hugo de carvalho ramos - tropas e boiadas - iba mendes.pdf

140
7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 1/140  

Upload: lucas-campos

Post on 20-Feb-2018

345 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 1/140

 

Page 2: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 2/140

Hugo de Carvalho Ramos

Tropas e Boiadas

( Contos )

Publicado originalmente em 1917.

Hugo de Carvalho Ramos(1895 — 1921)

 “Projeto Livro Livre”

Livro 187

Poeteiro Editor DigitalSão Paulo - 2014

www.poeteiro.com 

Page 3: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 3/140

Projeto Livro Livre

O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa quepropõe o compartilhamento, de forma livre e

gratuita, de obras literárias já em domnio p!blicoou que tenham a sua divulga"#o devidamenteautori$ada, especialmente o livro em seu formato%igital&

'o (rasil, segundo a Lei n) *&+-, no seu artigo ., os direitos patrimoniais doautor perduram por setenta anos contados de / de janeiro do ano subsequenteao de seu falecimento& O mesmo se observa em Portugal& 0egundo o 12digo dos%ireitos de 3utor e dos %ireitos 1one4os, em seu captulo 56 e artigo 7), o

direito de autor caduca, na falta de disposi"#o especial, 8- anos ap2s a mortedo criador intelectual, mesmo que a obra s2 tenha sido publicada ou divulgadapostumamente&

O nosso Projeto, que tem por !nico e e4clusivo objetivo colaborar em prol dadivulga"#o do bom conhecimento na 5nternet, busca assim n#o violar nenhumdireito autoral& 9odavia, caso seja encontrado algum livro que, por algumara$#o, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentile$a que nos informe,a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo&

:speramos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejamrepensadas e reformuladas, tornando a prote"#o da propriedade intelectualuma ferramenta para promover o conhecimento, em ve$ de um temvel inibidorao livre acesso aos bens culturais& 3ssim esperamos;

3té lá, daremos nossa pequena contribui"#o para o desenvolvimento daeduca"#o e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obrassob domnio p!blico, como esta, do escritor brasileiro <ugo de 1arvalho =amos>“Tropas e Boiadas”& 

? isso; 

5ba @[email protected]

Page 4: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 4/140

BIOGRAFIA

Nasceu na Cidade de Goiás, no dia 21 de maio de 1895, filho do juiz de DireitoManoel Loes de Car!alho "amos e de Mariana Loiola "amos e faleceu no "io

de #aneiro, no dia 12 de maio de 1921$ %niciou seus estudos com a mestra &il!ina'ermelinda (a!ier de )rito$ *ilho de oeta e irm+o do escritor ictor deCar!alho "amos, fre-uentou o Liceu Goiano, na anti.a caital do /stado$

*re-uenta!a assiduamente o Ga0inete Literário de Goiás, semre emcomanhia do ami.o inseará!el Gercino Monteiro Guimar+es$

&e.uiu ara o "io de #aneiro e in.ressou na *aculdade de Direito$ uandocursa!a o ltimo ano jur3dico, referiu dar ca0o 4 rria !ida$

&eu nico li!ro de contos, Tropas e Boiadas, comosto e ela0orado ela Revista

dos Tribunais do "io de #aneiro, foi u0licado em fe!ereiro de 1916, 4s e7ensasdo autor e foi muito 0em rece0ido ela cr3tica nacional$

/m 192, estando restes a concluir o curso jur3dico e estando já a0atido orcrise de deress+o, !iajou ao interior de Minas Gerais e &+o aulo$ No anose.uinte, no!amente de !olta ao "io de #aneiro, !3tima da an.stia e daderess+o, cometeu suic3dio$ : ;1 de janeiro de 1999, um seleto jriselecionado elo jornal mais imortante do /stado de Goiás, <= oular<, deGoi>nia, incluiu a sua o0ra imortal, <?roas e )oiadas< @1916A, dentre as !inteo0ras literárias mais imortantes do sBculo ((, em Goiás, tendo o0tido orimeiro lu.ar com <1 menes< or arte do jri$

Cola0orou com di!ersos jornais e re!istas, Lavoura e Comércio, de E0era0a, are!ista Fonfon, do "io de #aneiro, a %mrensa, usando semre o seudFnimo de#o+o )icudo$

considerado, ela cr3tica nacional, um dos mais 0rilhantes re.ionalistas

0rasileiros$ &ua lin.ua.em B a tFnica do roceiro do )rasil Central e aresentano!os !ocá0ulos ara enri-uecer a l3n.ua ortu.uesa$

Como o0ra stuma foram u0licados 2; oemas de autoria de 'u.o deCar!alho "amos, so0 o t3tulo de Plangências$

---

Portais consultados: WikipédiaAcademia Goiana de Letras  

Page 5: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 5/140

ÍNDICE

DIAS DE CHUVA ............................................................................................PELO CAIAPÓ VELHO ....................................................................................A MADRE DE OURO ......................................................................................GENTE DA GLEBA ..........................................................................................PERU DE RODA .............................................................................................O SACI ...........................................................................................................NINHO DE PERIQUITOS ................................................................................O POLDRO PICAÇO .......................................................................................À BEIRA DO POUSO ......................................................................................

ALMA DAS AVES ...........................................................................................CAÇANDO PERDIZES .....................................................................................NOSTALGIAS .................................................................................................MÁGOA DE VAQUEIRO .................................................................................CAMINHO DAS TROPAS ................................................................................A BRUXA DOS MARINHOS ............................................................................

13710!"#"10010$

1071101131%01%$1%

Page 6: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 6/140

 

1

DIAS DE CHUVA 

Cai a chuva lá fora. Plac! plac! ouço-a cantando em goteiras e cornijas, nocimento molhado da rua e nas vidraças embaçadas do meu quarto. No sei por

que, vendo o borraceiro descer, o esprito embebe-se-me em doce e longnquarêverie.

"ejo, atrav#s duma tela $mida as paisagens distantes de meu torro natal, eafa%-se-me a que ando viajando, como antigamente, por esses sert&es, sentindosob o pala de viagem a água cirandar forte, cabriolando e verdascando sobre osserros longes, as saraivadas, ou peneirando grosso, em meio o rendilhadosombrio da floresta por onde vou.

'ssim, anos lá vo, cavalgava eu por essas estradas ermas da minha terraremota, um macho perrengue de aluguer, ou o l#pido ala%o (ourado, emf#rias, rumo do stio. (ia em meio, casais de araras e bandos de papagaiosdespregavam dum jenipapeiro qualquer de tapera o seu v)o balofo, e passavamalto, em gritaria álacre de contentados* carcarás corriam escrutadores e solertespelos campos, em surtos rasteiros de carnvoros. + verde das campinas, dasorlas de mato longe, quando ganhava a chapada, tinha deslumbramentosintensos de seiva robusta e viva.

plac! plac! arremedando como agora a chuva das goteiras, segue o ala%ocaminho afora, pelo alagado trilho de argila vermelha, deiando atrás, vincado,o molde de seus cascos ferrados, chapinhando pelo rego das enurradas, crinaspendidas, cabeça baia, a resfolegar...

o aguaceiro molinhando, desce manso e manso, como se uma grande efantástica m/ andasse remoendo cristais pelo c#u de cinábrio, e sobre aetenso imensamente esmeralda daqueles desertos rinc&es. chupitando afumaça de minha cigarrilha de palha, sob o pala quente de viageiro, sigo eu,cabeça baia, desengonçado na sela, num grande descaso da borrasca,

ruminando planos futuros.

0s ve%es, cantavam galos perto, cacarejavam galinhas-d1angola cocás, ceslatiam dos currais e porteiras, quando no vinham, esganiçadores e embolados,esfalfar-se at# os jarretes do (ourado, em matinadas hostis. +lhava2 era umstio, um morador, por onde passava ao largo. calculando, pensava2 ' ficam jáos Peludos, duas l#guas ainda a andar. agitando as r#deas em abandono noarço, prosseguia, acelerando a andadura do animal.

(entro em pouco, ficava para trás, escondida nas sombras, no nevoeiro, nafolhagem, a silhueta pardacenta dos telhados. ' chuvarada continuava aberta,

Page 7: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 7/140

 

2

naquele seu grande choro de desconforto, ensopando os campos.ncachoeiravam-se longe, ao fundo, nos plainos baios, em cujas bordascarreiras viçosas de buritis contornavam cap&es, as águas marulhentas deregatos perenes. 3avi&es, entanguidos, quedavam-se sonolentos e

marasmáticos a olhar do cimo desnudo dos galhos secos das encru%ilhadas. Nasvár%eas umentes de jaraguá, um e outro mestiço %ebu passeia pachorrento eindiferente, ao borrifo.

m torno, sil4ncio absoluto* murici%eiros abriam-se em flor, nessas primeiraschuvas de outubro, e, com eles, paineiras esgalgadas e pequi%eiros copudos doscerrados.

Numa baiada, transposto o c/rrego, o caminho internava-se novamente namata bruta. ', a rama superior, densamente fechada, afogava, nulificando-a, o

rudo da chuva* apenas um ou outro grosso pingo, escapulindo-se por umaligeira aberta rasgada no folhedo pelo vento, tombava poc! poc! na camadaespessa de folhas podres que atapetavam, abafando os passos, o carreirocalmoso. , indiferente e esquecido do mundo, seguia eu cabisbaio, numagrande pa% e conforto da alma, sob o pala de viagem, ruminando saudades...

Nas beiradas de mato dos barrancos onde o carreiro se cavava fundo pelotr5nsito continuado marmeladas-de-cachorro ofereciam os seus negros ebrilhantes frutos maduros* inga%eiros encapotavam-se no alto* saputás

polposos, 6 beira dos c/rregos, pendiam, num tom berrante de coresescarlatemente retintas, de frutas sa%onadas* e perfumes intensos de baunilha eflores silvestres evolavam-se da mata densa, ao misterioso e secreto entreabrirdas corolas medrosas... 7m grande ramo pendia 6s ve%es, tomando o passo,emperolado de orvalhada* e o ala%o, acaçapando-se, metia a cabeça,atravessando-o a escorrer. a floresta prosseguia, interminável e profunda, nosil4ncio eterno da sua solido.

, no sil4ncio eterno da minha solido, prosseguia, sob o pala, ruminandosaudades...

'h! viagens e passeios antigos, sob a chuva ou a cancula, nos pagos da minhaterra! 8uo longe e distantes sois!

Page 8: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 8/140

 

3

PELO CAIAPÓ VELHO 

  Noite escura e má, patro%inho. + macho frontaberta de orelha murcha ep4lo arrepiado como o pinto pelado da hist/ria, cabeceava macamb$%io,

lembrando meu velho tio 9ilário ao fogo da trempe de pedra, no nosso ranchode :panema, a ruminar lembranças e saudades da vida antiga de arrieiro* eassunte que o bicho crioulo no encapotava assim, com dois trancos, e eramesmo malcriado para varar chapad&es de sol a sol, comendo d$%ias de l#guas,tenteando, tenteando, sem qu1isso nos assustasse, nem a mim nem a ele,frontaberta.

;as atoleiro era uma la%eira! Chafurdara-me no lameiro at# o cabeço dacutuca, e o ponche-pala ia pingando pelo atalho em fora bagas de lama que lhe

atiravam as patas do crioulo, a bater na trilha ensopada e falha de cascalho,fa%endo lembrar uma viagem que fi% ainda na meninice com o tio 9ilário pelalagoa dos <arais, nos fund&es de ;ato 3rosso* quando foi isto, ;arinho= mmeados de >?@? ou @A... do ano da graça de Nosso Benhor esus Cristo...

+ sertanejo velho levou a mo ao chap#u, couro de catingueiro curtido,descobriu a grenha hirsuta, desengonçando-se no pangar# piolhento,sorumbático e caduco.

:mitei-o devotamente. + tempo era bom e a viagem prosseguia como tinhacomeçado sob bons auspcios e o camarada contentado, tinia as rosetas,chupava grosso o cigarro desacoitado da orelha, acariciando com o olhar ointerminável verde-pálido ondulado do jaraguá em floresc4ncia, e, alegre comoa amenidade do lugar, a brandura do sol e limpe%a do tempo, repetiu2

  Noite escura e má, patro%inho. Drovoada e rel5mpago eram que nemroqueira e foguete de Bo oo. mbarafustara-me, ao sair da mata grande, porum bamburral danado adentro, to fechado de liana e cip/, que, se no fossesábado e dia de um santo da minha devoço, acreditaria logo ser mitra do

curupira, a fa%er tretas e malcias para me perder. ;as louvado seja (eus e ochap#u de catingueiro descambou novamente para a nuca do cabur# patuácom ben%edura e re%a mansa contra tentaço nunca abandonou peito velho docaboclo, lá isso no.

naquele vira-tem-mo do taquaral esconjurado, a cabeça %an%ou logo 6 toa, eele perdera o roteiro. Docou ento sem rumo certo, na fi$%a do faro de podengodo macho frontaberta* este no duvidou torcer mo direita, quebrar por umtrilho de bicho do mato, e vir esbarrar num bebedouro de animais, atolado no

pantanal um mundo de lameiro, de sapo e de pernilongo.

Page 9: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 9/140

 

4

Denteando, tenteando, ganhara um serrote e costeou pelo espigo, topandologo aquela restinga alagadiça, onde o apanhou o p#-d1água, já 6 boquinha danoite.

  Como di%ia, o macho frontaberta chapinhava de orelha murcha e p4loarrepiado, como o pinto pelado da hist/ria. Corpo mole, bucho fundo, isqueiromolhado, ponche-pala encharcado e matalotagem virada mingau no sapiquá dagarupeira, decidi apear no sombreiro de um jatobá velho casmurro eresmungo, debaio da pontinha de vento frio que vinha dos p5ntanos,ateimado a passar ali mesmo o resto da noitada como Nosso Benhor fosseservido. Nisto, carij/ preguiçoso cantou doutra banda, num descampado quedeveria eistir por detrás da restinga por onde trotava. + vento mudou de lá pracá e o macho crioulo, farejando esterqueira, amiudou o passo, chapinhandoainda uns restos de poços, de orelhas arrebitadas.

  E de casa gritei, colhendo o cabresto do animal, que veio esbarrar, numtroto bruto, bufando forte, na porta do cochicholo embodocado que porsinal me pareceu palácio maior do que o do ecomungado Falalo e mesmo odo santo imperador Carlos ;agno donde saa um fio adelgaçado de lu%.

  E de casa repeti.

  E de fora choramingou uma vo%inha aflautada, que me fe% correr um

arrepio de gosto pelo corpo.

'i, patro%inho, eu era moço, vinte anos, cabur# e falto de festas de viola epagodeiras desde Banto 'nt)nio...

  Pousada, sinhá-dona.

' porta de toros de buriti amarrados por corda de embira abriu-se e ahospedeira que 6 lu% da candeia espetada lá no fundo, na paredepicum%enta, me pareceu uma robusta rapariga de faces gordas, bochechasrosadas e boa corpul4ncia alongando o pescoço para o breu da noite,murmurou com uma esp#cie de tremor na fala2

  "anc4 entra, sinh) moço, se for do seu agrado, a casa está 6s ordens.

'peei. ' chuva deiava de pingar pelo beiral palha de arro% velha da casa.(esacolchetei o ponche-pala, desencilhei o frontaberta, levantando os baieirosaos poucos para que o macho no apanhasse resfriado, puei-o depois paradentro da tranqueira no oito da casa que, assim, assim, a falar verdade no

oferecia segurança e entrei.

Page 10: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 10/140

 

5

No sei, entrei distrado, # certo, mas dito por no dito, me pareceu que a lu% dacandeia minguara, minguara, a modo de carestia de a%eite...

' hospedeira era so%inha na sombra da lu%, perguntou se tinha fome.

' falar, a falar ao certo, que sim que desde as barras do dia andava em jejum,debaio de chuva, sem mesmo ter enugado os bofes com dois dedos decachaça no fundo do cornimboque, mas que no se aveasse a sinhá dona, queele com pouco se contentava um cuit# de farinha seca com um taco derapadura na goela e qualquer pedaço de couro velho para descansar o corpo*que, quando a madrugada viesse amiudando, já estaria de animal aparelhado,pronto pra cortar por esse mundo afora.

8ue no, que no, ia atalhando ela, que se abancasse 6 beira da trempe, onde

podia se remediar com uma tora de toucinho na feijoada.

' fome, patro%inho, era braba. + est)mago farejou toucinho com ranço efeijo bispado. ;as a gente neste mundo de Cristo, de lá pra cá e de cá pra lá,numa corre-coia do diabo, pelo serto sem morador, a mais das ve%es nem issomesmo topa que assim, assim, a vida do tropeiro # rem#dio bom para acabarcom quindins, luos e poetagens de no comer caruncho no feijo, mofo nafarinha e cor/ e salto no toucinho.

;as, no sabia, apesar de tudo, o est)mago adivinhando, enjeitava %angado...

Naquela morna lassido do descambar da tarde, pela estrada poeirenta emcujas margens florescia o jaraguá altanado, pareceu-me, olhando atentamentepara o companheiro, que um ligeiro estremecimento fa%ia-lhe eriçar as falripas,como cerdas de canela-ruiva.

  Ceei, patro%inho, e gargarejei a boca com a $ltima guampada que me restavade pinga* e esquentado, com a cabeça %on%a pela comida e aguardente nobucho que no via raço desde manh%inha, deitei e adormeci quase semassuntar no jirau da mulher, mesmo em seus braços, que julgava roliços emacios, mas que eram lisos e escorregadios como bagre fora d1água, beijandosuas bochechas carnudas e empapuçadas. Gora, entretanto, pelo breu da noiteadentro, o ram-ram danado dos sapos e pelo beiral palha de arro% velha,ruflando caia, a chuva amiudava nunca me hei de esquecer.

8uando levantei, o carij/, preguiçoso, cantava empoleirado no oito dochiqueiro. Ba fora* as barras vinham quebrando era madrugada. + macho, vilogo, tinha pulado a tranqueira. 3anhei o rastro assuntando o cho com o fogo

do isqueiro já enuto no calor do corpo, e assim, assim, meio ajudado pelonascer do dia. ncabrestei o madrasto no fundo de um groto* dei-lhe a mo de

Page 11: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 11/140

 

6

milho do embornal da garupa. no moiro da porta, já dia feito,embarbicachado e arreado o macho, pronto pra cortar, a fala sumiça da donachamou-me de dentro2

  + caf#!

ntrei, mas voltei atrás sarapantado. Pela porta aberta, as primeiras estriadasdo sol davam-lhe de testa nas bochechas rosadas da v#spera e nas mos queseguravam a tigelinha de barro amarelo, onde fumegava uma infuso escura egosmenta2

  + caf#!

+utra longa e irritada estremeço correu pelo corpo do cabur#, sacudindo-o dos

p#s encravados nas chilenas ressoantes 6 grenha hirsuta, assanhada, como ascerdas de porco-espim acuado, e salpicado aqui e acolá de fios brancos violentamente.

+ cabra, batendo o isqueiro e chupando grosso, emudecera.

  ;as, ;artinho...

  Patro%inho e o sertanejo cuspiu forte para ambas as bandas da estrada

das bochechas e beiços arregaçados num vermelho de apodrecido da rapariga,corria visguenta e f#tida por entre uns tocos de dentes amarelos patro%inho  uma baba de empestado... +s dedos da mo, no os havia...

como inquirisse admirado, regougou noutro acesso de asco2

  ;acutena, patro%inho, macutena...

+ pangar# piolhento corria agora mais apressado emparelhando-se ao meufouveiro, num pacatá furta-passo, pela estrada esmaecida e pulverulenta emfora, na cad4ncia mon/tona, ritmática de viageiro, como se quisesse arrancardo amo o peso esmagador daquela recordaço do passado que fa%ia o cabur#contorcer-se em convuls&es furiosas de v)mitos na cutuca quando, por umanoite tenebrosa d1invernada, viajava escoteiro pelas estradas ermas e alagadiçasdo Caiap/ "elho.

' estrela boieira ensaiava já o seu brilho lacrimejante engarupada sobre oscerros, e longe, na ribanceira do descampado, a escaiolada e vasta pousadaabria-nos os braços hospitaleiros no meio de uma fartura de currais coalhados

de gado...

Page 12: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 12/140

 

7

A MADRE DE OURO Poço da Roda. Arredores de Bonfim 

Fonfim # uma das cidades mais antigas de 3oiás. Como suas irms mais velhas,

;eia Ponte e "ila Foa de 3oiás, guarda ainda, sob muitos aspectos, o cunho dosn$cleos coloniais do s#culo <":::, com a sua inconfundvel arquitetura reinol,estilo barroco, de feiço pesada, simpl/ria e, ao mesmo tempo que bonachona,hospitaleira aspecto esse que se vai aos poucos apagando dos burgos evil/rios progressistas mais pr/imos da linha f#rrea.

Gicou-lhe, pois, ainda intacto, o antiquado perfume de antanho, cousas mortasque a mente aviva e a tradiço redoura, vago encanto do passado, sabor queno t4m ou já perderam os centros mercantilistas, tomados de febre de rique%a

e inovaç&es, do litoral.

Como 3oiás, a Driste, embala-a o mesmo sono de du%entos anos de Fela'dormecida, com as reminisc4ncias da #poca da descoberta, as aluvi&es deaventureiros e desbravadores 6 cata do rico filo, página her/ica do esforçoetinto da raça, que 6 mem/ria apra% reviver.

scavaç&es profundas, minas ao desamparo, veeiros revolvidos, barrocassolapadas, esboroando-se nas chuvas, velam de melancolia o olhar do viandanteque demanda 6quele recanto do Planalto. 6 medida que se aproima de seusarredores, mais vivos e constantes so os atestados do delrio avoengo emesmiuçar, estripando-as, as entranhas da terra, para delas dar cibo e páscigo 6sede do luo, ao esplendor bi%antino da velha metr/pole, já ento em via francade decad4ncia.

9oje, minas, lavras, catas, tudo ja% ao abandono. 'lveja em montes o pedrouçodas formaç&es 6 beira das estradas* uma coma verde de gordura corre a cristados valos e carreiros, argilosos e tristes, outrora sacudidos pelo estalo do relhodos feitores e o grito angustiado da escravatura, na lavagem do cascalho.

Goram-se os antigos bateeiros da descoberta, etinguiu-se a febre damineraço* ficou, enrai%ada, uma populaço pacfica e laboriosa, que fa% aprosperidade do municpio na lavoura, na criaço do gado, no com#rcio dasletras, em outras profiss&es liberais.

(a primitiva ealtaço, por#m, do ouro, restam, como tradiço, hist/rias elendas, das quais, talve% porque haja no fundo, como na maioria das lendas, umponto qualquer de contato com a verdade, # a do Poço da Hoda das maispopulares.

Page 13: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 13/140

 

8

Gica nas proimidades de Fonfim, no ermo de um descampado, ocupando oespaço de du%entos metros mais ou menos de circunfer4ncia. Contammoradores e viajantes que, 6 lu% forte do dia, quando a superfcie se lheaquieta, mui transparente e cristalina na calma circundante, uma enorme pedra

responde do fundo das águas aos fogos do meio-dia, irradiando em torno umbrilho de mil chispas e centelhas, cujo estranho fulgor inebria e cega dedeslumbramento e cobiça os olhos mortais ali empenhados, 6s bordas da frágiligarit#, em devassar-lhe o lquido arcano. I a ;adre de +uro, cujoencantamento curiosos e mergulhadores tentam, em vo, surpreender osegredo, e de longos, mui longos anos habitadora daquelas águas remansadas...

mbalde # a teima por#m, que o mist#rio do stio, a profundidade do poço, arefrang4ncia, o desvio de seus raios e moment5neo desaparecimento da visoassim lhe perturbem o imoto cristal, %elam e guardam para sempre inviolada em

seu retiro, a pedra maravilhosa.

se um, mais afoito e s)frego, volve de novo 6 tentaço da miragem emergulha mais uma ve% no lençol silencioso e frio, 6 busca do encantadotesouro obscuro 'lberico a quem faltou o anel dos Niebelungen logo o punede morte a ;adre gloriosa, voltando 6 tona o seu corpo tempos depois, pastode lambaris, papa-iscas e mais arraia mi$da do lago.

Berenada a agitaço das ondas, alisado o espelho transl$cido na queda da

aragem, eis de novo, fulgurando, a ;adre de +uro aviva, como um solsubmerso, a aurifulg4ncia de seus raios mágicos ante a adoraço das florinhasan)nimas, debruçadas 6 beira da lagoa...

JJJ

Dal # a lenda nesse trecho do territ/rio. Be esplende ali a ;adre de +urosepultada no fundo do Poço da Hoda, continua entanto a sua peregrinaçoatrav#s de outras paragens do rinco goiano, numa viagem a#rea, cujo termo #a eploso do meteoro na noite silenciosa.

tal como a ouvimos, no interior, o seu quebranto consta do seguinte2 8uemescuta ou v4, no ermo da noite, a passagem da ;e de +uro cortando o c#uestrelado com o seu listro ardente, toma na co%inha da choça um tiço embrasa, corre ao limiar e fa% no espaço uma cru% de fogo.

Kogo, cede a 'pariço ao sortil#gio do homem, det#m a sua carreira vertiginosa,e arrebenta em estilhas, lascas, pedrouços, calhaus e blocos, tudo de ouromaciço e do mais puro quilate. depois, toca a catar e a meter no surro aquela

fortuna inesperada...

Page 14: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 14/140

 

9

9ist/ria que tem a sua origem nos b/lidos, fen)meno que o olhar aparvalhadodo matuto observa, muitas ve%es, pelas noites claras daquela terra de vár%eas echapad&es e de que gera a imaginativa a sua lenda, filha do c/smicodeslumbramento e da superstiço primitiva.

Page 15: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 15/140

 

10

GENTE DA GLEBA  A Guimarães Natal  

I 'pertando a sobrechincha encarnada por sobre os pelegos da sua boa selamineira, o Fenedito dos (ourados enfreou a mula rosilha e espalmandosatisfeito a mo no lombilho dos arreios, voltou ao paiol da fa%enda, onde acamaradagem se entretinha ferrada no truque.

  ;orro abaio, morro arriba, urrando como guariba, truco no meio, barriga decoeio berrava o ;alaquias, um negralho espada$do, primeiro braço de foicee machado em derrubadas e demais eitos da roça.

  stou de forma! com quin%e quilos e quinhentas gramas! retrucou oaquimda Dapera, um cafu%inho pern/stico de gaforinha e barba rala, agregado dostio.

  Lh lá, que eu tamb#m tenho parte do boi, os quatro quartos, a cabeça e ofato! pilheriou o cabra entrando e indo abeirar-se do lume.

  á de partida, seu (ito= perguntou um adventcio assentado numasretrancas de cangalhas e batendo fogo no isqueiro* olha que, mesmo assim, s/estará em Banto 'nt)nio lá pelas tantas do dia, com um sol%o 6 mostra* arosilha # estradeira, no resta d$vida, e amilhada como vai pua bem l#gua emeia* mas a stiva está que # uma la%eira, atoleiro pra riba do peitoral* umtrabalho, a passagem...

  8ual o qu4! Beu Meca passou lá ontem 6 boquinha da noite, sem lua, com omato já escuro* no soube reparar no desvio que conheço. Chuva deste m4s jáno fa% lamedo, e a mula, al#m de ferrada, arresta que fia fino pr1essasestradas...

  Ficho como aquele tive um, quando traquejava na linha de Cuiabá* machorosado de fiança! Kevou-o um arrieiro por seiscentos bagarotes, notas novinhasem folha, e uma franqueira aparelhada de prata de quebra* e assunta que,mesmo assim, no ficaria contente da barganha, no fora o defeito do machoem meter-se a passarinheiro nos $ltimos tempos. Ficho bom! como aquele bempoucos...

+ cabra espicaçava com a unha uma rodela de fumo piuá que tirara dum

embornal da parede* assentado sobre os calcanhares, escutava descuidado apacholice do correio. Hetirou detrás da orelha a mortalha do cigarro, enrolou-o

Page 16: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 16/140

 

11

cuidadosamente e puando com um graveto a brasa da fogueira, acendeu-o,baforando dous tragos longos de fumaça.

  ' lua vai descambando, quero ainda amanhecer no arraial a tempo de pegar a

missa do (ivino* at# amanh, para toda a companhia.

saiu fora, arrastando as chilenas.

  No esqueça a minha cabaça de p/lvora para as salvas de roqueira no ChicoGogueteiro avisou o ;alaquias interrompendo a partida.

  o garrafo de licor com a comadre ;aruca disse oo "aqueiro.

  sse no esqueço eu, sem o que corre chocha a funço caçoou o cabra

desamarrando a besta no moiro do cercado* arre! está um frio das carepas!

  "eja lá um golo de pinga pra esquentar obsequiou de dentro algu#m.

  "á feito.

'beirou já montado do batente, estendeu para o interior o braço, tomando ocuit# que lhe ofereciam. Febericou uma golada e passando o dorso da mo pelobigode fino, elogiou2

  Ficha braba!

  Druco tapera, quem no ama no espera! gritava o ;alaquias, quedescobrindo com precauço o naipe seboso de suas cartas, levantara-se numrepente at# a cumeeira de sap#, ferrando uma patada no ligal que servia demesa, a fa%er dançar os tentos e bois da parceirada.

  Crioulo de sorte observou o adventcio.

+ Fenedito já virara r#deas, batendo lá longe a cancela do curral e ganhando oestrado.

' lua ia a transmontar, muito branca, como uma garça-real nas águas a%uladasda lagoa. +s campos desdobravam-se por devesas e baiadas, em ondulaç&essuaves e alguns sulcos fundos, onde negrejavam restingas de mato e os renquesde buriti que orlam o curso dos c/rregos das vargens. mperolava-se aorvalhada no grelo viçoso do catingueiro roo dos serrotes e a gadaria ruminavaao luar, 6 sombra tranqila das fruteiras-de-lobo e pequi%eiros da chapada.

Page 17: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 17/140

 

12

' mula cortava a estrada na marcha batida* o cabra, desengonçado no arço, iaa chupitar fumaçadas, algumas ve%es entremeadas duma quadra esquecida2

Menina, amarra o cabelo, 

Bota um lenço no pescoço, Pra livrar dalgum uebranto, Mau!ol"ado dalgum moço. 

Cabur#s e noitib/s estridulavam a sua elegia noturna 6 beira dos cap&es* umcuriangu que encontrara a fingir uma ponta negra de cerne emergindo do solo,acompanhava-o agora no seu v)o rasteiro e balofo, indo postar-se adiante, pararecomeçar 6 aproimaço da montaria, estrada afora.

's divisas do 8uilombo desapareciam ao longe, envoltas em neblina e luar* a

mula resfolegava, abeirando a passo mi$do da stiva* um galo tresnoitadoarreliou numa palhoça, al#m, no fundo da baiada.

+ Fenedito repisou a melop#ia2

Pra livrar dalgum uebranto, Mau!ol"ado dalgum moço. 

', nesse mesmo estiro, viajando, alta noite, um luar to claro como aquele,

por pouco que se deiara ficar, assombrado.

ra pelo começo de seus amores com a Chica do povoado. ' labuta ia dura nafa%enda. 'juntavam boiadas para a venda do ano. Nessas vaquejadas, mal tiveratempo de dar, no decorrer duma quin%ena inteirinha, um s/ pulo a Banto'nt)nio para deitar seu olho enamorado 6 cabocla.

'ssim, para que no o dissessem mofino e mulherengo, quando vinha atardinha, ap/s o jantar, enquanto a camaradagem, amodorrada, espichava-sepelas redes e mantas, ele aparelhava o macho queimado velho sim, mas aindamarchador e 6 socapa, juntando esporas, ganhava a porteira e dentro empouco lá ia, plena andadura, chapado em fora, rumo do povoado e docochicholo da Chica, donde arribava madrugada alta, para, no dia seguinte,levantar-se com o sol, ao traquejo costumeiro.

  Haparigas...

Fom tempo aquele! nunca, campeasse em plainos de malhadas ou fossemcerrad&es garranchentos, faltara 6 sust5ncia, mostrando corpo mole, mesmo

quando fosse para dar uma rodada bem feita num garraio espantadiço ou r4s

Page 18: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 18/140

 

13

matreira enfurnada nas brenhas, que pedisse quem lhe corresse nas pegadas 6desentoca.

+ ;alaquias, que lhe sabia das escapadelas, ao v4-lo noutro dia como sempre,

laço 6 garupa, forte e desempenado, ao alto do seu pampa campeador, botava amo no queio, coçava o picum da barba falha e metido lá naquelas espáduaslargas de preto nagoa que eram a admiraço do pessoal, rosronava d1olhoavelhacado2

  9ome, como s) (ito, s/ ele mesmo! ta gente, quem havera de di%er. 8ual!parece mais obra do capeta!

Pois meu povo, pr1essas pelintragens, se a fraque%a lhe dava 6s ve%es 6 canela,no era de raspar-se com a estrela boieira para o povoado e lá, metido a noite

toda em vira-vira de cateret4s e sapateios 6 viola com a Chica, toda dengosa efaceira em suas chinelinhas arrebitadas de marroquim, ao outro dia agentarescorreito com o seu posto no campeio. mesmo que nesses bailaricossurgiam dessas topar pela frente um dunga qualquer de quatro costados,ve%eiro em tretas, arrotando valentias e pabulagens, o jeito de querer sonegar-se com a morena. No! que nesse caso fechava mesmo o tempo, acostava-se jururu 6 rapariga e fa%ia trabalhar o ferro, costurando o mais intrometido* e isso,quando a queimada vinha já a ponto de pedir que se tirassem as teimas aovalento.

7ma cru%, simplesmente uma cru%, o motivo de todas as suas d$vidas ehesitaç&es ao momento de p)r o p# no estribo e ganhar a estrada batida.

+ caso # que era um fraco da meninice. Pequenote puava ento guia de carrona fa%enda 6 falta doutro pr#stimo vindo duma festança em Banto 'nt)nio,estourara ali perto o M# Caolho, cantador daquelas bandas, dumas sopitaç&esdo coraço, falta d1ar, segundo di%iam uns, empan%inado de cachaça, afirmavamoutros. + certo # que o velhote, quando no cod/rio, metia-lhe medo comaquelas compridas unhas de pássaro agoureiro e as hist/rias infindáveis desacis-perer4s assobiando ao lusco-fusco no olho do pau, gemidos de meninopago no cemit#rio, pragas de rola fogo-apagou no alto dos telheiros e cousasmais, que asseverava 6 noite aos pequenos, enquanto a cachorrada saa a ganir6 lua no terreiro.

(esde ento, passasse a na stiva, um mal-estar danado cerrava-lhe o peito* eera quase aos choros, geladinho de terror, juntando-se muito aos que com eleiam, que atravessava a ribeira. Com a idade, apontando o buço, fora-se a maiorparte da perrenguice* contudo, talve% pelo costume adquirido, uma sensaço

inc)moda molestava-o sempre naquele travesso de mato, onde a cru% do

Page 19: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 19/140

 

14

violeiro avultava dentre o mata-pasto e samambaias da beirada, toda roda develhice e caruncho.

Dr4s anos havia, vindo do arraial, sob o adre% da camisa uma prenda querida da

Chica e nos lábios escaldados a impresso gostosa de sua primeira boquinha acabeça %an%ando, tonta de paio topara com boa naquele trato de terra.

Passava alheado, no se lembrando dessa ve% da promessa que lhe fi%era ocantador duma feita, por vias dumas peraltices, de vir puá-lo pelas pernas 6meia-noite, quando morresse* eis, um grito rouco, d1alma penada, chega-lhecom o vento aos ouvidos.

+ macho entesourara orelhas, estacando na estrada. le cara do c#u dasrecordaç&es e olhava em torno. Ká estava ela, a cru% do troveiro, em meio o seu

montculo de pedras, braços abertos, no aceiro do mato* e o luar to lindo, quetomava agora uns tons lvidos ao entranhar-se nas primeiras árvores da stiva,donde aquele clamor parecia subir, to fundo, to angustioso, que s/ delembrá-lo agora os p4los se lhe arrepiavam na cara.

Gosse noutra ocasio e torceria r#deas, esperando pelo amanhecer. ;as essanoite, com a impresso ainda fresca do beijo da Chica, impresso nova que lheinfundia ao 5nimo uma ardide%a capa% de enfrentar com o Cuca em pessoa,pareceu ao cabra que andava mal em dar assim de costas ao perigo.

Gosse lá a morena v4-lo como se portava naquele aperto...

'peou, já que o animal empacava de ve%. Negaceando, com cautela, avançousorrateiro, palpando o terreno em torno. ra agora um desfiar intermitente deladainhas, como se andasse algu#m encomendando almas a Batanás, ouhouvesse ali uma tropilha de feiticeiros apanhados em tram/ia.

unto ao c/rrego, estralejante, um fogar#u lu%ilu%ia entre os cipoais, alumiandoao fundo, vagamente, um amontoado de vultos esquisitos, que a vista turva nodistinguia bem, uns aqui direitos como guardas, outros ali de c/coras, sob umacoberta* no meio espaço, lvido, sinistro, estirado no cho duro, um rosto magroolhava o c#u, as formas do corpo sobressaindo angulosas da mortalha, restostalve% de quem sucumbira escanifrado de fome, ou houvessem os vampiros edem)nios chupado o sangue em seu festim imundo...

le detivera-se a olhar tudo aquilo, transido, mo na coronha da garrucha, comoque grudado ao inga%eiro onde encostou para no cair. 7ma cabeçabranqueada surgia agora da terra, ao p# do morto* mastigava as ladainhas, um

ferro a retinir no fundo da cova.

Page 20: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 20/140

 

15

No havia duvidar era assombraço.

Crac, crac, aperrava a arma* e, reagindo contra o medo, berrou2

  Ká vai obra!

(escarregara ambos os canos. 'o estampido, cessou a cantoria. 7ma vo% quenada tinha de sobre-humana, vo% um tanto travada pela comoço, queiou dofundo do buraco2

  +lha que me mata, moço! 'nda a gente a cumprir com seu dever de cristo esaem-lhe em cima aos tiros! á se viu s/! Banta ;aria!...

  +ra, # o velho Cristino!

  le mesmo, moço! 7ai, como se no bastasse uma s/ desgraça num dia.

o velho carreiro, arrancando-se do fundo da escavaço, veio at# ele,tremendo.

Dudo ficou claro. ' tropilha de bruos encapotada ao fundo, era o carro dovelho, o respectivo toldo de couro malhado, os fueiros e as cangas e camb&es

enfeiados ao lado. + defunto do lençol e para o qual olhava ainda comdesconfiança, um filho do Cristino, que tamb#m ganhava a vida carreandonessas estradas. 'panhara umas febres no "erssimo e vinha por toda a viagemtiritando no fundo do carreto. ;orrera esse dia e o pai, entre lágrimas, orandoao Bantssimo, estava ali cuidando da sepultura, quando o surpreenderam ostiraços do passageiro.

  'hn! isso # outra conversa. Pois me parecia... ;as no era para menos! "ote,a gente topa cada uma...

como tinha boa alma, ajudou-o a enterrar o rapa% e passou ali ao p# do fogo oresto da noite, embrulhado no pala, bebericando caf#, que o velho veioaprontar, e procurando consolá-lo e entret4-lo com o seu proseado fácil demestiço imaginoso.

  Lh, gente ia agora a matutar. Berto, escola do mundo.

com as barras que vinham quebrando, misterioso, soturno e imenso, essemesmo serto desaparecia ao longe, no nevoeiro da manh, todo prenhe de

assombros e apariç&es...

Page 21: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 21/140

 

16

II' madrugada amiudava. á as barras vinham quebrando e no cabeço dum serro,mui branca e tremelu%ente, a estrela-d1alva minguara o seu claro lacrimejante,

anunciando o romper do dia.

H#deas encurtadas, a niquelaria da cabeçada retinindo festivamente, Feneditodeu entrada no arraial no trote picado da mula, que frechou direita ao ranchodos tropeiros.

Pelo largo, no vassouredo rasteiro onde trilhos se entrecru%avam em teia,adensava o lençol matutino da neblina, abafando o hori%onte. o mulherio dolugar, embiocado em ales, esgueirava-se ao longo dos casebres, arrastandopela mo a filharada, semitonta de sono e entanguida de frio sob as dobras da

saia materna, que lá ia em camisola, o chinelinho de couro na ponta do p#, trec,trec, trec, rumo da igreja, onde o sino se pusera a badalar a intervalos,enforcado no trap#%io de aroeira ao 5ngulo esquerdo da sacristia.

Pelos currais mugia o gado, ladravam ces, o galo amiudava o canto álacre e asvacas leiteiras, passando a beiçama r/sea por baio dos paus de porteira,farejavam avidamente a cria presa, soltando ap/s doloroso e prolongadobramido.

+ rapa% desenfreou, prestes, a mula no rancho dos tropeiros* desapertada acilha, dependurou os arreios num caibro baio do teto, enfiou 6 Pelintra oembornal de milho que trouera 6 garupeira e, fechada a cancela, saiu entoapressado, no retintim das esporas, em direço 6 capelinha.

(e lá vinha o claro tristonho dos crios, a alumiar ao fundo, soturnamente, aparamentaço dos altares de pobre%a vilareja, e imagens toscas, esculpidas amaior parte por ali mesmo, que o povil#u contemplava em silenciosa e profundaveneraço, amontoado pelos cantos, sobre o pavimento $mido de terra batida.

Pelo teto desforrado, em surtos tr)pegos, alguns morcegos erravam 6s tontas,apegando-se ao caruncho das traves e de lá, inquietos e atordoados de lu%es e oburburinho desusado, quedavam-se a observar os intrusos, agitando as suascabeçorras de ratos. andava em torno, de mistura com o arder de ceras erolos de incenso, o cheiro enjoativo da ecrementaço daquelas Oavesnoturnas, junto ao bafio peculiar dos templos do interior muito tempofechados.

' campainha retiniu mais uma ve%. Nos coqueiros de guariroba que ladeavam o

calvário do adro, chalrava agora um bando de pássaros-pretos, tatalando asasas, arrepiados, saltitando de palma em palma. ia fora a garoa matinal

Page 22: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 22/140

 

17

esgarçando-se e acentuando os contornos do casario, que principiava adebuar-se dentre o caio alvacento das fachadas, que o sol no tardaria empouco a branquear de ve% com a sua grande lu% cáustica de manh sertaneja.

  #te missa est   perorava afinal o celebrante, um padre redentorista vindoepressamente da vila pr/ima.

;ais uma ve%, repenicou o sino na sua forquilha de aroeira, naquela mesmatoada cavernosa de bron%e gretado. 7m foguete subiu ao c#u, estourando nomeio da praça. 'os atropelos, os pequenos do adro precipitaram-se a ver quemapanharia a cana.

stava findo o ofcio.

le levantou-se lesto do canto 6 entrada, onde se tinha ajoelhado e perquiriaem torno. Bim, lá estava ela, por sinal que um tanto macamb$%ia e entreguetoda ao terço do rosário, naquele seu vestidinho de chita a%ul bem liso e justoao corpo, fruto capitoso que o sol sertanejo amadurara e enrubesceradespercebido ali, naquele fundo da boa terra goiana, para o go%o e a secretaventura de seus olhos...

No o vira, absorta na devoço. Damb#m no insistiu em olhar muito paraaquele lado, mesmo porque uma velhota se pusera a vigiá-lo com o seu $nico

olho de coruja rabugenta, escandali%ada, talve%, de no o ter visto aindacorresponder a preceito com as pancadas de contriço que a assist4ncia rumavaao peito.

3anhou o adro* atravessando rapidamente a praça em bulcio* e veio esperá-la 6esquina dum beco tortuoso, que ia ter, ap/s voltas e reviravoltas, 6 fontep$blica do lugar, uma cacimba afogada em estendais de so-caetano efedegoso-bravo, onde a água minguava a maior parte do ano.

'o fundo, num alto que apanhava a linda vista do povoado, a casinhola de Chicaabria as duas janelas ao longe, mui brancacenta em suas paredes barradas afresco de cal, a entrada baia ao lado, por onde tantas ve%es passara feli%, nacerte%a antecipada de logo ter aos braços, ofegante e rendida, aquela dengosamorena que fora o encanto de suas primeiras emoç&es de homem e a quemqueria com a viol4ncia e o ardor que os daquele sangue p&em em suas mnimaspai&es.

' vinha ela já, um tanto arisca e sorridente reconhecera-o de longe ensaiando o seu passo requebrado, feito todo de denguices de felino e arqueios

de pomba-rola, que o tra%ia enrabichado havia tr4s anos.

Page 23: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 23/140

 

18

  No quis faltar 6 devoço, hein, s) (ito* medo do purgat/rio no #brincadeira... ria, mostrando os dentinhos claros, de roedor, na face cor demate.

  8ual o qu4, sá Chica* purgat/rio # este mundo, onde tanta alma de (eus vivea penar* orat/rio, tenho-o sim, mas aqui dentro, no coraço, para re%ar porcerta ingrata que sei...

Buspirara fundo, brincando com a trança da açoiteira, que ia enrolando edesenrolando em espiral pelo cabo niquelado, num enleio que nem o hábito,nem o tempo tinha conseguido ainda dissipar.

seguiram pelo pedregulho da viela, que os cercados de taquara dos quintaisconfinavam, ela adiante, ele um pouco atrás, a mo tisnada repuando o fio do

bigode, em derriço.

7m geg# morrinhento saiu do fundo do quintalejo e veio escarreirado at# arampa por onde subiam, latindo furioso* reconheceu gente de casa, abanou acauda farejando e foi anicharse entre cin%as, no palheiro, aos ganidos emordidelas com os bernes da gafeira.

7ma bor/ apareceu no momento ao terreiro, a vassoura de piaçaba na mo, ob/cio enorme avultando sob o queio, e um riso atoleimado escorrendo da boca

desdentada, donde duas compridas presas, s/lidas e amareladas, surgiam,vincando o canto inferior do beiço.

  h$! / oana acenou-lhe a mulata, bota a chaleira no fogo.

' idiota continuava a rir, acurvada* e os dous passaram, transpondo num salto,entrelaçados, a soleira. Na sala, presa das escápulas, roçagante, pendia a largarede cuiabana, atravessando de lado a lado o pavimento de massap#. + resto damoblia espalhava-se em torno, meia d$%ia de tamboretes de couro tauiado aop# da mesinha de costura, de cujo balaio transbordavam entremeios de croch4,um cabeço de crivo, alinhavos inacabados de corpete, junto ao castiçal delato sobre um volume encadernado da hist/ria de Carlos ;agno e dos pares deGrança. No canto oposto, uma banquinha com a sua almofada de bilros e arenda em começo sobre o papelo de alfinetes.

le espichou-se, deleitado, na rede* e Chica entrou no quarto contguo, adependurar o ale com que viera embrulhada.

P)s-se ento a fitar distrado as folhinhas que cobriam a parede, os recortes de

 jornais com retratos e figuras coladas de alto a baio, estampas e cromostirados de peças de morim, abrindo-se em leque no reboco nu* uma senhora

Page 24: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 24/140

 

19

Bant1'na em moldura, duas s#ries intermináveis de fotografias do papa egrandes an$ncios ilustrados do Hio, a forrar todo o espaço acima da mesa.

ram-lhe familiares aquelas gravuras. 'lgumas fora ele at# quem trouera de

3oiás, de quando lá ia levar os carregamentos de aç$car e caf# que o coronelmandava anualmente ao mercado. Dinha mesmo um vago pra%er misto deami%ade e saudade antiga em remirar um Banto 'nt)nio já amarelinho, umdos primeiros ali grudados, o sorriso bonacho na cara desbotada, testemunhasilenciosa de seus papagueados amorosos, e c$mplice da primeira beijoca queroubara 6 Chica, uma noite em que ela tra%ia um enorme monsenhor na rodilhado cabelo e tinha o riso mais $mido e sensual nos lábios polpudos esangrentos...

7m cheiro forte, de banha fresca derretida, vinha lá de dentro* crepitavam os

gravetos do fogo e a gordura na caçarola.

Fenedito espreguiçou-se, bocejando2

  E ben%inho!...

  spera, homem, estou frigindo uns caraj#s.

la apareceu logo, um prato de bolos na bandeja, o bule fumegante 6 outra

mo. Com denguice, fa%endo cair do alto o caf# aromático, encheu-lhe atigelinha bordada d1a%ul.

le passou-lhe o braço em redor da cintura, petiscando pelo pires uma golada.

  ;e deie, homem, ora já se viu s/!...

  Cabocla faceira...

  7ai, gente, como está hoje mesmo... Parece at# que # separaço...

  9oje no, todo o santo dia, coraço%inho...

  8ue enj)o!... 'nda, toma o caf#, # melhor* olha um bolo, tem pimenta* esteno, essoutro que já mordisquei.

(epusera a bandeja sobre um tamborete e sentara-se ao lado na rede, sorrindo,encarando-o fito, os olhos langues.

le deitou-lhe a cabeça ao colo, olhos cerrados, numa felicidade calma de velhaposse* e ligeira, com meiguice, a mo da amante ia perpassando devagar por

Page 25: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 25/140

 

20

sobre os seus cabelos corredios, a catá-lo minuciosamente, 6s c/cegas, comoum cachorrinho de estimaço.

' claridade solar entrava aos jorros pela porta aberta, acalentava-o pouco a

pouco, preguiçosamente, num enervamento volutuoso de corpo e sentidos.Kento e lento, pesava-lhe o sono as pálpebras cansadas.

Pela volta das de% e meia, Chica acordou-o como pedira. Goi 6 loja do major, acuidar das encomendas. (eu um giro pelo arraial, 6 cata do fogueteiro econhecidos* veio por $ltimo esbarrar na venda da ;aruca.

0quela hora, em sua fatiota domingueira de riscado, a rapa%iada bebericava aliaguardente, jogando o truque e o dourado.

+ tempo estava mesmo quente, pois desde o lado de fora ouvira eclamaç&es2

  ;ilho no muro, antes que fique escuro!

  8uebrou um lanço da cerca, eu vou dentro!

  "im topar o porto da romaria!...

  Kicença, licença, meu povo.

  +ra, viva, o (itinho dos (ourados! Pula pra cá, rapa%* entra na roda, quetemos parceiro sacudido, gente! Cabra turuna pra esquentar uma partida!

  Pois ento entra aqui no meu lugar obsequiou M# "elho que tenho d1irainda campear o meu piquira* levou um sumiço desde trasanteontem.

  Be # um piquira cabano, estrelo de testa e ferrado das mos, no se afoba, seuM#, topeio ali atrás, numas barrocas de catingueiro, meia l#gua pra cá da stiva.stive mesmo quase a tocá-lo para o povoado* por sinal que tra%ia cincerro.

  le mesmo, muito obrigado* já lá vou atrás do malandro* agora no relaomais a peia. di%er que o cigano com quem o barganhei afiançou ser mesmo obicho raçoeiro. "á lá uma criatura de (eus fiar-se naqueles ecomungados.

  Ciganos= (i%em at# que t4m parte com o Co advertiu Fentinho Faiano.

  Be t4m! ;al esticam a canela, vo logo de cambulhada para as areias gordas...

  Para animal fujo conheço santo rem#dio aconselhou um velhote d1olhospretos e cabeça branca, que tinha uma gagueira na vo% e os membros tr4mulos.

Page 26: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 26/140

 

21

  I receita afamada dum ben%edor das bandas do Docantins. 7m porrete! Gi% asimpatia com a minha #gua baia e nunca mais saiu deste largo. Ponha mec4numa cuia uma mancheia de sal torrado bem modo, vai dando a salga aoanimal por debaio do sovaco, da porta da co%inha 6 da rua e da frente 6 porta

do fundo, tr4s ve%es sem parar, passando e repassando por dentro da casa. Gaçaisso tr4s dias seguidos e pode dormir depois descansado.

  No duvido, compadre* mas, por via das d$vidas, sempre passo hoje a peia desola curta no danado. Bá ;aruca, bota pr1a mais um cobre de pinga e meiaquarta de fumo, que o que tenho na patrona no chega para o pito. 't# 6 vista,minha gente, apanhando o rastro, piso logo na retranca do velhaco.

  mec4 vai olhando as encomendas, que a demora tamb#m # pouca ajuntouFenedito. Drago a debaio dos coonilhos um sapiquá, manda o pequeno

buscá-lo lá no rancho, enquanto baralho cá uma corrida com esta rapa%iada.

  :sto # que # falar 6s direitas disse Fentinho Faiano, já entusiasmado.

  8uem # mo, pessoal=

  'gora # mec4 respondeu o velhote.

  Cuidado, minha gente avisou algu#m. Demos a cabra pra trucar sem %ape

nem catatau.

  Druco, tapera! Por que no me espera! gritava já ao lado o primeiroparceiro.

Corrida a roda, Fenedito retrucou, cortando-lhe a va%a. um mulato apessoado,que fi%era a segunda, estatelando a espadilha na mesa, desafiou todo ancho.

  studante de medicina, vou em Homa volto em mina, consulta seucompanheiro e v4 se voc4s combina!

  Druco vai, milho vem, mosquito na corda desce bem!

  'ssim, menino! esus Caetano! Noss1Benhor, diabinho!

  +n%e! Faralho na mo do bron%e!

unto ao balco, onde voejavam moscas caseiras sobre coscoros, ;aruca coçavaa verruga do queio, e metia com pachorra o garrafo de licor no fundo do

piquá. (a outra banda do saco, colocara os embrulhos, que dependurou aoalcance, numa vara.

Page 27: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 27/140

 

22

  +s temperos vo de lado, seu (ito* fica a 6 vista no varo, para no esquecerquando sair.

  No seja esta a d$vida, sá ;aruca. Comigo # nove, 4h! velhote treme-treme!Corto o sete-de-ouros com o curinga!

Kevantara-se no bico das botas e abatendo-se com arreganho, vo%eou2

  Lh! carta v#ia... Chincha de ;ed#ia!

+ outro volveu encafifado2

  "elhote... treme-treme... Cada qual sabe de sua vida, moço* no fosse

arribadiço naquelas bandas, conhecessem há mais tempo quem fora o3eneroso das 'b/boras e a conversa mudava de rumo. ;undo, liço pragente...

dep)s as cartas, resmungando.

' partida esfriava. ' companhia espreguiçava-se no saguo, em torno da mesacambeta, sobre sacos de mamona, baforando cigarradas, desbonecando asmortalhas de palha, que a l5mina dos quic#s ia a grosar, ringindo ásperas, e

cuspilhando a mi$do, 6s placas estraladas, o pavimento de terra $mida com agosma dos gorgomilos. 'miudavam-se os copitos duma cachaça amarelinha erascante das boas que a vendeira tra%ia reservada para os fregueses maischegados. como entrasse o pequeno com o tabuleiro de caf#, o velhuscorepetiu ainda uma ve%, um tanto agastado, sorvendo pelo pires o conte$do dacara2

  "elhote=Q treme-treme=Q Passasse aquela gente o quarto dRhora que tinhaeperimentado e o caso mudava de feiço.

  +ra, sai da! 8ue homem mofino! (eia de %anga, seu 3eneroso, que o (ito #assim mesmo* # do jogo. "enha antes a hist/ria, se há* o mais, conversa fiada.

Pois no, pois no* mas assuntassem que nem sempre aquela tremura depernas lhe atrasara a vida, nem tampouco tivera a lngua perra nalgum apertoque prReste mundo de Cristo a gente topaQ

+ caso acontecera pouco antes da campanha de Canudos, onde a jagunçadadera pancas ao antigo batalho cá do stado, segundo ouvira contar, e um seu

mano obteve as divisas de furrielQ

Page 28: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 28/140

 

23

  'ndava nesse tempo numa comisso de linha telegráfica, porta-mira deturma. G#ria boa, # verdade, mas trabalho era ali! :sso, rumo do 'raguaia,abrindo picada na mata virgem, esse mundo de mato grosso que principia emaraguá, beiradeia os rios 7ru e das 'lmas, cai no 'raguaia, ganha o Docantins e

vai acabar lá para as bandas do Pará.

;adrugado, com um frio de bater queio, o pessoal já estava de p#, teodolitoe apetrechos ao ombro, rumo do serviço. Poucas l#guas faltavam para alcançaro porto do Hegistro e ganhar a outra banda do rio. ' turma armara oacampamento num aceiro largo, 6 beira dum ribeiro. 'li os borrachudos emiruins eram que nem castigo. 'ssim, modo como estava, no pudera pregar oolho boa tirada de tempo.

+s mosquitos %im!Q %im!Q outras ve%es %um!Q %im!Q estas eram as

muriçocas mi$das, a%oinavam-lhe o ouvido, conquanto trouesse a cara tapadasob o cobertor. +s pernilongos ento, esses, nunca vira cousa assim*atravessavam com o ferro a l grossa do pala, a calça, a camisa e vinhamaferretoar-lhe embaio as carnes, com danaço.

  "ote! Praga desse feitio, s/ mesmo naqueles fund&es* mil ve%es antes oscarrapatinhos, que se encontram 6s bolotas nos travess&es de mato, mas umaboa fumegaço bota-os abaio por dá cá aquela palha* e, mesmo, porque noresistem 6s primeiras chuvas do ano.

;as, como estava a di%er, aquilo já passava de mangaço, tinha as orelhas aarder, as horas iam correndo e manh%inha lá o esperava o serviço costumeiro.

Puou umas mantas dos arreios, onde dormia* e, na lu% das estrelas, saiu 6sgatinhas da barraca, indo arranjar a sua cama bem longe do c/rrego, entrefolhas secas, ao p# duma sucupira.

Gerrara no sono que nem camaleo no oco do pau. Com o virar da madrugada,começou a ter uns sonhos maus* ora era enterrado vivo, como sucedera naestranja a uma velha, ora uma porço de diabinhos se punha a batucar no seupeito, pesando, pesando, queQ 'cordou.

'briu os olhos, mas esses, meio cerrados, pisca-piscando, tornaram a fechar-secom força.

Cru%es! Parecia at# que era ainda em sonho! (escerrou de novo os lu%ios comcautela, o coraço aos trancos, mal-assombrado.

Kembrava-se como se fora naquela hora. + dia acabava de clarear, cantavaperto um curi/ no galho da sucupira.

Page 29: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 29/140

 

24

Bobre o seu peito, enroscada, a cabeçorra ao centro, os olhinhos voltados para asua cara e a lngua em forquilha para fora, uma cascavel dormiasossegadamente, no calor brando do corpo.

Gicou gelado, sem movimento, a cabeça transtornada, a olhar apatetado acobra.

+ tempo que assim passou, no sabia di%er* mas se há inferno nalguma parte, #curtir uma alma de (eus as amarguras daquele ruim quarto d1hora!

  Banto nome da "irgem, que martrio! +lham a tremura que reaparece...

  u sacudia de riba o bicharoco e pulava para o lado comentou Fentinho

Faiano vivamente interessado.

  8ual! e resoluço= Pensar no # nada, fa%er # que so elas!... Be acudisse umgesto, um epediente, estava salvo* mas, como lhes di%ia, fiquei gelado, as juntas bambas, sem movimento, como cousa largada. "ivi naquele momentomais vida que a de mec4s todossomada.

'final a cascavel, despertando, espichou a forquilha da lngua, foi desenrolando

aos poucos os an#is do corpo e saiu devagar pelo meio das folhas, farfalhando...

  No acampamento era tudo animaço. 7ltimavam-se os preparativos para otrabalho do dia. Cheguei tremelicando, as pernas vergadas, como atacado demaleitas. ' vo% embargada, relatei o fato ao chefe. ;as que # isso, 3eneroso,disse ele* olha aqui este espelho. +lhei. Dinha a cabeça branquinha!

  + que deve acontecer, tem força, acontece mesmo ponderou Fenedito 6 laiade consolo.

  Pinga pr1a mais dous dedos, sá ;aruca pediu o narrador.

No largo, a lu% meridiana rebrilhava na areia das estradas, faulhavam ao longeos detritos de mica e uma evaporaço quente, pulverulenta, como que pareciasubir da terra rescaldada.

'lguns já se erguiam, despedindo-se dos parceiros* e, como era domingo e diasanto, a vendeira aprestava-se a fechar as portas do neg/cio.

III

Page 30: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 30/140

 

25

(eiando atrás a longa trilha paralela do ferro das rodas, rolava um carroencosta abaio, ao passo vagaroso da parelha de bois, o eio lamuriando 6dist5ncia ao atrito dos munh&es, vindo das plantaç&es do outro lado da baiada.

nsangentada, a tarde baiara o seu claro crepuscular sobre a mata, ao longe,a cuja entrada dois jequitibás se alteavam, erectos e sobranceiros 6quele marde frondes, donde a sombra parecia avolumar por graduaç&es, redourada et4nue ainda nas $ltimas cumeadas, dum a%ul sombrio e carregado sob as$ltimas ramagens, riscadas aqui, ali, dos primeiros pirilampos.

'umentara a gritaria dos meninos no terreiro da fa%enda. 7ns, ao canto, jogavam o bete* escarranchados os demais na gangorra, cujo peo fa%ia eco aorechinar distante do carro, que descia aos solavancos os brocot/s do carreiro.

' camaradagem, acocorada ao longo dos puados, comprimidos os p#s emchinel&es de caititu e botas de veado catingueiro, chupava pachorrentamentecigarradas, manejando o ;alaquias uma alavanca no meio do terreiro, a cavar olugar onde em pouco se aprumaria a bandeira do (ivino.

oo "aqueiro alinhou as roqueiras em direço 6 estrada* e, como um molequeo acompanhasse curioso, ordenou áspero2

  'nda a ver uma cuia de farinha, / pamonha, e mais a p/lvora que sobrou da

festa passada. Lh, pessoal, vamos cá esperar nh) (ito com uma salva desust5ncia!

  +lha que a Pelintra # reparadeira avisou o nagoa. + rapa%, se vierdistrado, pode comer terra na força do estrondo.

  8uem, aquele= Dá, tá, tá, vai para outro lado com essa cantiga* aindameninote, no havia poldro nestas redonde%as ao qual no lhe desse na venetatirar as tretas. Nh) (ito, esse, conheço-o melhor que as veredas deste stio2peo de fiança!

, enquanto proseava, punha a carga 6 roqueira* sobrecarregou-a com umpunhado de farinha grossa de mandioca e duas pancadas secas da culatra nocho serviram de soquete.

  Ká vem ele, lá vem! bradou um molecote empoleirado no moiro da cancela.

+ vaqueano escorvou o ouvido 6 peça e correu a apanhar um tiço no fogo quefi%era entre as pedras da gameleira* mas algu#m atalhava2

  Hebate falso, # a obrigaço de s) 8uim.

Page 31: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 31/140

 

26

(e fato, o agregado, naquele pedr4s caolho, barganha infeli% duma la%arinanova, chegara 6 frente da sua obrigaço, a 3ertrudes, tr4s meninasrechonchudas e bisonhas, e um par de pequenotes atarracados, d1olho

esbugalhado e triste, a barriga a impar sob a correia da cinta sinalcaracterstico de meninada molenga, afeita a roer torr&es de barro 6sescondidas, pelos cantos da palhoça.

' me vinha adiante toda sestrosa, empurrando a filharada para a frente, ob/cio avultado sob o caro empalamado, pito 6 boca, um lenço d1alcobaçaatado 6 cabeça, as pontas reviradas para trás e os chinel&es de marroquimamarrados numa trouinha sob o braço, para calçar 6 hora da re%a.

  7ma salva pra seu 8uim e a comadre 3ertrudes, minha gente prop)s

;alaquias. sem mais, descarregou o trabuco de que se armara.

oaquim da Dapera voltou-se ento, ufaneiro, na cutuca velha* aprumou oclavinote que trouera a tiracolo para um galho de gameleira, pipocandoestrondoso tiraço.

  (esapeia, desapeia, compadre, e chega pra cá, que seu (ito no deve tardar."amos todos arrebentar a pipocada to logo apareça lá na vargem a rosilha.

+ caipira afrouou a barrigueira do pedr4s, sacudiu de riba a sela, e as caçambasde pau entrechocando-se uma na outra, foi guardá-la ao paiol.

Na saleta da casa-grande acendiam-se agora as velas em torno da bandeira. NháKica, a filha do patro, já lhe pregara aos bicos os bambolins a%uis e andavaborboleteando em torno do altar improvisado, a enfeitá-lo com florinhas depapel de seda rosa. ' (ivina Pomba, mui mansa e serena, asas espalmadas,abria o seu v)o mstico inclinada no fundo branco do andor, sobre uma toalhaengomada de linho, ladeada por dous jarr&es, que embalsamavam o aposentocom a fragr5ncia ativa dos resedás.

Cessara há muito a grita dos meninos no curral. + carro, aos avisos 4h!Farroso, 4h! Hel/gio! entrara lá fora no abrigo dos tropeiros. (esajoujados dacanga, os bois foram soltos no mangueiro e o guia, um latago destorcido,sobrinho de oo "aqueiro, que se tinha deiado ficar ainda aquele dia nocanavial, veio enaguar a poeira do rosto e as mos 6 bica do monjolo,reunindo-se depois 6 rapa%iada.

+ lusco-fusco já se fa%ia cerrado nos arredores. :a no c#u, atrás da copa distante

dos jequitibás, o brilho tr4mulo de papa-ceia.

Page 32: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 32/140

 

27

B$bito, no fundo da estrada, junto 6 nascente que os buriti%ais assombreavam,adensou uma nuvem de p/, que cresceu rapidamente, na marcha de mais emmais apressurada da mularosilha.

  'gora # ele, agora # ele! berrou o pequeno lá do poleiro da cerca.

oo "aqueiro encostou a brasa ao rastilho da peça. 'o estampido, a bestarefugava, atravessando em dous trancos a cancela escancarada e veio c#lerebufando alto, esbarrar ao p# dos foli&es, contida nas r#deas pela mo segura docavaleiro. ste, garrucha em punho, aperrados os gatilhos, virara-se no arço,mirando a caveira de boi-espácio que alvejava na forquilha do cercado.

oaquim da Dapera fe% ainda fogo com o clavinote. nto o rec#m-vindo

desfechou de ve% os dois canos, saudando a companhia.

Ká na forquilha da cerca saltaram lascas das chanfras do espácio.

"itoriava-o uma aclamaço geral. 'peado, as pernas meio tr)pegas dacaminhada, dirigiu-se para a casa-grande, onde o coronel relia 6quela hora, soba lu% baça do lampio de queresone, um n$mero atrasado da Golha de 3oiás,recostado pachorrentamente na sua rede de embira.

  F4nço.

+ fa%endeiro tirou as cangalhas que pusera para ler, chupou uma $ltima fumaça6 ponta sarrosa do cigarro e fe% um gesto vago.

  (eus o abençoe. No me manda nada o major=

  Drago aqui na patrona as cartas do correio e um maço de jornais. + majormanda di%er que rompeu com o partido, 6 vista das $ltimas eleiç&es* o restovem a relatado na carta.

ntregou os objetos e foi avançando para o interior, as botas esturradas demormaço ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo da co%inha. Ká provava d.Kusa o caldo 6 come%aina do dia, a%afamada numa roda-viva de mulheres.

Feijou-lhe com respeito os dedos nodosos da mo reumática e trabalhadeira.Goi tirando do piquá as encomendas e como a boa senhora se pusesse logo aesparrimar umas pitadas de canela no pratarra% d1arro%-doce, indagouapressado2

  (indinha no tem mais preciso de mim para alguma cousa=

Page 33: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 33/140

 

28

  'h, sim, toma tento em Nequinho* diacho de pequeno sapeca, no me deusossego todo o santo dia, a querer provar o ponto a quanta tachada houvesse.Bentido naquele capetinha, no fosse tamb#m querer deitar fogo 6s roqueiras...

m pouco, na sala toda lu%es, por cuja janela aberta o claro dos crios vinhaalastrar-se cá fora, no terreiro, principiaram as re%as em torno do altar r$stico.

;alaquias dera desde cedo a mo de cal ao mastro, que branquejava ao longoda casa, sobre dous cavaletes, cintado todo d1an#is d1oca e tinta a tr4s cores. raum magnfico cedro, que ele pr/prio fora tirar 6s terras da baiada, alto, liso,direito, medindo de ponta a ponta uns sessenta e seis palmos bem puados.

+s moradores do stio, ajoelhados at# o fundo do salo, iam engrossando o

vo%erio das mulheres, reforçando atrás, gradualmente, a rogativa. Ga%ia-se umapausa lenta, ap/s a qual a vo% afinada e suplicante de d. Kusa evocava novosanto, tirando a ladainha.

0 sada, Nequinho distribua os rolos de cera, enrolados em talas de taquaril,que cada qual foi acendendo ao lume do vi%inho* e a procisso se fe% breve,levado o andor 6 frente por quatro meninas, acompanhando as cercas doscurrais, dando voltas 6s gameleiras, em torno do casario dos agregados, as lu%esa tremelu%ir na noite clara, sob o lmpido luar do serto, vindo por $ltimo

esbarrar junto 6 espiga do mastar#u.

Ge%-se um grande crculo. + coronel colocou a bandeira. Fenedito adaptou amaçaneta, segurando-a a prego.

Hasgando em raiva o ar, estrugiu no alto um rojo. ra o sinal. ' camaradagemagarrara-se ao longo do mastro e 6 garrulada dos pequenos e estouros defoguetes, puseram-no acima, aos vivas e brados ao (ivino sprito Banto.

7m momento, no af da ascenso, o pesado madeiro pendeu para o lado dacasa e esteve vai no vai a cair sobre os telhados.

  'rriba! arriba! urrou ;alaquias, o mais entusiasta, puando pela peitaria.

  Pua! pua!

  'rriba, homem gemeu sufocado oaquim da Dapera, arcando de seu ladocom o maior peso.

  'genta, agenta, meu povo acudiu Fenedito, metendo um forcado deescada na parte perigosa.

Page 34: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 34/140

 

29

' rapa%iada respirava aliviada, agentando nas cordas, previamente atadas aolongo do espigo* e aos atropelos, trataram de encher o buraco. Pedras, calhause terra socada atupiram logo a cova* e o mastro, já seguro, aprumou-se

airosamente, mui branco em sua mo de cal, os an#is em ressalte na noiteluminosa e a bandeira lá no topo balouçante, sobre a cabeça de ;alaquias, quese encarniçava embaio, em torno da rai%, remoendo cantorias, a manejar opesado macete.

Poucas braças adiante, junto ao calvário da fa%enda, donde pendiam, esculpidosem madeira, os sete instrumentos de tortura, tinham sido levantadas as cru%esde bananeira, d1alto a baio espetadas por um renque paralelo de pau%inhosdestinados a suporte das luminárias. stas apareceram logo, em cascadespolpada de laranja-da-terra, a torcida grossa d1algodo ao centro, embebida

em a%eite, tra%idas em bandejas 6 cabeça do mulherio, como e-votos piedososde passadas promessas.

;alaquias, paciente, com unço, foi dispondo as lu%es nos espeques* e, vistos 6dist5ncia, eram dous grandes cru%eiros luminosos, a rebrilhar sob a pa% radiosadaqueles c#us e ante a serena brancura do luar, que varria longe os escampossolitários.

(. Kusa surgiu no limiar da casa-grande, um tabuleiro de tigelinhas em cada

mo* arrastando-se de joelhos, veio dep)-las ao p# do mastro, que osculourepetidas ve%es, em fervorosa contriço. B/ assim cumpria de todo a promessaque fi%era antes pelo restabelecimento de nhá Kica, presa das febresintermitentes quando da romaria do ;uqu#m.

Nequinho, desenvolto, numa arteirice de colegial vadio, aproveitou-se logodaquelas lu%es e desenhou em arco, ao redor da bandeira, em letras de fogo2"iva o (ivino.

'rrematou-as com um enorme ponto de eclamaço e 6s piruetas, de s$cia coma molecagem dos agregados, atirou-se a ver quem saltava mais alto a fogueirado pátio.

Nhá Kica recolheu-se depressa ao interior da casa, onde tinha ordens acomandar.

' ceia, lauta, duma fartura de senhorio feudal, fumegava no varando,esclarecida a intervalos pelos candeeiros de quatro bicos. ' famlia dofa%endeiro agrupou-se em torno do chefe e para o fundo, segundo o costume

tradicional das velhas col)nias, o pessoal do stio, por graduaço de idade eserviço.

Page 35: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 35/140

 

30

(eram pela falta do Nequinho. 'pareceu logo, 6 mo de Fenedito, sujo de cal,amarrotado o lindo terno d1a%ul-ferrete 6 marinheira, p# fincado atrás emoposiço, arrepiadinho de ira. + moço levantou-o nos dedos, veio assentá-lo ao

p# de nhá Kica e foi tomar assento do outro lado da mesa, junto 6 velhasenhora.

8uisera o meleiro, de parceria com os moleques, marinhar-se ao alto do mastroe ele, (ito, obedecendo ao aviso da (indinha, apanhara-o a meio caminho.

+ pequeno desceu do tamborete e veio cavalgar a perna do coronel. ' vo%travada, eplicava ainda o caso2 seu (ito que se intrometesse com o que era dasua conta, no fosse mandar nos outros. 8ueria apenas ser o primeiro a beijar láem cima a estampa do (ivino, e virar a bandeira para o lado da casa.

+ fa%endeiro embalava-o na perna, gravemente, em sil4ncio. ;as nhá Kica,fitando o moço, reclamou assustada2

  "eja s/! que maldade, mordeste-o na mo!

7ma pequena mancha rubra, vincada de dentinhos afiados, pontilhava o dorsoda mo do rapa%, a ressumar umas gotculas de sangue.

mbaraçado, num acanhamento s$bito, recolheu a destra debaio da toalha edisse chocarreiro2

  +ra, ora, no foi nada, um arranho* amanh faremos novamente as pa%es.

;as o coronel encrespara o sobrolho, descia do joelho o filho e ralhava severo2

  No fosse hoje dia de festa e levarias uma tunda de arnica e salmoura, paraaprender a respeitar os mais velhos!

  ;enino de hoje disse d. Kusa reconciliadora no guarda mais respeito aningu#m* olha, seu briquiteques, este moço que aqui v4s, estás escutando= á osujaste muitas ve%es nos braços, quando tra%ias cueiros!...

  Pois sim, mas agora sei portugu4s e geografia, e seu (ito levou uma manhinteirinha a escrever um bilhete que mandou depois ao povoado...

Fenedito disfarçou, carregando nas talhadas de leito recheado que estavam 6sua frente.

Page 36: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 36/140

 

31

Nhá Kica abstrara-se da conversa, atarefada em dar de comer a uma pequenitabirrenta, sua afilhada, que pusera ao colo.

+ fa%endeiro, melhor humorado, cofiava a barba, asseverando2

  3ente de agora, nasce falando* influ4ncia do regime, fosse lá no tempo damonarquia...

spalitava os dentes, espreguiçando-se no espaldar, repleto. +s subordinados,um a um, já se iam retirando silenciosamente* e as mulheres do stio,assentadas como trouas aos cantos, pelos batentes da co%inha, distribuam arefeiço 6 filharada, amassando entre os dedos a comida, a empurrar com opolegar os capites de tutu de feijo para a goela dos pequenos, que engoliamsem mastigar, como patos.

No paiol, repenicando na prima, já ensaiava oo "aqueiro um descante.;alaquias logo o seguiu, a respectiva viola 6 bandoleira* depois outro, maisoutro e outro ainda. + resto formou alas do lado oposto e caram todos comentusiasmo, batendo palmas, na velha dança-decamaradas.

No terreiro, 6 mngua de a%eite, morriam as lamparinas dos cru%eiros* e omicaruloso luar do serto, to lmpido e sugestivo naquelas terras, entrava portoda parte, espancando penumbras, devassando meandros, coado aqui pela

galharada das gameleiras, alastrando-se acolá sem mancha e sem obstáculopela lhanura plana dos chapad&es.

at# tarde chorou no paiol a viola, na toada doda da trova sertaneja.

IV 'brandara o mormaço do meio-dia. Com o chiar lamurioso dos carros quedesciam das roças atulhados de cana para o sero da moagem, vinharefrescando no ar transl$cido a viraço da tarde.

Nhá Kica contava pontos de croch4 junto 6 janela do quarto. Para o fundo,abriam-se os canteiros de roseiras, a horta viçosa, as mangueiras folhudas doquintal, com sua longa fila de laranjeiras em sa%o de ouro, o cafe%al abaulado,dum verde retinto e sombrio* e mais al#m, onde a vista se perdia, vagoscontornos de colinas verdejantes, malhadas aqui e ali duma r4s esquiva quepascia, entre teias longnquas de arame farpado...

o&es-conguinhos e guaos importunos galravam no laranjal, em matinadasatordoantes, ora abatendo-se aos bandos, ora em arribadas para a grimpa

distante dos coqueiros do cerrado, onde tinham os grandes ninhos pendentes.

Page 37: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 37/140

 

32

Nhá Kica contava pontos de croch4, a linha de novelo entre os dedos.

Cismava...

ram recordaç&es que lá iam, perdidas no fundo da mem/ria, ao trabalhosilencioso da agulha, dias de meninice, as primeiras inquietaç&es daadolesc4ncia e a saudade ainda latente do col#gio de Bant1'na, na capital, ondebela e calmosa quadra da eist4ncia passara descuidosa.

surgiam os passeios com as boas dominicanas, em tardes gloriosas comoaquela, nos arrabaldes, pela estrada do 'reo* as correrias das companheiras aolongo do caminho, a colheita de campainhas e boninas, umas r/seas, dumperfume intenso, outras brancas, da candide% imaculada das almas que com elaiam, apanhadas aqui, al#m, aos molhos, que vinham sorridentes e confiadas

ostentar ao sorriso benevolente da ;adre* o jogo das prendas, o chicotinho-queimado, nos pontos de descanso* e depois, ao crescer o crep$sculo, a voltapara o convento, duas a duas, elas adiante, as irms atrás, 6s oraç&es invariáveisd1ave-maria.

"inham os caprichosos artefatos d1agulha e bordado, aquarelas, past#is, aconfecço artstica de almofadas para a eposiço do fim de ano, que ao col#gioatraa toda a alta sociedade da capital* os pr4mios, antecipando as f#rias,passadas entre arvoredo e alegres

folgares, numa chácara pitoresca que possuam as religiosas 6 beira doFagagem.

No ano seguinte, a mesma vida uniforme, com as alteraç&es do adiantamentode idade e progresso nos estudos, e de mais a mais, o gosto acentuado quecrescia nela para as cousas msticas, os desvelos que punha no adorno da capelae aquele seu ardente fervor religioso ao terço do rosário, quando anoitecia...

:am ento juntas aos trduos e novenas da Foa-;orte, 6s re%as vesperais daigreja do Hosário, e com que ansiosa epectativa, misto de impaci4ncia e alegria,atendiam todas, as internas, 6s solenidades da Bemana Banta! Pelo menos,eram as $nicas em que lhes fora dado tomar parte.

Golias do (ivino, com cantorias louvaminheiras de crianças 6 frente dasfilarm)nicas, os pedit/rios de porta em porta por meninos e cavalheirosrevestidos de balandrau e opa encarnada, o cetro, a coroa e a bandeira do(ivino passeadas de lar em lar, aos /sculos etáticos da multido e moedas ec#dulas que se iam amontoando nas salvas, mal as podiam apreciar, atrav#s daspersianas do monast#rio, a cuja saleta egua recebiam algumas freiras o

farrancho.

Page 38: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 38/140

 

33

+ ano passado, no entanto, aparecera ali no 8uilombo uma das tais folias daroça, mui diversa, aliás, das da cidade. Compunham-na um bando de trintamandri&es, cavalgando animais la%arentos, apetrechados de pandeiros e violas,que se tinham deiado ficar em p5ndega na fa%enda oito dias seguidos. 'o

aproimar, deram uma descarga de trabucos, que a camaradagem do stioreplicou com salvas de roqueiras. (epois, apeados, aos descantes e loas,encostaram a um canto da sala a bandeira e caram em rego%ijo na dança, aossapateados e louvaminhas, que se prolongaram at# altas horas da madrugada, einsaciáveis todos de cachaça, que o coronel mandara vir 6s canadas daarma%enagem.

'bateram-se reses no curral, despovoou-se o chiqueiro de porcos, vários leit&esforam assados, e, daquela folia, s/ guardara lembrança do muito cuidado quelhe dera, e 6 mame, na direço da co%inha. 'inda bem que o papai estava

acostumado 6quelas pousadas intempestivas.

;as o que lhe doera ao coraço, ao saber, foi os foli&es, apenas sados do8uilombo, terem ido arranchar meia l#gua adiante, na palhoça dum pobrelavrador, onde acamparam tr4s dias seguidos. + rancheiro, coitado, ficaracertamente na mis#ria, desertos os currais e poleiros da pequena criaço, emfolgança devorada pelos tiradores de esmola...

  +ra, que fa%er dissera o coronel. Costume da terra!

No guardava, muito menos, daquele tempo na capital, lembranças dascavalhadas que o imperador eleito do (ivino reali%ava no campo de BoGrancisco para gáudio da populaço local, com aquelas hist/rias tocantes docativeiro dos cristos na torre de Gerrabrás, os amores da princesa Gloripes como par de Grança, o cativeiro dos mouros, a sua converso na capelinha, quearmavam ao segundo dia, e, no terceiro, a corrida final de argolinhas, quepunha termo 6queles divertimentos.

sses festejos, presenciara-os o ano passado em Curralinho, onde tomavamparte o papai como embaiador cristo, e (ito rei dos mouros.

3uapa cavalgada! Como empinava bem o baio de estima de Holdo, di%endoatrevidamente a embaiada de Carlos ;agno ao rei dos infi#is! com quearrog5ncia e donaire lhe respondia (ito na letra, cabriolando o ginete, a lançaalçada, dois passos adiante da sua guarda! Chamejavam espadas. ' pedrariarelu%ia faiscante na bordadura a%ul e vermelha dos justilhos e pelocravejamento das fivelas prateadas, que prendiam os penachos encaracoladosdos guerreiros. + sol lavava de lu% opulenta e clara a arena sonora onde a pugna

se desenrolava fremente. 9avia um contnuo tropear de cavalos, mal contidosnas estacadas, e o vo%erio indistinto da multido, sob o varandil dos palanques,

Page 39: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 39/140

 

34

mos em pala, 6 crue%a dos raios solares, enquanto a charanga atacava num5ngulo da praça a marcha belicosa.

(entre o contnuo lantejoulamento das arreatas suntuosamente revestidas, a

moirama passava em árdegos serbunos, crinas entrelaçadas, ferraduras e cascosdourados rebrilhando ao longe, 6 desfilada franca, toda sangue em suavestimenta de veludo carmesim, as fl5mulas tremulando na haste pontiagudadas lanças, 6 investida auda% contra os defensores da G#. stes, dentro ouniforme a%ul-celeste de seu rei, no menos garbosos e escorreitos, saam emcampo, 6 rebatida brusca dos barbarescos.

'preciara o desenrolar de toda a justa do palanque de pita que o coronelmandara armar no lado principal, bem a coberto do sol. (ivertira-se tantoaqueles tr4s dias!

;as em 3oiás, quando no col#gio, as irms no as levavam ao campo de BoGrancisco, supondo talve%, em seu piedoso entendimento, um tanto profanasaquelas eibiç&es.

9avia ainda, na capital, outros divertimentos por ocasio das festas do spritoBanto. (anças principalmente. + bumba-meu-boi, que afugentava 6s marradasa peti%ada* a dança-dosndios, na sua v#stia cor de carne, tinta de urucum, 6moda dos tapuios, os cocares e as cintas de penas variegadas, tra%idas de

prop/sito de aldeamentos indgenas da beira do 'raguaia, com toda aquelafiguraço de brandir de tacapes, lamentaç&es de pesar em torno do pequeninocacique morto e o grande grito vindicativo de guerra2

 $aburê, u%& u%&...  $aburê, u%& u%&...

Começavam os combates singulares de lança, porrete e frecha, sucessivamente,em torno da maloca assanhada. +s campe&es procuravam-se por sob umaab/bada de arcos entesados, em artimanhas de selvagens e choques bruscosd1armas.

ao tempo que os adversários se sonegavam felinamente, unssonos, numdiapaso que ia do mais leve sussurro ao estertor fero d1/dio e vingança, edeste, novamente, ao queiume lancinante murmurado em dol4ncia, entoavamos guerreiros o hino bárbaro2

 Arirê, cum& cum&...  Arirê, cum& cum&... 

Page 40: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 40/140

 

35

Baam a campo, afinal, os dous pequenos caciques, maneirosos e ligeiros, emesquivanças rápidas de cainguel4 e passes traiçoeiros de jaguatirica, 6 rebatidaderradeira dos tacapes enfrentados. 's tabas rivais cercavam-nos ento, a passolento, esticando o cordame dos arcos, a clamar em lam$ria2

 $apurunga matou min"a fia,  $apurunga matou min"a fia, 'rec"a nele sem parar&... 'rec"a nele sem parar&... Pra(s&... Pra(s&... Pra(s&... 

(isparavam.

9avia ainda a dança-de-velhos, em grandes cabeleiras empoadas, os sapatos de

fivelo e costumes 6 Kus <", eibindo por sal&es franqueados voltas obsoletas,6 moda antiga.

+ vilo, os lanceiros, estes organi%ados pelos rapa%es da fina flor social, em ricafantasia, inauguravam as suas quadrilhas logo 6 noite do baile e banquete que oimperador do (ivino oferecia 6 cidade.

+ quebra-bunda no deiava de fa%er tamb#m a sua apariço desde o começodas novenas, com as coplas e lundus chorosos dos mulatos, quadras

requebradas e dolentes, uma das quais, esperem, re%ava assim2

Min"a mãe me p)s na escola Pra aprender o bê!a!b%, *u fugi, fui aprender  + lundu do marru%&... 

:ndecente, pois no, mas apenas de nome, que no fundo, to ing4nua, tosimples, dessa simplicidade de velha dança colonial, no se impedindo o seuingresso no seio das famlias, antes mui disputados e solicitados osorgani%adores a irem eibir os bailados no interior das casas principais e mesmono palácio governamental...

(e todos aqueles festejos, tinha conhecimento pelo que lhes contavam nooutro dia as eternas, aos intervalos da aula, o que valia, 6s ve%es, eemplarreprimenda da irm %eladora.

7m e outro ano surgia a mais a dança do Congo, posta 6 rua pelos pretos, cujorei era sempre um africano centenário, ainda forte e robusto, tra%ido de Kuanda

ao tempo da escravatura.

Page 41: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 41/140

 

36

'os reco-recos das varetas pela superfcie estriada em serras das compridascabaças que apropriavam, e ao som de adufes e pandeiros, celebravam os ritose gl/rias de seu pas ancestral, religiosamente atrav#s do elio transmitidos, emfraseados complicados e embaiadas pomposas de lngua perra.

ecutava-se o duelo dos prncipes, procurando-se os dous rivais aos puloságeis, ora num p# ora no outro, entre as filas apartadas dos guerreiros e a finaldegola destes a espada correndo cerce ao longo das gargantas. 'rrematavama encenaço com dolentes cantorias, onde a nota 4h! ;aria-Kongu4! erarepisada em estribilho a cada retorno, invariavelmente.

sses, os do Congado, vira-os passar duma feita sob as gelosias, num quentemeio-dia de domingo. 7ns tra%iam gorros e capacetes de plumas, grandescoraç&es recamados de vidrilho sobre o peito ofuscante de lantejoulas e

gl/bulos dourados* outros, meias-luas de prata em ressalte no fundo do coletemourisco, colares de b$%io com voltas de conta e pulseiras de miçangas,metidos em calç&es de debrum e largos sapat&es cara-de-gato. +s mais vistososcalçavam botins e tinham o justilho a%ul de pano mais fino, sobressaindo-se ostufos de pel$cia nos punhos curtos e sobre a gorjeira baia.

Caminhando, iam e vinham sobre os pr/prios passos, arrastando a cantilena, aoreco-reco infatigável das cabaças empunhadas.

'h, as doces, ing4nuas, tradiç&es goianas!

(e novo, a saudade de Kica voou, tr4fega, para as prociss&es da Bemana Banta.

'h, as prociss&es... nto, atrav#s das persianas donde espreitavam, como quea cidade tomava outro aspecto, revestindo-se dum ar solene e grandioso.

Drabalhadores, enada 6 mo, punham-se nas ruas e praças a capinarfebrilmente, dentre os interstcios do macadame, os tufos rasteiros degramneas* varriam-se as calçadas, o cho era atapetado de goivos, mios/tis, jacintos, manjeric&es e mais folhas odorferas.

No primeiro domingo, o de Passos, iam todas 6 Foa-;orte, a cuja entrada tinhalugar o encontro da "irgem ;aria com o Gilho desejado. ste, sob o peso domadeiro, mui lvido e doloroso, a grossa corda de n/s cingindo os rins sobre at$nica roa, a fronte pálida, porejando sangue, dobrava a esquina 6 coral msticados rabec&es, sob a aur#ola sangrenta da coroa de espinhos e nuvens e nuvensconsecutivas de incenso, que o pároco, mui solene e paramentado, ia 6 frenteturibulando.

Page 42: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 42/140

 

37

Ga%ia-se um grande sil4ncio. ' banda de m$sica, que fechava o cortejo, cessavaa sinfonia plangente do acompanhamento. 'cotovelava-se o povo no ádito daigreja, pelas ruas e vielas que desembocavam na praça* e, de ao p# duma das janelas que abriam do coro para o largo, um frade beneditino, mui untuoso e

comovedor, começava a longa pr#dica da paio do Benhor, a vo% soluçante eprofunda no descrever a cena pat#tica do Calvário, e a disputa $ltima dosguardas sobre o corpo ainda palpitante do Crucificado!

Choravam todas. 'inda agora, ao relembrar, tinha as pálpebras umedecidas...

0 noite, os Bete Passos da cidade, encravados em espaçosos nichos, onde oCristo se detivera lasso na caminhada, iluminavam-se d1alto a baio, e toda agente corria em "ia-Bacra a visitá-los, depositando na toalha do altar, sobre asalva eposta, o /bolo devoto.

(epois, 8uinta-Geira das (ores, nova procisso, a da "irgem (olorosa em buscado Gilho bem-amado. + andor, numa suntuosa ornamentaço de floresartificiais, a imagem naquele manto a%ulneo todo constelaç&es, era pelopercurso levado ao ombro das don%elas de mais destaque na sociedade, todasde branco trajadas. que desejo nutria ela, Kica, de carregálo tamb#m, garbosae transfigurada da divina carga, embora nessa #poca mal debuara ainda osseus primeiros cator%e enfermiços anos e ser assim to fran%ina e frágil deforças!

(irigia-se ento com as irms a esperar o acompanhamento na ;atri%, onderecolhia, e deiava-se estar de joelhos muito tempo em adoraço, etasiada, e,enquanto os crios ardiam, evolava-se em torno o cheiro profundamente msticodos incens/rios, e o sacerdote no altar-mor principiava o ofcio.

'p/s as Drevas, na Beta-Geira Banta, as solenidades atingiam o seu apogeu deesplendor e compunço religiosa. (esde a v#spera, nenhum rumor, nenhumgrito de prego, nem mesmo o ao de leve bater dos saltos dum sapato na ruadeserta. ' cidade soterrava-se num sil4ncio mortuário, sombrio, profundo,sepulcral, de necr/pole abandonada... Nenhum brado d1armas na cadeiap$blica* os toques de corneta dos quart#is no davam esse dia os sinaisregulamentares e at# os galos, no fundo dos quintais, pareciam olvidar o seucanto álacre.

ra o dia das santas virtudes, em que as árvores e as cousas se revestiam dumatributo sagrado e os homens, mulheres e crianças saam pelos campos e matasdos arredores, atrás duma rai% milagreira de amaro leite, suma, batatinha oufolhas de chá-de-frade, que, colhidas em tal ocasio, santificadas pelo te5ndrico

martrio do Cristo, adquiriam um maravilhado poder de cura nos achaquescaseiros do ano...

Page 43: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 43/140

 

38

B$bito, 6s do%e, quando o sol que $nico no se velara de crepe, alcançava opináculo do quadrante, ouviam-se as notas retumbantes e ásperas da matraca,anunciando aos quatro cantos da cidade que Nosso Benhor era morto. nto as

meninas, que haviam comungado pela manh e estavam desde a v#spera em jejum absoluto, encaminhavam-se para o refeit/rio, onde o jantar eraamelhorado duma iguaria nova, preparando-se todas logo em seguida paracontinuar as devoç&es da Foa-;orte.

0 procisso do nterro, acudiam moradores de toda a redonde%a e mesmo defora do municpio afluam 6s ve%es. 'pesar da dist5ncia, a sua famlia vieraduma feita, mais no entanto para visitá-la, que a essas cerim)nias tinha d. Kusapor costume assistir em Curralinho, lugar bem mais pr/imo do 8uilombo.

;ilhares de lu%es tremelu%indo em alas davam volta 6s ruas principais, o cortejoritual ao centro. scutava-se a espaços, o peito lacerado por inenarrávelopresso, o c5ntico merenc/rio e lancinante da "er)nica moça feli% que tiveraa fortuna de representar esse ano a ;adalena trepada a um tamboretecarmesim, o diadema refulgente sobre a testa e a ampla cabeleira desnastradaespáduas abaio, eibindo 6 multido contrita, entre mal sopitadas lágrimas, olençol sanguinolento que amoldara a cabeça coroada de espinhos do 9omem-(eus.

toda a milenária (or humana, consubstanciada naquelas palavras, pareciaainda como que a ressoar-lhe aos ouvidos, funebremente, doloridamente2 os omnes ui transitis per viam, attendite et videte si est dolor sicut dolor meus!...

0 sua imaginaço, impressionada ao ecesso, fugiam os detalhes, num turbilhode figuras lit$rgicas a passar* aqui Bo oo, o halo predestinado sobre a fronte,entre dous ap/stolos, sobraçando um livro* ali, as tr4s ;ariascarpideiras,vestidas de crepe, atrás do catafalco l$gubre, sob cujo páliodamasquino, sustentado por seis cavalheiros d1opa violeta a empunhar as varasde prata maciça, ja%ia num leito de martrio o corpo seminu e anguloso da(ivindade, macerado d1ang$stia, em holocausto sacrificado 6 redenço de todosos mortais.

Bábado da 'leluia! Hepiques festivais de sino na catedral* pombos e pássarosque se soltavam, a esvoaçar entre os coruch#us e cornijas do templo* foguetes egir5ndolas no largo estourando. Baudade...

(omingo da Hessurreiço, madrugada alta, um frio cortante descendo dagarganta da Carioca e tanta gente amontoada 6 lu% do luar no adro da igreja, 6

espera de que as largas portas se descerrassem, enquanto a meninada seajuntava no meio do largo, procurando distinguir as feiç&es do udas, lá

Page 44: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 44/140

 

39

dependurado no alto duma emba$ba, e que seria queimado ap/s o ofciodivino.

't# 6quele canto da nave, onde costumavam ajoelhar-se, chegavam de fora

gritos e assovios, matinadas fero%es em torno dum mesmo objeto, vaiasestrdulas, a partir dos quatro 5ngulos da praça. ra a molecada, 6s centenas, 6smaltas incontáveis, armada de seios, atacando os caipiras pobres matutosdesentocados do fundo de suas roças e plantaç&es pelo pra%er de tomar partenaquela santa festividade, e a bradar-lhes 6 orelha a alcunha injuriosa2

  8ueijeiro!... 8ueijeiro!... 8ueijeiro!...

'inda bem que Fenedito, que fora com a famlia uma daquelas ve%es 6 capital,mudava de feiço, adotando facilmente o aspecto distinto de moço da cidade,

no obstante passar a maior parte do ano na fa%enda, e mesmo, no seenvergonhando de na necessidade pegar o cabo da foice, como vira o anopassado e p)r num chinelo toda a camaradagem do stio, batendo-a no eito,mesmo 6quele ;alaquias, apontado como o primeiro no corte dos canaviais.

Kica, levada por outro curso de id#ias, olhou para o fundo do quintal, onde oseu companheiro de inf5ncia, assentado numa moenda velha de engenho, 6sombra das mangueiras, se entretinha a traçar com o canivete arabescoscaprichosos na peroba dum pira, a assobiar descuidado, enquanto Nequinho já

em vias de reconciliaço, rondava em torno, olhos grudados no trabalho domoço, entre arrependido e incerto da posse daquele brinco.

  +lha que apanhas um resfriado, menina disse d. Kusa abeirando-se sem quepercebesse. Bo horas de recolher, o sereno já começa a cair e tu a absorta,como se estivesses sonhando!

'noitecera. No c#u a%ulneo, duma diafaneidade $nica, o Cru%eiro do Bullucilava como um smbolo vivo sobre a imensurada vastido daquelas planuras,que a rude%a do velho 'nhangera desbravara e estendera o guante deconquista, povoando-a duma grande raça empreendedora e forte, que a mole%ado clima, o misticismo ancestral dos rein/is e bastardias de sangue, iam lento elento desfibrando, salvo arrancadas etempor5neas dum e outro rebento maisrebelde...

nhá Kica cismava ainda nos festejos queridos de sua terra, que tra%iamentretecida a cadeia de suas recordaç&es de menina e moça dum filopreciosssimo de suaves e repassadas saudades, que o luar, a noite, o serto e afesta da v#spera tornavam ainda mais fundas e cruciantes naquela alma ing4nua

e simples, virgem ainda dos contatos brutais com as pai&es, os a%ares, com a"ida enfim.

Page 45: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 45/140

 

40

7ma mato-virgem arrulhou al#m, oculta entre os cafe%ais* e um grilo, cricri,afinou sob a janela, ao r#s da grama, numa fenda mal coberta de reboco.

B$bita triste%a, amálgama de confrangimento e aperto de coraço, num pesarindefinvel, assenhorou-se de nhá Kica. (obrando o pescoço, mui alvo etransparente, sobre o peitoril da janela um bucle anelado a ressaltar na nuca,sobre o cetim da epiderme as lágrimas, uma a uma, correram lentas, semcausa aparente e sem um s/ queiume de seus lábios contrafeitos...

VFenedito pensava a Pelintra. 7ma dobra dos baieiros pusera-a sentida doespinhaço no passeio que tinha feito pouco antes em companhia dos filhos dafa%enda, ao stio pr/imo. "ieram chamá-lo a mando do patro.

(ependurou o chifre de tutano com que lhe engraava o p4lo na argola derecav#m dum carro, saiu 6s pressas do puado dos tropeiros, rumo da casa-grande, onde o fa%endeiro media impaciente as passadas ao longo do varando.

Caminho andado, oo "aqueiro fi%era-o ciente do sucedido fugira o;alaquias!

+ nagoa, furtando-se 6 velha dvida do ajuste, abrira o pala 6 meia-noite,

montado na melhor besta de sela da fa%enda.

3algando os degraus do varandil, viu logo pelo jeito que o caso era s#rio. +coronel passeava os quatro cantos da sala, carrancudo, repuando as falripas dabarba grisalhona, o olhar atravessado e duro sob a ruga da testa, num daquelesseus terrveis e freqentes acessos de mau-humor.

ra quase ao anoitecer. Pelos tampos escancarados das janelas, enquadradasem portais de jacarandá, a lu% crepuscular entrava difusamente, alumiando aofundo o ouro fulvo das peles d1onça que forravam as paredes, esbatendo-seentre os rosários de orelha d1anta e veado entrecru%ados e pendentes do teto,destacando aos renques bi%arramente a alvura das caveiras de capivara,galheiro e queiada que atestavam aos cantos, ao gosto das fa%endas dointerior, as proe%as venat/rias do chefe.

Bob aquele peso de trof#us, de rifles, clavinotes e caçadeiras dependuradas doscabides, o fa%endeiro media 6s passadas o aposento, como outrora o senhorfeudal cru%ando as lájeas de sua sala d1armas, a meditar a baia justiça sobre acabeça redonda e vil dum vassalo acusado de felonia e traiço...

;al o divisou, foi advertindo rspido2

Page 46: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 46/140

 

41

  I aprontar-se já e partir sem detença pela madrugada. No descanso maisuma s/ noite sossegado, enquanto no ver aquele ladro na sala do tronco.

  ' Pelintra veio sentida do ;amede, mas no havia de ser por isso que o negrodeiaria de vir...

  Pois # escolher a no pasto o animal que mais convier. 8uanto a dinheiro paradespesas, vem aqui ter comigo assim que tudo estiver arrumado. 3aste eu umconto de r#is nesta empreitada, mas a fama do 8uilombo no há de ficardesmerecida* nesta fa%enda cachorro vadio teve sempre ensino, ningu#m fogeaqui ao trato firmado! I dar em riba do negro e tra%4-lo amarrado pelo cangaçoao moiro do curral, que o resto havemos de ver.

+ outro no estranhou, acostumado 6queles repentes. Coçou a orelha sob a abado chap#u, e, sem mais, foi tratar com %elo dos aprestos da viagem.

Babia-a arriscada, melindrosa mesmo, dado o desapego do nagoa ao perigo, e oseu tino tantas ve%es comprovado em manhas e ast$cias para enfrentar ouesquivar-se a quem se lhe atravessava no caminho. Damb#m a ele, (ito, nofaltava jeito... 9aviam de ver.

Goi ao quarto, em separado num dos 5ngulos do casaro* abriu uma canastra,

vinda com ele em pequeno dos (ourados, quando lá mandara buscá-lo a(indinha. Dra%ia ainda tacheadas sobre a tampa de couro, as iniciais de seufinado pai. P)s-se a separar atento a roupa dous parelhos de brim riscado,ceroulas d1algodo grosseiro, tr4s camisas de morim, que lhe dera a madrinhapela v#spera do Natal. Kevaria aquilo tudo sob os coonilhos dos arreios,reservando os alforjes da garupa para a matula, as me%inhas, se houvessepreciso, e demais objetos mi$dos. nfim, ali estava todo o necessário paraquem, como ele, ia viajar 6 escoteira. (espendurou do cabide o rifle e, 6 lu% dacandeia que acendera, p)s-se a eaminar com cuidado o mecanismo da culatra,fa%endo mover lentamente a alavanca do gatilho. Kimpou-a minuciosamente,meteu pelo cano de reserva os do%e cartuchos precisos, fechou a arma e foipendurá-la 6 bandeira da porta, para quando sasse.

Nada, o nagoa era arteiro, tra%ia patuá bento contra ferro alheio* e, para gentecurada, s/ mesmo calibre SS e a pontaria de seu olho. Pois sim, que com ele,no havia re%a nem bentinho* era tiro e queda.

nfim, ia prevenido.

(emais, no era essa a primeira ve% que o patro o enviava 6 pega de camaradafugido. Dinha at# fama o seu faro nas redonde%as. m apanhando a catinga, ia

Page 47: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 47/140

 

42

direito no rastro que nem cachorro perdigueiro e no havia ento tirá-lo dapista enquanto no tra%ia filada a caça 6 porteira do curral.

'inda duma ve%...

;as para que lembrar! Dinha ainda no braço os caroços de chumbo com que ochamuscara um cigano, ladro de cavalos, que andava a limpar as pastarias dosarredores. 'o estampido, caminhara que nem canguçu na fumaça e trouera-oali amarrado ao moiro, onde o coronel, 6 vista de todo o pessoal reunido,mandou aquele mesmo ;alaquias chegar-lhe aos untos do traseiro uma coçamestra, rapar pestanas e cocuruto 6 moda de frade, salvo seja, e depois, comdespre%o e aos risos da camaradagem, soltá-lo no campo, assim como uma r4scapada...

+utra, foi na romaria da Drindade. 7m baiano apessoado batera uns contecosao patro no jogo. le bem observara, postado do lado de fora, a tram/ia. +meleiro ia ajuntando uma por uma as pelegas, de que fa%ia um bolo e que metiano bolso interior do jaleco, proseando com ufania, a entreter o coronel* este,mui confiado, a praguejar contra o a%ar do marimbo que o perseguia, atirandonota sobre nota na mesa.

'quilo cheirava 6s l#guas a embromaço. Com disfarce, descobriu logo que ogajo, de s$cia com o parceiro, manejava com outro baralho, que tra%iam

escondido no forro dos chap#us. ' horas tantas, quando já se levantavamsatisfeitos, saltou-lhes 6 frente, a garrucha na destra, a franqueira na outra,desmascarando num berro a esperte%a.

Goi uma roda-viva. 7m deles p)s-se logo a tremer, acovardado* mas o baiano,sujeito atirado e qui%ilento, encrespou o sobrolho, rugiu cinco desaforos e quisabecá-lo pelas costas, armado dum sabre-punhal que sacara do cabo dorebenque.

9omem aquele de peitaria! ;as no dera tempo* já o apertava num canto,riscando-lhe de sobreleve a faca pelo ventre, dominando-o com a garrucha, at#que, rendido, o forasteiro achou por seguro chegar 6s boas, restituindo acobreira, sempre protestando no entanto, o descarado, contra a sua parte namaroteira...

'h, tempo! ;etesse na veneta do fa%endeiro fa%er-se oposicionista, no haviamos a medir com tantos seu-(ito-fa%-isto, seu-(ito-desmancha-aquilo!

"erdade seja, no mandara nunca uma criatura de (eus desta para melhor, no,

graças ao Bantssimo* mas no era que carecesse de ocasio. Banta ;aria!brigas, tivera-as muitas, raras por provocaço, seja dito de passagem, que era lá

Page 48: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 48/140

 

43

de seu foro mui ordeiro e avesso 6quelas eibiç&es, antes de natural lhano emetido em seu canto* mas, as mais das ve%es, birras do patro com a gente daredonde%a, no que o servia em reconhecimento de ter ido recolh4-lo aos(ourados, quando lá ficara /rfo e s/* e depois, pela Chica, mulata que por ser

mulher, tinha seu qu4 de faceira, gostando de estadear o talento do amantequando se lhe fa%iam de engraçado.

m #pocas de eleiç&es, quando o coronel estava contra o governo, ento,andava numa corre-coia dos tre%entos, tais os embrulhos que surgiam. Na vila,6s ve%es, dançava alto o pau* no raro, eram os tiros que se no sabia dondepartidos, as teimas para convencer o votante contrário, enfim, o costume daterra. ram ordens pra aqui, ordens pra ali, arregimentando o pessoal dafa%enda, garantindo a chapa, o diabo!

;alaquias fora sempre um dos que mais o ajudavam naquelas alhadas. Nemmesmo sabia por que fugira o preto. stimado da casa, afeito 6quele serviçodesde rapa%ote, no podia ganhar fora mais do que lhe davam na fa%enda.Geitiçaria= No acreditava, apesar de tudo, naquelas baboseiras* que ali,naquelas cercanias, eram ele e nhá Kica, talve%, os $nicos que no criam nessasimundcies... Geitiço, talve%, mas dalguma daquelas mulheres que tinhampousado a semana passada no puado dos tropeiros, em companhia dunssoldados em dilig4ncia para as recebedorias do Paranaba. :sso sim, acreditava*tanto que elas tinham passado a noite toda em gaitadas e cantorias, enquanto o

cabo da tropilha tocava a sanfona de sobre o jirau dumas cangalhas, asespingardas empilhadas ao canto, o chapelo de palha com fanfarrice batido eacampado 6 banda. Por sinal que uma daquelas raparigas veio comprar 6 casa-grande meia garrafa de caninha e fora o ;alaquias quem lha medira no quartoda arma%enagem. No fosse o preto ficar embeiçado da roa, e da osprop/sitos da fuga.

;as abanou a cabeça, duvidando2

  8ual! + nagoa fugia sempre ao rabicho das saias e no seria daquela ve% quese deiaria tentar.

8uanto 6 besta de estima, sabia-o bem, no havia ali tenço de furto* ;alaquiaslevara-a por necessidade de montaria ligeira que o apartasse depressa daquelesstios.

nto, que seria=

o cabra, apoiado 6 cabeceira da cama, entrou a matutar fundamente.

Kembrou-se pela ve% primeira ele que a praticava instintivamente que eralivre e movia-se para onde bem queria, prendendo-o apenas 6queles lugares o

Page 49: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 49/140

 

44

hábito da meninice e a sua gratido para com os donos da fa%enda, enquantoque a condiço dum camarada era muito diferente, tolhida a liberdade peloajuste do fa%endeiro.

3eralmente, o empregado na lavoura ou simples trabalho de campo e criaço,ganha no máimo quin%e mil-r#is ao m4s. 8uando tem longa prática no traquejoe # homem de confiança, chega a perceber vinte, quantia já consideradaeorbitante na maioria dos casos. I essa a soma irris/ria que deve prover 6ssuas necessidades. 3asta-a em poucos dias. Principia ento a tomar emprestadoao senhor. (á-lhe este cinco hoje, de% amanh, certo de que cada mil-r#is queadianta, # mais um elo acrescentado 6 cadeia que prende o jornaleiro ao seuserviço. :sso, no começo do trato* com o tempo, a dvida avoluma-se, chega aproporç&es eageradas, resultando para o infeli% no poder nunca saldá-la etorna-se assim completamente alienado da vontade pr/pria. Perde o cr#dito na

venda pr/ima, no fa% o mnimo neg/cio sem pleno consentimento do patro,que já no lhe adianta mais dinheiro. I escravo da sua dvida, que, no serto,constitui hoje em dia uma das curiosas modalidades do antigo cativeiro. 8uandomuito, querendo dalgum modo mudar de condiço, pede a conta ao senhor,que fica no livre arbtrio de lha dar, e sai 6 procura dum novo patro que queiraresgatá-lo ao antigo, tomando-o ao seu serviço. Passa assim de mo em mo,devendo em m#dia de quinhentos a um conto e mais, maltratado aqui por unsde coraço empedernido, ali mais ou menos aliviado dos maus-tratos, massempre sujeito ao ajuste, de que s/ se livra, comumente, quando chega a

morte.

Fenedito sentiu aquilo tudo, confusamente* mas nem por sombra lhe passoupelo ju%o contrariar as ordens do coronel. (esde pequeno, achara as cousasnaquele p#, e assim como estavam, haviam de continuar at# quando fosse (eusservido em comandar o contrário.

+ preto fugira, estava ali o fato* devia ao patro novecentos e cinqenta e cincomil-r#is, eis a circunst5ncia* mandavam-no buscá-lo2 havia de vir. +s meios,pouco importavam* morto ou vivo, filado 6 gola pelo sedenho ou apenas o parde orelhas como prova, havia de vir.

  Nh) (ito, olha que a ceia está a esfriar arrancou-o daquelas preocupaç&es avo% de oo "aqueiro, surgindo 6 abertura da porta.

No varando, agora deserto, provando uma colherada d1angu de caruru que lheservia a mulher do caseiro, p)s-se a ruminar os planos de campanha.

(. Kusa apareceu do interior e colocou sobre a mesa um sapiquá atufado,

aconselhando maternal2

Page 50: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 50/140

 

45

  ;uita prud4ncia, menino.

No fosse atirar no outro sem necessidade* tamb#m, nada de afoite%a emepor-se 6 ira do camarada.

' (indinha que no se arreceasse, sabia com quem lidava* demais, se o pretoemproasse, ali estava ele mais a carabina para quebrar as proas que fossemaparecendo.

como nhá Kica surgia no limiar, iluminando com o seu perfil suave a molduraenegrecida da porta, empinou o busto orgulhoso, mo 6 cinta, sobre o cinturode sola larga, onde rebrilhava o cabo niquelado da franqueira.

  +lha, deste lado vo a paçoca, um frango recheado e o meido d1ovos em

separado na lata disse a senhora. (o outro, caf#, o aç$car em latinhas eumas cocadas que nhá Kica aprontou.

  No era preciso tanto cuidado agradeceu meio confundido. Domou-lhe ab4nço rápido, cumprimentou a moça e foi despedir-se do pessoal da casa,6quela hora, como de costume, reunida no paiol de milho, em comentários aocaso do dia.

  'quele negro tem sorte di%ia oaquim da Dapera. Caindo no mundo,

ningu#m mais lhe bota a vista em riba. Cabra destorcido! ;atreiro que nemlagartia, com a cabeça di% que sim, com o rabo di% que no. 'li está a marcaque fe% uma ve% para mostrar como se empalma uma faca nesta terra! Draçouuma roda de palmo na parede, dividiu-a em do%e riscas e 6 dist5ncia de seispassos no errou um s/ bote! (emais, arrepiado como ouriço-cacheiro* diabocomo aquele no entrega 6 toa os pulsos 6 correia.

  Pois, seu 8uim respondia oo "aqueiro , se ele # que nem martinho-pescador, que frecha certeiro o peie, tem pra frente nh) (ito, que # comotucano, quebra tudo que o bico alcança.

  ' pois, lá di% o rifo, dois bicudos no se beijam comentou algu#m.

ntrando, ele foi assentar-se num amontoado de suadouros de cangalha que aliestavam empilhados para atalhar e p)s-se a ouvir em sil4ncio a conversa.

  Beu (ito, toma tento com aquele crioulo, caso venha a topá-lo, o que duvido avisou Gid#lis. I bicho sarado, tem mandinga contra arma de fogo. ;esmoferro ben%ido, escorrega naquele couro que at# parece bagre fora d1água. Doma

sentido!

Page 51: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 51/140

 

46

  ssa cantiga comigo no adianta disse afinal. No há como pulso firme efranqueira de fiança, sempre pronta na ocasio. + mais, conversa fiada...

  +ra, ora... No acreditava! cortou o outro melindrado. esta! B/ mesmo

um moço da cidade. Nem parecia at# que fora criado naqueles fund&es.Conversa fiada, veja s/!...

desatou a rir, constrangido. (epois2

  Pois vou contar um fato, acontecido com o meu defunto compadre (esid#rio,cabo de polcia no tempo da monarquia. 'ndava a pr1esses sert&es um tal(eodato, bandido de profisso, com de%oito mortes e tantas no costado, e umsem-n$mero de falcatruas nos povoados, a caçoar do governo com as arrelias efaçanhas de todo o dia, matando hoje um homem aqui, forçando amanh uma

mulher ali, ora nos 3erais, ora nesta provncia, e, apesar dos pr4mios e a famaque adviria a quem o prendesse, sem poder as dilig4ncias jamais botar-lhe oolho em cima. Crescendo de atrevimento com a falta de ensino, chegou apenetrar nas vilas 6 lu% do meio-dia, ameaçando c#us e terra, pondo o povotodo espavorido com as bravatas que arrotava, e faria mesmo, caso piassealgu#m ao lado. (uma feita, penetrou na cadeia do lugar onde estavaarranchada a escolta encarregada de prend4-lo e foi desancando do primeiro ao$ltimo com o cabo do chicote, enquanto dous de seus parceiros mantinham emrespeito, com a boca dos trabucos escancarados da soleira, a soldadesca

surpreendida. "ivia num estado, garantido at# pelos chefes de partido, queaproveitavam os seus pr#stimos de capanga para neg/cios de politicagem.(eodato tra%ia sempre consigo um bentinho no pescoço, bentinho em quedepositava muita f# e # aqui que bate o ponto da hist/ria.

O+ meu compadre era um homem 6s direitas. ;etera-se-lhe na cachola quehavia de dar cabo do bandido, e uma ve% assim ateimado, no havia por ondetorcer. le batia pois essas estradas e cafuas, 6 frente de quatro cabrasdecididos, e tanto virameeu, que uma noite, dando cerco a uma tapera 6 beirado 7ru, onde tinha notado uns sinais que o punham assofismado, calhou que ládentro se encontrasse de pernoite, so%inho, o afamado assassino. (eram volta 6casa, e um deles foi bater 6 porta da frente, de cujas fendas gretadas decaruncho saa um longo crivo de lu%. +s demais ficaram de tocaia, estiradosatrás das moitas de gravatá e tiririca do arredor, vigiando as sadas.

O E de casa bradou o soldado com vo% firme. Hespondeu-lhe tremendoestampido de clavinote, que escumou de ve% a madeira da porta, e a fera puloupara fora, o facalho em punho. + rapa% ouvira antes o estalido da armaaperrando e teve tempo de desviar-se da descarga. 'joelhado de banda, fe%-lhe

fogo ao peito. +s companheiros descarregaram por sua ve%, da tocaia, aspederneiras. (eodato, mortalmente baleado, caiu sobre um joelho* e o

Page 52: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 52/140

 

47

destacamento, carregando de novo as espingardas, deu-lhe mais duas ou tr4sdescargas 6 queima-bucha, quebrando-lhe um a um, por quin%e sangrentasferidas, os ossos do corpo. Goram depois pernoitar meia l#gua adiante, numafa%endola, donde voltaram com enadas ao romper d1alva, para dar sepultura

ao criminoso e cortar-lhe as orelhas. Conforme o uso, elas iriam dar testemunhodaquele feito. + dia clareara já de todo, o sol mostrava-se meia braça acimadum oiteiro, quando chegaram 6 tapera. (eram um rodeio ao oito, 6 procurado morto. No o tinham encontrado no lugar em que cara varado de papouco.

O+ ervaçal espe%inhado, coágulos frescos de sangue umedecendo o orvalho eque se alastravam agora em largas manchas sobre a grama, di%iam bem que eraali eatamente o local onde sucumbira de ve% o bandido sob os couces d1armasda patrulha. ;as o corpo, que # dele= 'dmirados, %an%a pra1qui, %an%a pra1colá,na suposiço de que uma vara de bichos do mato o tivesse arrastado para

longe, eis que o anspeçada, afoitado numa capoeira de assa-peie e juábravo,solta um grito de espanto, clamando socorro. 'cudiram todos. +s cabelos emp#, olhos esbugalhados, o rapa% apontava para um claro da saroba. a está oque viram2 encostado a um cupim, as pernas direitas, segurando numa dasmos o clavinote, a outra aconchegada ao peito, (eodato olhava-os tamb#m,mui vivo, procurando armar o co emperreado do seu boca-desino... +anspeçada, sem relut5ncia, meteu a arma 6 cara, e estava para disparar, quandoo compadre atalhou2

O Gica quieto, no # preciso gastar mais muniço com esta cobra* deia-a cácomigo. 'chegou-se com cautela e afastando a mo do jagunço, queprocurava embalde obstá-lo, arrancou-lhe do peito o bentinho, junto a umpatuá, em cujo forro estava cosida a re%a brava contra bala! 'ssim que lho tirou,o homem caiu que nem fruta podre, para nunca mais se erguer. Como esse,tantos casos mais* qual, ser curado # cousa s#ria* perigo, e grande, corre quemse mete com esse povo. o ;alaquias, afirmo porque vi, sempre troue nopescoço um breve...

  Por mim ponderou oo "aqueiro levantando-se acho que a melhor re%a #confiança no santssimo nome de Nosso Benhor esus Cristo e a carabina de nh)(ito, que nunca negou fogo.

  Pois no, pois no confirmava o outro, arrastando um couro do fundo dopaiol* mas que o moço fosse sempre prevenido.

começou a preparar a cama, arranjada com um ligal aberto sobre a esteira deespigas, forrando-a depois com as mantas e lombilhos d1arreios.

7m acau guinchava 6 dist5ncia, na noite escura.

Page 53: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 53/140

 

48

+ minguante, esguio e tardo, principiava a espalhar, entre nuvens, os seusprimeiros bruuleios de lu% mortiça por detrás das $ltimas serranias donascente.

, no paiol da fa%enda, a camaradagem conversava ainda em torno dachocolateira fumegante, preparando nova infuso aromática de folhas delimeira-de-umbigo com rapadura, enquanto pelo serto sem termo, de cotoveloa cotovelo das estradas, de barroca a barroca, ia o grito d1alarma das avesnoturnas.

'trav#s das persianas cerradas da janela de nhá Kica, uma lu%inha brilhavaainda.

8ue estaria a fa%er 6quela hora a filha do patro= pensou Fenedito, recolhendo

caminho de seu quarto de solteiro.

VIPelos dias de agosto, todo o hori%onte goiano # um vasto mar de chamas2 fogodas queimadas que ardem, alastrando-se pelos 3erais dos tabuleiros echapad&es a afugentar a fauna alada daqueles campos* fogo dos cerrados queesbraseiam, estadeando 6 noite os seus longos listr&es de inc4ndio nascumeadas das serras, intrometendo-se l#guas e l#guas pelo mato grosso etravess&es do curso dos rios e subindo, carboni%adas as folhas secas que o vento

acamara, pelo cipoal e trepadeiras dos troncos seculares, cuja casca rugosa tisnade sobreleve para ir em f$ria crepitar nas grimpas, entre as galharadas verdes,redu%indo a cin%as os ninhos balouçantes do sabiá nativo, as caiasetravagantes da borá e mandaçaia, quando no enota de pouso em pouso asguinchantes guaribas, os velo%es cainguel4s, das alturas prediletas do tamboril, jatobá, aroeira ou barriguda os mais comuns daquelas matas.

'trav#s do espesso lençol de fumaça que 6 noite encobre o lume das estrelas, osol semelha de eito a eito um enorme carvo aceso e sangra pelos flancos a sualu% avermelhada e mortiça, numa atmosfera de forja, que nenhum sopro dearagem alenta.

migra a vida para longes climas. (as alfurjas, nas tocas solapadas de ao p# dosmorros, nos desvos de pedra, onde em dias de chuva calangos e lagartiasespapaçaram-se ao vento, 6 cata de insetos, desapareceram misteriosamente osreptis, 6 espera da tarda estaço da fartura, que a deve chegar com asprimeiras chuvadas de outubro. somente 6 beira dos charcos que ficaram, nosfurados $midos, continua ininterrupto o ramerro do cururu e saparia mi$da, aomormaço das longas tardes nevoentas e a %oada surda das mutucas e

pernilongos, que lá, mais que alhures, enameiam no gado acossado doscap&es.

Page 54: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 54/140

 

49

No há ali por#m, louvado seja, os rigores da seca em c#us do Norte. 's nuvensvo beber no  farto divortium auarum  dos grandes rios que alimentamsimultaneamente as bacias do 'ma%onas, Prata e Bo Grancisco, elementos

abundantes para o pr/imo ressurgimento da terra* e a mis#ria do solo resultaantes da inc$ria do homem, que ateia fogo 6s derrubadas para a fertilidade dalavoura e destas, quase sempre, transp&e as divisas da roça e vai florestaadentro avançando a sua obra de assolaço, transpondo levadas e ribeir&es,escalonando serras de etremo a etremo do serto, espraiando-se semobstáculo pelas etensas ondulaç&es das campinas fecundas, e s/ parandoquando o tropeço dum grande rio ou o encontro com outra queimada lhe roubeelemento onde saciar a sua fome implacável de etermnio. Hodopia e morreento em torno de si mesmo, quando no cinge uma vtima, caça ou r4s dosarredores, no redomoinho trágico.

' obra de destruiço vai lento e lento preparando ali a runa das geraç&esfuturas, embora a nature%a opulenta eubere a cada nova hecatombe comredobrado vigor e esplenda em louçanias aos primeiros aguaceiros, espalhandoaos quatro ventos, indiferentemente, as messes abundantes com que retribuide ano a ano a bronca insensate% do matuto. ai do destino daquele ub#rrimorinco, no fora o recurso natural das imensas florestas virgens e dos sert&esainda por violar.

Cessa por esse tempo a labuta nas fa%endas. + gado espera a chuva para amojare rem/i o mata-pasto ruim das encostas, o angola paludoso dos alagadosdesaparecidos, o capimpuba e gordura que o fa%endeiro reservou e defendeunas invernadas, se se no embrenha na selva imune, atrás do papu.

Be o inc4ndio devorou os capoeir&es e pastagens naturais, deu por sua ve% caboda praga de carrapatinhos que depauperava a criaço. I o tempo em que oscarniceiros caracarás, $nicos satisfeitos na desolaço derredor, se p&em a cataros gordos rodoleiros cados de maduro na pelanca descarnada dos animais,esborrachando-os no bico d1aço retinto dum bigode de sangue negro, orapousados no lombo, ora entre as aspas, ou sob a barriga varada, aos pulinhoscurtos, mas certeiros, e gritos bruscos de espaço a espaço.

se acaso passou, na lombada descoberta dos campos, um p#-d1água que nofe% torrente, as perdidas emergem o seu caule nu dentre os interstcios dopedregulho rescaldado, sob uma pompa bi%arra de flores de sangue...

Damb#m o homem, agente irresponsável naquela desolaço, ressente-semolestamente da mágoa que ressuma errante na nature%a. ;ais que o aspecto

acabrunhante daqueles c#us, reflete-se-lhe no olhar com que sonda as alturas, anostalgia das águas que se foram, chupadas da terra avara e o verde primitivo

Page 55: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 55/140

 

50

das serranias que quando= verá de novo reflorir na quadra feli%, com asramalhadas de ip4 e paineiras esfolhando-se 6 dist5ncia, e a criaço mugindosatisfeita nos currais, repletos de be%errada nova.

(epois de Bo Bebastio, ultimam-se os aprestos do plantio nas roçascalcinadas* a terra recebe a semente do pobre, que encoivarou as cercas nosderradeiros muir&es. Hondam os vaqueanos os malhadouros freqentados,onde as vacas amojaram na força da lua* e em pil&es da co%inha, o mulheriosoca e peneira o sal para o cocho das salgadeiras. Na casa da oficina, temperamos ferros enferrujados, rebatem na bigorna uma marca nova para o filho dopatro, que já tem aquele ano a sua ponta separada.

todos atendem 6s chuvas que no tardam.

Na alma de nhá Kica, 6 sugesto daquela paisagem amortalhada em brumas,pesares e saudades acorriam lentas, como nuvens...

' bica do monjolo corria embaio, um fio t4nue, indo empoçar-se lá no fundodo açude do mangueiro, para onde tangiam os campeiros de manh a tropa daspastarias adjacentes, e o coaar soturno das rs punha uma nota l$gubre, ao virdas tardes enfumaradas, com as suas triste%as mudas do anoitecer.

Dr4s meses atrás, e o c#u revestia-se ainda de tons suavssimos, numa

transpar4ncia luminosa de anilina, refrescado pelos aguaceiros tempor&es queabril e maio prodigam 6s ve%es. Nas malhadas, refloria a flor-de-maio* cambarásvergavam sob os corimbos apendoados* e, dominando os escampos, sob aspaineiras do outeiro, o solo estivava-se duma aluvio de p#talas lilases, quandoo roo vivo da quaresma no feria o olhar 6 dist5ncia, avultando nos alcantisdentre tufos de folhagem.

(e manh ou em vindo o crep$sculo, havia nas espessuras uma orgia contnuade sons, estrdulos prolongados de seriemas confidenciando nos vargedos,lamentos reiterados de almasde-tapuio, no fundo da mata, trilos, matinadas,algaravia de povis, ti4s e sanhaços no colmo frutificado das gameleiras. Fento-vieiras e tesouras, como frechas, abicoravam a lavadeira, uma chup# quecarreava para o cortiço, ou simples tanajura que tecia os seus amores nosespaços, e vinham dep)-las na goela s)frega dos filhotes, que aos chilidosesticavam o pescocelho implume dentre fl/culos de paina, na copa altanada dasmarias-pretas...

Nuvens consecutivas de guaos abatiam-se, elevavam-se, das fruteirascarregadas do quintal, cujas laranjas, poupadas da estaço passada,

reverdesciam outra ve%, num orgulho euberante de seiva nova, ao tempo que

Page 56: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 56/140

 

51

rombos anuns e a%ul&es solertes remeiam, como besouros, a estrumeira doscurrais.

Bobre os lameiros d1água empapaçada que secavam ao sol o seu limo

esverdeado, borboletas enameavam, numa ronda alerta d1asas multicores,variando entre o a%ul-negro, a%ulclaro e a%ul-metálico das 'geronias aretusas,cambiando a fartura de tons dos amarelados d1ocre, laranja e amarelo-enofredas Pieris pirra, umas a pousar do surto incerto, estriduloso, nas pontas dosgravetos e nervuras descobertas de folhas podres que emergiam do charco,espalmadas as asas hori%ontalmente, as demais da margem levantando o v)ocaprichoso em alegre far5ndola, pelo vento tocadas a outras vasas e verg#ismais fartos, para o a#reo noivado, para a a#rea fecundaço das pradarias emgala...

mal ouvissem o passo dum animal na devesa, papa-capins, coleiros e patativaserguiam dentre moitas cacheadas de jaraguá o v)o frustre e o peie-frito saamatraqueando ao longe, 6s orelhas-de-pau que se quedavam a escutá-lo, o%ombeteiro cantar...

Na alma de nhá Kica, ao aspecto da paisagem fumarenta, como nimbos,saudades e sonhos se acastelavam. (ias de março, saa com o mano e o (ito, aquem confiava os filhos a mame, campo afora, ela na sua egita castanha, umapluma d1ema presa 6 fiveleta do chapeu%inho de feltro, airosa no selim,

destemida 6s ve%es nas apostas de galopada, a colher pelo caminho, junto aoscerrados e capoeiras, o murici cheiroso, cuja árvore an e folhuda se distinguiaao longe, as corriolas verdolengas, denunciadas 6 dist5ncia pela fragr5nciaintensa e mangabas e guabirobas, que tra%ia em jaca%inhos, sobre o gancho dosilho.

um a um, os passeios antigos iam avolumando, os da inf5ncia principalmente,a povoar aquelas horas de la%er dom#stico do encanto agridoce da saudade,atrav#s da adusto derredor, e as primeiras bátegas espaçadas de chuva, quepejavam já as nuvens aplumbeadas das morrarias distantes.

Nesse tempo, talve% no Paranaba, talve% do outro lado de ;inas, em ;ato3rosso quem sabe, Fenedito viajava longes terras, nas pegadas do negrofugitivo.

Nhá Kica recordava sempre.

+ hábito da soledade eacerbara a sua imaginaço. Nos compridos vagares daagulha, quando d. Kusa se absorvia nos misteres dom#sticos e o fa%endeiro

rondava os arredores fiscali%ando o serviço, vivia a vida passada, rememorandosentimentos, repassando saudades, reatando o fio de pequeninos epis/dios do

Page 57: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 57/140

 

52

viver sertanejo, que lhe iam apressurando os momentos langorosos de trabalhoao canto da janela.

I que, quando se sente infelicitada no presente, a alma corre para o passado,

como um ref$gio.

(a co%inha, no meio-dia ardente, vinha o baque alternado das mos de piloesmoendo a canjica. ' água espanejava lá embaio, junto aos alicerces doaçude, na roda limosa do moinho. Ciscavam pintainhos no terreiro. No pilo domonjolo afluam as cocás, gulosas do arro% pilado, esticando para o interior opescoço esgrouvinhado aos intervalos das pancadas, quando no empinavam acrista c/rnea de sobre a copororoca dos cercados, desatando o agudo tofraque.

+s olhos da nhá Kica baiavam de novo sobre o croch4 e uma aqui, outra ali,

evocaç&es e saudades iam surgindo a cada movimento dos dedos ágeis, se atrama no ficava parada no colo e o olhar remoto, perdido numa imagemdefunta, de que, sacudindo as bastas tranças, a arrancava um suspiro de alvio,para entregar-se novamente com redobrada atenço 6 contagem dos pontos...

0s ve%es lia. 9ist/rias tocantes de 3enoveva de Frabante ou as aventuras dosdo%e pares de Grança, livro tido em grande estima no serto, cuja leitura, nosser&es solarengos das fa%endas do interior, era feita em torno do lampio dequerosene 6 famlia atenta, que tinha herdado da idade feudal, atrav#s do

drama das conquistas, aquele gosto barbaresco de façanhas guerreiras, postasem prática anualmente na sede dos municpios com o espetáculo faustoso dascavalhadas.

Nhá Kica fa%ia em casa essas leituras. Começava quase sempre pelo epis/dio daprincesa Gloripes, de que tinha um secreto pra%er em acentuar a animosidade eo ardor belicoso com que, abrasada toda por converter-se 6 f# crist de seuamado 3ui de Forgonha, acirrava contra as hostes de seu pai os cavaleiroscativos na torre de Gerrabrás...

uma noite, recolhendo-se um tanto ecitada daquelas narrativas, sonhou queestava encerrada numa alta torreola, como a que armaram a ve% passada emCurralinho, e (ito era o moço paladino que viera libertá-la dos furores paternosdo almirante Falo, encarnado na figura venerável de seu velho pai... (e ento,ao reler aquelas páginas, sentia-se enleada por um sentimento obscuro e eracom desafogo que passava aos amores da rainha 'ng#lica com o sobrinho doimperador, o destemido Holdo, corajosamente encerrado no interior do leomágico...

Dinha ainda sobre a mesinha da cabeceira alguns eemplares de contos dacarocha, vindos com ela do col#gio, cadernos de modinhas brasileiras, que lhe

Page 58: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 58/140

 

53

dera uma das amigas na capital, e um desaparelhado romance de 'lencar,esquecido entre os formulários da medicina caseira do papai, que, mui positivoem mat#ria de livros, al#m dos de Carlos ;agno e jornais polticos da terra,eram os $nicos que tolerava.

+ organismo debilitado pelas febres intermitentes apanhadas na romaria do;uqu#m, de que se vira to-somente boa o ano passado, como que a energiavital se lhe refugiara no c#rebro, desenvolvendo eageradamente as faculdadesda imaginaço* e esta, s)frega, ia suprir-se naquela meia d$%ia de volumes, junto 6s impress&es cotidianas do viver campesino, que iam acrescentando dia adia uma nova página onde deter e fiar aquela sua irresistvel tend4nciaevocadora.

Nos $ltimos dias de setembro, rolaram trov&es pelo lado do 'nicuns. 'pertara a

cancula abafadiça. No lamaçal do açude, sob as taiobas, redobrava o cantochodas rs* e 6 tarde, com o chuvisqueiro que passara, um fartum ativo, de h$musfermentado e terra fecundada, ealava-se dos plainos escaldados.

Na alma de nhá Kica refloriam recordaç&es...

"ia-se pequena, na casa do engenho. ' chuva corria grossa pelos beirais detelha-v, descia em rego ao longo das almanjarras, e a espaços, com as rajadasde vento, vinha fustigarlhes o rosto, a ela e ao (ito, encolhidos num canto,

sobre o borco duma talha.

ntontecia-a o bafio pesado de calda a%eda que as masseiras ealavam* e comoo aguaceiro abrandasse, a água do açude começasse a subir com as enurradasque desciam, e o c/rrego fosse agora uma vasta caudal de torrentestumultuosas, ocorreu-lhe uma id#ia2

  se arranjássemos um bote=

  +ra, no custa disse o companheiro.

pronto, revirou a masseira em que se achavam, cavada num tronco largo detamboril, arrastou-a at# a margem do rio, e arremangando as calças acima do joelho, impeliu-a para dentro.

la descalçou os tamanquinhos, eperimentava a água fria com a ponta r/seado p#. como ele lhe oferecesse a mo, saltou sem hesitar para a canoa, que acorredeira já puava para o meio do rebojo.

Fenedito empunhou a pá de bater melaço, deu com firme%a duas remadas, paraa direita, para a esquerda. ' embarcaço, muito frágil, inclinou para uma banda,

Page 59: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 59/140

 

54

carregando água. Com o balanço, ela agarrara-se assustada 6 outra borda, paralá pendendo o corpo* e, 6quela sobrecarga, o barco virou de ve%, arremessandoos tripulantes ao bojo das águas.

Procurou nadar, desatinada* mas Fenedito já a rebocava para terra, em duasvigorosas braçadas. de novo no engenho, tiritantes, procuravam os doisreanimar-se mutuamente com gracejos, sacudindo os fatos molhados.

la suplicou2

  No digas nada, hein=

  Pois sim.

o parceiro foi de novo atirar-se 6 torrente repor no lugar a masseira,engarranchada lá embaio, num espinharal de malcias.

'queceram breve a roupa, ao sol ardente que se fi%era ap/s a chuva, comoacontece tantas ve%es no serto* e foram depois apanhar os girinos do c/rrego,que depunham, trementes, em tanques separados, ou cheia a mo d1água dabica, fa%iam-na cair aos pingos nas folhas largas de taioba, cuja etremapolidura emperolava o orvalho como lquidos, transl$cidos brilhantes.

0 noite, teve um ameaço de febre* mas o escalda-p#s que lhe deu a mam,pusera-a de novo risonha e l#pida na manh seguinte.

Fenedito armava mund#us de cutia nos goiabeirais, ou vinha tra%er-lhe as juritissurpreendidas nas arapucas do quintal. 7ma tarde, tinha on%e anos o papaitencionava condu%i-la na manh seguinte ao col#gio da capital acompanhava-a ele ao stio pr/imo duns conhecidos, onde ia levar as suas despedidas.Cavalgava a egita castanha, nesse tempo muito nova e etremamente arisca.Passavam 6 dist5ncia dum cercado. (e lá um pastor se p)s a relincharprolongadamente.

' porteira estava aberta, uma trave atravessada no furo mais alto dos moir&es.' potranca, surda aos reclamos do freio, enveredou num galope desatinadonaquela direço. ' trave pegá-la-ia pelo peito, 6 passagem do animal.

0quele risco iminente, fechara os olhos, abandonara as r#deas, transida depavor... ;as o seu companheiro vira de longe o perigo* numa corridadesenfreada, fincando esporas ao piquira, chegou ainda a tempo de alcançar apoldra entrando de raspo no curral e de arrancá-la com viol4ncia de cima do

selim.

Page 60: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 60/140

 

55

fora ele quem recebera a pancada em pleno peito! Pancada que o atirou nalama, mas a dep)s, intacta e de p#, sobre o solo.

Kevantara-se sem queiar e fora pegar no curral os animais, que espojavam os

arreios no lamedo.

(epois, depois... ela partira para o col#gio.

8uando voltou, era moça, ele passou a olhá-la com um respeito e uma timide%,que s/ se rende 6s rainhas e 6s santas.

Nunca mais se deiou levar nos abandonos duma ami%ade de irmos* e quandoobrigado a dirigir-lhe a palavra, era contrafeito, como se se envergonhasse emseu foro ntimo da antiga camaradagem que ousara dedicar 6 filha do mais

opulento fa%endeiro daquelas terras.

era aquele o $nico homem que lhe fora dado admirar, e que a mo do 'casotinha atravessado em sua vida!

'h, quando= 8uando= Chegariam a entender-se=

como a lua surdia no hori%onte, como uma enorme roda de carro,avermelhada e triste dentre os vapores das derradeiras queimadas, alumiando

ao longe os carreiros cor de barro e inundando o rosto pálido de nhá Kica, osseus olhos voltaram-se para o c#u* e, fitando aquele astro, ealou-se-lhe doslábios uma prece tmida2

  Nossa Benhora das Candeias, minha madrinha, velai por n/s!

VIIFenedito viajava longes terras.

'travessara o ;eia-Ponte em Pouso 'lto. Beguindo as informaç&es que lhe deraum rancheiro perto de ;orrinhos, enveredou pelo serto das 'b/boras, coitofamigerado de relapsos e tr5nsfugas, onde tem ido 6s ve%es a poltica estadualsuprir-se de acostados efacnoras para os motins locais.

Naqueles fund&es, abandonando as fa%endas de criaço e indo pedir pousada aum rancho de sap# que se acaçapa afogado no bamburral, 6 margem doribeiro, o viandante vareja muitas ve%es a casa do sitieiro, sem que encontreum punhado de farinha, um taco de rapadura ou a manta de carne-seca no jirau

de mantimentos, fora a acolhida usual que lhe dá o hospedeiro. ;as a clavina

Page 61: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 61/140

 

56

chapeada ou o rifle de estimaço, topa dependurado, ao alcance, no gancho daparede, junto 6 patrona couro d1onça bem fornida de cartuchos.

I o $nico luo que se permite aquela gente hospitaleira...

No raro, a arma permanece inativa no cabide meses e meses, quando no saipara uma caçada d1anta ou espera de veado, ao tempo que os pequi%eiros dachapada ou as tarums da beira do rio começam a derrubar as suas flores efrutos.

"iajava de costume 6 lu% das estrelas, ou sob o limpidssimo luar daquelasparagens, fugindo 6 mormaceira meridiana, num rastro que se lhe escapavamuitas ve%es com os informes contradit/rios, pousando hoje 6 sombra dumapalmeira de buriti, dormindo adiante nos ranchos solitários, que o municpio ou

moradores das proimidades mandam construir 6 beira das estradas, para odescanso do passageiro e o encosto forçado da tropa nos pastos fechados dascircunvi%inhanças.

'ssim rondou o serto do Caiap/, despistado por um correio que lhe dera unssinais falsos na estrada de ata* e desceu margeando o rio dos Fois, certo já deencontrá-lo no Paranaba, se se no tivesse o preto embrenhado em ;ato3rosso por Coim, ou escapulido para o outro lado das divisas mineiras,perdidas as pegadas nos centros populosos do Dri5ngulo.

' p4lo-de-rato que cavalgava afrouou logo no terceiro dia da jornada e teve debarganhá-la em ;orrinhos com um forte desconto de quebra, o que lhetranstornou os planos, dando tempo talve% ao ;alaquias de tomar o rumo quemelhor lhe parecesse.

ntanto, obstinado como todo sertanejo, cedo ou tarde havia de topá-loforçosamente. Conhecia casos em que o batedor tinha ido pegar a sua caça no7ruguai* mas para o seu no havia necessidade de tanto, pois que o preto,dormindo descansado na fi$%a de seu braço e o bote infalvel, no teria decertoepediente para entocar-se naquelas funduras.

(esceu pois o rio dos Fois, e subiu beiradeando o Paranaba, cujos afluentesengrossavam com as chuvas, 6 passagem das primeiras boiadas que vinham doserto.

m Banta Hita, um arrieiro deu-lhe notcias seguras da estadia do nagoa emCaldas Novas vendera-lhe a besta de sela por uma tutam#ia, com o produtoadquirira na loja do 3aud4ncio uma garrucha niquelada e dous cortes de chito

enfestado, que ofereceu 6 roa com quem se metera aqueles dias 6 entrada dopovoado. Ká havia a noite inteira bebedices e cantorias, numa das quais sara

Page 62: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 62/140

 

57

esfaqueado o culatreiro de sua tropa, atrado ao casebre pelos descantes decatira, no meio duma rusga que os parceiros do nagoa acharam por bem armar6s tantas da madrugada.

assim di%endo, 6 porta do administrador onde proseavam, lá se foramencaminhando para o rancho, a cuja frente a besta da fa%enda recebia a raçodo embornal, o ferro do 8uilombo sobre o quarto traseiro, enfileirada com asdemais ao longo da casa.

oaquim Culatreiro, o cabra que levara a facada, ainda desfigurado da sangria,veio at# o parapeito e confirmou as palavras do patro. 8ue sim, era mesmo o;alaquias, um negralho espada$do, por sinal que tomara o seu partido nofuça, desarmando o cachaceiro que lhe tinha aprontado 6 traiço aquele aleive.

  8uanto 6 mula, seu moço dissera em consci4ncia o arrieiro pode levarconsigo, que no quero animal furtado na minha tropa. + preju%o # dedu%entos mil-r#is, mas irei entenderme com o seu patro, to logo naveguenaquelas bandas.

  No resta d$vida atalhou o outro , e, enquanto no aparecer, aqui lhedeio, a fim de evitar transtorno na conduço, o meu macho queimado. 't# lá,vai-se remediando com ele...

Passou a sela dum para o outro animal, e ap/s ligeira prosa, servida a caf#, comque o obsequiara a companhia, postou-se a observar uma ponta de gado quedescia para o porto, estacionando na encosta, toda estarrecida ante as águas dorio, que turbilhonavam lá embaio numa etenso de cerca de mil metros,espessas e profundas.

ram as primeiras levas que o stado eportava naquelas paragens, tangidaspela vaqueirama encourada dos boiadeiros, que por ali penetravam o serto, atirar as boiadas lu%idas com que iriam abarrotar os mercados e feiras dTal#m-Paranaba.

+ boiadeiro, feita a contagem das cabeças e embolsados os tal&es com um forteabatimento de cinqenta por cento de imposto na recebedoria segundo ovelho trato que mantinha em particular com o administrador veio dar umavista d1olhos ao gado apertado na rampa, e bradava ao capata%2

  Lh, Chico! I tanger para o outro lado do rio a boiada, antes que o dia vá detodo descambando. +lá, que # do passador= E Dot)nio, dá um pulo 6 casa dessehomem, e avisa que # tempo de passar os meus bois.

Page 63: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 63/140

 

58

;as a mulher do nadador veio 6 porta di%er que sentia muito, mas naquelaocasio o seu homem no podia apanhar molhado, em resguardo ao ataque dese%&es* que procurassem outro por ali mesmo, que haviam de encontrar.

  "eja s/, que transtorno! bufou ojeri%ado o boiadeiro, batendo botas ebombachas com o rabo-de-tatu. Lh! negrada valente da boca do barulho, qualde voc4s a sabe nadar=

animava os rapa%es reunidos num alto, a dominar a manada, gesticuloso,encarando-os fito um a um, os olhinhos relu%entes, dentro o seu caro tostadode sulista.

;as ningu#m, entre aquela vaqueirada, se sentia com 5nimo bastante paraafoitar-se naquele mundo de corredeiras rápidas e rebojos que espumavam lá

embaio. + capata% ajuntou. 8ue seu uv4ncio desculpasse, mas tinha ascadeiras rendidas por uns fardos que erguera em seus tempos de tropeiro* e amais, a mo esquerda aleijada duma cortadura de faco feita havia anos.

+s demais, no se atreviam.

  Hapa%iada molenga! 8uem há de ser, quem=

(escera o barranco, sobre o pontilho da barca, a balouçar presa 6 corrente da

beirada* e alcançando a mo em pala, olhou para o outro lado, perquirindo amargem mineira, onde um bando de pombas caldo-de-feijo parecia maismoscas a voejar* sondou com cuidado os arredores de uma casa acachapada naribanceira, de cujo telhado ascendia uma espiral esmaecida de fumo, e voltoudesalentado 6 roda dos camaradas, repuando as bochechas rosadas, numaimpaci4ncia que mal podia sopitar as pragas trovejantes que lhe gorgorejavamno peito.

  3ente mofina, gente mofina repetia inqui%ilado.

nto Fenedito avançou a besta, que refugava nas esporas, e adiantando-se at#o grupo, ofereceu os seus pr#stimos2 8ue ele sabia, e, se quisessem, estava ali6s ordens.

' nature%a epansiva do boiadeiro eplodiu incontinenti numa risada sonorosa.Fatendo-lhe 6 coa com animaço, vo%eou voltando-se para a companhia2

  ;oço 6s direitas!

' rapa%iada espalhou-se logo em direç&es opostas, batendo o carrascal e unhas-de-gato dos arredores, apertando o gado num crculo de mais em mais fechado,

Page 64: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 64/140

 

59

compelindo-o para a rampa, onde os curraleiros se detinham, resistindo aos quevinham atrás, cascos fincados, numa atitude queda de refugo, o olharesga%eado para a água torva do rio...

;as a vaqueirama premia alas, animando-os no arrodeio, 6 grita prolongada2

  Lh! )h!... Lh! )h... oah!...

um alentado caracu, ap/s recolher hesitando uma e outra munheca, atirou-senum arranco ao remanso* e, perdendo logo p#, as suas aspas ficaram a boiar, junto ao focinho $mido, que aspirava com sofreguido o ar em torno.

+ cabra, apeado, atirou-se mais abaio, vestido como estava, d1esporas echapelo, tomando-lhe a frente, guiando-o com o aboiado* o resto da boiada,

aos pares, aos magotes, os ia seguindo 6 esteira, ap/s um baque surdo decorpos sobre a água, que espadanava para as margens as suas toldasaljofrantes.

á o boiadeiro se metera com homens, animais e bagagem na barca. :mpelidario acima pela %inga do piloto e varej&es, cujo gancho uncilado se agarrava 6garrancheira da margem, foi impulsionada para o meio, entrando rápida a fainados tripulantes em vencer as correntes no manejo dos remos, indo depoisaportar, numa descida lenta, 6s terras de ;inas.

m pouco, descortinando-se de lá, flutuava mais abaio e ao longe toda umavasta floresta movediça de aspas retorcidas, emergindo fantasticamente do seiotorvelinhento das águas, os cornos a entrechocarem-se nos bolos, tocadalentamente das corrente%as, e aos poucos afastando-se da margem goiana, aocanto abafado do passador, cujo vulto aparecia aqu#m, como uma pequeninacabeça d1alfinete.

0s ve%es, no redomoinho duma corrente, um boieco soerguiadesesperadamente as ventas eaustadas, sorvia com demora o ar em roda,soprando um grosso bafo de vapor, que o sol irisava, e agitando os cascos 6tona um momento, desaparecia de ve%, no rebojo das águas.

  ;ais um!... ;ais outro!... di%ia resignado o boiadeiro, esperando-os cá dobarranco.

(ava-se por feli% quando deiava apenas a ossada dumas trinta reses alvejandoatrás, 6 beira dos malhadouros, nos olhos-d1água dos vargedos, onde acampava6 tarde a boiada.

Page 65: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 65/140

 

60

'%ares do ofcio. 0 noite, a camaradagem rondava por escala a manada,reve%ando-se um a um no arrodeio, descansando nos intervalos em que o gadodeitava para ruminar, quando a presença duma jaguatirica na boca da mata nolevava o alarma a todo o acampamento, como o espirro s$bito duma ponta de

curraleiros.

Gaina dura! de pouso a pouso, l#guas e l#guas dos vastos 3erais goianos, 6cancula meridiana dos tabuleiros e cerrad&es, bandos e bandos de urubus aacompanhá-los na marcha lenta, serenando nas alturas, abatendo-se 6schusmas nos brejais lamarentos, onde um novilho incauto se esforça atolado*sobre a copa duma fruteira-de-lobo da chapada, a cuja sombra agoni%ava outrar4s afrontada do mormaço, quando no se punham a banquetear na carniça daque ficou atrás, picada de cascavel, nos travess&es de mato por onde passaram.

# um espetáculo que cerra o coraço, ouvir o bramido que solta a r4s retidano atascal, onde embalde briquitavam em roda com o laço os campeiros paralivrá-la, e o olhar profundamente humano com que segue a boiada, que semovimenta rumo das malhadas distantes...

ali fica sem aulio, apodrecendo numa agonia estupenda, presa viva dosabutres que lhe arrancam 6s bicadas a carne palpitante.

se casualmente por ali passou depois um vaqueiro no rastro dum animal

fugido, dá-lhe por comiseraço um tiro ao ouvido, para acabar com aquelemartrio.

ntanto, pago o ajuste de sua gente, descontados os impostos e encostadaenfim a boiada nas invernadas de Dr4s Coraç&es, aqueles bois lhe vo renderum saldo compensador, dada a baie%a de preço por que os adquiriu no interiorde 3oiás.

Domando p# na margem mineira, Fenedito foi ter ao varando dos tropeiros.'ssentado sobre os calcanhares, braços estendidos para o fogo, enugava asroupas, enrolando uma palha de cigarro, já de todo reconfortado com o tragoda borracha de pinga que lhe oferecera o co%inheiro.

' vaqueirama fechara num pasto a manada. + boiadeiro meteu a mo no bolsoda calça e, sacando de um bolo de notas, estendeu-lhe uma pelega de cinco,que recusou.

(esculpasse, no era soberba, mas no fi%era aquilo por amor ao ganho.

Page 66: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 66/140

 

61

+ outro insistiu, mas ele encolheu os ombros, sorrindo2 ora, que desse 6 mulherdo passador, necessitada, com a doença de seu homem, e aquela penca defilhos 6s costas.

  Pois este Pernaba no # brinquedo de menina f4mea asseverava o capata%.  Dem hist/rias... (e ve% em quando, contam os moradores, aparece a no meiodo rio um toldo de carro, e ento # certa a morte duma pessoa afogada nasredonde%as...

  Conversas! atalhou o boiadeiro.

;as no, ningu#m ali duvidava, muitos tinham at# visto ao meio-dia, outros 6lu% da lua.

  +ra, ora, nem mec4 parece viajado, seu Chico! Nunca vira patetice igual 6daquela terra. Povo franco, # verdade, mas a preste%a em p)r f# naquelasbobagens! á para o sul, no Hio 3rande onde tivera a dita de nascer, a cousa eraoutra2 gente positiva.

No duvidava2

  Doda terra tem seu uso* e o mundo # grande, seu uv4ncio, para caber issotudo.

nfim, no valia a pena teimar sem caso pensado.

Pois sim, pois sim* nele # que no pegavam, por#m, aquelas baboseiras.

como o co%inheiro batesse a borra do caf# no parapeito, escaldando o coadore repassasse depois a bebida, p)s termo 6 conversa com um convite franco2

  I entrar no cafed/rio, enquanto está pelando!

VIII Chovia aquela noite. No essa chuvinha mi$da, comum 6s plagas do litoral, queno serto cacheia os arro%ais, e o lavrador abençoa como as primcias dumacolheita abundante* mas aquela pancada pesadona, cortada de rel5mpagos%igue%agueantes e estampidos de trovo, que emudece a nature%a e transe asárvores sob o látego do vento esfu%iando nas baiadas, e quebra e tala omilharal em que o matuto depositou as esperanças do ano.

Chuva brava, a que s/i muitas ve%es, desentranhando ra%es nas enurradas,

transpor socalcos e barranquias, despenhar-se nos grot&es, esva%ando nas

Page 67: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 67/140

 

62

covoadas e morrendo nos ribeir&es, que engrossam e transbordam matoadentro.

Com os raios que fendem meio a meio angicos e canjeranas, estalando nos

fraguedos nus e picos de morrarias, áspera provaço, a do viandantedesgarrado naqueles fund&es.

(e cada vargem rebenta um olho-d1água, fortes caudais descem reboando pelagarganta das serras, a cada passo a montaria empaca junto a um lamaroinabordável, a pinguela do rio rodou l#gua abaio, no atalho mais seguro. + friocerra, sob o ponche encharcado* e # uma felicidade cada dos c#us quando seavista, entre as cordas de chuva, uma lu%inha ao longe, num desvio, querealenta o 5nimo do caminhante transmalhado naquelas funduras. Dem-seento, viva, a sensaço da graça divina outorgada. (a o grande fundo de

religiosidade daquela gente.

Naquele cochicholo da estrada, ao princpio do povoado, o cateret4 entraraduro pela noite, sob as toldas d1água cantando no telhado, e aos goles dacaninha com gengibre que a dona da festa repartia ami$de, em tigelas, aosconvidados.

Bentado ao canto num tamborete, pernas trançadas, junto ao prato daqueimada, o sanfoneiro espichava o fole do instrumento, a cabeça ora a uma

banda, ora a outra, apertando entre os dedos as chaves, na toada dolente dadança.

Baracoteando na sala 6 frente duma mestiça, que bamboleava derreada ocorpo, olhos em alvo para o parceiro que a distinguira na roda, chorava umcrioulinho atarracado2

Rolete de cana - bom de c"upar&... - bom de c"upar&... - bom de c"upar&... 

os demais, acompanhando, gemiam em conjunto2

- bom de c"upar&... - bom de c"upar&... 

;alaquias, saltando num p#, meio tomado, saiu-se com esta2

Min"a tia magricela, /em ac"aue no pulmão, 

Page 68: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 68/140

 

63

'ui pedi!la em casamento, Respondeu ue fosse ao cão& Rolete de cana - bom de c"upar&... 

Kogo o coro2

- bom de c"upar&... - bom de c"upar&... 

;as algu#m batera 6 porta. ' festeira foi abrir. ;ontado, o pala escorrendoágua, as abas do chap#u dobradas sobre o rosto, o forasteiro num relancevarejou aquela cena. (escobriu o ;alaquias agachado sobre o garrafo decachaça, a despejar o seu conte$do no prato de aç$car, e berrou2

  Negro! "im buscar-te!

le olhou, turvo, e apanhando sobre a mesa um faco amolado com que rasparaa rapadura, saiu ao terreiro. +s demais guardaram sil4ncio, intimidados com otom imperativo do rec#m-vindo.

  ' mim ningu#m amarra urrou o preto riscando a terra com a faca. 8uem

entrar neste risco vai de encomenda pra Batanás. I chegar, quem pode!...

Fenedito serviu-se da garrucha, alvejando-lhe o braço para desarmá-lo* no era,por#m, fogo central e apenas as espoletas estalaram.

+ negro, enfurecido, saltou-lhe ento 6 goela num bote cego* e o outro,rodando numa esporada a besta, deu-lhe com a coronha da arma uma pancadano cotovelo, e o nagoa, tolhida a destra pelo choque, deiou cair o ferro.

Bem dentença, saltando do animal, já Fenedito o algemava com as ferrop#ias,que tirara pouco antes da garupa. ugulado o adversário, sem se importar comos protestos da assist4ncia que dava mostras de querer intervir na questo,preso o cadeado da corrente 6 sobrechincha da sela, montou de novo e foitocando o preso para a frente, sob o chuvisqueiro que recomeçava a cirandar.

  essa! disseram uns aos outros boquiabertos. ;as Bilvirina, a festeira, queostentava um vistoso corte de chita, presente do ;alaquias, atalhou com ummuoo2

Page 69: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 69/140

 

64

  +ra, gente! Fasta de pasmaceira. + que foi lá foi* o negro era camaradafugido, devia ao patro. Dinham vindo buscá-lo* o mais, era tratar de folgarenquanto houvesse m$sica...

  E seu Domás disse, voltando-se para o sanfoneiro que se deiara ficarindiferente no tamborete. Doca a uma quadrilha, fa% favor.

stirado nos baieiros que lhe deiara Fenedito, ;alaquias voltava a si, norancho do povoado, dos vapores do álcool que lhe toldavam o ju%o.

(esafogou o pescoço, metendo ambas as mos 6 cadeia da gorja, a olharaboborado para as brasas do lume, meneando a cabeça, num esforço penoso dequem procura coordenar as id#ias. Bentia a goela seca, e, fa%endo tenço delevantar-se, no que era estorvado pela corrente cuja etremidade o

companheiro prendera por cautela ao pulso esquerdo, pediu com vo% humildeuma gota d1água.

Fenedito foi apará-la ao beiral e como se sentasse ao lado, chegando-lhe aoslábios a copa do chap#u onde a recolhera, o preto, limpando em cada ombro ofio d1água que escorria pelos cantos da boca, fitou-o demoradamente, depoisdisse aliviado, sem rancor2

  Beu (ito fe% mal, no devia aceitar aquela incumb4ncia... Dempo de cativo e

capitodo-mato já passou... stava no seu direito de ir para onde muito bemqueria... Kabutava na fa%enda, trabalhando dia e noite como mouro* e no fim,que # que via= (vidas e mais dvidas, o patro de ano em ano mais eigente edesalmado* enfim, aquela vida de cachorro de camarada. (e resto, sem garantiano trato. + patro abusava de sua falta de letra, esticando como lhe parecia naconta, transtornando os seus arranjos de abatimento do fim do m4s* e ela, adanada, a espichar, a espichar, que nem mesmo um imperador era agora capa%de resgatá-la! +ra, nesse p#, no podia haver seriedade no ajuste. ;ais valiacair a gente no mundo, como fi%era, ou estourar a para um canto, modo depancada, como sucedera ao Dorquato por meter-se a respondo...

+ outro deiou-o desabafar em sossego. 7ltimava os aprestos do caf#, quetirara dos alforjes. (e c/coras junto 6 fogueira, ia empurrando para o lume osgravetos que ardiam, picando um rolo de fumo, e a esmo4-lo silenciosamentena palma da mo.

  +lha, negro disse de repente se #s o mesmo de sempre e dás a tua palavrade como no tentas fugir, tiro-te esses estorvos.

Page 70: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 70/140

 

65

(eu-lha ;alaquias com solene gravidade, e como ficassem proseando numcerto p# de camaradagem, assentados sobre as mantas, o preto falousentencioso, acentuando as palavras, quase em segredo2

  +lha, seu (ito, sempre lhe tive na estima desde pequerrucho* nem sei mesmocomo aprontei aquela tarantada na porta da Bilvirina* devia ser da cachaça. ;as que tomasse sentido, aquele fa%endeiro ainda havia de lhe dar o pago dasua dedicaço.

  9um! hum! aquilo # bicho mau que nem peste, Beu (ito* muito afável para osque no lhe deviam obrigaço, mas judeu at# ali com os subordinados ou quemse metesse a empatar-lhe as va%as. Be no dava mostra de toda a ruindade quetinha, era devido 6 presença da mulher, temente a (eus. ' prova estava emcomo bastou a patroa ir com os filhos passar algumas semanas em Curralinho,

para que mandasse logo surrar o Dorquato da maneira que fe%, escadeirando orapa% e dando com ele na cova.

como batesse o sarro do cachimbo, atupindo-o com o fumo que lheemprestara o companheiro, ficou a ban%ar, chupando o canudo, olho pregadonas brasas que se consumiam. (epois, numa baforada, meneando a carapinha,repisou2

  Beu (ito, Beu (ito, toma tento naquele judeu. Babia de cousas... +lha,

parecia conversa, mas era verdade* o velho botara o seu olho em riba da Chica*mandara-lhe por ele, ;alaquias, uns presentes que a mulata recusou. :sso,depois que o moço já andava metido lá... No dissera nada at# ento, a pedidoda Chica, que no queria Beu (ito %angado com o patro. 9um! hum! 'quelacobra tinha veneno... Nem mesmo parecia marido de quem era! (. Kusa, essasim, uma santa. a filha sara-lhe em tudo na bondade, mais a bele%a, quemesmo parecia uma "irgem no altar.

  olha, seu (ito ningu#m lhe tirava da id#ia aquela moça tem paio pelosenhor. 8uando andava ausente lá pelo povoado, vira-a uma ve% sob amangueira do quintal, olhando para a janela de seu quarto, uma lágrima nosolhos. le estava ali perto, agachado numa touça de fedegoso, a armar um laçopara os filhos de oo "aqueiro. +uvira-a di%er num suspiro2

  Fenedito...

0quela revelaço, o moço sentia como que um aperto acerbo travar-lhe pouco apouco, dolorosamente, as pancadas do coraço. Gugira a lembrança de Chica,de que a narrativa do preto avivara %elos fero%es* ficara apenas de p#, nimbada

no fundo de suas recordaç&es de inf5ncia, a meiga companheira de travessuraspassadas, de que uma timide% ecessiva o afastara na fa%enda, atalhando uma

Page 71: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 71/140

 

66

inclinaço que no se sentira nunca com forças para revelar-se a si mesma.altava-a em pensamento, nos rápidos instantes em que detinha em sua docefigura a imaginaço, como um ideal mui alto, onde s/ se pode deter de joelhos,como as imagens das santas que se contemplam nas igrejas... quando a via

passar entre as laranjeiras ou a acompanhá-la silencioso nos longos passeiospelo campo, morriam nele os olhos da carne, e era uma imensa, dolorosasaudade que ficava, angeli%ando tudo... no sabia que aquilo era amor!...

Gora, as trevas despejavam chuva com reiterada viol4ncia* uivavam os ventosrspidos, e no largo, o chocalho da besta badalava cavamente, aos intervalos daborrasca.

;alaquias roncava, papo para o ar, estirado nos baieiros. ele ali a pensar, apensar, curvado sobre as cin%as, comprimindo entre os joelhos as fontes, que

latejavam...

IX 'inda no havia de todo anoitecido, quando avistaram, dentre currais, ostelhados do 8uilombo, para onde tangia oo "aqueiro uma ponta de gado. Natarde que caa, o vulto do cavaleiro, cortando a galope a frente dum garraiorefugado na porteira, agitava-se ao longe como um pequeno ponto sujo nohori%onte* e at# cá embaio, na vargem por onde subiam, vinha rolando o cantodo vaqueano, num supremo e vigoroso lamento2

  Lh c)ou!... Lh! c)ou!... Lh!...

coava to perto o aboiado, no ar transl$cido da tarde, junto aos ladridos doco pastor mordendo a focinheira da r4s espirrada, que um momentoentreteram a iluso de alcançá-los logo 6 cola, mal galgassem a encosta dosburitis, embora o comprido estiro a palmilhar que mediava ainda a vargem dafa%enda.

era já noite fechada quando transpuseram o mangueiro, manquejando comovinha o ;alaquias, com uma estrepada de tucum no calcanhar, que inchara e sepusera a sangrar desde o pouso da boca da mata. ' cancela bateu, num chiarprolongado de guariba malferida* e os dois endireitaram para o lanço principal,em sil4ncio 6quela hora e onde as lu%es permaneciam apagadas, como mansosem moradores.

  E de casa! Lh, gente! E vaqueiro! gritou Fenedito.

oo "aqueiro p)s o nari% fora do paiol, onde recolhia os arreios, e numa mal

disfarçada satisfaço, retrucou2

Page 72: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 72/140

 

67

  Lh, de fora! +ra essa, 4h! Nh) (ito! Cá chegou o homem, enfim.

'rrastando as chilenas, correu a apertar-lhe as mos, segurando as bridas paraque apeasse, todo eclamaç&es, mal dando tento de ;alaquias, que se

derreava encapotado 6 sombra do batente* e saa já 6s carreiras, a dar anovidade ao pessoal, quando o outro o interpelou de novo2

  ;as no se vá, homem de (eus, espera a um tiquinho* que # do patro maisa famlia=

Nh) (ito no sabia, mas tinha havido mudanças em casa* a patroa fora noprincpio do m4s passar com nhá Kica uma temporada em Curralinho, onde iarepor Nequinho na escola. 8uanto ao patro, andava lá pelo povoado, 6s voltascom os neg/cios da poltica* mas no seria aquele o transtorno, mandava um

pr/prio avisá-lo, e de manh%inha estaria em casa ou enviava as suas ordens.

No sabia por qu4, mas aquela mudança contrariou o moço* farejou qualquercousa no ar. 'pressou-se por#m em recolher o nagoa 6 casa do tronco, o antigolegado da escravatura, onde, ao capricho dos fa%endeiros, recebiam correço oscamaradas malandros.

(esfeito o jejum forçado em que estava at# aquela hora, pela pressa de chegare dar cabo de sua misso, no rancho do vaqueiro, cuja mulher lhe serviu um

quibebe de ab/bora que foi depois levar ao ;alaquias, dirigiu-se para o seuquarto de solteiro, onde um sono solto, sem sonhos, o empolgou numaassentada, compensando as horas mal dormidas ao relento, e acabando de ve%com aquele mal-estar da viagem acidentada.

'cordou dia alto com o estr#pito dum animal que transpunha a cancela, e a vo%pigarrosa do coronel trovejando no terreiro. (eiou-se estar ainda algum tempono leito, numa quebreira avassaladora, olhos no teto, a divagar sobre todaaquela eist4ncia ali decorrida, onde a viso de nhá Kica surgia agora iluminadaduma nova lu%, numa suave aur#ola de perdo e reconforto, a tirá-lo dumasenda por onde cega e erradamente enveredara antes, e talve%, talve%... overdadeiro descanso, a verdadeira felicidade, poderiam vir a bafejá-lo emcheio...

;as a vo% do fa%endeiro, que mais brava e trovejante se escutava a espaços,arrancou-o de ve% 6 inconseq4ncia daquele vago devanear. Kevantou-se numasacudidela, correu para a casa do tronco, na depend4ncia 6 banda, onde ocoronel, cercado de seus homens, empunhava o rebenque, ameaçando o pretoacorrentado ao cepo, que, sem proferir palavra, olhava obstinadamente as

cadeias do pulso.

Page 73: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 73/140

 

68

+ fa%endeiro mal correspondeu 6 sua saudaço. "oltado para os camaradas,ordenava imperioso2

  8ue um de voc4s chegue para a 6s direitas o relho neste negro.

+s homens entreolhavam-se, confundidos. No estavam acostumados 6quelemister. ;andassem-nos assaltar a urna no povoado, sob o ferro dos contrários,correr com um bando de ciganos que talasse os campos da redonde%a, eestavam ali todos prontos a enfrentar o perigo, pagando mesmo com a vida, sepreciso fosse, o seu devotamento.

;as surrar um preso, atado sem defesa 6quele tronco, ecedia as raias de seuentendimento, nem tinham 5nimo para tanto.

' nobre%a daquelas almas brotava-lhes ntida do coraço 6 flor dos olhos, esomente o cenho duro e fero% do senhor dava largas a um /dio surdo,implacável, que lhe punha tremuras na fala e os demais transidos, hesitantesentre desobedecer ou cumprir uma ordem que lhes parecia fora de todos ospreceitos da lei humana...

  Ningu#m=! ningu#m=! resfolegava a custo, purpureado o rosto de c/lera. Pois eu mesmo vou mostrar como se ensina um cachorro!

nrijado, o a%orrague estalou no ar e desceu sibilando sobre o lombo nu de;alaquias, donde no tardou em pouco o sangue a ressumar.

+ preto apanhou calado, batendo a cin%a do cachimbo, que acenderamomentos antes.

0quela resignada mude%, a encher de espanto os demais, afrouou a sanha doalgo%, que aplacado já 6 trig#sima vergastada, rosronou d1entre dentes2

  Dens para hoje a tua conta, veremos o resto depois. olha que no sou dosmais vingativos, fosse noutra fa%enda e a tua medida seria acrescentada...

nfiou o chicote no cano da bota e meteu-se pelo interior da casa, onde nomais foi visto o resto do dia.

Fenedito achou-se 6s voltas com um grande arrependimento. Der ido a tolonges terras buscar o nagoa, para assistir 6quela cena! (as outras ve%es,cumpria relevar, fora sempre mais compassivo o patro. nfim, desobrigara-sedo seu dever* que desse o coronel satisfaç&es a quem de direito. 'gora, s/ tinha

em mente um pensamento2 rever nhá Kica.

Page 74: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 74/140

 

69

0 noite, foi ter ao paiol, onde se reuniam os camaradas, a distrair o espritodaquelas id#ias importunas. Na forma de costume, lá dava Gid#lis largas 6imaginaço2

  Beu oo, viu como o negro pitava o cachimbo=

  "i, e que tem=

  Pois andava ali feitiço, tinha certe%a* trato daquele jeito, ningu#m pode aturarsem p)r a boca no mundo* s/ mesmo a santa paci4ncia de Nosso Benhor esusCristo era capa% de tanto. 'li havia feitiço...

  +ra, gente, ;alaquias sempre foi homem de opinio* achou que no deviapiar, e nem que o matassem a pancada mudava de tenço* a está.

  Pois pergunta sá 8uirina, que foi do tempo da escravido, a hist/ria de paiHomeu* tal qual como o ;alaquias!

narrou. + senhor mandara surrá-lo por vias dum furto, de que o escravo erainocente. (eu-lhe o feitor uma tunda mestra, at# no mais poder levantar obraço de cansado. Dre%entas lambadas recebeu pai Homeu no cangaço sem quedesse parec4ncia de dor. Pediu apenas fogo para o pito, que atupiu de cin%a.

' taca cantava de cima, e ele a tirar baforada mais baforada...

+ senhor d1engenho apanhou o bacalhau, que o outro já no podia agentar, eacrescentou outras tantas tacadas.

+ preto, calado, pitava o seu cachimbo.

(e ve% em quando remoa os beiços, mastigando uma re%a má* mas no soltouum s/ gemido.

Pois bem! assim a tereia cantou-lhe nas costas, lá no canavial ouviu-se um gritolamentoso. ra o filho do senhor a queiar-se de que o estavam espancando 6traiço.

;as no havia ali perto ningu#m. +s companheiros acudiram e bateram asmoitas da redonde%a, no topando viv1alma* e, entanto, as pancadas iam uma auma caindo-lhe rijas nas costas, e ele a correr duma para outra banda,desvairado, ao tempo que os demais, tomados de pavor, levavam a mo 6cabeça e clamavam por socorro. +uvia-se perfeitamente o %unido do vergalho a

retalhar-lhe as carnes, mas a correria, nem quem a manejava, no se percebiaem parte alguma.

Page 75: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 75/140

 

70

's roupas em frangalho, numa correria desatinada, o senhor moçoembarafustou ento pelo caminho de casa, apanhando sempre. Ká chegouarquejante 6 casa do tronco, onde o pai suspendia o castigo, e lá se estatelou

atravessado no batente, vomitando sangue pela boca, para nunca mais seerguer...

Pai Homeu, entretanto, continuava a ruminar as suas re%as, puando,indiferente, a fumaça do cachimbo.

  :sso viu sá 8uirina, que a está entrevada no jirau, em seu tempo de moça* epor esta lu% me jurou que era verdadeiro.

+ra, ;alaquias tamb#m pitava a cin%a do seu cachimbo, e no tugiu nem mugiu

quando recebia a coça... 7ma criatura no apanha assim sem pacto com odiabo. Ningu#m lhe tirava da cachola que o filho do patro estava tamb#mlevando a sua sova nalguma parte, em Curralinho por eemplo.

  Beu oo, que me di% a respeito= ' velha no mentiu, viu aquele fato com osolhos da cara que a terra há de comer. 8ue lhe parece=

+ outro coçou a orelha, interdito. 9ist/rias como aquela eram correntias noserto. (emais, poucos, muito poucos, duvidavam. ntre aquela gente simples

no era costume a mentira. Be algu#m aprontava um carapeto, ficava logodesacreditado para o resto da vida* e da, a ofensa grave de que se julga alvo osertanejo cuja palavra # tomada em suspeiço.

'ssim quando um caso como aquele ia de encontro 6s id#ias assentadas sobre aeperi4ncia de cada dia, chocando as mais come%inhas noç&es que possuam darealidade, era ve%o di%er-se previamente2 No punha a menor d$vida noacontecido, longe dele duvidar, mas...

avançava as suas ra%&es2

  + fato podia eplicar-se. Dalve% fossem os parceiros de pai Homeu que,aproveitando a ocasio, tivessem dado aquela pisa no filho do senhor, a pontode no mais poder queiar-se depois. vieram relatar o caso daquela maneira...Dudo podia ser neste mundo largo... "ingança de cativo tem manha. nfim,no duvidava...

8uanto ao ato arbitrário do coronel em chicotear o ;alaquias, ningu#m aludiu,nem lhes passou pela mente discutir as ra%&es. ra aquele um costume que

assistia aos fa%endeiros, e que punham em prática quando bem lhes aprovinha,

Page 76: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 76/140

 

71

sem que com isso levantassem entre os seus a mnima oposiço, ou mesmo umsimples murm$rio de censura.

Competia-lhes aquele direito, como outrora competia ao senhor feudal indicar,

entre a arraia-mi$da de sua peonada, um vilo qualquer, tirado a dedo, paraque se lhe abrissem as entranhas onde enfiar, nas carnes palpitantes, os p#sregelados das sortidas de caça.

(emais, da freq4ncia dessas usanças, resultava escapar 6 rude singele%adaqueles homens a compreenso de semelhante arbitrariedade. , se protestohavia, era apenas a repugn5ncia instintiva que sentiam todos em pactuarnaquelas iniqidades.

oo "aqueiro que ali estava, o mais prestimoso servidor da casa, cuja famlia a

vinha servindo de pais a filhos, tamb#m tinha as suas queias, se tinha! aformular contra aquele p# de cousas. Cuidava da criaço de eito a eito, estivesseo senhor na fa%enda ou andasse ausente na capital* tangia dos malhadouros asvacas, quando amojavam* curava no curral a bicheira da be%errada nova,ferrando-a com o ferro do patro, capando em tempo os boiecos, a fim deevitar desandamento na mestiçagem. ' mulher fabricava com o leite, o queijo,o requeijo, a manteiga, que iam no mercado render dinheiro 6 casa* enfim,tinha por ano a sua paga de vaqueiro, que lhe dava a marca de tala, a ra%oduma sorte por lote de quatro crias.

Com essas cabeças tenteava a eist4ncia, formando pouco a pouco a sua levaseparada.

;as o patro vira-lhe os arranjos, deitava logo com inveja o olho em riba.

+ra era a mulher do vaqueiro, que fora ao povoado e lá cobiçara um guarda-chuva de cabo floreado na loja do major 9igino. 'quilo no lhe proporcionaria amnima utilidade na fa%enda, entre as garrancheiras e cipoais dos cercados. ;asera um desejo. Chegada 6 casa, punha o marido ao corrente de seu capricho. lecoçava a orelha, e ia ter com o patro.

ste, apressado, com gestos amplos de largue%a, mandava um portador adquiriro brinco no neg/cio, e a mulher do vaqueiro tinha com que se pavonear dorancho 6 co%inha da casagrande.

;as aquele guarda-chuva, que custara 6 vista oito mil-r#is, lançava-o 6 suaconta o fa%endeiro por vinte e mais, resultando da todo o fruto da trabalheirado ano, as suas sortes penosamente apartadas, serem quase que insuficientes

para resgatar o preço de semelhante bugiganga...

Page 77: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 77/140

 

72

+utras ve%es, era um %ebu reprodutor picado de cobra, um novilho de valia queuma rodada mal segura pusera defeituoso. ogada a culpa sobre o vaqueiro porimpercia ou falta de vigil5ncia, o seu rebotalho era ento pouco para saldaraquela r4s perdida, que o senhor encarecia.

ntretanto, continuava a servir a fa%enda com o mesmo %elo de sempre. + amor6quela vida a que se acostumara desde os cueiros do balaio, o dasapego nativo6s quest&es de dinheiro, compensavam-no largamente das veaç&es sofridas.Continuava ali servindo, como tinham servido seu pai e av), como tamb#mviriam a servir filhos e netos, desinteressado no ganho, defendendo com aferroos neg/cios da fa%enda, na prosperidade dos quais punha mais cuidados quenos pr/prios arranjos.

'ssim, no compreendia a fuga do nagoa, que acreditava vergonhosa, como no

compreenderia nunca a sua dedicaço a toda prova pela causa do fa%endeiro.

B/ na alma de Fenedito, mais esclarecido, como um co danado remordeu oremorso...

XPela volta das tr4s horas, Fenedito recolheu-se do campeio* e, ap/s uma terrinade coalhada, modorrava na rede do paiol, ao abrigo da soalheira, que abrasava.

Gora um dia trabalhoso aquele, na boca da mata! ;etido na macega, no pampamascarado campeador, ao virar das on%e e meia já tinha todas as resesencostadas num furado, sob a guarda de Gid#lis* mas um novilho de nhá Kica,alentado meio-sangue reprodutor, dera-lhe ainda pancas por uma boa estiradade tempo* e, no fora topá-lo depois a jeito, dando-lhe uma rodada merecida,nem mesmo sabia quando lograriam p)r-se de novo a caminho de casa.

'judara Gid#lis a tanger o gado at# a malhada pr/ima, onde os esperava oo"aqueiro com outra ponta, e fora depois tirar os palmitos de guariroba que lhetinham recomendado na co%inha.

Chegou modo, o pampa meio bambo da labuta, que at# mesmo recusara a mode sal no cocho da salgadeira. Por seu lado, ele tra%ia as juntas doloridas, asmos ardendo do cabo da machadinha, e o couro do guarda-peito inutili%adopor um violento rasgo de espinho de veludo, que, na tropelia do campeio,quase o trespassava tamb#m de ve% na mata.

;al pousou a cabeça sobre o punho da rede, já uma camoeca molestachumbava-lhe as pálpebras* e, na sonol4ncia que o quebrantava, formas

estranhas começaram a passear-lhe a imaginaço, encarniçando-se 6s ve%essobre um pequenino epis/dio do dia, a ampliá-lo e a eagerá-lo dum modo

Page 78: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 78/140

 

73

bi%arro, ora era o novilho ateimado em encafuar-se na biboca, ou tinha sempre6 vista um galho atravessado na galopada, de que era preciso desviar-se a todoo custo.

Muniam-lhe os ouvidos. ' mormaceira ardente daquele dia, que ao recolher ogado apanhara quase toda na chapada, punha-lhe as art#rias a latejar, e acabeça mais parecia uma %orra a %umbir...

Gora o veranico, aquela dura soalhada que nas intermit4ncias das chuvas castigao solo goiano, imobili%ava a nature%a, numa letargia contagiosa, emudecendono terreiro o terno cacarejar da criaço, sob as taiobas do açude, a sugar ávida aágua do rego, catando no tijuco uma minhoca para a ninhada de pintainhos, querecolhia agora 6 sombra dos laranjais, onde ciscava uma cama fofa eesparrimava-se na frescura da terra, o bico semi-aberto de cansaço e insolaço.

' grande lu% faiscava intensa na fachada do edifcio principal. (a parede, umat4nue e impalpável poeirada ascendia, a provocar terç/is e inflamaç&esnoturnas 6 vista de quem desastradamente ali detivesse o olhar sonolento edeslumbrado.

' tarde já descia rápida, sem aragens. Fenedito passava, enfim, do inc)modomodorrar a um ligeiro sono reparador. quando veio o crep$sculo, com umbando de pássaros-pretos que gorjeavam no coqueiro da cerca, e se pusera a

picar no batente da porta o fumo do cigarro, tirando uma fumaçada distrado,ocorreu-lhe s$bito a lembrança da Chica.

'ssim, numa tarde calorenta como aquela, ao badalar do sino chamando os fi#is6 novena e 6 alegre garrulada dos pássaros-pretos nos coqueiros do adro, vira-aa ve% primeira no arraial, tr4s anos e tanto atrás.

uma semana havia já que estava no 8uilombo, donde logo se ausentara opatro, deiando-lhe epresso o encargo de vigiá-lo, e embalado num devaneiointradu%vel, deiado n1alma pela revelaço de ;alaquias, no tivera tempoainda de pensar naquela alegre companheira de folgares, que penas eaborrecimentos tantas ve%es lhe poupara, com as suas chistosas galhofas e oriso brincalho sempre pronto a desabrochar nos lábios escarlates.

7ma necessidade brusca de rev4-la apossou-se-lhe da alma.

Beguindo, na forma do costume, o impulso da primeira id#ia, mal o pensara jáapanhava o cabresto, indo pegar no pasto a Pelintra.

Page 79: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 79/140

 

74

(eiou-se ainda ficar dous minutos no curral, proseando com oo "aqueiro, afa%er diversas recomendaç&es, ap/s recusar o convite para a janta, que estavaposta, e di%endo ir cear no povoado.

(epois, duas esporadas no va%io e a mula atravessou a cancela escancaradanum galope mal contido, descarregando o ar da barriga, na 5nsia de ganhar ochapado.

  Binal de que volta logo ainda bradou de longe o cabra a rir, voltando-se nasela.

sumiram ambos numa depresso.

  9um! hum! pigarreou oo "aqueiro. o patro que punha tanto empenho

ao ordenar-lhe que em caso algum deiasse a fa%enda. 9um! temos amarosca feita.

recolheu-se, pensativo, a repuar a barba. Dinha uma d$vida a doer-lhe aconsci4ncia quando o moço se despedia, mas entre o dever e a ami%ade,resolvera calar.

  ;ulheres!...

  8ue # que te p&e assim macamb$%io, criatura! interpelou-o a mulher, que ovia ali parado 6 soleira, matutando.

  Cousas...

num repente, meio irado, descarregando-lhe por cima o peso da preocupaçoem que vinha2

  ;ulher, diacho de bicho abelhudo! I tratar antes do que # da sua conta, deiaos outros em pa%.

  Damb#m, pra que tanta %anga, homem de (eus= no perguntara por mal.

no falaram mais naquele assunto.

ntanto, Fenedito batia longe, no galope sustado da rosilha.

ram on%e horas menos um quarto quando, deiando arreada a mula no ranchodos tropeiros, galgou com vagar a rampa que levava 6 casinhola da Chica* e, por

maior cautela que pusesse em dar volta ao fundo da casa e aflorar de sobreleve

Page 80: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 80/140

 

75

a porta em duas breves e secas pancadas, sempre despertou o faro do guegu#no palheiro, que investiu 6s cegas, ladrando desabaladamente.

Ká dentro houve um rumor de conversa abafada, como que duas pessoas se

interrogavam precipitadamente, depois alteou-se a vo% de Chica, que indagoumedrosa2

  8uem está a=

No respondeu, numa s$bita desconfiança* desviado na sombra, apurava oouvido 6 escuta. + guegu# fa%ia-lhe agora festas entre as pernas, relambendo ocano das botas, a reconhec4-lo. 7m pontap# no ventre, e p)-lo depressa acaminho do palheiro, aos ganidos.

(e novo a vo% de Chica perguntava quem estava lá fora. le permaneceusilencioso, a orelha aplicada 6 fechadura* e já aquietada, ouviu a mulata quedi%ia2

  No foi nada, certamente a vaca que vem a lamber todas as noites o barro daparede assanhou o cachorro* em todo o caso, lá vou ver.

scutou a cama ringir, e outra fala descansada de homem atalhando2

  No # preciso, deia-te estar.

0quela vo%, vo% dum macho lá dentro, dum rival feli%, já a c/lera o colhiarepentina* e uma, duas, tr4s, assentou sucessivas patadas 6 porta, cuja taramelacedeu 6 quarta* mas achando atrás anteparo numa escora, resistiu ainda,deiando uma abertura, por onde enfiou como uma cobra o braço, retirando atranca.

Como um raio entrou na co%inha, e já forçava a porta do quarto, quando ouviuranger lá dentro a janela que deitava para o oito, dando talve% passagem aofugitivo. Num pulo d1onça, achava-se de novo cá fora* deu 6s carreiras rodeio 6casa, a garrucha engatilhada, e lobrigou ainda um vulto que desciaapressuradamente a ladeira, enfiando o casaco.

Ge% com ambos os canos fogo naquela direço, e voltou espumando ao interior,onde Chica re%ava de joelhos, apegada ao orat/rio, junto ao leito desmanchado,a chorar copiosamente.

'rrancou-lhe num safano o rosário dos dedos, e o gesto transmudado,

indagou2

Page 81: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 81/140

 

76

  8uem era= 8uem=!...

la abaiara a cabeça, e assim de joelhos, p)s-se a suspirar, lamuriando aintervalo das lágrimas2

  'i! esus!... 'i! esus!...

  "amos, diabo! 8uem era o homem que estava aqui contigo=

Boluços, apenas soluços, sacudindo-lhe dolorosamente as arcadas do bustofarto, e o olhar baio, de co corrido, eram a resposta 6s sucessivas eimpacientadas perguntas.

Fatia o p# no cho, cerrando os punhos, mordendo os beiços, o olhar

chamejante, varrido numa raiva que no tardaria em pouco a eplodir nalgumdesmando, a repetir em desatino, com rancor2

  8uem era= 8uem=!...

'quela in#rcia easperava-o. Gustigou-lhe o rosto com as contas do rosário, acoronha da arma chuchou-lhe o peito, a ver se conseguia obrigá-la a erguer oolhar culpado, rosnando sempre o estribilho fero%2

  8uem era= 8uem=

'final, numa onda de sangue, atirou-lhe o primeiro pontap# 6s nádegas, jogou-ade bruços de encontro 6 parede* e, num assomo para o qual já no havia freio,pisou-a um instante barbaramente, estupidamente, passeando-lhe o corpo comas botas.

(epois, como tivesse ainda em resposta aquele choro frouo e contnuo,cortado a espaços pelo estrangulado soluçar, um pasmo repentino sopitou-lhe aira* e, na ineplicável comoço que o ia insensivelmente invadindo e era comoque a gota d1água na fervura, ergueu-a com cuidado, assentou-a 6 borda dacama* e 6 lu% do candeeiro que espalhava o seu claro amortecido aos quatrocantos do aposento, deformando e ampliando em torno os objetos dum feitioestranho, levantou o queio 6 mulata que tremia, p)s-se a festejar-lhe as facesmansamente, suavemente, num arrependimento mudo agora, em que tentava,embalde, estancar-lhe o pranto ao rosto esbraseado.

  No chora!... No foi nada... +ra veja, que molenga!...

Page 82: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 82/140

 

77

já sentindo que ia em breve fa%er acompanhamento 6quela choradeiradesatada, reagindo contra a nature%a que o traa, interpelou de novo, numesforço2

  ;as quem era, quem= No faço nada, vamos, di%...

'nte o sil4ncio que mais uma ve% o acolhia, a negar toda a certe%a daqueleamor passado, da fidelidade e obedi4ncia antiga, achou-se de tododesorientado* e, perdida a tramontana, numa impulsiva revolta, derrubou-a denovo arrebatadamente, e desandou a espancá-la, aos rugidos de fera.

' um solavanco da mesa, a candeia entornou-se e apagou, num $ltimo esanguinolento lampejo.

nto, já dementado, dobrou-se sobre aquele corpo que lhe opunha apenas amorna passividade dum sil4ncio obstinado, e furiosamente, bestialmente,violentou-a com selvageria, a unhadas e mordidelas, que lhe foram, enfim, comigual furor, com igual paio, retribudas aos ganidos pela boca convulsa daamante...

XI ' lu% batia em chapa no forro de telha-v, quando abriu os olhos daquele sonode pedra.

Pela altura do sol, já devia passar de meio-dia.

' princpio, no se recordou da hora nem onde estava* mas o aspectodesordenado dos objetos, noutro tempo familiares, que o rodeavam,lembrando sestas fervorosas e noitadas mais feli%es, acordou-lhe brusca noesprito a cena da v#spera. foi com mal sofreada 5nsia que procurou ao lado olugar de Chica.

ncontrou-o deserto e frio. Kevantou-se 6s tontas, tateando* e, na semi-obscuridade do aposento, chegou 6 janela, puando o tampo, que ainda seconservava cerrado. "oltou-se ento com a claridade, e 6quela desordem dostrastes, as roupas atabalhoadamente atiradas aos montes pelos cantos, os ba$sabertos, estripando o seu conte$do numa profuso de peças revolvidas, umasuspeita s$bita cresceu-lhe na mente superecitada2

Gugira a cabocla!

Procurou-a ainda pela casa, batendo os recantos* mas a aus4ncia dalguns

objetos preciosos guardados em certos escaninhos que sabia, o ale

Page 83: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 83/140

 

78

desaparecido do cabide e a porta 6s esc5ncaras, atestavam bem em evid4ncia apartida precipitada de sua moradora.

No se deteve mais tempo a averiguar, e desceu ao povoado. Ge% uma ligeira

abluço na água da cacimba, molhando a fonte e os pulsos, a acalmar aefervesc4ncia do sangue* e já montado, deiou-se ficar mais dous minutos navenda da ;aruca, cortando o jejum com um rebate de meio dedal de cana,ap/s o que cravou esporas na besta, rumo do 8uilombo, disposto ao que dessee viesse naquela embrulhada, de que no compreendera ainda patavina.

+ álcool agiu depressa naquele organismo, que desde a v#spera no ingeriaalimento algum* e pela estrada, metendo o animal no trote picado, na marchaesquipada, entrou a ba%ofiar2

  "ote, cabra! Calango de chifre e macuta furada, se no me está a cheirar queainda hoje vejo o melaço dalgum desgraçado correr na ponta de minhafranqueira!

:nsensivelmente, com as esporadas que ia acrescentando ao ventre da besta,abriu num galope furioso, sob o sol que assava, deiando ao lado os pinguel&esdas ribeiras, para num salto transpor as barranquias, vergastando os ramos queencontrava dobrados sobre o caminho com o cabo do pira, numa f$ria malrecalcada, que no achara ainda onde descarregar.

á lá no fundo da baiada o mato da stiva avolumava o seu listro sombrio defrondes ramalhudas. Com o vento, engrossado pelas chuvas da quin%ena, vinhao marulhar cachoante do c/rrego nas pedreiras deslavadas. Corria 6 r#dea solta.

(e repente, passarinhando para o lado, a Pelintra estacou em dois corcovosbruscos* e, no fora a segurança do cavaleiro, viria ao cho, numa rodadadesastrosa.

ra um vulto, o ;alaquias, que surdira como que por encanto de trás dum ocode pau, na estrada.

+ preto, armado duma clavina, cuja boca revirara prudentemente para baio,avançou cauteloso, um dedo ao beiço, impondo sil4ncio, pedindo atenço. +outro, meio ressabiado, alisava a coronha da garrucha, e esperou firme sobre osestribos.

  Beu (ito, volta donde veio e suma no mundo disse o nagoa. + patro temgente 6 sua espera para o prender, morto ou vivo.

Page 84: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 84/140

 

79

eplicou. + patro chegara, pela manh, esbaforido, na fa%enda, uma escoltade M# "elho, Fentinho Faiano e 3eneroso das 'b/boras ao lado. (epois de termandado soltá-lo 6 casa do tronco, prop)s-lhe em particular a desobriga daconta e mais uma boa molhadura de vinte mil-r#is de quebra, se fosse com os

demais, e oo "aqueiro, esperar a ele, (ito, 6 sada do povoado, e condu%i-loamarrado ao 8uilombo, matando-o mesmo, caso resistisse.

Gingiu aceitar e deram-lhe aquela clavina, vindo ento com os outros emboscar-se no c/rrego da stiva, numa tocaia que fi%eram junto 6 cru% do 'mbrosino. Káficaram os quatro 6 espera* quanto a ele, que tinha Beu (ito em muita ami%adee com o qual no queria questo, desconversou com a companhia, di%endo virapalpar o terreno e dar-lhes aviso quando aparecesse o vulto do moço naestrada. ;as adiantara-se apenas para inteirá-lo do perigo e prestar-lhe o seuaulio, se preciso fosse, caso pretendesse mesmo afrontar os capangas, o que

no aconselhava.

  Fem di%ia eu, seu (ito, aquela alma do diabo # que nem cobra, s/ vive paraaprontar maldade! mais a mais, metido em fuico de saias! nto, tomassecuidado, a jararaca ia mostrar agora toda a peçonha que tinha. Fem di%ia!

+ outro ouviu de mo no queio, refletindo. (issipavam-se as d$vidas que vieraentretendo pelo caminho. ra pois aquele velhote perrengue que se lhe meteracom a Chica! Fom achado! 8uem havia de tal convenc4-lo! a estava eplicado

o sil4ncio birrento damulata e a sua fuga pela manh.

  +ra, ora, mais parecia caçoada, que patusco!

;as o sangue de todo no se lhe acalmara ainda nas veias. Passada aquela ondade chacota, veio logo uma secura 6 garganta, começou a sentir saibo de sanguena boca travosa, e, s/ em p)r o pensamento na imagem da Chica, o seu corpoluurioso e fresco nos braços daquele velho coroca, uma revolta sanhudasacudiu-o dos p#s 6 cabeça, eriçando-lhe as falripas do rosto, abafando todo orespeito antigo, e uma necessidade imediata de desforço mostrou-se-lhe clara,na mais fera e imperiosa brute%a do instinto animal afrontado...

Pelo lume dos olhos e o arreganho involuntário do gesto, que o fa%ia crescermeio palmo na sela, ;alaquias percebeu-lhe logo a intenço, e ia arengar nointuito de demov4-lo, quando, fincando esporas, já Fenedito afastava-se, cego,numa arrancada velo%, rumo da stiva, para o seu destino, para a sua perdiço...

;ais uma ve%, o vulto do negro aprumou-se no meio do campo, soerguendo o

busto agigantado, levantando as mos no ar, como que para det4-lo ainda a

Page 85: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 85/140

 

80

tempo, e já animal e cavaleiro desapareciam al#m, num capoeiral da volta daestrada.

nto ;alaquias encolheu os ombros, resignado* e atravessando a arma 6

bandoleira, enveredou por um trilho 6 esquerda, caminho do hom%io e doserto.

Fenedito penetrou as primeiras árvores da stiva de sobreaviso, r#deas aosdentes, a garrucha numa das mos, pronto a varrer qualquer tiraço na l grossado pala que desdobrara na outra, olho 6 direita, olho 6 esquerda, pesquisando. ainda bem no deitara o olhar investigador a uma pequena moita suspeita demarmelada, saltou-lhe dali 6 frente o M# "elho, empunhando um forcado, sobrea ponta do qual agitava um molambo de baeta, que estadeou 6s ventas daPelintra.

+ cavaleiro mal teve tempo de sofrear, no refugo, a alimária* e um laço sibilou-lhe 6 cabeça, atirado certeiramente pela mo de oo "aqueiro, do alto dumaárvore, onde se empoleirara.

os braços enredados pelo arrocho da correia, enquanto forcejava com oscotovelos, 3eneroso insinuava-se como uma cobra sob o ventre da mula,derrubando-o pela perna. Num fechar d1olhos estava desarmado, tolhido eatirado como um fardo ao lombo da besta, que os da matula entraram sem

detença a tocar, rumo do 8uilombo.

ntardecia quando o coronel, debruçado a espaços, impaciente, ao peitoril da janela, os viu chegar, enotada a Pelintra 6 frente, sob a sua carga humana.

7m riso surdo, duma epresso maligna, indefinvel, a repuar-lhe os cantos daboca numa careta horripilante, e que devera ser o mesmo riso de P4ro Fotelho6s voltas com as almas do Purgat/rio, alumiou ento o rosto do fa%endeiro.Passou o dorso sardento da sinistra pelos beiços, prelibando o go%o da vingança,depois comandou2

  'marrem o homem no curral, tirem-lhe os estorvos do corpo, deiem apenasp#s e mos manietados.

;andou vir da arma%enagem um garrafo de restilo, que distribuiu 6s canecaspela capangagem. oo "aqueiro, cumprida a sua obrigaço, retirara-se para oseu rancho e, encostado ao poial, ficou de longe espiando.

M# "elho e 3eneroso, fechado o corpo com o trago da pinga e embolsada a

maquia da peita, tinham metido os trabucos ao ombro, e já lá iam distantes,batendo a poeira leve da estrada com as suas alpercatas de couro.

Page 86: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 86/140

 

81

nto o fa%endeiro despiu o palet/ e arregaçando as mangas da camisa, saiu aoterreiro, uma comprida folha de quic# debaio do braço. (eteve-se a amolar oferro 6 piçarra do rego, pachorrentamente, voltando a fronte bron%eada e

deprimida ora a uma, ora a outra banda, num  facies  de riso alvar e cnico.(epois, mordendo os beiços, %ombeteiro quase, rosronou 6 companhia2

  8ue diacho de estupor # esse! :sto # lá cousa do outro mundo= I esta aprimeira ve% que tra%em 6 porteira um poldro madraço em vias de capaço=Pois as #guas do meu pasto no foram apuradas para roncolho dessa laia! I p)-lo manso, antes que me desande no campo a descend4ncia de alguma potrancade estima. 7ai, nunca viram= Pois o bicho parece mais esperto que a gente,fareja depressa a sorte que o espera no moiro, vejam s/, está que nem be%errodesmamado!...

;as a c/lera rugia-lhe dentro demasiadamente violenta para continuar naqueleenurro de chufas. Dremia-lhe a vo%, a cada palavro* e, ao aproimar-se, osdedos da destra crispavam-se-lhe no cabo do quic# como cunhas.

Para Fenedito, atado ao poste de tortura qual novo Bo Bebastio, as palavrasdo fa%endeiro ressoavam-lhe 6 orelha sem significado, como um vago elongnquo %umbido de maribondos...

(esde que se sentira atravessado na Pelintra, uma prostraço profunda,seq4ncia da ecitaço em que viera at# aquele momento, paralisara no cabra amáquina do pensamento* e dali ao pelourinho do curral, tudo lhe pareceracomo num sonho, em que a sua personalidade semelhava desdobrar-se, e noera ele que ali estava jugulado pelo laço vaqueano, a arroear-lhe os punhosintumescidos, e sim um outro indivduo estranho, a quem era indiferente, como qual no tinha a mnima relaço.

' cabeça pendida sobre o peito, olhos esga%eados, olhava sem compreender, 6espera de que aquele pesadelo de chumbo, 6 maneira do que lhe acontecia nashoras de febre quando dormitava das soalheiras apanhadas na labuta docampo se dissipasse ao vir da noite, nas primeiras frescuras orvalhadas docrep$sculo...

8ue significava aquela l5mina relu%ente, cujo fio o patro eperimentava naunha do polegar e a fitá-lo sinistramente= a cadeia de id#ias, de novo partida,se lhe embaralhava na mente, sem coordenaço...

;odorrava...

Page 87: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 87/140

 

82

Num gesto rápido, o coronel desabotoava-lhe d1alto a baio as braguilhas dacalça. ' roupa caiu-lhe balofamente aos p#s, em papos fofos. a camisa muitocurta, que o estertor desordenado das arcadas do peito soerguia a brevesintervalos, mostrou uns flancos robustos, peludos, de 9#rcules r$stico.

' operaço foi demorada, cruenta, dolorosa, a julgar pela contraçointermitente de seus lábios convulsionados. ;as a boca, os olhos, esses, noeprimiram uma s/ queia... (eiou-se amputar em sil4ncio, sem movimentoquase, como uma r4s abatida.

(ados os dois talhos longitudinais, o operador espremera os testculos, erepuando os cord&es, aos quais deu em cru% a laçada de uso como se fa% aosmarruás, separou-os de ve%, num corte hábil.

stava consumada a operaço.

á aquele pastor intrometido no sairia mais pela redonde%a a importunar-lheas potrancas de estima...

oo "aqueiro, encostado ao poial, punhos cerrados, olhava aquela cena.Dratos, assistiraos a muitos, de formas e maneiras várias, nessa e em outrasfa%endas do interior. ;as como aquele, pedia castigo divino!

ntrou no seu rancho pobre de sap#, sobre cuja esteira de jirau perrengueava amulher, numa recada de resguardo de parto* acordou-a de manso, e baio,quase choroso, avisou2

  I p)r-se logo de p#, que nos vamos daqui embora para nunca mais. ' marcade tala deu boa porcentagem este ano* junto aos lavrados que possui, dá desobra para a nossa desobriga. I p)r-se logo de p#...

ntretanto, o coronel, finda a tarefa, recolhia os despojos sangrentos de suavtima num caco de telha, que dep)s num moiro do cercado, onde já voejavammoscas varejeiras, e foi lavar as unhas sujas no limo do rego. (eu mais uma ve%ordem a que atirassem com aquela r4s pesteada no quarto escuro do tronco, efechou-se na casa-grande, sem mais palavra.

'os $ltimos raios de sol a ferir obliquamente a cumeeira da casa, naquelainterminável tarde sertaneja de vero, uma alegre cavalgada apontou ao longe,na vargem em sombras, e veio estacar junto 6 cancela do mangueiro, queabriram, penetrando ruidosamente no pátio onde havia pouco se desenrolaraaquela eecuço sumária.

Page 88: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 88/140

 

83

ra um grupo de representantes do povo, coron#is e fa%endeiros pela maioriacomo o senhor do 8uilombo, que eleitos pelos crculos vi%inhos, por ali iam depassagem, a assumir as suas respectivas funç&es de deputados e senadores noCongresso estadual.

:am pra%enteiros e satisfeitos, apressados como estavam em chegar ao t#rminoda viagem, ali se detendo apenas dous minutos para um aperto de mo aocorreligionário poltico do lugar, uma das mais legtimas influ4ncias, e o maisforte esteio do partido no municpio...

nquanto se serviam do caf#, contou-lhes por alto o fa%endeiro oacontecimento do dia.

  Pois no, coronel!! disse um da comitiva. Ge% muito bem* que essa gente,

traste imprestável e traiçoeiro, s/ serve mesmo para nos dar preju%os e cabelosbrancos. 'inda a semana passada, morreu-me um dos tais, com uma dvida deum conto e quinhentos mil-r#is no costado por pagar. , se no mostrarmosenergia, montam-nos o p4lo de botas e esporas... 3ente ordinária at# ali...

XII Na fa%enda, agora erma, lento e lento o tempo começara a sua obra de estragoe desconforto.

7m a um, valendo-se de novos contratos com fa%endeiros do arredor, oscamaradas do stio se tinham ido, numa passividade fatalista de rebanho, dasferrop#ias dum jugo para as de outro, quem sabe, mais duro e cruel...

Por $ltimo oo "aqueiro, que ali se deiara ainda ficar, lutando embalde comum atavismo de condiço que o tra%ia atreito 6quelas paragens, arrancou-seuma clara manh, tocando adiante da famlia maltrapilha os refugos de gadoque conseguira ressalvar no seu ajuste final de contas.

Damb#m, para que persistir naquele pedaço de terra, to ingrata e penosaagora de rever pela maldade dos homens= + patro recolhera-se a Curralinho,onde estava a famlia, pusera an$ncio nos jornais da venda do 8uilombo, compastos, benfeitorias, criaço e mais gado mi$do.

á o inverno vinha pr/imo, na a%ul transpar4ncia daqueles c#us de abril, queofertava, nas vargens de mimoso e jaraguá, as $ltimas galas da estaço.mudecia em torno a nature%a, sob a frialdade das noites... Nas nascentes, aágua dos c/rregos ia escasseando.

'ssim, na chapada, sob um sol de rachar, tangendo 6 frente dos seusremanescentes da antiga manada, rumo incerto de distantes terras onde iria

Page 89: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 89/140

 

84

recompor a vida transtornada, e ao chiar do carreto que condu%ia cambotandoos destroços de seu lar desfeito, a bela vo% do vaqueano já no tinha aquelasonoridade vibrante de outrora no ecoar do aboiado, e mesmo, fa%ia-se triste ecompungida ao acentuar as notas derradeiras da cantiga.

I que ali, naquele mesmo trato da campina, fi%era-lhe tantas ve%esacompanhamento o grito triufante de nh) (ito, que vira crescer e tornar-sehomem sob o seu olhar desvanecido, e que pobre%inho lá ficava agoraesquecido na fa%enda, sob os gravatás e ananases da beira da cerca, onde otinham a mando enterrado, a sonhar o seu sonho de pa% e de ventura noutravida melhor...

;orrera o infeli%, ap/s lenta agonia de uma semana sem po e sem água nofundo da casa do tronco, donde urros de endemoninhado saam na noite, ao

acompanhamento l$gubre das aves de má morte no telhado.

mais dolente e compungido se faria decerto o sertanejo, se soubesse queaquele seu descante agoniado, na tarde que baiava, era a n4nia f$nebre queacompanhava, mais al#m, o enterro de nhá Kica, a filha do fa%endeiro, morta emCurralinho de triste%a e paio.

Page 90: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 90/140

 

85

PERU DE RODA

Fela estampa de homem, o coronel Pedrinho! 'lto, desempenado, a pele

corada e rebrunhida pelos s/is do serto, fa%ia gosto v4-lo quando apontava 6tardinha no pouso, onde a tropa arranchara, e, estribado na sua grande mularuana, passava revista 6 burrada, em fila ao longo do parapeito, o cabrestameem cru% sobre a testeira aberta, e mui viva% e solerte 6 vo% do patro,interpelando oaquim Percevejo o arrieiro.

Bempre num terno de brim milagrosamente escapo 6 poeira das estradas, asbotas de verni% mui lustrosas sob a prata dos esporins, um lenço de seda negracingindo em fofo pela aliança de ouro o pescoço desafogado, mo firmada na

ponteira do chicote que se apoiava 6 albardana acolchoada da sela bela-vistense  era mesmo uma bi%arria quando o seu perfil moreno atravessava ao largo dasfa%endas, donde o pessoal se postava das janelas e currais observando poucoantes a passagem da tropa, ou rompia árdega a mula pela praça do povoado, 6descarga do $ltimo lote na rancharia dos tropeiros.

Gigura $nica aquela, como $nica a andadura da ruana, de postura e qualidadesto bem gabadas e discutidas como as vantagens pessoais de seu dono.

Damb#m, já ia o moço tropeiro beiradeando pelos trinta e quatro, e desderapa%ote batia as estradas comerciais do velho 3oiás, a princpio sob as ordensde seu defunto padrasto, o coronel 3ominhos de quem herdara a tropa e ottulo, depois por gosto pr/prio, fugindo 6 vida marasmática e aperrengada dovil/rio natal, com todas as suas intrigalhadas e /dios inevitáveis de facçopoltica.

(e Piren/polis a 'raguari, em ;inas, de passagem por Corumbá, 'ntas, Fela"ista e mais vilarejos do interior, transportando do serto dos Pireneus couros efumo, tra%endo das praças mineiras as variadas manufaturas, ningu#m como ele

mais estimado e procurado para um ajuste de frete, dada a segurança da suatropa a mais garbosa e lu%idia naquelas alturas e o %elo sempre alerta quepunha no resguardo da carga, quer fossem caiotes com o dstico cuidado!... indicando o conte$do perigoso da dinamite, quer fosse o letreiro encarnado frágil sobre a tampa de pinho dos aparelhos delicados de louçaria e vidro. ,quando em mos dos destinatários, no havia ento reclamaç&es por vias deuma peça partida, ou fa%enda desbotada pela chuva na caminhada dificultosa.

+ seu prestgio corria parelha com a fama de honrade% e sobranceria de caráter

em que era tido naquelas funduras.

Page 91: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 91/140

 

86

á oaquim Percevejo, o arrieiro, era um tipo bem diverso do patro. Com umalonga faca de arrastro sustida ao correo da cinta pela espera de sola grossa, abarbaça grisalhona, espalhada em leque sobre as cordoveias do papo t$rgido erubro de peru de roda, afunilada e acabando em bico na boca do est)mago, as

pernas mui curtas e em arco pelo hábito da montaria, era um homem cujaeterna sisude% impunha sempre um respeito desconfiado aos camaradas. , muiembora lhe viessem sentindo dia a dia a morrinha impertinente de seu g4niotestudo e ateimado de id#ias, em contraste 6 franca jovialidade do patro, noousavam contudo murmurar dos ralhos do arrieiro, quando via as suas ordensmal cumpridas ou relaadas pelos seus na labuta cotidiana.

'ssim, antes que a madrugada fosse amiudando, sobre a verde louçania dosserrotes apurpureassem os primeiros listr&es da aurora, já na trempe dorancho, sob o buriti do olho d1água, se pousavam ao relento, chiava o caldeiro

do co%inheiro, preparando o caf# e a rapa%iada toda fa%ia roda, pronta a bater oencosto da vargem, ao campeio habitual da mulada.

Pois toda a satisfaço do arrieiro consistia em ver o patro, assim sado dabarraca, com o seu floreado cuite%inho da bebida estimulante 6 espera, e oslotes completos, em fila nas estacas, babujando já a quirera da raço matutina.

ra de v4-lo ento apurando o ouvido, inchando o peito, numa empáfia de malcontido orgulho, 6 saudaço costumeira2

 'h! sim, que voc4s por aqui me madrugaram hoje, hein=!

  Na forma de sempre, patro!

bradava logo, comandativo, ao dianteiro, a raspar ainda a sua rapadura nofundo da caneca2

 Lh! erome! Doca pra diante, rapa%! 8ue o sol já 1stá pr1a botando o seu carode fora!

+ outro no se fa%ia rogado. (escido o primeiro fardo da pilha, dava-lhe oboleio de uso, metia os dedos 6s alças, levantava-o 6 altura da cabeça, e, sobum peso de cinco ou seis arrobas de sola, estalava a mo ao fundo, na regra docostume, descia suavemente ao ombro* e, upa, upa, amiudando um passinho demulo carregado que tivera a sua medida, vinha encostá-lo 6 capota docargueiro, onde um camarada dava a demo, enfiando as alças no cabeçote eescorava a cangalha, enquanto ele corria a pegar outro fardo, restabelecendodo lado oposto o equilbrio. "inham os dobros desfa%endo as demasias* e,

passado o ligal, arrochado e preso o cambito da sobrecarga, o dianteirodesatava o cabresto, enfiava-o 6 argola da cabresteira, e dando um muoo ao

Page 92: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 92/140

 

87

ouvido da madrinha, esta tomava prestes a sada do trilho, apanhava o balançortmico da marcha, e lá ia arfando estrada afora, na matinada bimbalhante dosgui%os e cincerros.

o segundo burro, aprestado e solto, 6quela toada costumeira que se alongavae ia distanciando do outro lado do c/rrego, saa logo a passo amiudado,impaciente por morder o primeiro na retranca, mal dando tento do peso mortode de% arrobas e mais que tra%ia sobre o lombo. ap/s esse, um a um os demaisiam saindo na poeirada do antecedente, desaparecido no cotovelo do atalho. quando o $ltimo sumia al#m, no gorgulho da rampa, já o segundo loteacangalhado e alerta nas estacas recebia os surr&es, nos primeiros aprestos dapartida.

(o lado de dentro do rancho, cotovelos fincados sobre o parapeito, oaquim

Percevejo assistia diariamente 6 sada da tropa. ra um garbo ver como as coresdos lotes se sucediam por escalo, o primeiro de crioulos alentados, o p4lorebrilhando sobre a fartura lu%idia das ancas* o segundo alvejante e albino, namesma abund5ncia de carnes roliças, para dar lugar aos rosados, castanhos-escuros e p4los-de-rato dos terceiro, quarto e quinto lotes, ainda mui arteiros eindiferentes sob o arrocho dos carregamentos...

á o co%inheiro albardara o seu ruço desferrado, e numa andadura indolentesara ao alcance do dianteiro, que levava como dobro a capoeira de seu trem de

co%inha. quando era a ve% do culatreiro, ainda os machos queimados de seulote o refugo da tropada fariam inveja a muita fieira de tropa que briquitavanaquelas estradas!

nto o arrieiro ajeitava a chilena ao p# esquerdo, aparelhava a ruana dopatro, presa 6 cancela do rancho, e ia apertar a cilha 6 sua mula mascarada,que naquela manha de animal velho e sabido, inchava a barriga, eriçava-lhe osredomoinhos, para menos sentir os efeitos do arrocho.

+ coronel deiava-o pouco adiante, para um dedo de prosa com os conhecidosdas fa%endas que se iam avistando a pouco e pouco 6 direita, 6 esquerda, daestrada. ele torava para a frente, no trote picado da montaria, chupando ocigarro, devorando rapidamente as dist5ncias, no rastro ainda fresco da tropa,cuja ferradura ia amoldando a argila barrenta da chapada, estrada afora.

quando galgava a emin4ncia de um descampado, onde eram o araticum-do-campo, o pequi%eiro, a fruteira-de-lobo e os coqueiros de maca$ba que para cádos listr&es de mato se descortinavam esparsos no sap# bravio, a sua vistaperdia-se ao longe, nas ondulaç&es do terreno, abrangendo a r#cua distante do

dianteiro, contornando um serrote* mais aqu#m, no fundo da vargem, osegundo, que galgava a encosta* o terceiro e o quarto ainda ocultos no

Page 93: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 93/140

 

88

travesso de mato, lá embaio, donde no tardaria em pouco aquele adesembocar* o quinto acobertando-se nas árvores, e os cincerros da guieira doculatreiro a chocalhar-lhe os ouvidos ali adiante, numa nuvem de poeira, de querecebia as $ltimas lufadas.

Na estiagem magnfica da manh, o sol aquentando e vibrando todo o sertonuma aur#ola gloriosa de lu%es, %umbidos e chilreios trilos de insetos nastouceiras orvalhadas e chirriadas adormentadoras de cigarras, plumagensmulticores de pássaros no verde retinto da folhagem e arrulhos cantantes deágua corrente oaquim Percevejo empinava o busto e ficava olhando muitotempo, esquecido, para baio, donde vinha, por ve%es, o reverberamento do sol,dando de chapa no lato de uma bacia, emborcada sobre um cargueiro dosegundo lote.

'o longe, os pe&es bracejavam e sacudiam a taca, achegados 6 retranca doslotes* e nos volteios do caminho, as suas cabeças amarradas em lenço dealcobaça as pontas sarapintadas voltadas para trás passavam como asas deborboletas, adejando num v)o indolente rasteiras ao solo, uma a%ul, outraamarela, outra encarnada, por sobre o verde-pálido indefinvel da campina.Gaiscavam 6s ve%es, num movimento involuntário do pescoço, os metais dascabeçadas de prata* subia a toada contnua dos gui%os e cincerros* e, a perderde vista, a terra estuava e desdobrava-se uniforme, na mesma e epital5micapujança de arrudos e de vida.

oaquim Percevejo ficava olhando, olhando, estribado sobre os loros* e, vendo-se a s/s, no podia que no soltasse o brado de entusiasmo que lhetransbordava do papo t$rgido de peru de roda2

  ta tropa danada!...

aquela eclamativa era a epresso sentimental de toda uma eist4nciasubitamente revelada.

spicaçada por s$bita esporada, a mula descia em dois corcovos bruscos arampa, crepitando, fa%endo 6s árvores e cupins que deiava para trás, empostura de monge ermito, uma carantonha obscena com o rabo erguido.

Pegado o culatreiro, já a sua fisionomia readquirira a sisude% apática decostume. + vo%eiro grosso, descansado, de quem sabe dar o devido peso 6spalavras, interpelava2

  Lh! B) 8uim, como vai seguindo isto por aqui=

Page 94: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 94/140

 

89

  + Passarinho tá danado de veiaco hoje* essoutro dia tanto coçou nos pau quedeitou a carga no atolad). 'gora s/ qu# memo cortá vorta no mato. Dá danado!

  Chega-lhe a taca, home* que isso # falta de carga no lombo. 'manh, bota-lhe

em riba mais um dobro da dianteira e o rosário de ferraduras. "amos ver seainda treta depois pelo caminho...

No lhe dava o ará em respeito 6 hierarquia. Dinham chegado ao c/rrego, no5mago do travesso. +s burros enfurnavam-se pela garganta do ribeiro acima,entre o arvoredo das margens, recusando cada qual beber a água suja do que oprecedera* e os que ficavam para trás, saciados, eperimentando um s$bitoabaiamento de temperatura, abriam as pernas, selavam o ventre, e rabo ao ardejetavam na corrente, naquela satisfaço refestelada de irracionais.

+s dois tinham parado 6 beira do c/rrego. Picando uma rodela de fumo,continuavam a conversa encetada. ' mula do arrieiro, mais fil/sofa, matava alimesmo a sede, num chiado agudo de água passando entre os ferros do freio,at# que o primeiro mijado, a descer em bolhas na torrente, lhe despertasse osmelindres.

  ' modo que a manha de Passarinho # da cangaia nova. ;ec4 deve terassuntado que desde os +livero o bicho no toma jeito.

  8ual cangaia, qual carapuça! ncosta o relho e toca pra diante que # tretaantiga!

  Lh! 4h! Pachola! "entania!... (iacho de bicho brabo!

+ relho estalou e a burrada foi cortando pelo mato adentro, rompendo amarmelada-decachorro, vindo de novo ganhar a estrada cá em cima, na rampa.

oaquim Percevejo correra a espora por sobre a anca da besta, já lá ia adiante,nas pegadas do segundo lote. :a tudo sem novidade. quando, passado umquarto d1hora, alcançara o terceiro, encontrou-o encalacrado numa volta docapoeiro, os burros socados no cerrado e o tocador a arrumar a carga dadianteira que no tomava jeito e ia arrecuando e pisando o espinhaço doanimal a cada nova subida do caminho.

  Doma tento na Det#ia, :%equiel* olha um calço na capota dessa cangaia.

+ outro no respondeu. "endo um cargueiro adiante raspando terra e fa%endomenço de deitar, já lhe correra ao encalço, sacudindo-lhe a taca ao traseiro,

bradando2

Page 95: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 95/140

 

90

  Completo! (iacho de preguiçoso!...

oaquim Percevejo, vendo-o naquela entaladura, apeara, concertava o cargueiroabandonado. como tinha a mo pronta, dera logo jeito aos dobros, passara de

novo o ligal, e arrochava a sobrecarga, mordendo os beiços e metendo o p# 6barriga do burro.

'o longe, no atalho da serra, passava um cavaleiro, alvejando, o co de fila 6cola, lambendo a poeira da estrada com o seu palmo de lngua. oaquimPercevejo apertou a andadura da besta e foi torando mais depressa paraalcançar o patro na encru%ilhada da serra.

o ofcio era aquele, assim, duro, na regra de pobre, como di%ia o arrieiro.

JJJ

'quela tarde a tropa arranchara nas stacas. "olta e meia Percevejo procurou oculatreiro. :mpressionara-o a contradita que tinham tido, na marcha do dia, arespeito do Passarinho. Dopou-o mudando a baeta verde da cangalha do animal,distintivo dos arreios daquele lote, pela encarnada de um burro do dianteiro.

m pouco esquentava a discusso.

  I como lhe digo, rapa%. + Passarinho quer mas # barrigueira acochada acimado branco das costelas e mais uns dobros por riba. Ficho novo, amilhado comovai, treteiro de marca, pede carga de sust5ncia. No devia relaar. untasseaos dobros o amarrado de ferraduras.

+ outro fe%-lhe ver os suadouros da cangalha, que surrara a cacete. (uasgrandes pisaduras, asas agoureiras de borboleta, maculavam o acolchoado naaltura da cru%.

Nem isto o demoveu. mpirraçado já, recusou-se mesmo a ir verificar nasestacas, o lombo do animal, e palpar-lhe o sentido.

Como seu 8uim continuasse recalcitrante na destroca dos arreios, bufouregurgitado2

  Du 1stás a, ainda me cheiras a ovo, menino! Nunca se lhe fi%era algu#mintrometidiço no ofcio, nem mesmo no tempo do defunto compadre3ominhos. Gi%esse o que ordenara, seno...

  Dá bo! tá bo!

Page 96: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 96/140

 

91

+ 8uim encolheu-se logo humilde. Como todo moço tropeiro, tinha um respeitobem-educado pela barbaça grisalha do outro. ;as o patro gritava da barracapelo arrieiro.

'li na intimidade das paredes de lona, chamou-o 6 ordem. No o contrariara 6vista dos outros, a fim de evitar o seu desprestgio entre a camaradagem. ;asno tinha andado direito. 'ssim como queria, o burro ficava inutili%ado. +Passarinho carecia era de cangalha bem assentada, mais larga. 'quela ia-lhemal* o culatreiro conhecia bem o seu lote, deiasse-o 6 vontade.

oaquim Percevejo espetou os dedos no barbalho hirsuto* ajuntou o p4lo todonum puo, amarfanhou tudo, fechou-o dentro da boca. ;astigounervosamente, cuspiu a barba em leque e pediu a sua conta.

+ coronel Pedrinho, já impacientado, abriu as canastras, somou as cifras,passou-lhe o papel.

+ arrieiro era bem analfabeto* sabia por#m, com etraordinária mem/ria, tintimpor tintim, quanto devia ao justo tr4s contos, seiscentos e oitenta mil-r#is. +elevado da import5ncia era o insofismável penhor da estima e confiança em queera tido. No serto,camarada relapso no acresce dvida.

'rreou a sua mula, dispensou a janta, avisou que estaria de volta ainda naquelanoite. :a entender-se com o seu :vo, mal-encarado coronel, afa%endado nessasalturas. Conforme combinassem, talve% se desquitava aquele dia mesmo.

  "ai comendo brasa disse o co%inheiro vendo-o chegar ao mesmo temporelho e espora ao animal.

  No # p1ra menos retorquiu :%equiel* qu1est$rdia, um pito no arrieiro!

temperado o pinho, repisou uma quadrinha predileta de Percevejo2

0uatro cousas neste mundo  Arrenega um bom cristão1 2ma casa goteirenta, 2m cavalo bem c"outão, 2ma mui rabugenta Mais um menino c"orão... 

no achou ali ao p# o arrieiro para dar, triunfante, a resposta na letra2

Mas agora ven"o a crer  

Page 97: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 97/140

 

92

0ue pra tudo 3eus d% 4eito5 + cavalo se bargan"a,  A casa a gente reteia, 3o guri se tira a man"a, 

Na mui se mete a peia& 

+ coronel :vo era um famana% temido nas redonde%as. Fraço direito doschef&es estaduais, ferrador de burros e antigo tropeiro como o maioral deles,quando ia 6 cidade, os babaquaras da terra interrompiam a palestra e safavam-se pelos cantos, ao assomar na esquina o seu vulto apessoado de anta brava.

UNo sorriam os leitores* # hist/rico e atual. # at# possvel que quem escreveestas linhas fi%esse o mesmo... 8ualquer dia v4-lo-emos deputado federal pelostado.V

Damb#m, as suas façanhas contavam-se pelos anos de vida* e, entre asmenores, registrava-se o castramento por suas mos de um pobre pancada em3oiabeiras, o estoiro de outro de quem suspeitara meter-se-lhe a engraçadocom a mulher, em Curralinho, 6 força de infus&es de malagueta e salmouradeitadas goelas abaio, por interm#dio de um funil...

Naquela sua fa%enda nos arredores das stacas, quarenta agregados eacostados enchiam-lhe as casas, pelo menos. + stio era um arsenal, centro das

marombas politiqueiras do municpio. Camarada que para ali fugisse, se era dagente da oposiço, tinha coito e segura garantia.

+ coronel Pedrinho era neutro. Caráter altivo e reto por#m, ofendia as fumaçasdo mandachuva com o seu todo independente e sobranceiro.

Dinha-lhe o outro este /dio secreto e instintivo de todas as criaturas inferiores eautoritárias para com os que no possussem um mesmo esprito de rebanho.3o%oso, aproveitou a oportunidade para uma das suas pirraças. Babia Percevejovisceralmente honesto. ngambelou portanto o pobre homem,comprometendo-se a solver a dvida no dia seguinte.

Pois sim, pois sim* o Meca ;enino, seu capata%, era uma cabeça avoada.;alquistara-o com o administrador do porto de ;o de Pau, um velhocorreligionário, na passagem das $ltimas boiadas que por conta pr/priamandara 6s feiras de ;inas. (emais, um perdido de mulheres... stavaprecisando mesmo de um homem de confiança como Percevejo.

ste voltou inchado ao pouso da tropa. Ge% os seus arranjos, e ao levantar do sol

tornava de novo para a fa%enda.

Page 98: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 98/140

 

93

+ patro mandou soltar a tropa no encosto, e esperou-o o dia todo na rede,puando as espiras a%uis de seu goiano. (oera-lhe despedir o arrieiro. Damb#m,no admitia controv#rsias. Como todo chefe sertanejo, era fundamentalmenteautoritário. ;as at# a, feli%mente, nunca tivera a%o de manifestar a sua energia.

Percevejo tra%ia a tropa num brinco, e ali estava desde os velhos tempos dopadrasto 3ominhos. stimava-o. No transigiria, por#m.

+ crep$sculo veio com a monotonia dos grilos e sapos nas varjotas. Dons r/seos,eslaivados, erraram, passaram fugidios sobre as franças das $ltimas cristas da(ourada, al#m. ' noite entrou fechada, sem transiço, e derramou-se no c#u aprata das estrelas.

'rrastaram-se as violas no pouso at# 6s de%. (epois tudo fe% sil4ncio e oarranchamento dormiu embalado 6 dist5ncia pelo polaco das madrinhas de

lote.

+ coronel Pedrinho esperava encontrar Percevejo pela manh, ao sair dabarraca. No contava, por#m, com a lábia do fa%endeiro.

Bervido o almoço, atrelada a tropa, acangalhada e alerta nos aprestos de sada,e Percevejo no aparecia com o dinheiro.

Pelo beirar das on%e o c#u embruscou-se, soprou um vento quente, grossospingos começaram a cair, prenunciando chuvarada.

No se conteve mais, mandou enfrear a ruana. + rebenque metido no cano dabota, foi 6 boca do mato, abriu o viva-3oiás, ali tirou uma comprida econsistente embira de timb/. Ge% uma rodilha, amarrou-a na garupa e enfiava op# no estribo, quando o dianteiro correu do interior, bradando2

  +lhe, patro, olhe que esqueceu o rev/lver mais a cartucheira!

  No # preciso, levo ainda o meu canivete.

Ká na fa%enda, Percevejo conversava, sobre os calcanhares, num canto docurral. + coronel havia-lhe dito2

  Babe que mais= No está nos meus hábitos pagar contas a desafetos. (ou-lhea minha proteço, # suficiente. Ningu#m o tirará daqui. (eie-se por a ficar,no há de ser o seu patro que mande chover por outra forma.

sorria pachorrento, nas suas en$ndias de homen%arro, afagando os queiaisde prognata, a olhar significativamente os rapa%es em torno.

Page 99: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 99/140

 

94

Goi quando o Pedrinho estancou a mula na cerca. "iu Percevejo acocorado nomeio da roda, riscando o cho molhado com a roseta de sua enorme franqueira.Doda aquela gente ali reunida era um cabide de armas. ao local chegava mais

um grupo, o cano das clavinas aparecendo de sob as fraldas das carochas deindaiá.

Nem pestanejou.

  Percevejo, a tropa está há quatro horas de sada, e no quero saber de maistardança. 'via essa conta ou volta para o pouso. No posso falhar mais este dia!

  9um! hum! á aqui estou, por aqui me vou deiando... ' conta será quandoseu :vo quiser...

+ moço tropeiro no trepidou.

Fateu violentamente a cancela, entrou montado no terreiro, saltou da sela* e, acorda na mo, caminhou direito sobre Percevejo.

Nem um $nico olhar lançara ao fa%endeiro. Pegou o arrieiro pela barba, atou-anum ápice, em n/-de-porco, 6 embira* prendeu a ponta desta ao rabo da mula eachou-se montado de novo.

+ coronel encarava-o aparvalhado, os olhos ramelentos, rindo constrangido.Nem um gesto sequer. ningu#m se movera naquele rápido segundo. +lhavam,estarrecidos.

"iram-no ferrar esporas, a besta arrancar num trote largo. , ao primeiro puo,Percevejo se pusera tamb#m a trotar atrás, desesperadamente. Bumiram-se naquebra do cerrado. nenhum tiro se ouviu.

Paralisara-os a todos tamanha audácia!

foi assim, empastado de suor, lama e aguaceiro, deitando os bofes pela boca,roo de vergonha, que Percevejo fe% a sua entrada nas stacas.

Cortou-lhe a corda o patro. num gesto en#rgico despediu-o2

  "ai-te, perrengue! 7m homem que se deia amarrar pela barba, no #homem, no # homem! "ai-te, no me deves mais nada!

no se ouviu mais ali palavra a respeito.

Page 100: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 100/140

 

95

;as 6 noite, ponteando na viola, satiri%ou num repente o co%inheiro2

0uatro cousas neste mundo  Arrenega o arrieiro1 

 A man"a do Passarin"o,  A teima do culatreiro, 2ma conta a liuidar  * costas de fa(endeiro... 

:%equiel saltou como um boneco de mola, noutro improviso2

Mas agora ven"o a crer  0ue pra tudo 3eus d% 4eito1 6% no mato tem timb7 

0ue se tira sem o len"o, 0ue se passa no gog7  8 maneira de seden"o& 

No dia seguinte, aproveitando a estiagem da manh, a tropa toda arribou dasstacas e desfilou unida ao longo das tranqueiras do :vo, sob as vistas deerome, elevado 6 categoria de arrieiro.

+s gui%os carrilhonavam em conjunto no bulcio matutino. +s pe&es, 6

passagem, fa%iam estalar indolentemente a lonca de seus compridos piras. ;asiam todos precavidos e tra%iam 6 bandoleira os rifles de estimaço.

8uanto a Percevejo, convenceu-se tanto o pobre-diabo do que lhe dissera opatro, que derrubou a grenha e passou da em diante a usar a barba raspada 6navalha.

Page 101: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 101/140

 

96

O SACI 

Por aquele tempo o saci andava desesperado. Dinham-lhe surrupiado a cabaçade mandinga. + moleque, etremamente irritado, vagueava pelos fund&es de

3oiás.

Pai M#, saindo um dia 6 cata dumas ra%es de mandioca castela que sinhá-donalhe pedira, topou com ele nos grot&es da roça.

+ preto, abandonando a enada e de queio cado, olhava pasmado o negrinhoque lhe fa%ia caretas e trejeitos, a saltar no seu $nico p#, e fungandoterrivelmente.

  "anc4 quer alguma coisa= perguntou pai M# admirado, vendo agora omoleque rodopiar como o pio do ioi).

  +lha negro respondeu o saci, vanc4 gosta de sá 8uirina, aquela mulata desust5ncia* pois eu lhe dou a mandinga com que ela há de ficar enrabichada, sevanc4 me arranja a cabaça que perdi.

Pai M#, louco de contentamento, prometeu. ' cabaça, ele sabia-o, fora amoitadapelo Fenedito 3alego, um caboclo sacudido que, cansado das malandrices domoleque, a tinha roubado das grimpas do jatobá grande, lá nas roças doribeiro.

Pai M# fora um dos que o tinham aconselhado, para obstar que o saci, como erao seu costume quando incomodado, tornasse a levantar as árvores daderrubada que o Fenedito fi%era nessas terras.

'rrastando as alpercatas de couro cru pelas terras de s) feitor, pai M# capengavasatisfeito e inchado com a promessa do saci.

(esde Banto 'nt)nio que ele rondava sá 8uirina, procurando sempre ocasiode lhe mostrar que, apesar dos seus sessenta e cinco anos e meio, um olho demenos e falta de dente na boca, no era negro para se despre%ar assim por umcanto, no que sust5ncia ainda ele tinha no peito para agentar com a mulatae mais a troua de sá 8uit#ria, sua mulher, se ele tinha!

;as a cafu%a era dura da gente convencer. Doda a eloq4ncia que elepenosamente engendrara em seu bestunto de africano e que lhe tinhadespejado pela festa de Bo Pedro, no teve outro resultado seno a fuga da

roa quando o encontrava.

Page 102: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 102/140

 

97

  ;as agora gaguejava o preto eu lhe amostro, que o saci # mesmo bichobom pra deitar um feitiço.

Com a rica dádiva dum quartilho de cachaça e meia mo do seu fumo piuá, pai

M# alcançou do 3alego a cabaça desejada.

Bá 8uit#ria, por#m, no via com bons olhos o af de seu velho pela posse damilonga. ela tamb#m sabia deitar e tirar quebranto, se sabia! Perguntassem 6brua da nhá Fenta, que desde v#speras de Heis estava entrevada na trempe do jirau* e no era o %arolho e cambaio do seu homem que a enganasse.

Por isso, a velha ciumenta estava de tocaia, desejosa por saber do seu intento.Ká ia pai M#, arrastando novamente as alpercatas de couro cru pelas terras de s)feitor, 6 entrevista do saci. 'trás dele, sorrateira, lá ia tamb#m sá 8uit#ria.

+ negro chegou aos grot&es e chamou pelo saci, que de pronto apareceu.

  Doma lá a sua cabaça de mandinga, seu saci, e dá-me cá o feitiço pra sá8uirina.

+ moleque desbarretou-se, tirou uma pitada grossa da cumbuca, fungou, e,entregando o resto a pai M#, disse2

  (á-lhe a cheirar esta pitada, que a crioula # sua escrava.

desapareceu, fungando, pulando no seu $nico p#, nos grot&es e covoadas daroça.

  'h, negro velho dos infernos, que conheci a tua tram/ia gritou sá 8uit#riafuriosa, saindo do bamburral e segurando-o pelo papo.

, na luta do casal, lá se foi o feitiço que o pobre pai M# adquirira com o sacrifciodum quartilho de cachaça e a meia mo do seu bom fumo piuá.

(esde ento, nunca mais houve pa% no casal, que se devorava 6s pancadas* epai M# arrenegava sem descanso o maldito que introdu%ira a disc/rdia no seurancho.

  Porque, :oi) concluiu o preto velho que me contava esta hist/ria a todoaquele que viu e falou com o saci, acontece sempre uma desgraça.

Goi%s 9 :;:< 

Page 103: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 103/140

Page 104: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 104/140

 

99

, enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testaduma cru%, aparecia 6 aberta do cupin%eiro, fitando-lhe, persistentes, osolhinhos redondos, onde uma chispa má lu%ia, malignamente...

+ matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.

ra uma urutu, a terrvel urutu do serto, para a qual a me%inha dom#stica nema dos campos possuam salvaço.

Perdido... completamente perdido...

+ r#ptil, mostrando a lngua bfida, chispando as pupilas em c/lera, a fitá-loameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-loda sesta* e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da

bainha o largo jacar# inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.

nto, sem vacilar, num movimento ainda mais brusco, apoiando a mo molesta6 casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase 6 juntura dopulso.

enrolando o punho mutilado na camisola de algodo, que foi rasgando entredentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa,como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas

assassina, mas perfidamente traiçoeira...

:;:= 

Page 105: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 105/140

 

100

O POLDRO PICAÇO  A >l%udio ?. Ganns

's vaquejadas estavam a terminar. No curral da fa%enda apressava-se a ferra

duma $ltima partida de be%errotes tra%idos da Foca da ;ata, gado espantadiçoe artificioso, que tanta atrapalhaço dera aos campeiros para reunir e tra%erarrebanhado 6 porteira. (e envolta, vieram tamb#m daquelas bandas unspoldros card&es, sangue a%ougado, crescidos 6s soltas por ali mesmo, emfurados de papu e jaraguá, 6 lei da nature%a.

Como a neta do patro se encantasse da estampa escorreita dum pingo picaço,estrelo de testa e olho em brasa que s/ fi%era at# ento fitar orelhas e coçar-se aos varais do cercado ao mnimo rumor estranho patro interpelou-me2

  E 'nt)nio, olha que a 3uiomar se engraçou do picaço* vamos ver se mo p&esmanso como um sendeiro velho, para o silho da menina.

  + patro mandando, hoje mesmo tiro as tretas do bicho.

  I o que quero ver.

u era nesse tempo o peo mais afiançado da fa%enda. Nas redonde%as destes3uaiais e o meu companheiro fe% um gesto largo, abarcando c#u e terras coma mo no havia quem fosse mais maneiro de juntas e seguro nos arreios, queeste seu criado. No # por querer gabar, mas no lombo dum malcriado, estribosbem justos, o que prometia, fa%ia mesmo!

'inda duma feita, quando o patro andava ajuntando nas invernadas umastropas que fomos depois vender ao ;ato 3rosso, muita gente pasmou para astropelias puadas 6 sust5ncia que fui cometendo com quanto burro brabo eredomo aparecia nos lotes.

  Criaço da Foca da ;ata tem fama, no # caçoada avisou um vaqueiro velhoeperimentado. Be no fi%er finca-p# nos loros e presso dos joelhos, está porterra, to certo como esse sol que nos alumia.

  No meta medo ao rapa%, tio Pedro chacoteou outro peo do stio, o;ateus* e riu, sustentado na galhofa por um cabra arribadiço, bela peitaça, quetamb#m tra%ia fama de montador, segundo ouvira di%er, lá dos sert&es dondeviera.

  Lh, gente! defendeu algu#m. Danto foguet/rio e pabulagem para aquelepicaço* o 'nt)nio # cabra matreiro, aposto o meu ponche-pala contra a tua

Page 106: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 106/140

 

101

franqueira, ;ateus, como em menos duma hora o poldro # matungo de longaserventia.

No conversei. 'mofinava minhas prosápias de montador aquela pacholice da

camaradagem. Kevantei-me da roda em que estava, no puado dos be%erros*passei a perna por cima da cerca e endireitei para o paiol de milho, onde tinhaos arreios. + dia começava a esfriar, a sombra das gameleiras alongava noterreiro.

Kogo no princpio, deu pancas o animal para deitar-lhe em riba os baieiros dacutuca. Com uma laçada mestra, amarrei-o 6 argola do moiro* mesmo assim,preciso foi uma faia escura na vista, peia de pernas e torniquete nas orelhas,bem torcido pelo cabra da peitaça, para que conseguisse apertar a barrigueira eabotoar freio de barbicacho sobre o p4lo virgem do danado.

le ia aceitando os arreios desconfiado, a fugir de corpo, sonegando,tremelicante a beiçama, a mostrar uma dentuça mui alva de dous anos e meio,contido nos jarretes e a mo de ferro de todo o pessoal interessado naquelefeito.

8uando ia a trepar, chilenas bem arrochadas no calcanhar e perneiras comguarda-peito para livrar das garrancheiras e espinhedo por onde o acasolevasse, senti, ve% primeira no arriscado ofcio, um estremeço desagradável

pelo fio das costas e o coraço bacorejando. No duvidei, por#m, em afastar opessoal, afrouar os atilhos, bambear a laçada.

'o momento que o picaço hesitava ainda ante a s$bita claridade que se fi%era,botei-me acima da cutuca.

'h, meu patro! B/ tive tempo de gritar2

  'bram a porteira!

+ endemoninhado recuava sobre os cascos, refugando, encolhendo a lombeira,como que a eperimentar, admirado, o estorvo que tra%ia por cima. B$bitoarremeteu.

Nem tempo tiveram de tirar os $ltimos paus. Passou por cima da porteira numsalto breve, nervoso, ganhou o campo aberto, e espalhou.

8ue bicho, meu menino! Bete ve%es fui ao c#u e sete desci 6s profundas dosinfernos! ;as agentei firme. Cabriolou aos pinotes, no estrado* andou de

banda, por instantes, arreliado, procurando morder* atirou dous pares de

Page 107: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 107/140

 

102

couces para o ar, e como se fosse s/ ento principiar, disparou noutroarremesso.

ngolimos num trago aquele cho.

No valado das divisas, a dist5ncia era respeitada* e ele, sem detença, precipitou-se num arranco. Cuidei ficar daquela feita no fundo do barranco, estivemesmo, vai no vai, por abandonar as estribeiras. 3anhamos o outro lado.'travessamos num relance o sarobal que lá havia e ensaiei, atendo-me aogoverno, encaminhá-lo para o pontilho e voltar ao terreiro, onde todo omundo andava atarantado.

;ais por inclinaço pr/pria, que obedecendo 6s r#deas, ele desembestou por alie veio num fechar d1olhos, aos pulos e aos trancos, jogando de popa, esbarrar

ao p# das cercas, pinoteando.

No lhe conto nada, meu patro, o certo # que no sei por que artes e manhasdo tinhoso, quando supunha já ser ocasio de sujigá-lo nas esporas e tacadas derabo-de-tatu aplicadas a preceito, o malvado, num solavanco, empinando sobreas patas traseiras, acachapou-se no terreiro, sacudindo-me com viol4ncia dolombo.

'gentaria firme ainda, no fora a traiço da barrigueira e sobrechincha, que

arrebentaram no esforço...

' sela fugiu sob os joelhos, perdi a firme%a e pareceu-me que mergulhava deponta numas ra%es da gameleira que assombreava o terreno.

8uando dei acordo, estava estirado no banco da varanda, sobre o joelho damenina, que me banhava a cabeça num lenço ensopado, todo besuntado dasangueira que me saa duma brecha funda do cocuruto, esta mesma cicatri% quea v4...

UDirou fora o chapelo de feltro, d1abas largas, acampado 6 banda pela presilhadum boto, desengonçou-se no arço do selim, e, afastando o cabelo corredio,apontou.V

+ sangue estancado, ela atou-me o lenço 6 ferida, embebeu-o de bálsamo eesteve muito tempo a olhar, compadecida...

;ais tarde, quando quis restituir aquele pedacinho rendado de batista quetra%ia um 3 arabescado to perfeito, bordadura de seus dedos, recusou.

Drago-o aqui desde ento, sobre o peito, bem dobradinho, como um breve.

Page 108: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 108/140

 

103

'mofinado, abandonei aquele ofcio de peo, trocando-o por este de condutor,mais pacfico e sossegado, como me convinha. Damb#m, desde o acontecido,senti-me mal, umas tonturas, turvaço na vista, sei lá... + certo # que, sarado,

nunca mais tornei 6 fa%enda.

7ma ve%, viajando, quis queimar essa prenda. stive muito tempo a olhar,meneando, indeciso, mas no tive coragem. 8ue fa%er, cousas do coraço...

como visse, na encosta da vár%ea por onde trilhávamos agora, uns coqueirosde indaiá em cujas palmas salmodiavam, 6quela hora do entardecer, as inhumasdo serto, improvisou alto, alheado2

Passo@!preto cantador  

0ue canta no buriti, ai di(er ao meu amor  0ue de pesares parti... 

' noite ia avolumando do fundo das baiadas. + crescente transmontava, muitobranco, alagando os escampados de sua grande lu% merenc/ria.

  o poldro picaço=

  No dia seguinte, tentou tamb#m o cabra da peitaça quebrar-lhe as tretas, noobstante a proibiço da patroa, que no queria ver mais sangueiras em casa* foimais caipora, na força do tombo ficou com o braço na tip/ia, partido em doislugares. + ;ateus desistiu por sua ve% da eperi4ncia. Damb#m o bicho, atidopreso, desandou de emagrecer, rejeitando a raço. Doparam-no uma daquelasmanhs arrebentado no curral, onde lhe andavam a curar com salmoura aesporeaço do va%io.

  ' patroa%inha...

  ssa, creio, andou uns tempos entristecida com o sucedido* casou, segundoouvi, há cousa de ano e meio, com um moço da vi%inhança.

U'cendeu o cigarro, desengonçou-se de novo no selim, e at# o pouso pr/imono lhe arranquei mais uma $nica palavra.V

:;: 

Page 109: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 109/140

 

104

À BEIRA DO POUSO  A M%rio de Alencar  

Contavam casos. 9ist/rias deslembradas do serto, que aquela lua acin%entada

e friorenta de inverno, envolta em brumas, lá do c#u triste e carregado,insuflava perfeita verossimilhança e vida animada.

Pela maioria, contos l$gubres e sanguinolentos, eivados de superstiç&es eterrores, passados sob o claro embaçado daquela mesma lua acin%entada efriorenta de inverno, no seio asp#rrimo das solid&es goianas.

'cocorados 6 sertaneja sob a copa desfolhada do pouso um jatobá gigantesco  aquentavam fogo, a petiscar baforadas grossas dos cigarr&es de palha,

ouvidos atentos ao narrador.

' cangalhada, vermelha 6 lu% da fogueira e rebuçada em ligais, amontoava-seem forma de toca ao p# da árvore, resguardando o carregamento, e, nanecessidade, dado o mau tempo, todo o pessoal. 7ma neblina leve e hibernal,esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, embuçava ao fundo a campina,onde cincerros de tropa badalavam intermitentes.

, sob aquele c#u frio e austral de maio, estiolava-se ressequida a vegetaçotenra e rasteira dos campos goianos.

+ arrieiro, mestiço traquejado e serviçal, na sua vo% grossa e arrastada decuiabano, arrematava o final dum conto de lobisome.

+ sil4ncio pesado restabelecera-se debaio da impresso sinistra daquelanarrativa* e o 'leio um cabur# truculento amigo da boa pinga efreqentemente mudando de patro pelo seu g4nio teimoso e arreliado, puando para si o cuit# fumegante de congonha e chupitando uma golada,começou ento assim2

  Naquele tempo viajava eu escoteiro, no meu jaguan# de fama, por estasestradas da minha terra* isso, noito cerrado e v#speras da Paio. ;anh%inha,(eus servido, devia bater em Banta Hita pra neg/cio de preciso e a lua s/ pelamadrugada despontaria. ;archava apressado, tendo a cortar todo um estirode oito l#guas bem puadas para alcançar o arraial. "ai seno, ali nas alturas doFugre, ouço passos cadenciados 6 minha frente. +lhei, o lugar era ensombrado,o caminho muito estreito e solapado no tinha desvio* e, como lhes di%ia, nohavia luar. 'ssim na sombra, assemelhou-se-me a dois homens baios,

condu%indo qualquer cousa, a modo de troua, num varo.

Page 110: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 110/140

 

105

O Naturalmente soldados em dilig4ncia para Banta Keopoldina , calculei. Numclaro de mato, achegando o animal, vi perfeitamente2 eram dois negrosacurvados, num andar ora lento, ora apressado, que levavam ao ombro umarede de defunto. Cravei as esporas no meu bicho pra ganhar a dianteira que

eu no arreceio um cabra de maus fgados, mas tenho uma ojeri%a dos diabos atudo que me cheira defunto* e isso, desde aquela estopada onde o Policarpo viuque um jacar# no sai 6 toa da bainha e que eu, apesar de simples camarada,no guardo desfeita para depois. + bicho fiel certamente estranhou as rosetas,tanto que meteu num trote bruto de p)r tripas pela boca afora do peo maisdesabusado. +s pretos ecomungados, sacolejando a rede, começaram a trotarlá adiante.

O +lá gritei. Param voc4s a com o defunto e abram-me passagem. +scarregadores nem pio, antes continuaram, arremedando, a correr duro,

vergados sob o varo, cabisbaios e macamb$%ios. 'chei esquisito. oguei o jaguan# a galope2 galoparam tamb#m, ganhando dist5ncia, a desaparecer nosombreado espesso das árvores. 8ual, isso # ainda efeito da beijoca que dei aliatrás ao frasco de cachaça, ia pensando. Noutro claro, por#m, lá tornei aenergar os dois pretos condutores, arqueados e silenciosos debaio da cargamaldita. :am depressa, tanto como o meu punga. + carreiro apertava,aprofundando-se* no tinha por onde atalhar. (emais, um travo de %anga subia-me 6 garganta.

O u lhes amostrarei, canalhas* esto caçoando comigo, seus b4bados, poisesperam a. "arei o meu bicho nas chilenas e ele disparou 6 toda, que oterreno era um seu tico movediço, mas o animal, apesar de cansado, era defiança.

  pegou-os=

  8ual o qu4, seu M#* os dem)nios abriram numa carreira de curupira, a fa%ermais estr#pito que o casco do meu bicho! 'ssim andamos bom pedaço, ocarreiro mais estreito e solapado, o arvoredo mais fechado e carrancudo, o stiomais escuro. 'final, no ganhava nem perdia, e o pingo a resfolegar já bambo.Bofreei a marcha. +s pretos, bufando alto debaio da carga, regularam logo asua andadura pela minha. Pus o sendeiro a passo2 eles, do mesmo modo,pausados, em cad4ncia, recomeçaram o movimento primitivo, a passo,desocupados. (ecididamente esquisito, mesmo muito esquisito. Parei o pingo.+s pretos, imitando, pararam. Giquei ali im/vel longo tempo, os olhos nelesgrudados, sem tino, enquanto que o minguante principiava a tingir de açafro acopa folhuda das árvores, e lentamente ia abaiando a sua lu% amarelada sobreo carreiro. 'coroçoado, reencetei a marcha* eles fi%eram o mesmo, e assim

continuamos por mais de hora, eu calado, apertando nos dedos o caboencerado do jacar#, eles arcados, pausados, o fardo ao ombro, em cad4ncia de

Page 111: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 111/140

 

106

soldados. (e supeto desfiava eu o creio-em-deus-padre de trás para diantemais uma ve% o carreiro desembocou num campo largo, coalhado de luar. 'lua deu de chapa nos dous carregadores. 'divinham, se podem, o que vi ento,todo apalermado, assombrado mesmo.

  + cuca aventurou tmido um.

  8ual! 7ma vaca.

perante o assombro descomedido daquelas feiç&es r$sticas e encardidas desol, o 'leio arrematou com pachorra2

  Pois isso mesmo, os dois pretos arcados, eram seus quartos escuros e a redede defunto, a barriga malhada. Como o carreiro era fundo e apertado, ela no

tivera por onde torcer* o escuro, a solido daqueles lugares e pra tudo di%er o medo, fi%eram o resto.

' companhia respirava aliviada.

+ plenil$nio acin%entado e friorento de inverno, envolto em brumas, lá do c#utriste e carregado, insuflava vida e animaço 6s personagens fantasmag/ricasdaquelas hist/rias primitivas.

Cincerros badalavam intermitentes e sonoros na campina ao fundo, onde aneblina hibernal do serto, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, abafavao hori%onte.

Gumegando, a chocolateira fuliginosa e aromati%ada de congonha passou demo em mo, transbordando os cuit#s.

' fogueira em brasa tremelu%ia.

7m outro tomou a palavra.

 $aneiro 9 :;: 

Page 112: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 112/140

 

107

ALMA DAS AVES 

9avia na fa%enda uma regular criaço de galinhas. Certo que no abundavam asraridades. "iam-se algumas representantes da brama e cochinchina, louras

como gema d1ovo* carij/s, garnis#s, arrepiadas, de forma e feitio de penasarrevesado e raro. Dudo, por#m, sem m#todo de seleço, entrecru%ando-se coma raça corriqueira da terra abundantssima, onde cores e caractersticos sebaralhavam na mais inetrincável promiscuidade.

;as legtimas, descendentes daquela que tanto pavor causara ao ndio de "a%Caminha, podiam-se contar 6s d$%ias, sobressaindo desde a boa nanicachocadeira, at# 6s agourentas pescoço-pelado, aliás de mui ecelentesqualidades poedeiras.

No terreiro argiloso e duro, mui vasto, que se entranhava a princpio numvassoural rasteiro, depois mais al#m no cerrado, e por fim onde acabava omato sujo e começavam os morrotes embalsamados de mangabeira e murici,andavam elas desde o dealbar ciscando e esgravatando, ou a enfartar-se de jenipapos esborrachados pelo cho, quando no era disputada a fruta pelosbácoros soltos, grunhidores que mesmo alta noite, escutando-lhe a quedabalofa sobre o solo, saam de suas camas de palha e cisco ao p# das cercas evinham, bufando e farejando, manducar naquela ceia que de momento amomento lhes mandava a aragem.

aos bufos da leitoada, era um cacarejar alerta e impaciente 6 hora matinal,bater d1asas, corridas aqui sobre esta manga meio roda de periquitos quedespencara, a fuga ali da que, desentranhando gorda minhoca, se fora numcacarejamento de triunfo, a degluti-la noutro canto, perseguida das demais* etal o rudo que, certo, se no fi%esse a roça a todos madrugadores, se se noacostumara antes o ouvido ao mugir do gado desde as tr4s da manh, seriamaquelas umas f#rias mui pouco invejáveis de passar para gente dorminhoca.

(4s, por#m, que a caseira surgia no limiar, achegando 6 peitada bamba duaspontas de saia, um palmo de morim da de baio, encardido e sujo, colando 6scanelas lu%idias de qinquagenária e um psiu asmático, 6 direita, 6 esquerda,se lhe flua da beiçada murcha no se poderia ao certo di%er do alvoroçohavido naquele pequeno mundo, as correrias que do amplo permetro do pátioconvergiam como varetas dum leque ou raios de semicrculo ao centromagn#tico, o açodamento c)mico das retardatárias emergindo de touças quepareciam antes desertas, as que dentro do quintal escarafunchavam a rai% daslaranjeiras transpondo c#leres as cercas num surto em arco, e mesmo, o

estoufraquear das cocás, ou o gluglu dos patos vora%es acudindo da represa.

Page 113: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 113/140

 

108

eram punhadas sábias para um lado, para o outro, de gros saltitados, rápidoestrelando o solo com o seu brilho alegre de ouro novo, mais depressasubvertendo-se naquela multido de mendigos, cada qual apostado em ecedero vi%inho em gula e sol#rcia* o cuidado da mulher em ter uns dos outros

afastados os galos de rinha, de aculeado esporo, ciosos e espancadores* edepois, tufada a paparia fulva, o pedinchar de quem ainda atende e a suadisperso final a custo resolvida pelo cerrado dos arredores.

'lgumas lá pelo mato se deiavam ficar semanas a fio, ou eriçadas e chocasfa%iam de quando em ve% rápidas escapadas em que vinham passear pelo pátioa sua turra de enfastiadas.

quando, dias longos amoitadas, apareciam de novo, era puando fieirasintermináveis de pintainhos, onde da a meses faria mo baia o caseiro,

enchendo capoeiras que ia levar ao mercado da cidade.

nto, pelo dia andante, uma quietude monástica, em que o sol tudoamolentava e aquecia naquele seu mormaço de de%embro, vinha mata abaio,na bafagem do rio, cousas e entes amodorrando. Ká embaio, na praia, a eternaofuscaço de mil chispas de fa$lhas, cambiando os seus fogos num ondularcrepitante de mica e saibro descaldado. Cachimbando, batiam roupa aslavadeiras do stio. á de há muito desleitadas, vacas e be%erros pastavam,apartados, no mangueiro. a antiga casa sertaneja, erigida a sopapos, ficava

assim, dentre o verde ramalhudo dos cercados de pinho e fruteiras doquintalejo, como um velho ti$ dormido 6 beira da estrada, no cicio acalentantedas cigarras.

JJJ

+ra, uma tarde, ap/s um dia cheio de caçadas e pescaria, abertas as tarrafas aenugar no terreiro, tomávamos a fresca 6 soleira* e longe, pelas bandas doocaso, bulc&es de nuvens ocorriam, lentas, acolchoando sobre os cerros, para aencenaço costumeira do anoitecer. o sil4ncio que em torno se fa%ia foi des$bito cortado, dum modo estranho e grotesco, pelo grito dum volátil numa dastouceiras em frente 6 estrada. + caseiro, que no momento eaminava os sacosduma nossa rede, onde as matrinchs tinham feito esse dia largo rombo, volveuo ouvido eperimentado, olhou-nos com intelig4ncia, sondando depois os arescuidadosamente.

  'lgum gavio= indagou a mulher.

;as no. No havia ali por perto ninhada fresca de pintainhos, al#m de que o

c#u, parado e lmpido, nenhum indcio d1asas do plumátil rapace assinalava quelevasse em roda alarma 6 criaço.

Page 114: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 114/140

 

109

ntanto, fe%-se logo ouvir, insistente, o cacarejo no vassouredo. Para lá nosfomos todos curiosos.

;in$scula trag#dia, espetáculo etraordinário e grandioso aquele, em suaestranha singele%a!

No aceiro, uma ninhada d1ovos em v#spera de abrir. Bobre ela, armada para obote, uma cascavel batia enfurecida o chocalho. ;ais terrvel por#m era oaspecto ouriçado duma galinha da terra, o papo pelado já, gotejando pelossucessivos arremessos. Numa de suas breves sortidas 6 cata de que entreteruma fome de semanas, topara de retorno com aquela intrusa sobre a suapostura t#pida, ali teimando em permanecer, malgrado o alarde com que nosatrara a n/s, e as her/icas e reiteradas arremetidas com que procurava, em

vo, enotá-la.

Gicamos ali parados, a olhar perpleos.

' ave, nuns pulos bruscos, bi%arros, de batráquio em f$ria, acossava de perto or#ptil aos esporeios e bicadas. ste, a cada novo assomo, mordia-a desapiedado,chocalhando incessantemente. (e novo, voltava 6 riça o animal, arremetendocorajosamente de unhas e bicos. Novamente sibilava a cobra, ferindo-o,injetando-lhe o pescoço, as asas, o peito incidente e agudo, da mortal peçonha.

o nosso pasmo era tal, que ainda assim permaneceramos, a ver em que davaa singular briga, se o caseiro, pondo termo 6 luta desigual, no arrancasse umaestaca, abatendo a cascavel em duas certeiras pauladas.

Kanhosa e escamada, ficou-se ela por ali a enrodilhar, enquanto lheesmagávamos a cabeça. 'rrastada para o terreiro, medimo-la com cuidado,achando-se seis palmos e tanto de comprimento, fora a cauda, cujo cr/talo di%iaoito anos de idade.

"oltamos depressa 6 ave.

(eitada sobre o ninho, dormia já, mais negra que o carvo.

Page 115: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 115/140

 

110

CAÇANDO PERDIZES 

"olta e meia, o 3uilherme, pousando sobre um tamborete o pires por ondesorvera o caf#, deu um giro pela varanda, e disse ao "icente2

  Compadre, já que tanto gaba o Fel#m, enquanto no chega a boquinha danoite para ir escolher a minha espera, vou eperimentar o cachorro a peloslados do Kambedor.

  Pois perdigueiro como este, estou ainda 6 percura.

  Lh! assoviou arremedando a perdi%, quando anoitece.

Ká embaio da mesa, onde dormitava, o Fel#m fitava orelhas, e varreu com acauda a poeira do massap#.

a comadre desandando2

  "ai mesmo, compadre. Criaço no terreiro 1stá de gogo que # um castigo* o"icente no tem tempo para caçadas* s/ assim terei uma perna de galinha parair debicando com farofa...

logo, sem tomar f)lego2

  No imagina como ando enfarada estes dias! á me estava dando no goto oquitute...

+ "icente Peludo morava, e ainda mora, ali, naquela encru%ilhada de BantaKeopoldina "argem 'legre. Como bem di% o nome, tirando a nesga de terraslavradias ao p# do ;osquito campos e vár%eas, num hori%onte aberto, mui aolonge, 6 dist5ncia indefinida, rendilhados pelo a%ul nostálgico dos contrafortesda serra (ourada. Pela estrada arenosa, escaldada e faiscante, ao largo, o

vaiv#m contnuo de carros e cargueiros, gemebundos ou arfantes, em demandadas margens do 'raguaia, ou vindos de Banta Hita com destino 6 capital.

0quela hora, já declinava o sol para o lado da Farra. + compadre 3uilhermeviera da cidade caçar naquelas bandas. Como tivesse o animal aparelhado notelheiro, mal apanhou a caçadeira, já o Fel#m, a um silvo amigável, dera duascorridas pelo terreiro, e batia-lhe 6s perneiras com a cauda jovial.

+ "icente viu-o desaparecer em direço 6 tapera do 'nt)nio* mas no o viu

voltar naquela tarde.

Page 116: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 116/140

 

111

Com certe%a ficou na chapada, prendeu lá o cachorro e foi armar a sua esperade veado no caminho da Farra, eplicou 6 mulher.

(e fato, ali pela volta das on%e, levantada e descambando a lua, chega o

3uilherme. Dra%ia 6 garupa uma enfiada de perdi%es* no o acompanhava,por#m, o cachorro.

Gora at# a chapada, matando pelo caminho quantas perdi%es o co levantava*na volta, descuidando perto do ;osquito em escolher um pequi%eiro ondearmar a sua rede, o Fel#m metera-se pelo mato, no mais aparecendo.'marrara a besta num retiro* trepou para a espera, supondo que o perdigueirotivesse tomado o rumo de casa.

  Pois aqui no voltou* voc4 botou fora o meu cachorro, compadre.

  spera que ele há de aparecer* bicho de faro como aquele no toma sumiçoassim, compadre.

como o luar estivesse claro como o dia, dispensou a hospedagem, e ia torandopara a cidade.

' noite toda o "icente no dormiu. "olta e meia levantava, abria a porta,chegava ao terreiro, a ver se aparecera o Fel#m. 'penas o luar, mui frgido e

transl$cido, ia rebrilhando indefinidamente pelos campos, al#m.

'o amiudar dos galos no se conteve* foi ao curral, encabrestou o redomo queali estava para acabar de amansar, arreou-o e meteu-se pelo trilho da chapada.:a seguindo o roteiro que fi%era na v#spera o compadre. (e caminho, cortavapelos atalhos, a indagar em duas ou tr4s choças, raras, que lá havia ao fundo dasrestingas, se o animal fora por ali esbarrar.

Domava de novo o roteiro. No lhe bastavam as indicaç&es que tra%ia.Bertanejo, seguia passo a passo todas as marchas e contramarchas que fi%era nav#spera o 3uilherme. Pode mesmo, pelas penas deiadas, assinalar um por umos lugares onde tinham sido abatidas as perdi%es. (esistira de procurar aqu#mdo ;osquito2 no tijuco fresco da rampa, rastros da montaria iam e vinham* osdo Fel#m seguiam, mas no vinham.

Cru%ou em todos os sentidos o Kambedor. Na manh luminosa, engalanadaspara a gl/ria do m4s mariano, as aleluias e florinhas-de-maio iam pontilhandode ametista e prata o verde ridente da vár%ea. Pios s$bitos, estrdulos,eplodiam 6s ve%es, quebrando a monotonia dos grilos nas touceiras de jaraguá.

Page 117: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 117/140

 

112

:nvadia-o a pouco e pouco uma ponta de des5nimo. (eu uma volta de quarto del#gua, foi 6 casa do defunto 'm5ncio, outro morador naquelas redonde%as.

  No por ali no tinha aparecido o cachorro.

+ sol aquentava já, seriam on%e horas da manh e ele ali em jejum, atrás doFel#m!

(escorçoado, tomou o rumo de casa. nto, na descida do ;osquito, esseribeiro to farto de piaus e curumats, como se descuidasse a enrolar umapalha de cigarro, um tranco do animal que ainda no perdera as suas tretas deredomo por pouco o botava fora da sela. ra um toro de madeiraatravessado no caminho.

Pelo menos, assim julgou 6 primeira vista. ;as logo, engatilhava a central e doisformidáveis tiraços abalavam aquelas solid&es. ;eeu-se o madeiro,pesadamente, aquietando depois.

+ "icente apeou e chegou-se 6 sucuri. ra a maior que topava junto 6quele rio,to f#rtil delas! (eu volta 6 estrada, torou para casa.

(epois do almoço, tornou ao lugar. ;ediu-a de ponta a ponta, contandoquarenta e oito palmos, nem mais nem menos. 7m grande n/ no ventre desde

logo lhe atrara o olhar. ;eteu-lhe o faco, abriu de etremo a etremo abarriga2 dentro, todo inteiro, enrodilhado e gosmento, ja%ia o co.

a pele dessa sucuri, ainda há tr4s meses viva lá no meu serto adusto, tenho-apresente agora sob os olhos, dando volta aos quatro 5ngulos do meu quarto deestudante...

Page 118: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 118/140

 

113

NOSTALGIAS... /rec"o de carta 

á que vais brevemente 6 chapada, v4 se ainda se encontra legivelmente o meu

nome num tronco novo de jenipapeiro que fica junto 6 casa do teu agregado Use# que ainda o mant#nsV, pr/imo a umas goiabeiras, e a talhado por mim a$ltima ve% que lá estive. +lha, no te esqueças de dar algumas tarrafadas aopoço do Periquito, de fundo aliás bem sujo e garranchento* e tamb#m, ao do;an# Gul), como di%iam os caipiras, onde ia todas as tardes, a comprida canade pesca sobraçada, farnel d1iscas a tiracolo, descalço 6s ve%es, peito descobertoe em mangas de camisa quase sempre tal o nosso Casimiro de 'breudos Meus oito anos, a cantar velhas trovas nativas pelas estradas...

ra pelas f#rias, em tardes luminosas de que já no tenho notcias, pelos mesescalorentos de de%embro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos,embalsamavam o chapado. Passava a correr, saltando c/rregos, a tuaespingarda ou outra qualquer ao ombro, 6s ve%es s/, quase sempreacompanhado dum moleque, o ;anuel ou o Haimundo do agregado, baiotes ebarrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peies quando de retorno.

3ralhas e acaus guinchavam na galharada esguia dos cerrad&es, sobre oarvoredo denso de ao p# dos c/rregos. 9avia o trilo metálico das cigarras aomormaço* e, galgando a outra banda com a chuvarada que descera bruscapara de novo abrir-se o c#u, diáfano e a%ulneo, ao sol glorioso, descambandoal#m na Farra preás levpedes, o olho relu%ente e globoso de roedorespreitando em torno, saam assustadiços das moitas da beirada, atravessavamaos pinchos a um tempo grotescos e graciosos a rampa d1argila vermelha,entranhando-se do outro lado, no catingueiro recendente. No raro, noemaranhado dos travess&es de mato que a cobremhabitualmente o curso das ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrentapassava entre os cipoais, em coleios fleuosos, farfalhando as folhas secasderredor...

'pressava o passo, a gargantear velhos motivos da terra, ora essedengoso >ompadre >"egadin"o, dos batuques e muir&es da roça, ora aqueladolente melop#ia do Baleador , to simples e evocadora2

C& balad)&... C& balad)&... Bateu bala na porteira,  A porteira não uebrou&... 

Page 119: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 119/140

 

114

'ssim alegremente, fa%ia os dois quil)metros que nos separavam do poço ondedormiam, no remanso das águas, os cardumes de avoadeiras e jeripocas sob ascoivaras.

No ;anuel Glor, tapera antiga que, como todas as taperas, di%iam mal-assombrada, e de que restavam apenas os moir&es d1aroeira, carcomidos enegros, metia-me pelo atravancado dos gravatás, goiabeiras silvestres, taquaralestralejante e o sarandi da beira do rio, tomava pelo trilho inculto que levava 6pedreira favorável, e a, junto dum chiqueiro abandonado sob cujas taquarasapodrentadas adensavam os mandis-chor&es, desenrolava a linha, iscava oan%ol, impunha sil4ncio inviolável ao moleque, e eis-me todo entregue 6semoç&es variadssimas da pescaria...

"oltávamos ao stio pelo anoitecer, ao assomar a lua no quadrante turquesa e

ouro, quando caga-fogos e vaga-lumes lu%elu%iam nas baiadas, eu um tantofatigado da caminhada, mos e rosto arranhados pelo cipoal, chupando 6s ve%eso dedo dolorido duma ferroada de jurupens#m, mas pronto a recomeçar no diaseguinte, o Haimundo atrás, sopesando a grossa cambada e nela discriminando já, com olho de dono, os bagres e lob/s que lhe seriam como pr4mioadjudicados.

(e longe, ouvia-se o rechinar lamuriento da gangorra no terreiro 6 frente, onde"tor e os primos tripudiavam contentes, os mais pequenos receosos e

assustados dum trambolho a um pinote ou volteio mais rápido.

Caa sobre o "ermelho, que passava ao fundo, a grande, merenc/ria triste%a datarde. Ferravam nos cercados os be%erros. Piavam guaos e jo&es-congos nasgrimpas dos jenipapeiros, onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridasbolsas, balouçavam prenhes. ;osquitinhos a%oinantes e %umbidoresenameavam ao longo das tranqueiras, nas perebas dos moleques, sobre alombeira sarnosa da cachorrada, que, a bruscos estremeç&es do p4lo arrepiado,gania relambendo-se entre palhas, no borralho.

(istante, na estrada da Farra, cargueiros passavam ajoujados e resfolegantessob a carga de mantimentos, em bruacas de couro cru, rumo da cidade e domercado. scutava-se o relho a estalar ao longe, e a vo% pigarrosa do caipira,batendo fogo, assoprando o chumaço da binga, a incitar aos muoos a mulada2

  h$! h$! h$!... Crioulo!... Penacho!...

mais al#m, aqui na mata, ali nos furados de jaraguá, ja/s e perdi%escorrespondiam-se, moduladas e dolentes as primeiras, subit5neas e estrdulas

as outras, de lado a lado rememorando a hist/ria pungentssima de seu m$tuoapartamento...

Page 120: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 120/140

 

115

'noitecia. ' pa% do serto, sugestiva e boa, descia nos escampos solitários. Namesa tosca, ao canto da sala, fumegava a janta sobre a toalha alvacentad1algodo, alumiada ao centro, vagamente, pela candeia de tr4s bicos, que se

espevitava de ve% em ve%.

Burgiam o angu de caruru nos tigel&es pintalgados, a feijoada, o ensopado depeie, farto, em travessas e pratos estanhados, rebrilhando 6 lu% entre olhos degordura. 'o lado, o garrafo de caninha e o frasco de malagueta para os maisvelhos, os que gostassem do condimento r$stico.

mpanturravam-se como pagos que #ramos, 6 primitiva moda e ao apetite dasvelhas col)nias...

8ue rica b/ia e depois que rico sono, aquele que nos surpreendia pela volta dasnove, ao tempo que se contava ainda na fieira dos anos on%e, do%e, tre%eprimaveras apenas!

No raro, o caseiro do stio, forte e desempenado em sua robuste% de oitentaanos o braço mais rijo e fero% dos eitos da roça tr4s l#guas derredor vinhapara a soleira da porta, encapotava-se ban%ento ao batente, acendia umcigarro, e, a cabeça nevando ao luar como capucho d1algodoeiro, punha-se adevanear, baforando... Cercávamo-lo todos, grandes e pequenos.

ram sempre hist/rias antigas, das passadas eras do :mp#rio e presdios do'raguaia. Gicávamos a escutar, sonhando com essa regio longnqua decanguçus e caboclos desnudos, areias infindáveis alvejando 6 dist5ncia, onde apintada vinha uivar em cio 6 noite, agoniada do luar, e de cujo fundo das águassaam, em estaço propcia, as tracajás 6 desova pelas praias d1arribaço...

a mente ealtava-se, repassando contos e lendas, frutos de leituras precocesduns e outros que, mais feli%es, tinham visto ou descrito o 'raguaia, e bebidoem suas paragens a selvática poesia dos sert&es braslios...

  'h! tempos que passaram, tempos de moço, como cabo ordenança e vaqueiroparticular do capito os# ;anuel, teu pai, nosso tio-av)!

"inham logo narraç&es da vida 6 beira do grande rio, proe%as de caça e pesca,combates e matanças dos ndios canoeiros, caiap/s e avantes* o ataque dofortim de Banta ;aria, como ele, ajoelhado 6 soleira do rancho, a velhaespingarda rei$na e respectiva muniço ao lado, mordendo impassvel ocartucho, fi%era frente a toda uma tribo encarniçada de guerreiros, fu%ilando-a 6

queima-roupa e dando assim tempo 6 guarniço de tocar a rebate e acudir emdefesa 6s muralhas.

Page 121: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 121/140

 

116

  ra pelo meio da noite, um luar to claro como dia. ' caboclada tingira-se depreto, uma larga faia branca pintada na testa. :sso servia de pontaria. Noperdera um tiro. + rancho ficara que nem porco-espim2 crivado d1alto a baio de

frechas e tantas que, ao outro dia, andando os soldados a apanhá-las nosarredores, ajuntaram feies enormes, que depois serviram para manter o fogoda co%inha semanas a fio. (e sua parte, por conta e risco, s/ ele matara oito.

  Dempos brabos comentava.

U'i, meu pobre her/i obscuro, que dormes hoje, entre florinhas agrestes, o teusono de pa% numa cova rasa do cemit#rio da Farra, junto ao filho do'nhangera, o desbravador de meus pagos!V

Helatava agora, entre s#rio e jocoso, como a colerina alastrara s$bito nopresdio, afrontando do $ltimo recruta ao comandante* de como faltaram entotodos os recursos e mantimentos naqueles fund&es. B/ a ele poupara, adanada! :a para o fundo do quintal, o paude-fogo aperrado, entre osbamburrais, assuntando. Ducanos, quebrando talas, gra%inavam saltitantes nasemba$bas.

  Pum! pum! Fotava um, botava dois, tr4s, abaio* e era essa a canja que, commilho pilado, servia ao p# do leito aos patr&es devorados de febre.

  Ficho duro, o tucano! Pernoitava dias inteiros no fogo e nada de dar caldo queprestasse. Como ele, s/ papagaio, vote! Parecia at# o capeta em figura de ave.

(epois, era como duma feita sangrara um cabra intrometidiço, que se lhe fi%eraengraçado com a mulher. + camarada riscara a parnaba com vontade* eleaparou e deu-lhe resposta bem segura, entre costelas, no bucho...

eplicava2 + anspeçada fora procurá-lo no açougue da vila estavam entoem Banta Keopoldina onde ele acabara de abater uma r4s gorda, cria dafa%enda, por ordem de seu capito. + cabra chegou como quem vinha mesmodecidido a armar sarseiro, cara amarrada, berrando alto, gesticulando atrevido,arrotando pacholices e valentias, uma dose forte de cachaça nos bofes.

le ouviu, ouviu, como quem no entendia* mas num repente, ante umdesaforo mais grosso, quando o provocador transpunha já o limiar, saltou porcima do balco, ajuntou o famana% pelos peitos, atirando-o com viol4ncia aomeio da rua.

+ (omingos foi de roldo bater na quina dum frade, e voltou de lá cego, o faco6 mostra, piscando os olhinhos de cobra assanhada, sobre o adversário, que já o

Page 122: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 122/140

 

117

esperava tamb#m do lado de fora, a comprida faca do corte relu%ente eensebada do serviço na mo firme.

+ crioulo marrou-lhe, a bem di%er, uma pontada direita ao coraço* ele torceu e

deiou-o passar. (e novo, frechou-lhe em cima o anspeçada, faca a prumo, numbote curto, procurando aberta* novamente ele furtou o corpo, mas esperava-odessa ve% na ponta do ferro, onde o cabra veio espetar-se, bruscamente, osangue esguichando com fartura para os lados, aos borbot&es.

  'h, como que ainda sentia pelas mos, na cara vo quarenta e cinco anos o sangue do ;inguinhos salpicando-o d1alto a baio, todo fumegante, comobrasa!

'nimado pelo calor da narrativa, acrescentava depois como derrubara doutra

ve%, numa tarde mui lmpida e calorenta d1agosto, um velho carajá que toparaacocorado no alto duma árvore, todo acobardado e tr4mulo ao v4-lo, dumafeita, quando vinha do campeio...

anotava2

  8ual! Carajás... naço fraca...

  ;as mataste-o 6 toa, Casimiro=

  +ra, ora, o velho coroca arregalava-me o olho do alto do pau, assim que nelebotei a vista, como guariba assustada, batendo os dentes, a di%er comperrenguice2 O' tori... a tori... Ucristo, cristoV, mata Fremeri... Unome lá dalngua delesV, a ele no fa% mal... Dori valente!... tremia, que nem atacado demaleitas. u atravessara o meu pampa campeador no meio do caminho, acoronha da la%arina sobre o serigote dos arreios, todo encruado em minhasperneiras e guarda-peito de mateiro, o chapelo para trás, preso ao queio pelabarbela de sola, mo em pala, assuntando... (era com aquele diabo ao sair docerrado, onde andava a campear umas reses do capito os# ;anuel, seu tio-av), que (eus tenha em sua santa guarda. Dinha achado rastros frescos numbrejal, entre touças de caran, mas batera tr4s dias seguidos as redonde%as, notopando vivalma. (a a presunço em que vinha2 pintada no fora, senodeiava algum sinal, resto de carniça, marca das patas, qualquer cousa* e s/muito faminta atacava cria taluda... +s ndios, talve%... "ai seno, topo aqueleestorvo.

  (esce do pau, / tapuio!...

  ' tori... a tori... mata ele... Frequeti no fa% mal... ' tori valente!...

Page 123: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 123/140

 

118

  +ra, ora, o perereca batia a queiada como caititu acuado e eu diacho develho pra viver!... quando o pampa dera já algumas passadas, torci-me noarço da cutuca, e despejei-lhe nas costelas a carga da rei$na. 8ue bufo, vote!

'qui interrompia a segunda mulher do caseiro que a primeira há muitos anosmorrera toda lastimosa, um travo de %anga na vo%2

  Pois tu no tens vergonha de contar cousas dessas, Casimiro! Credo! +lha opurgat/rio!

  ;ulher, mulher, mete-te com tua vida, deia os outros sossegados. ;ortes,tenho tre%e nas costas, mal contado* e no me arrependo, mais no fora, tantagente ruim anda pelo mundo!...

  remorsos, nunca os teve= indago.

+ velho, cuja cabeça nevava ainda mais o luar, olhou-me em sil4ncio, como seno compreendera. (epois riu, a boca murcha espichando num bocejo cnico,onde sobressaa desenhada toda aquela vida primitiva no seio bruto do deserto,a par de feras e perigos, sem contemplaç&es e sem piedade para com os maisfracos, os vencidos...

  Ker#ia...

Bim, l#rias, discutia eu no meu ntimo, que nessa #poca já começava a tirarliç&es práticas do mundo, e sabia que o cafu%o que ali estava, o busto ainda altoe espigado, onde os tr4s sangues da raça se caldeavam apa%iguados, nuncapassara da cartilha de mo, e vivera assim desde rapa%ote, 6 gandaia danature%a, a grande mestra da vida.

8uando fora da estopada do ;inguinhos, cristo como ele e companheiro detarimba, no tivera, quanto mais daquele velho coroca, a bem di%er bicho domato!...

+ra, ora, anos depois, de passagem, fora ver o local2 a caveira relu%ia ao sol e riamacabramente no aceiro da selva, enquanto que a ossada se espalhava emtorno, dispersa pelas enurradas e animais bravios...

Derras bárbaras, gente forte!

JJJ

  'i, a nostalgia do serto!...

Page 124: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 124/140

 

119

Pela manh a ;er4ncia, papuda e avara, ia ao curral ordenhar a sua parelhamagricela de vaquinhas barrosas, cujo leite nos vendia sovinamente a tosto oguampo. Damb#m, crivávamos-lhe de eptetos e epigramas, 6 veia estudantal, apapeira ma%omba, mal virava, re%ingando, a costa acorcovada.

'migo2 no val descrever a vida que a levamos e da qual fruis ainda os docesencantos. Konge, numa terra in/spita para os pequenos e humildes, nestatrapeira velha onde noite alta %une a ventania e vem visitar-me alcat#ias derata%anas, 6s voltas com os meus t#dios e minhas pequenas manias derabiscador an)nimo, o espetáculo grandioso da civili%aço desenrolando-se aop# pelo bu%inar álacre dos autos nas avenidas e pedalar intermitente detranvias, to s/, 6 espera dum futuro que no chega e sabendo quo amarga s/i6s ve%es ser a solido para os que meditam e sonham e quo duro # viverdistante das cousas que nos foram familiares, relembro a paisagem adusta de

nossa velha terra, e confesso no raro uma lágrima furtiva ressuma em minhasfaces escaldadas, como /bulo votivo ao torro onde vi a lu%, onde minhainf5ncia decorreu como todas, ai, to depressa, to descuidosa...

;as basta de sentimentalismo!

Hev4-la-ei= No sei. Dalve% nunca. ntanto, nesta luta insana pela eist4ncia que# o viver cotidiano das grandes cidades, assediado a cada momento por vivos econtrários embates de interesses e pai&es mesquinhas, sinto que o meu ntimo

permaneceu o mesmo doutrora, insensvel e sereno a todas as agress&es brutaisdeste meio material e grosseiro que o cinge e aperta num supremo e fren#ticoesforço de conquista e erguendo, em meio o seu abandono e em meio a suatriste%a, a grande escada de fogo por onde se guindará a outras paragens maisamigas, filhas do meu Bonho e da minha Baudade...

"ale.

Rio... :;:= 

Page 125: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 125/140

 

120

MÁGOA DE VAQUEIRO  A *duardo /ourin"o

Como os galos viessem amiudando e fora andasse a garoa fria de inverno que

precede as primeiras horas do amanhecer, o Meca ;enino, largando numtamborete o par com quem dera a $ltima volta da catira, esgueirou-se pelocorredor, atravessou sorrateiramente a varanda de terra batida, onde a mesaposta ostentava ainda os sobejos da ceia frascos de licor e o doce de buritiesparramando-se na toalha besuntada e saiu pelos fundos da casa.

No terreiro, encolhido ao aconchego da fogueira, gemia ainda 6quela hora o tio'mbrosino, viola ao peito, respontando na prima2

' flor%inha do pau-d1arco

I da cor do entardecer,

Dra% triste%a, tra% quebranto,

Du, que no hás de tra%er...

m pontas de p#, dissimulando o tilintar das rosetas no cachorro das esporas,Meca ;enino alcançou o alpendre 6 banda, desamarrou a mula estradeira evoltou montado ao oito da casa, raspando-se no peitoril duma janela, quearranhou suavemente com o cabo da açoiteira. +s tampos descerraram-se semrumor* um vulto esquivo deiou-se escorregar para a garupa roliça da besta, e oestr#pito abafado do animal, que ganhara a porteira e se afastava na cerraço,misturou-se perdido aos %angarreios da sanfona, reavivando dentro a animaçodos comparsas.

unto ao fogo semi-etinto, cabeceando de sono, farto da queimada engolidaaos gorgol&es, o tio 'mbrosino interrompera o curso de suas divagaç&es e

cachimbava distrado2

  9omem, a modo que já vo andando... 'h, meu tempo, agentava firme nosapateio at# pegar o sol com a mo!...

caducou em solil/quio, levado de novo pelo curso da borracheira2

Ká na serra dos 'ngicos

8uanta flor anda a brotar!

Page 126: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 126/140

 

121

'ssim tamb#m so teus olhos

8uando p&es-me a namorar...

(espertado, um galo cacarejou no poleiro ao p#, num grande grito de alarma.

  Carij/ que assim canta, # que fugiu moça de casa.

;as o frio apertava, a lua ia a perder-se por detrás das serranias* e tio'mbrosino recolheu-se tropeçando ao abrigo da varanda, a espertar o corpoperrengue num $ltimo gargarejo da queimada.

s/ quando as barras vinham quebrando e era manh feita nas morrarias donascente e o $ltimo convidado, que morava mais chegado, se despedia do

festeiro num salamaleque derreado onde havia ainda bifadas de cachaça elicor de jenipapo que este deu pela aus4ncia da filha, chamando-a para ab4nço do padrinho.

9ouve um rebuliço. + vaqueiro gritava para dentro, supondo-a recolhida* e o'mbrosino, escarranchado na pileca manca, atalhou com vo% pachorrenta2

  +ra, no se afobe, compadre, a afilhada já dorme, moda da festança*tamb#m, requebrou-se a noite toda com o manhoso do Meca ;enino, agora

dorme...

partiu, no passo ronceiro da mula cambeta, pendependendo no arço, aspálpebras inchadas, num sono invencvel de sapo borracho.

+ outro, por#m, mal o viu desaparecer no cotovelo do atalho, embarafustoupelo rancho, andou lá por dentro remeendo, repondo os trastes em seuslugares* e, num pressentimento, chamou junto ao quarto da filha2

  E ;aria!...

;as um sil4ncio angustioso pairou ap/s o brado do velho* e ele, resoluto,meteu ombros 6 porta, cuja tranca cedeu sem dificuldade.

' cama estava como na v#spera a vira, quando lá entrara para apanhar abandeira do santo* a colcha de chita bem esticada, fronhas dos travesseirosintactas, sem vinco ou ruga duma cabeça que ali repousasse alguns instantes* eo rosário das oraç&es como sempre, dependurado na cabeceira. (a ;aria%inha,por#m, nem vestgio.

Page 127: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 127/140

 

122

le olhava apatetado, sem compreender* foi 6 co%inha, na esperança deencontrá-la dobrada sobre o jirau de mantimentos, quando lá fora talve% buscara candeia de a%eite e se deiara ficar, vencida do sono* foi, e apenas o bichano,mui gordo e ronronento, abriu para ele da trempe do borralho onde se

aboletara, uns grandes olhos deslavados de espanto e ronronando ficara denovo a dormitar, no calor brando das cin%as.

+ velho Donico percorreu todas as depend4ncias daquele pobre rancho devaqueiro, a sala, a varanda e sua pr/pria diviso* saiu, foi ao alpendre e at# ochiqueiro e o fundo do quintal inquiriu ansiosa, inutilmente.

"eio ao terreiro da frente, o sol já nado* e s/ ento a dor epluiu, numa crise delágrimas e recriminaç&es.

Gugira, a malvada! com quem, Banta ;aria, com o Meca ;enino certamente,um perdido de pagodeiras e do truque, brigo ve%eiro nas redonde%as, sujeitoque al#m da garrucha e da besta de sela, s/ tinha por si essa estampa escorreitade mestiço madraço e preguiçoso! por que, "irgem ;aria, se ele nunca seintrometera no namoro, at# satisfaria a vontade de ambos, dando oconsentimento* ele que, mal da idade, com to pouco se contentava v4-lasempre de sorriso 6 boca ao batente da porta, quando viesse das malhadas, e atigelinha de caf# bem requentada, quando partisse pela manh para as labutasdo campo! le que, bom (eus dos fracos, s/ tinha aquele mimo na sua velhice

desamparada e solitária de vi$vo, 6 beira dum atalho sempre deserto e cujovi%inho mais pr/imo, o 'mbrosino, ficava a duas l#guas de dist5ncia!

arrepelava a grenha, num pasmo mudo agora, como se nem pensar naquilovalesse mais a pena, to absurda parecia a desgraça que se lhe abatera sobre ocasebre.

'h! no ter de% anos para menos, no virasse já os sessenta bem puados,tivesse o pulso a rije%a de outrora e partiria sem detença, no rosilho troncho,pronto a tirar a desforra merecida da afronta!

;as o corpo já no dava de si e ele bem sabia quo boa estradeira era a mularuana em que haviam partido. 0quela hora, já transpunham a mata funda, rumodo Paranaba e talve% das terras mineiras do Dri5ngulo, bem longe da sanha e daojeri%a impotente de seu amor paterno ludibriado.

num dasalento, amparou-se ao cupin%eiro que erguia o seu cone crivado 6frente da palhoça, a olhar emudecido, em desespero.

+ serto abria-se naquela manh de junho festivo, na gl/ria fecunda dasondulaç&es verdes, sombreado aqui pelas restingas das matas, escalonado mais

Page 128: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 128/140

 

123

al#m pelas colinas aprumadas, a varar o c#u a%ul com suas aguilhadas de ouro*baturas e en#ns chalravam nas emba$bas digitadas dos grot&es* e um sorvolongo de vida e contentamento errava derredor, no catingueiro roo dosserrotes, emperolado da orvalhada, a recender acre, e nas abas dos montes e

encru%ilhadas, onde preás min$sculos e calangos esverdinhados retouçavamfamiliares, ao esplendor crescente do dia.

le ficara mudo, olhos apalermados, virado o rosto para a volta da estrada, decuja orla subia um nevoeiro luminoso, que o mormaço solar irisava.

'li permaneceu horas a fio, o sol já dardejando a prumo, indiferente 6 cancula,mos t$rgidas engalfinhadas na barba intonsa, boca contorcida numa visagemestranha de mágoa, a olhar longe, muito longe, para al#m das colinaslongnquas e do c#u anilado.

0 tarde, o eco dum aboiado rolou pelo fundo da vár%ea, ondulandodolentemente de quebrada em quebrada, num despertar intenso de saudade...

ram boiadeiros que lá passavam, na estrada batida.

+ vaqueiro velho no saiu ento como de costume, ferro em punho, perneirase guardapeito, escorreito e desempenado, no rosilho campeador, a dar a mode ajuda 6queles forasteiros que lá iam, demanda das terras distantes e das

feiras ruidosas dos sert&es mineiros d1al#m- Paranaba.

Continuava recostado no c)moro dos cupins, mo no queio, olhando etático*somente, agora, a cabeça bron%eada pendia mais flacidamente sobre o peito devaqueano, e o olhar com que via, era inepressivo e desvidrado,desmedidamente aberto, estampando na retina empanada a viso pungente doserto em festa, todo verde, e a orelha 6 escuta, longe, das notas derradeiras dacanço nativa.

;orrera, ouvindo os ecos que lá iam do aboiado, a rolar, magoadamente, dequebrada em quebrada...

'o p#, na roupeta singela de algodo em que se enfatiotara, nas ailas, nosbraços, pela boca e orelhas, ia cerce a faina das t#rmitas em rasgar, picar, cortare estraçalhar aquele estorvo molengo que se lhes abatera desde cedo por cimada casa...

:;: 

Page 129: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 129/140

 

124

CAMINHO DAS TROPAS 

+ lote derradeiro desembocou num chouto sopitado do fundo da vargem, eveio a troue-moue enfileirar-se, sob o estalo do relho, na outra aba do

rancho, poucas braças adiante da barraca do patro.

+ oaquim Culatreiro, atravessando sem parar o pira na faia encarnada dacinta, entre a espera da garrucha e a niquelaria da franqueira, desatou compreste%a as bridas das cabresteiras, foi prendendo 6s estacas a mulada, eafrouou os cambitos, deitando abaio arrochos e ligais, enquanto umcamarada serviçal dava a mo de ajuda na descarga dos surr&es.

+ tropeiro empilhou a carregaço fronteira aos fardos do dianteiro, e recolheu

depois uma a uma as cangalhas suadas ao alpendre. 'briu ap/s um couro largono terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo que o resto datropa ruminava em embornais a raço daquela tarde. + cabra, atentando nalombeira da burrada, tirou dum surro%ito de ferramentas, metido nas bruacasda co%inha, o chifre de tutano de boi, e armado duma dedada percorreu todo olote, curando aqui uma pisadura antiga, ali raspando, com a aspere%a dumsabuco, o dolorido dum inchaço em princpio, aparando al#m com o gume dofreme os rebordos das feridas de mau caráter.

B/ ento tornou 6 roda dos camaradas, ao p# do fogo do co%inheiro, no interiordo rancho, onde chiava atupida a chocolateira aromati%ada do caf#.

' tarde morria nuns visos de crep$sculo pelas bandas da baiada. ' muladaremoa nas estacas, e junto ao couro de milho um ou outro animal mais arteiroe manhoso escoucinhava e mordia os demais no af do maior quinho.

'ssentados sobre os calcanhares, os primeiros chegados cujos lotesarraçoados se coçavam impacientes aos varais espicaçavampachorrentamente na concha da mo o fumo dos cornimboques, picavam

mi$do no corte do caerenguengue as rodelinhas finas, esfrangalhando entre osdedos os resduos, palha grossa de cigarro encarapitada na orelha. + cabraabeirou, apossou-se do cuit# fumegante que lhe estendia o co%inheiro* e,enquanto deglutia a beberagem, ia comentando com os demais, vo%amolengada, a marcha daquele dia.

  + lamedo dera-lhe, no vau do 'nicuns, um trabalho* mal do lote, se no forao ramo verde da marmelada que o dianteiro tivera o cuidado de atravessar nocaminho, a burrada embarafustava logo pelo atoleiro e ele no estaria 6quela

hora no pouso* quando lá passou, ia bem fresco ainda o rastro da tropa no

Page 130: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 130/140

 

125

desvio* mesmo assim, o macho crioulo que vinha adestro, no duvidara emmeter-se naquela perdiço...

  Ficho novato, de primeira viagem... observou o dianteiro, que tocava, como

de direito, o lote mais lu%ido da tropa.

No gancho da mariquita, especada sobre o brasido, refervia o bom adubo dafeijoada* um bafo grosso, apetecente, da se evolava, babando a gula de doisperdigueiros da comitiva, que, assentados sobre as patas traseiras, estendiampara o borralho o focinho curto, cupidamente...

  á vem chegando a boquinha da noite, minha gente avisou o arrieiro saindoda barraca e chegando at# o parapeito do rancho, olha o encosto da tropa. 7ma peia garantida nesse macho crioulo, / oaquim, que no d4 outro sumiço*

olá, mudem o polaco da madrinha, bate soturno esse cincerro.

3uiada pelo chocalho da madrinha, levada no cabresto, 6 mo do dianteiro, atropa desatrelada enveredou pela devesa, redambalando por intervalos cadapolaco das cabeças de lote nos torcicolos abrutalhados da vereda, ribanceiraabaio. ' noite descia mansa e silenciosa, perturbada apenas pelo clamorlongnquo das seriemas da campina no fundo dos vargedos, e a lua assomavacomo uma grande moeda de cobre novo por sobre os descampados, em vagonevoeiro.

0 noite, repasto feito, descansava o pessoal recostado sobre as retrancas epelegos dos arreios. Pelos cantos, trilavam grilos* e, de fora, vinha o gritodolente dos cabur#s e noitib/s, agourando a solido. 7m tropeiro sacou dopiquá que trouera a tiracolo, o pinho companheiro dessas caminhadas noserto* apertou a chave da prima e pigarreou pelo cordame um lundu, todorepassado de ais e suspiros.

  Cabra malvado, fa% triste%a essa viola disse algu#m, o pensamento longe,perdido no arraial, onde deiara, certo, saudades e cuidados. (iga antes umcaso, daqueles que nos contava, quando na boiada do 'nto...

  9omem, inda agorinha atalhou o ;anuel, o dianteiro relembrava um fatoque me sucedeu duma feita, quando viajava escoteiro, 6s ordens do major;atos, pr1essas bandas. + caso # que era ento acostado, e de fiança, daquelesde pouca conversa e de grande estado. Na quinta-feira das (ores, o sol iadescambando, o patro manda-me chamar, passar a cutuca no lombilho domatungo, e partir sem detença para o povoado, uns pap#is de eleiço bemarrumadinhos na patrona. ;ec4s devem estar lembrados que na altura dos

;arinhos, num estiro de meia l#gua de tabatinga e terra puba, fica umcemit#rio abandonado, há muito toca de tatus e camundongos-do-campo.

Page 131: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 131/140

 

126

Bemana atrás, numa rusga de cachaça e mulheres, esticara a canela ali perto oFentinho Faiano, um cafu%o intrometidiço, baleado por dois tiraços de rifle navolta esquerda da pá. Para poupar maior trabalho, aproveitaram a serventiaantiga do terreno, sepultando por ali mesmo o assassinado. Gora eu at# quem,

de passagem, cedera a mortalha de ocasio com que o embrulharam, uma largapala branca, enfeitada de bambolins, que me presenteara algu#m que no tema ver cá com a questo.

O"iajava distrado, esquecido de tudo, na marcha a furta-passo do matungo,perrengueando, a pitar o meu cigarro, quando num repente, estaca de supetoo animal. 'ssuntei. ' noite estava turva, o c#u sem lua, aqui e ali picado deestrelinhas. + stio no me pareceu estranho* atentei com mais juste%a, umascru%es apodrecidas pendiam, no escuro, desconjuntadas, 6 beira do caminho,sobre c)moros malfeitos de terra... ra o cemit#rio velho do povoado. 'pertei

as chilenas no pangar#* ele andou alguns passos e depois emperrou de novo nomeio da estrada, orelhas entesouradas, espreitando a escurido. 'diante, novia nem ouvia movimento ou tropel algum* o bicho nunca fora empacador oupassarinheiro, tentaço do capeta devia de andar ali por perto. 7m homem #homem, mec4s bem sabem* atravessei o punga no caminho, encurtei as r#dease escrutei melhor a vista, já acostumado 6 escurido. 0 minha frente, roçando ocho, brancacento, ia um lençol aberto. + matungo refugava arreliado, bufavapelas ventas, uma vontade danada de voltar atrás e desembestar pelo chapadoafora. Benti, ben%a-me o Bantssimo, u1a mo de ferro, no coraço, triturando...

;as, como lhes di%ia, em qualquer aperto, pr1este mundo de Cristo, um homem# homem, e o que tem de acontecer, tem força, acontece mesmo!

O(esviei o meu bicho para uma pequena macega de sap#, pus-me abaio dasela, amarrei seguro as bridas a um tronco de imbiruçu e voltei atrás, decidido,franqueira atravessada na boca como era de preceito, mo sobre os gatilhosescancarados da garrucha. Parecera, a este pobre cristo, melhor observado,que era a mesma franja de bambolins, o lençol que seguia estendido 6 minhafrente aquela mesmssima mortalha com que dias antes enroláramos o corpodo mal-aventurado Fentinho...

Parou, go%ando a epectativa angustiosa que errava derredor, entre osparceiros. Febeu uma $ltima golada de congonha, que lhe servira atencioso oco%inheiro* bateu fogo na pedra do isqueiro, acendeu o cigarro e olhou parafora, vagamente, meneando.

  ' gente, quanto mais vive, mais aprende, já di%ia minha av/. 'ssombramento,tenho ouvido casos, verdade seja, mas as mais das ve%es falta de coragem,turvaço do medo e da bebida... ;aluquice, anda 6 toa pelo mundo da "irgem*

no fora o meu 5nimo, hoje %an%aria por a, nessas bamburras, gira varrido.Cheguei solerte, p# ante p#, negaceando, pronto a queimar as escorvas na

Page 132: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 132/140

 

127

cabeça do ;al-ncarado ou o quer que fosse que impedia a passagem. + lusco-fusco ia menos cerrado, o lençol prosseguia estrada afora, muito branco,desdobrado, largando felpas alvadias pela garrancheira e vassouredo dabeirada. Bofreei o baque de meu peito e acheguei-me para mais perto da

assombraço* bati fogo na binga, soprei um chumaço, e agachado sobre oestorvo, pesquisei com cuidado.

Ora... mas devia ter logo visto, um tatupeba, que se fartara no corpo do infeli%ali enterrado e que se retirava, empanturrado, para o seu coito. ' imundcie, nagana do festim, enrodilhara-se na mortalha do desgraçado, varando-a com acabeça, e de lá se retirava, certamente bem atrapalhado, arrastando ap/s si otrambolho... (evia ter logo visto* na pressa do enterramento, a cova tinhaficado um tanto rasa, a terra fofa, sem cerca nem revestimento para impediraquela profanaço... nfim, creiam mec4s, # ter sempre desapego ao perigo...

Calara. Cincerros distantes chocalhavam, longe, pelo encosto da devesa.

' lua nos aceiros era toda branca como geada de inverno.

:;: 

Page 133: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 133/140

 

128

A BRUXA DOS MARINHOS  A $oão do Rio 

'o lado da estrada real e 6 sombra espessa duma gameleira centenária em

cujos esgalhos finos cantava em #pocas de sa%o a passarada, e arquitetavam oninho gentil os povis e ti4s mimosos de papo fulvo e penugem a%ulejada dascampinas, ficava a venda da brua dos ;arinhos, assim como a n/doamin$scula e alvinitente duma r4s branca, sobre o fundo verde-dourado daimensa malhada que eram aquelas paragens. 'vultava ao longe, mal dobrassemo cotovelo brusco duma serrota de alourejada coma de capim-melado e moitasde murici cheiroso, na vár%ea aberta dos buritis virentes que espanejavam, 6fresca das manhs veranejas, a sua flavela esguia e revoluteante de folhas, todaarqueada e gemebunda aos afagos do vento.

Por ali passavam tropas mineiras dTal#m-Paranaba rijos tocadorespalmilhando as alpercatas de couro cru pela etenso ardente e arenosa dasestradas poentas, ladeadas 6s ve%es de barrancos escarpados e esfarinhentos depedra-canga, por cujas eros&es, vincadas, medrava tena% o catingueiroparasitário dos morrotes. Por ali passavam, barulhentos e ralhadores, deperegrinaç&es distantes, ap/s haver trilhado as rechs esturradas d1argilavermelha e sap# bravio dos chapad&es, onde apenas, a quebrar a uniformidadedos hori%ontes, apareciam de ve% em ve%, ao longo dos carris profundosdeiados 6 passagem pela roda ferrada dos pesados carros de bois, a fruteira-de-lobo e os coqueiros de maca$ba, como t4nues, fugaces teias de sombraespalmadas sobre a crosta reco%ida do solo.

Cru%avam tropeiros da terra, gente s e escorreita, incitando aos estalosásperos dos relhos e piras compridos de trança fina, o trote leve da burrada,que se detinha por momentos a retouçar a babugem das margens gui%alhentas as cabeçadas com carregamento de cristal de rocha, surr&espreciosos do bom fumo goiano, ou malotes ajoujados de sola sertaneja, para asdivisas estaduanas do grande rio. no raro, chiava um carro vilarejo dos

fund&es remotos, ao passo tardo e hierático dos bois patriarcais, nostálgico elamuriento 6 dist5ncia, como uma dessas cigarras cin%entas de areia chirriandosuas desditas no tronco rugoso duma lieira dos cerrados, 6 hora do crep$sculo,pelas queimadas fumarentas e asfiiantes de agosto.

m navegando pr1essas bandas, era certo os arrieiros desavisados viremdessedentar-se da agrura calcinadora do vero tropical ali aos ;arinhos, comuma bochechada cheia da boa e rascante pinga da terra, quando, as mais dasve%es, no a tra%iam eles já nos alforjes bem fornidos da garupeira, e lá no

fossem seno atrados e tentados pelos olhos langorosos e quebrantadores dabela cabocla arteira e artificiosa em seus gestos provocativos 6 sensualidade

Page 134: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 134/140

 

129

dos rapag&es e inflamados mais pela cor de mate sadia e forte de suas carnesroliças e de formas adengadas, que inquietados da fama maligna de bruedos eave%ada a desnorteamentos de cristo, que possua a luuriosa habitadoradaquele recanto.

;uitas ve%es, chocalhando a gui%alhada dos peitorais e cincerros sonoros dacabeçada de prata relu%ente, em cujo cimo se firmava arfante e senhoril a louraboneca da guia, apontava o primeiro lote na dobra do caminho, levantandoáureas nuvens de areia sutil e detritos e fagulhas delgadas de malacachetarebrilhante. 'os berros roucos e muoos cuspilhados dos lábios secos, desviavao dianteiro a madrinha que se aprumara rumo do copiar da casa.

ra uma tropa que passava.

torcendo r#deas braças antes, na sua besta de sela de estimaço, os arreiosniquelados faiscando de mil maneiras, 6 lu% estuante do sol, e as bombachasfolgadas, 6 moda ga$cha, de padro a%ul listrado ou adre%, o moço arrieiro quepr1essas estradas batidas tenteava a eist4ncia fretando cargas, e vivia a penarenredado nos embelecos traidores da comborgueira, afastava-se pressuroso doroteiro ordinário da comitiva. 3anhava dist5ncia* e, corridas as chilenas, metia amula rosilha num garboso esquipado 6 marcha picada e vinha, riscando curto obicho, esbarrar mesmo a dois passos da porta, espancando o ar quieto e mornodo interior, onde uma ou outra mosca caseira voejava sonolenta e tr)pega por

sobre os coscoros duros do balco, com um forte e sacudido2

  E de casa!

'o tropel, acudiam dos pai/is e alpendres onde modorravam suas ma%elas e apreguiça meridiana, os rafeiros varados da vigil5ncia, leprentos, coberto o fio dolombo de quistos bichosos, orelhas tronchas em p#, investindo firmes e 6salertas com os latidos fero%es. ;olecotes, crias da casa, chegavam ao limiar,longas tereas de cip/ ou embira na mo pronta* enotavam 6s pancadas rápidase atiradas ao acaso a cainçalha assanhadiça, que arisca e irrequieta se furtavapara os lados, para de novo arremeter, esquel#tica e reincidente* t# que,corridos 6s vergastas, encafuavam todos pelo vo estreito das cercas de n/-de-porco e sucupira das tranqueiras, onde se postavam rosário de horas farejandoe ganindo ao l#u, ventas ao ar tresandando rabugem ou a peluça crespa,enrodilhando-se, enroscando-se, a ver se apanhavam a rai% da cauda apinhadade larvas, arrepiados e ameaçadores.

(escerram-se os tampos da janela de batentes de cabi$na, onde signos deBalomo e marcas de gado se assinalavam a carvo e ferro em brasa* assomava

o rosto amorenado e redondo da ben%ilhona, abertos os lábios $midos e rubrosnum sorriso discreto e enigmático de acolhimento, convidando o forasteiro a

Page 135: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 135/140

 

130

apear-se ao amparo da soalhada2 8ue sim, que ia mesmo braba nesseschapad&es, di%ia persuasiva, meneando a cabecita sestrosa, onde duas trançasfartas, lu%idias, se bipartiam de meio a meio.

(esengonçado no arço da sela mineira, o p# esticado num $nico estribo, naposiço habitual de descanso, titubeava o moço arrieiro* olhava no alto o c#usempre a%ulneo e ofuscante de lu%, cerrava um canto d1olho, mo alçada, aatenuar a crue%a dos raios solares, e embrulhava uma escusa tola, dando tempo6 pr/pria incerte%a, perpleo na eecuço dum ato que se lhe afigurava deimport5ncia suma2

  + sol assim parece que vai descambando, dona, duas horas pelo menos* amula rosilha vinha sentida dos rins* no segundo e quinto lotes vários burrospisados no espinhaço, pelo atrasamento da carga* os dobros dos da frente, mal

divididos desde a sada do pouso, no ajeitavam bem e iam dando um trabalhopelo caminho, dissera-lhe o dianteiro ao topá-lo ali atrás. Confiança, lá isso tinhana sua gente e sabia que tudo seria bem cuidado e remediado no pouso, 6 horada descarga* mas e voltava ao assunto primitivo a rosilha no ia bem,sentida dos rins, o que o punha preocupado, tanto mais que o machomascarado, tra%ido 6 escoteira, sempre 6 mo, para atalhar tropeços einc)modos de montar na necessidade lombo chucro de animal ruim oupassarinheiro, aguara dos cascos na subida da serra do Corumbá...

engrolava escusas n#scias, cuidados falsos com cousas que lhe no di%iam omnimo respeito obrigaço eclusiva dos camaradas desajeitado, tmido,como que arrependido já da ntima fraque%a, e tivesse vergonha e acanhamentode mais uma ve% render o seu preito submisso 6 cabocla.

la sorria sempre, o encarnado vivo do lábio inferior acentuando-se sob a alvurados dentinhos espontados 6 faca, com aquele mesmo sorriso que lhe fa%ia astriste%as nos pousos distantes, quando, ferindo magoado as cordas gemebundasda viola, recostado no punho m/vel da tip/ia macia de algodo ou de imb#,relembrava em quadras toscas, improvisadas ao acaso algumas de imagenscoloridas e ntidas esses mesmos beiços polpudos, seios sublevados e as facescarnudas da sensual moradora daquele cochicholo da estrada real desesperode quantos boiadeiros br)n%eos e ricaços em tr5nsito nessas plagas, que se iamserto em fora ruminando, desaforados e impotentes, qui%lias e secretasmaldiç&es contra as feitiçarias e quebrantos em que os tra%iam envotados o risoe olhar felinos da terrvel ensalmadora.

Hemoa desculpas o moço arrieiro, desacoitado do cocuruto o chapelo d1abaslargas. la insistia, maneirosa e hospitaleira, vencendo a fragilidade dos

escr$pulos do cabra. retinindo nos cachorros de ferro batido os grossosroset&es, rendilhados em crivo, do par d1esporas, entrava ele sala adentro,

Page 136: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 136/140

 

131

abancava-se a um dos tamboretes de tauias amarelas e couro curtido demateiro, onde ficava a prosear, arrotando pabulagens de mestiço pern/stico echupitando a mi$do goladas fartas dum pipote velho de aguardente, que ummenino ia medindo e vendendo a meia pataca o quartilho, ou entretido com a

lábia e ademanes da dona dengosa e impudica, num derriço palerma, 6 esperado caf# costumeiro.

No copiar 6 banda ou sob a copa da gameleira, mastigava o freio pachorrenta eencilhada a mula estradeirona, aos cochilos cabeceantes, perturbada 6s ve%espelo %umbido tenussimo dos miruins do campo e ferretoadas agoniantes daspardacentas e achatadas mutucas sugadeiras* e estrada afora, a sumir na estivado rego al#m, ou cá no cotovelo da serrota, ia a toada argentina das cabeçadasdas madrinhas da tropa, na branda e ligeira cad4ncia da marcha, demorando emespiras largas no ar, e enchendo e abalando de vibraç&es qu#rulas os ecos

sucessivos das quebradas longnquas, apressurada de mais a mais pelo relhodos pe&es dos lotes a passar, que bem sabiam o patro ali enrabichado, presaduma suçuarana de nova esp#cie, e o pouso longe, l#gua al#m, de boas aguadase encosto seguro para os animais solertes e ave%ados a sumiço.

0s ve%es, nos dias festivos dessa transpar4ncia deslumbradora que #caracterstico invariável do estio goiano, topava ele ali gente de fora e acompanhia de forasteiros que se deiava a bebericar era animada. Gicava entohoras a fio alheado, conversando com a roda nos assuntos do ofcio, o olhar

devassando pelos corredores o interior varrido e asseado da casa, que findavanum terreiro capinado e limpo, aqu#m do quintal ensombrado, onde pendiam,em fest&es engrinaldados, os limoeiros a%edos, o laranjal pejado, cuja grimpaera de momento a momento assaltada por densas revoadas de guaos e jo&es-congos de peito amarelo e acerado bico, perfuradores dos frutos sumarentos,que se punham a merendar álacres, numa orquestra alada de vivos e a%oinantesgalreios.

le reparava enublado tudo aquilo* deiava-se esquecido a sacolejar no fundoda tigelinha de caf# aromático, sarapintada de a%ul, os $ltimos resduos doaç$car em dissoluço* anotava lá embaio, na estrada ampla e areenta, barradaa orla do rasteiro capim-gengibre, o passo acelerado e tilintante do derradeirolote, instigado pelo culatreiro empoeirado e suarento, a desaparecer nocotovelo verdejante da serrota, rumo dos arranchamentos, onde já folgariam ostocadores passados* e, pesaroso, recordava que era tamb#m tempo de se lhes ir juntar. (espediase impulsivo da bela cabocla a quem s/ veria meses depois,talve% um ano, talve% nunca mais saltava desembaraçado na rosilha despertaem sobressalto ao abrigo da gameleira, e partia direito, sem voltar a cabeçasequer, naquele mesmo esquipado 6 marcha picada da chegada, o arreame

niquelado todo cintilante ao sol...

Page 137: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 137/140

 

132

'o pouso arribava 6 boquinha da noite, feita a descarga, raspada, curada eamilhada a tropa já no encosto costumeiro da aba do morro, esfregadas asabuco, afofadas e atalhadas as cangalhas pisadoras, a janta desempoleirada dogancho da mariquita aberta sobre o brasido, ao voejar imperceptvel dos

primeiros enames de muriçocas e pernilongos sados dos charcos de juncais eangola das baiadas alagadiças, quando nas restingas de mato da beira dosc/rregos e cap&es, começavam a sua terna elegia as ja/s merenc/rias do serto*e longe, nas vár%eas tenras onde o jaraguá altaneiro campeava eternamenteviçoso, nos descampados limpos, semeados aqui, al#m, de palmeiras incipientesde indaiá abertas em leque 6 flor da terra, piava aguda, lamentando-se daaus4ncia da companheira predileta, a perdi% solitária das campinas, a lançaralarmas estrdulos aos ecos despertados das quebradas remotas, dumacoloraço p)r-de-sol verde-negro sombria, e reavivando etintos pruridos decaça aos ouvidos tensos dos velhos perdigueiros n#dios e bocejadores ao calor

do borralho que acompanhassem a comitiva.

JJJ

'li passei eu duma feita pelo arroear suave de melanc/lica tarde de fins devero, quando nos tabuleiros elevados e descampos mal desabrochava ainda ahumilde flor-de-maio das campinas, rumo sul e da primeira estaço da estradade ferro, ento aos barrancos do Paranaba, pronta a transpor esse naturalobstáculo das divisas estaduanas, e galgar serto adentro, conquistando,

transformando e aniquilando tipos, costumes e aspectos, na marcha arrasadorado progresso, da civili%aço.

' vivenda lá continuava ao sop# da estrada, e 6 sombra da mesma centenáriagameleira. No mais por#m, em rumorosas manhs de estio, ao gui%alharfestivo das tropadas passantes, se via o freteiro abandonar pressuroso o roteirobatido para vir ali, sedento, matar pesares e saudades da aus4ncia prolongada.

scalavradas eram as paredes do emboço alvacento, a mostrar, comoalastraç&es de lepra, escorrimentos profundos nos adobes esborcinados, adesmanchar-se, lodosos e amolecidos, nas chuvadas de invernia. 7m limoviscoso e esverdeado, gotejado pelo estilicdio dos beirais desconjuntos e a cair,sobrepunha-se em camada fina, rente ao cho, no rodap# d1oca barrosa. Pelasfendas do lajedo, na linha do oito, vegetavam as beldroegas tmidas, o capin%alde rai% e gramneas pr/prias dos taper&es há muito deiados.

'o lado, no desvio, assoberbava o assa-peie tristonho, agitadas as franças cá elá pela arribada at)nita duma aluvio de pintassilgos, coleiros e patativasapanhadas a petiscar pelos ped$nculos cacheados e floridos* embaio, como

lagartas esverdinhadas, rastejava a praga da tiririca mi$da, os provis/rios decaroços espinhentos, o fedegoso bravo, as malcias garranchentas e irredutveis,

Page 138: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 138/140

 

133

a apegar-se, como carrapicho, 6 canela do desastrado animal aventurado navereda. Para o fundo, no quintalejo maltratado e sujo, mirravam as laranjeirassob as ervas daninhas* e como provasse uma fruta tempor que um galho pecooferecia, achei-a a%eda, amarga quase, como uma puniço.

Cercas e pai/is, tranqueiras e currais desmantelados, atravancados deimundcies e monturos, donde, como serpes, saam emaranhamentoscompridos de touças de cabaceira e buchas-de-paulista, emergindodependurados, como brincos colossais, os seus frutos balofos e aquosos estralejando com estr#pito sob os p#s as cabaças que a estaço sa%onara toocos, to va%ios, como o interior bolorento daquele mesmo casebre, a desfa%er-se em runas, como uma enorme maldiço, sob o matagal.

ntretanto, no verde perene de que se revestira o stio, havia algo de anormal e

trágico, misto vago de ntimo terror e ineplicável aperto, a gerar arrepios depavor aos que, como eu, se detivessem a contemplar, 6quela hora do anoitecer,o estranho aspecto da tapera, batida a cumeeira de telha-v dos $ltimos clar&escrepusculares...

'o condutor um tipo robusto e acaboclado de nortense, lábios finos e olhosprofundamente rasgados de ndio que to inquieto e impaciente se mostrava6 aproimaço da noite com a nossa demora ali, indaguei, curioso do descaso efeiço lutulenta daqueles ermos.

le viagem andante viera narrando a ntima satisfaço e go%o violento de quese sentia noutras eras invadido em se aproimando dessas bandas olhou-meem sil4ncio d1alto a baio, como que avaliando se estava a %ombar* estevealgum tempo considerando, incr#dulo da presumida ignor5ncia, fe% depois umavisagem supersticiosa de esconjuro, e o ndice afu%ilado cor de tisne designou um marco carunchento, que as enurradas tinham aludo, meio ocultoem macegas de so-caetano.

  7ma cru%...

  'qui, patro, pela passagem das $ltimas boiadas, encontraram-se e acabarama botes de faca, dous cabras da terra, ambos desempenados e amigos, aos quaisdesnortearam as mandingas da brua2 filhos do mesmo pai, filhos da mesmame...

8uedou-se mo no queio, a olhar estarrecido. No c#u, lacrimejava já a estrelaboieira. 7m acau gra%inou mato adentro, espreitando agoureiro.

Fen%eu-se, e ferrando esporas, afastou-se cabisbaio, a trote rápido.

Page 139: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 139/140

 

134

  a brua= disse alcançando-o.

  'h, sim, a brua... ssa, decerto, levou-a o cuca num p#-de-vento, 6 hora dameia-noite, pela seta-feira do quarto minguante...

www.poeteiro.com

Page 140: Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

7/24/2019 Hugo de Carvalho Ramos - Tropas e Boiadas - Iba Mendes.pdf

http://slidepdf.com/reader/full/hugo-de-carvalho-ramos-tropas-e-boiadas-iba-mendespdf 140/140

 

O LIVRO DIGITAL – ADVERTÊNCIA

O Livro Digital  é – certamente - uma das maiores revoluções no âmbito

editorial em todos os tempos. Hoje qualquer pessoa pode editar sua

prpria obra e disponibili!"-la livremente na #nternet$ sem aquela

imperiosa necessidade de editoras.

%raças &s novas tecnologias$ o livro impresso em papel pode ser

escaneado e compartil'ado nos mais variados (ormatos digitais )*D+$ ,,$

,+$ entre outros/. ,odavia$ trata-se de um processo demorado$

principalmente no âmbito da reali!aç0o pessoal$ implicando ainda em

(al'as aps o processo de digitali!aç0o$ por e1emplo$ erros e distorções na

parte ortogr"(ica da obra$ o que pode tornar inintelig2veis palavras e até

(rases inteiras.

3mbora todos os livros do 4*rojeto Livro Livre5 sejam criteriosamente

i d i d i é 2 l l d