história, memória e esquecimento

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História, Memória e Esquecimento Bruno Vasconcelos de Almeida Doutor em Psicologia Clínica (PUC/SP) Psicólogo, Acompanhante Terapêutico e Professor da PUC Minas Em dois mil e oito, o ministro da justiça da época – Tarso Genro, e o então presidente do Superior Tribunal Federal – Gilmar Mendes, entraram em polêmica acerca da punição das pessoas envolvidas com a tortura durante a ditadura militar. Eis que das sombras, em jornal televisivo do maior grupo de comunicação do país, surgiu a figura de Jarbas Passarinho, ministro de três dos governos do referido ciclo. Indagado sobre a polêmica, Passarinho recordou seu último chefe. Ele, João Batista Figueiredo, ‘não queria justiça, queria o esquecimento’. Frase dita, segundo o ex-ministro, no apagar das luzes do regime. Não querer justiça, mas o esquecimento, supondo que tal frase tenha sido dita desta maneira, nos empurra para uma bela confusão. Misto de truculência com ignorância, o general que adorava cavalos também afirmou, e cito de memória, que o brasileiro não sabe, ou não sabia usar o mictório. Curiosamente o pedido tem sido atendido. Apesar de inúmeras teses, dissertações, livros e relatos, a lembrança ou o conhecimento da história recente do país não são generalizados na população e permanecem restritos aos envolvidos e à uma pequena parcela de brasileiros. Atrelados até o pescoço à lógica de um capitalismo que renova o consumo a cada instante, temos uma juventude que desconhece a história de seus pais. Entre historiadores encontramos a constatação de uma memória seletiva oriunda das dinâmicas das relações de poder na cena social do contemporâneo. Alguns grupos que chegaram ao comando, compostos majoritariamente daqueles que estiveram no exílio, predominaram sobre outros de quê pouco se fala, e apenas o silêncio a recobrir a dor de seus próximos. O caráter seletivo das narrativas na história recente é o exemplo mais próximo. Contudo, outros poderiam ser lembrados. A história dos negros no Brasil está longe de ser contada. Numa prática investigativa com alunos em um terreiro de umbanda,

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História, Memória e Esquecimento

Bruno Vasconcelos de Almeida Doutor em Psicologia Clínica (PUC/SP)

Psicólogo, Acompanhante Terapêutico e Professor da PUC Minas Em dois mil e oito, o ministro da justiça da época – Tarso Genro, e o então presidente do Superior Tribunal Federal – Gilmar Mendes, entraram em polêmica acerca da punição das pessoas envolvidas com a tortura durante a ditadura militar. Eis que das sombras, em jornal televisivo do maior grupo de comunicação do país, surgiu a figura de Jarbas Passarinho, ministro de três dos governos do referido ciclo. Indagado sobre a polêmica, Passarinho recordou seu último chefe. Ele, João Batista Figueiredo, ‘não queria justiça, queria o esquecimento’. Frase dita, segundo o ex-ministro, no apagar das luzes do regime. Não querer justiça, mas o esquecimento, supondo que tal frase tenha sido dita desta maneira, nos empurra para uma bela confusão. Misto de truculência com ignorância, o general que adorava cavalos também afirmou, e cito de memória, que o brasileiro não sabe, ou não sabia usar o mictório. Curiosamente o pedido tem sido atendido. Apesar de inúmeras teses, dissertações, livros e relatos, a lembrança ou o conhecimento da história recente do país não são generalizados na população e permanecem restritos aos envolvidos e à uma pequena parcela de brasileiros. Atrelados até o pescoço à lógica de um capitalismo que renova o consumo a cada instante, temos uma juventude que desconhece a história de seus pais. Entre historiadores encontramos a constatação de uma memória seletiva oriunda das dinâmicas das relações de poder na cena social do contemporâneo. Alguns grupos que chegaram ao comando, compostos majoritariamente daqueles que estiveram no exílio, predominaram sobre outros de quê pouco se fala, e apenas o silêncio a recobrir a dor de seus próximos. O caráter seletivo das narrativas na história recente é o exemplo mais próximo. Contudo, outros poderiam ser lembrados. A história dos negros no Brasil está longe de ser contada. Numa prática investigativa com alunos em um terreiro de umbanda,

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vislumbramos o tamanho de nossa ignorância. Não são poucos os exemplos. Mas por que deveríamos proceder, como queria o general Figueiredo, por que separar justiça e esquecimento? Seria a justiça da ordem da memória, antítese do esquecimento? Que lugar teria o esquecimento? O que lembrar e o que esquecer? Dito de outra forma: quais as possibilidades da memória e do esquecimento? Maurice Halbwachs criou o conceito de memória social ou coletiva. Esta é sempre vivida, física ou afetivamente. A história começa quando a memória social acaba, quando a memória não tem mais como suporte um grupo. Torna-se necessário a escrita impessoal e a narrativa, pois a memória recompõe a relação passado/presente e é estratégia de sobrevivência emocional (D’Aléssio, 1993, p. 97). Relatos de guerra parecem sinalizar a importância do ato de narrar como forma de sobrevivência aos horrores. De outra forma, o silêncio também poderia reivindicar a mesma função. O exemplo de Primo Lévi é paradoxal: anos depois do fim da guerra e de escrever o ‘relato’ ‘É Isto Um Homem?’, o escritor italiano, químico de formação, se mata. Neste caso temos o relato e o silêncio definitivo, numa conjunção atordoante entre o ato poético e a morte. Pierre Nora também trabalha a distinção memória e história. Para ele a memória é um processo vivido, conduzido por grupos vivos, em evolução permanente e sujeito a manipulação. A história é registro, distanciamento, problematização, crítica, reflexão (Idem, p. 101). É dele o conceito de ‘lugares de memória’: vivência que transborda de determinado momento histórico para ganhar espacialidade e permitir aos indivíduos a construção de uma identidade entre pertencimento e desenraizamento. Penso que esta idéia carrega sua dose de paradoxo e problematização: ao ganhar espacialidade, mesmo que subjetiva, não estaríamos reforçando o vínculo identitário que apaga as pegadas das narrativas minoritárias e que não constituíram os tais espaços? Claro que o autor se posiciona a partir de uma história crítica capaz de produzir brechas, criando passagens nos lugares de memória. Mais não posso ir neste caminho, afinal de contas não sou historiador. De Nietzsche quero extrair a idéia do esquecimento como potência. A memória surgiu em

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razão das pressões coletivas, diante das ameaças para a vida dos homens. O esquecimento é próprio ao indivíduo que digere suas experiências, sem nada reter delas. O esquecimento comporta sua própria vitalidade e é essencial para a criação de novos valores. Vejamos uma passagem de Assim Falou Zaratustra – ‘Das Três Transformações do Espírito’, na qual o filósofo trata das transmutações do espírito, primeiro em camelo, e em leão o camelo, e em criança o leão:

Mas dizei, meus irmãos, de que ainda é capaz a criança, de que nem mesmo o leão foi capaz? Em que o leão rapinante tem ainda de se tornar em criança? Inocência é a criança, e esquecimento, um começar-de-novo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro movimento, um sagrado dizer-sim. Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: sua vontade quer agora o espírito, seu mundo ganha para si o perdido do mundo. Três transmutações vos citei do espírito: como o espírito se tornou em camelo, e em leão o camelo, e o leão, por fim, em criança. – Assim falou Zaratustra. E naquele tempo ele se demorava na cidade, que é chamada: A vaca colorida. (Nietzsche, 1987, p. 186)

Esquecimento como fonte da criação, esquecimento como movimento de um devir criança, que afirma a vida e a desvantagem da história para a vida. Por outro lado, Bergson e Freud são dois autores que possuem cada um ao seu modo, uma teoria da memória e do esquecimento, que também caberia nesta discussão. Em Bergson temos a memória como duração, consciência, liberdade, conservação e acumulação do passado no presente. Lembrança que conserva a si em contração de multiplicidades. Se o presente é psicológico, o passado é ontológico. Já para Freud, o esquecimento se configura como produtividade recheada de sentidos, passível de interpretação, preso ao espaço de um inconsciente, ora estrutural, ora pulsional, ora dinâmico. Porém, ao sairmos a passeio pelo bosque esquizoanalítico, cujo inconsciente não se assemelha em nada às possibilidades da representação, e nos depararmos com o inconsciente produtor de desejos, de mundos, de delírios, das forças da vida, que estatuto teria o esquecimento? Que espécie de memória se compõe no jogo das forças, na capacidade de resistir à aceleração da vida, experiência marcante do contemporâneo? Ao percorrer em sobrevôo os autores acima, esboço o sentido e a direção dessa comunicação: não mais o quê lembrar, não mais o quê esquecer. Tal postulado nos remete a uma das idéias de Paul Ricoeur presente no belo livro recém

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traduzido - A memória, a história, o esquecimento – em que o autor traz, entre tantas outras idéias, a de uma política da justa memória – o esquecimento como prática de poder (Ricoeur, 2007). Como lembrar, como esquecer, quais estratégias são necessárias à política da justa memória, tema cívico confesso e caro a Paul Ricoeur. O que perpassa entre história, memória e esquecimento é a vida que se diferencia no jogo do atual e do virtual, nas práticas experimentais e nos esforços prometeicos, por vezes de morte, de escapar das capturas instauradas nas sociedades cada vez mais racionalizadas, nas formas engessadas da vida que recusam e asfixiam as forças que, por uma insistência última, não se submetem. Termino com o detalhe, o mínimo, o menor, recorte do cotidiano de um analista – e não é sem mal estar que experimentamos a insuficiência de todo saber, específico ou não, diante dos problemas do presente, mas certamente com a alegria de quem pode compor algo junto com outros, nos coletivos nos quais nos inserimos, temporalidades instauradoras de modos de existência capazes de fazer frente ao sofrimento não trágico. Trata-se de uma pequena digressão sobre a questão da transferência ou do vínculo que liga paciente e terapeuta. Em questão uma multiplicidade de tempos. O tempo do paciente, o tempo do terapeuta, o tempo da sessão, o tempo do encontro, o tempo das ressonâncias e efeitos fora do tempo analítico. Um vínculo inédito (Zygouris, 2002) a instaurar temporalidades diferentes na vida do indivíduo. Melhor dizendo, um vínculo inédito que se constitui através da duração, da memória, da história, do esquecimento. Esquecer, esquecer, esquecer... Era o que queria um paciente, vítima de tortura em uma delegacia do interior, após o término da ditadura militar. É tão tarde, tão tarde, ele dizia capturado por um sentimento de tristeza e impotência. Queria esquecer e não conseguia, queria viver e a memória atrapalhava. E esquecia outras coisas, os compromissos do dia seguinte, o aniversário de alguém, por vezes o nome da filha que o acusava de ter abandonado a família no passado. O esquecimento, que se configura por vezes como fardo a carregar, ressurge como dimensão vivida da duração. Tarde demais não é tarde demais. Não se trata de reencontrar, tempo redescoberto ou algo do gênero, mas de uma sensação que ao

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reaparecer nos instantâneos da memória, na insistência do esquecimento, reconfigura algo de possível na subjetividade. Esquecer era para aquele homem a possibilidade única da liberdade. Porém era tarde demais. Ele não conseguia. O tempo se reconstitui como vida vivida, diferenciação complexa e permanente. A lembrança vira outra coisa: a lembrança como atualização, a composição de novas forças com outras imagens, outras palavras, e o esquecimento tão necessário. Cito o escritor Lúcio Cardoso: Quem impede de ressurgir o que não foi, / quem ousará o veto a este incêndio póstumo? / Morrer é recomeçar. Porque duramos / das infindáveis mortes que recomeçamos. (Cardoso, 1982) Dedico este pequeno trabalho ao aluno Leandro Franco Dias, do curso de Ciências Sociais da Puc de Minas, e a dois outros jovens, Tiago Garcia Rosa e Makson Alves Ferreira, brutalmente assassinados em vinte e quatro de agosto de dois mil e oito. A violência, assim como a dor, fica na história e na memória, e neste caso, dificilmente o esquecimento abre uma janela para a vida.

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Bibliografia: Cardoso, Lúcio. Poemas Inéditos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. (Coleção Poiesis). D’Aléssio, Márcia Mansor. “Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora”, In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero/ANPUH, vol. 13, n. 25/26, pp. 97-103, set. 1992/ago. 1993. Nietzsche, Friedrich. Obras Incompletas. Seleção de textos Gerárd Lebrun. Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho. 4ª Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores). Ricoeur, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Tradução Alain François et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. Zygouris, Radmila. O Vínculo Inédito. Tradução Caterina Koltai. São Paulo: Escuta, 2002. (Coleção Ensaios).