história memória e esquecimento

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I HI~TO~IA MtM6~IA t t~QUtCIMtNTO A Kerime, mi palestina Encontros como 0 de hoje incitam a suspender 0 trabalho historiografico habitual para discorrer sobre seus fundamentos.' Tentacao bem-vinda, sempre que prevalecam a ternperanca e o bom senso. Imaginem voces se cada vez que comecassernos

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I

H I ~ T O ~ I A

M t M 6 ~ I A t t ~ Q U t C I M t N T O

A Kerime, mi palestina

Encontros como 0 de hoje incitam a suspender 0 trabalho

historiografico habitual para discorrer sobre seus fundamentos.'

Tentacao bem-vinda, sempre que prevalecam a ternperanca e

o bom senso. Imaginem voces se cada vez que comecassernos

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E lugar comum afirmar que a hist6ria e a memoria coletiva

de uma sociedade; que urn povo que esquece ou ignora seu

passado tende a repeti-lo, sobretudo nos erros, revelando,

assim, uma frustrante incapacidade para aprender corn a

experiencia. Na mesma linha de raciocinio, a propensao da

sociedade humana a reincidir no equivoco seria maior que a do

touro para arremeter contra 0vermelho vao da capa, e somente

corne nsurrive] com sua vocacao para amorte. Linguagem

metaforica a parte, tais formulacoes encobrem mais de umafalacia e varias ambigtiidades. Os sujeitos coletivos - a

"socledade", 0 "povo" au a "nacao" - nao existem do rnesmo

modo que 0matador, que consegue itnaginar a si rnesmo para

alern das contingencias da arena, ainda que, ao faze-lo, corra

o risco de f icar espetado nos chifres da tautologia. A sociedade

carece de semelhante capacidade de desdobramento OU,

melhor, de introspeccao, e nao pode, portanto, esquecer ou

recordar. Em surna, ela e , fundamentalmente, urn conceito . E,

no entanto, sua realidade nao e menos contundente que a do

touro, como 0prova a rnultidao dos escornados por pensar

que se tratava de uma inofensiva Iiccao. Passemos a desatar

o primeiro n6 do dilema.

de imaginacao que junta os fatos separa-os e diferencia-os,

sequencialmente, ern urn "antes" e urn "depois", introduzindo,

assim, pel a porta dos fundos, a dimensao diacronica. E, 0 que emais curioso, todos os passados dessa serie imaginada aflorarn

no presente sem confundir-se com ele. Dessa maneira, a

memoria contribui para organizar 0 torvelinho de nossas

percepcoes, atualizando-as e fixando-as dentro de uma ordem

reconhecivel e, ao faze-lo, ajuda-nos a projetar 0futuro. Mais

importante ainda, atraves de operacoes tao complexas como

espontaneas, a memoria fundamenta a identidade individual

- aquela sensacao de que nosotros los de entonces, apesar

do verso e do vivido, ainda somos os mesmos. Suspendendo

o "rnundo da acao pratica", ela, a mem6ria, permite-nos

percorrer "toda nossa cxiste ncia em sua origin aria e

ininterrupta singularidade.":' Assim, atraves da lembranca,

atamo-nos a urn passado que se dobra e se des dobra a

maneira dos retabulos, descortinando imagens de nossa

infancia, de ogros e de madalenas, as desconsoladas e as

consoladoras e as recem-saidas do forno com suas formas

lanceoladas."

Em suma, a memoria e principio de unidade e continui-

dade, ponte que assegura 0 vinculo entre 0 sujeito e suas

experiencias. Sujeito e experiencia: dois conceitos que,

unidos por uma conju ncao copulativa, vern gerando, hi

seculos uma sucessao de duvidas sobre seus lirnites. Acaso

o sujeito e suas experiencias nao sao uma e a mesrna coisa?

AU sera que as funcoes de conservacao e de orientacao que a

memoria desempenha sustentam-se na existencia de urn ego

subjacente a cada percepcao e substantivamente distinto de

todas elas? A questao remere-nos, sem dernora,' ao intrincado

problema da consciencia e as fonnas de entender 0tempo, 0

passado, enfi rn, a hist6ria.

Simplificando, e possivel discernir duas concepcoes arque-

tipicas sobre 0 tema. Uma corrente, originada em Descartes,

faz da consciencia uma realidade aut6noma e irredutivel aexperiencia. Outra, pelo contrario, afirma que 0eu nao eoutra coisa que a corrente de percepcoes, e que postular sua

existencia como algo dist into de tal sucessao e uma inferencia

gratuita. A primeira postura radicaliza a autonomia do cogito

e tende a considerar a realidade uma extensao daquele OU,

METAFORAS DA MEMORIA

A mem6ria individual discorre entre dois instantes que

lhe estao inexoravelmente vedados: 0 nascimento e a morte

- .. acontecimentos definitivos cujos registros apenas podern

ser extern os ao sujeito. Para dize-lo com Neruda: "Nunca

recordaremos haber muerto ... ni de nacer tarnpoco guardamos

la memoria", tao simples quanto isso. 0 que nos sucede no

transite de uma ponta a out~a. e passivel de inventario pessoal,sempre que a imagem do . vivido, latente nos labirintos da

alma ou patente nos sulcos do corpo, cornpareca a luz da

consciencia, Vejamos em que consiste esta faculdade especifi-

camente humana que chamarnos "recordar". Num primeiro

memento, ela permite a representacao das expertenclas,

colocando lado a lado, como afirma Elias, eventos que nao

sucederam s irnu lta n e a m e n t e ." Pareceria ser que, no

complacente vao da memoria, 0 tempo se dissolvesse ern urn

unico plano sincronico. Mas, paradoxalmente, 0 mesmo ato

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invcrsarnente, 0seu absoluto oposto. A vertente empinsta,

na sua versao mais radical, reduz a consciencia a serie de

seus cambiantes conteudos. Deter-me-ei na crit ica a esta ultima,

que e a que mais interessa aos propositos deste ensaio.

A historia de Funes el memorioso, contada por Jorge Luis

Borges, e 0mais perfeito exernplo de uma vasta memoria

duplicante que, convertida em espelho, perde sua capaciclade

de abstracao e, em uma espccie de amnesia as avessas,

pulveriza a nocao de sujeito e impossibilita a compreensao

do passado." Aproximemo-nos do anti-hero! borgiano para

aprender com sua experiencia, Seu nome era Ireneo 111as,como

sucede arniude, mais significativo era seu apelido: chamavam-no

"0 cronometrico" , se bern que, antes de converter-se ern Ulna

maquina registradora, era urn individuo meio distraido que

"olhava sem ver, ouvia sem ouvir e se esquecia de tudo, au

quase tudo", Ate que urn golpe acidental na cabeca transfigura-o

em seu antipoda: uma mente que ve ainda quando nao olha,

grava tudo 0que escuta e nao esquece quase nada. A nova

vida do protagonista comeca com urn episodic especular,

reflexive, como convern ao tema do enredo: as vicissitudes

de uma consciencia incapaz de esquecer. 0 que primeiro

Funes mernoriza sao, justamente, as facanhas dos memor iosos

registradas na Naturalis hist6ria e, mais precisarnentc, a

materia do primeiro paragrafo do vigesimo quarto capitulo

onde, atraves de quatro figuras classicas, reconhecemos as

funcoes dessa faculdade humana e, por extensao, as tarefas

do historiador: assim, a acao de Mitriades Eu pator, que

administrava a justica nos vinte e dois idiomas de seu imperio,

aponta para a ordem universal subjacente a multiplicidade

dos fenomenos: na proeza de Ciro, rei dos persas, que sabia

chamar por seu nome a todos os sold ados de seus exercitos ,

identificamos a preocupacao pelo singular e irrepetfvel;Simonides, inventor da mnemotecnica, contribui COIn sua

ciencia para recordar e conservar as fatos, e Metrodoro, 0

repetidor, assegura, com sua arte, a fidelidade da repre,..

sentacao ..Em cornparacao a eles, Funes manifesta hipertrof ia

das t res ultimas funcoes em detr imento da primei ra _-- a capaci-

dade de abstracao, Par este motivo, sua experiencia pode ser

inst rutiva, par ticularmente para nos, histor iadores.I

A maior virtude da mente de nosso personagem consiste

ern gravar, com precisao e sem tregua, todas as irnprcssoes

11

que aportam as suas margens, e seu pior defeito nao poder

apaga-Ias nem saber 0 que fazer com elas:- As imagens

instalam-se com tal completude na consciencia do Memorioso

que nao s6 incluem elementos visuais, mas tarnbem qual idades

associadas ao odor e ao sabor das coisas percebidas. De tudo

isso resultam reproducoes tao fieis e pormenorizadas que, se

se trata de rememorar 0sucedido em urn dia, Funes leva urn

dia para faze-lo, instaurando, assim, uma especie de presente

perpetuo ..0detalhe insulso e 0 trace essencial apinham-seindiscriminadamente, reclamando a mesrna atenca o no

momenta do inventario . Ai radica, precisarnente, 0 problema:

soterrada pelo peso de infinitos particulares, a mente do

protagonista nao avista 0 horizonte do conceito. Sem capaci-

dade de abstracao nem discernimento, 0val ioso e 0inservivel,

a essencia e 0 pormenor, tudo termina por misturar-se na

cabeca do pobre Funes, como la vida en fa vitrina de los

cambalacbes. Empanturrado de inforrnacoes, 0 Mernorioso

acaba sendo incapaz de contar uma simples historia, 0que

exigi ria reconhecer nos fares algum tip a de estrutura, sentido

au direcao - urn desafio insuportavel para sernelhante

prodigto ..Ao raiar 0 dia, quando a visita se prepara para

ir-se, 0 proprio Ireneo revela sem pudor a consequencia de

seu deploravel estado: "Minha memoria, senhor, e como urn

deposito de lixo."

E, de fato, o e porque sua mente, sem condicoes de

abstrai r-se da experiencia irnediata, nao consegue suspender,

sequer por urn instante, a mare de imagens que a arrasta. Na

histor ia de Funes, 0sujeito se dissolve na corrente de suas

percepcoes ou naufraga nela, e sua fenomenal memoria

termina por destruir, paradoxalmente, a propria identidade.

Pode-se entender 0drama de uma consciencia que, de tao

porosa e voltada ao mundo, chega a fundir-se COll1 ele. Diluidaem suas percepcoes, ela se narcotiza, apla cando a dor

insuportavel da vigrlia: a magoa da vida consciente. Vida

consciente que e , sobretudo, urn processo de constante

retraimento - descentramento diriam os psicologos - em todo

_caso, urn ir guardando distancias: primeiro, em relacao ao

mundo flsico durante a infancla e, mais tarde, frente as

pr6prias percepcoes, ate chegar a ver a si mesmo de costas,

afas tando-se. A condicao do Memorioso, incapaz de aceder a

esse ponto de vista, lembra 0pesadelo tautol6gko da Idcia

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It 0g -llana. Sob sernelhante destine, fechar os olhos ou nao

sonhar equivale a deixar que a realidade se extinga e, corn

ela, 0 sujeito que a contern. Por isso, a insonia e 0 labor

noturno sao para Funes tao essenciais no afa de nao se

perder quanta para a Ideia seus incessantes ardis. Mas 0 que

tudo isto tern a ver com nossos desvelos? Muito, sem duvida.

FUNES HISTORIADOR

A trajet6ria do Memorioso po de ser entendida como Ulna

a dmonicao, se bern que extrema, sobre as perigos do

historismo e do empirismo radical ou, mais concretamente,

segundo Yerushalmi, sobre os "excesses da historiografia

1n~derna".6 Idenrifiquemos alguns desses abusos, ainda que

seja de forma caricatural, precisamente para salientar seus

principais traces e problemas.

. Nao ha duvida de que Ireneo leva vantagem naquilo que

f01, desde sernpre, a ambicao de todo historiador: a fixacao e

o registro exaustivo do acontecimento Singular - abandonar

a especie, 0 genero, a classe ate alcancar a coisa ern si e

nornea-la de tal modo que entre 0 sere a palavra nao haja

arnbiguidade alguma. Em suma, a parabola da ressurrelcao e

a cornpreensao do passado em urn unico ato. Mas semelhante

designio, vale advertir a quem ainda insiste em alcanca-Io,

redunda inexoravelmente no silencio; a unica visao total e

instantanea e a que precede a morte, 0 raio que fulmina

antes de que se possa contar 0 enredo.

o proprio Borges lembra-nos que Funes, como Locke, havia

~esisti~o desse prop6sito porque the parecia urn jogo

impossivel: C0010 evitar a arnbiguidade quando Ulna mente

prodigiosa recorda "nao so cada folha de cada arvore de cada

monte, mas cada irma dasvezes que as tenha percebido ou. . d "")7 D dimagina 0 . a a que nenhuma percepcao ou representacao

e identica a outra e que todas se registram e conservam na

memoria, entao, de que modo dlferencia-las sem recorrer a

generalidade do conceito? Resulta obvio que cada ato de

consciencia sera outra percepcao carregada de incontaveis

novos detalhes, esperando por urn .numero igual de ineditos

nomes proprios, De modo que, como bern diz Nufio, esse

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furor denotativo terminaria "par nao poder nomear nada aforca de querer nomear tudo". 0pesadelo esf1ecular nao

teria fim nem sentido, como tampouco os teria urn relato

historiografico que tivesse que identificar nao s6 todas as

suas fontes e referencias bfbliograficas, mas tambern as que

estas coritem, e assim indefinidamente ate converter-se ele

mesmo em um sistema de clracoes. A parabola remete-nos a

lugares conhecidos.

A figura de Funes alude a do historiador que, renuente

a abstracao, alimenta a quimera de duplicar 0 passado,

reconstruinda-o atraves de urn relata gravido de fatos e

vazio de conceitos. Com frequencta, a historia escrita sob

esse impulso torna-se, como a cabeca de Ireneo, sentina

de escombros, deposito de lixo. A caca ao documento ern

qualquer ternporada e 0apetite tnsaciavel pelas dados de

que se [acta grande parte da producao atual originam-se, com

frequencia. na mesma falacia que se adverte na estrategia

narrativa de Funes, segundo a qual explicar urn acontecimen-

to equivale a reproduzi-Io em todos os seus pormenores e,

portanto, quanta maiora

nurnero de infonl1a~5es a mao, maisproximo se estaria de aprisioni-lo. 0 resultado desta classe

de proezas e, em geral, uma lnixordia de perolas e desperdicios

na qual resulta quase impossivel reconhecer os traces de uma

trama ou 0corpo de uma simples histona. Sem estrutura que

o modere e norteie, 0 texto tende a engordar desmesurada-

mente, ate assemelhar-se ao mapa do conto que, projetado

para ser complete e fidedigno em todos os detalhes, cresceu

tanto que alcancou 0 tarnanho exato do territorio que devia

representar. Imaginem voces a u tilidade de semelhante

portento para 0viajante que busca 0rumo nos ca~11inhos da

vida ou da historia. Nao hi duvida de que todo esforco para

duplicar a realidade acaba reproduzindo sua opacidade edesconcerto. Os espiritos engajados nessa tarefa vivem em

urn estado de perpetua angustia; nunca admitem que tern

materials e pistas suficientes para estruturar urn relata e

continuam peregrinando indefinidamente a procura de novas

fontes: ° arquivo virgem, a ultima referencia, 0dado esquivo,

real au i1naginirio, talvez supondo, como Funes, que a Guerra

dos Cern Anos exige cem anos para ser contada. 0 passado

assim concebido torna-se urn espetaculo atordoante e atemori-

zudor de curiosidades, muito parecido ao mundo de outro

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historiador a de juntar DS pedacos. Os que comungam com

essa ideia participam de uma corrida tao deslgual como a

proposta par Zenao em sua famosa aporia e com identico

resultado: a tartaruga, leia-se 0 conceito, estara sempre na

dianteira par mais que Aquiles, 0 empirico, seja impulsionado,

a cada instante, por una nova saraivada de dados recem-

descerrados. A razao e 6bvia: a hist6ria nao conhece outro

idioma que nao seja 0 dos conceitos, e a acontecimento s6 se

faz inteligivel quando e si tuado, como diria Paul Veyne, dent rode sua especie, no marco de sua generalidade." Uma vez

mais, 0 estritamente individual e inorninavel, a sacrificada

tarefa de reconstitui-Io desenterrando. todo t ipo de vestigios

e uma empresa que somente pode desembocar na tautologia

ou no silencio. Embora 0mals frequente seja que alguma

nocao cle totalidade, mimetizada sob distintos nomes -

objetividade, justica, racionalidade, natureza ou progresso

- filt re-se solapadamente na empreitada, provocanclo es tragos

aincla rnaiores pela falta de urn controle critico sobre sua carga

icleol6gica. Isto nao significa que devamos levitarem planes

metafisicos, descuidando do objetivo precipuo da historia -

o registro e a explicacao dos fatos -, 111assimplesmente que

saibamos assumir, a serio , 0 esforco estruturante e seletivo sem

o qual 0relata torna-se urn caos de impressoes, talvez sedutor

e diver ticlo, mas seguramente poueo i luminaclor. Tampouco se

trata de estreitar ou de hierarquizar 0vasto horizonte do campo

historiograf ico, Estou convenciclo de que em todas as ciencias

sociais havera sempre alguns espiritos apaixonados pelos

meandros da icleografia e outros pelos clesafios te6rieos. E e

born que assim seja, posto que ambas as tarefas se reclamarn

e complementam. Tarnbem pode estar certo Yerus~altni quando

diz que para os historiadores "Deus 1110ra no detalhe". Mas,

ainda nesse caso, nao haveria outra forma de reconhece-loque nao seja atentando para 0 conceito, para alguma ideia

de totalidade que, ao final das contas, e a que dignifica ou

simplesmente da sentido ao detalhe, morando nele.

farnoso mnemotecnlco descrito por Luria, seu medico, como

"urn labirinto de interminaveis digressoes"."

Outro vicio da mem6ria duplicante observa-se entre os

historiadores que, reticentes em desempenhar qualquer

pa pel ativo, entregarn-se solicitamente a seus documentos na

expectativa ingenua de que, deixando-os falar, eles dirao tudo

por si mesmos. Este tipo de historiador, convencido de sua

funcao jncdiunica , considera dever de of'icio reproduzir

fielmente as vozes do passado que somente ele escuta e, com

tao magnifica desculpa, limita sua intervencao ao tedioso ate

de abrir e fechar aspas. E, dessa forma, enquanto costura

citacoes, pensa esport ivamente que a explicacao vai aflorando

a cada ponto. Cabe lembrar que se, por urn lado, nao e tarefa

de historiadores repreender au corrigir as mortos, tarnpouco

o e acreditar em tudo 0que nos dlzem - pelo menos como

explicacao suficiente. E nao e porque os mortos tenharn a

intencao de enganar-nos ou de ocultar-nos algo, que as vezes

tambern a tern, mas porque elesmesmos poderiam haver-se

enganado au nao ter chegado a perceber tanto quanta n6s

que lhes sobrevivemos e que, supostamente, temos mais luzese elementos para interpretar 0 acontecido.

o presentisrno que acusa a memoria absorvente de Funes

tambern encarna em urn tipo de historiografia que assegura

seu futuro, como Sherazade em As mil e uma noites, tecendo

enredos sem fim sobre tudo quanta possa ser imaginado, e

nos quais 0relato desprovido de qualquer fulcro teleologico

ou conceitual, da a irnpressao de estar sempre comecando,

C01110 a moda, e de que nunca terrninarao de ser contados,

como em urn eterno taquipayanacu? Dessa maneira, vestindo

casacas pos-modernas, uma legiao de historiadores descobriu

urn recurso eficiente para nao perder a cabeca e aindaganhar 0aplauso de umcerto publico que consome as pressas.

, .No entanto, par mais que cssas hist6rias, vistas desde cima

ou desde baixo, au entretidas na comissura dos labios,

proponham-se democratizar a mem6ria coletiva, 0 certo eque, de tanto fugir das ideias gerais, "acabam escravas dos

registros sensoriais imediatos". 10

En1 suma, urn posit ivisrno ingenuo, sob distintas roupagens,

continua vivissimo em correntes para as quais 0passado eurn corpo esparramado em docurnentos, e a tarefa do

A MEMORIA E SEUS INIMIGOS

Desde suas origens, a hist6ria e urn cornbate contra dois

de seus piores inimigos: 0esquecimento e seu grande aliado,

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o tempo, cuja passagem incessante vai "apagando 0 peixe e

seu palpitar", vale dizer, 0passado e sua lembranca. E antiga

a ideia de que ser e perseverar no tempo e que a memoria e

o recurso fel ino COIU que contamos para tal empresa. Mas a

tarefa e por si mesrna paradoxa! porque 0tempo e a substancia

dos fatos e, reflexivamente, da lembranca. Aniquilando 0

tempo, elimina-se 0 acontecimento, justamente 0' que se

pretende preservar na mem6ria. Entao como vence-Io sem

que a historia se extinga com ele? A resposta dominante

entre os gregos fez da Memoria lima faculdade orientada a

rerniniscencia de essencias intemporais em detrimento do

devenir, de tal forma que, como assinala Ramos, para eles,

recordar ja nao era rnais "explorar e reconstruir 0 proprio

tempo da experiencia, mas pelo contrario, fugir, emancipar-se

do tempo para instalar-se em urn passado primordial que

contern 0 ser das coisas", 12 isto e , tudo 0 que a historia nao

pretende nem quer ser. Essa visao essencialista desemboca,

com Frequencia, em uma concepcao circular do tempo que,

em suas multiplas versoes, faz do passado, em sentido pleno, urn

presente perpetuo e do conhecimento, uma teoria da anamnese.Mas nem todas as concepcoes cicl icas advogam a rcpeticao

identica dos acontecimentos. A cada volta, uma pequena

variacao, urn detalhe, podem dar a aparencia de mudanca -

ate recordar 0que sucedeu alguma vez ja seria uma forma de

acrescentar novidade ao presente, urn a ntidoto contra 0

pesadelo especular. Em 1616, Lucilio Vanini escreveu: "De

novo Aquiles ira a Troia; renascerao as cerirnonias e religioes,

a historia humana se repete; nada ha agora que nao tenha

sido; 0 que foi, sera; mas tudo isso em geral, nao (COIUO

determina Platao) em particular. "13 Eis a t uma forrnulacao

precoce da tensao entre nomologia e ideografia. Do mesmomodo argumentara Paul Veyne que se joao sem Terra voltasse

a passar pela segunda 'vez por aqui "0 historiador narraria

arnbas as ocorrencias e nao se sentiria por isso menos

historiador". E nao importa se cada volta Fosse totalmente

igual a outra, continuariarn sendo duas e, assirn, "jamais se

repetira a historia, ainda que ela chegasse a dizer duas vezes

a mesma coisa" ,14 Mas basta mover urn dos espelhos para

que logo surja 0 semblante da duvida: talvez nao seja s6 a

Hist6ria a que se repete, mas tarnbern 0 historia dor que

20

assirn a imagina e conta a cada volta exatamente com as

mesrnas palavras. E entao?

Entao, talvez seja melhor mudar de perspectiva e pensar

que 0passado e irreversivel, que nada nem ninguern pode

altera-Io, nem sequer 0 esquecimento. E muito menos 0

historiador que 0 recorda. A felicidade do arnante que se

t ransmuta em pena ao dar-se conta de que era enganado em

nuda modifica a felicidade vivida ou sentida antes da penosa

descoberta. Essa afirmacao borgiana sustenta-se ern Ulna

concepcao intransitiva do tempo. Este e , em definitive, °cstado de consciencia do sujeito e cada estado de consciencla

e absoluto, como e autonomo 0 instante e111que transcorre.

Desse ponto de vista "nao ha historia (do universo) corno

nao ha a vida de urn homem, nem sequer uma de suas noites.

Cada mornento que vivemos existe, (mas) nao sell imaginario

conjunto ..,"15 A ideia de simultaneidade, que suporia a nocao

de urn tempo homogeneo e objetivo, torna-se impossivel nesse

mundo fluido. 0 que se tern ern qualquer instante sao estados

de consciencta perfeitamente paralelos e incomunicados. E

cntao, dado que 0tempo e um processo mental enraizado nasubjetividade, como podem compartilha-lo milhares de homens

au ainda dois homens distintos? Sob 0prisma da consciencia

individual, nao ha resposta possivel a pergunta formulada

por Borges; 0 tempo acabara sendo urn adversario imbativel

porque se encarna em nos mesmos, nos constitui enos

destr6i igualmente:

Nosso destino (...) e espantoso porque e irreversivel e de ferro.

o tempo e a substancia de que estou feito. 0 tempo e um rio

que me arrebata, mas eu sou 0 rio; e urn tigre que me destroca,

mas eu sou a tigre; e um fogo que consome, mas eu sou a fogo.o mundo, infelizmente, e real; eu, infelizmente, sou Borges."

Diante de tamanha descoberta, a memoria assemelha-se a

urn cavalo de Troia que, no mornento de atravessar os muros

da cidadela inimiga, devora os proprios guerreiros que

leva consigo. Sem embargo, a batalha na o esta perdida: 0

historiador conseguira fazer da debilidade sua fortaleza,

cavalgando sobre 0 dorso do inimigo. Halbwachs propoe

cssa cstrategia quando afirrna que a vantagem da memoria

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."i ohr ! o IL'I nPO, q 1I ' l'ia se 111p r . sa h 'C 0 UIt) ;I( I I > UI () q 1I •

uma v 'Z ocorrcu. lsto 6, pode olhar para lr: is -, unir os fios

cia cxpertencia, a flecha do tempo niio cons'gue rcalizar

esse prod ig io.!? Mas, aqui, a ideia de tempo corn a qual

trabalha 0sociologo transcende 0campo da subjetividade

para postular-se como uma construcao social, na linha de

Durkheirn e de Elias. Sob essa 6tica, 0 tempo e a uma s6

vez hist6rico e natural, uma nocao abstrata e uma ferramerita

muito concreta, uma realidade coletiva e subjetiva, enfim,

uma institu icao social que se instala na consc ie ncia dos

indivfduos ate converter-so em "uma pauta de autocoacao"

ao longo de suas vidas." A partir de tais pressupostos, sera

possivel postular a sitnultaneidade dos acontecimentos - 0

engano e a felicidade sob UIU mesmo teto temporal _- e

vincula-los causalmente. Todo 0 indispensavel para que 0

historiador cumpra 0 papel de detetive. Mesmo adrnitirido

que 0morto nao ressuscitara, nern 0arrependimento Iara

desaparecer os vestfgios do crime, essa perspectiva esta

longe de coincidir com a ideia de urn "passado imutavel

independente da experiencia presente". Pelo contnlrio'

considera que 0presente e que fornece sempre "os pnnctptos

de selecao e descricao" para a reconstrucao do passado.!?Nao obstante suas conquistas, a historicismo implicito em

dita proposicao nao parece resolver satisfatoriamente 0 dilema

da memoria. 0 que se verifica e urn mero deslocarnento do

fen6meno especular que antes se situava no campo da

consciencia individual e que agora se t ransfere ao da "memoria

historica". Esta, imaginada como uma sucessao potencialmente

infinita de exegese, cont inua reproduzindo 0pesadelo auto-

reflexivo presente no principio da subjetividade. Que fazer?

Talvez aliar-se ao inimigo , aprendendo a esquecer. A

ancestral crenca de que ser significa perdurar na memoria,

dever ia acrescentar -se outra que afi rme, com igual conviccao,que para perdurar no ternpo'tambem e necessario esquecer.

Nao ha nada de cxtraordinario ou novo em tal proposta.

Mesmo desde a 6t ica individual, 0 recordado e multo pouco

com relacao ao incomensuravel alcance do esquecimento em

nossas vidas, Essa e a prova mais contundente de que 0 eu e

alg.o mais ...ue a consciencia do pass ado. A ideia doser que

flui sem tregua e que e outro a cada instante, "trocando Iabios,

pele, circulacoes'', redunda, paradoxalmente, na abolicao da

22

Il'llIhr;lIl~:I uti IW adu\'; u, ina dv 'rl ida , I· urn 1 u n tu lit, vlsr.:

mctn-histori '0. Puis, como bcm disse Nietzsche, urn hOJl1,'111

incapuz de csquecer vcria "tudo desmanchar-se ern pontos

movcis e se perder nesse rio do vir"." Ha que se buscar urn

lcito para esse rio SelTI 111argens: 0 esquecimento metodico,

Antes de refletir sobre essa ideia, considerernos algumas das

icndcncias que contribuirarn para que a mem6ria historio-

gr.ifica experimentasse, na epoca moderna, uma especie de

amnesia do sent ido.

MEMORIA COLETIVA E MEMORIAHISTORIOGAAFICA

Desde tempos rernotos, Hist6ria e Memoria tern sido

considerados termos, quando n a o sl non imo s, unidos

umbilicalmente, ainda que as vezes de maneira conflitiva.

Tanto e assim que a nocao de memoria e sua va loracao

sujeitarn-se as concepcoes vigentes, em distintas epocas,

sobre 0 que e ou deve ser a hist6ria. Servindo-nos da analise

de Le Goff, consideremos, esquematicamente, alguns aspectos

relatives a tais vinculos e sua transforrnacao no tempo." UIU

deles refere-se a tensao entre memoria oral e memoria escrita,

que surge na Antiguidade Classica e que perdura ate hoje,

envolvendo Ulna questao crucial: a instrumentalizacao da

memoria hist6rica pelo poder.

Inicialmente, a memoria articula-se positivamente a tradicao

oral, e 0 criterio de veracidade nao se distancia de seus

dominies, como pode verificar-se em Her6doto. Com a

invencao e difusao da escrita, a Terra inteira transforma-se

ern Ulna supcr ficic onde se inscreve a lernbranca, provocando,

entre outras coisas, mudancas na hierarquia dos sentidos: a

vista ganha status, associando-sc a idcia de verdade, e 0

ouvido passa a filiar-se ao enganoso canto das sereias. Logo

surgira 0 interrogante sobre a eficacia da palavra alada para

preservar a lembranca dos acontecimentos. Para Tucidides, a

memoria oral, transmitida de boca em boca, afasta-se do logos

e, propensa ao relato deslumbrante mas ca6tico, distorce 0

passado, enquanto "a imutabilidade do escrito e uma garantia

de fidelidade''. 22 A polemica alcanca UITIponto alto no Fedro

de Platao, ern que 0 deus Thot, inventor das letras e dos

2 3

 

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dados, trava urn duelo de argumentos com Tamuz, 0 rei

solar. 0 primeiro considera sua nova invencao a escrita urn5" ,

rcrncdio -. diriarnos urn calmante - para as aflicoes da

mem6ria, enquanto 0 segundo afirma que, pelo contrario, a

escrita aumentara 0esquecimento dos homens, que colocarao

sua confianca ern signos exteriores em vez de dirigir-se averdadeira fonte de todo conhecimento: 0 interior da alma

"onde esta inscrito0

discurso que e capaz de se defendersozinho" .23 S6crates, arquetipo da oralidade, teme que a

palavra escrita contribua para 0 debilitamento da memoria e

que 0texto, sem compromisso com a verdade, transforme-se

em urn tabuleiro no qual as palavras rolem como os dados no

jogo. Urn claro premincio do culto a superficie que se verifica

nas modas literarias e historiograficas faz ja algum tempo.

Se bern que ja e possivel entrever, desde entao, 0pleito

entre a mem6ria coletiva e a mem6ria historiograflca, levara

seculos ate que 0mesmo redunde em div6rcio. Ate muito

entrada a Modernidade, a transmissao oral e a transmissao

escrita entrelacarn-se e ap6iam-se mutuamente do mesmo

modo que 0 fazem a historiografia e a mem6ria coletiva. Agr~nde mudanca ocorrera, sem diivida, com a imprensa, que

significara "a trivializacao ate a perversao da atividade de

recordar", Se, por urn lado, a expansao da obra impressa

ampliou dramaticarnente 0horizonte da memoria coletiva, par

outro, contribuiu para que 0 controle da mesma se transferisse

gradualmente a instancias institucionalizadas pelo Estado,

reforcando 0processo de centralizacao e de expropriacao da

comunidade que se observa, ao longo do periodo moderno,

em toda ordem de coisas. A mem6ria coletiva, entendida como

a remernoracao de uma experiencia comum, fragmenta-se e

encolhe-se sob 0 impacto da modernizacao que soca va as

redes da tradicao oral. Viver em sociedade sera, cada vez

menos, "sinonimo de recordar juntos". 24 A consciencia comum,

que Durkheimrleflnira como urn sistema de certa forma

autoriomo e com vida pr6pria, vai ocupando urn espaco

progressivamente menor diante do desenvolvimento da

identidade e da consciencia individuais.

Nao menos importante e 0 fato de que a mem6ria hist6rica

e a mem6ria coletiva se separam. 0 que se verifica, na realidade,

e quase Ulna ruptura entre ambas as dimensoes. Como ern

outras esferas da vida social, a hist6ria, como C~Ul1pO de

24

conhecimento, se especlaliza, enquanto 0historiador, conver-

tido em urn profisslorul da memoria, desprende-se da "vida

organica de seu povo" 25 0passado que brota de sua pena,

como bem assinala Hllbwachs, agora difere daquele que

palpita na mem6ria col~tiva "tanto em conteudo como ern sua

maneira de reconstru-Io e tor na-Io significativo" e, corn

frequencia, situa-se e1n franca oposiC;io aquelc. L(, Por sua

parte, a mem6ria coletiv, muito pouco sabera da reconstrucao

especializada do passado que albergam arquivos e bibliotecas.

As razoes para os ahididos lapsos da memoria coletiva,

desde entao urn t6piCo com ares de lamento, haverao de

buscar-se na fragmentacao ou interrups;ao das redes socia is

atraves das quais se verifica a transmissao da experiencia

coletiva, antes que no d-stntercsse dos individuos em frequenter

a avultada producao do, historiadores.

A historiografia, no esforco de constituir sua identidade

como disciplina, saira em busca de sua pr6pria mem6ria e,

aspiranclo aos valores cientificistas de epoca, renunciara ao

papel de guardia do fogo sagrado. 0 conhecimento hist6rico,

cindido da vida pratica, deixa de ser, entao, um guia da acaopresente para converter -se ern urn conhecil11ento perfeitament.e

inutil. Ou, C01110 prefen- Paul Veyne, "urn dos produtos mars

inofensivos ja inventados pela quimica mental" - com as

conscquencias benefic:as e problematicas que isto implica.

Desde essa atalaia desarmada, uma legiao de Funes se

propora a tarefa de res,tituir todo 0 passado a consciencia do

presente .27 A proeza r~dundara no fetlchismo do documento

e na perda do sentido hist6rico, embotado pelo peso de urn

caudal de tnforrnacoos em que 0 valioso e 0 descartavel

reclamam igual direito de exibicao

OS ESTRATAGEMAS DO ESQUECIMENTO

E justamente ness'e momento de ra pid a e acelerada

expansao da conscienicia hist6rica que afloram as primeiras

preocu pacoes sobre al necessidade do esquecinlento como

contrapeso a "quant idlade descolllunal de indigestas pedras

de saber, que ainda o)casionalmente roncam na barriga" do

homem moderno." Nie;tzsche foi quem advogou de forma mais

incisiva essa estrategta ao realizar a critica ao historicismo de

 

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seu tempo. Na Segunda consideracao extempordnea, cspecie

de inventario sabre 0 util e 0 daninha da hist6ria para a vida,

conclui que 0 excesso de conhecimento, "0 saber ingerido

sem forne", havia feito do homem de seu tempo urn ser de

cultura epidermica e inservivel:

Trata-se de saber esquecer adrede, assim como se sabe recordar

adrede; e preciso que urn instinto vigoroso advirta-nos quando

e necessario ver as coisas nao historicamente e quando enecessario ve-las historicamente. E eis aqui 0princlpio sobre 0

qual 0leitor esta convidado a refletir: 0sentido nao hist6rico e

o sentido hist6rico sao igualmente necessaries para a saude de

urn individuo, de uma nacao, de uma civilizacao."

Desde entao, a possibilidade de uma ciencia do esquecimento

ou, ao menos, de U111 ars oblivionalis, veio a ser ur n tema

recorrente na literatura e no ensaio social, ernbora nao tenha

chegado a comover os historiadores.

o que aqui se propoe, olhando para 0 futuro, e alga

menos her6ico e mais pratico. Primeiro, tornar consciencia

das formas solapadas e met6dicas atraves das quais 0 trabalhohistoriografico recorre ao esquecimento para construir seus

discursos. Valeria a pena cogitar a hip6tese de que, do mesmo

modo como todo individuo desaloja, incessante e inadvertida-

mente, 0 turbilhao de imagens, sentimentos e percepcoes que

e a existencia cotidiana - e 0 faz justarnente para passar de

urn presente a outro, para poder perdurar -, assim tambem

o labor do historiador e seus progressos fundamentam-se,

premeditadamente ou nao, tanto namem6ria como no esque-

cimento. 0 ponto de partida poderia ser a constatacao de

que 0 conhecimento historiografico, exegetico em essencia, esobretudo uma renovacao do sentido. Desse ponto de vista,

a res posta ao di lema que todamnemotecnica do esquecimento

supoe e .radical:escrever ·uma outra hist6ria. Necessitamos

reconhecer, indo alem dos motivos ideol6gicos, as razoes

epistemol6gicas que prolnoveln rotineiramente a abolicao de

uma parte da memoria hlstoriografica, e identificar os rnodos

como isto se realiza. Claro que a nocao de esquecimento corn

a qual se havera de trabalhar nao sera a de "ausencia irrerne-

diavel" mas, como na hip6tese f reudiana, "presenca meramente

ausentada', como diz Nicole Loraux.'? Isto e , memoria latente,

despertada e adonnecida intermitentemente. Umberto Eco,

explorando as possibilidades de uma semi6tica do esquecimento,

sugere que, ernbora seja urn contra-sense a procara de urna

ll'cnica para esquecer, ao menos se poderia pensar em uma

cstrategia para confundir as lembrancas." Considero que e

cssa , precisamente, a via historiografica rna is trilhada:

inrerpretacoes superpostas e recontadas de tal modo que nao

sc sabe, nem se pretende saber, qual e a correta. 0 relativismo

historiografico pratica 0 esquecimento, como gostaria Eco,

"rnulripl icando as presencas" .32 A revisao de passadas inter-pretacoes, obrigat6ria nos textos historiograficos, penni te, ao

mesrno tempo, a continuidade e a afirmacao do principio da

diferenca ou, em outras palavras, cria a sensacao de que

conseguimos burlar a tautologia.

Mas 0 caminho mais eficaz para esquecer com metodo,

cvita ndo que 0 docurnento se transforrne em fetiche e a

hist6ria em jornalismo, e fortalecer a dimensao conceitual ou

tc6rica de nosso trabalho como refugio contra 0 pesadelo

reflexive da consciencia pos-moderna, a qual tern, entre seus

pontos programaticos, a trivializacao do passado. E ela que

melhor pode gular-nos na tarefa de reconhecer a essencial ede evitar que 0 aluviao de informacoes e de vozes tornern 0

discurso his toriografico um ruido intoleravel . Esquecer com

metodo significa, neste caso, aprender a jogar en la cisterna

de 1 0 que ya no tiene voz ni fuego aquilo que nao e relevante

~explicacao, assumindo 0papel estruturante que nos cabe

ao relatar uma hist6ria.

Em A estranha vida deIvan Osokin conta-se 0episodic de

urn jovem que pede a urn mago the conceda 0desejo de

voltar a viver os ultimos doze anos de sua existencia, de modo

que pudesse evitar ou, melhor, apagar para sernpre todos os

crros que havia cometido no passado. 0 magi co aceita,cst ipulando uma simples condicao: 0 jovem recordara tudo,

clcsde que nao queira esquecer." Mas como 0que Ivan deseja

e precisamente esquecer, terrninara por errar novamente. Do

I11C51110 modo, a sociedade, por mais que os historiadores lhe

rccordern seu passado, voltara a equivocar-se porque 0que

nccessita, COlTIO Ivan, e esquecer. Se ela perdeu algo, nao e a

memoria e, situ, a nocao de valor. Que fique claro, entao, que

o que se propos, durante esta exposicao, nao foi a anistia nem

a amnesia, 111:.1S aprender a esquecer para recordar 0 sentido.

27

 

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NOTAS. .

1 Conferencia proferida pelo autor por oc_<:asiaode seu ingresso a Sociedad

Bol iviana de Hist6r ia em 30 de janei ro de 22001. Traducao Tania Quintaneiro.Revisao Vera Alice Cardoso Silva.

2 ELIAS. Sobre el tiempo, p. 86.

3 RAMOS. Reuista de Occidente, p. 66.

4 madaienas, do frances" madeleine", boliinhos estriados de forma oblonga,muito apetecidos pelas criancas.

5 BORGES. Funes el memorioso, Artificioss, p. 485-490.

6 YERUSHALMI. Reflexiones sobre el olvicdo, p. 25.

7 BORGES. Funes el memorioso, Artificios}, p. 489.

8 LURIA. A mente e a memor ia, p. 136.

9 taquipayanacu e um desafio travado nos' Andes ent re cantores que devern

seguir a "deixa" colocada pelo ultimo e que p)ode prolongar-se por rnuito tempo

segundo a esperteza e habilidade dos conten(Clores. Urnaespecie de repentismo.

10 NUNO. Lafilosofia de Borges, p. 99.

IIVEYNE. Como se escribe fa bistoria, p. ]17-18.

12 RAMOS. Revista de Occidente, p. 66.

13 BORGES. El tiernpo circular. Historia de: la eterriidad, p. 393.

14 VEYNE. C6mo se escribe fa bistoria, p. 47-49.

15 BORGES. Nueva refutaci6n del t iempo. (0tras inquisiciones, p. 762.

16 BORGES. Nueva refutaci6n del t iempo. (Otras inquisiciones, p. 771.

17 RAMOS. Revista de Occidente, p. 68.

18 ELIAS. Sobre el tiempo, p. 21.

19 RAMOS. Revista de Occidente, p. 67.

20 NIETZSCHE. Da util idade e desvanragerrs da his t6r ia para a vida, p. 58.

21 Le GOFF. Elorden de la memoria .

22 GAGNEBIN. Sete aulas sobre linguagem; memoria e hist6ria, p. 30.

23 PLATON. Fedro, ° de la belleza, p. 881-882.

24 RAMOS. Revista de Occidente, p. 80.

25 YERUSHALMI. Reflexiones sobre el olvid 0, p. 23.

26 RAMOS. Revista de Occidente, p. 79.

27 YERUSHALMI. Reflexiones sabre el olvidO, p. 23.

28 NIETZSCHE. Da uti lidade e desvantagem da historia para a vida, p. 62.

29 Citado por Yerushalmi, p. 15-16.

30 LORAUX. De la amnistia y su contrario, p. 27.

31 ECO. Reuista de Occidente, p. 25.

32 ECO. Revista de Occtdente, p. 27.

33 PRIESTLEY. Man and time, p. 128.

A N o ~ A o D f I D f N T l D A D f N A

H A D I ~ A o R A C I O N A l l ~ T A f 0

T ~ M A D A M O D ~ ~ N I D A D c

2R

A metafora, como se sabe, e urn dos tropos literarios ao

qual recorremos, corn suspeita famil iaridade, para explicar

os fen6menos que nao conseguimos traduzir ao c6digo das

ciencias. 0 espelho, por sua qualidade reflexiva, tern side

utilizado com frequencia como um recurso ana16gico para

expressar 0 processo de constituicao de identidades coletivas.'

Os povos - diz-se - tern 0 costume de mirar-se em outrasculturas e e contra esse horizonte que acabarn apreendendo

sua propria idiossincrasia. No entanto, bern vistas as coisas,

o espelho nao parece ser a metafora adequada para captar 0

sentido dessa experiencia. No processo de autodcfinicao

cultural as sociedades reconhecem em suas vizinhas 0 que

elas mesmas nao sao, enquanto 0 espelho faz exatamente 0

contrario ao refletir positivamente os objetos que incidem

sobre sua superficie, oferecendo-nos, COll10 assinala Eco, uma

duplicacao perfeita, ernbora invertida, do "campo estimulante". 2

E certo que a percepcao que uma determinada s6ciedade tern

de outra nada mais e , as vezes, queUl1l

fenorneno projetivo,urn ate de exorcismo atraves do qual procura afugentar seus

pr6prios fantasmas, e diz mais sobre ela do que sobre a

cultura aludida. De qualquer maneira, subsiste 0 fato de tal

percepcao, por mais deformada que se possa reputar, ter uma

origem externa com respeito ao observador, coisa que nao

sucede no caso da imagem especular, que e sempre "causal-

mente produzida" pelo referente. Em suma, enquanto a

rcprcscntacao cultural coloca em relevo as difercncas, a

imagern cspccular e tauto16gica em relacao ao objeto: as