história oral e arqueologia

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1 HISTÓRIA ORAL E ARQUEOLOGIA o exemplo Puri-Coroado e algumas considerações a respeito da aplicação dos métodos da História Oral na identificação de sítios arqueológicos Vlademir José Luft 1 RESUMO: Incluída normalmente na etapa de prospecção, a busca do sítio arqueológico sempre foi algo muito pouco considerado, seja em termos práticos, seja em termos teóricos. Preocupados com esta etapa e pensando na sua importância para a elaboração do trabalho, nossa proposta é de que esta seja algo metodologicamente elaborado e não apenas um encontro fortuito. É assim que estamos propondo o uso da História Oral nesta etapa da pesquisa arqueológica, uma vez que a mesma nos parece ser a forma mais correta para a recuperação de tais informações, bem como de produzir material primário para uma série de outras pesquisas na área da Arqueologia, da Sociologia, da História, da Antropologia, etc. Palavras-Chave: História, História Oral, Arqueologia ABSTRACT: The search of the archaeological site, generally included in the prospecting stage, has always been less considered in its pratical and theorical aspects. Concerned about the search of the site and its meaning for the whole work, our proposal is to think of it not only as a fortuitous discovery but as a consequence of a methodological study. Therefore we intend to use Oral History in this phase of the archaeological research because we believe this is the best way recover information concerning the site and also to bung up primary material for several future research in Archaeology, Sociology, History, Anthropology and so on. Key-Word: History, Oral History, Archaeology Com uma origem que pode ser comum, apesar da diferenciação física e cultural; com uma dispersão que atinge o Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo, apesar das barreiras naturais; com um sentido de deslocamento indefinido, apesar de todos os vestígios indicarem uma origem nos “sertões das Minas Geraes”; aldeados ou exterminados, apesar da resistência e da bravura de um ou da passividade e da docilidade de outro; inimigos entre si, apesar da origem e do espaço comum; e com um modo de vida raramente estabelecido; os Puri e os Coroado 1 , filiados ao grupo linguístico Puri, são dois grupos muito pouco conhecidos e que dificilmente têm sido objeto de trabalho. Como principal objetivo do Programa Arqueológico Puri-Coroado e procurando segui- las no tempo e no espaço, para demonstrar a forma como viveram e têm vivido, a recuperação das informações com que trabalhamos deve ter seu espectro ampliado, utilizando-se de fontes escritas e orais, e não apenas a cultural como tradicionalmente acontece no trabalho arqueológico. 1 - Doutor em História Social (UFRJ), professor Adjunto do UniMSB, [email protected]

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Page 1: história oral e arqueologia

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HISTÓRIA ORAL E ARQUEOLOGIA

o exemplo Puri-Coroado e algumas considerações a respeito da aplicação dos métodos

da História Oral na identificação de sítios arqueológicos

Vlademir José Luft1

RESUMO: Incluída normalmente na etapa de prospecção, a busca do sítio arqueológico sempre foi algo muito pouco considerado, seja em termos práticos, seja em termos teóricos. Preocupados com esta etapa e pensando na sua importância para a elaboração do trabalho, nossa proposta é de que esta seja algo metodologicamente elaborado e não apenas um encontro fortuito. É assim que estamos propondo o uso da História Oral nesta etapa da pesquisa arqueológica, uma vez que a mesma nos parece ser a forma mais correta para a recuperação de tais informações, bem como de produzir material primário para uma série de outras pesquisas na área da Arqueologia, da Sociologia, da História, da Antropologia, etc. Palavras-Chave: História, História Oral, Arqueologia

ABSTRACT: The search of the archaeological site, generally included in the prospecting stage, has always been less considered in its pratical and theorical aspects. Concerned about the search of the site and its meaning for the whole work, our proposal is to think of it not only as a fortuitous discovery but as a consequence of a methodological study. Therefore we intend to use Oral History in this phase of the archaeological research because we believe this is the best way recover information concerning the site and also to bung up primary material for several future research in Archaeology, Sociology, History, Anthropology and so on. Key-Word: History, Oral History, Archaeology

Com uma origem que pode ser comum, apesar da diferenciação física e cultural; com

uma dispersão que atinge o Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo, apesar

das barreiras naturais; com um sentido de deslocamento indefinido, apesar de todos os

vestígios indicarem uma origem nos “sertões das Minas Geraes”; aldeados ou exterminados,

apesar da resistência e da bravura de um ou da passividade e da docilidade de outro; inimigos

entre si, apesar da origem e do espaço comum; e com um modo de vida raramente

estabelecido; os Puri e os Coroado1, filiados ao grupo linguístico Puri, são dois grupos muito

pouco conhecidos e que dificilmente têm sido objeto de trabalho.

Como principal objetivo do Programa Arqueológico Puri-Coroado e procurando segui-

las no tempo e no espaço, para demonstrar a forma como viveram e têm vivido, a recuperação

das informações com que trabalhamos deve ter seu espectro ampliado, utilizando-se de fontes

escritas e orais, e não apenas a cultural como tradicionalmente acontece no trabalho

arqueológico.

1 - Doutor em História Social (UFRJ), professor Adjunto do UniMSB, [email protected]

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No que diz respeito especificamente à fonte oral, raramente é utilizada e quando o é, é

subestimada. Quando dizemos que raramente é utilizada, estamos nos referindo à utilização

do depoimento do informante para a produção de uma fonte, e não apenas como um

instrumento utilizado pelo arqueólogo, para que se possa chegar ao sítio arqueológico.

É assim que analisaremos aqui as das entrevistas realizadas até o momento na região

das serras da Piedade, São Geraldo e Santa Maria, nos municípios de Visconde de Rio Branco

e São Geraldo, localizados na Zona da Mata de Minas Gerais, onde está uma concentração de

locais com possíveis ocupações Puri e Coroado, segundo fontes escritas e culturais. Os

entrevistados são representantes dos mais diversos segmentos sociais daquela região e que, de

uma forma ou outra, estão envolvidos com as questões destes locais de ocupação.

Nossa análise, portanto, será no sentido de, à luz dos conhecimentos que tratam da

História Oral, verificar, metodologicamente, a forma, e as condições, como as entrevistas

foram realizadas.

Em termos técnicos, as entrevistas iniciaram com o objetivo de cobrir uma lacuna

deixada pela pesquisa arqueológica, mais especificamente pela etapa denominada prospecção

arqueológica. Como pesquisador, percebemos, em nosso trabalho de localização de sítios

arqueológicos, em campo, que as informações apresentadas pelo(s) informante(s), membro(s)

daquela sociedade onde o(s) sítio(s) está(estão) inserido(s), não eram fornecidas, e os motivos

para tal podem ser os mais variados, ou não representavam a totalidade das informações que

detinha(m) o(s) entrevistado(s). No caso da primeira hipótese, três possibilidades nos são

visíveis: as informações estarem incompletas, inclusive ao próprio informante; as informações

serem imprecisas; ou as informações não serem verdadeiras.

Após percebermos e analisarmos este quadro, chegamos a conclusão de que isto pode

ocorrer por quatro motivos específicos: (1) Pelo informante não confiar nas pessoas estranhas

que acabam de chegar, em busca de informações sobre locais com determinado tipo de “resto”

e que em sua realidade podem representar um sem número de coisas, muitas delas de teor

místico ou de teor financeiro, tais como a existência de ouro, por exemplo. Neste caso muitas

vezes as informações existem e na maioria delas são verdadeiras, mas são omitidas. Estamos

considerando-o como informante(s) primário(s). (2) Pelo informante simplesmente não

conhecer, ou reconhecer, o local, ou mesmo não deter as informações necessárias ou

procuradas. Neste caso estão principalmente as pessoas com uma idade mais avançada.

Poderíamos considerá-lo como uma informação secundária. (3) Pelo informante, que neste

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caso é uma pessoa “mais esperta”, e normalmente mais jovem, querer uma importância maior

do que a que lhe pode ser dada, em função das informações que poderá prestar, ou mesmo dos

locais que poderá indicar e que realmente possuam os elementos procurados. Neste caso,

existe sempre a tentativa de uma barganha e que envolve, sempre, termos financeiros. Pode-se

tratar, também, de uma informação primária. (4) Pelo informante deter uma, ou mais,

informações de outra(s) pessoa(s). Neste caso a imprecisão é muito grande e o risco de

estarmos diante de uma informação que não será confirmada também é muito grande.

Poderíamos considerá-la como uma informação secundária.

Dissemos “percebemos e analisamos este quadro” porque da forma como aprende-se,

ou ensina-se, na escola ou nos manuais de arqueologia, normalmente a informação que é dada

ao arqueólogo, em campo, por qualquer tipo de informante, deve ser considerada. Nunca é

feita a observação de que poderemos, ou deveremos, analisá-las, interpretá-las, e que podem

existir problemas nestas informações. Como poderíamos resolver este impasse e, ao mesmo

tempo, recuperar a informação da forma mais completa possível? Seria isto possível? Neste

sentido Ferreira (1994, p. 8)2 nos diz que “... as possíveis distorções dos depoimentos e a falta

de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma nova maneira, não como uma

desqualificação, mas como uma fonte adicional para a pesquisa.”. É desta forma que estamos

tratando este trabalho.

Mas, devemos lembrar que o tempo de que se dispõe para este trabalho, ou mesmo

para o trabalho de campo, normalmente é muito pequeno. Portanto, o tempo a ser gasto no

trato com os informantes e com a comunidade, na busca de informações sobre sítios ou locais

com restos arqueológicos, deve ser o menor possível. Aqui outra questão: como conciliar a

necessidade da pesquisa com a falta de tempo? Neste momento estávamos com alguns

problemas.

O primeiro era trabalhar com algo totalmente novo, teórica e metodologicamente, a

História Oral. Até então, acreditávamos ser possível fazer História Oral apenas com um

gravador na mão e algumas perguntas na cabeça. Numa primeira tentativa, a nível

experimental, descobrimos que isso não seria possível.

A descoordenação das perguntas, a falta de um roteiro para a entrevista, a surpresa

diante das respostas do entrevistado, a demora na formulação das perguntas, a falta de

perguntas que direcionem a entrevista para o tema, perguntas muito longas e elaboradas, a fala

muito prolongada e desnecessária dos entrevistados, a valorização excessiva de detalhes

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irrelevantes por parte do entrevistado sem que o interrompamos e, principalmente, o comando

da entrevista nas mãos do entrevistado, são os detalhes que mais nos chamam a atenção e

fizeram com que os dos entrevistados percebessem nosso despreparo na realização e condução

da entrevista. Confirmamos, na prática, que História Oral não é apenas um gravador na mão.

Não é simplesmente uma entrevista.

O segundo problema estava no trato com a comunidade. Neste ponto, procuramos,

antes de realizarmos as entrevistas, entrar em contato com a comunidade com a qual iríamos

trabalhar, ou seja, nos fazermos conhecidos, nos tornarmos reconhecidos, e dessa forma

passíveis de receber a confiança daquelas pessoas, daquela comunidade. Após convivermos,

por praticamente dois anos, com a comunidade de Visconde do Rio Branco - MG e,

principalmente, das serras da Piedade, Santa Maria e São Geraldo, este problema, ao menos

em termos teóricos, estava resolvido: éramos reconhecidos e solicitados por ela.

Nosso terceiro problema continuava a ser a História Oral. Para as entrevistas

necessitávamos de um roteiro. Elaboramos o primeiro. Nele procuramos destacar três tipos de

informações.

O primeiro visava conhecer o entrevistado, saber quem era, quem eram seus

ascendentes, quem eram seus descendentes, qual era sua prole, porque morava ali, quem eram

as pessoas que conhecia, etc ... Era um pouco de sua história de vida. Entendemos, pela

convivência, que isso os valorizava e nos ajudava a conseguir não somente um maior número

de informações, mas também informações mais precisas, bem como a indicação de outras

pessoas com as quais poderíamos conversar ou mesmo que pudessem nos levar aos locais

indicados. A partir desta primeira parte do roteiro, estávamos selecionando, automaticamente,

o público alvo de nossas entrevistas. Neste primeiro momento seriam as pessoas mais velhas

da comunidade e, obviamente, as que tivessem algum tipo de informação sobre locais com

restos arqueológicos e que interessassem a nosso trabalho. Direcionamos nossas entrevistas

desta forma por considerarmos estarem nestas pessoas as informações mais precisas e

importantes que buscamos. Esta primeira parte visa também, entender como aquele indivíduo

está inserido em sua sociedade ou naquele segmento do qual faz parte.

O segundo tipo de informação visava saber do entrevistado, o que ele conhecia sobre

nosso objeto de estudo, os índios Puri, Coroado e Coropó, que teriam habitado aquela região.

É importante lembrar que neste caso estaríamos procurando e, eventualmente, obtendo, uma

visão de alguém sobre o passado. Estas informações, muitas vezes sobre um passado distante,

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decorrem de uma tradição oral, passada, principalmente, de pai para filho e, neste caso, a cada

geração, pode ser alterada. Assim, a visão dos filhos do senhor Honório Imaculada, por

exemplo, é a mesma visão do pai sobre a questão da ocupação indígena e sobre os sítios

arqueológicos na serra da Piedade, que será repassada a outrem, mesmo que aquela

informação não seja verdadeira. Isto pode ser visto quando da entrevista do senhor Honório e

de seus filhos Haroldo e Gasparino. É provável que, no futuro, quando Haroldo e Gasparino

estiverem com a idade do senhor Honório, tenham uma nova versão sobre isto tudo, como já

podemos observar hoje, quando é possível falar com eles em separado, ou distante do pai.

O terceiro tipo de informação que buscávamos neste primeiro “roteiro preliminar para

entrevistas”, nos daria conta do material encontrado, quem o teria encontrado, onde teria sido

encontrado, para onde teria sido levado, o que teria sido feito com ele, etc ... Com isto

estaríamos identificando e confirmando, ou não, com mais precisão, as informações que

teriam sido prestadas até então, uma vez que agora, com base na cultura material, estariam

sendo localizadas e materializadas.

Foi com este ROTEIRO PRELIMINAR PARA ENTREVISTAS (primeira versão) que

realizamos as primeiras três entrevistas. É importante mencionar que apesar deste roteiro, as

entrevistas não foram conduzidas de forma rígida. Procuramos, após dar a palavra ao

entrevistado, interrompê-lo o mínimo possível, tomando o cuidado de não induzi-lo nas

respostas, embora algumas vezes isto tenha ocorrido. Embora esta indução não seja

intencional, as respostas que nos eram dadas, nos chamavam a atenção e nos faziam pedir

maiores informações, maiores esclarecimentos e detalhes, nomes de pessoas, o local de alguns

acontecimentos, quem seriam e onde estariam as pessoas citadas.

Foi justamente por este motivo que preparamos uma nova versão do ROTEIRO

PRELIMINAR PARA ENTREVISTAS (segunda versão) onde alguns destes elementos

estariam contemplados, pois gostaríamos de verificar a forma como os outros entrevistados se

comportariam diante de tais informações e se as dominavam.

Além disso, incluímos duas questões sobre a Arqueologia, ou seja, o que o

entrevistado entendia ser Arqueologia, se já havia ouvido falar nela e o que ele pensava ser o

trabalho do arqueólogo. Isto foi, principalmente, para ver em que medida o trabalho de

identificação e recuperação do material arqueológico, através das escavações, seria, ou não,

bem recebido pela comunidade e se poderíamos ter algum tipo de interferência quando da

realização dos mesmos.

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Após estas primeiras entrevistas, outro elemento que passamos a observar foi com

relação ao ritual que as estava envolvendo. Devido ao tipo de pessoas com quem estamos

tratando, na sua grande maioria muito simples, uma entrevista, que sempre procuramos

marcar com antecedência, representa um acontecimento especial para aquela pessoa e, muitas

vezes, para sua família. Em função disso, em apenas duas entrevistas, com a senhora

Terezinha de Almeida Pinto, realizada em Visconde do Rio Branco - MG e com o senhor

Valdemiro Vianna Filho, realizada em Mariana - MG, foi possível ficarmos sozinhos com o

entrevistado. Em alguns casos pareceu-nos que era uma tática, ou seja, intencional. Seria para

não ficarmos sozinhos com o entrevistado ou é mesmo a simplicidade, e muitas vezes a

ingenuidade, destas pessoas? Como existe sempre na entrevista a participação do

acompanhante, normalmente opinando e/ou reforçando o dito pelo entrevistado, estamos

pensando em algo que possa evitar esta situação.

Isto talvez deva-se ao fato de termos optado por fazer com que as entrevistas sejam no

meio do entrevistado, ou seja, no local de sua preferência, a seu modo, assistidos por quem ele

julgar melhor. Sabemos que somos formadores de opinião e que qualquer ato ou fato que

gerarmos poderá dar origem a um produto diferente daquele que normalmente poderia surgir.

Por isso, procuramos influenciar o mínimo possível, seja em termos de idéia, seja em termos

de postura. Como já dissemos anteriormente, este nosso procedimento é por acreditarmos ser

necessário mostrar à comunidade o que estamos fazendo, quem somos e o que pretendemos

com este trabalho. É exatamente pela falta deste procedimento que muitos pesquisadores não

conseguem obter as informações que lhes possibilite chegar ao sítio arqueológico, ou então

pelo mau procedimento de alguns, em outros momentos, muitas vezes não muito distantes,

que as informações são omitidas por todos conscientemente.

Após estas observações e mais algumas entrevistas, preparamos um novo ROTEIRO

PRELIMINAR PARA ENTREVISTAS (terceira versão). Desta vez, também as observações

da pessoa contratada para transcrever as fita foram proveitosas. Segundo ela, deveríamos,

além de identificar o entrevistado, o que já estávamos fazendo, deveríamos identificar

também: o seu endereço, a data da entrevista, o local onde está sendo realizada a entrevista, os

acompanhantes ou presentes na entrevista, o ambiente em que foi realizada a entrevista, além

de procurar não deixar mais de uma pessoa falar ao mesmo tempo.

Outro procedimento adotado daqui por diante foi, ao final da entrevista, a elaboração

de um relatório com impressões sobre a mesma. Neste relatório buscar-se-á analisar, entre

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outras coisas, a forma como o local da entrevista se insere na realidade do entrevistado e em

nosso trabalho; quais foram as condições da entrevista, do entrevistado e do entrevistador;

qual era o clima, em termos emocionais, das pessoas envolvidas na entrevista; qual foi o nível

de interferência das pessoas presentes na entrevista; qual é o envolvimento do entrevistado, e

das pessoas presentes na entrevista, com o projeto de pesquisa e com o tema, em nosso caso

os índios Puri, Coroado e Coropó; qual a reação do entrevistado, e dos presentes na entrevista,

em relação às perguntas, ou a alguma(s) pergunta(s) específica(s). Este procedimento seria a

reunião daquilo que Alberti (1989, pp. 66-68)3 apresenta em sua ficha de entrevista e caderno

de campo.

Outro procedimento ao qual é necessário estar alerta, refere-se à liberação da

entrevista. Embora todas as pessoas que estamos entrevistando tenham conhecimento do uso

que faremos deste material em nossa pesquisa, inclusive para publicações, estamos fazendo

uma solicitação, por escrito, aos nossos entrevistados, liberando o uso científico do material

proveniente de sua entrevista. Esta preocupação apareceu quando das últimas entrevistas,

principalmente com o senhor José Agripino ooooo. Nela apareceram, não do senhor Agripino,

mas de seus filhos e genros, preocupações sobre o tipo de informação que estava sendo dada

por ele e o uso que faríamos dela.

A preocupação mais freqüente está no fato de os sítios arqueológicos estarem, na

maioria das vezes, em terras de propriedade privada, e delas ser extraído algum tipo de metal

ou mineral de valor comercial que possa interessar ao proprietário. Apesar da preocupação em

apresentar nosso trabalho, há sempre uma desconfiança: a de que estaríamos procurando algo

de valor comercial e não apenas “ossos”, “pedras”, “cacos de cerâmica” e “restos de índios

velhos”.

Entendemos ser necessário, também, o encaminhamento destas entrevistas ao Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, onde a pesquisa está autorizada,

propomos a criação de um banco de entrevistas com informações sobre sítios arqueológicos e

que poderá ser consultado por outros pesquisadores. Por isso, a assinatura de um documento

liberando o uso das informações nela contida, é uma boa estratégia, pois serve de proteção de

pessoas inescrupulosas.

Ter como objeto de estudo os grupos indígenas brasileiros requer um acentuado grau

de paciência e de perseverança. Suas fontes são escassas, de difícil localização e, quando não,

de acesso. Isto, em se tratando de grupos considerados “grandes”. Quando o objeto de estudo

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refere-se, como em nosso caso, a grupos “pequenos”, de língua isolada, pouco conhecidos, ou

reconhecidos, e muitas vezes confundidos com outros grupos, a situação pode ser muito mais

difícil.

O Programa Arqueológico Puri-Coroado, que tem por objeto de estudo a análise

arqueológica e histórica das sociedades Puri e Coroado, tem a necessidade de buscar fontes

dos mais diversos tipos e, normalmente, de caráter bastante geral, sempre no sentido de suprir

as enormes lacunas existentes no conhecimento sobre estes dois grupos.

Devido a estas questões relacionadas às fontes, a grande diversidade cultural destes

grupos, sua ampla área de ocupação e a abrangência teórico-metodológica que estamos

procurando dar ao trabalho, onde a ênfase não é apenas o material cultural recuperado do sítio

arqueológico, mas o contexto que o envolve, desde a antiguidade até nossos dias, a

recuperação de informações orais, que se tornam, pela História Oral, uma fonte de valor

histórico igual ao das fontes escritas, é de fundamental importância. No caso dos grupos Puri e

Coroado, onde a fragmentação, seja documental, cultural ou espacial é um fato, a geração de

mais uma fonte, capaz de aumentar as possibilidades de sua identificação, é plenamente

aceitável e esperada. Apesar das dificuldades em identificar, até o momento, uma origem, seja

espacial ou cultural, praticamente todas as fontes e suas referências são unânimes em

identificar a região do rio Pomba, principalmente em sua margem esquerda, em território da

Zona da Mata mineira, como a principal concentração destes grupos. As serras de Santa

Maria, Piedade, São Geraldo e da Onça, nos municípios de Visconde do Rio Branco, São

Geraldo e Guidoval têm demonstrado, na prática, estas informações.

Nestas serras, sua população convive com os restos culturais, desde sua ocupação

inicial. Grutas, cavernas e abrigos encrustrados nas serras, são nichos onde podem ser

encontrados, entre outras coisas, urnas funerárias, restos de fogueiras, sepultamentos,

vasilhame cerâmico e material lítico. Na base das serras, ou em seus vales, podem ser

encontrados restos de ocupações do tipo aldeia, onde é abundante o material cerâmico. Além

disso, encontra-se com facilidade, muito material lítico polido.

É com esta realidade que a população convive. Sejam velhos ou novos, sempre há

alguém que já viu, ouviu ou sabe onde encontrar estes restos, ou mesmo onde eles estão

concentrados. São estas pessoas que estão sob nosso olhar, que nos fornecem as informações

mais concretas sobre locais com “restos de índios”, e de onde vêm, após uma análise, nossos

entrevistados.

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Foi com este perfil que preparamos nossos roteiros para as entrevistas e escolhemos

nossos entrevistados. Os depoimentos a que nos referimos a seguir, são os primeiros que

obtivemos e que demonstram as primeiras, e principais, dificuldades encontradas.

A primeira entrevista foi com a senhora Terezinha de Almeida Pinto, e foi realizada

após mais de um ano de contatos. Dona Terezinha é uma das pessoas mais influentes da

comunidade, no que diz respeito à cultura, ao patrimônio e à preservação da história local. Foi

por sua iniciativa que criou-se, por Decreto Municipal, o “Museu Municipal de Visconde do

Rio Branco”, onde hoje estão guardadas peças dos mais diversos gêneros e épocas e que

contam a história da região, da cidade e de seus moradores. Além disso, também por sua

iniciativa, criou-se a “Associação dos Amigos do Museu Municipal de Visconde do Rio

Branco”, que tem por objetivo promover a cultura, a nível popular, no município. Dona

Terezinha tem hoje mais de 70 anos de idade e sempre morou em Visconde do Rio Branco.

Conhece praticamente todos os seus moradores e praticamente todos já ouviram falar de Dona

Terezinha. Foi por insistência sua que levou-se para o museu, o que sobrou dos restos de

material arqueológico, ossos e cerâmica, encontrados na serra da Piedade em 1986. Além

disso, tem peregrinado pela região em busca de moradores que tenham, em suas casas,

material arqueológico. Foi exatamente por este motivo, e por seu intermédio, que chegamos

até o senhor José Agripino, morador da vila de Santa Maria, e que tem, em sua casa, mais de

80 peças de material lítico polido, recolhidas nas serras da região. A intenção de Dona

Terezinha é conseguir levar todo este material para o Museu Municipal. Desde que a

conhecemos, temos apoiado suas iniciativas, principalmente as ligadas à arqueologia, uma vez

que têm por princípio preservar, mesmo fora de contexto, o material arqueológico da região.

Apesar de já a conhecermos a bastante tempo, a entrevista com Dona Terezinha era

inevitável. E para nossa surpresa, na entrevista, realizada nas dependências do Museu

Municipal, sem nenhum acompanhante, nos foram colocadas informações que ainda

desconhecíamos. Como exemplo, podemos citar o caso do senhor Agripino, hoje, uma das

nossas peças mais importantes em Visconde do Rio Branco.

A segunda entrevista foi realizada com o senhor Honório Imaculada, um antigo

morador da serra da Piedade, no distrito denominado Piedade de Cima, e muito conhecido da

comunidade de Visconde do Rio Branco. Foi em suas terras, através de seus filhos Gasparino

e Haroldo, que se descobriu, em 1986, uma série de urnas funerárias e material arqueológico

ligado a sepultamentos. O senhor Honório é conhecido em toda Visconde do Rio Branco,

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também, por sua grande capacidade de criar e aumentar fatos diversos. Em relação a presença

de antigos grupos indígenas na serra da Piedade, sua versão é muito criticada e ridicularizada.

Apesar disso, todos os locais e histórias que a comunidade relata a respeito dos índios, sempre

aparece o seu nome. Além disso, Ele, ou seus filhos, conhecem toda a população e a região,

bem como sabem de praticamente todas as histórias sobre locais com “restos de índios”.

Dessa forma, não poderíamos deixar de entrevistar o senhor Honório, bem como os

seus filhos Gasparino e Haroldo. Eles também são peças importantes em nosso trabalho de

campo. A entrevista com ele foi realizada em sua casa, na serra da Piedade e contou com a

presença de sua esposa, Dona Jacira, de seus filhos, Gasparino e Haroldo, e de nosso

motorista, Adilson, que trabalha na Prefeitura Municipal de Visconde do Rio Branco e

também é morador da cidade. Esta entrevista foi um acontecimento muito importante para a

família, e como pode ser visto na transcrição da entrevista, todos participaram e opinaram. Foi

muito difícil conduzir a entrevista. O senhor Honório é uma pessoa muito difícil de controlar.

Hoje, alguns anos após a entrevista, sabemos que a grande maioria dos fatos relatados

e localizados por ele e seus filhos, são verdadeiros. O que parece existir na verdade, é uma má

vontade da população em relação a eles, uma vez que são conhecidos por serem muito

espertos em seus negócios: a exploração das jazidas de pedras para paralelepípedo, utilizados

na pavimentação de ruas, calçadas e bases para casas e prédios.

A busca de um sítio arqueológico sempre foi algo muito pouco considerado pelo

arqueólogo, seja em termos práticos, seja em termos de elaboração metodológica,

principalmente no sentido de poder retirar muito mais que simples indicações, fortuitas, de

locais com cerâmicas, ossos, pedras e pinturas, de alguém que pode ser o proprietário da terra,

um caçador, que ouviu, e/ou conhece, sobre a existência de tais materiais, ou mesmo pelo

próprio arqueólogo ao averiguar, em campo, a possibilidade de existência destes materiais em

locais propícios para isto, tais como cavernas e abrigos, entre outros.

Esta tarefa de busca do sítio arqueológico é normalmente incluída na etapa de pesquisa

denominada, pelo arqueólogo, de prospecção arqueológica e que significa, na verdade, a

exploração, do local escolhido, ou indicado, como sítio arqueológico e que pode, ou não,

apresentar material arqueológico de superfície. Normalmente, é justamente este material, de

superfície, que serve de referência para a indicação, por outrem ou pelo próprio arqueólogo,

daquele local como sítio arqueológico.

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Esta busca a sítios arqueológicos acontece, sempre, em função de uma, ou mais,

indicações para uma área ou região a qual, tendo confirmada a sua existência torna-se objeto

de projeto de pesquisa. Ela também acontece, quando o arqueólogo estiver trabalhando em um

determinado sítio arqueológico e buscar, através de informações de moradores, caçadores ou

conhecedores da região, os possíveis locais com indicativos, já mencionados, de outros sítios.

Nossa proposta, portanto, é de que este Trabalho de busca seja algo

metodologicamente elaborado e não apenas um encontro fortuito de um sítio arqueológico.

Assim, o encontro deste passaria a ser documentado da forma mais completa possível,

recuperando a forma como aquela sociedade, ou aquele segmento social, percebe, entende, se

relaciona e utiliza aquele tipo de informação, seja a nível pessoal, seja a nível coletivo.

Desta forma, o uso da História Oral nesta etapa da pesquisa arqueológica nos parece

ser o método mais correto para a recuperação de tais informações, bem como de produzir

material primário para uma série de outras pesquisas na área da Arqueologia, Sociologia,

História, Antropologia, etc. No projeto arqueológico sobre os grupos Puri e Coroado, estamos

utilizando tal proposta.

A Arqueologia, ciência que ainda hoje está baseada na técnica, apesar de todos os

ensaios teóricos, para a recuperação e análise dos restos deixados sobre o terreno pelo homem

e pela natureza, tem sofrido muito com a falta de um método que ultrapasse esta questão. A

prova está em que o material cerâmico, o material lítico, os restos humanos diretos, os restos

alimentares, bem como todo e qualquer elemento recuperado durante uma escavação

arqueológica tem um tratamento técnico a cada dia mais aprimorado, mais detalhado, a fim de

que possam oferecer, se não todas, ao menos uma grande parte das informações que contêm,

para explicar o próprio material e nunca recompor a sociedade da qual fazem parte.

Isto, concordando com os arqueólogos que dizem não ter a Arqueologia um método

próprio, é devido a falta de um método que tenha por base o homem, a sociedade. O que há na

realidade, são pesquisas utilizando-se de métodos diversos, e até mesmo da mescla de alguns,

segundo a preferência ou o interesse de cada pesquisador, trazidos de outras áreas do

conhecimento, sem no entanto delas comungarem.

Nós, por acreditar ser a Arqueologia uma ciência histórica que tem como objeto de

estudo, principalmente, as sociedades pré-históricas, propomos o uso, como base para a busca

dessas sociedades, de um método da História, a História Oral.

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Desta forma, a pesquisa, desde o momento de sua preparação até a sua conclusão, deve

levar em consideração que o objetivo é a recuperação, total ou em parte, de uma sociedade,

historicamente estabelecida, e não apenas de elementos isolados e na maioria das vezes sem

nexo, já que ao serem recuperados sem levar em consideração o contexto do qual fazem parte,

seja o pré-histórico ou o histórico, não passarão de simples objetos ou utensílios pertencentes

a uma sociedade qualquer e não àquela sociedade específica.

Assim, por acreditarmos ser esse processo todo, um processo histórico que merece

uma análise histórica, em todos os sentidos e não apenas no sentido técnico, estamos

propondo o uso de um método da História para melhor analisá-lo e entendê-lo.

Desta forma, pensando o sítio arqueológico, local onde estão representadas as

sociedades com as quais trabalha o arqueólogo, não apenas onde o homem deixou seus restos,

mas como sendo este local parte de um espaço maior, organizado, onde uma determinada

sociedade viveu, é que iremos trabalhar.

Essa concepção deve-se ao fato de consideramos o homem como um ser que vive em

sociedade e ocupa espaços, os quais são utilizados de acordo com sua necessidade, tendo cada

sociedade suas necessidades específicas. Por isso, acreditamos que o sítio arqueológico não

seja apenas o local onde encontramos elementos de uma sociedade, mas todos os espaços

utilizados por ela, espaços que por sua vez compõem-se de locais que têm aspectos distintos e

podem, até mesmo, estarem subdivididos.

Além disso, devemos acrescentar que dentro dessa nossa concepção de sítio, um

mesmo local ocupado pelo homem, como por exemplo um abrigo ou uma caverna, pode ter

sido ocupado por mais de uma sociedade e nesse caso devem ser percebidas, se possível,

quando da escavação e estudadas separadamente, pois são dessa forma, sítios distintos.

Com isso, não teremos mais um sítio rupestre, um sítio lítico, um sítio cerâmico e

tantos outros, mas sim uma sociedade ocupando um espaço dentro do qual encontramos seu

local de produção, de habitação, de cerimonial, etc.. Assim, quando identificamos um desses

locais não podemos perder de vista que ele representa apenas uma parte de determinada

sociedade e que portanto não deve, quando da sua conclusão, ser dado como resultado final

daquela sociedade, uma vez que ela não desapareceu, apenas mudou de local, foi habitar outro

espaço, talvez com novas forças produtivas, novas relações sociais, novas condições naturais.

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A partir dessa concepção, utilizamo-nos de Sonoja (1984, pp. 35 e 41)4 que nos diz

que “... podríamos establecer que um sítio arqueológico está compuesto por materiales de

diversa naturaleza, origem y significacion.” e que

... no es pues, una asociacion casual de artefatos, sino un conjunto de asociaciones de artefatos, aspectos y áreas de actividad cuya estructura representa la organizacion de la vida cotidiana de um grupo de individuos reunidos también para cumplir tareas objetivas y concretas dentro de un espacio conscientemente delimitado.

Desta forma, em seu trabalho, o arqueólogo deveria demonstrar e analisar a

racionalidade existente e evidenciada pelos elementos provenientes, ou resultantes, das

relações entre a sociedade e a natureza, entre a sociedade e o meio em que vive e entre a

sociedade com outras sociedades e/ou espaços, regiões, meios, etc.

Propomos aqui, a ampliação do trabalho do arqueólogo, ou seja, esta racionalidade

existente deva ser demonstrada e analisada a partir da busca e identificação do sítio

arqueológico, inserindo aí, através da História Oral, o tratamento às fontes orais que nos

levam até o sítio e que nos falam de seu envolvimento com ele, seja de forma individual, seja

de forma coletiva. Com isso, o arqueólogo poderá entender melhor porque aquele local

encontra-se da forma como está (intacto, destruído, preservado) e tratá-lo de maneira mais

adequada, principalmente com relação ao método mais apropriado para a recuperação daquele

material arqueológico.

Esta proposta de pensar o sítio arqueológico levando em consideração o conjunto de

espaços utilizados por uma sociedade em determinado tempo, associando-o, através da

História Oral, à forma como um segmento de nossa sociedade o vê e o concebe, nos faz

pensar de forma diferente, ou seja, de que aquele espaço não parou no tempo quando de sua

desocupação pelo homem "pré-histórico", mas, pelo contrário, continuou sendo ocupado até

nossos dias, por sociedades diversas e com concepções diferentes, seja em termos de espaço e

de mundo, ou de vida. É desta forma que os arqueólogos têm encontrado um sem número

sítios arqueológicos, de momentos muito diferentes, sendo ocupados ainda hoje. Se não

estivermos preparados e conscientes de tal fato tenderemos a fazer interpretações que não

corresponderão a realidade.

O arqueólogo, na busca do sítio arqueológico, entra em contato com três tipos de

referências: a fonte oral, a fonte escrita e a evidência material. A ordem, ou a seqüência, desta

lista é aleatória, dependendo exclusivamente do arqueólogo e de seu método de trabalho.

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Apesar disso, indiscutivelmente a referência mais utilizada e considerada é a evidência

material, por possuir indícios mais diretos, seguros e rápidos na localização do sítio

arqueológico. Nela podem ser utilizados vários métodos, tais como, observação direta,

fotografia aérea e detecção por resistibilidade, entre outros.

A fonte escrita, por sua vez, se comparada ao seu grande potencial, é muito pouco

utilizada. Acreditamos que este fato aconteça devido, principalmente, a maior familiaridade

do arqueólogo com a cultura material, com o trato dos restos materiais, com o material

arqueológico, em campo ou em laboratório. Isto é, com certeza, um dos principais motivos

que o afasta dos arquivos e do manuseio de fontes escritas, uma vez que o arqueólogo deve ser

aquele que trabalha com o documento material. O responsável pelo documento escrito seria o

historiador.

No que diz respeito a fonte oral, esta sim, raramente é utilizada, ou quando utilizada, é

subestimada. Quando falamos que raramente ela é utilizada, estamos nos referindo ao

depoimento do informante para a produção de uma fonte, e não apenas como um instrumento

a ser utilizado pelo arqueólogo, para que se possa chegar ao sítio arqueológico. Apesar do

depoimento de informantes, ser utilizada com extrema freqüência, muito raramente é

mencionada na literatura arqueológica. A prova pode estar ao analisar algumas referências5

que tratam, “em termos teóricos”, do trabalho de campo do arqueólogo. Verificamos que

apenas duas delas fazem menção direta à utilização de informações fornecidas pela população

local na busca dos sítios arqueológicos: Moberg (1986, p. 46)6 quando diz que “... de uma

maneira geral, uma grande parte das investigações arqueológicas exerce-se no terreno, em

contacto com as fontes de informação no seu próprio lugar de origem.” e Evans & Meggers

(1965, pp. 32-33)7 quando dizem que

A principal fonte de informação na localização de sítios arqueológicos são os próprios habitantes locais. Os residentes de Três Lagoas, por exemplo, poderiam indicar ao arqueólogo diversos sítios a serem usados como ponto de partida. Os demais seriam localizados viajando-se pelo rio e parando de casa em casa para tomar informações. ... No caso da vegetação ser muito densa e a área nunca ser atingida por inundações, então a pesquisa dependerá quase que exclusivamente das informações dos residentes locais. Felizmente, a maioria desses residentes é usualmente observadora, não lhe passando desapercebido qualquer aspecto fora do comum, como cacos lembrando-se freqüentemente da localização de tais ocorrências.

Se, ao contrário disso, analisarmos referências que têm por base a apresentação

“prática” do trabalho do arqueólogo, também verificaremos que este mesmo quadro se

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repetirá, ou seja, não há menção de como aquele sítio arqueológico foi encontrado e de que

forma a sociedade que o circunda, a sociedade no qual está inserido, o tem em sua realidade.

Embora este tema não esteja apresentado, e discutido, em nenhum manual de

arqueologia, seja para iniciantes, amadores ou profissionais, é algo com o qual os arqueólogos

vivem, e necessitam, permanentemente, quando estão em campo. Muitas vezes, dependendo

da região e do conhecimento que se tem da mesma, o que era, até então, um informante

fortuito, é transformado em guia, passando a acompanhar todos os passos das campanhas de

campo.

Algumas vezes o guia não é necessário, mas mesmo assim é incluído na equipe. Isso

ocorre porque esta pessoa, que sempre é moradora da região e conhecida da população,

domina a linguagem e os costumes usados por todos, podendo com isso facilitar, em um

primeiro momento, o acesso a esta população, bem como, posteriormente, aos locais de

interesse arqueológico, e que eventualmente poderão ser objeto de estudo daquela pesquisa

e/ou daquele arqueólogo.

O informante, que poderá ser um morador e/ou alguém que conhece a região escolhida

para a pesquisa, é a principal referência para a produção de informações que poderão nos levar

a locais de interesse arqueológico. A qualidade do informante, ou da informação, será medida

pelo conhecimento, pelo tempo e pelo grau de interação que o mesmo tem com a região e com

seus moradores.

Além das informações sobre os locais com restos arqueológicos, outro elemento que

nos será apresentado na entrevista, e que poderá ser utilizado também por outros

pesquisadores, será a relação e a forma como estes locais, de interesse arqueológico, foram

inseridos naquele espaço durante os mais vários momentos de tempo, e como aquela

comunidade, representante de um desses momentos de tempo, o concebe.

A relação entre arqueólogo e informante, ponto fundamental nessa proposta de uma

arqueologia pensada como uma Ciência da História, multidisciplinar, capaz de produzir

informações, e documentos, que poderão ser utilizados por outras áreas do conhecimento, tem

como uma de suas bases a História Oral. Este método, por conseqüência, transforma o

depoimento do informante em uma fonte, e como tal, o coloca a disposição do público e dos

pesquisadores para usos diversos.

O depoimento, principal momento na relação entre arqueólogo e informante, é o

instrumento que recupera, ou tenta recuperar, as informações tencionadas. Ele deverá ter como

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base um questionário elaborado a partir das questões consideradas necessárias e importantes

para a elaboração de um parecer a respeito da realidade arqueológica da região.

Dentre as inúmeras questões que envolvem, ou que deveriam envolver, o trabalho do

arqueólogo quando da busca, em campo, do sítio arqueológico, estão as relações existentes

entre ele, sítio, e a comunidade que o envolve.

Embora este fato seja, na maioria das vezes, simplesmente ignorado, toda comunidade,

ou segmento dela, que tem um sítio arqueológico próximo a si, localizados em terras de

alguns de seus membros ou, quando não, próximos a elas, tem uma determinada postura em

relação a estes locais, provocando o estabelecimento de novas relações com eles, locais, e com

o mundo que o circunda, seja em termos familiares, de amizade, comunitários ou sociais.

Esta postura em relação a estes sítios arqueológicos podem variar desde sua total

destruição até sua total preservação, podendo passar por uma variada gama de atitudes, dentre

as quais uma é extremamente comum, a de omitir ou esconder a informação. Isto pode

ocorrer principalmente por desinformação ou por medo.

No caso da desinformação, a mesmo pode ser em função de várias questões. A mais

contundente refere-se ao valor, financeiro, que estes locais, e seu material, podem ter. Por

inúmeras vezes nos defrontamos com pessoas que desejam vender informações sobre locais

com material cerâmico, lítico ou ósseo, ou mesmo querem vender o próprio material já

retirado por eles. Além disso, pode haver casos onde, em função de uma notícia de que este

tipo de informação e de material não têm valor financeiro, acaba por destruí-lo, podendo

chegar, até mesmo, a dinamitá-lo.

O medo, por sua vez, é outro motivo importante que faz com que locais com restos

arqueológicos sejam destruídos ou tenham sua identificação omitida. Isto ocorre

principalmente por questões místicas. Neste caso, a estes locais, principalmente com restos de

sepultamentos expostos na superfície, são imputadas informações do tipo “local assombrado”,

“local de despacho”, “local de desova de cadáveres”, etc. Sempre haverá uma notícia de que

naquele determinado local, à noite, houve-se “vozes, barulhos, luzes”, etc.

Além da informação, também devemos lembrar quem produz estas visões a cerca

destes locais. As visões podem ser diferentes, dependendo de quem originalmente as criou.

Para tal, sua credibilidade perante a comunidade, seu grau de instrução e sua posição social

são os elementos mais marcantes. A velocidade e a amplitude alcançada pela versão serão

diretamente proporcional ao seu grau de conhecimento e credibilidade junto a comunidade.

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Por sua vez, o grau de instrução terá influência na fidedignidade da localização e na descrição

do achado, ou seja, quanto maior o grau de instrução, mais detalhado será o achado, ao mesmo

tempo que, quanto menor o grau de instrução, mais precisa será a localização. Isto é de fácil

explicação. No interior, a regra, com algumas exceções, é de que as pessoas com alguma

instrução estejam morando na cidade, enquanto que os menos favorecidos neste item morem

no campo, na serra, no mato, etc..

Por outro lado, a preservação destes locais estará diretamente relacionada a influência

e a posição social que ocupam algumas pessoas dentro de sua comunidade. Isto fará com que

alguns segmentos desta comunidade se dediquem a preservação destes locais, bem como

procurarem pesquisadores capazes de dar conta de tais elementos. Um bom exemplo disto

podem ser os “Rotary Club” ou as “Associações Comunitárias”. Dentro delas existem

inúmeras pessoas dedicadas a preservar todo e qualquer elemento que possa das conta de sua

história e de sua cultura.

Portanto, a relação existente entre o sítio arqueológico e a comunidade que o envolve é

de fundamental importância para o arqueólogo, uma vez que poderá ser exatamente esta

relação que determinará a preservação do sítio, ou do resto, a integridade e a preservação da

informação, e o seu acesso a ele.

Com o exposto até o momento, podemos ter um quadro que nos da conta da realidade

encontrada pelo arqueólogo na busca do sítio arqueológico. Nela verificamos ser importante

não apenas o sítio em si, mas principalmente a percepção, a seu respeito, da comunidade que o

envolve, uma vez que com ela poderá se ter, ou não, a informação do sítio, mesmo que este já

esteja destruído, ou parcialmente destruído. Dessa forma, já nos é possível traçar um quadro a

respeito das novas relações entre o sítio arqueológico, a comunidade circundante e o

arqueólogo no momento da "prospecção arqueológica".

Na verdade, as relações existente entre os dois primeiros, sítio arqueológico e

comunidade circundante ou envolvente, não são novas, como poderíamos pensar e estamos

propondo. Elas sempre existiram, sempre estiveram lá, fazendo parte da realidade e do

processo de conhecimento daquela comunidade em relação aquele seu espaço de ocupação e

dos elementos que dele fazem parte. Nova seria a percepção e a utilização das mesmas,

enquanto fonte, pelo arqueólogo.

Fonte. Esta, acreditamos, seja a palavra chave. Porque a utilização deste

conhecimento, transformado em informação pelo arqueólogo, como já demonstramos, sempre

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foi utilizado. O necessário é a transformação deste tipo de informação, e suas relações, em

algo sistemático e metodologicamente estabelecido e previsto.

Assim, o encontro do sítio arqueológico, até então envolvido por uma grupo de tarefas

denominadas "prospecção arqueológica", passaria a ter no mínimo três etapas: a verificação

das fontes escritas, a busca das informações orais, em locais indicados pela fonte escrita, que

serão transformadas em fontes orais, e a checagem destas duas informações "in loco" através

da existência, ou não, dos restos arqueológicos.

As informações restantes, recuperadas quando da produção da fonte oral, e não

manuseadas pelo arqueólogo, deverão ser utilizadas por pesquisadores de outras áreas, no

sentido de instaurar, quando não a tem, naquela comunidade, a noção de preservação, de sua

história, de sua cultura e de sua identidade.

Da mesma forma que dissemos a pouco que a utilização de informações na busca do

sítio arqueológico não era algo novo, também a história oral, enquanto método, não o é.

Nova é sua possibilidade de utilização pela arqueologia. E enquanto possibilidade sua

perspectiva é infinita.

É importante lembrarmos que para que esta visão possa ser plenamente implantada e

utilizada há a necessidade de alterarmos a forma de concebermos a arqueologia. Não podemos

continuar entendendo o sítio arqueológico apenas como aquele local onde estão alguns restos,

sem identificar a sociedade a que pertencem e sem levar em conta os diversos tipos de

informações e de fontes existentes, e que a ele dizem respeito.

Como esperávamos, a inclusão da História Oral na pesquisa arqueológica preencheu

todas as nossas expectativas, recuperando informações que julgávamos não encontrar e nos

dando indicações que, de outra forma, muito dificilmente seriam alcançadas. A prova está na

entrevista do Senhor Honório, quando nos diz que se não fossemos tão chatos, ele não teria

nos dado as informações que nos deu.

1 - Para a grafia dos nomes dos grupos indígenas, seguimos a convenção estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia - ABA,

em 1953, onde normatiza que os nomes de povos e de línguas indígenas sejam empregados na forma invariável, sem flexão de gênero e

número. In: Revista de Antropologia, volume 2, número 2, USP, São Paulo, 1954, pp. 150-154.

2 - FERREIRA, Marieta de Moraes. História Oral: um inventário das diferenças. In: Entre-vistas: abordagens e usos da história oral, Rio de

Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1994.

3 - ALBERTI, Verena. História oral: a experiência do CPDOC, Rio de Janeiro, Centro de Pesquisas e Documentação de História

Contemporânea, 1989.

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19

4 - SONOJA, M.. La inferencia en la arqueologia social. In: Boletín de antropologia americana, Instituto Panamericano de Geografia e

História, Cidade do 10: 35-44, 1984.

5 - CAMPS, G.. Manuel de recherche préhistorique, Paris, Dois Editeurs, 1979. - ALIMEN, M.H. & STEVE, M.J. Prehistoria, Historia

Universal - Siglo XXI, volumen 1, Madrid, Siglo XXI Editores, 1975. - RAHTZ, P. Convite à arqueologia, Rio de Janeiro, Imago Editora,

1989. - FRÉDÉRIC, L. Manual prático de arqueologia, Coimbra, Livraria Almedina, 1980. - CHILDE, V.G. Introdução à arqueologia,

coleção Saber, Mira-Sintra, Publicações Europa-América, 1980. - BRAY, W. & TRUMP, D. Dictionary of archaeology, Harmondsworth,

Penguin Books, 1982. - MOBERG, C.A. Introdução à arqueologia, Lisboa, Edições 70, 1986. - EVANS, C. & MEGGERS, B.J. Guia

para prospeção arqueológica no Brasil, série Guias - 2, Belém, Conselho Nacional de Pesquisa / Museu Paraense Emílio Goeldi, 1965.