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Historia e Educação Física: um ensaio crítico
Francisco Máuri de Carvalho Freitas Centro de Educação Física e Desportos Universidade Federal do Espírito Santo
Introdução
A partir dos anos 70 a educação física1 tornou-se termo da moda, em primeiro
lugar, ao servir aos governos civil-burocráticos-militares como aparelho ideológico e
repressivo, e, em segundo lugar, porque respaldada no Decreto Lei nº 477/69 e
manipulando a ideologia burguesa, através das práticas desportivas, afastava os
estudantes e os trabalhadores dos movimentos sediciosos e revolucionários.
No início dos anos 80 (oitenta) a educação física sentiu em seu ventre o
desenvolvimento de um rebento inesperado, uma espécie de gravidez extemporânea,
isto é, premida em sua própria contradição via ser gerado um movimento crítico e
autocrítico questionando a condição da educação física e dos esportes como aparatos
ideológicos autoritários agindo no interior da escola e fora dela.
A concepção tradicionalista de educação, até então hegemônica na educação
física, embalada pelo tricampeonato do Brasil no futebol mundial, manifestava-se no
alvorecer dos anos 80 (oitenta) buscando melhores condições técnicas (tecnicismo) para
a aquisição de uma melhor saúde corporal e maior projeção do país em âmbito mundial
via esporte espetáculo.
Por volta de 1983 eclode na educação física um movimento intestino procurando
resgatar as práticas corporais e a atividade física como construções fenomênicas
culturais geograficamente situadas, socialmente produzidas e historicamente datadas,
portanto, politicamente vinculadas a determinadas concepções de mundo. Tratava-se,
não mais da abordagem atlética ou olímpica dos esportes, pouco importando ao
movimento crítico o número de medalhas e títulos auferidos pelo Brasil em
campeonatos e olimpíadas, o que lhe interessava saber era para que a prática
hebdomadária da educação física levada a termo por milhares de indivíduos sem
pretensões espetaculares e como os milhões de homens e mulheres aos quais a
1 Educação física entendida como prática de exercícios corporais visando a socialização de crianças e adolescentes, prevenção da saúde corporal e melhor disposição para o trabalho, quer dizer, melhor e maior rendimento da força de trabalho, base para o esporte de espetáculo, etc..
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economia política negava acesso a cultura na sua quase totalidade, poderiam praticar e
para que praticariam a educação física de forma sistemática e individualizada ou
personalizada.
Esta segunda perspectiva servia-se de um paradigma de estudo e exposição capaz
de dar conta da realidade objetiva2 em sua totalidade, o marxismo. Sob essa perspectiva
paradigmática foi colocada em cheque a apologia da educação física como panacéia à
formação de consciências críticas e reflexivas e à prevenção da saúde3, mormente
porque uma questão antecedia: qual era o conceito de saúde fundamentada pelos
tecnicistas?
Seguindo uma trilha do marxismo mitigado, aliviado do seu cerne revolucionário,
o movimento crítico de professores de educação física viu-se das seguintes perguntas
até então sem respostas:
A educação física era revolucionária ou reacionária, ela era proposta à libertação
dos homens e mulheres do jugo da escravidão assalariada ou se enquanto aparato
ideológico afirmava a conformação de corpos ao ideário burguês, reafirmando a
exploração, opressão e extorsão dos trabalhadores pelo capital?
E qual era a relação da educação física com o Estado e a Sociedade Civil4?
Para o entendimento de todas estas questões que a prática da educação física
suscitava, se fazia pertinente e necessária entender o Homo sapiens como um animal
político e escolher uma concepção de mundo com um método subjacente, rigorosamente
construída sobre a concretude histórica da sociedade brasileira em sua totalidade.
Supostamente estribado no marxismo o movimento crítico acima referido
procurava perquirir na história deste país a raizon d’être da própria educação física. Sob
uma visão panorâmica procurava o movimento (e ainda procura) compreender o papel
da educação física nesta sociedade cheia de contradições imanentes à sua condição de
organização política, jurídica e econômica periférica e dependente. 2 A realidade objetiva é a história criada pelos homens e a natureza incriada e modificada de modo coletivo pela mão humana. 3 O retorno do ideário de “prevenção de saúde” pela prática sistematizada e personalizada da educação física é um engodo quando as condições objetivas e subjetivas de cada participante são absolutamente desconsideradas, isto é, quando as condições materiais e intelectuais de cada participante determinadas pelas políticas econômicas em determinada sociedade são ignoradas. Digno de nota é o fato de que se nos anos 70 (setenta) do século XX tal ideário era uma apologia própria aos governos civil-burocráticos-militares, nos anos iniciais do século XXI esse mesmo ideário pertransiu parte considerável dos intelectuais e professores de educação física. 4 A sociedade civil, como em Hegel e Marx, é a burguesia industrial, fundiária e financeira organizada.
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A partir desta constatação seria possível a análise crítica da relação indissociável
entre educação física, economia política e Estado, perquirindo ainda quais os métodos
eram utilizados à inversão da realidade e à geração de consciências intransitivas.
Para incômodo do movimento crítico o trem da história deslizou solerte sobre
trilhos em desalinhos e a educação física assentada neles retrogradou, ou seja, o ideário
de outrora está de volta neste preâmbulo de século e voltou com a força própria das
mentes que o resgataram: o olimpismo, a prevenção da saúde e a tautologia no
arrazoado sobre a função social da educação física numa sociedade do tipo capitalista,
em seu conjunto têm sido a tônica nos cursos superiores de educação física.
A história impôs aos críticos das variegadas áreas do conhecimento, a necessidade
da metamorfose ideológica e abandono dos princípios. De modo que escudados na
tautologia das correntes e teorias pedagógicas “novidadeiras” alojadas na educação
física, os críticos de antanho, metamorfoses ambulantes, praticam o ecletismo5 e a
objetividade sociológica6, uma espécie de subjetividade pífia retirada para o íntimo da
interioridade tragicômica; procurando referendar a fragmentação reducionista ad
absurdum da educação física no interior da sociedade brasileira.
Postas as iniciais, tomando por pressuposto a educação como aplicação de
métodos próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e
moral de homens e mulheres em geral, entendemos que a educação física poder ser
considerada como pleonasmo do fenômeno educativo.
Esse pleonasmo reflete a divisão de competências que, por sua vez, obedece
estritamente a uma determinada concepção de mundo a quem interessa fragmentar e
dissociar os fenômenos sociais.
Diante da fragmentação dos fenômenos sociais e segundo uma idiossincrática
forma de ver e sentir a história na qual os fatos são construídos, há três momentos
distintos que marcaram não apenas a compreensão que os indivíduos tinham da
educação física, como também fizeram com que alguns professores de educação física
passassem a pensar essa área do conhecimento técnico na qual atuavam, como parte
5 Ecletismo é a junção de teses extraídas de filosofias antagônicas, presunçosamente chamadas a compor uma “terceira concepção” de mundo, de sociedade, etc.. Com outras palavras, a diversidade teorética e metodológica apenas encobre a dominação mais perversa ainda do capital sobre o trabalho. 6 Para os sociólogos de cepa positivista a “objetividade” representa a análise, nua e crua, do “objeto” social escoimada das pré-noções e preconceitos, i.é., da ideologia. A rigor, os apologistas da “objetividade sociológica” apostam na possibilidade de trabalhar apenas com “pós-conceitos”.
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indissociável da educação geral (intelectual e física) e instrumento possível na luta pelo
fim da ditadura civil-burocrático-militar de 01 de abril de 1964.
O primeiro momento é o da publicação do livro A educação física cuida do corpo
e... “mente” do professor João Paulo Subirá Medina (1983). Nessa obra, o autor vazado
pelo pensamento de Paulo Freira, paradoxalmente, reclama para a educação física o
pensamento marxista à medida que reconhecia as alterações da sociedade como
pressupostos históricos e imprescindíveis às alterações da educação física. Medina
ingenuamente propõe ser a educação física um instrumento “revolucionário” capaz de
coadjuvar a transformação desta sociedade.
Oliveira (1994, p. 132) considera que o ensaio do professor Medina “foi um dos
que mais circularam entre os professores e alunos, sendo, inclusive, o que mais
indicações recebeu para [sua] pesquisa”.
E mais, Oliveira (1994, p. 132), reconhece ainda que o livro em questão inaugura,
de certa forma, um novo momento para a educação física brasileira, à medida que “o
autor pensa a partir da Educação Física e não desconsidera aspectos de ordem
conjuntural”.
O segundo momento foi o da “alternância” de concepção de mundo, via sufrágio
universal, em 1985, na Presidência do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte
(CBCE)7. Fundado em 17 de Setembro de 1978 por médicos e alguns professores de
educação física vazados pelo pensamento positivista de mundo, de sociedade e de
homem. Um pequeno reparo: os positivistas de antanho eram menos positivistas que os
personagens que comandam hoje o CBCE.
Nesse Colégio onde se incentivava apenas pesquisas biológicas, supostamente
“desinteressadas” por serem politicamente neutras, travava-se uma luta, de um lado,
pesquisadores para quem as ciências sociais eram entendidas como especulação de
quem não tem compromisso com os rigores das ciências e, doutro lado, os que
acreditavam na impossibilidade da fragmentação do conhecimento e questionavam a
falsa clivagem ciências sociais x ciências biológicas. Estes, adeptos da concepção de
7 O CBCE até 1985 era conhecido por alguns dos seus críticos como “sucursal” do Colégio Americano de Ciências do Esporte – pelo fato de que embaixo do nome dessa Instituição aparecia grafado Brazilian College of Sport Sciences, dando uma conotação clara e inequívoca da aculturação dos seus pesquisadores ao “american way of life”, até porque, quando se trata de “ciência”, dizem eles, não pode haver parcialidade, mas o predomínio da “objetividade” peculiar à pesquisa desinteressada e ou à racionalidade científica.
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mundo na qual o homem é uma totalidade inquebrantável, consideravam a alternância
no mando dos destinos dessa agremiação científica como reflexo da mudança de
concepção de mundo no interior do CBCE.
Reflexo incontestável dessa primeira mudança, ocorreu uma mudança no enfoque
sobre a educação física e os esportes até então dissociados da economia da política, da
filosofia etc.. Todavia, vale ressaltar, muda-se a base material, mas é com muito vagar
que presenciamos a mudança de mentalidade dos críticos do positivismo, que
permaneceram prisioneiros da concepção de mundo e dos pressupostos da ciência que
diziam combater.
Não tratamos aqui de fazer a crítica fácil. Nossa crítica é o resultado da
“convivência” com dirigentes do CBCE nos anos 1980 e com os críticos sucessores da
corrente positivista hegemônica até 1985. Os críticos sucessores faziam parte de uma
esquerda que a história recente deste país tratou de demonstrar ser social-democrata.
Vazados por teorias ‘novidadeiras’ clamavam aos quatro cantos que as atividades físicas
escolares seriam um instrumental de re-pedagogização da educação física.
Adequando o discurso à realidade capitalista sobre as sementes da ideologia
neoliberal, os críticos que diziam defender os interesses e demandas dos filhos e filhas
da classe operária, sem dar muita importância aos destinos dessa classe, coadjuvavam
por caminhos diversos o desmonte do Estado em todos os seus aspectos, mormente
quanto ao desmonte dos direitos sociais dos trabalhadores e da entrega definitiva da
soberania deste país aos interesses bacantes de grupos financeiros internacionais.
Os críticos da educação física que no discurso defendiam a integridade das
Universidades Públicas, na prática participavam do processo de demolição dessas
Instituições de Ensino Superior.
Os críticos faziam parte do chamado setor progressista que havia trocado o
marxismo por posições mais “realistas”, coexistindo pacificamente com o campo
conservador e reacionário da educação física, do movimento sindical e partidário, foram
os responsáveis pelo enfraquecimento do pensamento crítico nos cursos superiores de
educação física, pela entronização do ecletismo nefasto ao processo de defesa da escola
pública e gratuita e pelo resgate da fragmentação do conhecimento e clivagem do
conjunto dos professores de educação física em “licenciados” e “graduados”.
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O terceiro momento, segundo nosso entendimento, foi o da publicação do texto “O
Golpe na Educação” de Luís Antônio Cunha e Moacir de Góes, no qual “as práticas
desportivas da educação física” são apontadas como substitutas naturais ao falhanço do
Mobral8 – simulacro medíocre do “Método de Alfabetização de Adultos” (construído,
nos anos sessenta do século XX pelo educador Paulo Freire) como “peça do Aparelho
Ideológico de Estado escolar” para cansar a juventude e afastá-la das lutas populares e
sociais necessárias ao enfrentamento da política dos governos genuflexos diante dos
interesses norte-americano.9
O texto de Cunha e Góes quase obrigou os professores de educação física à uma
parada forçada no sentido da reflexão percuciente, em primeiro lugar, sobre seu papel
social e seu compromisso político, e, em segundo lugar, ainda que de forma acanhada e
imprecisa, sobre a realidade brasileira que se descortinava perversa diante dos seus
próprios olhos. Na verdade, a partir desse texto – conjuminado com os outros dois
momentos – foi possível erigir um novo olhar sobre o papel da educação física na
sociedade capitalista.
Objeto do estudo
A educação física (e suas práticas esportivas) enquanto parte indissociável da
instituição escolar voltada à formação do físico e do intelecto de crianças e de
adolescentes, bem como mecanismo de inculcação de valores morais, cívicos e
patrióticos nem sempre compreendidos pelos educandos e pelos educadores e nem
sempre condizentes com a real situação histórica deste país.
Referencial teórico-metodológico
O método é o caminho pelo qual o investigador / pesquisador atinge um fim pré-
determinado, ele tem sido tratado, por exemplo, desde Descartes como o meio mais
racional com o qual se procura a verdade.
8 Movimento de Alfabetização de Adultos, posto em prática pelos áulicos da ditadura civil-burocrática-militar. 9 Via acordo MEC-USAID. A United States Agency International Development criada no governo Kennedy, pesa sobre ela dolo pela introdução na América do Sul de técnicas de tortura e esquadrões da morte pelo seu funcionário de nome Dan Anthony Mitrione.
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Na tradição marxista, o método é utilizado para buscar a verdade além dos
labirintos metafísicos e dos arabescos imaginativos onde idéias confusas e embrulhadas
deturpam a teoria de Hegel, sem a qual Marx não teria desenvolvido sua doutrina
(ENGELS, 1976).
Encimados na teoria marxista consubstanciada no método dialético de análise e
exposição este estudo foi desenvolvido, primeiro, sem perder de vista a totalidade
fenomênica e, segundo, colocando no centro da investigação proposta a contradição –
categoria histórica central do marxismo – sem a qual não se consegue compreender a
dinâmica do processo educacional, suas causas, seus objetivos, seus métodos, suas
técnicas e seu paradoxo, ou seja, a opinião consabida, a crença ordinária e
compartilhada pelo senso comum da intelectualidade segundo a qual a educação é um
instrumento apenas de reprodução das relações sociais.
O paradoxo da educação aparece quando a dialética é entendida como “o estudo
da contradição na própria essência das coisas” (LENIN, 1986, t. 29, p. 207).
Sendo o núcleo da dialética, “o caráter absoluto da contradição significa, primeiro,
que a contradição existe no processo de desenvolvimento de todas as coisas, e, segundo,
que o movimento dos contrários se apresenta do começo até o fim do processo de
desenvolvimento de cada coisa” (ZEDONG, 1965, p. 32).
A universalidade ou o caráter absoluto da contradição dialética significa, em
primeiro lugar, que ela existe no processo de desenvolvimento da natureza e da
sociedade e, em segundo lugar, que o movimento dos contrários está posto do início ao
fim do desenvolvimento de todas as coisas e seres vivos. Não há movimento social ou
natural que não seja conseqüência da contradição interna, da luta de contrários como sua
essência.
Como aponta Engels (1976, p. 102) no Anti-Dühring:
A vida consiste precisamente, essencialmente, em que um ser é, no mesmo instante, ele
mesmo e outro. A vida não é, pois, por si mesma, mais que uma contradição encerrada
nas coisas e nos fenômenos e que se está produzindo e resolvendo incessantemente; ao
cessar a contradição, cessa a vida e sobrevém a morte.
... no próprio mundo do pensamento, não poderíamos estar livres de contradições, como,
por exemplo, a contradição entre a capacidade de conhecimento do homem, ilimitada
anteriormente e a sua existência real, no seio de um conjunto de homens, cujo
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conhecimento é limitado e finito exteriormente. Essa contradição, no entanto, se resolve
na sucessão infinita, pelo menos para nós, das gerações, num progresso ilimitado.
O paradoxo da educação, só pode ser localizado e compreendido quando o
investigador / pesquisador se despe do reducionismo intrínseco da educação oficial e
assume a não separação arbitrária do que é inseparável, pois se o homem é produto da
sociedade e se a educação é o processo no qual ele apreende a essência das coisas, então
ele, o homem, não pode se realizar fora da sociedade. Logo, não existe de um lado, o
homem e, do outro, a sociedade.
Ao contrário do pensamento metafísico, que isola os contrários, considerando-os,
sistematicamente, como incompatíveis, indivíduo e coletivo não podem existir um sem
o outro e a relação entre eles só pode explicada pela luta dos contrários.
Compreendemos, pois, que só o interesse de classe da burguesia procura obnubilar
a compreensão que deveríamos ter da dialética. A dialética, como assevera Marx (1982,
p. 17) é um
Escândalo e horror à burguesia e aos porta-vozes de sua doutrina, porque sua concepção
do existente, afirmando-o, encerra, ao mesmo tempo, o reconhecimento da negação e da
necessária destruição dele; porque apreende, de acordo com seu caráter transitório, as
formas em q se configura o devir; porque, enfim, por nada se deixa impor, e é, na sua
essência crítica e revolucionária.
Modernamente, a simples exposição da dialética marxista, embora incontornável,
é um escândalo e uma abominação segundo as regras da sociedade e da linguagem
filosófica dominante e para o gosto que elas “educaram”.
Resultados
Curiosamente a junção dos três momentos da educação física, reportados na
introdução, evidenciou a deformação do marxismo nesta área acadêmica e referendou a
tese central do positivismo – imutabilidade das coisas e das relações de produção –
como concepção de mundo sob a qual a educação física caminhava, ainda que o
positivismo fosse mascarado pelo palavrório ‘ordem’ (para os pobres) e ‘progresso’
(para os ricos).
Vale lembrar, ser era “errado pensar o positivismo como um instrumento neutro,
independente, para interpretar o mundo”, o que não se reconhecia suficientemente era o
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positivismo como “uma ideologia, envolvendo formas ocultas de dominação e
repressão” (SARUP, 1980, p. 92).
Sob essa ótica, se as questões da educação física são apenas técnicas e não
políticas (de classe), então elas permanecem fora do âmbito da discussão pública, nesse
momento, a técnica se transforma em ideologia enquanto mecanismo psicolingüístico de
ocultação da realidade. Resgata-se assim a reificação da educação física procurando
tratá-la como existência separada e “operação independente dos desejos dos atores
sociais”; a educação física [como a sociedade] tratada como se fosse governada por leis
naturais, dá “a impressão de que algumas das suas características são inalteráveis”
(SARUP, 1980, p. 92).
Portanto, diante da permanência do pensamento positivista permanece a pergunta:
educação física para quem e contra quem?
Lamentavelmente, a questão sobre para quem e contra quem atua a educação
física, ainda não foi respondida. Grosso modo, manter a fragmentação e a ocultação dos
fatos específicos relacionados aos efeitos perversos, biológicos e sociais, da ordem
burguesa é negar os postulados da estrutura social de classes à cata de um estatuto
epistemológico próprio à educação física, com o qual a ela seria conferindo estatuto de
ciência. Na verdade, o recrudescimento do pensamento positivista reducionista no
âmbito dos cursos universitários de educação física é por demais claro, mesmo que se
diga ter sido superada a dicotomia marxismo x positivismo.
Essa suposta superação da dicotomia marxismo x positivismo, enquanto
manifestação do pensamento conservador, em primeiro lugar, oculta a necessidade da
transformação revolucionária desta sociedade como condição sine qua non à
transformação da educação e do seu pleonasmo [a educação física]; e, em segundo
lugar, olvida que nas sociedades de classes os esportes são utilizados pelo poder estatal
como ‘ópio da miséria’ e como apelo aos mais perversos sentimentos humanos: o
individualismo, a competição e o mercenarismo.
Os críticos da educação física afastaram-se da luta política, impingiram e
impingem aos estudantes o seqüestro do discurso, a negação da contradição e um cartel
autoritário de idéias e teorias fora do tempo desgastadas pelo tempo.
Fora do tempo à medida que os professores(as) de educação física permanecem no
campo do pensamento positivista, pertença materializada na fragmentação dos fazeres e
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saberes, na redução da totalidade humana ao seu aspecto pedagógico ou biológico, na
alocação da prática da educação física acima dos interesses das classes sociais como
fundamento de um hipostasiado “novo” pensamento científico.
Neste sentido, após quase vinte e cinco anos da publicação do livro Educação
cuida do corpo e... “mente”, ou seja, depois de quase vinte anos de uma suposta troca
de paradigmas na educação física brasileira duas perguntas que pairavam no ar podem
ser respondidas:
Em primeiro lugar, quase nada mudou na essência da educação física e os
esportes: seus professores, especialistas do saber e “pequenos funcionários da
superestrutura”, sobre quem tenho a sensação que se leram cem volumes de filosofia, de
história, de pedagogia, etc., ainda não aprenderam o sentido das principais categorias
históricas republicanas: igualdade, fraternidade, liberdade e segurança.
Em segundo lugar, trancafiados em seus ‘laboratórios’ fazem uso cotidiano do
colírio positivista que oblitera a visão, manifestando-se sempre como consciências
racionalizadas, equilibradas, responsáveis e cientificamente desinteressadas.
Nada há mais de mais extravagante que a consciência racionalizada,
institucionalizada, burocratizada, sempre escudada na ciência e na filosofia
(LEFÉBVRE, 1968, p. 110). Essa consciência é paradoxal porque “sonha” os “sonhos”
de personagens que fizeram história na contramão da luta de classe contra classe. O que
impede a consciência racionalizada de sonhar por si mesma, sonhar seus próprios
sonhos, são justamente os “sonhos” doutros encampados por ela.
Essa boa consciência, a única intitulada como crítica, escreve: "As utopias bem
postas no papel e bem comentadas em livros de teoria social se mostram inadequadas
diante da conjuntura internacional adversa ao projeto socialista e comunista”
(GUIRALDELLI JR., 1999, p. 38).
Apesar de não se reportar diretamente à educação física, essa fala, a nosso juízo,
sinaliza de forma clara e evidente que as relações sociais estabelecidas na educação
(física) não são dialógicas e nem dialéticas, mas reflexo fiel das relações sociais de
produção arbitrárias e conservadoras, e um óbvio demonstrativo da inexistência de
diálogo entre a boa consciência e os intelectuais que pensam a contradição como motor
do desenvolvimento social.
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É tarefa da crítica, pois, defender com intransigência algumas teses sobre a
educação física que se nega a aceitar sua historicidade política como rebento das
demandas das classes dominantes de antanho aos dias presentes, por elas foi produzida e
a elas serve. Imiscuídos nesse imbróglio historicamente construído e politicamente
determinado, a mor parte dos intelectuais da educação física, por caminhos diversos,
insiste em afirmar diante do que está posto que (i) a formação social e econômica
capitalista é o único e inexorável caminho da humanidade; (ii) a fragmentação do
movimento humano ou da cultura física é a única possibilidade pedagógica e política
para a existência da disciplina educação física no interior das escolas públicas; (iii)
resgata-se a falsa contradição entre o professor licenciado e o profissional graduado; (iv)
re-estabelece-se a dicotomia entre ciências sociais e ciências biológicas (estas
marcadamente sociais).
E exatamente por isto, não compreendem o professor(a) de educação física na sua
dimensão histórica de totalidade, parte ativa do todo social, sujeito e objeto da sua
própria historia e da historia desta sociedade, construções coletivas geograficamente
situadas e temporalmente datadas.
E mais. Reafirmam a hierarquia institucional legalista determinada de cima para
baixo e, grosso modo, elitista e meritocrata para quem as ciências são o apanágio ou a
panacéia pós-moderna à resolução dos males da sociedade e da educação [física].
Discursos e práticas assumem um matiz cartesiano... incoerente, incongruente,
contraditório concorrendo à “embriaguez” política dos estudantes.
Na louca busca por reafirmar a possibilidade de construção de um estatuto
epistemológico para a educação física, ignora-se que esta área do conhecimento é
subalterna, nela não há originalidade e nem nada de seu, exatamente porque sobre ela
nenhuma abordagem pode prescinde da filosofia, das ciências sociais (sociologia,
história, antropologia etc.) e das ciências biológicas (fisiologia, bioquímica,
epidemiologia, neurologia etc.).
Para agravar mais ainda esse quadro, sobre os professores assumidos na sociedade
brasileira como intelectuais de ponta, em linguagem “sartreana”, são “pequenos
funcionários da superestrutura”, em quem radica a crença pueril na possibilidade de
transformar esta sociedade mediante pequenos retoques na educação ou pequenas
reformas política, trabalhista, sindical e universitária.
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Ainda que essa esperança constitua perigo social que, no fim de contas, resulta
conservador, vez em quando é abandonada e substituída pela redução do todo (o
generalista) a parte (o especialista), ela se apresenta como mecanismo de redução
historicamente conhecido como embrião redivivo do pensamento conservador do século
XX.
Conservador porque fragmenta a totalidade pedagógica da educação [física],
fragmenta o conhecimento e a profissão, acalma e enfraquece as inquietações e os
protestos diante da reforma do Estado e das instituições públicas levadas a termo e
acabo pelo atual governo federal.
Conservador porque faz apologia da ilusão neoliberal sobre o nascer de um novo
homem e de uma nova mulher, enquanto o Estado renuncia voluntariamente a qualquer
interferência no campo educativo, na economia política etc., ou seja, renuncia o
cumprimento dos seus deveres constitucionais.
Apesar de tudo e da ação perdulária e nefasta dos “especialistas do saber”, não
somos pessimistas, pois entendemos existir um paradoxo educacional que sobremaneira
nos atrai e fascina: nem com a educação, nem sem ela.
Para nós, não é crível pretender e acreditar que a escola possa pairar acima dos
interesses das classes fundamentais de uma sociedade determinada. Pensamos não ser
inteligente continuar vociferando esse bordão, pois sua manutenção apenas referenda a
entrega do sistema educacional brasileiro às mais obscuras forças do capital e das
instituições privadas.
Não é inteligente acreditar na possibilidade da edificação doutra estrutura jurídica,
política e econômica, apenas pela educação [física]; como não é inteligente querer
produzir uma concepção nova das coisas, fragmentando, reduzindo e ocultando. É
preciso ser-se realista!
O impasse histórico
Evidente que o livro Educação Física cuida do corpo e... “mente”, do autor acima
referido foi o marco da introdução do marxismo deformado na educação física. À época
era moda alguém se dizer marxista ou, simplesmente, utilizar teses mutiladas de Marx
como estribo supostamente avançado à construção de textos e ilações ‘críticas’ sobre a
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história deste país com passagens desconexas e recortadas das obras desse grande
pensador alemão.
Por que teses mutiladas? Porque na perspectiva do professor Medina, o processo
de transformação social do capitalismo em socialismo seria deslanchado não pela luta
de classe contra classe, mas pela transformação dos indivíduos que compunham uma
determinada sociedade. Aliás, esta condição também foi detectada por Oliveira (1994),
à medida que não são as classes sociais as protagonistas do processo revolucionário de
transformação, por exemplo, da sociedade brasileira, mas a mudança dos homens
mudaria necessariamente a sociedade.
Como um bom scholasticus na formulação (sem elucidação) e defesa de um
dogma, o professor Medina, sem muita familiaridade com Hegel, notadamente a sua
Fenomenologia do Espírito, não consegue vislumbrar que Marx concebe a história dos
homens como luta de classes, como Hegel, luta entre o senhor e o escravo, ou seja,
como contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Escapa ao
professor Medina que a contradição, tal como está posta na obra de Marx, é, pois, a
mola do processo histórico, tensão que impulsiona e a faz mover-se, a ser constante
mudança e transição.
Anote-se que da lavra de Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, no
lugar da sociedade capitalista, com suas classes e seus antagonismos de classe, por força
da ação revolucionária do proletariado, surgirá uma outra sociedade na qual o livre
desenvolvimento de cada um será condição sine que non do livre desenvolvimento de
todos.
Para Oliveira (1994, p. 136) transformação social predicada por Medina dar-se-á
“pela revolução de consciências, tanto que [ele, Medina] acredita que cabe a cada um
procurar ascender a níveis cada vez maiores de consciência”.
A rigor, o professor Medina capitula diante da dialética não marxista, mas da
dialética hegeliana mitigada, à medida que ele acaba, mesmo que disto não soubesse à
época, estabelecendo o primado da consciência sobre a existência, ou seja, a prioridade
da consciência em relação ao ser, ou do pensamento em relação ao real. O real, para
nós, é (i) a natureza incriada, (ii) o resultado da sua transformação pelos homens, a
história.
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Portanto, a teorética marxista tem sido não apenas a interpretação do mundo, da
sociedade capitalista, mas reflexão radical sobre todas as formas do agir e do pensar
humano, projeto de transformação revolucionária das sociedades e dos homens, isto é,
política, ética e pedagogia.
Todavia, o marxismo sem Marx e a confusão dos matizes instalados na educação
física foram os responsáveis, de um lado, pela biologização do movimento humano ou
da cultura física e, do outro lado, pela pedagogização da ginástica, dos exercícios
militares e dos esportes sob os quais, nos séculos pretéritos, foi originada a educação
física.
O emprego do método dialético marxista na análise da produção literária da
educação física, revela que na educação física a concepção de mundo proposta ao
desvelamento da realidade foi negada e, inconseqüentemente, dita exaurida.
Não nos causa espécie que o professor Medina tenha trabalhado apenas sobre um
fragmento, deixando esquecida a totalidade humana determinada historicamente pelas
relações sociais de produção – escravistas, feudais e capitalistas. Como reclama Oliveira
(1994, p. 136), apesar de Medina “reconhecer a existência de uma classe dominante, em
nenhum momento ele a antagoniza. Muito pelo contrário, ele acredita que ‘uma
revolução verdadeira exige uma participação crítica de toda uma coletividade
interessada em melhorara a o padrão cultural de tosos os seus membros”.
Esquece o professor Medina ser o marxismo, par excellence, a crítica intransigente
das relações sociais de produção capitalistas e, moto contínuo, linha de ação implacável
ao desmantelamento do mundo burguês. Exatamente por estes dois aspectos o marxismo
permanece odioso ao entulho autoritário latente. E mais, levado às últimas
conseqüências o marxismo é o exercício do espírito humano manifestando-se em sua
infinita negatividade.
Lamentavelmente, ainda hoje, professores e professoras de educação física, com
raras exceções, estão desprovidos da iniciação filosófica ao marxismo. A bem da
verdade, nessa área do conhecimento e da prática humana Marx foi trocado por Comte,
Engels por Durkheim, Lenin por Max Weber, Krúpskaia e Pistrak por Dewey e Enguita.
Que pena!
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Essa troca formou gerações inteiras de professores e professoras privadas do
contato estreito e até mesmo superficial com a vasta obra dos fundadores do
materialismo dialético histórico.
Dessarte, oficialmente implantada no Brasil nos anos 30 do século XX, por
militares e médicos, a educação física enquanto disciplina acadêmica e área de estudos e
pesquisas, se mantém sob a capa do positivismo e da fragmentação praticada sobre a
sociedade e o homem. Sem perguntar sobre a sua origem, sua essência e seu significado
histórico, limitando-se a criar, espontaneamente, como a natureza, podemos ser
cientistas, mas jamais filósofos. E se não chegamos ao estádio, como diria Corbisier
(1987), de consciência crítica da experiência humana considerada em sua totalidade,
será porque a razão teórica não se esforça para conhecer o real e a razão prática não se
propõe transformá-lo. E o que é o real?
O real, diz esse ínclito e saudoso filósofo, “é a natureza e o resulta da
transformação da natureza (inclusive humana) pelo trabalho e pela luta do homem, quer
dizer, a cultura, a história” (CORBISIER, 1987, p. 102).
Exercitando-se sob a reductio ad absurdum, os estudos nesta área procuram
dimensionar a totalidade humana social e historicamente construída, em aspectos
moleculares mantidos isolados do aspecto molar da sociedade brasileira – a economia
política.
Mas não são apenas as obra de Marx e Engels as que são sobejamente esquecidas,
ignoradas, como se não bastasse tanto descaso com os clássicos, até mesmo as
contribuições de Platão postas nas suas obras A República e As leis e de Aristóteles,
lavradas na Ética à Nicômaco e n’A Política, um legado de ricas análises da educação
física ou dos exercícios militares utilizados na Paidéia (formação do homem grego:
filósofo e guerreiro), têm sido também absolutamente desconsideradas, ignoradas.
A ausência dos clássicos faz com que os professores de educação física não
compreendam que nada na sociedade “é solto, desligado, gratuito, mas, ao contrário,
todas as coisas se integram em conjuntos ou totalidades parciais que, pó sua vez, se
incluem em totalidades mais amplas, ainda parciais, que, por seu turno, se inserem em
outras, em um processo qu se prolonga ao infinito” (CORBISIER, 1987, p. 115).
Esta ausência além de ser a maior carência da educação física, agravou-se de
maneira catastrófica em virtude da repressão velada ao seu ensino nas mais diversas
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escolas, faculdades e institutos superiores de educação física. Tal agravamento é
decorrente da insciência que separa, por exemplo, a filosofia da política com o seguinte
argumento: ou estudamos filosofia ou fazemos política.
Ora, como é possível isolar a filosofia da política se a política é a verdade da
filosofia?
As obras de Platão e Aristóteles acima citadas, têm como pano de fundo
preocupações configurando a filosofia a confundir-se, mas não a se cindir, com a
política. O que está posto nesses escritos, enquanto problema político e ético, é a
constituição do governo da Polis na qual se distingue no tocante ao problema paidêutico
a dimensão filosófica da formação do homem grego.
A virtude política perspectivada coloca como ponto nodal, por exemplo, da
República a formação do homem da seguinte maneira:
A menos que nos Estados os filósofos se tornem reis, ou que aqueles que hoje se dizem
reis e soberanos se tornem verdadeiros e sérios filósofos, e que se vejam reunidos em um
único indivíduo o poder político e a filosofia, a menos que, de outra parte, sejam
excluídos do governo aqueles muitos que hoje tendem a uma ou outra dessas vocações
separadamente, não haverá remédio algum para os males que afligem e devastam os
Estados e a própria humanidade (PLATÃO, 473 c-d, 1970, p. 150).
Hoje, mais que dantes, assumimos a certeza de que uma profissão, qualquer
profissão – de cunho técnico ou meramente de cunho intelectual – sem iniciação
filosófica no marxismo é uma profissão perdida nos equívocos dos pseudoproblemas e
na distorção das perspectivas daqueles que, desconhecendo a estrada real do
pensamento, se extraviaram nas veredas, pervagam os atalhos e se desassossegam nos
descaminhos do positivismo que por causa da árvore não consegue vislumbrar a beleza
profunda do bosque.
Dessarte, se a educação [física] não transforma a sociedade e a era das revoluções
exauriu-se, então, como tudo o que é sólido se desmancha no ar, as esperanças, os
sonhos e a utopias também se desmancharam. Esse é o impasse que está colocado diante
de todos nós. É certo!
Entretanto, este impasse não deve constituir motivo para jogarmos fora o bebê (a
prática social) junto com a água do banho (a teoria). Não existe sequer mínima razão
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para pararmos de acreditar na transformação revolucionária como linha de ação á
demolição do capitalismo e à edificação doutra sociedade.
Todavia, há uma condição a evitar: a educação como alavanca da transformação
social, econômica e política: se ela transforma a sociedade então é para isto que educa.
Ora, a crença nesta quimera circunscreve o quimérico no âmbito do pensamento
conservador. E a prevalecer esta tese, está posto uma aporia de difícil resolução: sem a
instituição escolar não será possível compreender a construção do entulho autoritário
redivivo na sociedade brasileira, contudo, a compreensão desse fato não pode prescindir
do estudo e compreensão da teoria marxista elaborada e desenvolvida no quadro do
movimento operário do século XIX (FOUGEYROLLAS, 1995, p. 159).
Sem educação, paradoxalmente, não há acesso ao conhecimento filosófico
político, não há emancipação intelectual do proletariado e, portanto, não há movimento
revolucionário. Com outras palavras, sem educação não há transformação. E o que pode
parecer contradição, na verdade é fundamental à construção da educação política
enquanto prática social coletiva.
A educação política possibilita o conhecer a historicidade das lutas sociais de
classe e a compreensão refinada da possibilidade e da necessidade de edificação doutra
sociedade, sem classes, socialista e, ulteriormente, comunista. Fora disto é falar barato!
Educar politicamente para a emancipação intelectual dos estudantes de educação
física é ajudá-los a compreender que a fragmentação dos saberes entra em rota de
colisão com os fins da Universidade enquanto lócus de sistematização e unificação do
diverso, do diferente, da variedade, do contraditório, da multiplicidade, do desacordo e
do oposto.
Na contramão desta concepção, a fragmentação do conhecimento se expressa:
(1) Na prédica da educação física como meio à formação apenas de professores
para a educação física infantil fundamental e média. Fato este que permite, por
extensão, a possibilidade de uma fragmentação mais hedionda ainda, ou seja, a
construção de duas ou três “habilitações”, uma para a educação infantil, outra para as
séries do ensino fundamental e mais outra para o ensino médio.
(2) Na dissociação da biologia (homem se fazendo) da pedagogia (o fazer do
homem), afirmando-se como caminho lógico à negação do marxismo para quem o
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fundamento da história é o trabalho, a ação dos homens sobre a natureza e sobre eles
próprios, ação que transforma a natureza e, também, os homens.
Essa dissociação ou fragmentação está expressa de forma clara na concepção
pragmática segundo a qual a educação física a ser trabalhada na educação infantil e
séries iniciais do ensino fundamental estaria direcionada para o ‘contato direto com
crianças’, enquanto a ‘formação científica’ estaria relacionada (i) à geração de
‘especialistas’ mediante cursos de pós-graduação, (ii) ao trabalho em escolinhas, clubes
e academias onde é marcadamente utilizado o conhecimento biológico voltado
especificamente ao treinamento desportivo ou desenvolvimento das qualidades físicas.
O que está em curso por trás dessa absurda fragmentação é a retirada do papel
histórico do curso de licenciatura em educação física enquanto lugar de formação
docente não apenas para atuar na educação infantil, mas para atuar nas mais diversas
instâncias da sociedade onde se processem atividades físicas que requeiram a presença
de um professor (aquele que tem um conteúdo, fruto da sua experiência, para
transmitir).
Quando é posto o diálogo entre ciências sociais e ciências biológicas, o que
pretendem é apenas a sofisticação da abordagem ‘novidadeira’, “contribuindo para a
mistificação pedagógica” (OLIVEIRA, 1994, p. 148).
A nosso critério, na esteira dessa fragmentação e como reforço da mistificação
pedagógica na educação física, está a velha e desgastada dicotomia teoria e prática, que
“ilustra tout au plus a influência liberal” (OLIVEIRA, 1994, p. 153). E, por extensão, a
desvinculação entre a formação do licenciado (professor) e a formação do graduado
(profissional).
Colocando como questão ao debate, quer nos parecer que a educação física e o
esporte na escola continuam a ser encarado “como uma disciplina ‘diferente’ das outras.
(...) como uma ‘parente pobre’ dentro da escola” (CARVALHO, 1978, p. 106).
O que não está bem configurado é o papel do esporte na escola, entendido o
esporte como importante fator de educação cívica e democrática das novas gerações,
diretamente integrado no processo cultural e político-pedagógico de reconstrução da
sociedade e da educação.
Oliveira (1994, p. 17) reporta-se à educação física tão como entendida nos anos 70
e anos anteriores, afirmando que ela “deu um salto qualitativo não somente em relação
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só à sua prática, mas também quanto aos seus pressupostos teóricos, dialeticamente
produzidos e responsáveis pela superação dessa prática”. Eis que só a partir dos anos 80
parece ter surgido “a perspectiva da Educação Social como prática social” (OLIVEIRA,
1994, p. 17).
Data venia, contrariando esse preclaro pensador radical da educação física,
pensamos que a falta de maturidade filosófica política e científica tem, ao longo dos
últimos 26 anos, continua favorecendo a manipulação, por exemplo, da questão
esportiva na escola “em termos acentuadamente incorretos, traduzindo a perspectiva da
classe dominante no âmbito do concreto da ação educativa” (CARVALHO, 1978, p.
118).
Por não encerrarem a histórica compreensão dialética da essência do esporte na
escola, as mudanças da educação física, especialmente no seu aspecto curricular,
representam a história do falhanço das medidas, ensaios, pareceres, portaria e tentativas
governamentais de implementar também nessa área, sua política reformista. Tal política
aplicada à educação física não se preocupa com as atuais condições de vida e de
trabalho extremamente precárias da classe trabalhadora, o incremento sem peias do
desemprego, a inexistência de programas básicos de saúde, educação, lazer, etc.
Neste sentido, precisamos compreender o papel do esporte na escola como fator de
alta relevância social e política como coadjuvante do desenvolvimento multifacetado
das crianças e dos adolescentes quando integrados num processo pedagógico global. A
rigor, o esporte nesse processo responde positivamente à formação de um físico robusto,
isto é, apto para esforços físicos (aumento da capacidade e do rendimento no trabalho,
ou reprodução alargada da força de trabalho) e para a criação intelectual, à plena fruição
da própria existência (integração e também alargamento cultural).
Sob nosso julgar, quando considerado exclusivamente de um ponto de vista
biológico ou do ponto de vista meramente pedagógico, o esporte é apenas e tão somente
uma atividade humana empobrecida sem condições de dar nenhuma resposta às
demandas idiossincráticas ou coletivas das crianças e dos adolescentes.
Quase ao final de nossas “conclusões” levantamos a seguinte questão:
A concepção abstrata do processo educativo e as formas libertárias (emancipatórias,
libertadoras, etc.) de que se pode revestir a ação do educador, faz da atividade prática um
fim em si mesma e consideram que a descoberta espontânea e o jogo livre são aspectos
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suficientes para garantir o desenvolvimento infantil. Ambas cometem o erro capital de
não ultrapassar o simples individualismo e o primarismo psicologista como finalidades
gerais da educação (física) (CARVALHO, 1978, p. 124). (os itálicos são nossos)
Retomando a questão reportada anteriormente sobre o esporte como ‘ópio do
povo’, não é inteligente negar ou ocultar ter sido o esporte no Brasil utilizado como
meio para despolitizar a vida pública e cretinizar crianças e adolescentes. O esporte foi e
é manipulado para servir como ‘ópio’ ideológico. Sobre isto, um filósofo francês faz a
seguinte consideração: “O esporte é o novo ópio das massas. Cria um conformismo
apolítico, acrítico, puramente consumista. O esporte fabrica gente programada para
reagir a logotipos e marcas. (...) O futebol é uma religião sem conteúdo e incapaz de
estrutura algo” (REDEKER, 2001, p. 68-69).
Neste sentido, é preciso uma educação política voltada à emancipação intelectual
dos educandos; educação na qual seja possível às crianças e aos adolescentes
compreenderem o papel histórico da luta dos trabalhadores contra a opressão e
exploração da plutocracia (o argentarismo) e sua imperiosa necessidade também de
emancipação intelectual sem a qual são inexeqüíveis a demolição do capitalismo e a
edificação da sociedade socialista.
É preciso lutar de forma implacável contra as correntes filosóficas e pedagógicas
“novidadeiras” conservadoras a ocultarem que numa formação social e econômica
capitalista o seu sistema educacional é, pelas suas próprias características, um
instrumento a serviço da ideologia de dominação da burguesia industrial, fundiária e
financeira, sendo a “educação democrática” uma das formas sutis do exercício da
dominação.
A tarefa de construção doutro sistema educacional voltado aos interesses dos
trabalhadores deve coincidir com a tarefa de construção de uma sociedade nova. E esta
tarefa, historicamente, não é apenas dos educadores socialistas, mas de todos os
trabalhadores do campo e das cidades.
Todavia, a situação em que se encontra a educação física precisa de uma análise
radical que vá às suas raízes, que descasque seus pressupostos e dê visibilidade aos seus
fundamentos. Só a análise radical possibilitará o desvelar o fenômeno educacional,
dissecado, desmembrado, desarticulado a fim de que venha à superfície o complexo dos
seus elementos (SAVIANI, 1981).
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Precisamos pois, nós professores comprometidos com esses trabalhadores, fazer
nossa a causa e a luta deles, de modo que essa unificação fortalecerá o ‘todo’ tornando-o
capaz de afrontar a tirania e estabelecer a sociedade.
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23
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