memória, aprendizagem e esquecimento - a memória através das neurociências - capítulo 2

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  • 7/26/2019 Memria, Aprendizagem e Esquecimento - A Memria Atravs Das Neurocincias - Captulo 2

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    Salvador Dali (1904-1989). Persistence of Memory, 1931. leo sobre tela. The Museum ofModern Art (MoMA). New York.Esta uma das telas mais famosas do Sculo XX e evoca a finitude da vida, o passar das horase do tempo que, com ele, leva tambm a memria. Os relgios que se dobram como papel,mostram a obsesso humana com a passagem do tempo e a evanescncia da memria. Daldizia que os relgios no eram outra coisa seno o queijo camembert do espao e do tempo,suave, estravagante, solitrio e paranico-crtico. O prprio autor se retratou dormindo... e otempo se escoando. Alm dos insetos, somente ele se encontra, isolado, em uma paisagemrida e morna. Assim, na percepo do tempo e do espao, e no comportamento das memrias,adquire as formas suaves que se ajustam s circunstncias. A tela, de apenas 40 cm. Foiconcluda em apenas duas horas.

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    CAPTULO 2

    HISTRICO

    ... A imaginao e a memria so uma nica e a mesma coisa, que pordiversas consideraes tm nomes diversos. ...

    ... Se todos vssemos o mundo em termos idnticos, no haveriahistria nem mudana, nenhum conhecimento da face da Terra, nenhumregistro do tempo, nem artes, nem letras, nem sociedade. ...

    Thomas Hobbes(Leviat1651)

    Os primrdios

    esde a Antigidade o homem se preocupa com sua memria e

    com as dificuldades a ela pertinentes. Os comprometimentos

    cognitivos em pessoas com leses cerebrais tm uma longa

    tradio na histria da medicina. Para se falar sobre memria obrigatoriamente tem-se

    que falar sobre o crebro, j que ela uma de suas funes mais nobres. Ela a base do

    que somos, de onde viemos e para onde vamos. Da, necessariamente termos de

    comear nos reportando aos mais antigos relatos escritos sobre o crebro e a mente.

    Remonta a este perodo as primeiras observaes de localizaes cerebrais vinculadas a

    determinados sintomas, o que gerou no passado e, de certa maneira, ainda continua a

    gerar no presente intensas polmicas e debates.

    A primeira referncia ao crtex, e a qualquer parte do crebro, foi

    encontrada numa relquia histrica, encontrada no Egito, hoje conhecida como o papiro

    cirrgico de Edwin Smith (Figura 2.1). Embora escrito em torno de 1.700 a.C, este

    papiro uma cpia de um tratado cirrgico muito mais antigo que data do perodo do

    incio das construes das pirmides (Reino Antigo), algo em torno de 3.000 a.C.

    D

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    Figura 2.1O papiro de Edwin Smith que pode ser visto naNew York Academy of Medicine.

    Alguns dos relatos sobre este obscuro perodo histrico podemos obter

    numa obra extraordinria, publicada em 1999 pelo MIT Press, pelo neurocientista norte-americano Charles C. Gross, intituladaBrain, Vision, Memory Tales in the History of

    Neuroscience. Apesar de especiliazidado na rea da viso, Gross nos traz um imperdvel

    relato histrico sobre a cincia do crebro, e a leitura de sua obra uma bela viagem

    pelo passado do estudo sobre a mente e o crebro, que recomendamos a todos os

    estudiosos do tema. Edwin Smith foi um egiptologista norte-americano que comprou o

    papiro em 1862, em Luxor, Egito, de um vendedor local chamado Mustapha Aga,

    provavelmente vindo de uma herana familiar dos ladres de tumbas que habitavam

    um vilarejo nas proximidades. Edwin Smith e o papiro tornaram-se famosos e o papiro

    hoje leva seu nome. Smith morreu em 1906, deixando o papiro para sua filha, que o

    doou New York Historical Society. Esta Sociedade solicitou, em 1920, ao grande

    egiptologista, tambm norte-americano, James H. Breasted, uma traduo dos

    documentos, que foi concluda em 1930. Logo ela causou um enorme impacto nos

    historiadores mdicos e egiptologistas. Acreditava-se, antes, que a medicina egpcia era

    um amontoado de encantamentos, amuletos e supersties e que a medicina racional

    somente havia comeado com os gregos. Em 1938 o papiro foi transferido para o

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    Brooklin Museum e em 1948 foi novamente transferido para a New York Academy of

    Medicine, onde hoje se encontra. O papiro de Edwin Smith uma evidncia clara de

    uma tentativa para observar cientificamente o corpo humano e tratar, racionalmente,

    suas leses. Ele consiste de uma descrio emprica de quarenta e oito casos mdicos,

    comeando pela cabea e baixando para outras reas do corpo humano. Para cada caso,

    o escriba descreve sistematicamente o exame, diagnstico e plausibilidade do

    tratamento. Cada diagnstico chega a uma de trs concluses e o paciente deve ser

    informado do seguinte: um sintoma que eu vou tratar, um sintoma que eu vou

    tentar tratar, ou um sintoma que eu no vou tratar.

    Reproduzimos aqui literalmente o texto de Breasted, de 1930, e reproduzido

    por Gross (1999), com as devidas ressalvas, por se tratar de texto escrito em ingls

    arcaico e ter sido feita uma traduo livre, com as necessrias adaptaes para o

    portugus:

    A palavra para crebro surge, pela primeira vez, no caso nmero seis, e tem como

    ttulo: Instrues para se lidar com uma pessoa portadora de fratura em sua cabea, que

    rompe o osso, quebra seu crnio e expe o crebro. O exame o seguinte: Se voc exam ina

    um homem que tem uma ferida em forma de buraco em sua cabea, que ultrapassa o osso,

    esmaga seu crnio e expe o crebro, voc deveria apalpar sua ferida. Voc deveria ento tocar

    naquele local do impacto no crnio, como naquelas corrugaes que se parecem a cobre

    fundido, toque rapidamene naquele lugar e observe a expresso verbal de angstia, como

    acontece no lugar enfraquecido por uma coroa na cabea de uma criana, antes que o

    sangramento se torne completo e o paciente comece a eliminar sangue por suas narinas e que

    apresente rigidez da nuca. Diagnstico: [voc diz] que um sintoma para no ser tratado.

    (Captulo 1, pags. 2-3).

    Gross observa que o autor do texto acima, ao se referir s corrugaes,

    estava se referindo ao crtex cerebral. Em vrios outros casos apresentados neste texto,o autor observa a relao que existe entre a lateralidade da leso e a lateralidade do

    sintoma e demonstrava estar plenamente consciente de que o local da leso determina o

    local e a natureza dos sintomas. Gross acrescenta que o documento impressionante em

    sua racionalidade e empirismo, mostrando uma virtual ausncia de superstio e magia.

    Gross considera que Breasted realizou uma interpretao excessiva do papiro ao

    escrever, por exemplo, que este reconhecimentoda localizao de funo no crebro...

    mostra um discernimento precoce impressionante que foi mais completamentedesenvolvido pelos cirurgies modernos, das geraes atuais.

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    Neste ponto, Gross comenta que talvez a fantasia de Breasted tenha voado

    livremente ao sugerir que o papiro tenha sido escrito por Imhotep (Figura 2.2), o famoso

    mdico que viveu no perodo em que o papiro foi escrito. No h nenhuma evidncia

    para isto e improvvel que ele o tenha escrito, pois o papiro relata principalmente

    ferimentos ocorridos durante batalhas e, na rgida hierarquia do mundo mdico egpcio,

    Imhotep certamente no foi um cirurgio que tenha atuado em campos de batalha.

    Figura 2.2 Estatueta de Imhotep como semi-deus,uma pessoa de origem humana que, aps sua morte,foi considerado super-homem e objeto sagrado.Estatuetas como esta, foram muito comuns, poisexistem quarenta e oito no Wellcome HistoricalMedical Museum, vinte e uma no Museu do Cairo,cinquenta no Louvre e dez no Hermitage (Hurray,1928). Na foto, vemos uma das estatuetas expostasno Museu do Louvre, Paris.

    Imhotep (2667-2648 a.C.) viveu no Sculo XXVII a.C., tendo sido vizir ou

    ministro-chefe de Djoser, o segundo rei da terceira dinastia egpcia. Ele foi um misto de

    arquiteto genial, mdico, sacerdote, mgico, escritor. Poucas informaes chegaram at

    ns sobre sua personalidade misteriosa, mas sabemos que seu legado foi inesquecvel

    (ver sitehttp://fascinioegito.fateback.com/imhotep.htm). Sua vida foi celebrada por trsmil anos, desde a poca da construo da pirmide de Sakkara (em degraus) at o

    perodo greco-romano. Poucos homens na histria tiveram tal honraria. Durante toda a

    histria egpcia, o perodo de Imhotep foi considerado de grande sabedoria. Ele foi o

    primeiro grande heri nacional do Egito. A considerao que os egpcios tinham para

    com ele foi de tal ordem que, aproximadamte 100 anos aps sua morte, foi deificado e

    tido como deus tutelar da medicina. Os gregos, por sua vez, deram-lhe o nome de

    Imuthes e identificaram-no com Asclpio, filho de Apolo, o Esculpio dos romanos,deus da cincia mdica. Sua tumba tornou-se local de peregrinao religiosa na

    http://fascinioegito.fateback.com/imhotep.htmhttp://fascinioegito.fateback.com/imhotep.htm
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    antiguidade. o primeiro arquiteto cujo nome conhecido por meio de documentos

    histricos escritos. A ele tambm se deve o hbito de orientar rigorosamente as

    pirmides para o norte. Por tudo isso, ele tem sido considerado o gnio criador da

    arquitetura. Sir William Osler, considera Imhotep a primeira figura de um mdico a

    surgir claramente das nvoas da antiguidade (Wikipdia, 2009). Esttuas em miniaturas

    de Imhotep foram usadas como amuletos para se precaver de doenas.

    Ligar a memria ao crebro foi outra das difceis questes com as quais se

    depararam os estudiosos desde os tempos mais remotos. Entre os gregos, o primeiro a

    mudar o foco de ateno da origem dos sentidos do corao para o crebro, foi o

    filsofo e mdico Alcmaeon de Crotona (Figura 2.3), por volta de 500 a.C., ao declarar

    que todos os sentidos esto ligados ao crebro (Zimmer, 2004). Ele enfatizou a

    importncia dos trajetos dos nervos pticos, assim como afirmou, pela primeira vez, que

    o crebro era o rgo da mente, indo, portanto, muito mais alm do que se atribuiu a

    Imhotep. Atribui-se tambm a ele, o que ainda motivo de polmica entre os

    estudiosos, ter sido o primeiro mdico a utilizar o mtodo de estudar o corpo humano

    atravs da dissecao de cadveres, prtica no aceita entre os gregos.

    Figura 2.3Alcmaeon de Crotona (ca. 535- ? a.C.).

    Reza a lenda que Alcmaeon teria arrancado o olho de um animal morto eviu alguns canais que penetravam no crnio. Neste perodo, os gregos acreditavam que

    os nervos seriam esses canais, seriam recheados de espritos (ou pneuma) e

    atravessavam o corpo. Esses espritos seriam constitudos de ar, que era um dos quatro

    elementos do cosmos (os demais seriam o fogo, a terra e a gua). Tanto Alcmaeon como

    outros estudiosos gregos acreditavam que a cada inspirao de ar tais espritos

    penetravam no nariz, indo para o interior do crebro e da passavam para o corpo

    (Zimmer, 2004).

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    Os gregos consideravam que o corpo era constitudo de uma combinao

    dos elementos fluidos conhecidos como humores: a bile amarela, a bile negra, o sangue

    e a fleuma. Cada um deles possua suas prprias caractersticas de umidade, secura,

    calor, frio, etc. Para Hipcrates, contemporneo de Alcmaeon, a boa sade era

    proveniente do equilbrio dos humores. O crebro seria constitudo de fleuma mida e

    se ficasse excessivamente mido, a conseqncia podia ser a epilepsia. Se a fleuma se

    deslocasse do crebro para outras partes do corpo, havia o risco do desenvolvimento de,

    entre outras doenas, da tuberbulose.

    As razes da medicina e da psicologia modernas remontam ao quarto e

    quinto sculos a.C. Grandes filsofos gregos, como Scrates, Plato e Aristteles

    desenvolveram idias acerca do crebro e da mente mas, e principalmente, sobre a alma.

    Alcmaeon deixou seguidores no apenas entre os mdicos, mas tambm entre os

    filsofos. O mais importante deles foi o filsofo grego Plato (Figura 2.4).

    Preocupaes especficas com a memria vm de remotos tempos, to antigos quanto a

    histria escrita. Uma antiga lenda egpcia, relatada por Plato (427-347 a.C.), em seu

    Fedro, relata que Thoth, o deus do conhecimento, ofereceu a ddiva da escrita para o rei

    Thamus do Egito. O rei ficou relutante em aceitar tal ddiva, pois em sua opinio, ele

    expressava o medo de que a escrita iria trazer o esquecimento j que as pessoas no

    iriam mais exercitar suas memrias e sim em confiar nos caracteres escritos, externos

    mente (Rosenzweig, 2007).

    Figura 2.4Plato (525-436 a.C.). (Museu do Vaticano).

    Surgiram metforas acerca dos mecanismos da memria baseadas em

    especulaes de pensadores da antiguidade. Uma das mais conhecidas foi escrita numa

    tabuleta revestida com cera. O deus Thoth foi muitas vezes representado escrevendo em

    tal tabuleta. Um escritor ingls, em 2000, Draisma, em uma obra relevante intitulada

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    Metforas da Memria: Uma Histria das Idias Sobre a Mente, reproduz uma

    passagem clssica na tabuleta de cera como metfora para a memria que aparece na

    obra Theaetetus de Plato (uma das ltima obras do pensador grego no qual ele

    hipoteticamente conversa com Scrates) (Rosenzweig, 2007). Neste dilogo Scrates

    sugere:

    Nossas mentes contm um bloco de cera, que pode variar em tamanho, limpidez e

    consistncia em diferentes indivduos, mas em algumas pessoas do tamanho certo... Quando

    queremos nos lembrar de algo que vimos ou ouvimos ou pensado, ns submetemos o bloco

    percepo da idia e revelamos a impresso nela... Ns nos lembramos e sabemos de qualquer

    coisa impressa, na medida em que a impresso permanece no bloco; mas ns nos esquecemos e

    no sabemos de nada que apagado ou que no possa ser impresso. (Draisma, 2000; in

    Rosenzweig, 2007).

    Para Plato, esta tabuleta de cera foi um presente de Mnemosyne, a deusa da

    memria na mitologia grega e me das musas (Rosenzweig, 2007). At os tempos

    atuais, de certa forma homenageamos esta deusa quando nos referimos aos mtodos

    mnemnicos para a preservao de informaes aprendidas.

    Plato deu ao crebro um lugar central no cosmos. Em sua obra de dilogos

    Timaeus, Plato descreveu o cosmos como sendo um ser vivo, criado pr um artesodivino e com alma imortal. O arteso divino entregou a tarefa a deuses menores de criar

    os seres humanos, que foram projetados como a miniatura do cosmos, isto , com uma

    alma imortal em um corpo mortal, composto dos quatro elementos. Os deuses

    comearam criando a cabea, de formato esfrico como o cosmos. A semente divina foi

    plantada no crebro, para que assimilasse o mundo atravs dos olhos e ouvidos e, a

    partir da, desenvolvesse o raciocnio. O raciocnio era a misso divina da alma humana,

    que poderia reproduzir a harmonia e a beleza do cosmos em seus prprios pensamentos(Zimmer, 2004).

    Os deuses colocaram almas de natureza diversa no restante do corpo,

    segundo Plato. A poro da alma que deseja carne e bebidas e as demais coisas de que

    necessita em funo de sua natureza corporal, foi colocada nas entranhas. A se

    localizava a alma vegetativa que era responsvel pelo crescimento e pela nutrio do

    corpo, mas tambm pelas suas paixes inferiores: luxria, desejos e ganncia. Para

    conter os impulsos selvagens desta besta, os deuses construram uma barreira, odiafragma, separando-a de uma alma superior que foi situada no corao (Zimmer,

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    2004). Plato afirmava que a alma vital dotada de coragem, paixo e acostumada s

    disputas. Do corao fluam com o sangue as paixes vitais da alma que impulsionavam

    o corpo para a ao. Outra barreira interposta pelos deuses para impedir que as almas

    inferiores polussem a alma imortal na cabea foi o pescoo.

    Por outro lado, o principal discpulo de Plato, Aristteles, rejeitou o

    crebro como o centro da mente, voltando s teorias egpcias sobre o corao como o

    ncleo bsico de toda a nossa vida mental e espiritual. Para ele, o crebro no

    combinava com sua concepo da alma. Na sua filosofia, cada objeto tem forma prpria

    e capaz de se alterar quando se altera a matria da qual feito. Para Aristteles, uma

    casa surge quando as pedras so amontoadas de determinada forma e a casa desaparece

    quando as pedras s retiradas. A casa no tem um pilar nico ou ponto essencial nal

    qual se baseia, sua forma est em seu todo, mas em nenhum lugar em especial. Para ele,

    a alma a forma das coisas vivas, e engloba tudo o que um ser vivo faz para

    permanecer vivo (Zimmer, 2004). Como seres diferentes tm estilos de vida diferentes,

    suas almas devem ser diferentes, cada qual com seu prprio conjunto de de princpios,

    faculdades e poderes.

    Como Aristteles (Figura 2.5) no fazia experimentos de dissecao de

    cadveres para da tirar suas concluses, no era um anatomista muito arguto, muito

    pelo contrrio, suas inferncias eram extradas de sua filosofia particular e da

    observao da natureza em geral. Sem vnculos com a experimentao cientfica, ele

    passou a considerar que o corao seria um lugar bem mais lgico para abrigar as

    faculdades da alma racional. Ao observar o desenvolvimento de embries, o corao,

    localizado no centro do corpo, foi o primeiro rgo que ele observou tomar forma.

    Havia a crena entre os gregos de que o corao seria a fonte de calor vital. Aristteles

    via uma ntima relao entre calor e inteligncia. Para o filsofo grego, os animais

    podiam ter mais ou menos alma, assim como tinham mais ou menos calor. Osmamferos eram mais quentes do que os pssaros ou peixes e os seres humanos eram os

    mais quentes de todos os animais. Aristteles desconhecia os nervos e imaginava que os

    olhos e os ouvidos estariam ligados a vasos sanguneos, que levavam as percepes ao

    corao, e no ao crebro. Essas conexes levavam o corao a governar todas as

    sensaes, movimentos e emoes. Entretanto, ele considerava o crebro o moderador

    do calor e da agitao do corao. Ele considerava que o volumoso crebro dos seres

    humanos no so a fonte de sua inteligncia, e sim o corao, que produz mais calor e,portanto, precisa de um sistema de refrigerao mais volumoso (Zimmer, 2004).

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    FIGURA 2.5Aristteles (384-322 a.C.)

    Aristteles argumentava que tudo que chega do exterior em nossa mente

    passa pelos rgos dos sentidos. Para Yates, em A Arte da Memria (Nyberg, 2002),

    Aristteles via a memria como uma coleo de figuras mentais das impresses dos

    sentidos, mas com o acrscimo do elemento tempo, pois as imagens mentais da

    memria no vm das percepes das coisas presentes, mas das coisas passadas. E

    acrescentava que ns aprendemos por associao: nossas mentes associam de forma

    natural os fatos que ocorrem em uma seqncia (Meyers, 1994). O aprendizado uma

    das conseqncias da memria, o seu corolrio. Com Aristteles a metfora da tabuleta

    de cera voltou em grande estilo e com maiores detalhes. Ele sugeriu que em caso de

    doena que afetasse a memria, a consistncia da cera devia ser muito frgil de forma

    que no havia uma imagem clara que pudesse ser estampada na mesma, no havendo,

    portanto, impresso alguma caso presso fosse exercida sobre ela. Esta seria ento a

    causa pela qual crianas muito novas e pessoas idosas tm poucas lembranas. Elas

    estariam em estado de fluxo, a primeira por causa de seu crescimento, a ltima por

    causa de seu declnio (Rosenzweig, 2007).

    Em seu Tratado das Coisas Naturais, Aristteles distinguia a memria em

    dois grandes grupos:

    memria(em grego mnemem latim memoria) qual definiu como a

    faculdade de reter coisas que voltam espontaneamente ao esprito. O registro e o resgate

    se fazem sem esforo;

    reminiscncia (em grego anamnsis em latim reminiscentia), qual

    definiu como a faculdade de encontrar, pelo esforo, algo que se sabe saber (IPSEN,

    1987).

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    Para Rosenzweig (2007), a ntima associao entre a memria com a

    linguagem escrita passou do latim para as lnguas neolatinas e do francs (memoire)

    para o ingls. A palavra latina memria tanto significa memria quanto memoirs

    no ingls e mmoire no francs) que significam relato biogrfico, relatrio

    especializado em tema cientfico ou acadmico, relatrio sobre o andamento e

    realizaes de uma associao (Berube et al. 1985). O ingls herdou do francs as

    palavras memory e memoir, assim como o portugus herdou as palavras memria

    e memorial.

    Os mdicos da Antigidade aplicavam em seus pacientes a anamnese, a

    reminiscncia. Por meio de perguntas, eles faziam o paciente lembrar-se de todas as

    circunstncias que antecederam o momento em que ficara doente e as circunstncias em

    que adoecera, pois essas lembranas auxiliavam no diagnstico e no correspondente

    tratamento (Chau, 1994).

    A restituio da memria guardada (lembrana ou rememorao) pode

    ocorrer por dois mecanismos: o reconhecimento e a evocao. Quando da

    rememorao, os traos mnsicos so buscados ativamente (mesmo quando

    inconscientes) em decorrncia de critrios de seleo, em consequncia de desejos,

    circunstncias e informaes exteriores. As lembranas so ento ativadas. Esta

    restituio ou resgate (lembrana) pode ser: espontnea e involuntria ou buscada e

    desejada.

    Aristteles considerava a memria essencial para o desenvolvimento da

    experincia, do conhecimento cientfico, filosfico e tcnico. Em razo disso, ele nos

    legou seu depoimento na Metafsica: da memria que os homens derivam a

    experincia, pois as recordaes repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma

    nica experincia(Chau, 1996).

    Na Antigidade, a memria era considerada essencial para o aprendizado, eos mestres de retrica criaram mtodos de memorizao ou memria artificial, que

    constituam a Arte da Memria. Esta era parte essencial do ensino e do aprendizado

    de oratria, tornando-se, depois, uma arte usada por outras disciplinas de ensino e

    aprendizagem. Os romanos julgavam que, alm da memria natural, os homens so

    capazes de desenvolver outra memria, que amplia e auxilia a memria espontnea

    (Chau, 1996). Mdicos romanos j relatavam comprometimentos seletivos no

    reconhecimento de faces e de letras (McCarthy e Warrington, 1990).

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    Surgiu nessa poca um famoso mtodo mnemnico, descrito por Ccero em

    De Oratore (286) e por outros autores romanos, como Quintiliano, que ficou

    conhecido como mtodo dosloci (locais em latimplural de locus). Eles atribuam sua

    inveno a um grego, Simnides de Cos, poeta e criador da retrica (IPSEN, 1988;

    Chau, 1996). Para justificar a Arte da Memria, eles se baseavam na histria de

    Simnides.

    Reza a lenda que Simnides foi convidado pelo rei de Cos a fazer um

    poema em sua homenagem. O poeta dividiu o poema em duas partes: na primeira,

    louvava o rei; na segunda, os deuses Cstor e Plux. O rei, ento ofereceu um banquete

    em seu palcio para que na ocasio fosse lido o poema pelo seu autor. Aps a leitura,

    Simnides pediu o pagamento, como havia sido combinado. Espertamente, o rei

    respondeu que, como Simnides havia tambm homenageado os deuses, pagaria

    somente a metade; a outra metade, ele deveria cobr-la aos deuses. Pouco tempo depois,

    Simnides recebeu um mensageiro dizendo-lhe que dois jovens o procuravam do lado

    de fora do palcio real. Simnides saiu ao seu encontro, mas no encontrou ningum.

    Estando no jardim, o teto do palcio real desmoronou, matando a todos os convivas.

    No sendo possvel identificar os corpos de todas as pessoas, os familiares recorreram a

    Simnides. Este, surpreendido pela facilidade com que se lembrou dos lugares e das

    roupas de cada um, soube identificar a todos. Diz-se, ainda, que Cstor e Plux pagaram

    integralmente a Simnides, o que lhe era devido, pelo seu poema (IPSEN, 1988; Chau,

    1996).

    Surgiu, desde ento, a idia de se utilizar uma lista de locais para reter uma

    srie de conceitos formando a base da Arte da Memria. Os oradores utilizavam,

    freqentemente, as praas do frum para a colocar uma representao das diferentes

    idias em suas prolongadas tertlias. Da vem a expresso: Em primeiro lugar, eu

    falarei de... (IPSEN, 1988). Tambm a lembrana do palcio e dos lugares dosconvidados levou criao da arte da memria como um palcio, casa ou rua com

    lugares nos quais colocamos imagens e palavras e, passeando por um ou outro,

    ordenadamente, recordamos as coisas, as pessoas, os fatos e as palavras necessrias para

    escrever e dizer discursos, poesias, peas teatrais.

    Apesar de toda a influncia de Aristteles sobre a filosofia, a medicina e as

    cincias em geral na Antiguidade, ele no conseguiu impedir por muito tempo a

    associao entre o crebro e a mente. Aps sua morte, em 322 a.C., dois mdicos eanatomistas desafiaram suas idias sobre a sede da mente: em Alexandria, governada

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    pelos Ptolomeus, Herfilo (Figura 2.6) e Erasstrato (Figura 2.7), aps dissecar centenas

    de cadveres humanos, descreveram, pela primeira vez, o sistema nervoso (Zimmer,

    2004). Herfilo (335-280 a.C.), natural da Calcednia, atual Turquia, ao lado de

    Erasstrato (310-250 a.C.), fundou a famosa Escola de Medicina de Alexandria. Foi um

    dos primeiros a basear suas concluses na dissecao humana. Ele estudou o crebro,

    reconhecendo este rgo como o centro do sistema nervoso e da inteligncia. Dissecou e

    descreveu sete pares de nervos cranianos. Tambm distinguiu nervos de vasos

    sanguneos e os nervos motores dos sensitivos. Outros objetos de estudo foram os olhos,

    fgado, pncreas e o trato alimentar, assim como os genitais.

    Figura 2.6 - Herfilo da

    Calcednia (335-280 a.C.)

    Figura 2.7Antiochus et Stratonice. Pintura de

    Jacques-Louis David (1748-1825). leo sobre tela (1774).cole des Beaux-Arts, Paris. Erasstrato (310-250 a.C.) emvermelho).

    Ambos tentaram entender esse novo sistema nervoso de acordo com as

    noes ento existentes. Eles imaginavam que em cada inspirao do ar havia

    penetrao no corpo de um pouco da alma do mundo, que flua para o corao e as

    artrias como a gua dentro de um cano, levando a vida para o corpo e uma parte dela se

    dirigia ao crebro. Herfilo e Erasstrato realizaram outra importante descoberta:

    cmaras no centro do crebro, que denominaram de ventrculos onde, supunham, seria o

    nico local lgico para receber o fluxo dos espritos. Herfilo afirmou que em tais

    espaos se abrigavam o intelecto e que dos ventrculos os espritos fluiriam para os

    nervos ocos e depois para os msculos, inchando-os e fazendo-os se moverem. Ele

    supunha que o crebro no exercia nenhum tipo de comando sobre o corpo e que at os

    espritos teriam um poder limitado, pois os rgos do corpo se moviam em funo de

    seus prprios impulsos naturais (Zimmer, 2004).

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    Os escritos de Herfilo e Erasstrato se perderam e somente 400 anos aps

    que seus conhecimentos foram resgatados por outro mdico que se tornaria uma das

    maiores referncias em toda a histria da medicina: Galeno. No ano 150 d.C., Galeno

    (131-201) (Figura 2.8), ento um jovem mdico, viajou da Turquia at Alexandria para

    aprender os ensinamentos destes dois grandes mestres. Ele estudou os esqueletos

    humanos que haviam sido preservados por seus discpulos, leu as obras de ambos na

    Biblioteca de Alexandria, mas no podia dissecar cadveres humanos, j que nesse

    perodo Alexandria pertencia ao Imprio Romano e a dissecao de cadveres

    horrorizava mais aos romanos do que aos gregos (Zimmer, 2004). Foi mdico de

    gladiadores, onde podia observar um pouco da anatomia externa. Mas dissecou centenas

    de animais e, apesar de seu grande legado para a histria da medicina, seu maior

    problema foi ter se baseado na anatomia animal para tirar concluses acerca da

    anatomia humana. Por fim, fez uma sntese da medicina de Hipcrates, com as idias de

    Plato e Aristteles, associada s suas prprias observaes. Constituiu-se num

    profissional to famoso e competente que, ao se mudar para Roma, tornou-se o mdico

    dos imperadores at sua morte em 201 d.C. Os princpios da medicina galnica

    perduraram por mais de 1400 anos, durante o final do perodo da Antiguidade, passando

    por toda a Idade Mdia, sendo totalmente superados pelas grandes descobertas da

    medicina e da neuroanatomia do Sculo XVII, em particular com os estudos de

    dissecao do crebro de cadveres realizados por Thomas Willis. Somente a o

    engenho humano lanou as bases da atual neurologia e, para sermos mais exatos, das

    neurocincias.

    Figura 2.8Claudius Galenus (Galeno de Prgamo) (129-216 d.C.).

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    Dentre as inmeras teorias de Galeno, que no vamos aqui descrever por

    fugir ao escopo de nosso trabalho, uma das mais significativas foi a idia de que os

    espritos vitais passavam por uma srie de processos de purificao que incluam os

    intestinos, o fgado e o sangue. O fgado agregava ao sangue foras nutrizes que logo

    foram chamadas de espritos naturais. Estes espritos fluiam para a cabea e passavam

    por uma ltima etapa de purificao, em uma formidvel rede de vasos sanguneos na

    base do crnio, que tornou-se celebremente conhecida como rede maravilhosa (rete

    mirabile) (Figura 2.9). Neste local, eles se transformavam em espritos animais, capazes

    de pensar, sentir e se mover e, logo em seguida, penetravam nos ventrculos.

    Figura 2.9 esquerda a rete mirabile de Galeno, segundo a verso do anatomista alemoJohann Reichmann (1500-1560), tambm conhecido como Dryander, publicada em 1537,com a sequncia dos trs ventrculos logo acima da rede maravilhosa. direita, traduo dogrego para o latim do livro de Galeno De temperamentis, et de inaequalia intemprie,realizada por Thomas Linacre (fundador e o primeiro presidente da Royal Society ofSurgeons), impresso em 1521, na Inglaterra, patrocinado pelo livreiro Ioannen Siberch.(Fonte: Acervo da Universidade de Glasgow).

    Galeno afirmava que os ventrculos eram esfricos, tendo por cima

    abbadas de carne e seriam interligados por canais que, por sua vez, teriam sua estrutura

    preparada para que fossem expandidos pela presso de espritos animais. A pulsao do

    crebro teria por finalidade retirar os espritos de seus alojamentos e envi-los para os

    nervos ocos, onde se distribuiriam por todo o corpo, levando as sensaes e o poder de

    mover o corpo (Zimmer, 2004).

    Quando tratava seus pacientes, Galeno procurava restabelecer o equilbrio

    desse fluxo de espritos naturais, vitais e animais. No caso de um estmago

    superaquecido, poderia haver um fluxo exagerado de fleuma do crebro para o resto do

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    corpo. No caso de excesso de sangue, haveria aumento do humor quente e hmido e,

    como conseqncia, a febre. O tratamento por ele proposto era constitudo de

    purgaes, sangrias e ervas medicinais, o que levaria os humores de volta para seus

    lugares. Entretanto, Galeno acreditava ter descoberto algo mais do que uma forma de

    curar seus pacientes: ele imaginou ter descoberto os fundamentos de uma filosofia da

    alma. Ele afirmava ter encontrado a base de sustentao da teoria de Plato com seu trio

    de almas: a alma vegetativa do fgado seria responsvel pelo prazer e pelos desejos, a

    alma vital do corao seria produtora das paixes e da coragem e a alma racional da

    cabea seria responsvel pelos nossos pensamentos e idias (Figura 2.10).

    Figura 2.10O trio de almas de Galeno: em baixo a almavegetativa do fgado, no meio a alma vital do corao eem cima a alma racional da cabea.

    Ao dissecar animais, Galeno passou a conhecer o crebro muito mais do que

    qualquer outro estudioso da Antiguidade, mas no foi ele o precursor da neurocincia.

    Para ele, o crebro no passava de uma bomba, enquanto a inteligncia humana se

    alojava nos espaos vazios da cabea. E essa inteligncia no era exclusiva dos seres

    humanos: toda a natureza a possua, sol, lua e as estrelas, num grau at maior e mais

    pura do que a dos seres humanos. Galeno considerava os espritos animais, girando em

    nosso interior, como pequenos redemoinhos em um oceano de determinao,inteligncia e alma (Zimmer, 2004).

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    Vrios autores reproduziram a sequncia de ventrculos cerebrais de Galeno

    desde a Idade Mdia at o fim do Renascimento (Figura 2.11). Todos eles

    acrescentaram novas descries s realizadas por Galeno quanto s funes especficas

    de cada ventrculo. O primeiro ventrculo seria o local onde a informao dos rgos

    dos sentidos era recebida e inicialmente processada antes de ser passada para o

    ventrculo mediano, sede da razo e da cognio. Eventualmente, pensamentos eram

    transferidos para o terceiro ventrculo que seria a sede da memria. Pela figura podemos

    acompanhar a dinmica cerebral galnica: a primeira clula ( esquerda) seria o lugar de

    encontro comum para todos os sentidos e era chamada de sensus communis, em latim.

    Nossa expresso senso comum vem da. A maioria dos autores colocava tambm a

    fantasia e a imaginao nessa clula. O ventrculo do meio abrigava a cogitativa, ratio

    ou estimativa, o que corresponde ao pensamento racional. O Qanun de Ibn Sin

    (Avicenna) explicava que o sensus communis no ventrculo anterior recebe informaes

    sensoriais, a imaginao abriga as percepes dos sentidos depois que elas diminuem e

    a faculdade cogitativa no ventrculo mediano poderia manipular imagens guardadas na

    imaginao, criando as mais fantasiosas idias que o homem poderia desenvolver como,

    por exemplo, uma montanha composta s de pedras preciosas. A maioria dos autores

    concordava que o ventrculo posterior era o local da memria.

    Figura 2.11- As trs clulas ventriculares, segundo vrios autores. A: figura publicada no livroPhilosofia naturalis, de Alberto Magno (1206-1280), em 1506. B: figura do livro Chirurgia docirurgio Hieronymus Brunschwig (1450-1512), publicado em 1525. C: figura de autoria deGregor Reisch (1467-1525), em seu livroMargarita Philosophica, uma enciclopdia ilustrada, de

    1503. D: desenhos de Leonardo da Vinci, parte dos Codici di Anatomia. Acervo do Departamentode Anatomia Humana da Universidade de Parma, Itlia.

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    Esta teoria foi aceita por quase mil e quatrocentos anos e somente foi desafiada

    quando Andreas Vesalius a questionou, aps extensos estudos de dissecao de

    cadveres, inicialmente na Itlia e posteriormente na Holanda, e publicados em sua obra

    mxima de anatomia denominada De humani corporis fabrica, em 1543. Infelizmente,

    devido perseguio religiosa por ser um anatomista que estudava e dissecava

    cadveres, Vesalius no deu expanso s suas idias, deixando assim de ser o precursos

    da moderna cincia do crebro e das cincias cognitivas.

    Uma das razes pelas quais durante tanto tempo, do fim da Antiguidade,

    passando por todo o perodo medieval e chegando ao Renascimento, a medicina

    manteve a crena nas idias de Galeno foi decorrente do advento do Cristianismo. Os

    primeiros pensadores cristos voltaram-se para Galeno por necessitarem de novas idias

    sobre o crebro e a alma. Para o Velho Testamento, a alma era a prpria vida e residia

    no sangue. Com a morte do indivduo ela desaparecia. J o Cristianismo se apoiava no

    conceito de uma alma imortal que podia ser levada salvao ou condenao eterna.

    Galeno trouxe uma soluo para essa contradio. A alma do Velho Testamento passou

    a corresponder s almas inferiores do fgado e do corao. A alma imortal no portava

    uma dimenso fsica, mas os lderes cristos acomodaram suas faculdades nos

    ventrculos vazios da cabea, onde estavam em local protegido da corrupo produzida

    pela fraca carne mortal. Dando origem sequncia na produo de obras anatmicas

    posteriores sobre os ventrculos cerebrais, os lderes cristos foram alm de Galeno,

    dando ao ventrculo frontal a funo da sensao, o do meio o entendimento e o

    posterior a memria. Com isso, o crebro no ia alm de se constituir numa simples

    bomba que expulsava os espritos dos ventrculos para os nervos (Zimmer, 2004).

    Entretanto, o Cristianismo no foi influenciado apenas pela anatomia de

    Galeno, j que muitos filsofos em Roma no aceitavam suas idias sobre o crebro,

    dando preferncia s teorias sobre o corao que remontavam a Aristteles. Umaobservao especfica era bastante utilizada: se a fala vinha do peito, sua origem s

    poderia estar no corao. Galeno rebatia esta argumentao utilizando um mtodo

    elegante para a poca, fazendo intervenes cirrgicas em animais usados nas festas do

    Coliseu: ao apertar as cordas vocais de lees ele os silenciava. Mas seus oponentes no

    se intimidavam pois consideravam Aristteles acima de qualquer demonstrao prtica

    ou de teorias outras. Como conseqncia, o Cristianismo contribuiu decisivamente para

    a consolidao do conceito de que o corao era a sede das paixes, da conscinciamoral, portanto, um rgo de percepo poderosa que ia alm dos sentidos. No sem

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    razo que Jesus ainda hoje representado com o corao aberto, mas nunca o vemos

    com o crebro aberto (Zimmer, 2004).

    Vrias dcadas se passaram sem que nenhuma teoria nova viesse

    acrescentar novos conhecimentos sobre a memria. Mas descries da mesma foram

    aqui e acol se incorporando histria do pensamento sobre o tema. Um dos mais

    eloqentes relatos sobre a memria encontrado em Santo Agostinho, em sua j citada

    obra Confisses. (FIG. 2.12) Sua descrio da memria, antes de ser um dos mais

    preciosos subsdios para aquilo que sculos depois se chamaria de psicologia

    experimental, pode ser considerada uma das mais belas peas literrias jamais escritas

    pelo homem. Para encontrar a Deus ele percorreu um espao atravs da memria:

    ...para Vos buscar, Senhor, e no Vos encontrei fora dela. Nada encontrei que se

    referisse a Vs de que no me lembrasse, pois, desde que Vos conheci, nunca me

    esqueci de Vs (Santo Agostinho, 1996).

    Figura 2.12Santo Agostinho (354430)

    No captulo a que significativamente deu o nome de O Palcio da

    Memria, numa seqncia do relato de Ccero e outros romanos, Santo Agostinho nos

    diz:

    Chego aos campos e vastos palcios da memria onde esto tesouros de

    inumerveis imagens trazidas por percepes de toda espcie. A est tambm escondido tudo

    o que pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou at variando de qualquer modo os

    objetos que os sentidos atingiram. Enfim, jaz a tudo o que se lhes entregou e deps, se que

    o esquecimento ainda o no absorveu e sepultou.

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    Quando l entro mando comparecer diante de mim todas as imagens que

    quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras fazem-me esperar por mais tempo, at

    serem extradas, por assim dizer, de certos receptculos ainda mais recnditos. Outras

    irrompem aos turbilhes e, enquanto se pede e se procura uma outra, saltam para o meio,

    como que a dizerem: No seremos ns? Eu, ento, com a mo do esprito, afasto-as dorosto da memria, at que se desanuvie o que quero e do seu esconderijo a imagem aparea

    vista. Outras imagens ocorrem-me com facilidade e em srie ordenada, medida que as

    chamo. Ento as precedentes cedem o lugar s seguintes, e, ao ced-lo, escondem-se, para de

    novo avanarem quando eu quiser. o que acontece, quando digo alguma coisa decorada.

    Antes que qualquer psiclogo, trabalhando experimentalmente em seu

    laboratrio, precisasse as distintas sensaes que nos chegam ao crebro, produzindo

    logo aps as percepes, e bem antes que a anatomia e a neurocincia cognitivapudessem identificar localizaes distintas no crebro para a armazenagem a longo

    prazo dessas diferentes sensaes, Santo Agostinho, com preciso e extrema elegncia,

    prosseguia:

    L (no Palcio da Memria nota do autor) se conservam distintas e

    classificadas todas as sensaes que entram isoladamente pela sua porta. Por exemplo, a

    luz, as cores e as formas dos corpos penetram pelos olhos; todas as espcies de sons, pelos

    ouvidos; todos os cheiros, pelo nariz; todos os sabores, pela boca. Enfim, pelo tato entra

    tudo o que duro, mole, quente, frio, brando ou spero, pesado ou leve, tanto extrnseco

    como intrnseco ao corpo.

    O grande receptculo da memria sinuosidades secretas e inefveis, onde

    tudo entra pelas portas respectivas e se aloja sem confuso recebe todas estas

    impresses, para as recordar e revistar quando for necessrio. Todavia, no so os

    prprios objetos que entram, mas as suas imagens: imagens das coisas sensveis, sempre

    prestes a oferecer-se ao pensamento que as recorda.

    Santo Agostinho j questionava os mesmos pontos obscuros do

    conhecimento sobre a memria, dos quais somente agora, aps os avanos nas

    neurocincias das ltimas dcadas, comeamos a ter o invlucro retirado. Com seu

    discernimento, ele continuava:

    Quem poder explicar o modo como elas se formaram, apesar de se

    conhecer por que sentidos foram recolhidas e escondidas no interior? Pois mesmo quando

    me encontro em trevas e silncio posso representar na memria, se quiser, as cores, edistinguir o branco do preto e todas as mais entre si. Os sons no invadem nem perturbam

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    as imagens que a se encontrarem. Esto como que escondidos, e retirados. Se me apetece

    cham-los, imediatamente se apresentam. Ento, estando a lngua em repouso e a

    garganta em silncio, canto o que me apraz. Aquelas imagens das cores, que no obstante

    l continuam, no se interpem nem me interrompem quando manejo estoutro tesouro que

    entrou pelos ouvidos. ...... Tudo isto realizo no imenso palcio da memria. A esto presentes o cu,

    a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os

    que j esqueci. l que me encontro a mim mesmo, e recordo as aes que fiz, o seu

    tempo, lugar, e at os sentimentos que me dominavam ao pratic-las. l que esto

    tambm todos os conhecimentos que recordo, aprendidos ou pela experincia prpria ou

    pela crena no testemunho de outrem. ...

    Santo Agostinho, quando fala sobre o esquecimento, corolrio de todo

    conhecimento sobre a memria, nos d uma viso original, arguta e sensvel sobre o

    problema. De certa forma, continua este tema sendo um dos grandes enigmas que

    somente agora a cincia comea a decifrar. A bem da verdade, a cincia apenas resvala

    nos princpios do esclarecimento de to nobre funo da mente.

    Se a questo do conhecimento dos princpios da memria ainda nos escapa

    em muitos de seus detalhes, o que no dizer do esquecimento? Este outro

    departamento no qual somente agora o homem comea a penetrar. No captulo

    denominado A Memria Lembra-se do Esquecimento, o sbio de Hipona nos lega

    esta prola:

    E mesmo quando falo no esquecimento e conheo o que pronuncio, como

    poderia reconhec-lo, se dele me no lembrasse? No falo do som desta palavra, mas do

    objeto que exprime. Se o esquecesse, no me poderia lembrar do que esse som significava.

    Ora, quando me lembro da memria, esta fica presente a si, por si mesma. Quando me

    lembro do esquecimento, esto ao mesmo tempo presentes o esquecimento e a memria: a

    memria que faz com que me recorde, e o esquecimento que lembro.

    Que esquecimento seno a privao da memria? E como , ento, que o

    esquecimento pode ser objeto da memria se, quando est presente, no me posso

    recordar? Se ns retemos na memria aquilo de que nos lembramos, e se nos impossvel,

    ao ouvir a palavra esquecimento, compreender o que ela significa, a no ser que dele nos

    lembremos, conclui-se que a memria retm o esquecimento. A presena do esquecimento

    faz com que o no esqueamos; mas quando est presente, esquecemo-nos. No se dever

    concluir que o esquecimento, quando o recordamos, est presente na memria, no por si

    mesmo, mas por uma imagem sua? De fato, se ele estivesse presente por si mesmo, faria

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    O empirismo uma corrente tipicamente inglesa (Bacon, Hobbes, Locke,

    Berkeley, Hume), correspondendo ndole positiva e prtica da mentalidade anglo-

    saxnica, que j havia se manifestado desde a Idade Mdia, com Roger Bacon e

    Guilherme de Ockham. O empirismo tornou-se um fenomenismo sensista, em que tudo

    derivaria do subjetivismo dos sentidos. Por outro lado, o racionalismo tipicamente

    francs, tendo sido seus fundadores: Descartes, um francs que viveu na Holanda;

    Spinoza, um filho de pais espanhis, nascido em Portugal, que viveu toda sua vida na

    Holanda e desenvolveu sua teoria para questionar Descartes; e Leibniz, um alemo que

    tinha grande influncia francesa. O racionalismo tornou-se puro fenomenismo

    intelectualista em que tudo derivaria a priorida razo humana, tudo seria deduzido das

    verdades primeiras atingidas imediamente pelo intelecto (Padovani & Castagnola,

    1981).

    Tanto o racionalismo como o empirismo tm estreitas relaes com as

    cincias naturais e exatas (matemtica, fsica, astronomia, mecnica, etc.) que, dos

    Sculos XVI ao XVIII, chegaram a um grande desenvolvimento, em funo do interesse

    da civilizao e do pensamento moderno pela experincia. Os desenvolvimentos

    fantsticos e suas aplicaes prticas destas cincias, exerceram influncia determinante

    sobre a filosofia contempornea. O racionalismo aproximou-se do ideal fsico-

    matemtico, quantitativo-mecanicista: o mundo no seria mais concebido como um

    grande ser animado (concepo da Renascena), mas como uma grande mquina. O

    empirismo foi atrado pelo mtodo indutivo, experimental (Padovani & Castagnola,

    1981).

    Estas correntes tiveram outra divergncia no tocante maneira de encarar a

    histria, que foi muito impulsionada pelo Renascimento. O racionalismo, em

    decorrncia de seu ideal das noes claras e distintas, inteligveis e racionais, foi

    contrrio histria, tradio, autoridade, onde tais noes abstratas e universais nose podem realizar. J o empirismo, pelo seu ideal indutivo, concorda com a investigao

    histrica erudita, que atingiu seu apogeu entre os Sculos XVI e XVIII (Padovani &

    Castagnola, 1981).

    Mas houve um grande ponto de convergncia de ambas as correntes

    filosficas: o racionalismo, em vez de propor uma religio positiva, uma arte intuitiva,

    um direito concreto, uma moral religiosa, encaminhou-se para uma religio natural

    (desmo), uma esttica racional (Boileau), um direito natural (Grcio), uma moralnatural (Rousseau) e juntou-se aos desenvolvimentos do naturalismo emprico e deram

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    origem ao iluminismo, movimento filosfico do sc. XVIII que se caracterizava pela

    confiana no progresso e na razo, pelo desafio tradio e autoridade e pelo

    incentivo liberdade de pensamento, criando assim as bases filosficas e ideolgicas

    para a Revoluo Francesa (Padovani & Castagnola, 1981). Outra das conseqncias da

    sntese de ambas as correntes do pensamento humano, foi a sntese filosfica realizada

    por Immanuel Kant, que tornar-se-ia o centro, o eixo, da filosofia moderna. Esses

    pensadores do racionalismo e do empirismo foram malvistos e atacados por grandes

    universidades, pela autoridade religiosa e poltica, j que imaginavam que eles fossem a

    continuao ideal da revoluo humanista e imanentista do Renascimento e da Reforma

    e a semente de uma futura e mais sria revoluo poltico-religiosa (Padovani &

    Castagnola, 1981). Mas, felizmente, seu pensamento nos chega intacto at os nossos

    tempos atuais.

    O primeiro dos grandes filsofos racionalistas foi Ren Descartes (1596-

    1650) (Figura 2.13), nascido em La Haye, na Touraine francesa. Foi educado no colgio

    dos Jesutas de La Flche, tendo entrado aos 8 anos de idade e ficado a por quase dez

    anos, onde recebeu uma instruo filosfica e cientfica segundo os princpios da

    escolstica do perodo (Aristteles, Santo Agostinho, So Toms de Aquino). Ao

    terminar o perodo de estudos no liceu, cursou Direito na Universidade de Poitiers. Ao

    conclui-lo, como quisesse ganhar experincia diretamente, em contato com o mundo e

    no quisesse ter a vida de um erudito e intelectual, decidiu viajar pelo mundo. Viveu um

    curto perodo de tempo em Paris, levando uma vida mundana e sem ocupao (recebeu

    uma herana do pai que daria para ter uma vida tranqila, porm modesta, por toda a

    sua vida, sem necessidade de trabalhar). Em 1618 foi para a Holanda e se alistou na

    escola militar, a servio da casa de Orange, do prncipe Maurcio de Nassau, ento em

    guerra contra as foras espanholas, que tentavam recuperar a provncia holandesa, cuja

    independncia fora conquistada pouco tempo antes.

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    Figura 2.13 - Ren Descartes (1596-1650). direita, a teoriareflexa de Descartes da funo biolgica. A informao visual recebida pelo crebro pelos nervos pticos. Da, alcana aglndula Pineal, que regula o fluxo dos espritos animais paraos nervos. Os espritos vo para os msculos do brao, para

    produzir o movimento.

    Descartes viajou pela Europa, tendo-a percorrido entre 1619 a 1628,

    passando pela Dinamarca, Alemanha, Polnia, Alemanha e voltando a Paris, onde ficou

    por algum tempo. Conheceu influentes filsofos, matemticos, fsicos e mdicos, entre

    eles o duque holands Isaac Beeckman, com quem manteve uma estreita amizade por

    mais de vinte anos e com quem aprendeu muito daquilo que viria a ser seu futuro

    pensamento. Estabeleceu tambm estreita amizade com o matemtico Vieta, que muito

    contribuiu para o pensamento da geometria e lgebra de Descartes. Foi amigo do Rei do

    Palatinado e da Bohmia, Frederico V e, aps a queda deste ltimo em guerra contra o

    Rei da Baviera, tornou-se amigo de sua filha Princesa Elizabete, amizade que duraria

    at sua morte. Em 1623 viaja Itlia, onde toma contato com Galileu Galilei e seus

    experimentos, com os quais fica totalmente de acordo. Em 1624, na Frana, o Cardeal

    Richelieu entra para o Conselho do Rei e, em breve, passa a administrar os negcios do

    reino para o monarca Luiz XIII. Ele sempre teve grande respeito e deferncia pelo gnio

    de Descartes, e permitiu o seu trabalho na Frana sem maiores problemas. O filsofo

    volta para a Frana, onde encontra um ambiente propcio para o desenvolvimento de

    seus pensamentos mais avanados. Em 1628 ele passa a morar na Holanda,

    definitivamente, j que a encontra um ambiente de mais tolerncia religiosa e poltica e

    contava com bons e antigos amigos, e publica Regras para a Direo do Esprito. Em

    1629 toma contato com a obra de William Harvey Sobre o Movimento do Corao, que

    muito o impressiona. Em 1633 Galileu condenado pela Inquisio. O impacto sobre

    Descartes foi intenso, que suspende a publicao de seu Tratado do Mundo, porconsider-lo perigoso demais para sua prpria sobrevivncia, j que poderia ser

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    considerado hertico e apstata. Em 1637 publica sua obra mais famosa, o Discurso do

    Mtodo, que viria a modificar inteiramente os rumos da filosofia da para a frente.

    Descartes viajava regularmente da Holanda para a Frana, onde gozava de grande

    prestgio nos meios intelectuais e, a essa altura, j era um nome mundialmente

    conhecido. Em 1642 morre Richelieu. Em uma de suas viagens Frana, Descartes

    encontra Pascal, com o qual tambm mantinha uma relao muito respeitosa. Manteve

    estreitos contatos com Gassendi e Hobbes, o grande empirista ingls, na poca exilado

    em Paris. Manteve, desde os tempos da escola de La Flche estreito contato com o

    Padre Marin Mersenne, com o qual, at o fim de sua vida, manteve uma

    correspondncia, posteriormente publicada. Outra amizade importante foi com

    Constatyn Huygens, pai do fsico e astrnomo Christian Huygens. Em 1649 vai, a

    contragosto, Sucia, a convite da jovem rainha Cristina, que o convidara a ser seu

    tutor em cincias e filosofia. Pouco depois, no incio de 1650, Descartes morre em

    decorrncia de uma pneumonia. Seu corpo foi transladado para Paris em 1667, onde foi

    sepultado na igreja de Sainte Genieve-du-Mont. Foi desenterrado durante a Revoluo

    Francesa e sepultado no Panteo, local destinado aos grandes heris de sua ptria.

    Atualmente, seu tmulo est na igreja de Saint Germain-des-Prs.

    A obra mais importante que Descartes legou para o mundo das cincias em

    geral, e em particular para as cincias do crebro, o Discurso do Mtodo, onde ele,

    pela primeira vez, exps aquela que talvez seja a tese filosfica mais famosa de toda a

    histria: o cogito, ergo sum: penso, logo existo (alguns consideram que o filsofo

    Campanella tenha sido a origem da inspirao de tal idia). Campanella foi o primeiro

    pensador moderno a desenvolver o conceito da dvida universal como ponto de partida

    de uma maneira de pensar verdadeira e a tomar a autoconscincia como base do

    conhecimento e da certeza. A obra Metafsica de Campanella saiu em 1638, portanto

    um pouco depois da obra de Descartes, mas este diz em sua correspondncia que havialido as obras de Campanella, onde este deduzira da autoconscincia a certeza da prpria

    realidade (Cobra, 1997).

    Em seu Princpios da Filosofia, Descartes compara a sabedoria a uma

    rvore que estaria presa ao domnio do ser, realidade, por meio de suas razes

    metafsicas. O tronco da rvore seria a fsica, ou seja, o conjunto dos conhecimentos

    sobre o mundo sensvel, redutveis, porm, sua estrutura matemtica. Os ramos

    representam as principais artes que aplicam conhecimentos cientficos: a mecnica, amedicina, a psicologia, a moral. Uma nica seiva circularia por todo esse complexo

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    organismo, garantindo-lhe a vitalidade. Descartes, embora desde cedo voltado para as

    pesquisas cientficas, no considera que estas se bastem a si mesmas: o tronco da fsica

    sustenta-se em razes metafsicas (Pessanha, 1996). Coerente com esse princpio,

    Descartes considera que a idia de que nossa existncia como coisa pensante (res

    cogitans) no nos traz nenhuma certeza sobre qualquer idia do mundo fsico. Como diz

    Pessanha (1996):

    De nada adiantaria afiar o gume do instrumental analtico se ele, porm, no

    atingisse um alvo real o que Descartes parece mostrar nas partes do Discurso do Mtodo e

    das Meditaes, em que a exacerbao da dvida, por via da hiptese do malin gnie, coloca

    em xeque a objetividade do conhecimento cientfico. Se da mxima incerteza desponta uma

    primeira certeza Se duvido, penso e, esta ainda, contudo, uma certeza a respeito da

    prpria subjetividade (penso). Nada fica at a garantido a respeito de qualquer realidade

    exterior ao pensamento. Todavia, j um primeiro elo na cadeia de razes e basta uma

    primeira certeza plena para que a ordem natural faa jorrar luz sobre o que at ento

    permanecia desconhecido. A dinmica inerente s sries de termos dispostos racionalmente

    (como as progresses matemticas) leva inevitvel explicitao do que est contido no Se

    duvido, penso. Leva ao Cogito: Penso, logo existo(Cogito ergo sum).

    A dvida universal foi o mote para que Descartes desenvolvesse seu

    raciocnio de contestar tudo o que lhe ocorre, se seria verdadeiro ou no. A descrio

    que nos lega sobre a importncia da dvida podemos encontrar na Quarta Parte de seu

    Discurso do Mtodo:

    E, porque h homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante s mais

    simples matrias de Geometria, e cometem a paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que

    estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razes que eu tomara at ento por

    demonstraes. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando

    despertos nos podem tambm ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que

    seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que at ento haviam entrado no meu

    esprito no eram mais verdadeiras que as iluses de meus sonhos. Mas, logo em seguida,

    adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que

    eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era

    to firme e to certa que todas as mais extravagantes suposies dos cticos no seriam capazes

    de a abalar, julguei que podia aceit-la, sem escrpulo, como o primeiro princpio da Filosofia

    que procurava.

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    Um dos grandes estudiosos contemporneos do racionalismo cartesiano o

    filsofo gans-norte-americano, professor da Universidade de Princeton, Kwame

    Anthony Appiah, autor de um livro instigante: Thinking it Through: An introduction to

    contemporary philosophy, publicado em 2003 pela Oxford University Press. Nele,

    Appiah assinala que na Terceira Parte doDiscurso do Mtodo, Descartes afirma:

    Ento, examinando atentamente aquilo que eu era e vendo que poderia presumir

    que no possua corpo e que no havia mundo nem nenhum local onde eu estivesse, mas no

    poderia fingir que eu no existia; e que, pelo contrrio, pelo fato de estar a duvidar da verdade

    de outras coisas, seguia-se com bastante evidncia e certeza que eu existia; ao passo que se eu

    tivesse parado de pensar, embora tudo o que eu sempre pensei ser verdadeiro o fosse, eu no

    tinha razo para acreditar que eu existia; eu soube a partir disto que eu era uma substncia

    cuja essncia ou natureza era apenas o pensamento.

    A filosofia da mente de Descartes, intimamente vinculada s cincias do

    crebro, sua concepo do seu clebre dualismo, e que foi motivo das maiores crticas

    posteriores advindas at de seus colegas racionalistas, como Spinoza. Sua concepo do

    homem que este tem uma dualidade corpo-esprito. So as seguintes as principais

    bases para o dualismo cartesiano:

    1- Para ele, o universo seria composto de duas substncias diferentes: amente, ou substncia pensante, e a matria, ou corpo, basicamente quantitativa,

    teoricamente explicvel por leis cientficas e frmulas matemticas. No homem, as duas

    substncias se juntaram em uma unio substancial, porm delimitadas. Descartes deu

    incio assim, ao dualismo radical, que foi til, pelo menos, para desbancar a

    consubstancialidade ensinada pela escolstica aristotlico-tomista. Para esta concepo

    escolstica, existe uma distino entre vrios tipos de conhecimento baseados na

    diversidade dos objetos conhecveis, cada qual com seu conceito determinado.Descartes considera que o poder de conhecer sempre o mesmo, qualquer que seja o

    objeto de estudo ao qual se aplica. Caso seja bem aplicado, pode atingir a verdade e a

    certeza, mas se for mal aplicado cair no erro ou na dvida. A mente, em vrias de suas

    atividades, depende do corpo: a paixo (que tudo que sentido) uma ao sobre o

    corpo. Descartes identificou na glndula pineal o centro da interao entre as duas

    substncias, baseado na localizao anatmica desta, uma pequena estrutura no centro

    geomtrico da base do crnio. Para ele esta localizao indicava uma funo nobre.

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    importante se ressaltar que a cincia da poca nada sabia sobre a pineal e sua atividade

    fisiolgica era completamente desconhecida (Cobra, 1997, Appiah, 2003).

    2- Outra manifestao de seu dualismo que Descartes considera que aquilo

    que algum pensa que ele , o seu eu (self), a sua mente. J que o indivduo uma

    mente, e as mentes so totalmente independentes do corpo, ele pode assim existir sem

    um corpo (Appiah, 2003).

    3- A mente do indivduo e os seus pensamentos so o que ele melhor

    conhece. Para Descartes, possvel, pelo menos em princpio, existir uma mente sem

    corpo, incapaz por muito que tente, de se aperceber de outras coisas, incluindo outras

    mentes. Descartes afirmava que o modo como tomamos conhecimento daquilo que se

    passa na mente de outras pessoas pela observao da sua fala e da sua ao (de outros

    corpos). Porm, podem ocorrer duas possibilidades de que nossa crena na existncia de

    outras mentes seja falsa: os outros corpos podem ser apenas erros de nossa imaginao;

    mesmo que os corpos e as outras coisas materiais existam, as provas nas quais nos

    baseamos para justificar nossa crena de que os outros corpos so habitados por mentes

    pode ter sido produzida por autmatos, mquinas sem mentes (Appiah, 2003).

    4- A essncia da mente ter pensamentos (Descartes considera

    pensamentos aquilo que nos apercebemos na nossa mente quando ela est consciente).

    E d um exemplo: A essncia de um tipo de coisa, K, a propriedade ou o conjunto

    de propriedades cuja posse uma condio necessria e suficiente para ser um

    membro de K. Ou seja, se algo tem a propriedade essencial E, ento pertence a K

    portanto E uma condio suficiente para pertencer a K; tudo o que no tem E, no

    pertence a Kportanto E necessrio para a relao de pertena(Appiah, 2003).

    5- Em outros trechos, Descartes afirma que a essncia de uma coisa

    material, ou seja, a propriedade que a coisa material tem que ter, ocupar espao. Para

    ele as duas diferenas essenciais entre coisas materiais e mentes so: a- as mentespensam, enquanto a matria no pensa, b- que as coisas materiais ocupam espao,

    enquanto as mentes no (Appiah, 2003).

    Para Descartes, o que distingue a mente do corpo tem dois plos: o negativo

    que a mente no existe no espao, o positivo que as mentes pensam. Para ele, a

    matria no pensa. Poucas pessoas imaginaram que as mesas ou os tomos tm

    pensamentos. Appiah se indaga; por que que Descartes pensou que as mentes no

    existem no espao? Podemos pensar que nossa mente est onde est o nosso corpo.Mas, se no tivermos corpo (e Descartes pensava que isso seria possvel), ainda assim

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    teremos uma mente. Assim pensando, ele no podia dizer que uma mente tem que estar

    onde o seu corpo est, simplesmente por que pode no haver um corpo. Alm do mais,

    se temos um corpo, por que que no podemos dizer que a que nossa mente est? Se

    no temos um corpo, seria essa uma resposta errada, mas na verdade ns temos um

    corpo.

    O grande problema da teoria de Descartes foi muito bem colocado por

    Appiah (2003):

    Eu penso que a principal razo para pensar que as mentes no existem no espao o

    fato de parecer estranho perguntar Onde que esto os teus pensamentos?. Mesmo que

    respondesses dizendo Eles esto na minha cabea, no seria bvio que isto era literalmente

    verdadeiro. Porque se eles estivessem na tua cabea, poderias saber exatamente em que lugarda cabea estariam e a quantidade de volume que ocupariam. Mas no se pode dizer quantos

    centmetros de comprimento ou largura ocupa um pensamento, nem se esto situados a norte ou

    a sul do crtex cerebral. [] precisamente este dualismo que faz surgir um conjunto de

    dificuldades posio de Descartes. Isto porque quem pensa que mente e corpo so totalmente

    distintos tem que responder a duas questes principais. A primeira, como que eventos mentais

    causam eventos fsicos? Como que, por exemplo, as nossas intenes, que so mentais, levam

    ao, que envolve movimentos fsicos do nosso corpo? Como que, por exemplo, possvel

    que a interao fsica entre os nossos olhos e a luz leve s experincias sensoriais da viso, que

    so mentais? []A resposta de Descartes a estas questes parece clara e suficientemente

    simples. O crebro humano, pensava ele, possui um ponto de interao entre a mente e a

    matria.

    De fato, Descartes sugeriu a glndula pineal, situada no centro da cabea, como

    sendo o canal entre os dois domnios distintos da mente e da matria. Era esta a resposta dele

    para o problema mente-corpo. No entanto esta teoria entra em conflito com a afirmao de

    Descartes de que o que distingue o mental do material o fato do mental no ser espacial. Pois

    se acontecimentos mentais causam acontecimentos cerebrais, ento isso no significa que

    eventos mentais ocorrem no crebro? Como que algo pode causar um acontecimento no

    crebro sem ser um acontecimento (ou algo do mesmo gnero) no crebro? Normalmente,

    quando um evento digamos A causa outro evento digamos B A e B tm de estar

    prximos um do outro, ou tem que existir uma sequncia de eventos prximos uns dos outros

    entre A e B. Um drama num estdio de televiso causa uma imagem no meu televisor a muitos

    quilmetros de distncia. Mas h um campo eletromagntico que transporta a imagem do

    estdio at mim, um campo que existe entre o meu televisor e o estdio. A perspectiva de

    Descartes ter de ser a de que os meus pensamentos causam mudanas no meu crebro e que

    estas mudanas depois levam minha ao. Mas se os pensamentos no existem ou no esto

    prximos do meu crebro, e se no existe uma cadeia de eventos entre os meus pensamentos e omeu crebro, ento isto um tipo de causalidade muito invulgar. Descartes quer dizer que os

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    pensamentos no esto em nenhum lugar. Mas, de acordo com o que ele defende, pelo menos

    alguns dos efeitos dos meus pensamentos esto no meu crebro e nenhum dos efeitos diretos dos

    meus pensamentos esto no crebro de outras pessoas. Normalmente os meus pensamentos

    levam s minhas aes e nunca levam diretamente s aes de outras pessoas. Chegamos,

    assim, a um problema central da posio de Descartes, j que normal pensar que as coisasesto onde os seus efeitos se originam. (Podemos designar esta ideia como a tese causal da

    localizao). Deste ponto de vista, os meus pensamentos esto no meu crebro, que a origem

    do meu comportamento. Mas se os eventos mentais ocorrem no crebro, ento, dado que o

    crebro est no espao, pelo menos alguns eventos mentais tambm existem no espao. Assim, o

    modo como Descartes distingue o mental do fsico no funciona. Designemos este aparente

    conflito entre o fato de que a mente e a matria parecem interagir causalmente e a afirmao de

    Descartes que a mente no existe no espao como sendo o problema de Descartes.

    A mesma posio de Appiah foi tambm assumida anteriormente pelo

    neurocientista portugus Antnio Damsio, como muito bem exps em sua magistral

    obra O Erro de Descartes, publicado em 1994. Voltaremos a Damsio mais frente,

    neste mesmo captulo e tambm no Captulo 8.

    Assim que, definidas como substncias distintas, a res extensa(o corpo) e

    a res cogitans (mente) coexistem no homem atravs da dualidade corpo/alma. Para

    justificar as relaes entre essas duas substncias opostas, Descartes desenvolveu em

    seu livro Tratado das Paixesexplicaes engenhosas, recorrendo ao intermediriado que chama de espritos animais, responsveis pela interligao entre corpo e

    esprito. O dualismo cartesiano no esperou muito para ser substitudo dentro da prpria

    escola racionalista por outras teorias acerca da relao corpo/alma, sendo as teorias mais

    significativas as de Spinoza e Leibniz, as teorias ontolgicas e ocasionalistas de

    Malebranche e o racionalismo matemtico de Kant e, por fim, indiretamente, Hegel

    (Padovani & Castagnola, 1981; Pessanha, 1996).

    Uma curiosa viso sobre a memria foi desenvolvida por Descartes em AsPaixes da Alma, publicada em 1649, um ano antes de sua morte. Nesta obra, Descartes

    aborda questes mdicas variadas, em particular a circulao do sangue e as ligaes do

    corao com a glndula pineal que, para ele, seria o centro no crebro que recebe todos

    os estmulos corporais e os transfere para o crebro propriamente dito (crtex e sub-

    crtex), atravs de poros. A pineal estaria anatomicamente localizada na regio medial

    do crebro, exatamente no centro geogrfico do mesmo, e se movimentaria para um

    lado ou para outro, na medida em que recebe os diversos estmulos corporais. No Art.

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    42, desta obra, denominado Como encontramos em nossa memria as coisas de que nos

    queremos lembrar, Descartes diz o seguinte:

    Assim, quando a alma quer lembrar-se de algo, essa vontade faz com que a glndula

    (pineal), inclinando-se sucessivamente para diversos lados, impila os espritos para diversos

    lugares do crebro, at que encontrem aquele onde esto os traos deixados pelo objeto de que

    queremos nos lembrar; pois esses traos no so outra coisa seno os poros do crebro, por

    onde os espritos tomaram anteriormente seu curso devido presena desse objeto, e

    adquiriram, assim, maior facilidade que os outros, para serem de novo abertos da mesma

    maneira pelos espritos que para eles se dirigem; de sorte que tais espritos, encontrando esses

    poros, entram neles mais facilmente do que nos outros, excitando, por esse meio, um movimento

    particular na glndula, que representa alma o mesmo objeto e lhe faz saber que se trata

    daquele do qual queria lembrar-se.

    No preciso ressaltar aqui quo fantasioso tal idia e de quo afastada

    estava da realidade fisiolgica da medicina de ento, apesar de Descartes ter

    presenciado inmeras dissecaes de cadres e, ele prprio, ter feito dissecaes em

    animais. Mas, em uma das Cartas de Ren Descartes ao Padre Marin Mersenne, seu

    amigo e confidente desde os tempos de La Flche, publicada pela revista da USP

    Scientiae Studia, em 2003, em traduo da Profa. Marisa Donatelli, Descartes faz mais

    algumas de suas bizarras consideraes acerta do seu entendimento acerca da memria.

    Diz um trecho desta carta (em resposta a Marin Mersenne):

    Vossa segunda carta, de dez de maro, continha uma outra do senhor Meyssonnier, e

    qual responderei, se pensar que esta vos deve ainda encontrar em Paris; mas se deve ser

    enviada para mais longe, no h necessidade de carreg-la tanto, e eu posso colocar aqui, em

    poucas palavras, tudo o que que tenho para faz-lo saber, e isso ser se vos agrada, para

    quando vs lhe escreverdes. E (depois de meus agradecimentos pela benevolncia que ele me

    testemunha) no que diz respeito s espcies que servem memria, eu no nego absolutamente

    que elas no possam estar em parte na glndula denominada conarium, principalmente nos

    animais e naqueles que tm o esprito grosseiro; pois, quanto aos outros, no teriam, parece-me,

    tanta facilidade em imaginar uma infinidade de coisas que eles nunca viram se a alma deles no

    estivesse junto a alguma parte do crebro que fosse muito prpria para receber todo tipo de

    novas impresses, e, por consequncia, muito imprpria para conserv-las. Ora, s h essa

    glndula qual a alma possa estar assim to junta, pois no h se no ela, em toda a cabea,

    que no seja dupla. Mas eu creio que todo o resto do crebro que serve mais memria,

    principalmente suas partes internas e, ainda, que todos os nervos e msculos podem servir paraisso; de forma que, por exemplo, um tocador de alade tem uma parte de sua memria em suas

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    mos, pois a facilidade de dobrar e de dispor seus dedos de diversas maneiras, que ele adquiriu

    pelo hbito, ajuda a faz-lo lembrar de passagens para a execuo das quais ele deve assim

    disp-los. Vs acreditareis facilmente nisso, se vos dispuserdes a considerar que tudo aquilo a

    que se chama memria local est fora de ns; de forma que, quando lemos algum livro, todas as

    espcies que podem servir a nos fazer lembrar daquilo que est dentro no esto em nossocrebro, mas h tambm vrias no papel do exemplar que ns lemos. E no importa que essas

    espcies no tenham semelhana com as coisas das quais elas nos fazem lembrar, pois muitas

    vezes aquelas que esto no crebro no a tm mais, como eu disse no quarto Discurso de minha

    Diptrica. Mas, alm dessa memria, que depende do corpo, eu reconheo uma outra,

    totalmente intelectual, que s depende da alma. No estranharia que a Glndula Conarium se

    encontrasse corrompida na dissecao dos letrgicos, pois ela se corrompe to prontamente em

    todos os outros; e querendo v-la, em Leiden, h trs anos, em uma mulher que estava sendo

    anatomizada, ainda que a procurasse com muita curiosidade, e soubesse muito bem onde ela

    devia estar, como estando acostumado a encontr-la nos animais recm abatidos sem nenhuma

    dificuldade, todavia me foi impossvel reconhec-la. E um velho professor que fazia essa

    anatomia, chamado Valcher, confessou-me que javais havia podido v-la em nenhum corpo

    humano; creio que isso vem do fato de serem consumidos, comumente, alguns dias para ver os

    intestinos e outras partes, antes de abrir a cabea. No que diz respeito mobilidade dessa

    glndula, no quero outra prova alm de sua localizao: pois estando sustentada apenas por

    pequenas artrias que a cercam, certo que preciso pouca coisa pra mov-la, mas eu no

    creio, por isso, que possa se afastar muito, nem daqui nem de l.

    Alguns do a Descartes a distino de haver fundado a psicologia

    fisiolgica, porque foi ele que explicou o comportamento de animais inteiramente em

    bases de funes mecnicas do sistema nervoso, negando que tivessem "almas". Para

    ele, apesar de separados, mente e corpo eram interligados. Descartes afirmava que o

    corpo no era nada mais que uma mquina orgnica, comandada pelo reflexo, que ele

    julgava ser uma unidade de ao mecnica, previsvel, determinstica. Para fazer tal

    analogia ele se inspirou nos relgios dos jardins reais franceses, que, ao toque de

    algum, provocava o disparo de um mecanismo que se mexia e tocava msica.

    Descartes acreditava que muitas das funes mentais, como memria e imaginao,

    eram decorrentes de funes corporais. Ao fazer a ligao entre estados mentais com o

    corpo, Descartes se afastou das vises do dualismo que lhe eram contemporneas. Mas,

    possivelmente em decorrncia do receio da reao da Igreja e de personalidades

    influentes da poca, ele concluiu que a mente racional, que controlava a ao volitiva,

    era divina e separada do corpo. Descartes era dualista, sua viso mantinha a distncia

    entre mente e corpo, porm ele atribua ao corpo muitas funes mentais, que a filosofia

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    escolstica atribua exclusivamente ao domnio supremo da mente (Gazzaniga &

    Heatherton, 2005).

    Descartes tambm props uma teoria que explicava a percepo visual de

    distncia, forma e tamanho, em termos de indicaes secundrias. Mas seu cogito, ergo

    sum, bem como seu dualismo, marcaram posio indelvel na histria da filosofia. Este

    pensamento, alm da fcil compreenso, com uma penetrao universal pela sua

    singeleza e potencial de gravao mnemnica, mesmo por aqueles no iniciados na

    filosofia, representou em sua poca um desafio ditadura dos intelectuais escolsticos.

    Ficou evidente que apenas havia um ponto de partida verdadeiro para o encontro da

    verdade: sou eu e meu pensamentose duvido, penso, e se penso, existo. Esta idia foi

    logo compreendida como um grito de liberdade e estmulo para a busca da verdade, e

    contrrio afirmao de que nossa mente uma tabula rasa na qual so impressas as

    idias inatas infundidas por Deus. Embora Descartes no tenha sido o primeiro a tentar

    a independncia das teorias escolsticas opressivas, foi ele o primeiro a conseguir

    libertar o pensamento filosfico de suas amarras e inaugurar a moderna filosofia (Cobra,

    1997). Desde 1662, a obra de Descartes foi colocada no Index Prohibitorumda Igreja

    Catlica, por mais de duzentos anos, apesar de ter sido ele um humilde e devoto

    catlico, tal o medo que a Igreja tinha do poder e influncia de suas idias.

    Mas a roda do pensamento continuava a girar e o mundo a avanar. Outro

    filsofo racionalista de capital importncia para o conhecimento cientfico moderno foi

    Baruch Spinoza (1632-1677) (Figura 2.14).

    A famlia de Spinoza ( comum a grafia Espinosa em portugus) de

    origem judia castelhana, da cidade de Spinoza de los Monteros, na regio da cordilheira

    cantbrica, no norte da Espanha, que fugiu da Inquisio espanhola, estabelecendo-se

    em Portugal, quando os Reis Catlicos Fernando e Isabel, atravs do decreto da

    Alhambra, em 1492, proibiram aos judeus a residncia no pas (Chau, 1997; Cobra,1998). Portugal ofereceu asilo aos emigrados judeus, porm, em 1498, o rei portugus

    D. Manuel, o Venturoso, pediu a mo da princesa espanhola em casamento, o que foi

    concedido desde que Portugal expulsasse os judeus ou os obrigasse a assumir a f

    catlica, isto , que se tornassem judeus convertidos (cristos novos ou marranos).

    Miguel de Spinoza, o pai de Baruch, nasceu aproximadamente um sculo depois, na

    cidadezinha de Vidigueira, prxima a Beja. Como a perseguio aos judeus se

    recrudescesse no perodo, sua famlia emigrou-se para Nantes, na Frana e, em seguida,buscaram terras mais seguras, e emigraram inicialmente para Roterd e, posteriormente,

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    Amsterd, na Holanda. Na ocasio (final do Sculo XVI) os Paises Baixos haviam se

    libertado do jugo espanhol, aps sangrentas guerras, e a dinastia da Casa de Orange (na

    qual se destacou o Prncipe Maurcio de Nassau, o mesmo que tentou a colonizao

    holandesa de Pernambuco, no Brasil), estava ento no poder. Apesar da disputa pelo

    poder entre os membros da Casa de Orange, conservadores e autocrticos, com a

    burguesia mercantilista e liberal, a Holanda se estabelecera como um pas liberal tanto

    no sentido religioso, como poltico e comercial, estabelecendo fortes alianas com os

    demais pases do norte e centro europeus. Com isso, ela teve um impulso econmico

    extraordinrio, dando incio era capitalista moderna, com a asceno da burguesia

    comercial e criando as bases do moderno sistema bancrio internacional. Em um pas

    calvinista como a Holanda, em guerra contra um pas catlico como a Espanha, os

    Spinoza acharam por bem voltar sua velha crena judaica (que, na verdade, nunca

    haviam abandonado em sua intimidade familiar) e o judasmo foi a religio que o

    menino Baruch (Benedito ou Bento, em sua grafia latina) foi educado (Chau, 1997;

    Cobra, 1998).

    Figura 2.14 - Baruch Spinosa (1632-1677).

    Baruch Spinoza foi um profundo estudioso da Bblia, do Talmud e de obras de

    autores judeus, como Maimnides, Ben Gherson, Ibn Ezra, Hasdai Crescas, Ibn Gebirol,

    Moiss de Crdoba e outros. Estudou tambm os clssicos greco-romanos como

    Scrates, Plato, Aristteles, Demcrito, Epicuro, Lucrcio. Teve tambm contato

    estreito com a obra do herticoGiordano Bruno (este foi queimado pela Inquisio em

    1600, devido s suas teorias de apoio a Coprnico de que a Terra no era o centro do

    universo, mas que girava em torno do sol, e que este era mais uma das milhares de

    estrelas do universo).

    http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3crateshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Plat%C3%A3ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teleshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Dem%C3%B3critohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Epicurohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Lucr%C3%A9ciohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Giordano_Brunohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Giordano_Brunohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Lucr%C3%A9ciohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Epicurohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Dem%C3%B3critohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teleshttp://pt.wikipedia.org/wiki/Plat%C3%A3ohttp://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B3crates
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    Spinoza viveu no perodo conhecido como Idade de Ouro da histria da

    Holanda, um perodo de grandeza econmica, poltica e cultural, baseada na expanso

    comercial, quando este pequeno pas se alou ao nvel de potncia mundial, se

    ombreando s outras grandes como a Inglaterra, Frana, Espanha e Portugal (estas duas

    j em franco declnio poltico e econmico). O estilo de vida do povo holands, se

    contrastando com o dos demais povos das grandes potncias, era de simplicidade e

    respeito entre as classes. Isso permitiu a Spinoza seguir sua prpria filosofia de vida,

    muito simples, mas sem pobreza ou indigncia. Neste perodo Ren Descartes viveu na

    Holanda por vinte anos. A Idade de Ouro legou Humanidade cientistas como o fsico

    Christian Huygens, o matemtico Simon Stevin, os microscopistas Antonie van

    Leeuwenloek (o inventor do microscpio) e Jan Swammerdam, o escritor Joost van den

    Vondel e os pintores De Vermeer, Ruydael e Rembrandt (Chau, 1997; Cobra, 1998).

    Com uma formao to universalista e humanista, foi natural que Spinoza desde

    cedo comeasse a questionar os cnones de sua religio judaica e a faz-lo

    publicamente, o que muito desagradou a seus familiares e irmos de f.

    Segundo Chau (1997), todos esses elementos de sua formao foram

    contraditrios, como tambm o era o mundo judaico no qual vivia. Havia um

    entrecruzamento de tendncias o que obrigava os pensadores a encontrar solues

    prprias. Muitas vezes o resultado dessas tendncias pessoais no era aceito pela

    comunidade judaica. Foi o que ocorreu com Uriel da Costa, que afirmava no existir

    beatitude eterna, pois na Bblia no se fala em imortalidade da alma, e sim em felicidade

    temporal. Foi o que bastou para Uriel da Costa ser perseguido por causa de suas idias

    e, aps um episdio de extrema humilhao perante a sinagoga local, no qual teve de se

    retratar em pblico e submetido a flagelao, da Costa, no suportando o desespero,

    suicidou-se em 1640. Tal episdio calou fundo em Spinoza, que assistiu a todo o

    ocorrido quanto tinha apenas oito anos de idade.Spinoza sofreu forte influncia do mdico Juan del Prado, considerado herege

    pela comunidade judaica de Amsterd. Orbio de Castro, segundo Chau (1997), um

    dos lderes desta comunidade, dizia de Juan del Prado (e com isto queria tambm atingir

    Spinoza que se tornara conhecido pelas suas veementes constestaes s verdades

    reveladas da Bblia ou do Talmud):

    ... Chegam ao judasmo depois de haver estudado durante todo seu perodo de

    idolatria algumas cincias profanas como a lgica, a metafsica e a medicina. Ignoram a lei

    tanto quanto os princpios, mas cheios de arrogncia e de orgulho esto convencidos de que a

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    conhecem a fundo e, embora desconheam o essencial, esto convencidos de que conhecem

    muito bem todas as matrias... Esses elementos arrogantes e orgulhosos negam a verdade das

    Escrituras e do Deus nelas revelado, substituindo-o por um Deus-Natureza. Negam a f, s

    aceitam o poder natural da razo e, portanto, negam os milagres. Negam que haja um povo

    eleito e perguntam por que Deus no se teria dado a conhecer a todos os homens.

    O choque de Spinoza com os princpios do judasmo foram se agravando a

    tal ponto que, antes de ser excomungado pela Sinagoga de Amsterd, ele renunciou

    sua f religiosa, em 1656. Sua famlia aproveitou a situao para deserd-lo e afast-lo

    dos negcios familiares, que na poca no andavam bem. Spinoza no teve outra sada

    seno aprender um ofcio que lhe valeu at o fim de seus dias como sobrevivncia

    simples, porm digna: tornou-se polidor de lentes de vidro, o que fez com tal zlo e

    competncia, que logo angariou uma fiel clientela que lhe garantia o sustento.

    Logo Spinoza integrou-se vida intelectual holandesa, exatamente no

    perodo em que a Holanda vivia o seu sculo de ouro. Spinoza mergulhou nos estudos

    do humanismo clssico, aprendeu latim e um pouco de grego com Franz van den Enden,

    ex-jesuta, mdico, fillogo e livreiro e que se metera em poltica a favor dos irmos de

    Witt, lutou contra a Inglaterra e foi enforcado pelos franceses, acusado de alta traio.

    Com ele, Spinoza leu obras de Terncio, Tcito, Tito Lvio, Petrnio, Virglio, Sneca,

    Csar, Salstio, Marcial, Plnio, Ovdio, Crcio, Plauto e Ccero. Entre os gregos leu

    Diofanto, Aristteles, Hipcrates, Epiteto, Luciano, Homero e Euclides. Neste perodo,

    Spinoza estuda Descartes, quando adotou alguns dos princpios do cartesianismo:

    confiana no poder da razo, tanto na teoria, quanto na prtica, necessidade de elaborar

    as noes de mtodo, de verdade, de ser e de ao (Chau, 1997).

    Em 1661, Spinoza buscou um local mais tranqilo para morar, onde pudesse

    meditar e escrever aquilo que j tinha em mente. Mudou-se para a aldeia de Rijnsburg,

    prxima a Leyden, onde dividiu uma pequena casa com o cirurgio Hermann Homam, eali escreveu "Pequeno tratado sobre Deus, o homem e sua felicidade" e o seu Tractatus

    d