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Estudo crítico Há certas obras que têm interesse para os professores das Escolas de Comu- nicação - e, muito especialmente, para os que lecionam editoração ou que deba- tem problemas relativos à tradução. Entre elas, cabe mencionar A CRÍ- TICA E O DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO (São Paulo, Editora Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo, 1979, 343 páginas), que se presta muito bem para ilustrar numerosos tipos de falhas - de tradução, de exces- sivo apego ao original, de falseamento de idéias, de revisão, de indicação biblio- gráfica. Examinemos, pois, mais detidamen- te, essa obra recém publicada e apontemos os enganos que nela se encontram, lem- brando que a tradução esteve aos cuida- dos dos srs. Octavio Mendes Cajado e Pablo Mariconda e não esquecendo que o livro, organizado por Imre Lakatos e Alan Musgrave, é, na verdade, o quarto· volume dos anais de um colóquio de filo- sofia da ciência - como se registra na ficha de "catalogação na fonte", prepa- rada pela Câmara Brasileira do Livro - mas não de um "seminário", como afir- mam os tradutores, no prefácio (p. 1). ESTUDO CRfTICO Primeiramen te, falemos do livro e dos autores. A British Society for the Philosophy of Science e a London School of Economics realizaram, em julho de R. bras. Biblioteeon. Doe. 14(1/2): 99-108,jan,/jun. 1981 99

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Estudo crítico

Há certas obras que têm interessepara os professores das Escolas de Comu-nicação - e, muito especialmente, paraos que lecionam editoração ou que deba-tem problemas relativos à tradução.

Entre elas, cabe mencionar A CRÍ-TICA E O DESENVOLVIMENTO DOCONHECIMENTO (São Paulo, EditoraCul trix e Editora da Universidade deSão Paulo, 1979, 343 páginas), que sepresta muito bem para ilustrar numerosostipos de falhas - de tradução, de exces-sivo apego ao original, de falseamento deidéias, de revisão, de indicação biblio-gráfica.

Examinemos, pois, mais detidamen-te, essa obra recém publicada e apontemosos enganos que nela se encontram, lem-brando que a tradução esteve aos cuida-dos dos srs. Octavio Mendes Cajado ePablo Mariconda e não esquecendo queo livro, organizado por Imre Lakatos eAlan Musgrave, é, na verdade, o quarto·volume dos anais de um colóquio de filo-sofia da ciência - como se registra naficha de "catalogação na fonte", prepa-rada pela Câmara Brasileira do Livro -mas não de um "seminário", como afir-mam os tradutores, no prefácio (p. 1).

ESTUDO CRfTICO

Primeiramen te, falemos do livro edos autores. A British Society for thePhilosophy of Science e a London Schoolof Economics realizaram, em julho de

R. bras. Biblioteeon. Doe. 14(1/2): 99-108,jan,/jun. 1981 99

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1965, no Bedford College, um colóquiointernacional de que resultaram quatrovolumes, publicados em 1967, 68, 69e 70. Criticism and the growth of know/ed-ge é, justamente, o quarto desses volumes(distribuído pela Cambridge UniversityPress). Não retrata o que efetivamentese passou nas sessões do colóquio de filo-sofia da ciência de 1968. Encerra, em ver-dade, contribuições preparadas posterior-mente, ainda que alguns dos ensaios,ligeiramente alterados, com revisões meno-res, reproduzam o que foi dito na ocasião.O texto base, de Kuhn (28 páginas), apa-rece reproduzido como apresentado noconclave. Intervenções de Watkins (16 p.),Toulmin (10 p.), Williams (3 p.) e Popper(10 p.), receberam forma definitiva logoapós as reuniões. A contribuição de Marga-ret Masterman (41 p.) foi escrita um anoapós. Os artigos de Lakatos - a "piêcede resistance" do livro (135 p.) -, de Feye-rabend (41 p.) e a "Réplica" de Kuhn(58 p. finais) só foram redigidos em 1969,o que explica o apreciável atraso na publi-cação dos anais do congresso.

Os participantes do colóquio sãofiguras conhecidas. Kuhn celebrizou-se coma publicação do livro The structure ofscienttfic revolutions, em 1962 (e distri-buído em nosso idioma em 1975), obraque, revista e ampliada, mereceu uma se-gunda edição, divulgada em 1970. De Pop- .per não é preciso falar - poucos ignoramser ele uma das mais proeminentes perso-nalidades no cenário da filosofia da ciên-cia de nossos dias. Watkins é o sucessorde Popper, na cátedra que ocupava naLondon School of Economics. Toulmin,naquela época associado à Universidadede Michigan, escreveu muitos artigos edois livros que tiveram certa repercussão:The uses of argument e Philosophy ofscience (1953), este último com umacuriosa concepção das teorias - vistasem termos de "mapas da realidade". Mas-terman, da unidade de pesquisa lingüís-tica de Cambridge, vem-se destacando,

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Resenha

nos últimos anos, pelo seu interesse porfilosofia da linguagem. Williams é maisou menos desconhecido; estava ligadoà Cornell University e, aparentemente,dedica-se à história da ciência. Lakatos,enfim, recentemente falecido, trabalhavana London Scho 11 of Economics, ten-do-se celebrizado por seus estudos a res-peito de história da matemática.

Este volume dos anais do colo-quio de 1965 foi preparado com o obje-tivo de contrastar posições de Kuhn ede Popper, relativas à ciência. Kuhn, emseu artigo de abertura, fixa as linhas ge-rais do debate, sublinhando os pontos que'considera mais importantes para e fe tuaia comparação entre as suas idéias e as dePopper. De acordo com o que se lê nesseartigo, a teoria da ciência, sob o prismapopperiano, estaria caracterizada nos se-guintes itens básicos:

(1) o cientista formula sistemas deafirmações, submetendo-as. emseguida, passo a passo, a tes-tes (p. 9);a separação entre ciência enão-ciência deve-se a que asteorias científicas são falseáveis(por alusão a predições deduzí-veis da teoria) (p. 14);o crescimento da ciência envolveaprendizado à custa de errosan teriormen te cometidos (p. 17);uma teoria se.vê falseada quandoenunciados básicos se transfor-mam em contra-exemplos daqui-lo que a teoria assevera (p. 20e ss.).

específicos, de modo a contornar algumtipo de anomalia que se tenha apresentado.A ciência normal refere-se a atividadesque se destinam a desenvolver teorias,de acordo com um "paradigma", uma tra-dição fixada. A ciência revolucionária,porém, refere-se a atividades que se des-tinam a afastar um paradígma, substitu-indo-o por outro. Critérios de aceitabili-dade. teorética, no âmbito da ciência,envolvem fatores como a simplicidadee o alcance das teorias - sua capacidadede eliminar ou de reduzir a significaçãodas anomalias. Quando ocorre uma revo-lução científica, nova tradição se implan-ta - mas inexistem padrões gerais deacuidade, padrões que são relativos, na ver-dade, determinados em função dos para-digmas dominantes.

Quatro dos artigos da antologia (osde Watkins, Toulmin, Popper e Feyera-bend) criticam as idéias de Kuhn, relativasà ciência normal. Watkins e Popper afir-mam que Kuhn atribui exagerada impor-tância aos períodos de normalidade. Wa-tkins chega, mesmo, a duvidar da exis-tência de uma ciência normal, asseverandoque a teoria do desenvolvimento cientí-fico, endossada por Kuhn, é inexata.Feyerabend, como Popper, sugere queé perigoso dar muito realce à ciência nor-mal (cf. p. 63 e p. 259); defende, alémdisso, o "pluralismo teorético". paracontrabalançar a posição de Kuhn - pelaqual se encoraja o cientista que se prendea uma teoria, sem, contudo, submetê-Iaa testes, ao mesmo tempo que se desen-coraja (dogmaticamente) o cientista quese preocupa com a formulação de teoriasalternativas. Feyerabend identifica certoirracionalismo nas idéias de Kuhn e chega,inclusive, a defender essa posição irraciona-lista. Mas Kuhn, em sua "Réplica", enfati-za que não aceita qualquer tipo de irra-cionalismo - que só poderia advir de máinterpretação de suas exposições.

Kuhn e seus críticos divergemmuito no que concerne ao psicologismo

ou sociologismo kuhniano, beque diz respeitei à tese de incombilidade de teorias colocadas no seioparadigmas diferentes. De acordo comLakatos (p. 220 e s.), Kuhn procura,em vista das divergências, reduzir a filo-sofia da ciência a uma psicologia da ciên-cia. Kuhn, entretanto, no final do volume,afirma que procura formular um princí-pio lógico de aceitabilidade das teoriascientíficas, reconhecendo, porém, que esse.princípio está matizado por elementospsiéossociais. Quanto à incomensurabilida-de, ela deflui, diz Kuhn, do fato de nãoexistir avaliação ponto a ponto nas teo-rias - mesmo que se superponham asevidências relevantes para as teorias quese pretenda comparar. Nas mudanças deparadigmas, lembra Kuhn, há tambémmudanças conceituais - e estas impedem.as comparações exatas.

Resta falar das contribuições de Mas-terman e de Lakatos. Masterman analisa,minuciosamente... a noção de paradigma,revelando que adquire, nos escritos deKuhn, uma dúzia de significados diver-sos. Todavia, ressalta que, visto sob umprisma favorável, estes vários sentidos dapalavra 'paradigma' dão certa plausibili-dade às concepções de Kuhn :- plausi-bílídade muito maior do que a admitidapelos críticos.

O artigo de Lakatos não se voltapara as idéias de Kuhn. Explora, em vezdisso, os "programas de pesquisa". Asidéias básicas encontram-se no ensaio quehavia publicado em 1968 ("Criticism andthe methodology of scien tific researchprogrammes", in Proceedings of theAnstoteüan Society ; v. 69, pp. 149-86).Essas idéias foram melhor discutidas em1973 e se acham, agora, no volume 1 dos"Philosophical papers" de Lakatos, orga-nizados (em dois volumes) por 1. Worralle G. Currie (Cambridge, University Press,1978). Infelizmente, o estilo de Lakatoschega a ser irritante. Nada menos de

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, (2)

(3)

(4)

Kuhn contesta, um a um, esses qua-tro itens. Com respeito ao primeiro, res-salta a diferença que há de ser estabeleci-da entre "ciência normal" e "ciênciarevolucionária", uma diferença ignoradapor Popper. O cientista, nas fases de nor-malidade, não discute os enunciadoscientíficos, acei tan do-os com naturalidade;limita-se, talvez, a examinar enunciados

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369 notas de pé de página aparecem nas135 páginas do artigo - e muitas ocupamdez ou até vinte linhas, perturbando aleitura e desviando a atenção do leitorque, aliás, só entenderá satisfatoriamenteos assuntos discutidos se puder consultar,paralelamente, outros artigos de Lakatose pelo menos meia dúzia das obras referi-das. Lembremos, ainda, uma· oportunacrítica de H. Lehman (em artigo do v. 39do Philosophy of Science, de 1972):como poderia Lakatos justificar a suaconfiança no fato de que certas teoriassão falsas se ele, a rigor, sustenta que asdecisões a propósito da aceitabilidade

.das teorias são determinadas, em boamedida, por decisões decorrentes de ado-ção de convenções sociais? Não há dú-vida de que os "programas de pesquisa",defendidos por Lakatos, se põem emconsonância com idéias costumeiramentesustentadas pelos pesquisadores - queadmitem, em geral, ser "boa" a teoriaque abre margem para previsões observa-cionais não viáveis à luz de teoria diversa,anteriormente acolhida. Contudo - lem-bra-o Feyerabend, em seu estilo espirituoso-- a metodologia de Lakatos nãó se prestapara guiar os pesquisadores. Terminando:o longo ensaio de Lakatos é de interesse,não há como negar, mas desejaríamosnão correr o risco de ínterpretá-lo mal,o que pode facilmente acontecer, dado o.estilo de sua comunicação, que se afastaem demasia do "ensaio auto-suficiente".

Depois dessas considerações a pro-pósito da. obra, analisemos o trabalho dostradutores.

Um tradutor, por mais experienteque seja, sempre comete alguns enganos.Acompanhando o original, emprega, aqui eali, uma palavra inadequada, que seria,com vantagem, substituída por outra,que o tex to a traduzir não sugere. Numdia de menor inspiração, as palavras nãoocorrem e a frase traduzida parece ca-nhestra a uma segunda leitura. O tradutortalvez porque não considere seu trabalho

Resenha

devidamente remunerado) não consulta,com a freqüência desejável, os bons dicio-nários, em busca de vocábulos apropriados.Também não emprega minutos preciososmeditando a propósito da mais elegantemaneira de trazer, para a sua língua, umtrecho longo, cheio de apostos - e talvezaté confuso - que se acha no original.O tradutor vê-se, não raro, obrigado a"inventar" palavras e, admitamos, nemsempre suas invenções são acertadas.Enfim, não é descabido o simples errogramatical - que o revisor, por sua vez,também não. percebe. Resumindo, umtradutor engana-se uma dúzia de vezes,num trecho de 60 a 80 páginas - isto é,comete um erro, digamos, a cada 5 ou 6páginas. Qualquer crítico, mesmo não preo-cupado com nugas, identificará, aquie ali, a palavra mal selecionada, a frasemal construída, ou a idéia que se viuinjustificadamente atenuada ou ressaltada.O cuidado do tradutor há de ser, porém,o de não permitir que as afirmações doautor se adulterem ou se percam. E há deser o de impedir que a tradução contenhafalhas cujo número exceda o limite "ra-zoável", de 2 ou 3 senões a cada dez pá-ginas.

Isso posto, examinemos este A cri-tica e a desenvolvimento do conhecimento.O erro gramatical aparece, por descuido,em vários locais. Na p. 17, nota 26, lemos"... a formulação de ensaio-e-erro ... é,em espírito, mais velho ... " (obviamente,"mais velha"); na p. 54 lemos "concei-tual"; na p. 55, "conceptual". Valeria apena manter a uniformidade. Na p. 58,lemos " ... seu critério original; precisamosagora de um novo critério para substi-tuí-Ia". Eis um engano que o revisor dei-xou escapar: "do qual poderemo, a qual-quer momento, escapar de novos" (p.286).

Entre as muitas falhas de revisãocitemos "Por que o programa de Einsteinsuperou o de Lorentz's?" (p. 3); a repe-tição de uma linha no terço inferior da p.

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Resenha

41; "por que" (em vez de "porque") emalguns locais, e.g., p. 43; letras omitidasou trocadas, como em "cotradizem"(p. 123) e "descritvo" (p. 287); uma vír-gula descabida no final do primeiro pará-grafo da p. 266 - "contra o modelo docrescimento, científico de Lakatos.", eassim por diante.

Palavras e expressões mal seleciona-das ocorrem com grande freqüência. Soamal, p ex., a frase "o espectro da histó-ria da espectrografia" (p. 61); "provadopela força do intelecto ou pela prova dossentidos" (p. 110) também não é frasefeliz. São inadequadas as expressões ''virara mesa" (p. 110, para traduzir "turnedthe tables", ou seja, "inversão de posi-ções"); "jogar por terra" (p. 110, paratraduzir "water down", ou seja, "suavi-zar", ou "diluir"); "é um crime sem li-mites" (p. 111, para traduzir "an outrightcrime", ou seja, "claro", "inequívoco").Pouco feliz é a frase "a crítica que elefaz dele" (p. 112). Não são adequadasas palavras "esclareceu" (p. 115, paratraduzir "cleared away", isto é, "afastou"ou "eliminou"); "classe" (p .. 114-15,para traduzir "brand", isto é, "espécie","tipo", "variedade"); "destacando" (p.248, para traduzir "de signin g" , isto é,"projetando", ou "concebendo"). Muitoimprópria a expressão "depois de muitotempo" (p. 266, para traduzir "in thelong run", isto é, "a longo prazo"). Exem-plo típico de palavra mal escolhida apa-rece na p. 114, onde se traduz "unprova-ble" por "improvável", abrindo margem,no contexto, para interpretações débeis;de fato, eis como ficou a frase:

O probabilismo foi elaborado porum grupo de filósofos de Cam-bridge em cujo entender, emboraas teorias sejam igualmente impro-váveis, elas têm diferentes grausde probabilidade ...

Os tradutores, apegando-se em dema-sia ao original, encontram soluções desa-gradáveis, em português, para transmitir

as idéias dos autores. Os exemplos sãoabundantes. Examinemos alguns.

O trechoThe recipe, according to thesepeople, is to restrict criticism,to reduce the number of com-prehensive iheoríes to one, andto create a normal science thathas this one theory as its para-digrn.

aparece desta maneira, na p. 246:De acordo com essa gente, a re-ceita consiste em restringir acrítica, em reduzir a um o núme-ro de teorias compreensivas e criaruma ciência normal que tenhapor paradigrna essa teoria .

Pequeno esforço permitiria eliminara palavra "gente", muito vulgar, no con-texto, e dar feição mais adequada a todoo trecho; assim, por exemplo:

A receita, segundo aqueles estu-diosos de ciências sociais, consis-te em restringir a crítica, em fazercom que as várias teorias com-preensivas se unifiquem e em'criar uma ciência normal que ad-mita, como paradigrna, essa únicateoria resultante.

A frasePois tudo indica que o crimeorganizado é a solução de enig-mas par excelence

que se acha na p. 247, poderia receberformulação mais apropriada, como esta,por exemplo:

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Pois o crime organizado - assimparece - é, par excelence, umaforma de resolver enigmas.

Logo a seguir encontramosnão há razão para acreditar queo crime organizado ficará paratrás no domínio das principaisdificuldades.

que traduzthere is no reason to believe thatorganized crime will fall behind

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in the mastery of major díffí-culties.

uma idéia que seria posta em correspon-dên~, mais corretamente, ao nosso ver,com a frase

não há razão para supor que ocrime organizado conduz a menorproficiência no controle de pro-blemas importantes.

Exemplos de tais "fixações dooriginal" são demasiado comuns paraque deles se faça um complexo balanço.Todavia, lembremos mais algumas "so-luções" insólitas dos tradutores, parasublinhar a falha ou o tipo de falha resul-tan te desse exagerado apego ao original.Na p. 19 os tradutores escrevem

É muito possível que o sentidode "erro" de Sir Karl possa serrecuperado ...

abrindo margem para mal-entendidos; emverdade, a idéia é esta:

O sentido que Sir Karl dá aovocábulo 'erro' talvez possa ver-sepreservado ...

O trecho da p. 27Sir Karl errou transferindo carac-terísticas escolhidas de pesquisacotidiana para os episódios revo-lucionários ocasionais '" ignoran-do inteiramente, a partir daí,a atividade de todos os dias

poderia receber formulação muito maisclara; esta, digamos:

Sir Karl enganou-se ao aplicartraços típicos da pesquisa coti-diana para descrever ocasionaisepisódios revolucionários ... ig-norando, depois disso, por com-pleto ...

A frase (p. 34)De modo que o meu trabalhoversará tanto sobre o livro deKuhn quanto o ensaio que eleacaba de ler

pode gerar ambigüidade; eis a idéia corre-ta:

.. . meu trabalho versará tantosobre o livro quanto sobre o en-saio ...

Feyerabend, citando Kuhn, afirma'the same asymetry plays a fun-damental role in my Structure ...I may well have taken it fromwha t Ihad heard of his work.'

Segundo os tradutores:'a mesma assimetria '" Structu-re; ... bem posso tê-lo tiradodo que ouvi sobre a obra dele.'

'Tê-lo tirado' - que? Na verdade:'a mesma assimetria ... Structu-re; acredito que absorvi a idéiaatravés de referências feitas à obrade Popper.'

Na p. 50, os tradutores, "ao péda letra", escrevem

(Dizer que "toda ciência normalrepousa numa base de dogma"equivalia a dizer "somos todosrealmente loucos"; o que talvezfuncione numa ou noutra oca-sião, mas ... )

O trecho poderia receber umaapresentação mais adequada:

(Dizer 'a ciência normal temalicerces dogmãtícos' parecia si-gnificar 'estamos todos loucos,em verdade'. O que pode estarcorreto, em uma ou outra oca-sião, mas ... )

Ainda na p. 50 lemos'" a função intelectual de umesquema conceptual estabelecidoé determinar padrões, ... etc.,dentro dos quais a especulaçãoestará presa enquanto esse deter-minado esquema conceptual exer-cer autoridade sobre a ciêncianatural a que se refere.

A idéia seria mais fielmente traduzidanestes termos:

'" a função intelectual de umesquema conceptual é a de de-terminar os padrões da teoria,... etc., dentro dos quais a espe-

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a posteriori" - valendo-se de expres-são que, a rigor, já adquiriu sentido bemdiverso.

O engano correspondente, de ~'dilui-ção" de idéias, acha-se, p. ex., na p. 35(nota 3). Dizem os tradutores:

Mas suas construções têm àsvezes leve semelhança com o quefoi dito .. ,

quando, no original, a afirmação seriamelhor captada escrevendo

. .. as suas construções, todavia,pouco se parecem, algumas vezes,com o que ficou dito ...

Outro "abrandamento" ocorre na p.121 (nota 26). Os tradutores escrevem:

. .. em sua concepção, as propo-sições da ciência não são teóricasmas também falíveis

quando, em verdade, o original diz... em sua concepção, as proposi-ções da ciência não são apenasteóricas, mas são, todas, falí-veis ...

Há vários pontos em que os tradu-tores - inadvertidamente, quero crer -desfiguraram, em menor ou maior grau,o pensamento registrado no original. Detais falseamentos de idéias vale a penaconsiderar alguns exemplos. Há os que

. não interferem de modo apreciável no tex-to, correspondendo a falhas facilmentecontornáveis. Exemplificativamente, Feye-rabend pede a Kuhn que o perdoe porvoltar a debater velhas questões, espe-rando que -

... he wiIl not take it amiss whenin my effort to be brief I dothis in a somewhat blunt fashion,

ou seja, esperando que:. .. ele não me leve a mal se, emfavor da brevidade, eu o façade maneira menos delicada,

idéia que os tradutores captaram de modomais ou menos dúbio, escrevendo

... espero que Kuhn me perdoe,mais uma vez, por ventilar asvelhas questões e não me leve

culação teorética se vê confina-da enquanto aquele específicoesquema se mantém, no âmbi-to da ciência natural em pauta.

O parágrafo ao final da p. 122 está,todo ele, mal construído, incluindo, mes-mo, erro gramatical perturbador. Segundoos tradutores:

Essa história dá a entender ...que até a mais respeitada teoriacientífica, como a dinâmica e ateoria da gravitação de Newton,pode falhar em proibir qualquerestado observável de coisas. Defato, algumas teorias ... só impe-dirão a ocorrência de um acon-tecimento .. , se nenhum outrofator ... tiver alguma influênciasobre ela.

Confuso. Eis a idéia:Essa história sugere, enfaticamen-te, que até mesmo uma teoriacientífica muito acatada - como,digamos, a teoria ... de Newton -pode deixar de proibir qualquerestado de coisas observável. Emverdade, algumas teorias proíbemque um evento ocorra ... tão so-mente sob a condição de que ne-nhum outro fator . . . exerçainfluência sobre ele.

As idéias indevidamente realçadas ouatenuadas também aparecem com freqüên-cia. Exemplo de afirmação injustifica-damente ressaltada encontra-se na p.245. Feyerabend afirma que a ideologiade Kuhn "is bound to", ou seja,"facilitaria" ou "poderia provocar reforçoem tendências anti-humanitárias". Os tra-dutores, contudo, asseveram que a ideolo-gia de Kuhn "aumentaria, fatalmente,as tendências .. .". Outro exemplo do mes-mo tipo acha-se na p. 266. Feyerabend,citando Lakatos, diz que' os padrõescríticos são aplicaos "with hindsight",

. ou seja, "com percepção tardia" (apósum período de hesitação). Os tradutoresdizem que os padrões "são aplicados

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A tradução pode agradar aos leitoresmenos exigentes. É satisfatória para quemdeseja pôr-se em contato com certas po-sições de filósofos de nossos dias. Há deser usada, porém, com grande cautelapara fins de estudo - particularmentese utilizada para reprodução de trechos ecitações, pois o número de falhas excede,de muito, o limite do razoável.

Leonidas Hegenberg16 out 1979

108 R. bras. Bibliotecon. Doc. 14(1/2): 99-108,jan./jun. 1981