação calcados apenas emjustificativas científicas dentro do ambiente privado. Para Forty, somente com ocondicionamento emocional da população, a partir da divulgação de imagenspara a determinação dos padrões de higiene pelos anunciantes, designers efabricantes, o público assimilou o novo conteúdo. A inquestionável relação entresujeira e doença, agora foi utilizada a favor da publicidade para o aumento devendas dos utensílios domésticos industrializados. Enquanto que a primeirademonstrava um valor pessoal, não sendo absoluta, a segunda poderia serverificada, valendo-se intencionalmente da condição de limpeza como algosagrado, semelhante a uma realidade inatingível. Quanto a isso, Forty questiona ahipótese de que horas na escola, livros e artigos de revistas serviriam à totaltransformação higienista na sociedade, não convencendo-o. Somente com alinguagem dos objetos e a percepção de seu poder em transmitir mensagens editar novos parâmetros que o design incorporou os ideais da limpeza obrigatória.

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Para tanto, é válido o resgate da substituição de motivos morais e estéticos peladeterminação da higiene desde 1910, notavelmente disseminada através dopróprio design dos objetos. Neste primeiro momento, o crescentedesenvolvimento de utensílios destinados à vida doméstica, encontrou ajustificativa da eficiência em promover a limpeza, alimentando a paranoia dahigiene. Em consequência, não seria justa a afirmação de que o tempo gasto comas tarefas domésticas foram reduzidos, mas, que os padrões de limpezapassaram a ser mais altos, implicando em mais ações de trabalho dentro de casa.

Em um segundo momento, com as descobertas da indústria automobilística deque o consumo aumentava com a introdução de novos designs, a aparência dosutensílios domésticos incorporou novos ritmos e expressões. A redução doscustos com materiais e componentes da mesma forma seguia a defesa de novasestéticas, inevitavelmente regradas para o aumento das vendas. Novas máquinasde lavar, aspiradores de pó, geladeiras e seus semelhantes, afinal, criaramoportunidades para a incessante construção dos incisivos valores de limpeza quepassaram a orientar não só as suas funções, mas também o seu desenho.

Finalmente, é justo o entendimento deque a capacidade de tradução de umamensagem pelo design, com adeterminação objetiva da eficiência àmaior limpeza, impulsionou à crescentecompulsão pelo consumismo. Assim,ainda que destacada por higienistas emfunção de preocupações com a saúdeindividual e coletiva, a sujeira como causado sofrimento e a limpeza como suasolução, apenas se transformou emrealidade padrão pela ação do comércioe da indústria, com os avanços domarketing e da publicidade.

Tais transformações - em sintonia com operíodo determinado da produção deRichard Neutra -, devem ser analisadas,especialmente quanto às consequentestransformações da vida privada, e narelação com outras mudanças em curso,notadamente aquelas relativas àseparação entre casa e trabalho. Paramelhor compreensão desses aspectos,são importantes as análisesdesenvolvidas por Adrian Forty em seucapítulo “O lar”.

No processo de distinção entre osespaços de moradia e os espaços deprodução, que se intensifica a partir dametade do século XIX, Forty aponta quepassa a valer uma associação complexaentre as atividades domésticas e criadas

[1] Documento inicial deconversa entre o casalKaufmann e Richard Neutra.Collection 1179. Box 119. F.2.Richard & Dion Neutra Papers:Client FilesKaufmann, EdgarCorrespondence. February –June 1946

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– vistas como inferiores e indignas. Dessa forma, qualquer que fosse o esforçofísico dentro de casa era visto como algo impróprio, sobretudo quando realizadopelas donas de casa de classe média ou das elites. Seguindo de formamascarada, o trabalho dentro de casa somente seria justificado se este fosseassumido como cuidado com a família e o lar. Mesmo o trabalho realizado pelascriadas deveria ser escondido e, portanto, totalmente separado e distante dasáreas de estar e íntima.

No entanto, com o desenvolvimento das metrópoles e as transformaçõeseconômicas em processo de industrialização, a manutenção da ordem domésticaexigiria revisões. Sua principal alteração talvez possa ser entendida com acontribuição do Mito da criada mecânica, afinal, a ideia de que os novoseletrodomésticos substituiriam as criadas significou reflexos comportamentais.Nesse sentido, deve-se à publicidade – elo de convencimento entre quemconsome e quem produz – a manutenção do sistema. Intensificando-se, aindacom a propaganda dos eletrodomésticos afirmava que os mesmos poupariamtempo em cada tarefa, não seria verdade afirmar que com eles o gasto de tempocom o trabalho doméstico diminuiu. Para Forty,

O que parece ter acontecido é que os aparelhos tornaram mais leve o fardo epouparam tempo em certas tarefas, mas também tornaram possível atingirpadrões mais elevados. Desse modo, o tempo economizado era gastofazendo a mesma tarefa, ou outras, com mais frequência e melhor (FORTY,2007: 284).

O aumento no número de tarefas e dos níveis de exigência com a limpeza ehigiene tem relação com o que indicamos acima, seja do ponto de vista médico,sanitário, seja do ponto de vista das estratégias de consumo e de separaçãoentre as esferas do descanso e do trabalho. De todo modo, se nesta primeirainstância a publicidade auxiliou o início da mudança significativa de modos demorar em defesa da eficiência dos produtos, em um segundo momento, estasuportaria outro argumento: a própria substituição das criadas. Mesmo comclientes de poder aquisitivo significativo, a difusão de tal ideologia assimilariainconscientemente o objeto eletrodoméstico à criada, a ilusão a quem nuncahavia tido empregada doméstica, da conquista de status na sociedade, comouma nova senhora servida de criadas. A questão é complexa e exigedetalhamento. Para Forty, nos Estados Unidos houve rapidamente uma mudançanas formas de relação de trabalho, com a incorporação de um contingentesignificativo de mulheres, que antes assumiam o papel de empregadasdomésticas, pela indústria. Essa transformação foi sentida sobretudo pelasmulheres de classe média que passaram a ter que abraçar um conjunto detrabalhos realizados anteriormente pelas criadas. Para elas os eletrodomésticosassumiriam não só o papel de facilitar as atividades, como também de distingui-las do trabalho manual e artesanal das empregadas. Ao mesmo tempo, entreaquelas mulheres cujo poder aquisitivo permitia a contratação de domésticas, oseletrodomésticos serviam a afirmação de modernidade e vanguardismo, deatendimento às exigências de higiene e limpeza.

O desenvolvimento da estética aos utensílios domésticos veio em seguida. Aprodução em massa, principalmente após o ano de 1930, abandonou asexclusividades, e, com ela, os objetos voltaram-se também ao uso pelas donas decasa. A referência direta à eficiência das fábricas com o design dos objetospassou a ser oposta à mais nova prioridade: a praticidade e a necessidade da

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não associação doméstica aos ambientes de trabalho. Difícil, segundo o autor, édefinir quando isto ocorreu, sendo mais apropriada a sua definição como umprocesso. Difícil também é responder ao questionamento de se este designemergiu para satisfação do consumidor ou se apresentou como um resultado depersuasão. Nesse processo, a linguagem dos eletrodomésticos antes maispróximas do maquinário industrial, foi se aprimorando tanto em termos delimpeza e uso, quanto em termos estéticos. Materiais de fácil limpeza emanutenção, desenho com cantos arredondados e linhas sintéticas atenderama esse conjunto novo de exigências funcionais e simbólicas. Esse conjunto dereflexões ajudam a circunscrever as exigências de Edgar quanto a separação dacozinha e sua determinação de revestimento metálico, assim como a distânciado quarto dos proprietários e hóspedes das áreas de serviço, bem como asescolhas de materiais.

Seguindo os primeiros passos do desenvolvimento do projeto, Neutra comentacom Edgar Kaufmann o seu grande entusiasmo com o projeto, documentandoem 18 de fevereiro de 1946 os primeiros contatos com engenheiros estruturais eempreiteiros. Ao mesmo tempo, desde a declaração inicial do cliente acerca dodesejo de construção de sua casa, pode-se dizer que o processo criativo seguiufiel ao princípio defendidos pelo arquiteto. Em nenhum momento, a partir do que

os documentos demonstram, Neutraassumiu uma postura impositiva,sustentando o ritual de dialogar com seucliente, propondo soluções em comumacordo.

Tal processo investigativo, segundo asanálises, é mantido e incentivado a partirde diferentes tipos e formatações dedocumentos. Para a Desert Housepredominam as cartas entre os clientes,mas, são notáveis também diversostelegramas telefônicos, fotografias,anotações de telefonemas e osanteriormente mencionados“questionários”. Distintossignificativamente, estes últimos parecemabranger um campo maior deinformações, diretamente associados àbusca por particularidades. A partir deles,são apresentados desejos e hábitosespecíficos, descobertos durante umaconversa.

Inaugurando uma sequência desimilares documentos investigativos paraa concepção da Desert House, odocumento [2] do dia 19 de fevereirode 1946 reafirma a existência dos“questionários” como uma constante noprocesso criativo do arquiteto. Para esteprimeiro caso, notam-se requerimentos

[2] “Questionário” investigativoao casal Kaufmann.Collection 1179. Box 119. F.2.Richard & Dion Neutra Papers:Client FilesKaufmann, EdgarCorrespondence. February –June 1946

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como Hercules glass aos painéis deslizantes, forno elétrico e a gás para acozinha, aquecedor elétrico para os banheiros, quartos de visitas e defuncionários e a possibilidade de reuso da água pluvial para a piscina. Ao mesmotempo, destacam-se informações que talvez jamais fossem descobertas sem esteparticular processo investigativo, a exemplo das solicitações de uma mesa paraum teleimpressor ao ambiente de troca de roupas de Edgar Kaufmann, dosdevidos acabamentos para a lareira e da necessidade de alteração da entrada daresidência, prevendo-se uma porta deslizante para o armário de roupas deinverno.

A continuar a leitura dos documentos, recupera-se também o esforço e interessede Edgar Kaufmann a cada detalhe da residência em sua carta a Richard Neutrano dia 5 de agosto de 1946. No documento, Edgar responde a uma série defotografias a ele enviadas, para a aprovação ou não do progresso com orevestimento de pedras. Edgar ainda comenta sobre os sistemas de aquecimentoe resfriamento da residência, esperando não encontrar nenhum tipo deproblema no futuro.

Em meio a demais comentários, no entanto, é preciosa uma de suasobservações. Atento às mínimas escalas do projeto, o cliente exige uma diferençamáxima de uma polegada para a largura do revestimento da área externa einterna, não devendo ser aparente vestígios mecânicos. Sua associação incômodaentre o revestimento natural e o trabalho realizado, não deve ser vistaexclusivamente em seu sentido literal. Ao contrário, deve-se atentar às suaspossíveis interpretações além das esferas materiais.

Uma interpretação possível parte do reconhecimento do rápido crescimento dascidades norte-americanas por conta dos avanços industriais da época, induzindoa uma urbanidade ainda não completamente assimilada. Os vestígios deexternalidades indesejáveis, como a demasiada ordem no posicionamento daspedras para o revestimento, incomodariam pela transgressão do sentido derefúgio da casa, pela memória do trabalho.

Com o advento da fábrica pela revolução industrial, o trabalho que anteriormenteera realizado no mesmo ambiente de abrigo de seus moradores foi separadodas atividades habituais de comer e dormir. Consequentemente, e em vista daspéssimas condições iniciais de trabalho nas fábricas, a oposição de um a outro éexaltada. Ou seja, se a função do trabalho – precário – é enfrentadaexclusivamente dentro das fábricas, para as demais atividades, buscou-se oisolamento da indústria. Explica-se tal reação pela necessidade humana de viversem a constante sensação de opressão, suficientemente presente nas fábricas.

É óbvio que as fábricas são resultado da revolução industrial, mas raramentepensamos que os lares, tal como os conhecemos hoje, são uma criação damesma revolução (FORTY, 2007: 137).

Desta forma, desde sua decoração, até o design dos utensílios, cada escolha viriaa ser mostra avessa da vida nas fábricas. O reflexo trouxe o questionamento docenário apropriado para o lugar do não-trabalho. Para a burguesia, a respostafoi de um palácio protegido em meio à natureza, rico de intimidade e conforto,palco de consumo e segredos.

A continuação dos diálogos investigativos parece priorizar detalhes queisoladamente poderiam ser encarados como preciosismos, mas, entendendo-se

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os princípios arquitetônicos de Neutra e o conjunto da obra, devem serencarados como essenciais. O cuidado com a mínima escala traduz os esforçosdo arquiteto e de seus clientes para a materialização de um universo de máximoconforto. As liberdades criativas, assim, são conduzidas por particularidades. Se noinício do processo foram assumidas diretrizes gerais, com o avanço construtivo, odesenho volta-se à solução de pontualidades.

Finalmente, quase dois anos após o primeiro contato documentado entre osclientes e o arquiteto, o primeiro inverno com a apropriação do espaço pelosproprietários é anunciado. Após um extenso processo investigativo, pontualmenterecuperado a este artigo, Edgar Kaufmann escreve uma carta a Richard Neutra nodia 13 de janeiro de 1948, afirmando sua recém chegada na residência. Aacomodação acompanhada de algum mal-estar de saúde não impede oproprietário de comentar que não necessitava de nenhuma ajuda de Neutra,mas, que caso algo extraordinário fosse notado, entraria em contato.

O breve documento celebra o primeiro dia de ocupação humana na DesertHouse, mas não o seu final construtivo. Afirmar que uma vez ocupada, a casapoderia ser considerada pronta, é incorreto. Os anos seguintes guardavamreconsiderações construtivas dos clientes, ao mesmo tempo em que o arquitetoconstruía fotograficamente sua memória. O documento [4] comprova a

[3] Kaufmann House.Julius Shulman photographyarchive,1935-2009, Job 093.© J. Paul Getty Trust. GettyResearch Institute,Los Angeles (2004.R.10)

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inexistência de um fim para a residência, seja pelanecessidade de sua constante documentação emimagens, seja pela sua não configuração como algointocável - principalmente constatado com requerimentosde adaptações espaciais nos ambientes já construídos.

A manutenção do diálogo entre arquiteto e cliente parecetambém propiciar a continuidade do processoinvestigativo e criativo, incorporando transformações aosambientes. Comprova-se com o documento [4] deRichard Neutra a Edgar Kaufmann, no dia 17 de fevereirode 1953, a necessidade de reparos na cobertura daresidência e suas primeiras ideias para corresponder àintenção do cliente em expandir a sala de estar.Recuperando os desenhos do projeto original paraconsulta, Neutra anexa à carta outras duas páginasexplicativas sobre as alterações do projeto, com um totalde três desenhos de estudo.

Em seu primeiro comentário, Neutra indica uma propostapara o assento ao lado da lareira, assumindo um carátermais técnico do que artístico para o desenho. Éapresentada a intenção de prateleiras ajustáveis, novosrevestimentos, e o reposicionamento das tomadaselétricas e de telefone. Para um segundo esclarecimento,o arquiteto revela as intenções de alteração no hall deentrada da residência. Após a interpretação derequerimentos e preferências do cliente, propõe-se que oarmário para roupas de inverno deveria ser removidopara dar lugar a um tronco, escultura ou plantas dodeserto. Os revestimentos do hall também deveriam seralterados e uma parede demolida. Neste caso, a consultaaos desenhos executivos confirma a importância de seuarquivamento, visto que revelaram o conflito com aestrutura de resfriamento da casa. Para o terceiroesclarecimento, Neutra descreve alterações para avalorização do armário próximo à entrada da residência,contando também com outros revestimentos e novailuminação.

Os diversos estudos para a sala de estar recuperam aideia de inexistência de um fim para a construção daresidência. Seja por parte do cliente que volta a conversarcom o arquiteto, ou por parte de Richard Neutra que dá

[4] Carta de Richard Neutra a Edgar Kaufmann.Collection 1179. Box 120. F.5.Richard & Dion Neutra Papers: Client FilesKaufmann, EdgarCorrespondence. September 1947 – May 1948, 1953.

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continuidade ao seu desenvolvimento criativo, é valiosa a percepção da casacomo uma construção relativamente flexível. Conjuntamente à percepção detransformações de hábitos e comportamentos, ambos concordam nanecessidade do apoio transformativo do ambiente.

Entendendo a evolução construtiva e suas inevitáveis alterações espaciais, umaúltima análise documental da Desert House voltou-se aos desenhos executivosassinados por Richard J. Neutra em 1946. Os desenhos fornecidos pelo NeutraInstitute for Survival Through Design, apresentam as plantas, elevações e cortesdo projeto. Pode-se imaginar desde a sua implantação até a especificação dosacabamentos, uma hipotética inserção em cada ambiente, valendo-se dascaracterísticas históricas, o ideário do arquiteto e particularidades dos clientes.

Volumetricamente, a Desert House é disposta caracteristicamente, de forma similarempregada por Richard Neutra em seus projetos para Warren e KatharineTremaine (1948), Fred e Alicia Adler (1956), Charles Oxley (1958) e Martin Rang(1961). Quatro diferentes alas da casa abrigam cada qual uma função diversa. Asemelhança do desenho a um cata-vento traduz para os ambientes ao norte asduas suítes de hóspedes e um pátio aberto. A oeste, são dispostos os ambientesde serviço como cozinha e depósito, além dos dois quartos para funcionários. Aosul, é destinado o abrigo para carros e disposto o caminho de acesso àresidência. Finalmente, a leste, Neutra determina o quarto dos proprietários,conectado visualmente e fisicamente com a área externa da piscina.

Intencionalmente planejado como um amplo ambiente de encontro dasdiferentes alas, a sala de estar incorpora a sala de jantar, destacando acentralidade da lareira ao restante da casa. A confluência dos possíveis fluxospara um mesmo espaço, assume importância maior ao volume revestido depedra, dando continuidade aos mesmos significados gradualmente desenvolvidospor Frank Lloyd Wright - com quem Neutra trabalhou assim que chegou aosEstados Unidos - que culminam na expressão simbólica e praticamente sagradada lareira. É este o elemento que apresenta ao visitante a importância doconforto para o lar, evidenciando um foco de reunião, também pela proximidadeda própria mesa de jantar.

A amplitude deste ambiente central também confere um caráter propício àobservação das dinâmicas internas e externas da residência. Para alguémposicionado na sala de estar, qualquer movimentação na ala dos quartos dehóspedes, piscina ou quarto dos proprietários pode ser percebida. A exceção docontato visual, intencionalmente, volta-se à área de serviço, com uma cozinha,dois quartos de funcionários e um depósito. Neste sentido, a separação dorestante da casa - ainda que exista uma mesma linguagem arquitetônica equalidade espacial - é evidente.

A segregação visual da ala oeste, com seus ambientes e usos praticamenteescondidos, indica significados maiores que os fomentados pela distinção declasses. O não contato com o que garante a funcionalidade da casa, ao queparece, indica novamente os desejos de conforto do lar a partir do esquecimentoda atmosfera de trabalho. Associa-se a esta disposição espacial a criação de umuniverso de ilusões, em que as refeições, a limpeza e a ordem façamobrigatoriamente parte da da casa, sem que existam vestígios de seus esforços.

Seguindo a busca pela materialização de outros ideais do arquiteto, comprova-sea valorização do contato entre o ambiente interior e exterior da residência. Com

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generosas aberturas, além de canteiros para vegetação, a condução doobservador à natureza é aliada aos planos horizontais do forro ininterruptos pelaindiferença de altura do pé-direito dentro ou fora da casa. Justamente nestesespaços de transitoriedade, com a projeção da cobertura, que a sensação decomunicação com a natureza assume continuidade.

A máxima desta virtude do projeto, teoricamente defendida pelo arquiteto, é vistana gloriette. Determinada pela palavra de origem francesa, empregadausualmente a construções com jardins em um local elevado, não são consentidasformalidades construtivas, mas, determinado um espaço aberto de contemplaçãoda paisagem, tal como tinha sido proposto na Casa Schindler, projetada por seuconterrâneo, o arquiteto Rudolf Schindler (DATAS), onde Neutra morou quandonos primeiros anos em que se transferiu para Los Angeles. Com acesso por umaescada externa, o único ambiente da casa disposto no primeiro pavimentoapresenta a continuidade da lareira da sala de estar junto ao seu mobiliário solto.Novamente como o volume fixo próprio do ambiente, a lareira é contrastante àspersianas verticais de alumínio, possivelmente alternadas de posição para aproteção do vento.

Quanto à área de lazer da casa, disposta com a piscina no extremo leste daresidência, parece certo afirmar em um primeiro momento sua controvérsia.Ocasionalmente, pode-se imaginar a exposição indesejada do quarto dosproprietários a convidados, mas, se considerado o emprego de cortinas e areflexibilidade prevista nos planos de vidro, a privacidade não deveria serprejudicada. Sua disposição, ao contrário, talvez seja de fato a que melhor seadeque às dinâmicas e usos da residência, também devendo-se considerar seufundamental papel ao equilíbrio de implantação proposto.

Para o projeto, percebe-se também a preocupação com a relativa reconfiguraçãodos ambientes. Notável na sala de estar, nos quartos de hóspedes e dosproprietários, a existência de painéis de vidro deslizantes garante a alteraçãoespacial a partir das necessidades de conforto e privacidade, além de criar ouimpedir novos acessos. Neutra promove, em certos aspectos, a interação dousuário com o ambiente construído, permitindo sua acomodação sem queexistam imposições como planos fixos.

A predominância horizontal da Desert House aproxima a vivência dos moradoresà paisagem exuberante do seu entorno. Os vazios internos da residência, comoum pátio entre a sala de estar e os quartos de hóspedes, defendem a ideia detransitoriedades imperceptíveis para o bem-estar. Ao passo que a mudança deambientes internos e externos não é declarada, mas sutil, o arquiteto cria certaexperiência sinuosa. Valendo-se de ideais de limpeza visual para o menordistúrbio espacial, os materiais empregados parecem solidificar a relação com ouso do vidro, aço, madeira e pedra. Como exemplo, deve-se destacar acontinuidade dos materiais de piso e forro, justamente nos espaços detransitoriedade dos ambientes internos e externos.

Esta proposta de uma nova forma de morar, junto ao dado numérico da comprade 2,4 milhões de novas residências em 1948 nos Estados Unidos, finalmentepermite a discussão das mudanças econômicas também como um reflexo demudanças sociais e comportamentais. Como mostra de uma construção capaz deabrigar a vida moderna, Neutra destaca a necessidade do acompanhamento damodernização da casa junto às já notáveis transformações na rotina de seus

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habitantes. O arquiteto destaca a revoltante existência de muitos que trabalhavamem escritórios modernos, dirigiam automóveis como um Studebaker e, ainda assim,resistiam às novas proposições para a vida privada. A esquizofrenia de negação daresidência em sintonia ao moderno deveria ser revista do seu ponto de vista.

A Desert House, assim segue as proposições do arquiteto, posteriormente comoutros proprietários. A falta de cuidado com a manutenção da residência, sem valerde preocupações para a preservação da proposta moderna de habitação, noentanto, foi contornada com sua compra por outro casal apreciador de casasmodernas do século XX. Hoje, contando com a colaboração de Julius Shulman, acasa encontra-se restaurada, podendo ser considerada um marco para a históriada arquitetura. Um marco não só em função da expressão dos ideaisarquitetônicos de Neutra, mas também como símbolo de um conjunto de ideais dedomesticidade que então se configuravam nos Estados Unidos do Segundo Pós-Guerra e que terão forte impactos em outras localidades, como o Brasil e maisespecialmente São Paulo. As investigações e análises aqui desenvolvidas podemcontribuir para a avaliação desses impactos e as reflexões sobre os diálogos demodernidade arquitetônica entre o norte e sul do continente americano.

Esta pesquisa reconhece que em razão de novas dinâmicas globais,gradualmente regradas ao ritmo industrial, a casa da mesma forma insere-senesse contexto, é parte da materialização das transformações na sociedade. Maisdo que apresentar elementos de inovação espacial, técnica e construtiva, esta étambém elemento-chave à compreensão do comportamento humano e de suaadaptação aos novos ritmos, aos seus desejos e necessidades da modernidade.

Além disso, com o acesso à valiosa coleção Richard and Dion papers, 1925-1970 -doada por Frank, Raymond, Dion e Dione Neutra à Universidade da Califórnia(UCLA) -, puderam ser identificadas as características desta sociedade,

[5] Fotografia selecionada daKaufmann House.Julius Shulman photographyarchive,1935-2009, Job 443.© J. Paul Getty Trust. GettyResearch Institute,Los Angeles (2004.R.10)

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principalmente em razão da leitura minuciosa das cartas, “questionários” etelegramas originais, documentos que também comprovam as extensasinvestigações dos clientes. Neste sentido, a análise particular da Desert House(1946) complementa o entendimento dos princípios que orientavam a produçãode Richard Neutra, seu contexto histórico, as características íntimas desta sociedadee os diálogos com a arquitetura moderna brasileira. É possível destacar ainda aimportância da leitura dos diversos tipos de documentos, essencial ao detalhamentoda relação arquiteto-cliente. Permite-se, assim, a ampliação e a continuidade desta ede outras pesquisas dedicadas à produção e ao ideário de Richard Neutra – vistoFernanda Critelli (2015) e Patrícia Ribeiro (2007) - com a possibilidade do maiordetalhamento do contato internacional entre os arquitetos desta época, a saber apredominância, ou não, dos impactos em ambos os sentidos.

[6] Plantapavimento térreosem escala daKaufmann House.Disponivel atravésdo Neutra Institutefor SurvivalThrough Design.Richard & DionNeutra Architects &Associates.© 1998 All rightsreserved.

[7] Elevação Leste sem escalada Kaufmann House.Disponivel através do NeutraInstitute for Survival ThroughDesign.Richard & Dion NeutraArchitects & Associates.© 1998 All rights reserved.

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Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65

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Felipe Kilaris GallaniAluno de graduação da FAUUSP.

Nota do AutorNota do AutorNota do AutorNota do AutorNota do AutorEste artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica Formas de morar nosEstados Unidos: Richard Neutra, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura eUrbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), entre 2015 e 2016 comapoio do programa PIBIC CPNq e a orientação da Profa. Dra. Joana Mello deCarvalho e Silva como parte da pesquisa O avesso da arquitetura moderna:domesticidade e formas de morar na habitação privada brasileira 1940-1960(Fapesp n. 2014/02756-8).

O texto completo do relatório final de pesquisa está disponível em: <http://issuu.com/felipekilarisgallani/docs/neutra?workerAddress=ec2-54-163-32-250.compute-1.amazonaws.com>.

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66 ResumoA pesquisa visa compreender as políticas de oferta e demanda da produçãohabitacional proveniente dos processos de urbanização em favelas; oprocesso de cadastramento e atendimento habitacional, incluído políticas dedistribuição das unidades e sua relação com as questões de remoção ereassentamento. Através do estudo de caso na favela Nova Jaguaré, buscou-se compreender como essas questões se resolveram, relacionando quem sãoos moradores dos conjuntos habitacionais produzidos no processo deurbanização, e qual a relação deles com a população da favela Nova Jaguaré. A pesquisa se estabelece na favela Nova Jaguaré, contextualizada no períododas obras de urbanização de 2005 a 2010. Como uma das mais antigas dacidade de São Paulo, sofreu intervenções de várias gestões municipais, desdecasos pontuais de provisão habitacionais, infraestrutura, até a elaboração eexecução de projetos de urbanização. O recorte territorial, portanto, ofereceuma visão mais completa e multifacetada dos objetivos previstos para essapesquisa. Ademais, alguns projetos de pesquisas já realizados no local deestudo, incitaram questões a serem respondidas, além de se apresentaremcomo importantes subsídios para a formulação de um estudo mais completosobre a favela Nova Jaguaré.

Palavras-chaveUrbanização de favelas, conjuntos habitacionais, unidades habitacionais, NovaJaguaré.

Lais Boni Valieris

Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Zuquim

OS MORADORES DOS CONJUNTOSHABITACIONAIS DA FAVELANOVA JAGUARÉ E SUAS RELAÇÕESCOM A POPULAÇÃO LOCAL

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré esuas relações com a população local – p. 66-79

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1. INTRODUÇÃO

A questão da habitação é algo que tange o estudo de arquitetura e urbanismoem praticamente todas as suas áreas. Concerne inclusive no que diz respeito aodireito à cidade. A produção de habitação de interesse social, maisespecificamente, constitui um dos principais focos de necessidade de ação dopoder público, visto que a questão da moradia no Brasil, e em São Paulo éemergencial. O Plano Municipal de Habitação de São Paulo, de 2009, colocacomo ponto central a questão da habitação para garantir o direito à cidade,afirmando que “a moradia digna é entendida como vetor de inclusão socio-territorial, que garante a construção da cidadania a todos os moradores.”. Torna-se claro, portanto, que os estudos sobre a produção habitacional e as políticasque tangem o assunto, devem ser realizados de maneira contínua.

Desconsiderando ainda o debate mais atual sobre a modalidade de atendimentoe os novos programas como o de locação social, no que diz respeito à provisãode moradia feita através do repasse da propriedade habitacional aos moradores,há ainda muitas questões por traz do processo de produção de habitação,cadastro e a distribuição dessas novas unidades. Essas questões, que não sãoclaras nem para pesquisadores, muito menos para as famílias incluídas nosprogramas de habitação, constituem uma grande barreira para se entender e porfim, buscar soluções concretas para a questão habitacional na cidade de SãoPaulo. A falta de informações no que diz respeito à pré-ocupação, torna oprocesso de ocupação das unidades de difícil entendimento, econsequentemente, ainda mais distante da população que mais necessitaentende-lo. Por mais que os processos de elaboração de projetos e intervençõesem assentamentos precários tenha evoluído ao longo dos anos no que dizrespeito, principalmente, à participação popular, o pós projeto, ou seja, a formacomo ele será construído, ofertado e gerido de maneira adequada, ainda não écompreensível. As questões relacionadas às remoções e ao reassentamento daspopulações das favelas ainda são muito complexas e sem uma forma clara deatuação, e pouco se consegue estudar para propor novos métodos.

A pesquisa visa compreender as políticas de oferta e demanda da produçãohabitacional proveniente dos processos de urbanização em favelas; o processo decadastramento das famílias e atendimento habitacional, incluído as políticas dedistribuição das unidades habitacionais e sua relação com as questões de remoçãoe reassentamento. Para tanto, através do estudo de caso na favela Nova Jaguaré,buscou-se compreender como essas questões se resolveram, relacionando quemsão os moradores dos conjuntos habitacionais provenientes do processo deurbanização, e qual a relação deles com a população da favela Nova Jaguaré.

1.1. Justificativa e objetivos

O foco da pesquisa se estabelece na favela Nova Jaguaré, contextualizada noperíodo das obras de urbanização de 2005 a 2010, com foque nos trêsconjuntos habitacionais produzidos nesse período – Kenkiti Simomoto,Residencial Alexandre Mackenzie e o conjunto Nova Jaguaré. A favela do Jaguaréé uma das mais antigas da cidade de São Paulo, e sofreu intervenções de váriasgestões municipais, desde casos pontuais de provisão habitacionais, arelacionados à infraestrutura, até a elaboração e execução de projetos deurbanização. Portanto, esse recorte territorial ofereceu uma visão muito mais

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completa e multifacetada dos objetivos previstos para essa pesquisa. Ademais,existem muitos projetos de pesquisas realizados no local, os quais incitaramquestões a serem respondidas, além de se apresentarem como importantessubsídios para a formulação de um estudo mais completo sobre a favela NovaJaguaré. É importante ressaltar, em especial, os projetos de iniciação científica daMárcia Trento, realizada em 2011, a qual procurou entender quais foram asmudanças físicas propostas pelas diversas intervenções, e a pesquisa da BrunaSato de 2013, partindo das intervenções estudadas pela Márcia, procurouentender o impacto que esses projetos tiveram no que diz respeito às remoçõesdas famílias afetadas pelas mudanças físicas da favela, além disso, a Brunatambém procurou entender quais foram as respostas de atendimentohabitacional oferecidas à essas famílias removidas, considerando a produção dasunidades habitacionais produzidas no período de recorte da presente pesquisa.

Como objetivo principal, portanto, a presente pesquisa procurou darcontinuidade ao extenso processo de entendimento sobre a favela do Jaguaré jáiniciado pelos diferentes autores, e como forma de contribuição se propôs aentender os moradores dos conjuntos habitacionais produzidos no território noperíodo das obras de urbanização (2005-2010), e a relação deles com apopulação local. Para tanto, compreender como ocorreu o processo dedistribuição das unidades habitacionais se torna primordial, processo que incluitambém questões relacionadas ao cadastramento, reassentamento das famíliasremovidas e por fim o destino das unidades habitacionais produzidas, buscandocompreender intrinsecamente ao processo, quais critérios e lógica fora usada.

1.2. Desenvolvimento da pesquisa

A pesquisa se iniciou através da análise de dados secundários, pelos quais,buscando-se compreender o recorte território, seu percurso histórico deformação, incluindo as intervenções físicas e propostas políticas feitas na região aolongo das diferentes gestões municipais. Além disso, a base teórica inicial tambémse propôs a entender os dados oficias disponíveis sobre o processo deurbanização ocorrido no período de 2005 a 2010, se atendando principalmentepara questões relacionadas aos processos de remoção, cadastramento edistribuição das novas unidades habitacionais produzidas no local - objetivo destapesquisa. Nesse primeiro momento também se realizou a formulação dosquestionários, os quais visaram confrontar e/ou complementar os dados oficiais.

A segunda parte da pesquisa se iniciou através da aplicação dos questionários nostrês conjuntos habitacionais. Apesar de prever 20% de respostas para a viabilidadede análise dos resultados, a pesquisa buscou alcançar o maior número demoradores dentro dos conjuntos habitacionais. Para tanto, e além da proposta domaior alcance possível de respostas, a coleta de respostas entre todos os blocosdos três conjuntos, se mostrou muito importante para refletir um maior número derealidade dentro dos conjuntos, e assim se aproximar dos objetivos propostos pelapesquisa, que visara compreender a lógica da ocupação das unidades.

A terceira fase da pesquisa se dividiu entre a tabulação dos questionários e aanálise de conclusões críticas a partir do cruzamento dos resultados com os dadossecundários coletados previamente. Os resultados obtidos, como se demonstrará aseguir, serviram muito mais como base de reflexão e análise qualitativa crítica.

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A aplicação dos questionários ocorrera de duas maneiras, direta e indiretamente.As diferentes formas de aplicação foram resultados do percurso metodológico dapesquisa e sua evolução no que diz respeito a delimitações de tempo, e tambémà busca por respostas mais efetivas. A forma indireta de aplicação se viabilizouatravés do contato com um morador de cada bloco nos três conjuntoshabitacionais. Este contato se responsabilizou em distribuir os questionários paraos seus vizinhos de bloco e então recolher os questionários. Essa primeiramodalidade de aplicação se propusera a alcançar um maior númeroquestionários respondidos tanto por distribuir as fontes de aplicação, tanto poracreditar que através da distribuição dos questionários por um morador dopróprio conjunto, que conhecesse o projeto de pesquisa, os outros moradoresse sentiriam mais a vontades para responder. Esse método mostrou-se, ao longode sua aplicação, não tão efetivo quanto o previsto, visto que muitosquestionários voltaram incompletos, e a dependência dos moradores voluntáriospara a aplicação dos questionários deixava o cronograma da pesquisa muitodependente da disponibilidade desses moradores. Portanto, como alternativaoptou-se pela aplicação direta, porta em porta. A aplicação direta possibilitavaconversas com os moradores que se expandiam para além das seis questõesprincipais, formuladas para a análise quantitativa. Esse método, apesar de maistrabalhoso se revelou muito rico em diferentes insumos para futuras análisesqualitativas e para reflexões sobre casos muito singulares, mas com grande poderde ilustrações e de grande importância para a compreensão da complexidade doprocesso de urbanização de favelas.

2. RESULTADOS

2.1. Dados secundários

Breve histórico da questão habitacional no Brasil

No Brasil as causas do déficit habitacional estão ligadas desde o principio àquestão da posse da terra. A Lei de Terras, de 1850, fora a primeira tentativa deorganizar a propriedade privada no Brasil, a qual contribuiu para perpetuar aestrutura fundiária já existente no país. Esse fato ocorre, paradoxalmente, emum período no qual a demanda por terras aumenta, principalmente, devido àpromulgação da Lei Áurea, em 1888, e com a vinda de imigrantes para o país.A lei não foi acompanhada de medidas que de fato poderiam garantir aigualdade racial e o fim da estrutura elitizada da propriedade. Nesse períodocomeçam a surgir alternativas ao acesso a habitação no Brasil. Como afirmaMaricato, A emergência do trabalho livre dá origem ao problema da habitação(MARICATO, 2003).

Com o início da urbanização e industrialização do país, essas questõescomeçam a se agravar. Segundo Maricato A invasão de terras urbanas no Brasilé parte intrínseca do processo de urbanização. [...] Ela é institucionalizada pelomercado imobiliário excludente e pela ausência de políticas sociais (MARICATO,1999). A então ocupação das periferias vai evidenciar e acentuar a relaçãoentre exclusão, legislação e mercado imobiliário restrito, visto que as populaçõesmais desfavorecidas irão se instalar nas áreas de menor valor de mercado(BARROS, 2014).

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Em 1942, a Lei do Inquilinato, a qual congela o valor dos aluguéis, é um fatorimportante para a discussão da formação dos assentamentos precários. A partirdos anos 50 a economia urbana industrial passa a ditar as políticas públicas dopaís (ZUQUIM, 2012), que segundo Maricato se caracteriza por: baixos salários,os quais não eram definidos segundo o custo da habitação fixado pelo mercadoprivado; gestores com tradição de investimentos regressivos, ou seja, com obrasde infraestrutura que alimentavam a especulação imobiliária; além de umalegislação urbana ambígua e aplicada de forma arbitrária (MARICATO, 1999).Dessa forma, no início do século XX em São Paulo, cidade que concentrou umgrande número de indústrias advindas da pós economia cafeeira, os números decortiços aumentaram muito, representando um terço das moradias em São Paulorepresentavam cortiços (KOWARICK, 1994). Além dos cortiços, as periferias e asfavelas também surgirão como alternativa habitacional.

Até os anos 70, as favelas eram vistas como ocupações provisórias e de caráterpontual. Por essa razão, as respostas dos agentes públicos eram no sentido deextinguir esses assentamentos, sem uma solução permanente. Criou-se inclusiveum projeto de Remoções de Favelas e Vilas Habitacionais sobre a coordenadoriada Sebes - Secretaria do Bem-Estar Social. No fim da década de 70, as crisesinternacionais do petróleo refletiram sobre a economia brasileira. É nessemomento, que as ocupações aparecem de forma mais expressiva, deixando deser resultado de ações individuais familiares para se tornarem movimentosmassivos organizados. Em 1979 é aprovada a Lei Federal de Parcelamento e Usodo Solo (6766/79), a qual exige a instalação de uma infraestrutura mínima paraa aprovação de um novo loteamento. Ou seja, ao mesmo tempo, torna ilegaltodos os outros loteamentos que não se enquadram nos parâmetros por elapropostos. Não é por acaso que nesse momento o discurso da urbanização eregularização de assentamentos precários se consolidada como alternativaimportante para a questão habitacional nas grandes cidades.

Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, estabelecendo a função socialda propriedade, importante progresso da política urbana no Brasil. Além disso,institui os Planos Diretores com parte essencial do processo de planejamentourbano. Além disso, em 2003 é criado o Ministério das Cidades, que dentreoutras medidas, estabeleceu maior importância aos programas de intervençõesem assentamentos precários, levando em pauta a ideia da urbanização em todosos seus âmbitos. Um ponto essencial que o Estatuto da Cidade coloca emdiscussão é a do usucapião coletivo. Entretanto, apesar de reconhecer o direitode uma terra ocupada, abre espaço para a regulamentação de loteamentos seminfraestrutura básica ou mesmo em situação de risco (MARICATO, 2003).

Paralela a esses processos urbanos – políticos e socioeconômicos - queesclarecem a formação dos assentamentos precários nas cidades brasileiras,aconteceu a produção habitacional estatal. Apesar da eficácia questionável, elestiveram um importante papel na formação da postura do Estado frente àresponsabilidade de redução no déficit habitacional brasileiro. As primeirasexpressões de políticas públicas que tratam a moradia como questão social são osIAPs (1937 – 1946) e a Fundação Casa Popular (1946 – 1964), consideradaprecursora do BNH. Na década de 60 o Estado cria o SFH – Sistema deFinanciamento de Habitação e o BNH – Banco Nacional de Habitação, com afinalidade de subsidiar programas habitacionais voltados ao mercado popular.Após o período militar, o BNH foi incorporado à Caixa Econômica Federal, ficando

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a cargo desta, a partir de então, os financiamentos habitacionais populares dosprogramas que serão formulados futuramente. Até o final do século XX, o Estadobrasileiro não apresenta novos programas de produção habitacional. A produçãohabitacional em grande escala e as pautas de urbanização e regularização deassentamentos precários, retornam à mesa de discussões do governo comexpressividade apenas com o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, em2007, disponibilizando grandes montantes de recursos. O Brasil se insere noséculo XXI, sem propostas claras para a questão habitacional, e continua, mesmoque de forma mais expressiva, tanto em recursos como em números de moradiasproduzidas, a atuar de forma pontual e não estrutural na questão da habitação.

Histórico de intervenções e políticas públicas em favelas na cidade deSão Paulo

Através do percurso da política urbana e habitacional realizada na cidade de SãoPaulo, atrelados ao contexto socioeconômico, é possível perceber avanços eretrocessos na forma de atuar junto à democratização dos direitos sociais, osquais refletirão nas intervenções nos assentamentos precários da cidade.

As primeiras ações da prefeitura em resposta a ocupações irregulares aparecemna década de 40, as quais foram a de remoção e tentativa de irradicação. Nessasações, as famílias eram tratadas de forma individualizada, ou seja, oencaminhamento e indenização eram feitos de forma pontual, visto que a visãoque predominante em relação às favelas era a de um problema pontual, querepresentava, principalmente, entraves para a construção de obras deinfraestrutura. Essa situação pode ser contextualizada às obras do Plano deAvenidas do prefeito Prestes Maia, a qual foi responsável pela remoção deinúmeras famílias na época (MARICATO, 2003). A partir de 1971, começam a sertomadas decisões de remoções coletivas, com a execução de alojamentosprovisórios para as famílias atingidas. Durante a década de 70 houve as primeirasconstruções de vilas de habitação provisória. No final da década de 70, cria-se oFUNAPS – Fundo de Atendimento á População Moradora em HabitaçãoSubnormal, o qual possibilitou a prefeitura atual de maneira mais autônoma noque diz respeito ao repasse dos recursos federais. A gestão de Reynaldo Barros(1979 – 1982), junto com a de Mário Covas (1983 – 1985), promovem umanova, segundo Silva (SILVA, 1994). Percebem o caráter persistente das favelas esua contribuição física para a formação urbana. Dessa forma, as intervençõesdemandam um caráter mais estruturado e visando soluções permanentes.Reynaldo Barros cria o PROFAVELA, o qual englobava subprogramas comoPROLUZ E PROAGUA. Esse foi o primeiro programa destinado a oferecerinfraestrutura para as favelas. Durante a gestão de Covas, o PROFAVELA éaprimorado, incorporando diretrizes de urbanização e regularização fundiária,momento político importante, o qual reconhece a permanência das famílias noslocais ocupados. A administração seguinte foi acompanhada de um retrocesso.Jânio Quadros paralisou os programas ofertados nas gestões anteriores,promulgando a Lei do Desfavelamento, nome dado as Operações Interligadas, asquais tinham por objetivo flexibilizar a lei de zoneamento com a intenção deeliminar favelas situadas em bairros valorizados, contribuindo para a valorizaçãoimobiliária em locais antes comprometidos pela presença dos assentamentos(BONDUKI, 2000). A gestão da prefeita Luiza Erundina (1989 – 1992) por suavez, significou um grande avanço, inclusive um marco nas questões habitacionais

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da cidade de São Paulo. Pela primeira vez, um programa municipal deurbanização de favelas foi estruturado como parte integrante de uma políticahabitacional municipal (DENALDI, 2003). Através do FUNAPS – FAVELA foi possívelcriar escritórios regionais de habitação, contando com a participação dapopulação, os quais respondiam à Superintendência de Habitação Popular daSEHAB. A maior inovação do governo municipal se deu na abertura dapossibilidade da autogestão pelos moradores. Outra importante medida foi a deavaliação de áreas de risco. Com apoio técnico do IPT, foram avaliadas 300 áreasde risco em 240 favelas (FREIRE, 2006). Os programas da Erundina executaram,principalmente, obras pontuais dentro do projeto de urbanização de favelas, nãopriorizando a produção habitacional.

A administração seguinte representou novamente um retrocesso. Apesar depromover em números o que parece ser um avanço, em termos qualitativos esociais não evoluíram. Paulo Maluf (1993 – 1996) e Celso Pitta (1997 –2000), os quais são comumente referidos com as mesmas diretrizes de gestão,trabalharam no setor habitacional em cima do programa PROVER – Programade Urbanização de Favelas com Verticalização, conhecido como Cingapura, eparalisaram outros importantes mecanismos criados anteriormente, como osmutirões. Claramente movidos por um caráter político-eleitoreiro, asimplantações dos edifícios buscavam visibilidade, eram feitas em avenidas degrande fluxo e serviam para esconder as favelas (FREIRE, 2006). Além disso,nesse período foi constante o uso de abrigos provisórios, visto que os edifíciospadronizados, não ofereciam soluções que abrigassem todas as remoções.Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 e do Plano DiretorEstratégico em 2002, o qual dentre outras realizações importante, criou as ZEIS– Zonas Especiais de Interesse Social, dentro da cidade. A então prefeita MartaSuplicy (2001 – 2004) pôde desfrutar de maiores mecanismos políticas para aaplicação de uma política habitacional voltada à urbanização de favelas. Sob acoordenadoria da SEHAB e integrado a outros órgãos da prefeitura como oHABI – Superintendência de Habitação Popular, a COHAB – CompanhiaMetropolitana de Habitação em São Paulo e RESOLO – Departamento deRegularização do Solo, a gestão da prefeita desenvolveu o programa BairroLegal, voltado à urbanização de favelas. O programa tinha por objetivopromover a urbanização de favelas; a regularização fundiária de loteamentosclandestinos e ocupações irregulares; a qualificação de conjuntos habitacionaisexistentes; além da promoção de programas sociais de caráter social e degeração e renda. Entretanto, muitos dos projetos não saíram do papel durantea administração, sendo apenas orçados e licitados no período. (FREIRE, 2006).José Serra foi o sucessor de Marta Suplicy, entretanto, deixou o cargo nas mãosdo seu vice Gilberto Kassab em 2006. A prefeitura herdou muitos projetoshabitacionais da gestão anterior, a alguns foram dados continuidade, outroscomo o Morar Centro, foram desarticulados. O Bairro Legal, principal programaaté então da Secretaria de Habitação, sofreu algumas modificações, e por issorecebeu o nome de Urbanização de Favelas, abrangendo apenas um dossubprogramas do Bairro Legal. Um importante momento dessa gestão foi acriação do Plano Municipal de Habitação (PMH 2009/2004), o qual representao comprometimento em traçar diretrizes que visem a promoção de moradiadigna e se apresentam como um elemento integrante de ações no campo daambiental, social, habitacional e urbanístico.

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A atual gestão do prefeito Fernando Haddad (2013-2016), tem focado muitomais em promover habitação no central da cidade de São Paulo. O prefeitoentrou com o processo de desapropriação de 41 edifícios vazios na região centralcom o intuito de promover habitação de interesse social nesses locais. Entretanto,há questionamentos sobre a forma como esse projeto habitacional se viabilizaria,visto que a PPP – parceria público-privada, denominada Casa Paulista, responsávelpela execução do projeto, já é alvo de muitas críticas, principalmente no que dizrespeito à faixa de renda de destinação dessas novas unidades habitacionais.

O caso do Jaguaré

O caso do Jaguaré está diretamente relacionado ao desenvolvimento da cidadede São Paulo. Como um dos assentamentos mais antigos e consolidados dacidade, sua história reflete em muito a história de ocupação e expansão dacidade. O início da ocupação da região remonta à retificação do Rio Pinheiros em1930. Nessa época as margens do rio eram ocupadas por grandes propriedadesaté então rurais, a qual foi adquirida pela Sociedade Imobiliária Jaguaré queprevia um projeto de urbanização para a área. O planejamento visava a umbairro com caráter industrial que incluía zonas residenciais e comerciais. O entãoloteamento fora projetado com um desenho orgânico, para melhor se adaptar àtopografia acidentada. A parte da encosta leste, mais próxima ao rio foradestinada a um parque público devido aos fatores que não favoreciam aocupação humana, como acentuada declividade, exposição a ventos frios eúmidos do sudeste e orientação solar ruim (FREIRE, 2006). Fora exatamentenessa área onde se originou a favela do Jaguaré.

A Nova Jaguaré começou a ser formada no fim dos anos 1950, intensificando-senas décadas seguintes. A falta de monitoramento da prefeitura em preservar oparque previsto para o local e a intensificação das migrações para São Paulo nesseperíodo, além da região ser provida de grande oferta de emprego e baixa oferta demoradia popular, formaram o cenário propicio a ocupação do espaço. Além disso,a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo – COHAB, no final dadécada de 60, alocou dezenas de famílias no terreno em resposta a um processode desfavelamento em outra região da cidade. O crescimento da ocupação se dáde forma exponencial, em 1968 são numeradas 310 famílias; em 1973, 850barracos instalados; e, em 1978, 3000 mil famílias moram na região (TRENTO,2011). Em meados de 70 as vias de grande porte são abertas, atraindo maioresocupações e intensificando o adensamento populacional na região. A partir dadécada de 1980, a favela Nova Jaguaré já se apresenta muito consolidada, apesarde demonstrar diferentes padrões de moradias. E segundo dados do Habisp, comsua maior parte vivendo em alto índice de vulnerabilidade social.

Intervenções

As primeiras propostas de intervenção pelo poder público surgiram nos fins dadécada de 80, no mandato da então prefeita Luiza Erundina. Através dodiagnóstico do “Plano de ação para as favelas em situação de risco de vida eemergência”, o qual classificou parte da ocupação da favela como risco 1, riscoiminente, as primeiras ações de contenção foram pensadas para amenizar essasituação. Em 1991, foram executados três grandes taludes. Apesar de aintervenção visar prevenir possíveis desmoronamentos, o risco poderia retornar

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com a reocupação irregular desses espaços. A prefeitura então esboçoupropostas de ocupação habitacional, prendo a construção de 78 moradiasadequadas à topografia. Entretanto, o projeto não foi executado e posteriormentea área foi reocupada por barracos e se tornou uma das áreas mais densas dafavela com grande risco de deslizamentos (FREIRE, 2006). Ainda durante a gestãoErundina, também houve pequenos serviços de melhoria, como a construção demuros de arrimo, canalização de drenagem de águas pluviais e a construção deuma escadaria de 100 metros que proporcionou a ligação entre a parte alta e aparte baixa da favela, melhorando a circulação (TRENTO, 2011).

Em 1995, durante a gestão do Paulo Maluf, houve um dos mais marcantesdeslizamentos na favela Nova Jaguaré. A prefeitura então remove as famílias daárea através de uma proposta de indenização barraco. Em 1996, ainda namesma gestão, através do PROVER, iniciou-se a construção de dois conjuntoshabitacional Cingapura na favela. Ao todo, os conjuntos ofereciam 260 unidadeshabitacionais, distribuídas em 13 prédios de 5 pavimentos.

Na gestão da Marta Supplicy, um novo deslizamento de terra acontece na favela,localizado no Morro do Sabão, área com as maiores declividades no perímetroda Nova Jaguaré. O deslizamento atingiu 26 famílias. Após o ocorrido,subprefeitura da Lapa executa obras de drenagem e contenção, através daconstrução de escadarias hidráulicas e muros de gabião. Em 2003, a prefeituralança o edital para o projeto de urbanização da favela Nova Jaguaré, através doprograma “Bairro Legal”. O projeto abrangia não só a regularização física, mastambém fundiária, dispondo de mecanismos de participação popular. O projetovencedor foi o do escritório de arquitetura Projeto Paulista de Arquitetura, o qualbuscou conciliar fatores técnicos de drenagem, abertura de viário e obras desaneamento, com fatores de integração com o tecido urbano existente, criação deespaços livres e uma proposta de provisão habitacional atrelada a tipologias deplantas diversificas, que conversassem com a topografia da área, integradas aedifícios de uso misto. Em 2004, no ultimo mandato da prefeita, o projeto foilicitado, entretanto, não havendo os recursos previstos no contrato de licitação, aobra foi paralisada.

Na gestão seguinte de Gilberto Kassab, em 2006, iniciam-se algumas remoçõespara implantação dos conjuntos habitacionais. Entretanto, o projeto a ser seguidosofreu diversas alterações, e passando inclusive a fazer parte do programaUrbanização de Favelas. As principais mudanças em relação ao projeto foram aimplantação das unidades habitacionais, a qual seu número é inclusive reduzido;o traçado do viário; e algumas áreas livres de uso comum são alteradas, além daexecução de mais dois conjuntos habitacionais não previstos anteriormente, oconjunto habitacional Kenkiti Simomoto e o Residencial Alexandre Mackenzie, quealteram o perímetro da favela, visto que são implantados em terrenos limítrofesmas fora do perímetro antigo. Ao todo foram construídas 947 novas unidadeshabitacionais, sendo 110 no conjunto habitacional Kenkiti Simomoto, 427 noResidencial Alexandre Mackenzie, e 405 no conjunto Nova Jaguaré. Entretanto,para que a obra fosse executada, foi necessária a remoção de 1879 famílias. Ficaclaro que a provisão habitacional não foi suficiente para atender a toda apopulação residente do local. As famílias que não foram atendidas, comodemonstra Sato (2003) tiveram diferentes tratamentos, dentre as quase 2000famílias, 369 foram atendidas através de Verba de Apoio; 177 atendidas atravésda compra de moradias; 81 fizeram permuta ou troca interna; 30 receberam

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unidades readequadas ou realocadas; 5 receberam boxes comerciais; 283na época aguardavam atendimento no bolsa-aluguel; e apenas 934receberam de fato as unidades habitacionais, sendo que segundo os dadoscedidos pelo Habi Centro e divulgados na pesquisa de Sato, não foi possívelobter a informação da localização dos conjuntos habitacionais que essasfamílias foram transferidas. A falta dessa informação é justamente o objetivode busca que essa pesquisa se propõe a realizar.

2.2. Dados primários

Apesar de prever 20% de respostas para a viabilidade de análise dosresultados, o que corresponderia a 189 questionários respondidos (22 noKenkiti Simomoto, 81 no Nova Jaguaré e 86 no Residencial AlexandreMackenzie), a pesquisa buscou alcançar o maior número de moradoresdentro dos conjuntos habitacionais. Para tanto, e além da proposta domaior alcance possível de respostas, a coleta de respostas entre todos osblocos dos três conjuntos se mostrou muito importante para refletir ummaior número de realidades, e assim se aproximar dos objetivos propostospela pesquisa – compreender a distribuição das unidades habitacionais e aorganização social dos conjuntos e sua relação com a população local. Onúmero final de questionários respondidos foi de 206 no total, sendo 28no Kenktiti Simomoto, 91 no Nova Jaguaré e 87 no Alexandre Mackenzie.Dentre todas as variações de tipologias e organização entre os blocos e oscomplexos dos conjuntos, a pesquisa buscou uma amostra de cada um.

Apenas os resultados principais foram ressaltados neste artigo, aquelesprovenientes das questões que levantaram mais insumos para a reflexão eas análises que serão evidenciadas nas conclusões.

Os três primeiros gráficos revelam que a maior parte dos moradores dosconjuntos habitacionais eram residentes da favela do Jaguaré antes dasobras de urbanização, os quais, inclusive, quase 80% sofreram diretamentecom as obras de urbanização, através das remoções. Entretanto, quando serelaciona as remoções aos motivos, os moradores em grande parte nãosabiam responder precisamente, além de, ficar claro na aplicação indiretados questionários um consenso em relação a ser removido e morar emárea de risco. O que revelou a falta de clareza do projeto e seus impactosaos moradores da favela e principalmente às famílias afetadas diretamentepelas obras em suas antigas casas. Como afirmou Giraldez (GIRALDEZ,2014) em sua pesquisa, o assunto das remoções ainda é tratado demaneira pouco clara por parte do poder público e da própria população.Foi possível notar na aplicação dos questionários de maneira direta que,essa questão poderia sofrer com grandes desvios de auto-declaração, poismuitas vezes quando perguntados sobre o motivo da remoção, algumas dasrespostas frequentes eram: “Ah deve ser área de risco, é favela ne? Todafavela é área de risco.”. Esse argumento pronto, e descolado do contexto,reflete um discurso sobre favelas e assentamentos precários ainda regadode preconceito e que visa favorecer a remoção a todo custo.

Ao longo da aplicação dos questionários, principalmente quando feita demaneira direta, surgiram pontos fora da curva, ou seja, casos muitoespecíficos que não podem ser considerados representativos, mas que

Figura 2: Gráfico resultado questão 2.3.

Figura 1: Gráfico resultado da questão 01.

Figura 3: Gráfico resultado da questão 2.4.

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ilustram bem a complexidade que envolve as questões ligadas à urbanizaçãode favelas, remoções e reassentamentos.

Tive a oportunidade de conversar com uma senhora do conjunto NovaJaguaré, a qual passou pelo processo de remoção justificado pelas obrasurbanísticas. Segundo ela, os desenhos mostravam que iria passar umanova rua por onde sua casa estava. Entretanto, após o termino das obras, oprojeto foi alterado e sua casa permaneceu em pé, sendo reformada eoferecida à outra família removida. A moradora removida de sua casa nãoconseguia compreender e aceita os motivos pelos quais a levaram a semudar para um apartamento cujo tamanho era incapaz de atender àsnecessidades de sua família, e sem compreender o processo, não sabia poronde buscar recursos para recorrer sobre seus direitos e de sua antiga casa,que continuara no local sobre posse de outra família.

Outros casos chamaram a atenção, e, especial dois no Residencial AlexandreMackenzie, o primeiro envolve um caso de invasão/ocupação de umapartamento. Uma mulher ocupou um apartamento por meios próprios,pois sua casa, apesar de não fazer parte de maneira direta das obras deurbanização, foi afetada por elas. Segundo relatos da moradora, após asobras no entorno de sua residência, sua casa começou a sofrer cominundações provocadas pelas chuvas, fato que antes não acontecia e quesegundo ela foram causados pelos intervenções físicas na vizinha de suacasa. Ela reclamara por meios oficiais e dissera que os orgãos públicosresponsáveis pelos conjuntos habitacionais estavam cientes de sua ocupaçãono apartamento, mas por ela não ter sofrido com as remoções oficialmente,não era possível prever o atendimento habitacional. Atualmente ela pagatodas as contas de consumo, menos o valor do financiamento.

O segundo caso, foi de um antigo morador da favela do Jaguaré que ficoutetraplégico no período das obras de urbanização. Ele e sua famíliamoravam no alto do morro, e por causa das novas limitações, sua vida ficoumuito difícil. Durante as obras de urbanização, ele conversou com osresponsáveis pelas intervenções, e conseguiu trocar sua casa por doisapartamentos térreos no condomínio C do Alexandre Mackenzie. Segundoele, sua casa foi reformada e entregue para uma família que havia sidoremovida.

É interessante notar, em ambos os casos, a fragilidade do controle sobre asquestões de reassentamento das famílias. Existem muitos desvios noprocesso convencional, que contribuem para o não fechamento da conta,ou para o fechamento de maneira alternativa. Além de demonstrar comonão apenas as famílias removidas são impactadas pelas obras deurbanização.

Passados cinco anos do final das obras, e da entrega das unidadeshabitacionais, era de se esperar uma margem de rotatividade dosmoradores dos apartamentos. Mesmo que legalmente isso não seja previstonem permitido, por outras experiências, constata-se que essa rotatividade deocupantes é inevitável, e ela se justifica por inúmeros motivos. A falta departicipação popular no processo de projeto, a falta de clareza nocadastramento e distribuição das unidades, atrelados às opções unilateraisde provisão habitacional, terão como consequência, uma grande parcela dos

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moradores dos conjuntos habitacionais insatisfeitos. Além disso, há fatores comoo custo de vida que se eleva dentro dos conjuntos, temática abordada na ultimaquestão do questionário aplicado aos moradores. Quando questionados sobrepessoas que possivelmente foram removidos e voltaram às mesmas condiçõesanteriores - principalmente a ocupação de áreas irregulares e inseguras, asrespostas eram seguidas de explicações. Muitos entrevistados respondiam que oretorno se dava principalmente pela proposta única de unidade habitacional, ouseja, as pessoas que não se acostumassem a uma modo de vida relacionado aoedifício de apartamento, não teriam outra alternativa que não a de receber averba indenização e tentar retornar ao seu modo de vida anterior. Além disso,com frequência apareceram pontuações relacionadas ao custo de vida, e comoele se altera de maneira elevada após a mudança para as novas unidadeshabitacionais. Um dos fatores principais se deve aos gastos não previstos nascontas do financiamento, como questões relacionadas à gestão dos edifícios - ascontas de condomínio. A mudança física de uma unidade habitacional para aoutra implica, na maioria dos casos, em uma mudança comportamental, comoafirmou uma das moradoras do residencial Kenkiti Simomoto: Para morar aquias pessoas precisam ter muita responsabilidade, não é mais a mesma coisa,são muitas contas para pagar. Outras questões relacionadas ao estilo de vidadas pessoas, e como as intervenções espaciais influenciam, como relatos depessoas que possuíam comércio antes das obras de urbanização, e com amudança para as unidades habitacionais dos apartamentos, perderam sua fontede renda. Por isso, muitas delas preferiram o valor da indenização ou venderposteriormente os apartamentos, para se reestabeleceram com seu comérciodentro da favela.

Essa questão se relaciona diretamente com a rotatividade dos moradores dasunidades habitacionais dentro dos conjuntos. Não apenas por tratar de maneiradireta um universo de terceiros moradores, mas porque, o valor dos aluguéisoferece uma tendência de ocupação dentro dos conjuntos. Relativamente altos ecom um claro grau hierárquico de valorização entre eles, o valor dos aluguéis dosapartamentos dentro dos três conjuntos variou de R$ 320,00 por mês a R$900,00. Demonstrando uma ocupação por públicos de poderes aquisitivosdistintos, é possível aferir que as obras de urbanização trouxeram valorizaçãoimobiliária para a região, como já constatado pela Gabriela Giraldez em suapesquisa, e com isso, consequentemente, uma troca de público nessasocupações. Em alguns dos casos, principalmente no Alexandre Mackenzie, foipossível identificar, através de conversas, que muitos aluguéis eram pagos com ovalor do Auxílio Aluguel, mas que esse se mostrava insuficiente, sendo necessáriaa complementação do benefício para o pagamento do aluguel.

3. CONCLUSÕES

Apesar de a pesquisa focalizar seus estudos em um período de intervençãoespecífico - 2005 a 2010, ficou claro que compreender os projetos anteriores aesse, trariam uma visão mais clara sobre o cenário imposto para o inicio dasobras de urbanização. Ademais, parte dos insumos base para essa pesquisa,como o cadastramento dos moradores, fora produto de outros períodos deintervenção. A proposta inicial de aplicação dos questionários com os atuaismoradores dos conjuntos era de se obter uma base adicional de dados

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primários. Além de se entender que, passados cinco anos do processo deurbanização, possivelmente o cenário encontrado diferiria da base de dadossecundários e oficiais. Para mais, a busca por outras fontes de informaçõesprevia, de antemão, a inacessibilidade de dados oficiais no que diz respeito aocadastramento das famílias e ao destino das novas unidades habitacionais. Essapremissa se validou ao longo da pesquisa, uma vez que o acesso aos dadoscadastrais e ao destino exato das famílias se mostrou inviável. Entretanto, essafalta de informação se configurou como uma informação muito importante paraa conclusão da pesquisa, visto que, ao final desta foi possível afirmar sobre a faltade clareza e transparência em relação aos esses dados. A omissão dessasinformações traz muito prejuízo em relação ao entendimento completo sobre oprocesso de urbanização ocorrido na favela Nova Jaguaré. Essa falta de controlee transparência sobre os processos de remoção, realocação e distribuição denovas unidades habitacionais produzidas dentro da favela, contribui para umplanejamento frágil sobre a questão habitacional, e, portanto dificultagrandemente o suprimento do déficit habitacional da cidade de São Paulo.

Os resultados obtidos através da aplicação dos questionários serviram muito maiscomo base de reflexão e análises qualitativas, uma vez que se estava conscientesobre a grande possibilidade da ocorrência de desvios por autodeclaração.Entretanto, apesar de numericamente não representar de maneira expressiva arealidade dos conjuntos habitacionais e da população ali residente, trouxe a tonaobjetos de análises muito interessantes, e que não estavam previstos inicialmentenesse projeto de pesquisa. Muitos desses objetos de análise surgiram através deconversas que extrapolaram as seis questões elaboradas para o questionário, oque possibilitou a descoberta e a compreensão de muitas exceções dentro dosconjuntos habitacionais, que revelaram situações pontuais com grande poder deilustração sobre a complexidade da urbanização de favelas e as possíveisrespostas, ou falta delas, que o poder público pode oferecer. Essas exceçõesacarretaram em grandes reflexões pessoais sobre o alcance dos processosparticipativa em uma obra de urbanização de favelas, e quais os problemas queele poderia sanar ao longo da obra e no pós-obra. Entretanto, sabe-se que parade fato ocorrer um processo participativo, um dos elementos chaves é a clarezadas tomadas de decisões e da forma de atuação, além, claro, de uma demandamuito maior para o tempo de execução da obra, elemento que não cabe noscronogramas políticos. Essa falta de atuação em um campo mais próximo darealidade torna, muitas vezes, o projeto descontextualizado e sem resposta aosproblemas reais.

Por fim, conclui-se que a compreensão de um projeto de urbanização de favelasdemanda clareza de dados e disponibilidade de informações. Sem uma basesólida de análise sobre a forma de atuação e de resolução de questões no quediz respeito, principalmente a, remoção, realocação e distribuição das unidadehabitacionais produzidas, fica muito difícil se aproximar da real política deintervenção em favelas. Propor novas soluções sem os insumos necessários paraa produção de críticas concretas torna-se um exercício descolado da realidade.Abrir espaço para ouvir os moradores e entender as questões intrínsecas aoprocesso de urbanização de favelas é um elemento chave, e deve serconsiderado primordial para a compreensão das questões habitacionais e dasmelhores formas de atuação. Só assim, se conseguirá formular políticas queauxiliem no suprimento, de fato, do déficit habitacional.

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4. REFERÊNCIASBARROS, Gabriela Giraldez. Remoções provenientes do processo de urbanização de favelas nomunicípio de São Paulo (2005-2010): o caso do Jaguaré. Relatório de Iniciação Científica CNPq. SãoPaulo, Julho de 2014.

DENALDI, Rosana. Políticas de urbanização de favela: evolução e impasses. Tese de Doutorado. SãoPaulo, 2003.

FACHINI, Luiz Fernando Arias. Estruturação espacial urbana: Favela Nova Jaguaré. Dissertação deMestrado Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014.

FREIRE, Luis Mauro. Encostas e favelas: deficiências, conflitos e potencialidades no espaço urbano dafavela Nova Jaguaré. Dissertação de Mestrado FAU-USP. São Paulo, USP, Setembro de 2006.

KOWARICK, Lúcio. Viver em risco - Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo:Editora 34, 2009.

SAMPAIO, M. Ruth; PEREIRA, P. C. Xavier. Habitação em São Paulo. Estudos Avançados, vol 17, nº 48.São Paulo, 2003.

SATO, Bruna A. A. Estudos dos impactos das remoções de famílias por intervenções urbanísticas naFavela Nova Jaguaré. Relatório de Iniciação Científica Pró - Reitoria de Pesquisa USP. São Paulo,Fevereiro de 2013.

TASCHNER, Suzana Paternak. Favelas: fatos e políticas. Revista Espaço & Debate, nº 18, ano VI. SãoPaulo, 1986.

TRENTO, Márcia. Estudo dos projetos e intervenções de urbanização na Favela Nova Jaguaré.Relatório de Iniciação Científica CNPq. São Paulo, Agosto de 2011.

ZUQUIM, Maria de Lourdes. Urbanização de assentamentos precários no município de São Paulo:quem ganha e quem perde? II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação emArquitetura e Urbanismo. Natal, Setembro de 2012.

Lais Boni ValierisAluno de graduação da FAUUSP.

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80 ResumoO objetivo deste trabalho é analisar comparativamente as apropriaçõespúblicas da Praça Sílvio Romero, tradicional espaço público, e doShopping Tatuapé, potencial lugar público. Investigam-se seus papéis naconstituição da esfera pública local, tendo em vista o sistema de objetose o tipo de propriedade dos espaços supracitados. Ambos os objetosde estudo estão localizados no bairro do Tatuapé, na cidade de SãoPaulo.

Palavras-chaveEspaço público, Esfera pública, Praças, São Paulo.

Teresa Cristina Barroso Vieira

Orientador: Prof. Dr. Eugenio Fernandes Queiroga

ANÁLISE DE LUGARES PÚBLICOSNA METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA:ESTUDO DE CASO SOBRE A PRAÇASÍLVIO ROMERO, SÃO PAULO – SP

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1 INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta os resultados da pesquisa de Iniciação Científicaintitulada de Análise comparativa de lugares públicos na metrópolecontemporânea: estudo sobre a Praça Sílvio Romero e o Shopping Tatuapé,São Paulo – SP, realizada entre julho de 2015 e agosto de 2016 na FAUUSP,com fomento do CNPq.

Inicialmente buscou-se analisar comparativamente as apropriações públicas daPraça Sílvio Romero e do Shopping Tatuapé, tendo em vista o sistema de objetose o tipo de propriedade dos diferentes espaços. Ambos os objetos de estudolocalizam-se no bairro do Tatuapé, na cidade de São Paulo.

A Praça Sílvio Romero, um tradicional espaço público, foi definida como objetoempírico desta pesquisa por sua importância simbólica e histórica para a ZonaLeste de São Paulo. A escolha do Shopping Tatuapé, por sua vez, deveu-se àhipótese de que este fosse um potencial lugar público contemporâneo. Explica-se,o Shopping Tatuapé está integrado à Estação Tatuapé de Trem, linhas Coral eSafira, e Metrô, linha Vermelha, por onde circula a maior demanda de usuáriosdo sistema metroviário. É segmentado em dois empreendimentos, ShoppingMetrô Tatuapé e Shopping Metrô Boulevard Tatuapé, um em cada lado daAvenida Radial Leste. A princípio, levantou-se a hipótese de que o ShoppingTatuapé, de forte apelo popular, funcionasse como ponto de encontro dediferentes “tribos urbanas”, a despeito de sua propriedade particular e de suasfunções primeiras de compras e serviços.

Foram realizadas sucessivas visitas de campo ao Shopping Tatuapé, em dias ehorários diversos. Contudo, a hipótese inicial de que este era ponto de encontrode diferentes “tribos urbanas”, ou seja, apesar de sua propriedade privadapossuía apropriações públicas diversas de seu espaço, não se confirmou. Destamaneira, o Shopping Tatuapé reafirmou seu caráter de espaço privado econtrolado, com uso exclusivo para as funções de compras, serviços eentretenimento. Por este motivo, descartou-se a investigação do ShoppingTatuapé enquanto lugar público e deu-se sequência à pesquisa analisandoexclusivamente a Praça Sílvio Romero. Assim sendo, o presente artigo apresentaresultados e análises relativos à Praça Sílvio Romero.

A Praça Sílvio Romero, um tradicional logradouro público, possui uma forterelação com seu espaço adjacente. A análise conjunta da praça – umapropriedade pública – e de seu entorno – propriedades privadas - resulta emum espaço complexo, de propriedades públicas e privadas, e nos permite analisara praça e seu entorno enquanto “lugar público”. Desta forma, a Praça SílvioRomero, além de tradicional espaço público, se considerada conjuntamente comseu entorno imediato, também se constitui num espaço de apropriações públicasmais complexas, um lugar público contemporâneo. Interessa a este trabalho ainvestigação da Praça Sílvio Romero enquanto lugar público.

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2 METODOLOGIA

A pesquisa teve início com o aprofundamento teórico de sua temática por meiode revisão bibliográfica. As principais referências teóricas deste trabalho são osestudos de Milton Santos (2004), Sun Alex (2008) e Eugenio Queiroga (2012)acerca do espaço, de praças e da esfera de vida pública e de lugares públicos,respectivamente.

Na sequência, fez-se uma leitura urbana da Praça Sílvio Romero, de maneira aaprender as formas de relação do homem com este lugar público. Para tanto,foram realizadas sucessivas visitas de campo à Praça Sílvio Romero, em dias ehorários distintos ao longo do ano.

A leitura urbana da Praça Sílvio Romero teve como referência metodológica otrabalho de Rupf (2015), que investiga lugares públicos no centro de São Paulo.A autora propõe a análise dos objetos de estudo segundo os seguintes aspectos:breve contexto histórico; acessibilidade e atratividade em relação à inserçãourbana; uso e ocupação do solo do entorno; relações de troca com o entorno eprincipais fluxos; sistema de objetos e sistema de ações.

Por fim, os dados levantados em campo foram sistematizados e analisadosvisando à compreensão das apropriações públicas da Praça Sílvio Romero.Investigou-se de que maneira o sistema de objetos da praça, a morfologiaurbana e os usos de seu entorno influenciam tais apropriações.

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nesta seção serão brevemente expostos três conceitos fundamentais para estapesquisa: espaço (SANTOS, 2004); esfera pública política a geral (QUEIROGA,2012); e lugar público (QUEIROGA, 2012).

3.1 Espaço

Na Obra de Milton Santos percebemos sucessivas aproximações ao conceito deespaço geográfico. Em Por uma Geografia Nova, o autor define espaçogeográfico como um conjunto de fixos e fluxos:

Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam opróprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientaise as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultadodireto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modifican-do sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também, semodificam.

Desta forma, a realidade geográfica é expressa por meio de fixos e fluxosimbricados, que aparecem conjuntamente como um objeto possível à geografia.Em Metamorfoses do Espaço Habitado, por sua vez, Milton Santos trabalha oconceito de espaço geográfico a partir de outro par de categorias: a configuraçãoterritorial e as relações sociais:

A configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturaisexistentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que oshomens superimpuseram a esses sistemas naturais. (...) A configuraçãoterritorial, ou configuração geográfica, tem, pois, uma existência material

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própria, mas sua existência social, isto é, sua existência real, somente lhe édada pelo fato das relações sociais (SANTOS, 2004, p.62).

A partir dos ensaios anteriormente apresentados, Milton Santos formula, então,uma terceira definição para o objeto de estudo da geografia. Segundo o autor,cabe a esse campo disciplinar estudar o espaço enquanto conjunto indissociávelde sistemas de objetos e sistemas de ação:

O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e tambémcontraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não consideradosisoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá. (...) Siste-mas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas deobjetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, osistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetospreexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma(SANTOS, 2004, p.63).

3.2 Esfera Pública Política e Geral

Eugenio Queiroga (2012) destaca que, muitas vezes, os conceitos de “esferapública” e “espaço público” são tratados como sinônimos e empregados demaneira indistinta. O autor, apoiado nos estudos de Hannah Arendt (2004) eJürgen Habermas (1984 e 2007), discute o conceito de “esfera pública”,relacionando-o e diferenciando-o da noção de “espaço público”, para, por fim,propor o conceito de “esfera pública geral”.

Atribui-se a Hannah Arendt (2004) a primeira definição do conceito de esfera devida pública, ou simplesmente esfera pública. A autora “denomina vita activa àstrês atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação” (QUEIROGA, 2012,p.36). Ao labor dizem repeito os processos biológicos do corpo físico doshomens, cuja condição humana é a própria vida. Ao trabalho, por sua vez, estãorelacionadas às atividades próprias da “mundanidade”, do artificialismo daexistência humana. Por fim, relaciona-se a ação o estar na presença de outros ea participação política na vida pública. O labor e o trabalho correspondem àesfera de vida privada. A esfera de vida pública, por sua vez, refere-se,fundamentalmente, a ação (política).

Ao contrário de Arendt, que propõe esfera pública como um conceito estrito erelacionado à ação política, Jürgen Habermas (1984) discorre sobre váriasesferas públicas:

a burguesa (dominante) e a plebeia, a política e a politicamente ativa (estaúltima, a rigor, pode ser considerada como equivalente ao conceito arendtianode esfera pública), literária, democrática, plebiscitária, interna à organização,regulamentada, parlamentar, manipulada, helênica, refeudalizada, esferapública da Corte, da grande família etc. (QUEIROGA, 2012, p.40).

Desta maneira, o autor evidencia que o conceito de esfera pública não é puro eabsoluto, como sugerido por Arendt, mas construído e caracterizadohistoricamente. Para Habermas (1984), um mesmo momento histórico admitemúltiplas esferas públicas, relacionadas ao domínio da cultura, “do cotidiano àsartes” (QUEIROGA, 2012, p.42).

Em Entre naturalismo e religião (2007), Habermas apresenta duas categorias deesfera pública, uma de caráter geral e outra de caráter específico. A primeira diz

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respeito às questões de representação do indivíduo (espaço deautorrepresentação) e de grupos sociais de diferentes naturezas (gênero,comunidades, classes sociais etc.). A segunda, denominada de “esfera públicapolítica”, se aproxima a noção arendtiana de “esfera pública”, por referir-se à ação(política). “Para Habermas (2006, p. 28-29), a esfera pública política se constituinas ações atinentes ao debate político, filosófico, científico e artístico” (QUEIROGA,2012, p.48).

Queiroga adota em sua tese de livre-docência a expressão “esfera pública política”com o mesmo sentido utilizado por Habermas. Por outro lado, propõedenominar-se de “esfera pública geral”:

(...)toda a vida “em público”, incluindo, portanto, o debate público (político eintelectual), a ação comunicativa, inclusive cotidiana, e qualquer outra ação quese compartilhe “em público”, seja no espaço real, seja no virtual. Não se trata,desse modo, de uma relação de oposição entre esfera pública política (esferapública em sentido estrito) e esfera pública geral. A esfera pública geral inclui aesfera pública política, não apenas como um conjunto que contém outroconjunto, mas sistêmica e dialeticamente, de sorte que o que ocorre numaesfera modifica a outra e vice-versa, em movimento dialético entre todo (esferapública geral) e parte (esfera pública política) (QUEIROGA, 2012, p.49).

Observa-se que na definição de Queiroga (2012) a esfera pública políticaaparece apenas como parte, ainda que fundamental, da esfera pública geral. Essadefinição também reconhece qualidades da vida pública mesmo em ações nãointencionalmente políticas, como as cotidianas.

O convívio público, voluntário ou involuntário, possui um grau de civilidade que,em harmonia ou em conflito, já se constitui parte da vida pública, integranteda esfera pública geral. A vida em público é já um importante elemento paraa consciência da alteridade, base potencial para a ação (política) arendtiana,ou comunicativa habermasiana. Nesse sentido, a esfera pública política –esfera pública esfera pública esfera pública esfera pública esfera pública stricto sensu – stricto sensu – stricto sensu – stricto sensu – stricto sensu – seria como a ponta de um iceberg, cujatotalidade inclui compreender toda a vida em público, a esfera pública geral –esfera pública esfera pública esfera pública esfera pública esfera pública lato sensulato sensulato sensulato sensulato sensu (QUEIROGA, 2012, p.49).

Queiroga (2012) também destaca a importância de se distinguir entre osconceitos de “esfera de vida pública” e “espaço público”, por vezes utilizadoscomo sinônimos nas áreas da filosofia política, sociologia e ciência política. Oprimeiro é campo das “relações sociais do mundo vivido, desde a vida familiar(esfera íntima habermasiana) à pública política (esfera pública arendtiana)”, aopasso que o segundo, “é uma instância social híbrida entre materialidade e ação”(QUEIROGA, 2012, p.57) de propriedade pública, podendo prestar-se, ou não,as práticas espaciais da esfera da vida pública.

As práticas espaciais da esfera pública, denominadas espacialidades daespacialidades daespacialidades daespacialidades daespacialidades daesfera pública esfera pública esfera pública esfera pública esfera pública (QUEIROGA, 2006, p. 131-141), ainda que majoritariamente sedeem nos espaços livres públicos, sobretudo nos bens de uso comum dopovo, podem se realizar em diferentes espaços: livres ou edificados, públicosou privados. A esfera pública geral, ou mesmo a esfera pública política, seefetiva, portanto, em um amplo sistema de espaços, com maior ou menorintensidade neste ou naquele lugar (QUEIROGA, 2012, p.59).

A citação acima evidencia que a proposta conceitual de Queiroga (2012) nãoimpõe a obrigatoriedade de vincular-se esfera pública a espaço público. Destamaneira, o autor amplia o escopo de análise da esfera pública contemporânea,

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que pode ser apreendida onde e quando vier a se manifestar: em espaços livresou edificados, de propriedade pública ou privada. Para Queiroga (2012) oprincipal é compreender as apropriações espaciais da esfera de vida pública, eem que medida o sistema de objetos dos locais onde elas se dão estimulam oulimitam determinadas ações da vida pública.

3.3 Lugar público

A partir dos conceitos de “esfera pública geral” e “espaço”, anteriormenteexpostos, Queiroga (2012) define “lugar público”:

“(...) propõe-se considerar “lugar público” todo aquele em que se estabelece aesfera pública – geral ou estrita –, independentemente de se tratar depropriedade(s) pública(s) ou privada(s), visto que o lugar público se estabele-ce com frequência combinando espaços tanto da propriedade privada quantoda pública” (QUEIROGA, 2012, p.215).

Queiroga salienta, ainda, que nem todos os espaços públicos constituem-se emlugares públicos. Explica-se, “uma penitenciária, uma usina nuclear, uma estaçãorebaixadora de voltagem ou um aterro sanitário” (QUEIROGA, 2012, p. 216),por exemplo, ainda que possam pertencer juridicamente a um ente público, nãosão locus da esfera de vida pública, não sendo, portanto, lugares públicos.

Outro aspecto digno de nota é que nem todas as ações da esfera pública semanifestam nos lugares públicos. A internet, por exemplo, é um meio virtual quese presta tanto à esfera de vida privada quanto à pública. “Outras ações daesfera pública podem se realizar em redes mais complexas, envolvendo meiosvirtuais e reais não contíguos” (QUEIROGA, 2012, p.216).

4 LEITURA URBANA DA PRAÇA SÍLVIO ROMERO

4.1 Contexto Histórico

Embora Ponciano (2002) afirme que a fundação do bairro do Tatuapé remonteas primeiras décadas da colonização brasileira1 , é apenas na Planta da Cidade deSão Paulo de 1914 que esta região é mapeada pela primeira vez. Já nesta plantaé possível observar a área da atual Praça Sílvio Romero denominada, então, dePraça da Conceição.

É apenas em 11 de abril de 1931, por meio do Ato nº 139, que a Praça SílvioRomero recebe este nome. Antes disso, este logradouro era conhecido comoPraça da Conceição por conta de uma pequena capela dedicada a ImaculadaConceição que existia no local. Posteriormente esta capela foi demolida e em seulugar foi edificada a Igreja Nossa Senhora da Conceição, inaugurada em 1960 eque permanece até os dias de hoje no centro da Praça Sílvio Romero.

No período entre sua formação e o início do século XX, o bairro do Tatuapéconservou-se como predominantemente agrícola. Além da criação de gado –bovino e suíno – desenvolveram-se algumas culturas no bairro, dentre as quaisdestacamos cana-de-açúcar e uva para a produção de vinho.

Entre 1910 e 1920, enquanto os bairros vizinhos – Brás, Belém e Mooca – jáestavam saturados de indústrias, o Tatuapé possuía diversas chácaras, ideais para

1 Segundo Ponciano (2002) obairro do Tatuapé foi fundado em1560 por Brás Cubas duranteexpedição ao planalto em buscade ouro na sua sesmaria.

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Figura 1. Pormenor da Plantada Cidade de São Paulo de1914. Fonte:smdu.prefeitura.sp.gov.br/ .

Figura 2. Foto da antiga Praçada Conceição com a Capeladedicada à Imaculada Conceiçãoao fundo. Fonte:alotatuape.com.br.

a necessária expansão das indústrias oriundas destes outros bairros. Assimsendo, em meados dos anos 1930 tem início a industrialização do Tatuapé.

Se por um lado o Tatuapé mostrava-se atrativo às atividades industriais, por contada grande disponibilidade de terras e da ferrovia, por outro, possuía umainfraestrutura urbana ínfima, se comparado aos bairros vizinhos. Neste sentido, aindustrialização do bairro foi de suma importância para a sua urbanização, pois

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junto das fábricas vieram os postes, cabos elétricos e transformadores, lâmpadase asfalto, rede de água e esgoto canalizado.

É com a industrialização do bairro que se dá o processo de urbanização,principalmente após os anos 40, que são realizadas obras de infra-estrutura,que são instalados os primeiros equipamentos urbanos e que se desenvolve ocomércio local, especialmente em torno da Praça Sílvio Romero (ENDRIGUE,2008, p.105).

A partir dos anos 1970, em consonância com o processo de descentralizaçãoindustrial do município, muitas fábricas do Tatuapé migraram para outrosmunicípios da Região Metropolitana ou do Estado de São Paulo. Aos poucos, asedificações destas plantas industriais foram sendo demolidas, abrindo espaçopara o ‘boom imobiliário’ do Tatuapé – enorme expansão dos setores decomércio, serviços e residencial vertical, com empreendimentos voltados,sobretudo paras as classes médias e alta (ENDRIGUE, 2008).

Em novembro de 1981, é inaugurada a estação Tatuapé do metrô, situada aapenas 900 metros da Praça Sílvio Romero. Esta estação permaneceu comoterminal do ramal leste até 1986, quando foram inauguradas as estações Carrãoe Penha (ENDRIGUE, 2008, p.108):

A linha do metropolitano não somente iria reforçar a divisão espacial do bairro,mas, do ponto de vista socioeconômico, determinaria o desenvolvimento detoda região. A oferta de transporte rápido e de qualidade, que representa ometrô, valorizou a região do Tatuapé no início da década de 80 em detrimen-to das demais áreas ao leste, além de acelerar a formação de uma fortecentralidade alguns metros da estação, a qual já vinha se configurando desdeos anos 70: a Praça Sílvio Romero (ENDRIGUE, 2008, p.108).

Em janeiro de 2008, o Boletim da Subprefeitura da Mooca já anunciava areforma da Praça Sílvio Romero. Contudo, a última só ocorreu no ano de 2014.Na revitalização, o calçamento foi substituído por um piso de concreto estampadoem três tonalidades. Os canteiros foram reformados e receberam novoajardinamento, totalizando 5000 m2 de áreas verdes na praça. O sistema deiluminação foi revisto e foram instalados quarenta novos bancos. Neste mesmoano, a Praça Sílvio Romero foi contemplada, ainda, pelo programa “Wi-Fi Livre”,permitindo que até 100 usuários se conectem à sua rede de internetsimultaneamente (Gazeta Virtual, 2015).

4.2 Contexto – acessibilidade e atratividade

A Praça Sílvio Romero está localizada em uma área de fácil acesso, seja portransporte público ou privado. Suas quatro ruas delimitadoras são abertas aotrânsito de veículos particulares que, por meio de Zona Azul, podem estacionarem seu perímetro. O acesso via transporte público, por sua vez, se dá através detrês diferentes modais, concentrados no Complexo do Shopping Tatuapé, asaber: Estação Tatuapé da CPTM – Linhas Coral e Safira; Estação Tatuapé deMetrô – Linha Vermelha; e Terminal de Ônibus Tatuapé. Outra possibilidade deacesso via ônibus é por meio do ponto localizado na própria praça, à RuaCoelho Lisboa.

Kevin Lynch (1997) define “pontos nodais” como pontos estratégicos de umacidade, focos intensivos para os quais ou a partir dos quais as pessoas se

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Figura 3. Contexto Geral, PraçaSílvio Romero. Sem escala.Fonte: Intervenção da autorasobre imagem do Google Earth

locomovem. O Complexo do Shopping Tatuapé pode ser considerado um pontonodal, não por abrigar um centro de compras, mas por concentrar, em um únicolocal, três diferentes modais do sistema público de transportes. Situar-se a apenas900 m. desse ponto nodal é extremamente vantajoso para a Praça Sílvio Romero,pois garante um grande fluxo de pessoas em seus arredores.

É oportuno comentar ainda que do Terminal de Ônibus Tatuapé partem ônibusdo Airport Bus Service com destino direto ao Aeroporto Internacional de SãoPaulo – Guarulhos. Apenas sete Terminais no município de São Paulo,estrategicamente localizados, oferecem esse serviço. O fato de o Terminal Tatuapéser um dos poucos em São Paulo a oferecer uma conexão direta com oAeroporto de Guarulhos, reforça o status do bairro do Tatuapé como importantecentralidade da Zona Leste e da cidade de São Paulo.

4.3 Tecido urbano – uso e ocupação do solo

O uso do solo predominante no entorno da Praça Sílvio Romero é comercial ede serviços. Dentre as edificações lindeiras à Praça, essa tendência é ainda maisforte, existindo apenas quatro exceções de uso institucional. Nos edifícios commais de um pavimento é comum o térreo abrigar lojas ou agências bancárias eos pavimentos superiores, escritórios.

Na medida em que avançamos em direção ao bairro, aumenta significativamenteo número de edificações residenciais, muitas delas, inclusive, em torno de vilas,cujo acesso é restrito aos seus moradores. É relevante o número de instituiçõesbancárias, estabelecimentos do setor alimentício e salão de cabeleireiros na área –ao menos um por quarteirão.

No tocante à tipologia das edificações lindeiras à Praça Sílvio Romero, podemosafirmar que estas não possuem recuos laterais ou frontal. A inexistência de

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Figura 5.. Mapa de gabarito.Fonte: Elaboração autora.

Figura 4. Mapa de uso do solo.Fonte: Elaboração da autora.

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recuos confere continuidade ao conjunto edificado no nível do térreo, de formaque o caminhar do pedestre é sempre acompanhado por um corredor debaixas edificações de fachada contínua. Eventuais espaços não edificados nointerior das quadras são decorrentes de recuos posteriores ou das mencionadasvielas, já que não foram observados terrenos vagos na área.

A maior parte das edificações possui dois pavimentos resultando em uma relativaunidade volumétrica no tangente aos gabaritos. A segunda tipologia mais comumna área são as casas térreas. A predominância de baixos gabaritos faz com queas raras construções verticais se sobressaiam no entorno da Praça Sílvio Romero.Dentre essas exceções, gostaríamos de destacar o Edifício Terraza Office Loft,localizado na Rua Padre Adelino. O edifício, que teve sua construção completa noano de 2005, possui 10 andares, o que faz com que destoe em relação àsconstruções adjacentes. Em seu térreo encontram-se um salão de cabeleireiros euma loja, e nos demais andares pequenas e médias empresas.

4.4 Permeabilidades

A Praça Sílvio Romero, de formato retangular e praticamente plana, é limitada porquatro vias: Rua Padre Adelino ao norte; Rua Serra de Bragança ao sul; RuaCoelho Lisboa a leste; e Rua Tuiuti a oeste. Tais vias possuem faixa de pedestres esemáforo, oferecendo boas condições de travessia ao pedestre. As entradas dapraça também são rebaixadas e sinalizadas por piso tátil, o que facilita o acessode cadeirantes e deficientes visuais.

O maior fluxo de pedestres ocorre na Rua Tuiuti, onde está localizada a PraçaSílvio Romero e também o Complexo do Shopping Tatuapé, importante pontonodal. Durante o horário comercial, o percurso entre ambos é extremamentedinâmico e animado. Das lanchonetes, lojas de doces, de vestuário e acessóriosda Rua Tuiuti, toldos se projetam na calçada, promovendo abrigo para ospedestres em dias ensolarados ou chuvosos. É grande o número de transeuntesque apressados passam ou param para olhar as vitrines do comérciodiversificado. Misturados a eles, anunciantes de porta de loja divulgam ofertasimperdíveis e bancas de vendedores ambulantes ocupam parte da calçada. Oshorários de maior movimento são o almoço, o início e o fim do expediente.

O fluxo de veículos mais intenso também se concentra na Rua Tuiuti, seguida pelaRua Padre Adelino. Durante todo o dia, a Rua Tuiuti, importante via de conexãoentre a Avenida Radial Leste e o bairro, apresenta um intenso e constante fluxode ônibus e carros. A Rua Padre Adelino, por sua vez, possui um menor fluxo deveículos, mas é mais congestionada em virtude do demorado ciclo de seusemáforo. Esta via permite o acesso às Avenidas Salim Farah Maluf e MarginalTietê, e ao bairro do Belenzinho.

O suave declive, praticamente imperceptível, e a continuidade de pisos da PraçaSílvio Romero fazem com que o caminhar do pedestre em seu interior seja fluídoe tranquilo. Muretas de cerca de 20 centímetros de altura delimitam de formaclara os caminhos e os canteiros da praça, e também inibem o acesso dapopulação a estes últimos espaços.

Se por um lado não foi percebido nenhum projeto paisagístico de plantio para apraça, por outro, o desenho de seus canteiros mostrou-se conveniente para ofluxo de passantes do local. Apesar de suas grandes dimensões, os canteiros não

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constituem empecilhos ao pedestre, de forma que não se observou nas visitas decampo pessoas atravessando os canteiros para “cortar” caminho. Esses serevelaram vantajosos até para os passantes, pois a copa de suas árvores garanteum caminhar mais agradável em dias quentes e ensolarados.

Os caminhos no interior da praça são relativamente largos, permitindo odeslocamento de cadeirantes e grupos. Sua largura uniforme demonstra umaausência de hierarquia entre os caminhos, criada espontaneamente pelo fluxo depedestres no local. Bancos em seu perímetro convidam os passantes a breves ouprolongadas pausas e permanências.

4.5 Sistema de objetos

A implantação da Paróquia Nossa Senhora da Conceição contribui para aconfiguração de cinco subespaços distintos na Praça Sílvio Romero, a saber: 1)amplo espaço livre à sua frente, alimentado por intenso fluxo de passantes; 2)espaço de permanência em sua lateral direita, com canteiros arborizados, bancos

e Wi-Fi livre; 3) área nos fundos da Igreja, que conta comquatro pequenos comércios, os canteiros de maioresdimensões da praça e muitos bancos; 4) espaço livre a suaesquerda de tímidas passagens e permanências, equipadocom bancos e poucos canteiros; 5) por fim, área depermanência com mobiliário de concreto à sua frente.

Além da Igreja, de implantação central, a Praça SílvioRomero possui quatro lojas, localizadas nos fundos daIgreja; três bancas de jornais; trailers de lanches; base dapolícia militar e um monumento à paz. O local também éservido por um ponto de ônibus com cobertura, bancos einformações sobre itinerário, e um ponto de táxi.

A praça possui piso pavimentado e sua vegetação estárestrita a canteiros claramente delimitados. É bastante

Figura 6. Diagrama de fluxos.Fonte: Elaboração da autora.

Figura 7. Subespaços da Praça Sílvio Romero.Fonte: Elaboração da autora.

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arborizada, predominando árvores de pequeno e médio porte. Pouquíssimosarbustos foram encontrados. A distribuição e a escolha das espécies vegetaisparecem aleatórias, de forma que nenhum projeto paisagístico de plantio foipercebido. É frequente a observação nos canteiros de áreas com terra, no lugarde grama, devido à incidência de sombra.

A praça apresenta postes de iluminação tanto em seu perímetro como em seuinterior, sendo os últimos mais baixos e situados sob a copa das árvores, deforma a garantir uma boa iluminação. Todos os postes possuem lixeiras plásticas,a maioria em bom estado de conservação. Observou-se pouco lixo no chão epoucas folhas caídas nos canteiros, o que pode indicar manutenção frequente.

A praça dispõe ainda de: Wi-Fi livre e em bom funcionamento; muitos bancos deformato curvo; telefones públicos em seu perímetro; dois postos de coleta dematerial reciclável; e alguns jogos de mesas e cadeiras de concreto.

4.6 Sistema de ações

Diferentes horários e períodos do ano

Durante todo o horário comercial há um constante fluxo de pessoas transitandoe em breves ou prolongadas permanências na praça. O horário de almoçoconfigura-se como o de maior movimento, principalmente pelo grande númerode estabelecimentos do setor alimentício e de trailers de lanche no local. Devido àproximidade com a estação Tatuapé de trem e metrô, os horários de começo efinal de expediente também apresentam consideráveis fluxos de passantes.

O Cursinho Objetivo, localizado à Rua Tuiuti, possuí três turmas em diferentesperíodos: matinal; vespertino; e noturno. Antes e depois de cada período letivo,assim como durante seus respectivos intervalos, é comum encontrarmos alunosdo cursinho na praça, conversando ou lendo. Outra entidade que atraifrequentadores para a Praça Sílvio Romero é a Paróquia Nossa Senhora daConceição, situada em seu centro. Além dos tradicionais cultos aos sábados e

Figura 8. Sistema de objetos daPraça Sílvio Romero. Fonte:Elaboração da autora.

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domingos, aos quais comparece o maior número de fiéis, a igreja possui aindacultos às terças e sextas-feiras, no período da manhã, às quintas-feiras, nohorário de almoço e às quartas-feiras, no período da noite. Estes cultos, durantea semana e em horários alternativos, aumentam o número de fiéis da Igreja eenriquecem o convívio da praça, na qual ela se insere.

Foi observada uma boa diversidade de usuários na praça, com um equilíbrioentre homens e mulheres, casais e grupos, de diversas faixas etárias. Durante asemana, a maioria dos frequentadores que permanecem têm de 16 a 40 anos.Os subespaços 2 e 4 são os mais apropriados por estes usuários, quando emgrupos ou sozinhos. Casais, por outro lado, costumam se concentrar na áreasituada atrás da Igreja – subespaço 3 – de menor movimento e equipada commuitos bancos. Outro grupo significativo encontrado de forma recorrente napraça são os idosos. Estes se localizam, preferencialmente, no subespaço 5, àdireita da igreja, que possui mesas e banquinhos de concreto utilizados para ojogo de cartas ou dominó. Aos finais de semana, somam-se aos grupossupracitados famílias que costumam se concentrar nos subespaços 2 e 4, ecrianças que brincam na escadaria em frente a igreja antes e após os cultos.

O comércio e os serviços no entorno da Praça Sílvio Romero garantem apresença de usuários no local durante todo o horário comercial. No períodonoturno, contudo, são os trailers de lanche que mantém o movimento na praça,reunindo colegas para comer cachorro-quente, após o expediente de trabalhoou o término das aulas do cursinho. Muito antes da onda de “food trucks” emSão Paulo, a Praça Sílvio Romero já era conhecida por sua comida de rua.Inclusive, a maior parte das postagens em redes sociais relacionadas à Praça dizrespeito ao seu tradicional cachorro-quente.

Sobre os diferentes períodos do ano, pontua-se que a cobertura vegetal dapraça cria um clima agradável e ameno em dias de forte calor. Mesmo emhorários de sol intenso, as permanências prolongadas continuam acontecendo,sobretudo nos lugares sombreados pela copa das árvores. Em dias frios, poroutro lado, o sol é amplamente buscado, aumentando o número de usuáriosencontrados no subespaço 5. Dias chuvosos não apresentaram permanências.

Passagens e permanências

A maior parte dos usuários da Praça Sílvio Romero está em deslocamento: apresença de uma estação de trem e metrô, em suas imediações, garante umintenso fluxo de passantes durante todo o dia. Atraídos pelo comércio e serviçosde suas edificações lindeiras, clientes e funcionários cruzam a Praça em direção aestes estabelecimentos. O cursinho Objetivo e a EMEF General Othelo Franco,localizada a duas quadras da praça, também são responsáveis por boa parte dospedestres no local.

Embora a Praça Sílvio Romero tenha se revelado importante lugar de passagem,esta também se configura como espaço para permanências. Alguns passantesrealizam pequenas pausas no local, seja para fumar um cigarro ou para observara vitrine das bancas de revistas. Já para as permanências mais prolongadas,observou-se em campo que o mobiliário da praça foi fundamental. Isso porque,conforme o subespaço da praça e o mobiliário nele disponível, certasapropriações eram (ou não) suportadas, influenciando, consequentemente,

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quanto tempo o usuário permaneceria no local. As áreas de maiorespermanências são os subespaços 2,3 e 5.

O subespaço 2 é bastante apropriado, no horário de almoço, por funcionários eestudantes dos estabelecimentos próximos à Praça. Eles costumam se sentar nosbancos para conversar com outros colegas, utilizar o Wi-Fi livre, escutar música ousimplesmente observar o ir e vir das pessoas. Já o subespaço 3, por seu menorfluxo de passantes, é o espaço predileto de casais para namorar. O quinto eúltimo subespaço, por sua vez, possuí mesas e banquinhos de concreto, o que otorna atrativo a homens e idosos, que costumam jogar cartas ou dominó.

No tangente à diversidade de usuários da praça, observou-se uma equilibradaproporção entre homens e mulheres, e relevante presença de casais e grupos.Durante o dia, encontramos ainda idosos e crianças, raramente vistos no períododa noite. Mesmo neste período, quando os estabelecimentos adjacentes à Praçajá estão fechados, esta continua movimentada devido aos trailers de lancheinstalados em seu perímetro. De acordo com os proprietários dos trailers, éjustamente à noite que ocorre a maior procura por seus produtos.

Outros usos

Embora seja recorrente a presença de moradores de rua na Praça Sílvio Romero,não foi observada a prática de mendicância à porta da igreja local ou nossemáforos de seu entorno. Nas sucessivas visitas de campo observou-se que estegrupo de pessoas geralmente permanece no espaço livre à esquerda da IgrejaNossa Senhora da Conceição, onde ocorrem tímidas passagens e permanências(subespaço 4). Os moradores de rua fazem uso dos bancos do local para tomarsol ou dormir, atividade que também é praticada em um canteiro próximo, juntoà Igreja. É usual ver sobre a grama deste canteiro poucos pertences, além depapelões e mantas utilizados na proteção contra o frio.

Outras ocupações informais ocorrem no perímetro da praça, onde “flanelinhas” evendedores de Zona Azul abordam motoristas que acabaram de estacionar. Nãoforam observados vendedores ambulantes no local.

Eventos

A maior parte dos eventos da Praça Sílvio Romero ocorre no amplo espaço livreà frente da Igreja (subespaço 1). Há mais de 20 anos que este espaço éapropriado, às terças-feiras, por barracas e expositores da Feira de Artesanato eComidas Típicas Sílvio Romero. Atualmente existem 65 barracas cadastradas, masé raro que todas estejam montadas no mesmo dia. Dentre os produtoscomercializados encontram-se desde objetos típicos de feiras de artesanato,artigos hippies e comidas variadas até plantas, pijamas e serviços de búzios e tarô.

Desde maio de 2014, o Encontro de Artes Circenses da Zona Leste – Circo naPraça é realizado semanalmente, sempre às terças-feiras à noite, na Praça SílvioRomero. O encontro permite que artistas da Zona Leste se reúnam para treinarjuntos e trocar técnicas e experiências circenses. Cada um leva seus própriosmateriais, que variam desde claves, monociclo, diabôlo e perna de pau, até tecidoaéreo ou lira, que são pendurados nas árvores durante o treino. Ocasionalmentehá também oficinas, nas quais são ensinadas técnicas específicas, e o “cabaré”,

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onde a praça transforma-se em palco para um espetáculo circense a céu aberto.O encontro, que surgiu de forma independente e se mantém com contribuiçõesespontâneas, conta ainda com a colaboração do trailer Dogão e Cia. que cedeum ponto de energia elétrica para que os artistas liguem seus aparelhos.

Por seu valor simbólico, a Praça Sílvio Romero também é referência para atospúblicos políticos e protestos. Durante a onda de manifestações de 2013, porexemplo, o átrio à frente da Igreja funcionou como importante ponto deconcentração e articulação de manifestantes na Zona Leste.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Praça Sílvio Romero mostrou-se importante locus das espacialidades da vidapública na Zona Leste de São Paulo, por meio de suas passagens epermanências. A Praça, como espaço público que constitui, é acessível a todos osindivíduos da sociedade, independentemente de seu gênero, faixa etária oucondição social. A coexistência desses diferentes frequentadores em seu espaçopromove o exercício da alteridade, com maior ou menor intensidade.

As ações de passagem que acontecem na praça estão relacionadas ao trajetocotidiano; ao movimento dos transeuntes e a conectividade de espaços. Mesmoo simples caminhar pode promover o contato com o diferente, ainda que deforma breve e involuntária. A Praça Sílvio Romero se torna ativa com odeslocamento dos passantes, pois são as ações que dão significado à forma, e aforma que possibilita a ação. A inserção urbana e o conjunto construído queenvolve e gera o lugar público da Praça Sílvio Romero revelaram-se fundamentaispara as ações de passagem.

A Praça Sílvio Romero situa-se em uma área de fácil acesso da Zona Leste, sejapor transporte público ou privado. A diversa oferta de modais de transportepúblico nas proximidades – concentrados no Complexo do Shopping Tatuapé,um ponto nodal – garante à Praça alto e constante fluxo de pedestres durantetodo o dia. Neste sentido, os edifícios adjacentes à Praça também se mostraramessenciais. O uso do solo predominantemente comercial e de serviços destasedificações atrai funcionários e clientes para o lugar público da Sílvio Romero. Aausência de recuos frontal e lateral destes edifícios garante que um maiornúmero deles se abra diretamente para a rua, potencializando as trocas com aPraça e contribuindo para que este lugar público seja um espaço contínuo edinâmico.

Contudo, é nas permanências que reside o maior potencial de trocascomunicativas mais intensas e diversas entre os usuários da praça, sejam elasverbais ou não verbais. Às ações de permanência estão relacionados o lazer, oconsumo, as pausas, o descanso ou, simplesmente, o estar. Conformeanteriormente apontado, a forma urbana e o mobiliário são fundamentais parapermitir (ou não) a permanência em um espaço público. No presente estudo, amorfologia urbana e o sistema de objetos da Praça Sílvio Romero revelaram-seadequados à permanência e a múltiplos usos, atraindo boa diversidade deusuários ao local. A diversidade de usuários incrementa a qualidade da vidapública na Praça Sílvio Romero, configurando-a como importante lugar público,que promove encontros, convívio, trocas, conflitos e manifestações.

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Teresa Cristina Barroso VieiraAluna de graduação da FAUUSP.

Seção Técnica de Produção EditorialCoordenação DidáticaProfa. Dra. Clice de Toledo Sanjar Mazzilli

Supervisão GeralAndré Luis Ferreira

Supervisão de Projeto GráficoJosé Tadeu de Azevedo MaiaSupervisão de Produção GráficaRoseli Aparecida Alves Duarte

DiagramaçãoJosé Tadeu de Azevedo Maia

Impressão (capa)

Canon ImagePRESS 1135+Sidney Lanzarotto (serigrafia)

Impressão Digital (miolo)

Canon (ImagePRESS 1135+ / ADV C5051)Francisco Paulo da SilvaAcabamentoEduardo Antonio CardosoMário Duarte da SilvaRoseli Aparecida Alves DuarteValdinei Antonio ConceiçãoSecretáriaEliane de Fátima Fermoselle Previde

Seção Técnica de Produção Editorial daFaculdade de Arquitetura e Urbanismo daUniversidade de São PauloPapelMiolo - Papel Chambril Avena 80 g/m2

Capa - Cartolina F CARD Ouro (FEDRIGONI) 240 g/m2

Tiragem100 exemplaresDataagosto 2017