memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento

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  • Olga Rodrigues de Moraes von SIMSON*

    Resumo

    O artigo discute a memria como matria pri-ma para a pesquisa em diversas reas das cincias sociais. Mostra as vrias formas de memria exis-tentes e seus papis nos embates que a vida em sociedade ensejar.

    Apresenta as principais caractersticas do processo de rememorar, falando do poder que a funo seletiva da memria representa. Coloca a importncia que os idosos possuam como guardies da memria, papel hoje exercido de maneira profissional pelas instituies-memria.

    Mostra a fora dos meios de comunicao modernos na construo da memria coletiva de uma dada sociedade e os riscos que esse quarto poder apresenta ao se perder a capacidade crti-ca na elaborao da memria.

    Conclui salientando a importncia da exis-tncia de instituies-memria dentro do mundo acadmico como uma garantia da elaborao de verses sobre o passado construdo de forma cien-tfica e, portanto, mais livres de influncias polti-co-ideolgicas.

    Abstract

    The articlc discusscs memmy as raw nwtcrial for research in diffaent arcas of Soczal Scicnccs It slwws thc differcnr fonns m which memory exzsts and thezr roles in thl! clashcs that lifc in suciet)' ujfcrs.

    lt Jncscncs chii'main clwractcristics uf thc fmJCcss of

    rccollection, talkmg of the fxmcr thm the sclcctit I! fw1Ltwn of thc mentor)' reJ>rescnts . Ir alsu slwws thc zmJ>ortancc tlwt ,1gcd [JenfJ{c luul as gwmlwns of the mcmory, role that 1wuadays is />L rformul profcssionall'\ frv mcmon instittawns.

    Ir shows tlu. strcngth uf thc modem means of ccmmtHni..:atm m the constmction of the collectzt e mcn11 H)' of ll gzwn 5ocict:v mui the nsks that this fourth J)()u:er Jwesents zf ue lose the caJJilClty of critzcs m elahnrating the mcmm)'.

    The arttcle concludcs b:v slwwing thc importance uf the exzstence ofthe memory msrttllttons in the acadcrnzc tvorld as a gwmmty of the elaborar ion of versions about the t>ast, lmilt m a suentific manner and thlls, free uf J>olitzcal-zdeulogzcal mfhwnccs.

    Memria a capacidade humana de reter fatos e experincias do passado e retransmit-los s novas geraes atravs de diferentes suportes empricos (voz, msica, imagem, textos etc.). Existe uma memria individual que aquela guardada por um indivduo e se refere s suas prprias vivn-cias e experincias, mas que contm tambm aspec-tos da memria do grupo social onde ele se fom1ou, isto , no qual esse indivduo foi socializado.

    H tambm aquilo que denominamos de memria coletiva, que aquela formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes pelos grupos dominantes e que so guardados como memria oficial da sociedade mais ampla.2 Ela geralmente se expressa naquilo que chamamos de lugares da memria3 que so os memoriais, monumentos,

    * Professora do Departamento de Cincias Sociais Aplicadas Educao da Faculdade de Educao da UNICAMP e Dire-tora do Centro de Memria da UNICAMP.

    1 Uma verso ampliada deste texto foi publicada na coletnea Arquivos Fontes e Novas Tecnologias: questes para a histria da educao, organizada por Luciano Mendes de Faria Filho - Campinas - SP: Autores Associados. 2000.

    2 HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. S. Paulo: Vrtice/ Revista dos Tribunais, 1990. 3 NORA, Pierre. Les lieux de memoire. 1. La Republique. Paris: Gallimard, 1984.

  • murais, arquivos, bibliotecas, hinos oficiais, quadros e obras literrias e artsticas que ex-primem a verso consolidada de um passado co-letivo de uma dada sociedade.

    Como contrapartida, ou outro lado da moeda, existem as memrias subterrneas ou marginais que correspondem a verses sobre o passado dos grupos dominados de uma dada sociedade. Estas memrias geralmente no esto monumentali-zadas e nem gravadas em suportes concretos co-mo textos, fotografias, CD roms, obras de arte e s se expressam quando conflitos sociais as evocam ou quando os pesquisadores que se utilizam do mtodo biogrfico ou da histria oral4 criam as condies para que elas emerjam e possam ento ser registradas e analisadas. Depois desse proces-so, elas passam ento a fazer parte da memria co-letiva de uma dada sociedade. Essas memrias subterrneas geralmente se encontram muito bem guardadas no mago de famlias ou grupos sociais dominados nos quais so cuidadosamente pas-sadas, de gerao a gerao, atravs de relatos, msicas, quadras poticas, ocasies em que os membros do grupo se auxiliam mutuamente na tarefa de relembrar, cada um contribuindo com detalhes que detonam processos rememorativos dos outros participantes. o que denominamos uma construo compartilhada da memria.

    H pesquisas mostrando que grupos populares de origem rural, quando enfrentando outras condies e ritmos de vida em habitat urbano, valem-se de estratgias que incorporam formas modernas de registro, como as audio-visuais, para documentar suas atividades culturais no intuito de retransmitir saberes e memrias tradicionais para as novas geraes.5

    O outro lado da funo de memorizar a de

    Augusto Guzzo Revista Acadmica

    esquecer. Uma no se d sem que a outra esteja presente. No podemos manter na nossa memria todas as experincias que vivenciamos ou das quais tomamos conhecimento num dia comum das nossas vidas. Assim somos obrigados a selecionar, para serem mantidas em nossa memria, aquelas informaes que possuem sig-nificado para nossas futuras tomadas de deciso.

    Na sociedade ocidental atual, o ritmo acelera-do do trabalho urbano somado facilidade e rapidez dos meios de comunicao (criadas pelos constantes avanos tecnolgicos) colocam o homem comum frente a uma quantidade avas-saladora de informaes. Tais fatos criam para o homem de hoje quase a obrigao de consumir a informao de forma acrtica, sem maiores cuida-dos seletivos, perdendo-se portanto uma das mais importantes funes da memria humana -a capacidade seletiva- que o PODER de sepa-rar aquilo que deve ser preservado, como lem-brana importante, daqueles fatos e vivncias que podem e devem ser descartados. A perda do exerccio desse poder de seleo nas sociedades atuais, constitui o fator fundamental para a for-mao do que os profissionais da informao chamam de sociedades do esquecimento6

    verdade que ns no nos lembramos de tu-do o que aconteceu ou que nos foi ensinado ao longo de nossa vida. Descartamos a maioria das experincias vivenciadas e s retemos aquelas que possuem significado, isto , so funcionais para nossa existncia futura. Iuri Lotman\ um semilogo falecido na segunda metade dos anos 90, que viveu atrs da Cortina de Ferro (sendo por isso suas obras pouco conhecidas entre ns), j dizia que cultura memria, pois a cultura de uma sociedade que fornece os filtros atravs

    4 VON SIMSON, Olga. Os desafios contemporneos da histria oral. Campinas - Centro de Memria da Unicamp, 1997. 5 Para conhecer melhor essa pesquisa ver: CASSIANO, Clia. Memrias itinerantes: um estudo sobre a recriao das Folias de

    Reis em Campinas. 1998. Dissertao (Mestrado em Multimeios) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

    6 BRITO, Marilza E. Memria e cultura. Centro de Memria da Eletricidade no Brasil. Rio de Janeiro, 1989. (Caderno da Memria da Eletricidade. n.1).

    7 Para maiores informaes sobre esse semologo ver: FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura Memria. ln: Revista da USP. So Paulo, 1995, n. 24, p.115-120.

  • dos quais os indivduos que nela vivem podem exercer o seu poder de seleo, realizando as es-colhas que determinam aquilo que ser descarta-do e aquilo que precisa ser guardado ou retido pela memria, porque, sendo operacional, poder servir como experincia vlida ou informao im-portante para decises futuras.

    Nas sociedades da memria, que existiram no passado e ainda subsistem em locais isolados da frica, da Oceania e da Amrica do Sul, e nas quais o volume de informao consideravel-mente muito mais restrito, a memria organi-zada e retida pelo conjunto de seus membros, os quais se incumbem tambm de transmiti-la s no-vas geraes, cabendo aos mais velhos, devido a sua maior experincia e vivncia, o importante papel social de guardies da memria. Cabe a eles a funo de transmitir s novas geraes de seu grupo social os fatos e vivncias que foram retidos como fundamentais para a sobrevivncia do grupo.

    Esse papel social dos idosos foi sendo grada-tivamente perdido ao longo da histria das sociedades ocidentais,8 mas, muito mais intensa-mente, na contemporaneidade, quando cada vez mais se diversificam e se sofisticam os suportes para o registro e manuteno da memria (docu-mentos escritos, imprensa, fotografia, vdeo, dis-cos, CDs, DVDs, disquetes etc.). Esse enorme volume de informaes fez surgir, nessas novas sociedades do esquecimento, instituies espe-cialmente voltadas ao trabalho de coleta, seleo, organizao, guarda, manuteno adequada e divulgao da memria de grupos sociais ou da sociedade em geral nessas novas sociedades do esquecimento.

    Essas instituies realizam, portanto, hoje, de forma profissional, uma tarefa social anterior-mente exercid-pelos idosos. So elas os museus, arquivos, bibliotecas e centros de memria que, segundo critrios previamente estabelecidos, rea-lizam o trabalho de coletar, tratar, recuperar, or-

    ganizar e colocar disposio da sociedade a memria de uma regio especfica ou de um grupo social, memria essa retida em suportes materiais diversos.

    Eixos definidos de pesquisa devem orientar esse trabalho, para que ele possa ser bem realiza-do e sua fixao se d em suportes tecnicamente escolhidos. Os eixos que orientam o trabalho variam de instituio para instituio e represen- tam o mago do exerccio de poder, por corres-ponderem aos objetivos do grupo que as criou e dirige.

    Hoje, neste novo sculo, temos vivenciado, acompanhando um movimento geral da so-ciedade ocidental, uma forte necessidade de lem-brar, como a outra face da moeda dos processos de mundializao. Quando se vive de maneira to acelerada a ponto de sermos impedidos at de "sentir o tempo passar", como se diz popular-mente, projetos envolvendo a memria possibili-tam aos participantes dos mesmos habitar esse tempo e viv-lo plenamente, numa relao que pode ser criativa e transformadora. Nesses proje-tas, os idosos certamente tm novamente um pa-pel social definido e importante.

    Ecla Bosi em Memria e Sociedade: lem-branas de velhos9, obra precursora no Brasil dos trabalhos cientficos que incorporam como fonte de dados para a pesquisa o ato de lembrar, j observava que a memria no sonho, mas trabalho. Podemos acrescentar que o ato de relembrar em conjunto, isto , o ato de recons-truir a memria de forma compartilhada, um trabalho que constri slidas pontes de rela-cionamento entre os indivduos - porque ali-ceradas numa bagagem cultural comum - e, talvez por isso, conduza ao. Portanto, a memria compartilhada tanto forma de domar o tempo, vivendo-o plenamente, como empuxo que nos leva ao, constituindo uma estratgia muito valiosa nestes tempos em que tudo transformado em mercadoria e tudo possui

    8 GIGLIO, Zula; VON SIMSON, Olga. A arte de recriar o passado: histria oral e velhice bem sucedida. ln: NERI, Anita L. Desenvolvimento e envelhecimento: perspectivas biolgicas, psicolgicas e sociolgicas. Campinas, So Paulo: Papirus, 2001.

    9 BOSI, Ecla. Memria e sociedade: lembranas de velhos. So Paulo: TA. Queiroz, 1979.

  • valor de troca. Essa memona compartilhada, 10 enquanto desejo latente do homem ps-moder-no, que se realiza numa relao no inserida na lgica de mercado, nos leva a construir redes de relacionamentos nas quais possvel focalizar em conjunto aspectos do passado, envolvendo par-ticipantes de diferentes geraes de um mesmo grupo social. Nesse processo so utilizados o que chamamos de "culos do presente", para recons-truir vivncias e experincias pretritas, o que nos propicia melhor compreender os problemas do presente e pensar em bases mais slidas e rea-listas nossas futuras aes.

    Assim podemos perceber que o trabalho com a memria, no qual os velhos tm papel funda-mental, mas os mais jovens tambm esto pre-sentes, no nos aprisiona no passado, mas nos conduz com muito maior segurana para o en-frentamento dos problemas atuais, ao permitir a reconstruo de aspectos desse passado recente. O trabalho com a memria tambm possibilita uma transformao da conscincia das pessoas nele direta ou indiretamente envolvidas, no que concerne prpria documentao histrica, (ampliando essa noo que abarca agora os mais diversos suportes: textos, objetos, imagens fo-togrficas, msicas, lugares, sabores, cheiros) e compreendendo melhor o valor do documento na vida local, passando assim a engendrar novas maneiras de recuper-lo e conserv-lo.

    Esse mergulhar conjunto e compartilhado no passado nos faz emergir mais conscientes quanto aos problemas contemporneos da vida da co-munidade estudada e geralmente nos conduz naturalmente a aes conjuntas e politicamente conscientes visando sua superao.

    Mas os estudos sobre a memria trazem tam-bm uma outra exigncia. semelhana de muitas novas reas- do conhecimento, eles exigem uma abordagem multidisciplinar. Para entend-la e ao seu funcionamento preciso valer-se de subsdios de vrias disciplinas, realizando uma in-

    Augusto Guzzo Revista Acadmica

    tegrao de conceitos elaborados em diferentes reas do conhecimento.

    Assim, como vimos, a memria pode ser, ao mesmo tempo, subjetiva ou individual {porque se refere a experincias nicas vivenciadas ao nvel do indivduo), mas tambm social, porque co-letiva (pois se baseia na cultura de um agrupa-mento social e em cdigos que so aprendidos nos processos de socializao que se do no ma-go da sociedade). S a Sociologia nos permite desvendar esses aspectos da memria.

    Sabemos tambm que ela nunca se apresenta de maneira ordenada ou cronolgica, pois fun-ciona atravs de associaes livres entre as vivncias e fatos do passado. Necessitamos da Psicologia para compreender esse funcionamen-to da memria.

    O processo de registro dos fatos vivenciados e selecionados como importantes ainda pouco conhecido, sendo objeto de constantes investi-gaes. Sabemos que ele se baseia nas sinapses (ligaes eletro-qumicas) que conectam o vivido experienciado pelos sentidos com a rea cerebral onde se dar o seu registro. S as cincias biolgicas nos ajudam a compreender esse as-pecto.

    Vimos tambm que, antes que o registro se processe, um importantssimo filtro seletivo atua-r separando o que deve ser retido daquilo que ser descartado, filtro esse fornecido pela cultura de uma dada sociedade.

    So os signos da cultura desvendados pela Semitica que nos permitem uma primeira pene-trao em tal processo que encerra certamente um forte sentido de poder.

    Para entender como cultura memria e memria pela cultura permite exercer um poder que transcende tanto a Poltica como a Filosofia, precisamos dos conhecimentos destas duas cin-cias fechando assim, por hora, a necessria mul-tidisciplinaridade exigida pelo objeto memria.

    As instituies-memria realizam a produo

    '

    0 VON SIMSON, Olga R. de Moraes. Construindo a histria recente de Jarinu atravs da memria compartilhada. ln PARK, Margareth B. (org.). Memria em movimento na formao de professores: prosas e histrias. Campinas, So Paulo: Mercado de Letras, 2000.p. 9 a 12.

  • racional e organizada de uma memria perdida, ao invs de se constiturem como depositrios de uma memria vivida, a qual s pode existir nos grupos sociais que apresentam intensa vivncia coletiva e forte identidade cultural.

    Para compensar esse carter racional e organi-zado que o trabalho com a memria das institui-es-memria precisa necessariamente apresen-tar, carter esse que as impediria de captar toda a riqueza cultural dos fatos sociais, pois, na verdade trabalhamos com objetos que os representam, torna-se indispensvel no nos voltarmos para simples vestgios ou documentos isolados, mas elaborarmos conjuntos documentais que nos permitam captar a intencionalidade e o simbolis-

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    mo do corpo social ao registrar seu passado. S dessa forma se pode contribuir para a cons-

    truo da identidade de um corpo social, pois fornecendo a ele conjuntos documentais racional e tecnicamente tratados e realizando uma boa divul-gao desse material que tais instituies podero bem realizar seu papel de guardis da memria.

    Hoje, pela utilizao do mtodo biogrfico na construo destes ricos conjuntos documentais, so muitas as verses captadas, a partir de dife-rentes atares sociais, o que nos permite relativizar posies, compreender o contexto poltico cul-tural do perodo e nuanar com vrios tons de cinza um passado que no pode ser reconstrudo somente em tons de branco e negro.

    BOSI, Ecla. Memsria e sociedade: lembranas de velhos. So Paulo: T.A. Queiroz, 1979. BRITO, Marilza E. Memria e cultura. Centro de Memria da Eletricidade no Brasil. Rio de Janeiro, 1989. (Caderno da Memria da Eletricidade: n. 1) . CASSIANO, Clia. Memrias itinerantes: um estudo sobre a recriao das Folias de Reis em Campinas. 1998. Dissertao (Mestrado em Multimeios) Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, So Paulo. FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura Memria. ln: Revista da USP. So Paulo, 1995, n. 24, p.ll5 -120. GIGLIO, Zula; VON SIMSON, O lga. A arte de recriar o passado: histria oral e velhice bem sucedida. ln: NERI, Anita L. Desenvolvimento e envelhecimento: perspectivas biolgicas, psicolgicas e sociolgicas. Campinas, So Paulo: Papirus, 2001. HALBWACHS, Maurice. A memoria coletiva. S. Paulo: Vrtice/ Revista dos Tribunais, 1990. NORA, Pierre. Les lieux de memoire. 1. La Republique. Paris: Gallimard, 1984. VON SIMSON, Olga. Os desafios contemporneos da histria oral. Campinas, Centro de Memria da Unicamp, 1997. VON SIMSON, Olga R. de Moraes. Construindo a histria recente de Jarinu atravs da memria compartilhada. ln PARK, Margareth B. (org.). Memria em movimento na formao de professores: prosas e histrias. Campinas, So Paulo: Mercado de Letras, 2000.p. 9 a 12.