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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA História e Ciência Nova: Vico e o iluminismo Sarah Luna de Oliveira Área de concentração: História e Cultura Histórica Linha de Pesquisa: Ensino de História e Saberes Históricos JOÃO PESSOA – PB Março de 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

História e Ciência Nova: Vico e o iluminismo

Sarah Luna de Oliveira

Área de concentração: História e Cultura Histórica

Linha de Pesquisa: Ensino de História e Saberes Históricos

JOÃO PESSOA – PB Março de 2007

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II

História e Ciência Nova: Vico e o Iluminismo

Sarah Luna de Oliveira

Orientador : Raimundo Barroso Cordeiro Junior Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em História, Área de Concentração em História e Cultura Histórica.

JOÃO PESSOA – PB

Março de 2007

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I

SARAH LUNA DE OLIVEIRA

HISTÓRIA E CIÊNCIA NOVA: VICO E O ILUMINISMO

Avaliado em _____________com média________

Banca examinadora da DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Prof°. Dr. Raimundo Barroso Cordeiro Junior Orientador

Prof°. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior Convidado externo

Prof°. Dr. Jaldes Reis de Menezes Convidado interno

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II

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu amado pai Antônio Araújo de Oliveira e a minha mãe maravilhosa Marília da Rocha Luna, pelo incentivo e por todo o apoio que tanto me encorajou à consecução desta pesquisa.

Também dedico este trabalho ao meu pequeno sobrinho no ano de seu nascimento,

Uirá Moura Aragão que representa hoje a mais nova geração de nossa família.

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III

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente aos deuses de onde quer que eles possam me ouvir; A todos os meus amigos que tanto me encorajaram e que de alguma forma

contribuíram para a deste trabalho; Obrigada Rebecca Luna, Christina Pacheco, Laura Luna, Aluísio Vieira, Manaíra

Arnold, Caroline Monteiro, Liuba Medeiros, Karla César, Alcyra Cotta, Henri Yure, Tiara Veriato, Isabel e Dona Inês;

Também gostaria de agradecer ao professor Leonardo Pica Ciamarra do Centro de

Estudos Viquianos da Universidade de Letras e Filosofia Frederico II, que em minha estadia em Nápoles foi tão prestativo ao me disponibilizar documentos e outras fontes para a pesquisa do presente tema;

Agradeço também a Professora Cristiane (CODISMA – UFPB) por todas as aulas de

italiano que assisti e pelas dúvidas que me esclareceu. Agradeço também a Fidel Latiesas Rodriguez por todo o seu incentivo e afeto que

mesmo a distância vem me demonstrando nos momentos mais difíceis e decisivos deste trabalho;

Estendo meus agradecimentos a todo o colegiado do PPGH, a todos os professores que

me ensinaram a atividade de historiadora; Agradeço também a todos os professores que compuseram a banca do exame de

qualificação por suas enriquecedoras contribuições. Não poderia esquecer de meu orientador Raimundo Barroso que também foi

fundamental para a concretização deste trabalho, sempre indicando os procedimentos mais acertados ao desenvolvimento da pesquisa;

Enfim desdobro meus agradecimentos aos meus irmãos, a todos os meus tios, tias, e

aos meus colegas que cursaram comigo este curso de Mestrado por nossas trocas de experiências e conversas proveitosas;

Por último, agradeço a mim mesma pelo esforço e disciplina, por acreditar que seria

possível trabalhar um tema não muito fácil de ser trabalhado.

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IV

“As propriedades indiscerníveis dos sujeitos

devem ser produzidas pela modificação ou

pelo modo de ser constitutivo que lhes deu

origem pelo modo de se darem a conhecer

similarmente, e não de outra forma, nos

mostrarão sua natureza e sua etiologia”.

Giambattista Vico

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V

RESUMO

O projeto do racionalismo cartesiano consistia em expandir a razão para além da matemática e da física para todas as ciências possíveis. A partir do século XVIII este projeto é questionado por cientistas (do porte de Newton e Locke) de tradição baconiana que defendiam um conhecimento alicerçado na experiência. Em 1744, Giambattista Vico publicou a terceira versão de sua Ciência Nova – acerca da natureza comum entre as nações, onde buscava encontrar a racionalidade própria do conhecimento do mundo histórico negada por Descartes. Ao fazê-lo, Vico apontou os limites do sistema cartesiano e, em certo sentido, deu continuidade ao processo de expansão da razão pretendido pelo cartesianismo. Falando a sua maneira, da Itália, quase um século após a morte de Descartes, Vico contribuiu para este projeto com estilo próprio. Palavras-chave: Ciência Nova; Conhecimento; História; Iluminismo; Razão; Vico.

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VI

ABSTRACT

The Cartesian rationalism was geared towards expanding reason beyond the exact sciences, such as Mathematics and Physics, so that it would apply to all other possible types of sciences as well. From the 18th century on, this project was challenged by remarkable scientists such as Newton and Locke whose Baconian tradition was supported by the belief that knowledge should be base don experience. In 1744, Giambattista Vico published the third version of his New Science – regarding the common nature among nations, which aimed at finding its own rationality as regards the knowledge of the historic world previously denied by Descartes. By doing that, Vico pointed out the limits of the Cartesian system, furthermore giving emphasis to the process of expanding reason towards all possible sciences, something proposed by the Cartesian believers in the first place. Vico accomplished his goal, not only successfully, but he also put his own signature in history, (and that happened almost a century later after Descartes’s death). Keywords: Enlightment, History; Knowledge; New Science; Reason; Vico.

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VII

SUMÁRIO

PREFÁCIO ix

INTRODUÇÃO 10

I VICO E SUAS POSSÍVEIS INTERPRETAÇÕES 16

1.1 Elementos para uma Possível Leitura de Vico 16

1.1.1 Hermenêutica 16 1.1.2 História cultural 22

1.2 Vico e seus Leitores 27

1.3 O Lugar Cultural de Nápoles no Tempo de Vico 35

II CIÊNCIA E HISTÓRIA NOS PRIMÓRDIOS DO ILUMINISMO 47

2.1 Immanuel Kant : a História como Aperfeiçoamento da Razão 47

2.2 Caracterizações Gerais do Iluminismo 51

2.3 O Desenvolvimento da Ciência Moderna 54

2.4 A Ciência Predominante 64

2.4.1 Descartes 65 2.4.2 Racionalismo Cartesiano 65 2.4.3 Mecanicismo 68 2.4.4 Metafísica 69 2.4.5 A noção hegemônica da história 70 2.4.6 A idéia de progresso histórico 75

III A HISTÓRIA NA CONCEPÇÃO DE VICO 79

3.1 A Sabedoria de um Modo Geral 80

3.2 Da Sabedoria Poética 83

3.2.1 A mitologia e a poesia 84 3.2.2 A religião 88

3.3 Da Sabedoria Reflexiva 95

3.3.1 A língua e o direito 98

3.4 A Providência e o Movimento da História 101

3.4.1 A Providência divina 101 3.4.2 Corso e ricorso da história 104

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3.5 Reflexões sobre Vico e o Iluminismo 105

CONCLUSÃO 115

REFERÊNCIAS 117

ANEXOS 120

ANEXO A – Retrato de Vico

ANEXO B – Contra-capa da Ciência Nova

ANEXO C – Gravura do frontispício da Ciência Nova

ANEXO D – Tábua Cronológica

ANEXO E – Sistema heliocêntrico de Copérnico

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IX

PREFÁCIO

Em sua terceira versão da Ciência Nova (1744) Giambattista Vico defendeu a

possibilidade de um conhecimento do mundo humano, destacando a relevância neste sentido,

da consciência do homem enquanto sujeito histórico. Em seu modelo interpretativo da

história, Vico buscou identificar as transformações do mundo civil e de tudo mais que

constitui a obra humana a partir do desenvolvimento de nossa cognoscibilidade.

Não é à toa que Vico distinguiu diferentes tipos de sabedoria: a sabedoria poética e a

sabedoria raciocinada. Ambas correspondem a diferentes momentos de desenvolvimento do

curso das nações. Em seu esquema, Vico buscou a racionalidade das ciências humanas que

havia sido negada pelo racionalismo cartesiano. Para isto, traçou um percurso de diferentes

idades da razão humana. Ao fazê-lo, Vico rompeu com o método geométrico posicionado no

centro do sistema cartesiano.

Muito lembrado por seu desentendimento com Descartes, Vico é costumeiramente

interpretado por uma voz contracorrente no Iluminismo. Antes de formular qualquer juízo

sobre Vico e sua concepção de história, este trabalho propõe uma reflexão entorno do estatuto

científico e filosófico do Iluminismo. Com o fito de compreender o ambiente cultural do

próprio Vico, a circulação e absorção das idéias originárias da França na Itália também são

estudadas.

E foi dentro deste complexo contesto de renovação cultural em Nápoles que Vico deu

vida a sua Scienza Nuova. Pensando o Iluminismo a partir do senso comum histórico, é

possível afirmar que Vico esteve à margem deste movimento cultural, filosófico e político. No

entanto, levando em conta as ambigüidades do movimento iluminista e as expressões que

ganhou fora da França, especialmente na Itália, é possível encontrar o lugar de Vico e as

contribuições que o filósofo italiano trouxe a ciência iluminista. E é justamente esta a pedra

de toque deste trabalho de Dissertação de Mestrado.

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INTRODUÇÃO

O fato de Giovani Battista Vico (1668-1744) não ter sido considerado um expoente da

filosofia iluminista, ou de não ter surtido grande impacto sobre o pensamento filosófico do

nascente Iluminismo, contribuiu para que constantemente fosse lido e interpretado como um

homem à frente de seu tempo, ou mesmo, contra o seu tempo.

Esta percepção arrisca anular o elo entre Vico e o seu momento histórico,

desconsiderando sua própria tradição e a força de novas idéias que marcaram sua obra. No

intuito de realizar uma leitura que busca compreender o contexto do pensamento científico e

filosófico vigentes no tempo de Vico, bem como as marcas que estes imprimiram em sua

obra-mestra Principi di una Scienza nuova d´intorno alla comune natura delle nazioni

(Princípios de uma Ciência Nova – acerca da natureza comum entre as nações), na primeira

parte deste Trabalho foram reunidos alguns elementos teóricos.

Partindo da noção de interpretação apresentada pelo hermeneuta Hans-Georg Gadamer

foi possível elaborar uma situação hermenêutica que considera ao mesmo tempo as leituras

autorizadas pelo próprio Vico enquanto autor e, portanto produtor de um sentido para a

compreensão da Ciência Nova e o horizonte de expectativa da realização desta pesquisa.

Elucidar o nosso horizonte de expectativa não seria possível sem justificar a

importância de estudar Giambattista Vico nos dias de hoje. Retomar questões relacionadas ao

próprio ambiente intelectual de Vico consiste em diagnosticar a situação do conhecimento

histórico perante o estatuto científico e filosófico de um dado contexto histórico. A cultura

histórica no tempo de Vico estava imersa em um caldo de renovação cultural impulsionado

pelo Iluminismo, em que a perpetuação do conhecimento clássico se confrontava com a idéia

de um conhecimento renovado e moderno. Para os modernos, o louvor e a reprodução da

tradição clássica não era mais uma condição para garantir a verdade, ou a legitimidade do

conhecimento produzido.

Hoje, a situação do historiador diante de uma possível “crise de paradigmas”

científicos alertados nas vozes de uns, minimizados ou renegados na fala de outros

intelectuais, nos desperta um sentimento familiar: como pensar a história diante de um

caleidoscópio de teorias e pensamentos acerca da prática científica e mesmo da noção de um

conhecimento “verdadeiro”. Ou, mesmo que tenhamos em mente a crítica da razão e da

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ciência iluminista, como podemos então pensar e produzir a história? Neste sentido, a idéia de

choque entre novas possibilidades e a continuidade de um saber e fazer histórico nos

aproxima muito do momento de Vico e de sua Ciência Nova.

No âmbito desta querela entre o novo e o velho, podemos encontrar a ambigüidade de

um pensador como Vico e de sua idéia de história. Ademais, pensar a história é algo que

certamente será feito pelos homens enquanto se produzir conhecimento e enquanto os

historiadores exercerem seu ofício. Esta preocupação presente de forma aguçada no tempo de

Vico, quando o homem parece uma vez despertado, se inquietar acerca do sentido histórico de

sua existência, ainda não perdeu e talvez não perca sua atualidade, se compreendermos o

conhecimento histórico como nossa própria criação, socialmente e historicamente construída.

É justamente isso que nos ensina Vico, que o mundo dos homens, ou o mundo

histórico deve ser por nós conhecidos, uma vez que somos nós os seus culpados. A idéia de

história em Vico apresenta as particularidades de um conhecimento humanístico frente aos

demais, enaltece as formas de conhecer o mundo que vão desde a imaginação e a sabedoria

poética até a razão e a sabedoria prosaica ou científica. A razão, considerada então o guia do

espírito humano no Iluminismo conhece em Vico que não é eterna, e nem é a única fonte de

verdade. A imaginação é em Vico a sua prévia, e as formas fantásticas e semi-fantásticas de

conhecer o mundo são seu ponto de partida.

Se pensarmos então na nossa atualidade em uma crise da razão e dos modelos

científicos consagrados pela ciência iluminista, podemos nesse sentido, ver em Vico uma

alternativa, quando o filósofo nos apresenta ao conhecimento poético ou à consciência

poética. O que não pode ser descartado na leitura e compreensão de Vico, que tanto se

preocupou com o conhecimento humano em suas formas pré-reflexivas. Neste sentido, Vico

apresenta a mitologia, a poesia, a linguagem, o direito, o culto às divindades, como sintomas

específicos do período de uma consciência humana imaginativa que elabora suas próprias

formas de expressão.

Todavia, pensar Vico diante de uma possível crise da razão, ou da ciência moderna,

não deve significar lê-lo ao revés, retrospectivamente. Tampouco devemos enquadrá-lo como

um anti-racionalista, ou mesmo como um pós-moderno que dizia em 1744, o que hoje nós já

sabemos que se processa entre nossas querelas atuais. Neste esforço, de tentar pensar Vico na

atualidade, mas atendendo aos cuidados de não reproduzi-lo à nossa imagem e semelhança de

pensamentos, selecionamos a noção de história cultural proposta por Roger Chartier.

Segundo Chartier, a história cultural tem por objetivo identificar o modo como em

diferentes lugares e momentos uma dada realidade social é construída, pensada, dada a ler. No

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entanto, o ato de representar a realidade está inerente à atividade desenvolvida pelos grupos

sociais que consiste na construção de identidades culturais para si. Portanto, uma

representação seleciona uma determinada compreensão da realidade para excluir outras,

colocando deste modo em evidência uma realidade expressa por um ou mais grupos sociais

em detrimento de outras. Neste sentido, Chartier nos permitiu ler Vico dentro de um processo

de renovamento cultural que se operava em Nápoles, à altura dos Setecentos. Nos possibilitou

enxergar as disputas por hegemonia cultural entre os antigos e os modernos, e de que modo

este embate se cerrava na Nápoles do tempo de Vico.

Um outro elemento que contribuiu para a abordagem de Vico foi a noção de história

efeitual trabalhada por Gadamer. Partindo desta noção buscamos considerar os efeitos das

interpretações da obra-prima de Vico, isto é, de que modo às leituras da Ciência Nova

contribuíram para uma pré-compreensão desta mesma. Sob este ímpeto, realizamos uma breve

retrospectiva dos leitores de Vico, desde os juristas napolitanos da segunda metade do século

XVIII, até os seus grandes leitores do século XX e mesmo alguns do século XXI.

A montagem deste panorama de Vico e seus leitores nos despertaram para o curioso

fato de que a maior parte destes (nomes como Herder, Michelet, Croce, Berlin, etc.) o

consideravam um vanguardista, quando não um outsider. Contudo, antes de tentarmos

responder se o pensamento de Vico apresentado em sua obra da maturidade poderia ou não

ser conciliado aos postulados científicos e filosóficos dos Setecentos, procuramos esclarecer

um pouco o nosso entendimento sobre o momento histórico do próprio Iluminismo.

Ao pensarmos em um Iluminismo, ainda que involuntariamente acessamos o senso

comum histórico que se construiu entorno do Século das Luzes. Pensamos este período tal

qual fosse um bloco histórico, ou um processo histórico linear que se germinou na França e

daí se alastrou para toda a Europa e mais tarde para o mundo, e que culminou com a

Revolução Francesa.

Em nosso ponto de vista, a discussão sobre o Iluminismo não pode ser aprofundada

sem explorar as próprias ambigüidades que caracterizaram este movimento. Neste sentido, o

historiador italiano Franco Venturi nos lembrou que mesmo na própria França levantaram-se

diferentes vozes argumentando os caminhos “devidos” a se seguir a partir do bom uso da

razão: Diderot, Bayle, Rousseau, Montesquieu, Voltaire, etc. Na verdade, o que permite

agregar todos estes pensadores no seio do movimento iluminista não é a similitude de suas

reflexões, mas o questionamento comum que as produziu.

Fora da França, Venturi esclarece que os produtos da reflexão acerca de uma nova

reorientação racional são ainda mais díspares. Isto ocorreu não apenas por conta do ritmo e do

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impacto com que as idéias iluministas foram absorvidas em outras partes, mas, principalmente

porque estas se chocavam com uma tradição não-francesa e, portanto, muitas vezes foram

adaptadas à realidade local de seu centro receptor. No entanto, as novas idéias não deixavam

de surtir efeito e granjear novos defensores entusiasmados pela proposta de um conhecimento

guiado pela crítica e pela razão disposto a transformar a vida social e privada do homem

positivamente. Todavia, o que é importante observar aqui é que os centros receptores do

pensamento iluminista davam cores próprias às idéias que eram sopradas da França.

Considerando a defesa de Venturi por Iluminismos, podemos perceber a complexidade

e a diversidade de pensamento que se refletia no próprio conhecimento produzido no tempo

de Vico, a depender do recorte temporal, ou geográfico. Também nos foi possível pesquisar as

particularidades do Iluminismo italiano, especialmente o napolitano para compreender as

nuances deste movimento aí, bem como a força das novas idéias e sua repercussão na

intelectualidade contemporânea a Vico.

O historiador Paolo Rossi nos relata que nos anos da formação intelectual de Vico a

cultura italiana de um modo mais amplo esteve marcada por um processo de intenso

renovamento. Aprofundavam-se as discussões acerca do método científico de Bacon e de

Descartes, e dos efeitos do cartesianismo sobre a física e a fisiologia, etc.

Rossi afirma que independente das novas idéias serem aceitas ou rechaçadas pela

intelectualidade italiana, a validade destas era discutida a partir de um referente: a tradição

renascentista. Buscava-se então, assimilar as novas idéias à tradição, de modo que o conteúdo

daquelas, estava longe de indicar qualquer fissura, ou sinal de ruptura com a herança cultural

do Renascimento. Muitos elementos do pensamento de Descartes e de Gassendi, por exemplo,

foram nutridos pelo sangue da viva e robusta tradição do experimentalismo galileano.

Peter Burke denominou de “Antiguidade alternativa”, justamente aqueles que não

negavam a autoridade dos antigos, mas que tampouco estavam indiferentes ao impacto de

novas idéias que acompanhavam o desenvolvimento do pensamento moderno. Não se trata de

uma Antiguidade fundamentada exclusivamente nas classificações do conhecimento clássico

realizadas por Aristóteles e por Platão. Há aí uma maior flexibilidade ao mesmo tempo em

que não se abre mão da tradição, e que se busca expandi-la e reinventá-la com a força das

idéias iluministas.

Na segunda parte deste trabalho, a abordagem sobre o Iluminismo foi delineada: o

foco se centrou, sobretudo na vertente filosófica e científica francesa do cartesianismo e na

sua crítica realizada pelos empiristas. O pensamento de Kant é apresentado como uma síntese

destas duas correntes hegemônicas da ciência iluminista. O enfoque sobre os pilares principais

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da ciência Setecentista (racionalismo cartesiano e empirismo) leva à discussão acerca da

situação do conhecimento histórico sob estas duas perspectivas.

Descartes procurou alijar do conhecimento todas as “falsas verdades” e o fundamento

errôneo sobre o qual estas se assentavam, sobretudo o que diz respeito à estrita

experimentação do mundo concreto. Para Descartes, a matemática representa antes de

qualquer coisa um método seguro de filosofar, devido à precisão de suas abstrações e

resultados. Partindo do princípio do cogito (da evidência das idéias inatas e verdadeiras),

Descartes defendeu o conhecimento daquilo que pode ter sua essência preservada, imune às

vicissitudes do mundo fenomenológico. Isto significa que, apenas no plano das abstrações ou

das idéias, as verdades eternas podem ser reveladas, e não fora daí.

Sob a luz do cartesianismo, a história não poderia se organizar enquanto um

conhecimento verdadeiro. Seja por sua imprecisa relação com o passado, seja por sua própria

reflexão acerca das experiências humanas, isto é, por tratar do mundo das coisas efêmeras, a

história se mostrava incompatível com o método matemático, considerado por Descartes o

método científico por excelência. Mesmo assim, o racionalismo marcou a organização do

conhecimento histórico desde o século XVII. A discussão sobre o historiador-filósofo Pierre

Bayle apresentada ao longo do segundo capítulo esclarece bem o tema.

A partir da década de quarenta dos Setecentos, a tradição experimentalista inglesa é

recepcionada na França como um importante arsenal crítico direcionado ao caráter abstrato da

filosofia e das ciências sob o rigor cartesiano. Na base do empirismo estava a defesa por um

conhecimento aposteriorístico, alicerçado na experiência. Isto implica que só se pode

conhecer verdadeiramente aquilo que pode ser manuseado, observado e explicado pelos

homens. Aqui, nenhuma verdade tampouco pode ser creditada sem antes se colocar à prova.

No viés do empirismo lógico, estudar o passado consiste basicamente em observar as

experiências e utilizá-las como exemplos morais em situações análogas ao presente. Não é à

toa que o ofício de filósofo político e de historiador se aproximaram tanto desde o fim da

primeira metade do século XVIII. Desde o século XVII, o contato com novos povos e com

outros mundos (China e Américas) provocou a preocupação dos europeus com relação ao

passado e cultura de povos até então desconhecidos.

Neste sentido, a história buscou fundamentar estes “novos” mundos e seus costumes a

partir de “leis” da natureza humana, equivalentes às leis da gravidade formuladas por Newton

para o estudo da física. Tal qual um cientista natural, deveria proceder o historiador:

observando e descrevendo a experiência extraída do passado para que esta por fim , se

revelasse em seu “laboratório”.

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No último capítulo, foi feito um esboço da noção de conhecimento histórico em Vico,

a partir de noções trabalhadas pelo próprio autor da Ciência Nova. Alguns elementos como a

sabedoria poética e a sabedoria reflexiva, a religião, o corso e o ricorso, a história ideal

eterna, a Providência ajudam a pensar o modelo interpretativo da história oferecido por Vico.

A partir daí, foi possível confrontar a percepção de história de Vico ao pensamento científico

e histórico hegemônicos do Iluminismo.

Na verdade, ler Vico não é nada fácil e defini-lo é mais complicado ainda. Se fosse o

caso de buscar compreendê-lo no viés do objetivismo (em si) muitas dificuldades se

sobressairiam, inclusive o risco de projetar-se nele. Mas, sob a orientação de alguns aportes

teóricos, a exemplo da hermenêutica, da história cultural, das próprias leituras já realizadas

sobre o autor, e, sobretudo, lendo as páginas da Ciência Nova, é possível acessar o

pensamento do napolitano e encontrar uma possibilidade de diálogo entre ele e o nosso

horizonte de expectativas sem ignorar as alteridades entre as partes envolvidas.

Vico, a sua maneira formulou critérios de legitimidade e de inteligibilidade para o

estudo da história, além de prescindir ao modelo investigativo aplicado aos estudos das

ciências da natureza. Neste sentido, rompeu com Descartes e apontou os limites da razão

cartesiana, sob o propósito de expandir a razão para os estudos humanísticos. Reivindicou

para o desenvolvimento de uma ciência do homem a mesma credibilidade que logravam as

ciências da natureza e a matemática.

Entretanto, o fato de apontar as falhas e de dispor-se a repensar o sistema cartesiano

para que a razão avançasse em outras searas da ciência, não seria a maior prova de que Vico

estaria na verdade dando continuidade ao projeto de expansão da razão que Descartes e os

cartesianos não puderam desenvolver? Vico propunha outros métodos, outros princípios,

distintos dos apresentados por Descartes, mas em sua proposta, não queria ele colaborar com

o projeto cartesiano e mais ainda, iluminista que apregoava a abertura de novos espaços até

então vedados aos domínios da razão e da crítica?

Enfim, estas são as reflexões que este trabalho de Dissertação de Mestrado buscou

provocar em seus leitores. Compreender a complexidade do momento do Iluminismo,

conhecer as particularidades do Iluminismo italiano e mais especificamente do napolitano,

para então tentar pensar Vico diante do espírito de época de seu próprio tempo. Em nossa

conclusão, chegamos ao consenso de que o que realmente importou ao fim desta pesquisa não

foi simplesmente formar uma opinião a respeito da figura de Vico e do Iluminismo, mas antes

disso, buscamos contribuir e enriquecer o debate acerca do pensamento viquiano e por

conseqüência, do Iluminismo.

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I VICO E SUAS POSSÍVEIS INTERPRETAÇÕES

Em seguida, serão apresentados alguns elementos que possibilitam uma leitura de

Vico1 dentro da perspectiva deste trabalho.

1.1 Elementos para uma Possível Leitura de Vico

1.1.1 A hermenêutica

Antes de apresentar as possibilidades de interpretação da obra viquiana, no caso a

Ciência Nova2, é imprescindível discutir alguns pontos relacionados ao problema da

compreensão. Neste sentido, parece ser inevitável falar sobre um dos principais enfoques da

hermenêutica moderna.

Whilhem Dilthey (1833-1911) preocupou-se em fundamentar as ciências humanas e

sociais que chamou de “ciências do espírito” a partir da hermenêutica. Segundo o autor, estas

disciplinas deveriam interpretar as expressões da vida interior do homem (atos históricos,

codificação das leis, obras de arte incluindo a literatura) de modo “objetivamente válido”.

Com esta pretensão, Dilthey se mostrava partidário a uma ruptura entre a vinculação

das ciências do homem aos métodos e formulações aplicados ao estudo da natureza. Até

então, a orientação teórico-metodológica das ciências humanas respaldava as categorias

estáticas, portanto a-históricas segundo o autor, provenientes das ciências naturais.

Dilthey estava convicto de que a aplicação destes procedimentos naturalísticos tinha o

poder de simplificar quando não deturpar o estudo dos fenômenos humanos em sua

complexidade. O filósofo estava consciente de que a hegemonia das ciências naturais,

reforçada pelo positivismo e pelo realismo empobrecia a compreensão da diversidade das

experiências vividas no campo de interesse das ciências do homem.

A partir daí Dilthey buscou um outro horizonte para o estudo das humanidades capaz

de abranger a plenitude dos fenômenos humanos em detrimento de sua atual perspectiva

reducionista e mecanicista. Nesta agenda epistemológica não havia lugar para qualquer base

1 Conferir retrato de Vico no ANEXO A deste trabalho. 2 Conferir a contra-capa da Ciência Nova no ANEXO B deste trabalho.

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de descrição metafísica dos fenômenos, pois em Dilthey, o ponto de partida para a

compreensão é a experiência vivida, ou a própria vida3.

Dilthey apresenta o problema da hermenêutica enquanto fundamentação das “ciências

do espírito” em termos epistemológicos e não metafísicos, uma vez que busca especificar a

identidade do conhecimento e do tipo de compreensão adequada para interpretar os

fenômenos humanos. Em outros termos, sua atenção está voltada sobre a natureza do ato de

compreensão que constitui a base dos estudos sobre o homem.

Em cima deste problema, em vez de tentar formular uma nova teoria do conhecimento

pertinente aos estudos humanos o hermeneuta concebeu uma categoria de

“autocompreensão”. Apontou para a necessidade de aprofundamento da consciência histórica,

pois considera o homem um “animal histórico”. Dilthey compreendia a história como uma

sucessão de visões de mundo, cujo conjunto revelava a totalidade da própria natureza humana.

A idéia de autocompreensão humana implica, portanto, em recuperar a historicidade

das experiências vividas no esforço de aprofundar a interpretação acerca destas mesmas. Os

homens imprimem marcas nos fenômenos através do tempo a partir das quais somos capazes

de nos conhecer, pois toda experiência humana guarda um sentido comum, um significado

familiar a todos os seres humanos.

Fora da história, a interpretação da variedade das experiências humanas está perdida,

inebriada pelas categorias congeladas e estáticas fornecidas pelas ciências da natureza. Para

Dilthey, a consciência histórica permite atribuir um significado aos fenômenos humanos, de

modo que um historiador pode transportar-se ao passado de outrem e experimentar a realidade

histórica daquela temporalidade.

Segundo o autor:

Exatamente porque pode ocorrer uma transposição real (quando um homem compreende outro homem), porque a afinidade e a universalidade do pensamento... podem representar e formar um mundo sócio-histórico, os fatos internos e os processos humanos podem distinguir-se dos dos animais. (DILTHEY apud PALMER, 1986, p.110)

De acordo com Dilthey, as ciências do espírito se distinguem particularmente das

ciências da natureza devido ao contexto especial de percepção e de compreensão no qual

estão inscritas enquanto áreas do conhecimento. Ao passo que as ciências naturais se

3“Vida” para Dilthey significa a interiorização das experiências humanas. O tema pode ser aprofundado em PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: 70, 1986. pp. 105-128.

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desenvolvem no campo da explicação, da descrição e da observação dos fenômenos a partir

de abstrações e lógicas exteriores ao tempo das experiências humanas.4

Ao sugerir a categoria histórica de autocompreensão visando o enriquecimento da

interpretação dos fenômenos humanos, o autor alemão propõe uma idéia de continuidade

entre o objeto e o sujeito do conhecimento.

Neste aspecto, Dilthey parecia reivindicar a subjetividade do conhecimento em

detrimento do postulado de neutralidade do sujeito outorgado pelo positivismo. Sua proposta

tende a integrar o objeto ao próprio sujeito, aos seus sentimentos, à suas paixões, no esforço

de proporcionar ao homem a totalidade de sua própria compreensão.

Sob este prisma, historicizar as experiências nos permite conhecer com todo o ser,

com os sentidos e o espírito, indicando uma idéia de complemento ou mesmo de unidade

entre o sujeito e o objeto. A experiência apontada como objeto dos estudos humanísticos

seria então “pré-reflexiva”, incapaz de conscientizar-se de si mesma. Ao ser refletido e

estudado de forma consciente por nós, esta ganha significado, ou valor especial e deixa de ser

considerada apenas uma “manifestação da vida”.

Ainda sobre a experiência Dilthey afirma que: “A experiência é profundamente

temporal (quer dizer histórica no sentido mais fundo da palavra), e, portanto a compreensão

da experiência tem também que ser dada em categorias de pensamento proporcionalmente

temporais (históricas)”. (DILTHEY apud PALMER, 1986, p.117).

Neste fragmento o filósofo realça a temporalidade da vida (enquanto experiência) e da

própria compreensão humana. Isto é, apreender um significado para as experiências implica

em historicizar o próprio pensamento humano enquanto núcleo de produção das expressões

do espírito. Feito isto, é possível ir de encontro com as experiências vividas de modo a

dialogar com estas e compreendê-las em seu próprio contexto histórico.

Esta possibilidade de “transposição real” trouxe a obra de Dilthey para o alvo de

algumas críticas. A mais contundente delas se reporta ao fato do filósofo ter tratado a

cognição humana como um ente separável do presente sócio-histórico do próprio intérprete,

capaz de se deslocar naturalmente ao passado das experiências sem quaisquer entraves. A

viabilidade de uma interpretação “objetivamente válida” das experiências parece então

ofuscar o próprio lugar histórico do sujeito do conhecimento no interior do ato de

compreensão.

4 PALMER esclareceu que, a “compreensão” segundo Dilthey, “era a palavra chave dos estudos humanísticos. A explicação é para as ciências. A abordagem que unifica o interno e o externo é a compreensão. As ciências explicam a natureza, os estudos humanísticos compreendem a manifestação da vida”. Idem, p.112.

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Por outro lado, tomar uma postura de neutralidade significa desequilibrar a interação

entre sujeito e objeto do conhecimento proposta pelo próprio Dilthey para centralizar a

atenção unicamente no objeto. Como bem ressaltou o hermeneuta, tradutor e crítico da obra

de Dilthey, Hans-Georg Gadamer (1900-2002) o ato de se reconhecer no rastro histórico dos

fenômenos humanos implica em um confronto de experiências, de mundos sócio-históricos,

enfim, de visões de mundo.

De acordo com Gadamer: ”Toda experiência é confronto, já que ela opõe o novo ao

antigo, e, em princípio nunca se sabe se o novo prevalecerá, quer dizer, tornar-se-à

verdadeiramente uma experiência, ou se o antigo, costumeiro e previsível reconquistará

finalmente a sua consistência”. (GADAMER, 2003, p.14) O confronto entre “o novo e o

antigo” a que se referiu Gadamer, implica na natureza que o espírito das ciências humanas

adquire na modernidade: a consciência histórica. Ou seja, o passado deixa de ser assimilado e

reproduzido como um conjunto de referências úteis à posteridade, e torna-se passível de

crítica, de questionamento decorrente do tratamento reflexivo que o presente agora lhe

dispensa.

Neste sentido, Gadamer afirmou:

A consciência histórica já não escuta beatificamente a voz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a mesma, recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Esse comportamento reflexivo diante da tradição chama-se interpretação. (GADAMER, 2003, pp. 18-19)

Mediante o recurso da interpretação, as ciências humanas se viram aptas a expressar

simbolicamente o espírito de uma época, ao mesmo tempo em que mantém uma atitude de

estranhamento diante do que se quer compreender. Trata-se de uma ressignificação, de um

sentido que não é imediato, e que está nas entrelinhas do próprio significado intencional do

objeto de interpretação (documento, texto, acontecimento, enfim, qualquer fragmento do

passado).

A noção de interpretação em Gadamer é o primeiro elemento com o qual pretendo ler

Vico. Através de uma interpretação crítica buscar identificar na obra-prima do autor,

“Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum entre as nações” elementos que

o vinculam ou não à sua tradição intelectual, de modo a perceber seu posicionamento frente

ao credo científico hegemônico do Iluminismo. Esta é a ressignificação, ou o sentido que

pretendo construir a partir da interpretação de sua obra.

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Trata-se de não falar por Vico, e tampouco de deixá-lo falar sozinho. A sua “Ciência

Nova” escrita e reescrita três vezes na primeira metade do século XVIII5 é um texto histórico

que aparentemente contém informações relativas ao espírito da época em que viveu o autor.

Todavia, estudar a compreensão que Vico tinha do conhecimento do mundo histórico

aponta rupturas com o modelo de ciência vigente nos primórdios do Iluminismo. A partir daí,

sua leitura ganha complexidade e pede uma ressignificação que foge das pretensões da

neutralidade e do objetivismo.

Neste sentido, a hermenêutica legitima a reflexão compreensiva das complexas

relações entre o pensamento viquiano acerca das condições de um conhecimento histórico

frente ao padrão iluminista de ciência. Trabalhar sob esta orientação é fundamentar uma

recepção da obra de Vico, a partir da historicização de um problema pertinentemente atual: o

lugar do conhecimento histórico.

No que diz respeito à compreensão, Gadamer exige uma consciência da “situação

hermenêutica”, não apenas para que possamos compreender o fenômeno histórico ou a obra

transmitida em si mesma, mas pra que saibamos antes disso, olhar para estes, e compreender

os efeitos destes na história. O autor defende que antes de toda compreensão há uma pré-

compreensão, ou um preconceito acerca de determinado assunto, decorrente dos efeitos que as

interpretações de um fenômeno histórico ou de uma dada obra, deixam na história e marcam

um pensamento de época.

Em suas palavras Gadamer proferiu:

A consciência histórica deve conscientizar-se de que, na suposta imediatez com que se orienta para a obra ou tradição histórica, está sempre em jogo esse outro questionamento, ainda que de uma maneira despercebida e conseqüentemente incontrolada. Quando procuramos compreender um fenômeno a partir da distância histórica que determina nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa história efeitual. Ela determina de antemão o que se nos mostra questionável e se constitui em objeto de compreensão. (GADAMER, 2003, p.397)

Segundo Gadamer, a história efeitual é intrínseca ao ato da compreensão, mesmo que

não se tome consciência disto. Deste modo, a negação da história efeitual reduz o problema

central da compreensão, podendo comprometer a percepção e mesmo a produção

conhecimento à superficialidade da pré-compreensão. Por outro lado, a consciência da história

5 Em vida, o filósofo napolitano supervisionou três edições da obra, sendo a primeira de 1725, a segunda de 1730 e a terceira de 1744. VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum das nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. pp. VI-XXIV.

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efeitual nunca é absoluta. Para o autor, “ser histórico quer dizer não esgotar-se nunca no

saber-se”. (GADAMER, 2003, p. 399).

No entanto, a consciência da história efeitual se manifesta no momento de realização

da compreensão. A própria compreensão, por sua vez, também não é absoluta, mas ao

contrário, é limitada e permeada por interstícios impostos pelo horizonte em que se realiza. O

exemplo do emprego de conceitos referentes ao que nos é historicamente afastado e, portanto,

estranho ao valor semântico e filosófico destes mesmos conceitos, talvez seja um exemplo

adequado.

Gadamer reconhece um parentesco muito próximo entre consciência da história

efeitual e consciência da situação hermenêutica. Ao se referir a esta última o hermeneuta

ressalta que saber construí-la é tomar um posicionamento adequado em um horizonte de

questionamento frente ao objeto de compreensão. Em outras palavras, é ser capaz de elaborar

a pergunta certa com relação ao que se busca compreender.

Levando em conta o presente de nossa situação hermenêutica, busco legitimar a

validade das indagações elaboradas por nós para a abordagem de Vico. Considerando os

efeitos de sua “Ciência Nova” no pensamento científico e histórico da atualidade, procuro

revisitar a obra deste filósofo que já estava preocupado com a organização do conhecimento

do mundo humano no florescer do Iluminismo.

A propósito, a consciência histórica estava em pleno desenvolvimento no século XVIII

impulsionando um processo que mais tarde resultaria no desmembramento da hermenêutica

filológica bem como da historiografia das demais disciplinas hermenêuticas: a teológica e a

jurídica. 6 Mas, é importante esclarecer que considerar o horizonte de nossa compreensão não

significa apreender Vico no âmbito restrito das nossas expectativas de construir um

determinado sentido para sua leitura.

Antes disso, é instruir a nossa reflexão para questioná-lo no ímpeto de buscar

apreendê-lo em sua própria atmosfera intelectual e cultural. A partir daí, buscar caracterizar as

particularidades de sua noção de história e de ciência frente àquelas hegemônicas em seu

tempo. Neste sentido, não apenas a consciência, mas a elaboração de uma situação

hermenêutica nos leva a buscar compreender o outro (Vico) e ao mesmo tempo procurar um

entendimento com este.

6 Sobre este tema conferir o ponto 2.2.1. O problema hermenêutico da aplicação. In: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 5a ed., 2003. pp. 406-411.

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Negar este entendimento seria suspender a nossa própria pretensão de encontrar

alguma verdade7 compreensível e válida para as discussões acerca da história bem como da

ciência que vêm se realizando no atual padrão.

Acerca do horizonte de compreensão, Gadamer afirmou:

Quando nossa experiência histórica se transporta para horizontes históricos, isso não quer dizer que se translade a mundos estranhos que nada têm a ver com o nosso; ao contrário, todos eles juntos formam esse grande horizonte que se move a partir de dentro e que abarca a profundidade histórica de nossa autoconsciência para além das fronteiras do presente. Na realidade, trata-se de um único horizonte que engloba tudo quanto à consciência histórica contém em si. (GADAMER, 2003, p. 402).

O problema do horizonte de compreensão do leitor ou receptor de uma obra também

está no cerne de uma preocupação estética. Nesta perspectiva, tentar alcançar a historicidade

de um texto é considerar os efeitos da obra sobre a compreensão do leitor e ao mesmo tempo

é considerar o horizonte de expectativa onde está situado o leitor, isto é, levar em conta o

conhecimento prévio que este obtém acerca de um tópico ou assunto abordado pela obra.

Ao tratar o texto literário como objeto cultural, Roger Chartier propõe uma história das

práticas de leitura como uma das ramificações da história cultural.

1.1.2 História cultural

Ao longo das décadas de 1960 e 1970 a disciplina histórica viveu uma relação de

tensão e disputa intelectual e institucional com as ciências sociais. Foi alvo de ataques e

críticas que apontavam para a fragilidade de sua consistência científica, construídas sob a

pretensão de promover o enfraquecimento da hegemonia acadêmica de que então desfrutava.

Os historiadores, por seu turno, reagiram a estas críticas de modo plausível.

Mostraram-se flexíveis ao diálogo com estas “novas” disciplinas (lingüística, sociologia,

antropologia, psicologia, etc.) com o intuito de renovar temas e objetos historiográficos.

Esta interseção entre história e ciências sociais não apenas contribuiu para o

enriquecimento do próprio conhecimento histórico como também para aumentar seus “índices

de cientificidade” 8. Devido a esta atitude dos profissionais da história, a ameaça intelectual

da qual eram vítimas pôde ser contida e os seus domínios resguardados.

7 Neste contexto, o termo não é o mesmo propagado pela ciência, isto é, a verdade que se rastreia através do método. O termo aqui empregado designa o exercício reflexivo da própria consciência histórica na busca de atribuir um sentido às experiências humanas. 8 Este assunto também pode ser conferido na introdução de CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/ Bertrand do Brasil, 1990.

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Como proveito desta relação dialógica e interdisciplinar, a história anexou novos

objetos oriundos do território de outras disciplinas preservando as abordagens da história

econômica e social que haviam lhe garantido seu cobiçado prestígio institucional.

É sob a tentativa de reconstituição deste contexto de conflitos travados no âmbito

formal do conhecimento da década de 1960 na França que Roger Chartier orienta sua reflexão

acerca da história cultural.

Neste sentido, o autor ilustra o surgimento de uma seara que arregimentou novos

objetos de estudos para as mentalidades9, novos métodos e técnicas provenientes da

interlocução com as ciências sociais, com destaque para a sociologia. Na concepção de

Chartier, a história cultural atenta para as representações que os grupos criam para si mesmos

e para os outros. O autor defende o estudo do plano das posições e estratégias ocupadas por

cada grupo no processo de construção de identidades contraditórias.

Em última instância, a historia cultural apresenta um forte vínculo com a história

social, na medida em que se dispõe a analisar o lugar social representado e representante. Ao

passo que propõe ao historiador aperceber-se da relevância das lutas travadas entres grupos

pela hegemonia de suas próprias representações de modo que possam assim legitimar uma

posição de dominação cultural.

Dentre variadas formas de representação apresentadas por Chartier, há uma que serve

de suporte teórico para o estudo de Vico: “a) a representação como dando a ver uma coisa

ausente”. (CHARTIER, 1990, p.20). Neste caso, afloram as discrepâncias entre o que se

representa e o que se toma por representado.

O conhecimento da diversidade das práticas culturais corre aqui o risco de ser

encoberto sobre o forro de uma representação que se impõe em detrimento de outras. No

entanto, o reconhecimento de outras práticas (bem como de suas representações) que estão

marginalizadas institucionalmente, indica que a representação em si é excludente e não

comporta a complexidade das representações e identidades contraditórias que os grupos

constroem para si.

É sobre esta ótica que enxergamos Vico como um crítico da cultura científica do

Iluminismo, considerando que os cânones desta ciência não validavam suas próprias idéias

acerca do conhecimento do mundo histórico.

9 Segundo Chartier o momento transitório da “Era Braudel” à terceira geração dos Annales caracterizou-se pelo retorno aos temas de uma história da “utensilagem mental”, que outrora foram lançados pelos fundadores dos Annales. Esta retomada foi protagonizada pela disciplina da história cultural. Idem.

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Ora, o filósofo italiano esteve à margem do pensamento recorrente em torno da

história e da ciência sob o viés do cartesianismo. O ex-professor de retórica da Università Di

Napoli foi um autodidata, não tinha procedência aristocrata ou nobre, e não conseguiu

alcançar o ápice da carreira acadêmica daquele tempo em Nápoles: a cátedra de direito10.

Embora tenha participado dos círculos intelectuais mais poderosos de sua época onde

eram difundidas as “novas idéias” da ciência moderna, e mesmo tendo se rendido em algum

momento de sua trajetória intelectual às “novidades” do cartesianismo, foi na Ciência Nova,

que Vico declarou seu mal estar a esta doutrina e a outros aspectos do pensamento iluminista.

Estudar Vico no contexto do cartesianismo, bem como no lugar da cultura iluminista é

perceber o que não esteve representado por esta, o que esta deixou de lado para contemplar

determinados postulados científicos e intelectuais.

Por outro lado, ao reconhecer o Iluminismo como um momento histórico de

“decadência moral” que caminhava rumo a uma “barbárie da reflexão”, o próprio Vico

criticou a cultura iluminista, assumindo uma identidade que lhe é contraditória.

Segundo Vico: “O excesso de reflexão afrouxa os laços religiosos, portanto sociais, e

os povos [adquirem o hábito] de cada qual só pensar em seu interesse particular [...] e, em

meio à multidão dos corpos, [vivem] em solidão absoluta mentes e vontades”. (VICO apud

ABBAGNANO, 2001, p. 994).

É a partir desse jogo de contrastes entre a concepção viquiana de história e ciência, e o

padrão instituído no Iluminismo que pretendo vislumbrar o horizonte de onde Vico pensava e

refletia sobre estes mesmos problemas. Neste sentido, Chartier viabiliza o estudo do

posicionamento dos grupos em conflito por dominação intelectual que compunham o cenário

da cidade de Nápoles daqueles anos.

Uma outra contribuição de Chartier que possibilita apreender um sentido na obra de

Vico é sua proposição de uma história das práticas de leituras. O autor alerta para a

importância de historicizar o texto literário enquanto objeto cultural, bem como suas formas

de leitura e apropriação que também se modificam ao longo do tempo.

Nesta empreitada, Chartier aponta para a necessidade de investigação dos processos de

produção de sentido que acompanham a construção do próprio texto e interferem direta ou

indiretamente em sua leitura.

10 No ano de 1723, Vico candidatou-se ao pleito de professor catedrático de direito civil na Universidade de Nápoles sem obter sucesso. Este acontecimento contribuiu para o desencanto de Vico diante da academia, ao mesmo tempo em que colaborou para a maturação da Ciência Nova, projeto ao qual o filósofo pôde então dedicar-se com maior afinco. VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum das nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. pp. VI-XXIV.

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Ou seja, o autor do texto assume estratégias explícitas (argumentação própria,

frontispício, prólogo, introdução, notas, conclusão, ilustrações, etc.) para moldar a

compreensão da leitura. Em contrapartida, o leitor é autônomo para construir um significado

que vai além da leitura autorizada pelo autor do texto.

Se por um lado o autor produz um significado que busca ser transmitido através da

leitura do texto, por outro, o leitor está inserido em um horizonte de expectativa no qual ele

recepciona o texto, e que o confere liberdade de compreensão sobre o mesmo.

Em suas palavras, Chartier declarou: “Abordar a leitura é, portanto, considerar,

conjuntamente, a irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretendem

refreá-la”. (CHARTIER, 1990, p. 123)

Além dos condicionamentos da leitura acionados por parte dos escritores dos textos,

Chartier ressalta a significante intervenção dos dispositivos materiais (responsáveis pela

confecção e impressão do livro) sobre a compreensão do texto.

A passagem do texto escrito para livro implica em uma transição (processo de edição,

de oficina, revisão, etc.) que por vezes altera o sentido original do texto e se distancia das

pretensões de seu próprio autor.

Em síntese, Chartier destaca a importância de três elementos que devem viabilizar o

estudo das práticas de leituras: “o texto, o objeto que lhe serve de suporte e a prática que dele

se apodera”. (CHARTIER, 1990, p.127) Do relacionamento entre estes três pólos derivam

variações de significados provenientes de uma mesma leitura.

A análise da interferência dos dispositivos tipográficos sobre a compreensão do texto,

não apenas identifica um condicionamento de significação, mas segundo o próprio Chartier,

através de uma “história editorial” é possível acompanhar as mudanças no horizonte de

expectativa do leitor.

Sobre o estudo destes dispositivos, Luiz Eduardo M. de Oliveira lembra que:

“Possibilitam uma melhor compreensão do comércio perpétuo entre os textos clássicos, ou

imóveis, e os leitores em mutação, pois traduzem, no impresso, as mudanças no horizonte de

expectativa do público, uma vez que podem propor significações outras além daquelas

pretendidas pelo autor”. (OLIVEIRA, 2001, p.111)

Acerca das mudanças dadas no âmbito do horizonte de expectativa do leitor, Chartier ressalvou:

Há aí uma grave lacuna para as épocas antigas, entre os séculos XVI e XVIII, uma vez que a maioria dos textos impressos, literários ou não, não são novidades, mas reedições propostas para horizontes de expectativa de leitores muito distantes cronologicamente e, no caso das impressões de larga difusão, socialmente, das sinalizações e referências inscritas pelo autor em seu texto. (CHARTIER, 2001, p.99).

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Este é um problema que será considerado no contato com a obra de Vico. Desde a

primeira metade do século XVIII a Ciência Nova vem sendo reeditada e diferentes

significações vêem sendo apreendidas sinalizando as mudanças do horizonte de compreensão

de seus leitores. Neste sentido, trabalhar com um texto oitocentista, sob a perspectiva de uma

história das práticas de leitura que o acompanham, requer uma retrospectiva do modo como

este texto vem sendo transmitido e ressignificado.

Mesmo que se faça uma prospecção do entendimento da Ciência Nova e muitas

interpretações da obra possam vir à tona, é possível reconhecer em cada reedição do livro as

estratégias de Vico para moldar a compreensão do leitor. O frontispício desenhado por

Domenico Antonio Vaccaro sob a encomenda e direção do próprio Vico é uma delas. 11

Esta gravura é uma ilustração do conteúdo geral da obra e é seguida por uma

explicação que lhe confere efeito de introdução. Grosso modo, a partir de sua decodificação,

Vico apresenta sua Ciência Nova como sendo uma “Tábua das coisas civis”.

Sobre a leitura da Ciência Nova Vico adiantou:

Tal como o tebano Cebes procedeu em relação às morais, de modo análogo oferecemos, aqui, à inspeção uma Tábua das coisas civis, que aproveite o leitor para chegar à concepção da idéia desta obra, antes mesmo de a ler, ou lhe sirva para mais facilmente a reter na memória, depois de ter a lido, fazendo uso deste recurso que lhe subministra a fantasia. (VICO, 1979, p.7).

Ainda nos prenúncios de sua obra Vico construiu uma tavola cronologica (tábua

cronológica) com o intuito de descrever o percurso da história da humanidade ao longo de três

idades: a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade dos homens. Neste quadro

cronológico o filósofo assinala a relevância de sete povos para toda a trajetória histórica do

mundo civil: os hebreus, os caldeus, os celtas, os fenícios, os egípcios, os gregos e os

romanos. 12

A exposição da história da humanidade neste quadro é mais uma estratégia empregada

por Vico para convencer o leitor de seu argumento acerca das idades históricas que é

desenvolvido nos “livros” seguintes dispostos na obra. A conclusão também é um outro

artifício utilizado por Vico para guiar o leitor em seu horizonte de compreensão da Ciência

Nova. Em suas últimas considerações acerca da obra, ele tenta fixar para o leitor sua

mensagem sobre a extrema importância que exerce a ação da Providência divina e da religião

na constituição e organização da vida social humana.

11 Conferir a gravura do frontispício da Ciência Nova no ANEXO C. 12 Conferir a tábua cronológica no ANEXO D.

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A este respeito Vico deduziu:

Por isso é que nesta obra plenamente se demonstrou que sobre a Providência se fundamentaram os primeiros governos do mundo, sendo que a religião foi a forma inteira deles, e só por ela se regeu o estágio das famílias. Daí, passando aos governos civis heróicos, ou aristocráticos, deve ter sido a religião a principal planta consistente deles. Passando, depois, aos governos populares, a mesma religião serviu de meio para os povos a eles chegarem. Fixando-se, finalmente, nos governos monárquicos, essa mesma religião foi o escudo dos príncipes. Pelo que, perdendo-se a religião nos povos, nada lhes sobra para viverem em sociedade; nem escudo para defenderem-se, nem meio para aconselharem-se, nem forma mediante a qual os mesmos figurem de fato no mundo. (Vico, 1979, pp. 182-183).

Uma vez apresentadas algumas ardilezas do filósofo napolitano para o

condicionamento da compreensão de sua obra, passemos agora a abordar algumas

interpretações, ou ressignificações extraídas da Ciência Nova.

1.2 Vico e seus Leitores

Giambattista Vico (1668-1744) é hoje considerado como dono de um dos pensamentos

mais ricos da modernidade. Seu raio de influência se estende em diversas áreas das ciências

sociais e humanas, incluindo o direito e notadamente a filosofia13.

Não são poucos os autores que se encantaram ou mesmo comentaram sua obra: Jules

Michelet, Karl Marx, Benedetto Croce, R. G. Collingwood, Isaiah Berlin, James Joyce, Peter

Burke, Ernst Cassirer, Hayden White, Nicola Badaloni, Paolo Rossi, Pasquale Soccio, Paolo

Cristofolini, entre outros.

Mas, nem sempre sua grandiosidade foi reconhecida. Aliás, este é um fato que

remonta ao fim do século XVIII, quando a idéia de evolução das leis na obra de Vico é

“descoberta” com euforia pelos juristas napolitanos.

Segundo estes leitores, Vico deu a entender que as leis variam de acordo com a própria

história e cultura das nações. E este é o aspecto mais enfatizado na obra do filósofo napolitano

por aqueles juristas. De acordo com Peter Burke, estes foram os primeiros difusores das idéias

de Vico pela própria Itália, França e outros lugares.

13 Vico acreditou que a filosofia não deveria restringir-se ao patamar das abstrações lógicas como acreditava Descartes (1596-1650), mas, deveria descer ao plano concreto do mundo civil e preocupar-se com os produtos culturais humanos. Consultar o tema em VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum das nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. p. VIII.

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Sob este espírito de euforia o tema do direito em Vico foi divulgado e associado às

causas de uma reforma legal, ganhando terreno em Nápoles e depois fora dali, sobretudo

quando seus adeptos foram exilados no ano de 1799.

Estes encontraram fundamentação para suas reivindicações em Vico, advogando a

idéia de que a lei deveria acompanhar as mudanças sofridas no pensamento e na sociedade

européia nos anos da Revolução Francesa. Neste caso, a ênfase centrada sobre uma suposta

noção de dinamismo das leis em Vico reflete e endossa os interesses dos membros de um

movimento internacional de reforma legal associado ao Iluminismo.

Foi a partir deste horizonte, contextualizado pelo declínio do regime feudal, pela

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pelos ideais republicanos e democráticos

que estes napolitanos interpretaram Vico e apropriam-se de sua leitura, divulgando-o pelo

velho continente.

A propósito do tema do direito e de sua interpretação na obra de Vico, Burke afirmou:

O direito fora um dos interesses centrais de Vico. Ele próprio não defendeu uma reforma legal, mas mostrou – como seu contemporâneo Montesquieu – que diferentes tipos de Estado ou sociedade dão necessariamente origem a diferentes tipos de lei; e desta premissa pode-se argumentar que quando a sociedade muda, como Nápoles e outras partes da Europa estavam mudando no final do século XVIII, a lei deve ser modificada para mantê-la em ordem. Muitos napolitanos que defendiam esta posição, que apoiaram a Revolução Francesa e quiseram abolir o poder e os privilégios dos barões locais, eram também admiradores de Vico. (BURKE, 1997, p.15).

No século XIX, é a vez de Michelet (1798-1874) descobrir Vico. Por volta de 1820,

quando o historiador francês obteve seu primeiro contato com a Ciência Nova, pouco se

conhecia sobre este pensador em França ou fora da Itália14. Mas, o que despertou a sedução de

Michelet por Vico? Como este historiador francês que viveu mais de um século após o ex-

professor de retórica pode ter se identificado tanto e encontrado tantas afinidades de

pensamento?

Edmund Wilson lembra que Michelet viveu após o Iluminismo, quando Voltaire já

havia “exterminado” a religião, a crença nos mitos e nos heróis. Montesquieu já havia exposto

as interferências do clima e da raça sobre o funcionamento das instituições humanas.

Kant já havia apresentado a história como um plano da natureza rumo ao

desenvolvimento e o aperfeiçoamento das disposições racionais humanas, bem como à

conseqüente elaboração da constituição perfeita.

14 Em 1827, Michelet fez uma “livre” tradução de Vico para o francês. Mais tarde, outra versão francesa de sua obra foi realizada em 1844. Consultar em “O desenvolvimento intelectual de Vico”. In: BURKE, Peter. Vico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. pp. 23-43.

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Todavia, apesar do hiato temporal de aproximadamente um século e meio Michelet

acreditou ter encontrado os princípios que buscava para fundamentar uma nova ciência

histórica em Vico. Neste sentido, encantou-se com a capacidade do filósofo italiano de ver na

história o trajeto caminhado pelas sociedades humanas durante o desenvolvimento de sua

inteligência, linguagem, leis, costumes, cultura, instituições, formas de governo, organização

social, etc.

Sobre a relação entre Michelet e Vico, Edmund Wilson indagou:

Como, então, a Ciência Nova pôde constituir uma revelação para um homem de 1820? É que Vico, com a força de seu gênio imaginativo, de extraordinário poder de alcance, lhe permitia apreender pela primeira vez o caráter orgânico da sociedade humana e a importância de reintegrar, por meio da história, diversas forças e fatores que compõem a vida humana. Escreveu Michelet: ‘Não tive outro mestre senão Vico. Seu princípio da força viva, da humanidade que cria a si própria, é a fonte de meu livro e de meus ensinamentos’. (WILSON, 2003, pp.11-12).

Vico convidou Michelet a refletir acerca da inteligibilidade da história, a partir da

noção de que os homens constroem e transformam o seu próprio mundo e por corolário são

aptos a conhecer aquilo que é de seu feitio.

Foi, sobretudo neste sentido, que Vico o auxiliou, (naturalmente foi afetado por muitas

outras idéias de Vico que aqui não cabem ser expostas à crítica) fornecendo-lhe um princípio

legitimador do conhecimento histórico.

Desta mesma fonte, o grande historiador francês ainda pôde extrair uma idéia de

história que sugere a importância da ação humana em sua coletividade, em vez de meramente

contemplar a ação isolada dos grandes homens, tal qual ocorria na historiografia característica

do século XIX. Certamente, este foi um outro fascínio encontrado em Vico que casou com as

convicções próprias de Michelet sobre a história.

De acordo com Isaiah Berlin, o efeito de Vico sobre este historiador francês foi de

tamanha repercussão que ele não tardou em divulgar a obra de seu “mestre” por toda a

Europa. Ao analisar a compreensão dos intérpretes de Vico, dentre os quais aponta Michelet

em posição de relevo, Berlin declarou:

Embora Michelet no fim da sua existência, proclamasse que Vico era seu único mestre, da mesma forma que todos os pensadores solidamente originais, somente extraiu, da New Science, aquilo que encaixava na sua própria e já formada concepção da história. Ele derivou de Vico uma visão dos homens como forjadores de seus próprios destinos, engajados em uma luta prometéica para atingir sua liberdade social e moral, arrancando da natureza os meios que podem servir a seus objetivos humanos e, no decorrer desse processo, criando e destruindo instituições, em seu empenho perpétuo de superar os obstáculos sociais e individuais, para a completa realização das energias morais e do gênio criativo de povos e sociedades inteiras. (BERLIN, 1982, pp. 10-11).

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Berlin prossegue apontando a dificuldade de Michelet em identificar na leitura de Vico

elementos opostos ou contrários aos seus próprios ideais:

O que não encaixa na ardente visão populista de Michelet, por exemplo, é a noção de uma Providência Divina que, desconhecida para os homens, determina as finalidades dos indivíduos e das sociedades – a versão de Vico referente à Mão Oculta, ou à Astúcia da História, ou à Razão Imanente. Michelet, realmente, meio traduz em termos seculares, e meio ignora, de igual maneira que ignora os momentos platônicos de Vico, sua teoria dos ciclos históricos, suas tendências antidemocráticas, e sua admiração pelas sociedades semiprimitivas, devotas e autoritárias, tudo o qual constitui a verdadeira antítese da fé apaixonada de Michelet na liberdade popular. (BERLIN, 1982, p. 11).

De qualquer forma, Michelet traduziu a Ciência Nova de modo “um tanto livre” no

dizer de Peter Burke, e a publicou em 1827 antecedendo a próxima edição francesa que seria

publicada em 1844.

A grande divulgação que promoveu desta obra contribuiu para a maior aceitação de

Vico em “alguns círculos franceses”. Segundo Burke, “Numa época de entusiasmo romântico

pelo povo e de interesse pelo ‘espírito de tempo’, aquele era o momento certo para que a

cultura francesa assimilasse Vico”. (BURKE, 1997, p.17)

Ao passo que a cultura francesa absolvia algumas das idéias de Vico, também seus

próprios críticos, os alemães encontravam nele uma alternativa ao domínio dos ideais

clássicos franceses. Neste aspecto, os românticos da escola alemã estavam de acordo com

Vico acerca da importância do legado de uma “sabedoria poética” deixado pelos “primeiros

homens”, ou pelos “fundadores das nações”, no dizer do próprio napolitano.

Vico acreditava que a pobreza da razão dos primeiros homens era compensada por um

robusto gênio imaginativo e engenhoso. Os românticos, sem dúvida estavam muito

alinhavados com esta discussão e, pendendo para o encantamento com os começos históricos,

não tiveram maiores dificuldades para recepcionar Vico neste aspecto de seu pensamento.

Peter Burke relata que um intelectual napolitano entregou uma cópia da Ciência Nova

de Vico ao poeta Goethe (1749-1832). Afirma que Goethe haveria passado a cópia adiante

para Herder e este para um amigo seu, o filósofo J. G. Hamann (1730-1788), que já havia lido

a obra de Vico anteriormente.

De acordo com Burke, a princípio, a obra-prima de Vico não teria marcado nenhum

dos autores citados, a não ser por sua leitura indigesta, obscura. Pelo menos à primeira vista

estes autores não encontraram associações entre suas idéias e as de Vico.

Entretanto, Isaiah Berlin declarou que Herder (1744-1803), hoje é comumente

identificado como um “paladino da fé contra a razão, da imaginação poética e histórica contra

a aplicação mecânica de regras” (BERLIN, 1976, p. 134). Neste sentido, o filósofo alemão

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considerado pai do nacionalismo, precursor do historicismo e defensor da pluralidade cultural

apresentava um grau de parentesco muito maior com as idéias de Vico do que se dispôs a

admitir.

O próprio Berlin alega isto:

Tanto quanto eu saiba, não existe qualquer prova conclusiva de que Herder tivesse lido LaScienza Nuova de Vico até, no mínimo, vinte anos após ter formado sua própria teoria da história; mas embora não tivesse lido, tinha ouvido falar dela e, provavelmente, já tinha lido os homéricos comentários de Wegelin e Cesarotti. Além disso, a idéia de que os grandes poetas expressavam o pensamento e a experiência de suas sociedades e eram seus verdadeiros porta-vozes estava amplamente difundida nos anos de formação de Herder (BERLIN, 1976, p.135).

Se Vico foi uma referência para os românticos, por um lado, ironicamente também o

foi para os anti-românticos “positivistas”. Estes acreditavam que a física e a zoologia eram

ciências a partir das quais deveriam orientar-se a história e a própria “sociologia”, em pleno

reconhecimento de suas pretensões científicas durante o século XIX.

Nesta perspectiva, identificaram e sublinharam a importância das leis da evolução

histórica em analogia as leis da natureza no interior do pensamento viquiano. Por outro lado,

cobravam do filósofo italiano maior objetividade e menor especulação, ao mesmo tempo em

que reclamavam sua escassa preocupação com a “coleta dos fatos”.

De acordo com Peter Burke, o interesse por Vico recrudesceu entre os intelectuais

europeus durante a onda de reação ao positivismo desencadeada pelo final do século XIX. A

ruptura proposta pelo filósofo entre o conhecimento do mundo da natureza e do mundo

humano representou um atalho para aqueles que discordavam dos encaminhamentos dados ao

estudo do homem pelos “cientistas sociais”.

Dentre estes, estava o hermeneuta Wilhelm Dilthey (1833-1911) que certa vez referiu-

se à Ciência Nova como “um dos maiores triunfos do pensamento moderno”. Neste século, a

admiração pelo pensamento de Vico se estendia desde o romantismo, passando inclusive pelo

positivismo, à hermenêutica.

Até Karl Marx recepcionou as idéias do filósofo italiano reconhecendo sua

importância para o desenvolvimento de sua teoria social. De acordo com Peter Burke, Marx

teria sugerido a leitura da Ciência Nova a um de seus correspondentes, na década de 1860.

Para Burke, Marx recebera Vico identificando-se nele: “Sem dúvida ele pensava Vico

como um protomarxista, e há por certo interessantes paralelismos entre as idéias dos dois

pensadores, especialmente na importância que atribuem ao conflito social na história e na

pouca importância que reservam aos ‘grandes homens’”. (BURKE, 1997, p.18).

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O autor italiano Pasquale Soccio apresenta uma extensa indicação bibliográfica acerca

de trabalhos que tratam das aproximações entre Marx e Vico. Ao tratar deste tópico, o autor

usou um fragmento em que o próprio Marx se refere a Vico como um homem atento a

importância de se fazer uma história das instituições sociais.

É evocando Vico que Marx frisa a importância de uma história escrita neste sentido: 15

Não merece (...) atenção a história da formação dos órgãos produtivos do homem social, base material de uma organização social particular? E não seria mais simples fazê-la, uma vez que, como disse Vico, a história da humanidade se distingue da história natural, pelo fato de nós havermos feito uma e não havermos feito a outra? (MARX apud SOCCIO, 2000, p. LXXII).

Soccio afirma ainda que os primeiros estudos publicados sobre Vico pelos marxistas

na Rússia o apontam como “um dos maiores sociólogos, que anteciparam alguma posição

teórica do marxismo no campo da interpretação da história”.

Na virada para o século XX, Vico permaneceu em evidência e ganhou novos

comentadores como Benedetto Croce, R. G. Collingwood, Ernst Cassirer, Hayden White, Eric

Auerbach, James Joyce, Isaiah Berlin, Peter Burke entre outros mais. As abordagens de seus

leitores variavam desde o tema dos mitos e formas simbólicas (Cassirer) à idéia de história

cultural embutida na obra de Vico (Auerbach).

Para iniciar uma sonda dos principais leitores de Vico no século XX, é justo que se

comece por Croce. De acordo com Peter Burke a publicação de Croce em 1911 é o estudo

mais completo da obra do pensador napolitano.

O historiador inglês considera esta a maior contribuição ao tema até então. A obra

intitulada por La Filosofia di Giambattista Vico teve uma segunda edição publicada em torno

do primeiro ano da década de 1920 e uma terceira edição publicada no ano de 1932.

Nela, o filósofo Croce disseca a obra do filósofo Vico discutindo a gnoseologia

vichiana, a estrutura interna da Ciência Nova, a forma fantástica de conhecer (a poesia e a

linguagem), a forma semifantástica de conhecer (o mito e a religião), a moral, o direito, a

providência, a historiografia, etc. Não é à toa que Burke rendeu-se diante da grandeza desta

análise, considerando-a uma das mais ricas até então.

Croce inicia a terceira edição fazendo uma avvertenza (advertência) onde oferece seu

trabalho como um guia de interpretação aos leitores de Vico. Rebate ainda as críticas que

15 Texto original: Non merita (...) attenzione la storia della formazione degli organi produttivi dell´uomo sociale,

base materiale di ogni organizzazione sociale particolare? E non sarebbe più facile de fare, poiché, come dice

Vico, la storia dell´umanità si distingue dalla storia naturale per il fatto Che noi abbiamo fatto l´uma e non

abbiamo fatto l´altra?

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acusavam sua interpretação de ser enviesada pelo seu próprio pensamento filosófico, bem

como de não ser oggetiva (objetiva).

Sobre sua compreensão de Vico, Croce alegou 16:

Na verdade, quem quiser conhecer verdadeiramente Vico deve ler e meditar o livro de Vico; e isto é indispensável, e esta é a única objetividade possível (...) Ao contrário, a exposição histórica e crítica de um filósofo requer uma distinta e mais alta objetividade, e necessariamente o diálogo entre um antigo e um novo pensamento, no qual somente o antigo pensamento vem destinado a ser compreendido. E tal é, ou procura ser o meu livro. O que poderia eu ter possibilitado entender de Vico se não fosse torturado sobre problemas estreitamente conjuntos aos seus ou derivantes daqueles seus? (CROCE, 1933, p.X).

Burke informou que este trabalho de Croce foi traduzido para o inglês por R. G.

Collingwood, que a propósito é conhecido como seu discípulo. Tenha o sido ou não, uma

coisa os unia: o elogio a Vico. Collingwood apresenta Vico como um “historiador

experimentado”, que tal qual Bacon formulou os princípios do método científico, aquele se

dispôs a elaborar os princípios do método histórico.

É perceptível o entusiasmo de Collingwood diante da “idéia completamente moderna”

que ele encontra da história em Vico. Como um homem religioso, ainda arraigado à arcaica

tradição da jurisprudência italiana do Renascimento poderia ter um esclarecimento tão grande

da história enquanto um ramo do saber?

Collingwood comenta o entendimento de Vico sobre a história:

Vico considera o processo histórico como um processo, através do qual os seres humanos elaboram sistemas de linguagem, costumes, leis, governo, etc.: isto é, considera a história como a história da gênese e do desenvolvimento das sociedades humanas e das suas instituições. Aqui, atingimos, pela primeira vez, uma idéia completamente moderna sobre qual há de ser o tema da história. Não há nenhuma antítese entre as ações isoladas dos homens e o plano divino que as liga, como acontecia na Idade Média. (COLLINGWOOD, 1994, p.10).

Burke conta que Collingwood chegou a descrever Vico como um pensador

“demasiado à frente de seu tempo para exercer uma influência imediata muito considerável”.

(COLLINGWOOD, 1997, p. 13).

Isaiah Berlin também foi um dos sublimes intérpretes de Vico do século passado. Seu

entusiasmo por Vico pode ser comprovado no início da primeira parte de seu livro “Vico e

Herder” em que comenta “As idéias Filosóficas de Giambattista Vico”.

16 Texto original: In verità, chi voglia conoscere davvero il Vico deve leggere e meditare i libri Del Vico; e

questo è indispensabile, e questa è la sola oggetività possibile: non la considetta “esposizione oggetiva” che

altri ne faccia, e Che non potrebbe riuscire se non lavoro estrinseco e materiale. L´esposizione, invece, storica e

critica di um filosofo há uma diversa e più alta oggetività, ed è necessariamente il dialogo tra um antico e um

nuovo pensiero, nel quale solamente l´antico pensiero viene inteso e compreso. E tale è, o procura di essere, il

mio libro. Che cosa avrei potuto intendere io Del Vico, se non mi fossi travagliato su problemi strettamente

congiunti ai suoi o derivanti da quelli suoi?

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Sobre Vico o autor informou:

A vida e o destino de Vico constituem, talvez, o melhor de todos os exemplos conhecidos daquilo que, com excessiva freqüência, é rejeitado como ficção romântica – a história de um homem de gênio, original, nascido antes do seu tempo, forçado a lutar na pobreza e na doença, incompreendido e negligenciado durante sua existência e (a não ser entre uns poucos juristas napolitanos) pouco menos do que totalmente esquecido após sua morte. (BERLIN, 1982, p.21).

Mesmo Croce, considerado uma referência na análise do pensamento viquiano chegou

a defini-lo por “il secolo decimonono in germe”, ou seja, “o século dezenove em embrião”.

Croce justificou sua afirmação:

Os múltiplos recursos da obra de um indivíduo na obra de gerações seguintes, esta comparação entre um indivíduo e um século, justifica uma definição fantasiosa que se pode dar a Vico, deduzida pelo desenvolvimento do pensamento posterior: que ele foi nada mais nada menos que o dezenove em germe. (CROCE, 2004, p.65).

Collingwood, Croce e Berlin parecem ser consensuais na imagem que pintam de Vico:

de um homem avant-garde, original, porém, marginalizado pelo pensamento que abarcava a

filosofia e as ciências de seu tempo. Em torno destas recorrentes interpretações, Burke alerta

que se construiu “O Mito de Vico” 17. Nesta discussão, o autor analisa a mitificação de Vico

em um estilo dramático, fazendo uma analogia ao mito de São João Batista operante na

cultura ocidental. A relata o trágico fim do pregador do evangelho considerado um gênio

incompreendido por seus ouvintes. Quando por fim lhe é retratada a verdade, as injustiças que

lhe foram cometidas passam a ser recompensadas pelo culto posterior à sua figura e obra.

Para Burke, esta mesma moral da sagração póstuma é válida para representar a

trajetória de Vico. Todavia, ao criticar esta interpretação “estilizada” em termos trágicos e ao

mesmo tempo otimistas da vida de Vico, Burke não está negando os contrastes entre este e a

atmosfera intelectual de sua época. Antes disso, está chamando atenção para que isto não

desmereça a análise de seu pertencimento histórico e social.

Sobre a leitura de Vico que o descola de seu próprio tempo e cultura, Burke contestou:

Acredito que essa interpretação é gravemente errônea. Ela tirou Vico de seu contexto, separando-o do meio cultural e social em que ele se desenvolveu, a cidade de Nápoles no final do século XVII. Também retirou Vico de sua tradição intelectual mais ampla, a república humanista de letras e, em particular, dos juristas que ainda estavam entre seus cidadãos mais eminentes. (BURKE, 1997, p.14).

Além do que já foi apontado neste capítulo, Burke oferece mais um importante

elemento para a leitura de Vico: a tradição da qual este é oriundo. Neste sentido, o alerta para

compreendê-lo a partir de seu lugar sócio-histórico soa como uma sugestão de diálogo com os

recentes trabalhos de autores italianos que vêm esforçando-se neste ímpeto.

17 Ver “O Mito de Vico”. In: BURKE, Peter. Vico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. pp. 13-21.

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1.3 O Lugar Cultural de Nápoles no Tempo de Vico

Paolo Rossi relembra que nos anos da formação do pensamento de Vico a cultura

italiana esteve marcada por um processo de profundo renovamento. Da transição do século

XVII para o XVIII, o mundo intelectual italiano incorporava os louros da mais moderna

corrente do pensamento europeu. Aprofundavam-se as discussões acerca do método científico

de Bacon e de Descartes, e dos efeitos do cartesianismo sob a física e fisiologia.

Uma avalanche de novos temas ou de retomadas de temas que desvendaram outros

horizontes ao pensamento e conhecimento europeus entravam na ordem dos debates daqueles

dias na Itália. Fazia-se polêmica desde o atomismo de Gassendi, teoria política de Hobbes,

empirismo de Locke, metafísica de Spinoza até o racionalismo e a psicologia de Leibniz.

No âmbito da pesquisa jurídica e política, Rossi destaca a influência decisiva das

doutrinas de Grozio, Selden e outros jurisnaturalistas. O autor aponta a relevância da filologia

e dos antiquários sobre a vida intelectual da época.

Por meio destas atividades culturais em pleno vigor neste processo de renovação

realizaram-se obras de erudição, história geral da poesia, da literatura, e a historiografia

italiana fincou seu espaço de uma vez por todas no terreno intelectual europeu. No plano

religioso, iniciam-se as contravenções (originalmente em círculos restritos) em torno da

natureza humana, da liberdade e da graça. Estes tópicos revisitados pelo jansenismo18

recuperavam as teses de Santo Agostinho e iam na contramão do probabilismo jesuítico.

Rossi assinala que as principais interferências do renovamento cultural na literatura e

poesia reafirmaram a exigência do gosto, da clareza e da simplicidade. Estes elementos eram

aclamados em detrimento do que o autor chamou de “barbárie do último século”, quando a

literatura esteve dominada pelos cânones do conceptualismo19, marinismo20 e gongorismo21.

18 Doutrina do bispo Cornélio Jansênio (1585-1638). Trata-se de uma tentativa de reforma católica através do retorno às teses de Santo Agostinho sobre a graça. Segundo Jânsenio, a doutrina agostiniana implica que o pecado original tirou o homem da liberdade de querer, tornou-o incapaz para o bem e inclinado necessariamente para o mal. Deus só concede aos eleitos, pelo merecimento de Cristo, a graça da salvação. Jansênio confrontava estas teses com o relaxamento da moral eclesiástica, especialmente jesuítica, segundo a qual a salvação está sempre ao alcance do homem que, vivendo no seio da Igreja, possui uma graça suficiente, que o salvará se for favorecida pela boa vontade. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins fontes, 2000. p. 588. 19 Nome que os historiadores oitocentistas da filosofia medieval deram à corrente da Escolástica conhecida por nominalismo; isso para fazer a distinção entre o nominalismo extremado de Roscelin, para quem o conceito universal é uma simples vox ou flatus vocis, o nominalismo de Abelardo, para quem o próprio universal é um discurso (sermo) predicável de muitas coisas, e do nominalismo posterior, que se inspira em Abelardo. Idem. p.169.

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O autor ressalta o surgimento de um decoroso e refinado neoclacissismo, anunciado,

sobretudo, na obra de Petrarca que desembocou na última década do século XVII no

surgimento da escola conhecida por “Arcádia”.

Todo este clima de reformulação da vida intelectual também refletiu no

aprimoramento dos instrumentos e veículos de informação e difusão do saber. Neste aspecto,

Rossi cita o parisiense, Journal des Sçavans, como referência aos periódicos italianos:

Giornale dei Letterati de Roma, Galleria di Minerva de Veneza e, o Giornale dei Letterati

d´Italia, também de Veneza. As publicações periódicas de autoria de homens como, Antonio

Magliabechi e Antonio Conti atraíam a atenção dos intelectuais para as idéias de Newton,

Leibniz, Malebranche, etc.

Sobre a receptividade das novas idéias e teorias por parte da cultura italiana, Rossi

esclarece que o ritmo de aceitação destas não foi linear, nem tampouco uniforme. No entanto,

ele afirma que independente destas serem absorvidas facilmente ou rechaçadas, eram

discutidas e criticadas adotando como referente, a grande herança renascentista.

Em outras palavras, o processo de renovação cultural na Itália significou muito mais

um abandono da mentalidade meramente retórica da Contra-reforma, que uma ruptura com a

tradição do Renascimento. Inclusive, uma das características deste processo é o

aprofundamento da tradição renascentista e a incorporação de novos problemas decorrentes da

ciência e filosofia moderna aos seus.

Vale salientar que nem todas as idéias modernas eram integradas com facilidade à

tradição renascentista. Mesmo em face das novas teorias políticas ensejadas pelo Iluminismo,

e das contribuições dos jurisnaturalistas, a herança do pensamento político de Maquiavel, por

exemplo, não foi abdicada em função daquelas. Ao contrário, serviu de base às críticas e

polêmicas que circundavam as teorizações acerca das formas de governo, atuação do Estado,

e natureza da ação política no mundo civilizado moderno.

Por outro lado, no campo da filosofia e metodologia das ciências, lembra Rossi, foi

evidente a influência de pensadores do porte de Descartes e Gassendi sobre o pensamento

italiano. Todavia, os novos elementos cartesianos e gassendianos foram inseridos no sangue

da viva e operante herança do experimentalismo galileano. Deste modo, recorrendo-se a

Telesio e a Bruno, se destacam do outro lado as conexões entre a tradição do naturalismo

20 Afeição ao estilo, semelhante à que se censura no poeta italiano Marini (1569-1625). FERREIRA, Aurelio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 11ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 1967. p.780. 21 Escola espanhola de poesia, que segue o método de Luís de Góngora y Argote, poeta espanhol (1561-1627), e se caracteriza por um excesso de metáforas, antíteses, inversões, trocadilhos e alusões cláassicas; feição literária peculiar a essa escola. Idem. p. 607.

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renascentista e o novo pensamento europeu. Feita esta ligação, os seguidores de Galileu

sentiam-se a vontade com o mecanicismo contido nos sistemas do cartesianismo e

gassendismo.

Sobre a difusão do cartesianismo na Itália, Rossi assinalou:

Na Itália o pensamento de Descartes se apresentou junto com o gassendismo e o baconismo, bem como a herança conceitual de Telésio, Campanella e Galilei. Tommaso Cornelio “mandou trazer para Nápoles as obras de Renato delle Carte” (Descartes), Leonardo de Cápua, na sua obra Parere sull´incertezza della medicina

(Parecer sobre a incerteza da medicina – n.d.t.) (1681), teoriza em torno da necessária conjunção da ciência cartesiana e galileana. Miguelangelo Fardela de Trápani ensina a filosofia de Descartes em Pádua entre 1693-1709. (ROSSI, 2001, pp. 195-196)

A propósito desta junção entre modernidade e tradição disse Peter Burke:

Esses “modernos” não repudiaram completamente o estudo da Antigüidade clássica. O que fizeram foi defender o que poderia ser chamado de uma “Antigüidade alternativa”, não aristotélica, talvez para camuflar a novidade de suas idéias e ampliar seu atrativo, dando-lhes uma linhagem, e talvez porque estivessem realmente impressionados com algumas idéias antigas. Interessavam-se, por exemplo, por Platão e também pela tradição platônica do Renascimento italiano, uma tradição “a qual assimilaram Descartes. Como vários intelectuais franceses e ingleses da época, o grupo napolitano também se interessava pelo filósofo grego Epicuro (341-270 a. C.) e seu discípulo Lucrécio (95-55 a. C.). (BURKE, 1997, p. 26).

As idéias de Epicuro e Lucrécio apresentavam-se como meio de prescindir ao que o

intelectual napolitano Leonardo di Capoa chamou de “tirania de Aristóteles”. Refutar as teses

aristotélicas equivale a entrar na rota de colisão dos dogmas sustentados pela filosofia

escolástica medieval, e pode-se afirmar que ao fazê-lo, entrava-se em choque com o próprio

Cristianismo.

De acordo com os ensinamentos de Epicuro o universo não foi uma criação

intencional, mas era na realidade o resultado de uma combinação aleatória de átomos. Além

disso, Epicuro explicava a origem da religião através do medo. Mas, vale ressaltar que o

círculo de Nápoles não era ateísta, uma vez que fazia a releitura destas idéias tentando

contraditoriamente associá-las à doutrina católica. Neste sentido, os napolitanos inspiraram-se

no filósofo francês Pierre Gassendi22 (1592-1655).

No entanto, a Inquisição de Nápoles demonstrava um profundo incômodo com o

ressurgimento dos temas do epicurismo e do atomismo. É importante reforçar que por toda a

Itália, o clero mostrou-se indisposto com a difusão das novas idéias, e não poupou esforços

para caçar e condenar seus mentores e propagadores. Neste sentido, a Espanha também

22 Gassendi era padre na França, onde o clero era mais tolerante e mesmo receptor das novas idéias, ao contrário do que aconteceu na Itália e na Espanha. Sobre este tema, ver: BURKE, Peter. Vico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 27.

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conhecida pela força de seu tribunal inquisitório concedia completo aval ao clero do Vice-

Reino de Nápoles.

Isto pode ser observado no caso de Tommaso Campanella (1568-1639) filósofo da

região da Calábria, acusado de liderar em 1599 uma rebelião contra o domínio espanhol em

Nápoles a fim de instaurar uma república teocrática onde ele próprio seria o sacerdote e o rei.

O estopim desta insurreição desencadeou em Nápoles uma intensa repressão civil e religiosa,

aberturas de processos inquisitoriais e condenação daqueles que fossem considerados hereges

pelo Papado local.

Refugiado na França, Campanella escapou do suplício do santo tribunal. Mas, não

tiveram a mesma sorte, seus contemporâneos Giordano Bruno (1548-1600) queimado com

vida no Campo dei Fiori (Campo das Flores) em Roma, no ano de 1600 e Galileu Galilei

(1564-1642) condenado a liberdade vigiada no ano de 1633 até os últimos dias de sua vida.

Neste mesmo tom, alertou-se contra as “heresias” do “ímpio” Lucrécio como forma de vetar a

propagação da nova corrente “atomista”, também chamada de mecanicista do pensamento

europeu.

Rossi conta que se deve a um seguidor de Galileu chamado Marchetti a tradução de

Lucrécio para o italiano, realizada entre 1644 e 1669. A vastíssima repercussão desta obra

provocou a ira da censura eclesiástica napolitana que em 1693 advertia os “fiéis” da

“necessidade indispensável de repudiar o venenoso livro repleto de heresia e de infame

ateísmo e especialmente o ímpio Lucrezio, traduzido para o italiano por parte do Demônio,

infelizmente aplaudido por esta e outras ações semelhantes” 23. (ROSSI, 2004, p.9)

Dois anos antes disso, quando Vico tinha 23 anos de idade, a Inquisição napolitana

condenava quatro jovens dos quais dois eram seus amigos. Estes foram acusados de acreditar

que o universo era composto de átomos, que a Terra já era habitada por seres humanos antes

de Adão e Eva e que Cristo era um impostor.

Esta é mais uma ilustração de como a inquisição enxergava os livres pensadores

italianos: “como um bando de ateus”, mesmo que estes não fossem. Campanella e Bruno, por

exemplo, eram frades dominicanos crentes que o aprofundamento de seus estudos sobre a

natureza os aproximavam da criação divina e, portanto de Deus.

23 Texto original: A Napoli, nel ´93, i fedeli venivano avvertiti della “necessità indispensabile di fuggire come

mostri velenosi i libri infetti d´eresia e dell´infame ateísmo e specialmente l´empio Lucrezio traslato, per arte

Del Demônio, in metro italiano, purtroppo applaudito e altri di simil fazione.

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O processo de renovação da cultura italiana se engendrou entre duas balizas: de um

lado reclamava-se a possibilidade de um pensamento heterodoxo, capaz de agregar a tradição

galileana e as novas idéias que tomavam conta do velho continente.

Do outro lado, havia uma resistência a esta abertura, onde obteve relevo o papel da

Inquisição. Mediante seus mecanismos de repressão esta visava assegurar a ortodoxia do

pensamento prezada pela escolástica medieval.

Sobre o problema do conhecimento, bem como de sua produção e consumo nos

séculos XVI e XVII, Carlo Ginzburg distingue dois tipos antagônicos de saber: o alto e o

baixo. Neste trabalho, o autor apresenta o Renascimento como pano de fundo das querelas

entre os defensores de um saber público e os guardiões da tradição medieval, adeptos do saber

hermético.

Por altum sapere, (alto saber) Ginzburg apresenta a idéia de que o intelecto humano

não alcança o plano transcendental onde estão ocultos os segredos da arcana naturae, (da

natureza), arcana Dei (de Deus) e arcana imperi (do poder político). Cabe ao homem,

portanto, cumprir o dever moral de conservar-se em sua modéstia e contentar-se com os

limites de sua compreensão frente aos mistérios divinos.

Segundo Ginzburg:

O valor ideológico dessa tríplice exortação é evidente. Ela tendia a conservar a hierarquia social e política existente, condenando os pensadores políticos subversivos que tentavam penetrar nos mistérios do Estado. Tendia a reforçar o poder da Igreja (ou das igrejas), subtraindo os dogmas tradicionais à curiosidade dos heréticos. Tendia, além disso – um efeito marginal de certa importância -, a desencorajar os pensadores independentes que ousassem questionar a venerável imagem do cosmo, baseada no pressuposto aristotélico-ptolomáico de uma contraposição nítida entre os céus incorruptíveis e um mundo sublunar (isto é, terreno) corruptível. (GINZBURG, 2003, p.99)

A Inquisição italiana do tempo de Vico é uma continuidade desta proibição aos temas

vedados ao altum sapere. Mais do que isso, representou uma tentativa frustrada de resolver o

problema fundamental entre antigos e modernos que se apresentava na Itália daqueles anos.

Avaliar as contribuições culturais que Nápoles trouxe à Europa não é uma tarefa muito

fácil, mesmo para os pesquisadores italianos. Isto se deve à multiplicidade e complexidade

das atividades intelectuais, culturais e científicas desenvolvidas no tempo de Vico na região

do Mezzogiorno. Todavia, é importante vislumbrar esta riqueza cultural no ensejo da situação

política e social da capital do antigo Vice-Reino da Espanha. (entre 1503 e 1734).

Esta é a proposta do historiador napolitano Giuseppe Galasso. Este autor faz um

apanhado geral do endereço político e cultural de Nápoles desde a infância até os últimos anos

de Vico. Foi um período de muitas mudanças para tal recorte temporal (1668-1744).

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Desde os idos da segunda metade do século XVII, a sede do Vice-Reino enfrentava

um período conturbado, marcado por uma violenta insurreição (1647-1648) e uma peste

(1656) que dizimou cerca de dois terços da população.

As conseqüências destes acontecimentos atingiram a ordem pública bem como a

estrutura econômica do Vice-Reinado, refletindo na situação de penúria da plebe, no

desprestígio e redução de privilégios fiscais da nobreza e no conseqüente desgaste da

aristocracia. Diante de inúmeras dificuldades, iniciou-se uma campanha para repovoar a

cidade, através do incentivo à migração de camponeses e estrangeiros.

Esta campanha visava o aumento da mão-de-obra e a ampliação dos limites do

mercado de consumo interno como medidas emergentes para a retomada do fôlego econômico

da cidade. As ofertas de emprego com condições favoráveis aos trabalhadores, tais quais, a

garantia da cidadania napolitana para os estrangeiros e a determinação de isenção fiscal

concedida aos operários, contribuíram para o crescimento do comércio e fizeram deslanchar a

construção civil.

Em médio prazo, estas providências surtiram efeitos muito positivos para a situação

financeira da cidade. Ao término do século XVII, Nápoles já era reconhecida por um

importante centro comercial, com uma eminente marinha, bancos públicos, financistas

privados, por sua tradicional indústria da seda, e, referência de vanguarda na atividade da

construção civil.

Sobre o soerguimento de Nápoles, Galasso acrescentou24:

Segundo uma tradição antiga, consolidou-se como o “agigantar-se” da capital e a concentração maior da nobreza do Reino, o artesanato e os serviços cobrados pela presença de uma corte, de uma aristocracia particularmente faustosa e de um mais que abastado setor civil, representavam em geral as maiores e mais estáveis condições de trabalho e formavam junto com o comércio, a espinha dorsal da economia citadina. (GALASSO, 1971, p. 19).

Todavia, a capital se recuperava em detrimento do resto do Vice-Reino. Para fazer

acontecer o milagre napolitano, as províncias e demais cidades foram subordinadas a uma

situação de grande retração econômica. O comércio provincial foi obrigado a vender suas

mercadorias segundo o preço determinado pelo império e pela admissão do fisco, que

supostamente devia renunciar a receita derivada das licenças de exportação.

24 Texto original: Dopo tutto, secondo uma tradizione antica, ma consolidatasi con l´ingigantirsi della capitale e

la concentrazione in essa della maggiore nobilità del Regno, l´artigianato e i servizi richiesti dalla presenza di

una corte e di um´aristocrazia particolarmente fastose e di um più Che agiato ceto civile rappresentavano pur

sempre lê maggiori e più stabili occasioni dilavoro e formavano, assieme al commercio, la spina dorsale

dell´attività econômica cittadina.

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Resumidamente, Galasso descreve a situação da capital do Vice-Reino espanhol na

passagem dos seiscentos para os setecentos25:

Mas, em geral, a capital se reconfirmou depois da peste de 1656, como a grande cabeça de um corpo frágil, como a sanguessuga das energias físicas e econômicas do Vice-Reino. À “drenagem” demográfica e financeira se uniria mais tarde a força das energias intelectuais, por ser a cidade sede da única universidade do Vice-Reinado bem como da maior parte das atividades profissionais, especialmente no campo jurídico e administrativo, dada a concentração das maiores instâncias burocráticas e administrativas. (GALASSO, 1971, p. 21).

A representação política era praticamente monopolizada por estes setores da

população a que se chamava popolo civile (povo civil). O autor esclarece que socialmente, o

povo civil constituía a parte mais dinâmica do mundo citadino, mas, politicamente, ao

contrário disso, continuava a seguir a velha linha de defesa dos privilégios da cidade. Isto

acarretava no alijamento político da verdadeira plebe, do chamado popolo minuto (povo

miúdo).

A postura política da nobreza representante do povo constituía um verdadeiro entrave

ao processo de modernização que acompanhava a Europa e aos poucos ia interferindo na

realidade de Nápoles. Não obstante, repercutiu na sua própria ineficiência em construir uma

sólida base política junto à plebe, e na conseqüente submissão ao apoio da aristocracia local.

Em outras palavras, esta ala da nobreza deixava claro que necessitava muito mais da

monarquia do que o contrário. Galasso informa que o fim da batalha de independência travada

entre 1647-1648, de um lado consolidou a aliança monárqico-nobiliária, assegurando a

sobrevida do sistema feudal e, por outro, representou o início da falência de uma nobreza que

se tornou exclusivamente dependente do governo Vice-Real.

O autor diz ainda que um dos maiores embates travados pela nobreza além daqueles a

favor da sustentação de seu prestígio próprio e fortalecimento de seus laços com o governo, se

voltou contra a Inquisição.

No entanto, este confronto não era considerado novidade para o momento, pois a

Igreja sempre se dispôs a disputar espaços de influência e representação junto ao governo

local com a nobreza. Esta por sua vez, enxergava no excesso de autoridade dos clérigos o

limite de suas pretensões.

25

Texto original: Ma, in generale, la capitale si riconfermò, dopo la peste Del 1656, come lê grande testa di um

fragile corpo, come la sanguisuga delle energie fisiche ed economiche Del Regno. Al drenaggio demográfico e

finanziaro si univa poi quello delle energie intellettuali, per essere la città sede dell´única università Del Regno

e sede della massima parte delle attività professionistiche, specie nel campo legale e amministrativo, data la

concentrazione in essa di tutte lê maggiori istanze burocratiche e amministrative.

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Mas, o fato é que independente da idade deste posicionamento contrário da nobreza

com relação à Inquisição, se criavam espaços de propagação da ciência e filosofia moderna

que burlavam o âmbito da cultura oficial (Igreja e Universidade).

Dentro deste processo de renovação cultural em Nápoles, Galasso destaca a atuação da

camada média da população que aos poucos incorporava uma função política autônoma e

procurava impô-la.

Era o período áureo do ceto forense (setor forense). Para falar sobre o desempenho

ativo deste setor, o autor utiliza as palavras de um homem da época, Villari, “houve uma

tendência em considerar esta importante categoria profissional em quase uma classe social –

substituta de uma burguesia inexistente – que proporcionou forças para renovar ou mesmo

salvar o Reino de Nápoles” 26. (VILLARI apud GALASSO, 1971, p. 27)

Salvo certo exagero desta afirmação, Galasso frisa que não se pode negar que durante

a última metade do século XVII e a primeira do XVIII foi do interior do setor forense que

saíram os portas-vozes da nova cultura.

Sem dúvida, o autor reconhece a relevância da ação de seus partícipes para a

formação de uma nova sensibilidade nacional, assim como para se entender melhor a natureza

do estado enquanto coisa pública e suas funções como ofícios públicos. Também atribui a

estes a capacidade para receber a mais alta expressão da consciência laica do estado moderno

em contraste com as sobreviventes pretensões do poder eclesiástico.

Segundo Galasso, o renovamento cultural napolitano teria iniciado na metade do

século XVII, como uma espécie de “afago” do governo Vice-Real direcionado as forças

populares insurrectas na batalha de 1647-1648. Além disso, a disseminação do pensamento

moderno era um meio de comprometer a obsoleta posição política da nobreza.

O autor relata que Croce definiu esta renovação da cultura por “favores do governo

espanhol à plebe contra a nobreza”. E o ponto de vista de Croce é muito sensato neste aspecto.

Ora, na verdade trata-se também de uma tática para conter o ânimo dos populares e controlar

a astúcia e ambição da nobreza.

A interpretação de Galasso traz um novo tom ao problema da renovação cultural

napolitana no tempo de Vico. O de que este processo se desenrolou segundo o ambiente

político e o espírito público do Vice-Reino espanhol em seus sucessivos mandatos até a

última década após a ascensão de Carlo di Borbone ao trono de Nápoles, em 1734.

26 Texto original: “Permane”, ha osservato giustamente il Villari, “ la tendenza a considerare questa importante

categoria professionale quase come uma classe sociale – surrogato di uma inesistente borghesia – che si

sarebbe assunto il compito storico, in verità sproporzionato alle sue forze, di rovinare o di salvare, secondo i

punti di vista, il regno di Napoli.

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Neste ínterim, o Vice-Reinado do duque de Medinaceli (1696-1702) desencadeou uma

fase de grande tensão no cenário político napolitano durante as proximidades do término do

domínio espanhol.

De qualquer forma, o Vice-Rei intensificou a retomada cultural em Nápoles de modo

irreversível. Ao fazê-lo, certamente ganhava algum prestígio de setores como o forense, de

boa parte da plebe através de suas lisonjas concedidas ao povo, mas ofendia os interesses

políticos da nobreza.

Quando as manobras e os acordos da diplomacia européia pela divisão da herança de

Carlo II (então rei de Madri) foram conhecidas em Nápoles, a aristocracia, a nobreza e o setor

civil passaram a cogitar a possibilidade de terem um príncipe autônomo. Enquanto isso, em

Madrid se discutia a conveniência de substituir o Vice-Rei Medinaceli por outro menos

malquisto aos olhos da nobreza.

Ao mesmo tempo chegaram a Nápoles muitos agentes e tropas francesas movidos pela

esperança de dominar a cidade caso um Bourbon ascendesse ao trono espanhol. Alguns

nobres mostravam-se abertamente a favor do arquiduque austríaco Carlo d´Absburgo. Na

província de Mercato estava disseminada a intolerância ao domínio espanhol e o povo

desaprovava a instauração da moeda contendo a figura de Felipe V.

A opinião pública napolitana encontrava-se dividida entre o partito angivino (partido

angevino, francês) e o partito imperiale (partido imperial). Neste clima de diversas

expectativas não faltaram nem mesmos aqueles que acenavam em favor da república.

Frente à tamanha incompatibilidade de vontades, explodiu em 1701 uma insurreição

que já era esperada com o objetivo de por fim ao domínio espanhol. Mas, esta fracassou em

seu segundo dia devido à falta de apoio da população aos conjurados.

Nem mesmo a repressão violenta da conjura e a visita de Felipe V que herdou

temporariamente o trono espanhol conseguiram abrandar o furor da sociedade napolitana.

Apenas em 1707, quando Felipe V é sucedido por Carlos da Áustria é que as coisas parecem

se acalmar um pouco. Surge então o último Vice-Rei espanhol, Villena.

Galasso observa que a sede de uma nova dinastia sobre o trono espanhol não implicou

necessariamente a instauração de um novo regime. Muito pelo contrário, os órgãos do

governo permaneciam os mesmos.

Em Nápoles a maior preocupação do último Vice-Rei espanhol era manter a

tranqüilidade do povo e favorecer a nobreza remanescente para garantir apoio à sustentação

de sua coroa. Contudo, a velha aliança entre a nobreza e a monarquia não obteve muito êxito

neste episódio particular.

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Uma mudança política mais significativa viria com o advento de Carlos de Bourbon ao

trono napolitano, uma década antes da morte de Vico27. Galasso afirma que logo cedo o novo

governo iniciou um programa de reforma que o diferenciou nitidamente dos anteriores

governos espanhóis, do último austríaco e daqueles que futuramente viriam a insistir na

instituição secular do Reino.

Vico não chegou a vivenciar os frutos desta reforma, mas acompanhou toda sua

evolução na ebulição daqueles anos. Foi sobre este pano de fundo histórico que o filósofo

obteve contato com os polêmicos temas do Iluminismo. Desde a Nápoles seiscentista e

espanhola que conheceu quando criança até a Nápoles de sua velhice, Vico esteve fascinado

pelo problema da renovação cultural.

Sua trajetória intelectual perpassou vários terrenos da cultura italiana, desde o âmbito

do instituído ao não-instituído, ou em processo de instituição. A formação clássica de

humanista se iniciou na scuola della Gramática (escola de Gramática), depois Vico foi pupilo

do Maestro il Padre Antonio del Balzo, um jesuíta e filósofo nominal e do Padre Giuseppe

Ricci, que também era jesuíta. Estes contatos trouxeram para Vico um grande

aprofundamento com relação à língua latina que mais tarde se uniria ao seu interesse pela

poesia. 28

Ainda nesta fase de seu desenvolvimento intelectual, Vico conheceu os elementos

filosóficos da escolástica, aprendendo a ser um “aristotélico cristão”. Mas, aos poucos o

jovem estudante conhecia outras abordagens filosóficas, a exemplo da metafísica do Padre

Suarez e de Duns Scot.

Sobre esta o próprio Vico declarou em sua autobiografia: 29

O Padre Suarez na sua metafísica reflete todo o saber em Filosofia de uma forma eminente, como convém a um metafísico e com um estilo totalmente claro e fácil, de fato ele se destaca por uma incomparável eloqüência, deixou a escola de melhor uso, de modo que, outra vez ele se fechou por um ano em casa para estudar sobre Suarez. (VICO, 1728, p.153).

Durante os noves anos (1686-1695) em que atuou como preceptor do filho do marquês

Domenico Rocca em Vatolla (Cilento), Vico se reporta aos momentos de relativa solidão

aproveitados para o estudo aprofundado de Platão, os primeiros contatos com o materialismo

27 Neste mesmo ano (1735), aos 67 anos de idade, Vico foi nomeado historiador oficial do novo governador de Nápoles. Conferir o tema em “O desenvolvimento intelectual de Vico”. In: BURKE, Peter. Vico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. pp. 23-43. 28 Estas informações podem ser conferidas em VICO, Giambattista. Vita di Giambattista Vico – Scritta da se medesimo (Vida de Giambattista Vico – Escrita por ele mesmo). Nápoles, 1725-1728. 29 Texto original: Il Padre Suarez nella sua Metafísica ragionava di tutto lo scibile in Filosofia com uma

maniera eminente, come a metafísico si conviene, e com uno stile sommamente chiaro e facile, come in fatti egli

spicca com uma incomparabil facondia, lasciò la scuola com miglior uso, che l´altra volta, e si chiuse un´ano in

casa a studiare su´l Suarez.

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de Gassendi (1592-1655) e, especialmente com a filosofia cartesiana, cada vez mais difusa em

Nápoles. 30

Quando voltou para Nápoles em 1699, Vico passou a ocupar o cargo de professor de

retórica da universidade.

Sobre a possibilidade de ingresso na cátedra de retórica, o napolitano proferiu em sua

autobiaografia31:

Pouco depois estava vaga a Cattedra della Rettorica (Cátedra de Retórica), devido à morte do Professor, com renda não mais alta do que cem escudos anuais, com algum acréscimo de menor importância como o direito ao crédito, através do qual os Professores habilitavam os estudantes às formas legais de estudo. (VICO, 1728, p.190).

Em sua autobiografia narrada na terceira pessoa do singular, Vico elencou as

principais doutrinas e pensamentos que contribuíram para seu amadurecimento intelectual, ao

mesmo tempo em que discorreu sobre sua vida. Nela, o autor narra seu encantamento por

Bacon, seu entusiasmo inicial por Descartes, por Grócio, Selden, etc.

Relatou sua passagem por academias consideradas as mais importantes da cidade (a

dos Investigadores que depois ficou conhecida por Palatina), sua vida profissional, seu

relacionamento com os intelectuais de destaque que protagonizavam a renovação cultural

napolitana. Em contrapartida, o pensador napolitano também declarou o seu sentimento de

solidão enquanto intelectual, declarando ter se sentido “um forasteiro em sua própria pátria”.

A sua obra-prima, a Ciência Nova foi o produto das reflexões acerca de seu tempo,

marcado por contrastes entre um mundo tradicional em declínio e o alvorecer de um novo

mundo. De acordo com Astor Antônio Diehl, o tempo da Ciência Nova representa um tempo

de passagem do mundo medieval esfacelado sob a forma de diversas representações

“artístico-culturais” incorporadas pelo Renascimento na construção do ideal de um novo

mundo mais promissor do que o passado.

O autor conclui então que a Ciência Nova pode ser compreendida “como a síntese

entre o tempo que está morrendo e a época nascente”. (DIEHL, 2003, p.297).

Acerca da Ciência Nova Diehl declarou:

30 O tema pode ser encontrado em VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova: acerca da natureza comum das nações. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores. p. VII. 31 Texto orriginal: Poco dopoi essendo vacata la Cattedra della Rettorica, per morte del Professore, di rendita

non più che di cento feudi annui con l´aggiunta di altra minor´incerta somma, che si ritragge da i diritti delle

fedi, con le quali tal Professore abilita gli Studenti allo studio legale.

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Nesse caso, a própria narrativa histórica assume a função de costurar os fragmentos em um novo todo. Assim, concebo Ciência Nova como a possibilidade de construir um sistema no qual os entulhos, os restos e s memórias estariam colocados sob os princípios da ciência, rearranjados pelo método heurístico e representados pela estrutura narrativa. Na compreensão de Humberto Eco, Vico não vai à procura de uma origem cronológica, mas esboça os traços de uma história ideal eterna, dando como que um pulo para fora da História. Ele quer descrever as condições que decorrem constantemente de um nascimento e de uma evolução da linguagem em cada época e de cada país, numa espécie de sucessão genética da linguagem. (DIEHL, 2003, pp. 297-298).

Sobre esta mesma obra, Elias Thomé Saliba concluiu:

O que faz a riqueza da Ciência Nova é que ela foi escrita na fronteira de vários mundos mentais, não se enquadrando em nenhum deles: nem renascentista, nem cartesiano, nem barroco, nem iluminista – daí também a complicada posteridade de Vico. Se uma só frase bastasse para resumir a posteridade de Vico, diríamos: muitíssimo citado, pouquíssimo lido e ainda menos compreendido. A História posterior da Ciência Nova vem exemplificar o singular destino daquelas obras que têm muito mais intérpretes que leitores. (SALIBA, 2003, p. 288).

A Ciência Nova reúne estas experiências de mundos diferentes (quer em

decomposição quer em ascensão), ao passo que expressa uma sorte de simbologias e

representações rearranjadas em um modelo específico de se pensar a história. Logo, a idéia de

que a obra-prima do filósofo italiano é pura inovação é falsa, pois guarda também os frêmitos

(ou os “entulhos culturais” como diria Diehl) de sua própria tradição.

Entendê-la é ambientá-la em seu próprio momento de trânsito na constituição de um

mundo moderno, logrando acessar a consciência que Vico tinha da passagem entre séculos tão

importantes para o desenvolvimento do pensamento ocidental e ciência moderna.

Mas, antes de compreender o que Vico sistematizou a seu modo em sua obra da

maturidade, ou mesmo antes de buscar compreender esta sensação de solidão do filósofo, é

importante conhecer um pouco do projeto que o nascente Iluminismo oferecia à ciência e à

história.

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II CIÊNCIA E HISTÓRIA NOS PRIMÓRDIOS DO ILUMINISMO

Antes de iniciar a discussão central do capítulo, seria interessante apresentar um

panorama do pensamento iluminista a partir da obra Kant.

2.1 Immanuel Kant : a História como Aperfeiçoamento da Razão

Mesmo tendo vivido décadas após Vico, é necessário passear pela vertente alemã do

Iluminismo, a Aufklãrung através da figura de Kant. Por estar no fim do Século das Luzes e

mesmo haver acompanhado o seu culminar com o estopim da Revolução Francesa, Kant traz

uma espécie de síntese do pensamento iluminista, de sua filosofia e ciência.

Ao responder a pergunta: “Que é o Iluminismo”, Kant respondeu:

O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. (KANT, 1988, p. 11)

Por menoridade Kant compreende a incapacidade da maioria dos homens de se

orientar por seu próprio intelecto. É o comodismo que une os homens através dos laços da

preguiça e da covardia e os prende a qualidade de serem menores. “É tão cômodo ser menor”,

afirma Kant, de modo que é muito mais conveniente manter estes laços do que ousar rompê-

los.

O Iluminismo para Kant seria exatamente o processo de emancipação racional do

homem, isto é, a escolha de sair de uma menoridade através de uma ilustração pessoal do

espírito. Para processar esta passagem à maioridade o homem precisa de liberdade para

pensar. Todavia, Kant acreditava que um público é capaz de esclarecer-se (ilustrar-se)

mediante o uso público de sua razão. Disse Kant, “mas por uso público da própria razão

entendo aquele que qualquer um, enquanto ‘erudito’, dela faz perante o grande público do

‘mundo letrado’. Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo

cargo público ou função a ele confiado”.(KANT, 1988, p. 13).

Kant informa que preponderantemente, uma vez abandonado a si próprio, o público

encontra sérias dificuldades para guiar-se sem a orientação de um tutor seja este a religião ou

o estado. No entanto, para emancipar-se precisa aproveitar a liberdade de pensamento em

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favor do guia de sua própria razão. A possibilidade de agir livremente é conseqüência da

liberdade para pensar. Mas, é preciso pensar e amadurecer a própria razão para agir

livremente e não fazê-lo na ordem contrária.

Quando indagado “Se vivemos agora numa época esclarecida?”, Kant respondeu:

“não. Mas, vivemos numa época do Iluminismo”.Para o filósofo ainda faltava muito para que

os homens sentissem segurança para se servirem de seu próprio entendimento ao ponto de

dispensar a orientação de outrem.

Neste sentido, Kant acrescentou:

Temos apenas claros indícios de que se lhes abre agora o campo em que podem atuar livremente, e diminuem pouco a pouco os obstáculos à ilustração geral, ou à saída dos homens da menoridade de que são culpados. Assim considera, esta época é a época do Iluminismo, ou o século de Frederico. (KANT, 1988, p. 17)

Kant enxergava na figura de Frederico um príncipe esclarecido que concedeu aos

homens a plena liberdade de pensarem e discutirem o que bem entendessem. Em seu governo,

Frederico abdicou de qualquer tutela religiosa e permitiu que cada um se servisse da própria

razão para tratar dos assuntos relacionados à sua consciência. O príncipe apenas demandava a

obediência em troca da liberdade concedida. Na percepção de Kant, este exemplo de governo

fundamentado no princípio da liberdade não apresentava ameaças ao equilíbrio da ordem

pública ou a unidade da comunidade. Pois, “os homens libertam-se pouco a pouco da

brutalidade, quando de nenhum modo se procura intencionalmente nela os conservar”.

(KANT, 1988, p. 18)

O homem capaz de nortear-se através de seu próprio entendimento potencializa sua

avaliação crítica e expande sua consciência moral e política. Neste sentido, a liberdade

possibilita a autonomia do homem. Consiste na independência de qualquer forma de

dependência (liberdade de), e o poder do sujeito de legislar para si (liberdade para). Mas esta

autonomia em choque com a noção de heteronomia consiste a uma vontade maior, que

corresponde aos planos da natureza. A “liberdade de vontade” ao mesmo tempo em que

corresponde ao livre-arbítrio ou a capacidade humana de fazer escolhas, indica um

desenvolvimento determinado para o amadurecimento racional do homem.

Em si mesmo, o homem é livre, dono de seu arbítrio. No entanto, a natureza tem um

plano estabelecido para a espécie humana e sua realização é inexorável, independe da

liberdade do indivíduo.

Neste sentido, os homens não são autônomos, e obedecem mesmo que

involuntariamente à teleologia natural da história: uma constituição política perfeita.

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Kant explanou esta idéia de história:

Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros mal se dão conta de que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio proveito e frequentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a um fio condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para sua realização, e, mesmo que conhecessem tal propósito, pouco lhes importaria.

(KANT, 2004, p.10).

Kant traz à luz a idéia de construção de uma história universal, onde as ações humanas

podem ser analisadas em seu conjunto através do tempo. Mediante a crítica da experiência dos

homens ao longo da história é possível identificar os erros cometidos pelos estados e tentar

concertá-los, desenvolvendo uma relação mais harmônica entre estes. É preciso esclarecer que

a idéia de uma constituição política perfeita corresponde à concretização de um Estado

Cosmopolita.

Análoga a passagem do homem de sua menoridade à maioridade racional, Kant

propõe a superação da situação de barbárie entre os estados rumo à segurança e à convivência

pacífica entre estes assegurada pela administração universal do direito. Na visão de Kant este

seria o plano supremo da natureza para a espécie humana e seu fio condutor é o

desenvolvimento da razão.

Em Kant, a razão é compreendida como uma disposição natural própria do ser humano

com uma finalidade: alcançar a maioridade e a felicidade racional. Deste modo, as sucessivas

gerações transmitem umas as outras as suas “luzes”, como um esforço contínuo (não

necessariamente linear) de aperfeiçoamento do mundo.

Este processo indica o curso da história universal delimitado pela natureza. De acordo

com Kant: “No homem (única criatura racional sobre a Terra) aquelas disposições naturais

que estão voltadas para o uso de sua razão devem desenvolver-se completamente apenas na

espécie e não no indivíduo”. (KANT, 2004, p.11)

No entanto, é possível perceber que o ponto de partida para o desenvolvimento da

razão é o próprio caos. Por natureza, o homem é predisposto a competir, animado por seu

desejo de liderança e dominação. A partir dos antagonismos que caracterizam a

insociabilidade natural dos homens surge a necessidade de regulamentação de leis voltadas ao

mundo social que possibilitem a convivência dos indivíduos. Este artifício de validade

universal (leis) seria uma limitação das liberdades individuais no esforço de garantir a eficácia

das mesmas em seu conjunto.

O desenvolvimento da razão e a regulamentação da vida social são fundamentais neste

aspecto, pois faz com que o homem torne-se mais sociável, reconheça seu próprio valor

social, despertando seus talentos através de modos de pensar mais sofisticados. À medida que

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se desenvolvem as disposições racionais, abandona-se o instinto, ou as “ordenações

mecânicas da existência animal” como proferiu Kant.

Do mesmo modo que o caos se instaura entre os indivíduos de razão atrofiada, os

conflitos entre as nações originam as guerras que por sua vez, repercutem de forma negativa

no círculo de relação entre os estados. Diante das adversidades surge a tendência de criar um

corpo político “do qual o passado não deu nenhum exemplo” sob o propósito de preservar o

bem estar social de todos os Estados.

Por mais provável que pareça, a concepção de história universal de Kant não é uma

mera idealização do mundo (dever ser). Kant não deixa de reconhecer as possibilidades de

falhas nas representações sociais, na justiça e demais ofícios relacionados aos Estados. Mas,

ressalta que o funcionamento de um sistema coercitivo pode abarcar a própria natureza

competitiva dos homens, sua necessidade de sobresair-se em relação aos demais, ao mesmo

tempo em que preserva as convenções sociais de possíveis transgressões.

A questão central da história universal em Kant não é a idealização do mundo, mas a

consideração dos propósitos supremos da natureza sobre a ação humana. A mediação entre

estas partes é conduzida pelo desenvolvimento das potencialidades racionais do homem. A

história seria para Kant a realização efetiva dos planos da natureza. Tanto o é que segundo o

filósofo alemão se observarmos a história desde a Antigüidade (para o autor a história grega é

a primeira “ciência” histórica devido sua garantia de “autenticidade”) até o seu tempo, é

possível identificar um aperfeiçoamento da constituição política no Ocidente.

A partir do conceito de “interesse” utilizado no domínio da estética, Kant embasou

uma epistemologia para as ciências até então ignorada. Desde então, a relação entre o objeto e

o sujeito do conhecimento foi reconsiderada. Pois o objeto não é outra coisa se não uma

representação da realidade que depende do sujeito do conhecimento para existir e, portanto,

não existe em si. Neste sentido, Kant propôs que o sujeito (homem) deveria parar de girar em

torno do objeto para tomar sua posição central. Segundo Abbagnano existem interpretações

recorrentes de que o sujeito ao qual Kant se refere também pode ser entendido por ciência e é

em torno de seus métodos que o objeto (posicionado em sua periferia) deve estar.

Pois tal qual representa um fragmento da realidade ao propor o objeto de uma ciência,

o homem constrói os seus métodos, portanto seu papel é fundamental para a produção

científica. Em certo sentido, esta inversão na ordem do conhecimento traz para a história uma

nova perspectiva, pois coloca o historiador como um produtor de conhecimento que é capaz

de selecionar e interferir sobre o seu objeto de pesquisa.

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Neste aspecto, Kant se distingue tanto das concepções apriorísticas da ciência

cartesiana, quanto do procedimento dos cientistas naturais experimentalistas baseados na

observação e na constatação dos fatos naturais.

No entanto, Kant não chegou a segregar o estudo da história ou do homem em geral do

estudo da natureza. Ao contrário, o grande filósofo do Iluminismo alemão acreditava que as

ações humanas, tais quais os fenômenos, são determinadas por leis naturais e universais. Por

conseqüência disto, compreendia a história como um desdobramento de um propósito da

natureza segundo o qual estão determinados todos os atos dos homens.

2.2 Caracterizações Gerais do Iluminismo

Por Iluminismo se pode compreender uma linha filosófica que pretendeu estender a

razão como crítica e guia a todos os domínios da experiência humana. Toda crença e qualquer

tipo de conhecimento é suscetível à crítica, segundo os pressupostos filosóficos do

Iluminismo. Neste sentido, o conhecimento aí produzido está suscetível à crítica, ao passo que

inclui e ordena os instrumentos para sua própria correção. A aplicação deste conhecimento

realizado nos padrões iluministas almeja atingir o aperfeiçoamento da vida privada e social do

homem.

De modo geral, o recorte temporal atribuído ao Iluminismo vai desde a metade do

século XVII aos últimos decênios do século XVIII. Esse período também é comumente

chamado de século das Luzes. E é exatamente a passagem do século XVII para o XVIII que

está em foco neste capítulo. Alguns estudiosos do período em questão destacam no interior do

Iluminismo, o movimento da “Ilustração”.

Este é o caso de Schlette:

Desde o século XVIII, o termo ilustração é usado para designar uma transformação social, cultural, política e filosófica diferenciada, por meio da qual uma nova forma da autocompreensão e da compreensão do mundo substitui a anterior. A metáfora da luz que se expressa no termo ilustração – bastante claro também em enlightment, les

lumières, ilustracción - indica uma nova consciência e elevadas expectativas. Depois de uma era da “escuridão”, do “obscurantismo”, da ignorância e da falta de liberdade, pretende-se inaugurar uma nova era de verdadeira humanidade sob o signo da “razão” e da “natureza”, da “autonomia” e da “liberdade”. (SCHLETTE, 2003, p. 147)

Considerando a Ilustração no interior do Iluminismo, é um pouco difícil encontrar

divergências entre estes conceitos, que na verdade, parecem ser complementares. No entanto,

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o sentido aqui atribuído ao termo Iluminismo (e em seu seio a Ilustração) refere-se à

capacidade humana de conhecer, compreender e julgar através da razão. Parte do princípio

básico da confiança na razão enquanto instrumento capaz de promover a crítica das questões

relativas à sociedade e a natureza.

Mas, o sentido que se atribui ao Iluminismo nem sempre foi o mesmo e nem é um

consenso entre os seus estudiosos. Ernst Cassirer em “A Filosofia do Iluminismo” encaixa o

movimento iluminista no corte cronológico correspondente ao século XVIII tomando a França

como cenário principal de seu desenvolvimento. A partir daí, discorre sobre as correntes

intelectuais e os expoentes do pensamento que deixaram suas marcas na filosofia, metafísica,

ciência, teoria do Estado, enfim, nas formas características de ver e compreender o mundo.

Sobre o “espírito de análise”, a tendência predominante do pensamento do século

XVIII, Cassirer afirma que, “na verdade, a França era a pátria, a própria terra clássica da

análise desde que Descartes consumara a reforma, a transformação radical da filosofia.”

(CASSIRER, 1994, p.50)

No livro “As Razões do Iluminismo”, Sérgio Paulo Rouanet compreende por

Iluminismo uma “tendência intelectual” que não teria um corte cronológico fixo, isto é, “não

limitada a qualquer época específica”. Segundo o autor, trata-se do momento em que o

homem iniciou o combate ao mito através do uso da razão. Rouanet prossegue, “nesse

sentido, o Iluminismo é trans-epocal, que cruza transversalmente a história e que se atualizou

na Ilustração, mas não morreu com ela, nem se extinguiu no século XVIII”. (ROUANET,

1987, p. 28)

A par das divergências, é importante salientar que as variadas interpretações em torno

do Iluminismo tendem a confluir no sentido de apontá-lo como um divisor de águas no modo

de pensar e conceber a natureza e o mundo dos homens.

Na realidade, existiram iluminismos, a depender do corte cronológico ou do espaço

selecionado. Por isso, quando falamos em um Iluminismo, involuntariamente acessamos o

senso comum que nos leva a pensar em um bloco histórico, ou seja, em um processo uniforme

radicado na França e daí desmembrado para toda a Europa e que culminou com a Revolução

Francesa. Na realidade, o Iluminismo é muito mais complexo que esta noção, e muito mais

diversificado.

Movido pelo interesse de referenciar a cronologia e a geografia do Iluminismo, o

historiador italiano Franco Venturi buscou, com efeito, apresentar uma dinâmica própria deste

movimento na França. Identificou a força e intensidade da circulação das novas idéias que

iam do ambiente cosmopolita de Paris às redondezas e extremidades dos países do continente

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europeu, e mesmo nos Estados Unidos, sem deixar de considerar a velocidade e as condições

sob as quais estas eram recepcionadas.

Deste modo, o Iluminismo na Grã-Bretanha, especialmente na Escócia, era adaptado a

sua própria realidade local, enquanto que o Iluminismo norte-americano, por exemplo, não

chegou a efetivar rigorosamente o corte entre razão e religião realizado por Voltaire, ou

mesmo por Kant. Segundo Venturi, a Inglaterra da década de 50 do século XVIII, apresentava

uma vida intelectual e política agitada, e Hume publicava seus ‘Ensaios’. Em contrapartida

não dispunha da força que o movimento tinha em Paris, com sua capacidade de atuação

política e possibilidade de estabelecer novas organizações sem exemplos no passado.

Na Prússia, Venturi afirma que o Iluminismo vinha de cima para baixo, mediante as

reformas instituídas pelo absolutismo esclarecido que concediam espaço aos filósofos, como

experimentou pessoalmente Voltaire. Nos anos da década de 60 do século das Luzes, Carlos

III da Espanha impulsionou um processo de modernização que não muito tarde esbarraria em

obstáculos como a religião entre outros aspectos da tradição do povo espanhol.

Na Áustria, a despeito do crivo da censura, vem à tona uma nova abordagem sobre as

relações entre Iluminismo e reforma através da ‘Deutsche Gesellschaft’ nos primeiros escritos

de Sonnenfels.

Ainda neste mesmo decênio (em 60), na Itália, os ‘Lezioni di commercio’ (Lições de

comércio) de Antonio Genovesi davam fôlego as reformas encaminhadas em Nápoles que

serviram de estímulo a toda a região da Toscana. Na virada da década de 40 para a década de

50 dos Setecentos, a produção dos enciclopedistas era acompanhada por toda a Europa. Na

região da Toscana, o ‘Giornale dei letterati publicato in Firenze’ (o Jornal dos literatos

publicado em Florença), de acordo com Venturi, especificamente a partir de 1747, passou a

dispor de um excelente serviço de informação sobre a ‘Encyclopedie’.

Porém, para compreender o lugar de Vico e sua noção de conhecimento histórico neste

trânsito de idéias, é preciso nos voltar às principais vertentes que marcaram a epistemologia

das ciências ao longo do Século: o racionalismo cartesiano e o empirismo. Mais adiante, o

pensamento de Vico será confrontado com estas duas correntes já familiares ao autor quando

publicou sua última versão da Ciência Nova em 1745. Neste propósito, o corte cronológico do

presente trabalho prioriza o momento de passagem do século XVII até a primeira metade do

século XVIII.

Antes de dar início à discussão epistemológica do Iluminismo centrada nos pilares do

racionalismo cartesiano e do empirismo, é necessário analisar brevemente o momento anterior

de desenvolvimento da ciência iluminista.

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2.3 O Desenvolvimento da Ciência Moderna

O autor italiano Paolo Rossi ressalta o renovamento da história da ciência insuflado a

partir do conceito de “obstáculos epistemológicos” desenvolvido pelo filósofo francês Gaston

Bachelard na década de trinta do século XX.

De acordo com Rossi, este termo:

Faz referência àquelas convicções (deduzidas tanto do saber comum, como também do saber científico) que tendem a impedir toda ruptura ou descontinuidade no crescimento do saber científico e, por conseguinte, constituem obstáculos poderosíssimos para a afirmação de novas verdades. O tipo de perguntas que Bachelard se colocava contribuiu para a renovação da história da ciência e para transformá-la, a partir de um “festivo elenco de descobertas”, em uma história dos percursos difíceis da razão. (ROSSI, 2001, pp. 29-30).

Na verdade, Bachelard alerta para o problema de pensar a história da ciência sob a

perspectiva de uma falsa continuidade histórica que desconsidera as dificuldades que

trouxeram o advento de novas teorias e descobertas para o velho mundo europeu.

Considerando a idéia de Bachelard de “obstáculos epistemológicos” é possível

perceber o surgimento da ciência moderna como um período tumultuado, marcado por

rupturas no pensamento e na cultura européia e por outro lado, pela resistência à mudança e

apego à tradição. Não é à toa que comumente se refere à passagem do século XVI para o

XVII por “Revolução Científica”. E neste bojo de acontecimentos, temos a eclosão da

Reforma Protestante (representando a ruptura do mundo cristão), e subseqüentemente a

Contra-Reforma (a resposta da Igreja Católica às transformações do período).

Neste contexto, o termo “revolução”, “justamente empregado” segundo Rossi, em

parte corresponde a um mito construído pelos iluministas para diferenciar a passagem entre a

obscura Idade Média e a Renascença iniciada pelos humanistas, considerados como os

próprios redentores da cultura e ciência do gênero humano. Deste modo, o passado da Idade

Média é rejeitado em prol de algo novo que surge e se apresenta como o fulcro do progresso

científico da modernidade.32

32 Atualmente o problema do saber na Idade Média já foi desmistificado a partir de estudos mais minuciosos do período que vem se realizando desde meados do século XIX. Alguns grandes trabalhos referentes a este tema são o de: ECO, Humberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Editora Record, 1986; LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003; GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1987.

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Sobre a idéia de progresso científico, Rossi proferiu:

A idéia de progresso e a concepção do saber científico de que tal idéia depende nasceram na Europa no momento em que uma enorme quantidade de descobertas vinha modificar profundamente o modo de viver e pensar dos homens, dando a impressão, vivíssima nas palavras de Campanella, de um novo impulso do homem que coincide com uma aceleração da história: há “mais história em cem anos do que teve o mundo em quatro milênios; e se fizeram mais livros nestes cem anos do que em cinco milênios; e as maravilhosas invenções do ímã e imprensa arcabuzes, grandes sinais da união do mundo”. (ROSSI, 2000, p.64).

Ao citar Campanella, Rossi está enfatizando o entusiasmo de um homem que

vivenciou o momento da Revolução Científica. Esta revolução (1500-1600) como se sabe

atingiu todos os campos da ciência, bem como suas técnicas de investigação, as finalidades ou

metas que os próprios cientistas estabeleciam para si.

O entrelaçamento entre a ciência e as “artes mecânicas”, desde a Renascença

fomentou o desenvolvimento da filosofia mecânica, difundida primeiramente na matemática e

na física, e que logo também seria o pressuposto para pensar o funcionamento do mundo

humano durante o Iluminismo.

No entanto, mesmo que sejam feitas as ponderações acerca da visão iluminista com

relação ao problema do saber na transição para a modernidade, os êxitos desta Revolução

Científica não podem de maneira alguma ser negligenciados.

Além de seus avanços e contribuições ao progresso da própria ciência e tecnologia,

representou a interrupção de um modelo de saber hermético, ou sacerdotal. Desde aí, o

conhecimento se tornara acessível a todos os homens e não era mais apreendido como uma

revelação transcendental que só a poucos podia anunciar-se.

Paolo Rossi, por sua vez se dispõe a apontar algumas descontinuidades entre a

nascente ciência moderna e a tradição científica medieval: 1) idéia de natureza; 2) idéia de

experiência; 3) o saber científico moderno (analogia com a exploração de um novo

continente); 4) afirmação da figura do inventor (até então o saber escolástico só reservava

lugar para a figura do mestre e discípulo); 5) preocupação com o rigor metodológico33.

Não obstante, a crença de que todos os homens eram igualmente dotados da mesma

capacidade de raciocinar e refletir acerca de todas as coisas surge com os fundadores da

ciência moderna. Esta convicção está presente em muitos filósofos e cientistas do porte de

René Descartes, Marin Mersenne, entre tantos outros.

Na primeira parte do “Discurso do Método”, Descartes identifica em todos os homens

as mesmas disposições racionais:

33 Sobre esta discussão conferir ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru, SP: EDUSC, 2001, pp. 17-18.

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O bom senso é, das coisas do mundo, a mais bem dividida, pois cada qual julga estar tão bem dotado dele, que mesmo os mais difíceis de contentar-se em outras coisas não costumam desejar tê-lo mais do que já têm. E não é verossímil que todos se enganem a este respeito; pelo contrário, isso evidencia que o poder de julgar bem e distinguir o verdadeiro do falso, isto é, o que se denomina bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens. (DESCARTES, 2002, p.21).

Neste mesmo sentido, Rossi retoma as palavras de Mersenne:

Somente naquele contexto podia nascer a expressão de Marin Mersenne que, referindo-se aos Índios canadenses e aos camponeses do Ocidente, afirmava que “um homem não pode fazer nada que outro homem não possa igualmente fazer e que cada homem contém em si próprio tudo o que é preciso para filosofar e para raciocinar a respeito de todas as coisas”. (ROSSI, 2001, p. 13).

Para os grandes pensadores do séc. XVI e XVII a exemplo de Francis Bacon e René

Descartes o problema da ciência não era causado por nenhuma insuficiência do intelecto

humano em si, mas sim pelo modo como educamos nosso espírito para conhecer a verdade. E

aí estaria o problema do método: orientar o pensamento e educar o intelecto humano, visando

seu próprio progresso.

Se todos os homens têm a mesma capacidade natural de conhecer as coisas a sua volta,

cabe a ciência através de um método apontar um percurso que nos direcione para o

conhecimento verdadeiro, capaz de transformar nossa realidade de maneira positiva.

Com este ímpeto apontaram-se variados métodos dentre os quais obtém maior

destaque no presente trabalho o da ciência cartesiana e a sua crítica através de Vico. Nestes

termos a ciência moderna foi anunciada a partir da introdução do modelo do século XVI.

O conhecimento produzido nos moldes deste novo padrão deveria tornar-se público,

aberto a discussão e avaliação de suas proposições verdadeiras. Em outras palavras, estava

suscetível ao juízo crítico, e suas demonstrações poderiam ser contestadas no sentido de

aperfeiçoá-lo tendo em vista o melhoramento da vida privada e social do homem. A ciência

iluminista dá continuidade a este conceito de conhecimento ajustável.

Também é preciso pontuar a relação que a ciência mantém aqui com o progresso

técnico. O contexto da Renascença é tempo de descobertas que alteraram tanto o mapa do

mundo, a partir do contato com novas terras e povos, quanto do céu (os avanços da

astronomia).

Não fosse, por exemplo, a descoberta da “agulha de marear” (como Bacon chamou o

que hoje conhecemos por bússola) que foi muito utilizada para governar os navios em suas

longas jornadas, talvez não tivesse Colombo realizado o trajeto que velejou. Tampouco, se

não fosse a invenção do astrolábio, a posição dos corpos celestes ainda seria concebida em

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torno de nosso planeta, conforme a astronomia pré-copernicana, e certamente a orientação das

navegações de Colombo não o teriam conduzido ao novo mundo.

Acerca de “novos inventos”, Francis Bacon exaltou:

Vale também recordar a força, a virtude e as conseqüências das coisas descobertas, o que em nada é tão manifesto quanto naquelas três descobertas que eram desconhecidas dos antigos e cujas origens, embora recentes são obscuras e inglórias. Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação. Daí se seguiram inúmeras mudanças e essas foram de tal ordem que não consta que nenhum império, nenhuma seita, nenhum astro tenham tido maior poder e exercido influência sobre os assuntos humanos que esses três inventos mecânicos. (BACON, 1999, p.97).

As invenções ou “artes mecânicas” eram consideradas como fruto do progresso

científico da modernidade. Ou, melhor ainda, indicavam a concretização deste progresso. A

idéia de utilizar instrumentos capazes de auxiliar o homem rumo a novas descobertas no

conhecimento e em seu próprio cotidiano atribuiu à ciência um valor prático.

Este “fim”, ou “objetivo” da ciência vai ser preservado no Iluminismo, quando o

sentimento de progresso alcança o seu ápice aos olhos de muitos intelectuais daqueles tempos.

Este é o caso de uma das grandes vozes do Iluminismo, o cientista D´Alembert:

O nosso século é chamado o Século da Filosofia por excelência. Se examinarmos sem prevenção o estado atual dos nossos conhecimentos, não se pode deixar de convir que a filosofia registrou grandes progressos entre nós. (...) Não obstante, a invenção e o uso de um novo método de filosofar, a espécie de entusiasmo que acompanha as descobertas, uma certa elevação de idéias que em nós suscita o espetáculo do universo, todas essas causas tiveram que excitar nos espíritos uma viva fermentação. Essa fermentação, agindo em todos os sentidos por sua natureza, envolveu com uma espécie de violência tudo o que se lhe deparou, como um rio que tivesse rompido seus diques. (D´ALEMBERT apud CASSIRER, 1994, p.20).

Embora a imputação de um valor prático, ou de uma utilidade ao conhecimento

continue fazendo parte do projeto da ciência iluminista, ao longo do Iluminismo os

intelectuais seguiam uma meta ainda maior: assegurar a felicidade do gênero humano através

do uso da razão crítica. Neste sentido, trabalharam para ampliar a crítica racional para outros

domínios que até então lhe estavam vedados.

De acordo com o autor italiano Nicola Abbagnano até a filosofia cartesiana o

raciocínio crítico era restrito aos campos da ciência e metafísica. O Iluminismo teria então

extrapolado estes limites garantindo os novos domínios da política e da religião.34

Naturalmente a ciência era levada ao tribunal da razão dos iluministas para que suas

“falhas” fossem retificadas no sentido de atender às exigências do novo espírito crítico e das

34 Sobre o seguinte tema conferir, ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.535.

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emergentes teorias do conhecimento. Mas, embora o conteúdo fosse reformulado, a forma era

preservada de modo a garantir a continuidade do progresso que nasceu junto com a ciência

moderna.

Foi no decorrer desta aura de transformação da ciência, que agora se queria fazer

pública, flexível, verificável, progressiva e favorável ao bom funcionamento da sociedade

humana, que o velho mundo medieval europeu começou paulatinamente a ruir. Ao passo que

se afrouxavam as rígidas estruturas hierárquicas sociais oriundas da Idade Média, se abriam

espaços para a emergência do homem enquanto “indivíduo”.

Neste sentido, a idéia de indivíduo estava ligada à natureza humana e suas

potencialidades. Restituir o homem à sua totalidade e buscar compreendê-lo em seu mundo,

que é o da natureza e o da história: eis o desafio dos humanistas. Esta postura não deixou de

ser uma reação à mentalidade medieval em que se afirmava a dualidade do homem, ou seja, a

existência de polaridades antagônicas como, por exemplo, a alma e o corpo a essência e a

aparência, o mal e o bem.

A despeito disso, o Humanismo defendeu a idéia de continuidade entre o corpo e o

espírito, destacando o papel central do homem na natureza e o destino de que é portador e o

habilita a dominá-la. Este movimento valorizou o estudo das letras clássicas, humanitas.

Nicola Abbagnano apresentou as humanitas como o “reconhecimento do valor

humano das letras clássicas”:

É por esse aspecto que o Humanismo tem esse nome. Já na época de Cícero e Varrão, a palavra humanitas significava a educação do homem como tal, que os gregos chamavam de paidéia eram chamadas de “boas artes” as disciplinas que formam o homem, por serem próprias do homem e o diferenciarem dos outros animais. As boas artes, que ainda hoje são denominadas disciplinas humanísticas, não tinham para o Humanismo valor de fim, mas de meio, para a formação de uma consciência realmente humana, aberta em todas as direções, por meio da consciência histórico-crítica da tradição cultural. (ABBAGNANO, 2000, p.519).

No esforço de buscar as origens históricas da própria tradição cultural italiana e

européia, os humanistas adquiriam a consciência da própria historicidade dos homens e de

seus vínculos com o passado. Neste aspecto, a filologia foi crucial para a realização dos

estudos históricos, pois não só permitiu uma reconstituição mais próxima do sentido original

dos textos, como possibilitou identificar o autêntico significado poético, filosófico e até

religioso destes mesmos.

No afã de descobrir a verdadeira face da Antigüidade clássica, os humanistas retornam

aos clássicos que haviam sido cristianizados quando não ocultados pela escolástica medieval.

Sobre isto, Bertrand Russell declarou:

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Observa-se nas artes e nas ciências um renascer do interesse pela cultura secular dos antigos, que marca a ruptura com as tradições clericais da Idade Média. Enquanto a cena medieval esteve dominada por preocupações relativas a Deus, os pensadores do Renascimento se interessaram mais pelo homem. (RUSSELL, 2003, p.270).

Ainda sobre a tradição que os humanistas buscaram recuperar e adotar como modelo

de investigação para o nascente fazer científico da modernidade, Russell acrescentou:

Na essência, a concepção gerada pelo avanço da investigação científica é, mais uma vez, a dos gregos. Fazer ciência é salvar as aparências. A autoridade que estas tradições adquirem difere inteiramente do dogmatismo com que, na época medieval, a Igreja tentara impor o seu domínio sobre os homens. (RUSSELL, 2003, p.271).

Neste ponto há uma discrepância entre a relação do Renascimento com a tradição e do

Iluminismo com a tradição. No caso da Renascença, era necessário destilar o verdadeiro

significado dos clássicos das distorções e da censura da Igreja Católica.

Enquanto no caso do Iluminismo, esta tradição já estava mais visível (graças ao

esforço dos humanistas) e sua repetição exaustiva significava um entrave à realização do

progresso nas ciências e na filosofia.

Acerca do espírito crítico do Iluminismo Abbagnano afirmou:

A atitude crítica do Iluminismo está bem expressa em sua resoluta hostilidade à tradição. Na tradição, o Iluminsmo vê uma força hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que é sua obrigação destruir. Aquilo que impropriamente tem-se denominado anti-historicismo iluminista na realidade é antitradicionalismo: a r ecusa em aceitar a autoridade da tradição e de reconhecer nela qualquer valor independente da razão. (ABBAGNANO, 2000, pp. 535-536).

O Iluminismo enxerga na tradição a morada de todos os erros e preconceitos que

precisam ser expurgados do conhecimento em geral. Este posicionamento com relação à

tradição é fruto de uma ampliação do uso crítico da razão e remonta a uma tendência de

questionar tudo aquilo que nossos antepassados nos legaram como verdades e que até então

reproduzíamos de forma ascética. Tanto a tradição secular dos antigos quanto a tradição da

filosofia medieval estavam passíveis à crítica perante a atitude filosófica do Iluminismo.

No que se refere à ciência, o “antitradicionalismo” adotado pelos intelectuais

iluministas de uma forma ou de outra, não deixa de ser uma estratégia que visa confirmar a

continuidade do progresso da ciência moderna, livrando quaisquer obstáculos.

No entanto, é na efervescência cultural dos séculos XVI e XVII que vêm à tona novas

leituras de Aristóteles e Platão, especulações naturalistas advindas da astrologia, da alquimia,

do uso da magia, etc. Aqui, conhecer a natureza e se conhecer como parte desta é uma tarefa

fundamental.

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E é sobre esta perspectiva que se dão as prévias da ciência moderna: sobre a força das

especulações naturalistas que compreendem a figura humana no centro da própria natureza.

Neste período destacam-se as obras de Campanella, Giordano Bruno e Telésio.

A religião cristã, tampouco esteve isenta dos efeitos desta Revolução Científica. O

desenvolvimento da tipografia35 contribuiu para o aumento da produção de livros, incluindo a

Bíblia. Com a possibilidade de acesso cada vez mais livre aos textos bíblicos, surgem novas

interpretações, nem sempre convergentes com às da Igreja Católica. Junto a isto, as acusações

de venda de indulgências36 e de simonia37 alimentaram os ânimos de revolta contra a

corrupção dos clérigos.

Estes fatores unidos à pressão exercida por uma nova ética religiosa, além das próprias

cisões internas da Igreja, fomentaram a criação de novas correntes religiosas em seu próprio

seio e pouco mais, fora dele. A ruptura do mundo cristão e o nascimento do Protestantismo

marcaram o ápice deste processo histórico.

É importante perceber o papel da Reforma e mesmo da Contra-Reforma no contexto

da Renascença para compreender de que forma estas influenciaram a prática científica a ser

desenvolvida daí adiante. A ética do protestantismo emergente por um lado, impulsionou o

desenvolvimento da produção científica contraponteando a atitude dos tribunais inquisitoriais

e o Index da Igreja Católica, e por outro, contribuiu para uma construção da nova imagem de

Deus.

A palavra “descobrimento” estava na ordem do dia do léxico da Renascença. Pois, a

descoberta de novas rotas marítimas em especial do “Novo Mundo” e o contato com povos

desconhecidos até então trouxe a idéia do novo como meta para o panorama filosófico e

científico da modernidade.

A idéia de descoberta implica em tomar conhecimento de algo que existe naturalmente

e ainda não havia sido experimentado pelo gênio humano. Contribuiu para conceber o

universo como um todo obediente a uma ordem que pode ser conhecida e revelada como o

conhecimento da própria criação de Deus.

35 Processo de impressão realizado com tipos móveis de metal. Na Europa, a invenção da composição por tipos móveis coincidiu com outra, a técnica de imprimir ilustrações com chapas de metal gravadas. Originária do vale do Reno e do norte da Itália, na década de 1450, ela também ajudou a propagar o conhecimento na época da Renascença e viria a desempenhar um papel especial em alguns campos científicos. RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência da Universidade de Cambridge, volume III: da Renascença à Revolução Científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 36 Clemência, perdão ou remissão dos pecados. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 11ª ed., Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1967, p. 669. 37 Tráfico criminoso de coisas santas ou espirituais, como sejam os sacramentos, dignidades, benefícios eclesiásticos, etc.; venda ilícita de coisas sagradas. Idem, p. 1114.

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Isto é, conhecer o universo através da ciência é também conhecer o trabalho do

criador. Desta forma, a curiosidade humana de conhecer o seu entorno não é mais tema de

embate religioso, pois o conhecimento do cosmo é inerente ao conhecimento da obra divina.

A nova imagem de Deus, como “construtor” ou “relojoeiro” do universo suscitou

diversas interpretações acerca da natureza da ordem que mantém o mundo em funcionamento.

No auge do Iluminismo a composição e funcionamento deste “todo” correspondente à obra

divina teve destaque especial nos modelos formulados por Newton e Leibniz.

O primeiro colocou de ponta-cabeça o uso da razão como via única de acesso a um

conhecimento preciso e verdadeiro. Em contraponto a Descartes, Newton apresentou “Os

Princípios Matemáticos da Filosofia Natural”, onde opta pela tradição baconiana do

experimentalismo como alternativa ao racionalismo, assumindo a dúvida (hipótese) em vez da

certeza assegurada por deduções lógicas. O modelo newtoniano sistematizou e introduziu um

novo padrão metodológico para a filosofia e ciência iluministas, impulsionando-as em direção

ao ideal de progresso.

Leibniz por seu turno, refutou o credo na compreensão da totalidade do mundo

baseada em sua redução a uma simples soma de partes, colocando no lugar disto a

importância de conceber o todo a partir de sua própria totalidade.

De acordo com Leibniz, este não é o caso de subordinar o particular ao universal, ou

vice-versa, uma vez que um está implícito no outro. Estes são complementares, convivem

harmonicamente e estabelecem relações íntimas de causa e efeito entre si. Aqui a totalidade

deixa de ser compreendida nos moldes da mecânica para ser representada na qualidade de

“orgânica”.

Diante destes exemplos pode se perceber que o Iluminismo traz consigo um novo

espírito de descoberta. Mas, nem todos os cientistas e filósofos do período estão unânimes

quanto aos métodos a serem seguidos pelo espírito humano que levam a um conhecimento

seguramente verdadeiro.

Contudo, a variedade de caminhos apontados neste contexto extrapola a relação do

homem com o mundo, e questiona a natureza e o poder de seu próprio pensamento. Em outras

palavras, o pensamento iluminista preocupa-se em consolidar-se e saber onde vai chegar.

Há uma preocupação fundamental acerca de seu próprio sentido e de como deve

dirigir seu próprio curso. Neste sentido, para que se desenvolva a partir de rédeas próprias, o

projeto iluminista coloca em primeiro plano a necessidade de expansão do saber e o controle

dos rumos que tomará esta expansão.

Sobre este programa do Iluminismo, Ernst Cassirer declarou:

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Todas as energias do espírito permanecem ligadas a um centro motor comum. A diversidade, a variedade das formas é tão-só o desenvolvimento e o desdobramento de uma força criadora única, de natureza homogênea. Quando o século XVIII quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza recorre ao nome de “razão”. A “razão” é o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações. (CASSIRER, 1994, p. 22).

A confiança na razão proveniente do racionalismo cartesiano triunfante no século

XVII é o ponto de partida para o encantamento com a razão no Século das Luzes. Na

passagem do século XVII para o XVIII a exigência de unidade do racionalismo em toda

forma de conhecimento é preservada e ampliada pelo Iluminismo na formulação de sua teoria

do conhecimento. Mas este processo não ocorre sem contestações, e sem contrapropostas.

Segundo Cottingham:

Na teoria do conhecimento de Descartes todas as verdades primárias são percebidas diretamente por meio da visão mental direta, que ele denomina intuição. Além da intuição, entretanto, há um outro modo de conhecer, a saber, a dedução, “pela qual entendemos toda inferência necessária a partir de outras proposições conhecidas com certeza” (Regulae, Regra III). Descartes prossegue explicando que “muitos fatos, sem serem imediatamente evidentes, são conhecidos com certeza, bastando, para isso, que sejam inferidos de princípios verdadeiros e conhecidos, por meio de um movimento contínuo e ininterrupto de pensamento”. (DESCARTES apud COTTINGHAM, 1995, p.48).

A forma de conhecer orientada pelo cartesianismo parte do estabelecimento de

verdades prévias que induzem ao conhecimento de verdades mais complexas através da

possibilidade das deduções lógicas. A princípio, o Iluminismo credita esta teoria do

conhecimento, mas não tarda para que críticas lhe sejam direcionadas na voz de cientistas da

estirpe de Newton e de Locke.

Em contraposição a Descartes, os empiristas propõem como princípio motor de todo

conhecimento a dúvida metódica. Em vez de validar previamente alguma verdade, estes

cientistas vão partir da verificação daquilo que se apresenta como verdadeiro. A partir de uma

experimentação pode-se então constatar a plausibilidade do que se busca conhecer.

Sobre a diferença entre o método de Descartes e o de Newton, por exemplo, Rossi

destaca:

Ao contrário de Descartes, Newton apresentava em linguagem matemática os princípios da filosofia natural e ao mesmo tempo tornava própria a lição da tradição do experimentalismo e assumia como constitutiva do método científico a desconfiança – que foi própria de Bacon e dos baconianos – pelas hipóteses sem conexões com a evidência empírica. (ROSSI, 2001, pp. 387-388).

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Ao mesmo tempo em que acolhe a fé na razão cartesiana, o Iluminismo questiona o

alcance desta mesma. O empirismo (na figura de pensadores como Locke e Newton)

apresenta suas desconfianças diante das pretensões cognoscitivas do homem.

Os empiristas invertem a ordem da razão alegando a relevância primeira de

constatação e observação dos fatos para depois construir uma verdade que não é auto-

evidente, mas que parte da dúvida.

Todas essas permanências e mudanças no pensamento iluminista dão continuidade as

vicissitudes que acompanharam o espírito do mundo moderno e se refletiam na realidade

concreta daquele período histórico. No momento em que a razão crítica perde seus freios e

rompe as amarras da política e da religião muitas são as repercussões na realidade social,

política e econômica da Europa que ganham proporções distintas em ritmo e em lugares

diferentes.

A Reforma religiosa na Inglaterra, por exemplo, contribuiu para que dois terços das

riquezas fundiárias até então pertencentes à Igreja Católica fossem confiscadas pelo Estado.

Isto fez com que emergisse uma pequena nobreza fundiária que estava atrelada a atividades

econômicas florescentes.

Foi justamente a consolidação deste novo grupo econômico e social que garantiu

sustentação ao regime absolutista inglês. Francis Bacon era um representante desta nova

camada social e suas lutas políticas também eram as de seu extrato sócio-econômico. Tendo

vivido de 1561 a 1626, Bacon presenciava o amanhecer de uma nova Inglaterra e plantava as

sementes de um pensamento que mais tarde inspiraria a obra de John Locke e Newton.

Descartes, por sua vez, suscitou muita polêmica com a difusão de sua doutrina.

Segundo Rossi, o ensinamento de seu sistema filosófico foi proibido na universidade

holandesa de Utretch no ano de 1642, e em 1647, chegou a ser acusado de pelagianismo, ou

heresia.

Antes disso, em 1633 no mesmo ano da condenação de Galilei, seu livro foi colocado

no Index de livros proibidos pela Igreja Católica. Estes acontecimentos reforçam a tese de

Paolo Rossi de que a ciência moderna nasceu fora das universidades, à margem da cultura

oficial.

Caracterizando Descartes neste contexto de exclusão institucional da ciência nascente,

Paolo Rossi afirmou: “Assim, como foi escrito a seu respeito, ele foi um revolucionário que

não queria ser qualificado como tal; desejava, portanto evitar o conflito com a filosofia

oficial, conseguindo fazê-lo muito bem sem jamais comprometer o seu próprio ponto de

vista”. (ROSSI, 2001, p.200).

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Sobre o nascimento da ciência moderna na Europa, Rossi enfatizou:

A ciência moderna não nasceu na tranqüilidade dos campus ou no clima um tanto artificial dos laboratórios de pesquisa ao redor dos quais, mas não dentro deles (como acontecia desde séculos e ainda acontece nos conventos) parece escorrer o rio ensangüentado e lamacento da história. E isso por uma simples razão: porque aquelas instituições (no que concerne aquele saber que denominamos “científico”) não tinham nascido e porque aquelas torres de marfim, utilizadas com tanto proveito e tão injustamente insultadas no decorrer do nosso século, não tinham sido ainda construídas pelo trabalho dos “filósofos naturalistas”. (ROSSI, 2001, p. 09).

O autor italiano defende que a ciência moderna só vem a consolidar-se como uma

atividade social organizada a partir do curso do século XVII em diante, quando já está apta

para criar suas próprias instituições. O Iluminismo é o momento em que por fim, esta se

encontra em vias de institucionalização.

Analisar este difícil e árduo processo não é o foco deste trabalho, mas é preciso levá-lo

em conta para avaliar a vigência do triunfo do cartesianismo até o seu declínio destacando a

contribuição da crítica viquiana para tal.

2.4 A Ciência Predominante

O sistema cartesiano (principal corrente intelectual nos primórdios do século XVIII)

ofereceu o modelo a partir do qual a ciência iluminista se desenvolveu. Manteve-se como

padrão hegemônico até a primeira metade do Século das Luzes, quando perdeu fôlego para o

sistema newtoniano.

Neste tópico, a ênfase é dada especificamente em Descartes, não apenas pelo

reconhecimento de seu lugar de relevância para o Iluminismo e para a ciência moderna, mas

porque foi justamente contra as teses cartesianas que Giambattista Vico se confrontou.

2.4.1 Descartes

A partir do século XVII, a noção de sistema filosófico, consiste em um discurso

organizado na forma de uma totalidade cujas partes provêm umas das outras. Neste sentido,

os princípios elucidam as razões do discurso de forma dedutiva, com efeito, produzem

verdades correlatas, entre si e aos seus princípios fundadores. Está aí implícita, uma forma de

filosofar subordinada a um procedimento matemático: a busca de unidade na multiplicidade

do conhecimento gerado em torno da mesma idéia central.

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O cartesianismo ilustra adequadamente o ideal de sistema filosófico seiscentista e

mesmo setecentista. Em primeiro lugar, Descartes procurou alijar do conhecimento as falsas

verdades e todo o seu fundamento errôneo, baseado estritamente na experimentação do

mundo concreto. Assim, o filósofo pôde negar junto com as falsas opiniões todo o conjunto

de princípios que as ergueram.

Para Descartes, a matemática é de fato, antes de tudo, um método seguro de filosofar,

quer pela precisão de suas abstrações e resultados, quer pelos “exemplos de raciocínio

corretos” que não podem ser encontrados em outros domínios da ciência. Provido desta

metodologia, o autor se propõe a reerguer o edifício do saber sob o princípio de que as idéias

são os únicos objetos possíveis de conhecimento imediato.

Em contrapartida, o mundo fenomenológico não é inteligível ao homem sem o auxílio

primeiro da razão, pois este é o mundo do efêmero, da mudança constante, das percepções

sensíveis.

Sobre a apreensão sensível do mundo Descartes declarou: “Tudo o que recebi até o

presente como mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos; ora,

algumas vezes experimentei que tais sentidos eram enganadores, e é de prudência jamais

confiar inteiramente naqueles que uma vez nos enganaram”. (DESCARTES, 2005, p.31).

Na contramão do empirismo e da tradição baconiana Descartes apresenta a razão como

argamassa da produção e entendimento de todo o saber.

2.4.2 Racionalismo cartesiano

O termo “racionalismo” foi adotado pela primeira vez por Kant para designar sua

doutrina, bem como para referir-se aos diversos campos de sua investigação (religião, moral,

estética, etc.). Hegel por sua vez, foi o primeiro a associar o termo à corrente filosófica desde

Descartes, Spinoza até Leibniz, em oposição ao empirismo lockiano38.

É nesta segunda perspectiva que o termo racionalismo adquire sentido aqui,

justamente para caracterizar o papel da razão no sistema cartesiano em contraponto às

concepções de ciência e história no pensamento de Giambattista Vico.

No interior do sistema cartesiano a razão é identificada como uma faculdade própria

do homem, que o distingue dos outros animais. Trata-se do guia fundamental de todo o

38 Sobre esta discussão, consultar ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 821-822.

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gênero humano, existente em todos os homens, mas nem sempre orientado da mesma maneira

entre estes.

Razão é o senso do qual somos dotados, pelo qual operamos os nossos juízos e

distinguimos as idéias verdadeiras e distintas das idéias construídas sobre falsas aparências.

Enfim, é a força que liberta a realização do conhecimento dos preconceitos, da mera

perpetuação da tradição e estabelece um caractere universal para a conduta humana em todas

as suas atividades.

Em “Discurso do Método” (1637) Descartes elucidou o seu entendimento de razão:

O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, isto é, o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens. A diversidade das nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais racionais do que os outros, mas tão-somente em razão de conduzirmos o nosso pensamento por diferentes caminhos e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não basta ter o espírito bom: o essencial é aplicá-lo bem. (DESCARTES, 2002, p.21).

Mas, como educar o espírito humano? Diante desta questão Descartes hierarquizou o

exercício de pensar estabelecendo uma ordem de razões. Acompanhar esta ordem significa

capacitar o espírito para acatar ou descartar uma suposta “verdade”. Primeiramente foi

estabelecido o cogito, ou seja, a crença na auto-evidência do sujeito pensante como ponto de

partida para todas as outras evidências. O cogito toma o conhecimento da própria existência

como primeiro passo a ser dado no percurso do conhecimento das outras coisas39.

A partir do cogito Descartes distingue res cogitans de res extensa. De acordo com esta

bifurcação, há no homem uma dualidade entre “coisa pensante” e “coisa extensa”, ou

simplesmente, entre alma e corpo. Isto implica que o homem é intelecto e matéria40,

simultaneamente.

De acordo com o filósofo, a alma é mais fácil de ser conhecida que o próprio corpo,

considerando sua posição primeira “na ordem da descoberta analítica”. Neste caso, o bom uso

da razão é apresentado ao homem como veículo para desligar-se do mundo cotidiano e

transcender os limites do conhecimento meramente sensível (proporcionados por seu corpo)

para o plano sofisticado das abstrações.

Partindo do cogito e validando as idéias presentes no pensamento como possibilidade

única de conhecimento imediato, a ordem das razões cartesianas se pretende universal e

absoluta, capaz de descobrir todas as verdades possíveis. Nesta hierarquia os princípios

39 Cogito ergo sum quer dizer, “Penso, logo existo”. COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p.37. 40 Partindo da idéia de matéria Descartes propõe sua empreitada de reconstrução racional e completa do mundo físico. Pode se perceber que na concepção de Descartes o homem deve estimular suas disponibilidades racionais para compreender a característica definidora da matéria: a extensão ou substância corpórea. Idem, pp. 107-108.

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empiristas de observação e experimentação são dependentes da razão e só são utilizados em

última instância para complementar, ou auxiliar os resultados do exercício reflexivo.

O projeto do racionalismo cartesiano almejou atingir a universalidade mediante a

tentativa de unificação do saber. A própria vida de Descartes é um exemplo desta finalidade.

Ao longo de sua trajetória intelectual, manteve importantes contatos com a comunidade de

filósofos e cientistas de seu tempo. Sempre demonstrou interesse por diversos objetos e

atividades vinculadas a diferentes searas da ciência.

Sobre o caráter universal do conhecimento, o filósofo afirmou:

Se alguém quiser seriamente investigar a verdade das coisas, não deve escolher alguma ciência em particular, porque todas têm conexão entre si e mútua dependência; mas pense apenas em aumentar a luz natural da razão, não para resolver esta ou aquela dificuldade de escola, e sim para que, em cada uma das circunstâncias da vida, o entendimento mostre à vontade o que deve escolher; e bem depressa se maravilhará de haver feito progressos, muito maiores que aqueles que se dedicaram a estudos particulares, e, ainda, de haver alcançado não só aquilo que os demais desejam, como também coisas mais elevadas do que esperavam. (DESCARTES, 2002, p.74).

O ingenium cartesiano é o princípio universal de apreensão racional do mundo que

caminha de uma intuição simples para uma intuição composta ou dedução. As deduções

lógicas são o ponto de partida de toda pesquisa cartesiana, o a priori, ou a constatação de

alguma certeza sobre a qual o intelecto deve se nortear. Neste sentido, Descartes sugeriu “uma

educação de nossa faculdade inventiva” e com este propósito formulou regras acerca da

“identidade de natureza de todo conhecimento”.

O cartesianismo tratou de definir a natureza do conhecimento afirmando mais uma vez

sua tendência apriorística. Neste aspecto, a razão enquanto eixo sustentador de toda a teoria

cartesiana do conhecimento é a própria identidade da natureza de seu pensamento.

Não obstante, a razão crítica ou análise é o padrão de conduta ideal para o

aperfeiçoamento do espírito, de modo que, um comportamento racional permitiria a crítica do

próprio conhecimento cartesiano, no sentido de reorientá-lo, concertá-lo caso necessário. Em

seu trabalho “Regras para a direção do Espírito”, Descartes pretendeu ampliar a razão dos

grilhões da matemática para todo gênero do conhecimento. Embora a matemática seja um dos

principais pilares da filosofia cartesiana, Descartes não estava satisfeito com a situação de

exclusividade que esta disciplina detinha sobre os critérios de “certeza” e “evidência das

razões”. Decide então, apoiado no “método rigoroso da matemática”, construir uma física que

possa alargar o “campo de eficácia da razão”.

Ampliar os domínios da razão, estabelecer os princípios universais de seu uso para o

alcance do progresso científico, filosófico, histórico, em uma palavra: humano. A razão seria

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infinita para Descartes? A fé cartesiana na razão encontra seus fundamentos e limites na

existência de Deus. Na qualidade de verdade absoluta, a figura divina nos dotou com razão

para que fôssemos capazes de elucidar nossas próprias verdades.

Acerca da razão característica do século XVII, Cassirer alegou:

Para os grandes sistemas metafísicos seiscentistas, para Descartes e Malebranche, para Spinoza e Leibniz, a razão é a região das “verdades eternas”, essas verdades que são comuns ao espírito humano e ao espírito divino. O que conhecemos e do que nos apercebemos à luz da razão é “em Deus”, portanto, que o vemos imediatamente: cada ato da razão assegura-nos a nossa participação na essência divina, franqueia-nos o acesso ao domínio do inteligível, do supra-sensível puro e simples. (CASSIRER, 1994, p.32).

Por outro lado, Deus representa as fronteiras do nosso conhecimento com os domínios

do incompreensível e do incognoscível, pois sua existência transcende a própria razão, não se

põe à prova. Para o cartesianismo Deus é ao mesmo tempo a fonte e o esgotamento da razão

humana.

2.4.3 Mecanicismo

O mecanicismo pode ser entendido como uma concepção filosófica do mundo com

repercussões na elaboração da teoria científica que consiste na explicação do movimento

espacial dos corpos. Esta corrente intelectual é uma marca registrada da Revolução Científica

do século XVII que caracterizou o nascimento da ciência moderna, e contou com Descartes

como um de seus ilustres propagadores.

A idéia do universo pensado como um sistema de corpos em movimento remonta a

antiga concepção filosófica do atomismo. O mecanicismo reforça a validade desta idéia

elaborando explicações que demonstram relações de determinação e causalidade no ciclo dos

fenômenos da natureza.

Para Descartes:

É tão natural, portanto, um relógio montado com estas ou aquelas engrenagens informar a hora, quanto uma árvore nascida desta ou daquela semente produzir o fruto adequado. Os homens experientes na lida com a maquinaria são capazes de tomar uma máquina especial cuja função é conhecida, e, examinando uma de suas partes, fazer com facilidade uma conjectura acerca do desenho das partes que não podem ver. Da mesma maneira, tentei considerar os efeitos observáveis e partes dos corpos naturais para recuperar as causas imperceptíveis e as partículas que as produziram. (DESCARTES, 1995, p.103).

Adepto da filosofia mecanicista, Descartes acreditava que o universo é constituído por

peças que funcionam de forma análoga as peças de uma grande engrenagem. Considerava que

as partes constituintes do universo eram tão pequenas que não podiam ser observadas ou

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estudadas seguramente com base nos sentidos, mas a partir de abstrações. Baseado no estudo

abstrato destas partículas (sobretudo em seu movimento) introduziu elementos matemáticos

na física, desenvolvendo a área específica da “mecânica”.

Em sua obra, “O nascimento da ciência moderna na Europa”, Paolo Rossi declarou

que:

Na filosofia mecânica a realidade é referida a uma relação de corpos ou partículas materiais em movimento e tal relação pode ser interpretada mediante as leis do movimento descobertas pela estática e pela mecânica. A análise, portanto, é referida a condições mais simples e é realizada por meio de um processo de abstração de qualquer elemento sensível e qualitativo. (ROSSI, 2001, p.239).

A “matematização” da física sob o crivo do racionalismo cartesianismo deu início a

toda uma revolução conceitual desta disciplina que seria continuada por Newton, Leibniz, etc.

2.4.4 Metafísica

Em sua metafísica, Descartes buscou fundamentar um princípio que condicionasse

todos os outros princípios de seu sistema filosófico. Neste empenho, fundamentou a verdade

tomando a existência de Deus como a pressuposto de todas as verdades.

Ao estabelecer um novo critério de verdade, Descartes consolidou a razão no centro de

sua proposta de uma teoria do conhecimento. A racionalidade permitiu a distinção entre o

verdadeiro e o falso conhecimento, assim como fundou o terreno das verdades eternas e

universais. Isto significou uma reforma no conhecimento, introdução de novos métodos e de

novas teorias em todos os campos da investigação científica.

Descartes inverteu a premissa do pensamento empirista de que não há princípio inato

que possa ser validado sem qualquer verificação, sem ser posto à prova. Se para o empirismo

não existem verdades “supra-sensíveis”, inacessíveis à observação humana, para Descartes a

razão é justamente este domínio que está para além da sensibilidade e que só pode ser

conhecido em “si mesmo”, sem a intervenção dos sentidos.

Enquanto para o empirismo a verdade não é absoluta, uma vez que só pode ser

considerado verdade aquilo que está diante do controle da experiência humana, para

Descartes, a verdade é absoluta, evidente e pode ser concatenada através da razão.

É a partir deste fundamento de razão (concatenação de verdades) e de seu novo critério

de verdade que Descartes construiu a metafísica que respalda seu sistema filosófico. Se

acrescente a isto as reflexões sobre Deus, símbolo da razão absoluta, provedor da razão

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humana e, ao mesmo tempo como já foi visto no subitem sobre o racionalismo cartesiano, o

limite da razão humana.

O projeto cartesiano de unificação do saber precisava ser justificado pela elaboração

de uma metafísica capaz de coadunar as premissas do conhecimento em uma base comum a

todas as searas da ciência. Neste sentido, do ponto de vista do conhecimento, a metafísica

preconizou uma mesma identidade em todos os campos da investigação científica sob o

propósito de unificar o saber imprimindo na ciência o caráter da universalidade.

2.4.5 A noção hegemônica de história

Neste ponto estão dispostos alguns comentários relativos à noção hegemônica de

história durante o século XVII e início do XVIII, período no qual Vico produziu suas

reflexões acerca do conhecimento histórico. A partir do entendimento de história vigente

neste intervalo de tempo, é possível considerar o posicionamento de Vico com relação a estas

mesmas concepções.

De acordo com Ariès, a produção do conhecimento histórico ao longo do século XVII

consiste no exercício de um fazer contínuo, de modo que, uma obra é sempre o ponto de

partida para a próxima e assim por diante.

Nesta perspectiva, escrever a história implica em acrescentar informações sobre tudo o

que já estava posto acerca de um dado tema. A história da França escrita neste período, por

exemplo, foi desenvolvida como um compêndio de “grandes crônicas” complementares.

Havia uma preocupação em se produzir um conhecimento que narrasse os fatos, os

relatos memoráveis, sobretudo aqueles relacionados ao engrandecimento do sentimento

patriótico. Todavia, ao lado da história considerada “douta”, se fazia a história familiar, e o

gosto pelas Antigüidades e pela iconografia também demonstrava uma relação de intimidade

com o conhecimento histórico característico daquele período.

Não apenas a história teve uma forte influência da iconografia, este novo ramo da

erudição em pleno desenvolvimento na segunda metade do século XVII, mas também a

literatura, sobretudo o romance.

Muito difundido neste período, o gênero romanesco incluiu a historicidade como pano

de fundo de suas principais formas de narração: aventuras, galanteria cortês, camaradagem

cavalheiresca, etc. Não é à toa que o gênero que ficou conhecido por romance histórico,

vulgarizou a idéia de um conhecimento histórico, além de apertar os laços entre história e

literatura.

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As relações entre história e literatura são naturalmente muito mais anteriores ao século

XVII e não cabe aqui aprofundá-las. Mas, o complexo relacionamento entre o romance e a

história não encontra suas origens tão longe assim. J. M. Goulemont nos diz que em seu

começo, esta fusão em obras como “Roman d’Alexandre ou os romances bretões da Távola

Redonda” não nos permite distinguir nitidamente o romance e a história. Os elementos

romanescos pareciam ter efeito de relatos de fatos reais pertencentes a um passado específico.

Sobre o romance histórico pode-se dizer a grosso modo, que a história influencia a

elaboração dos escritos romanescos, assim como o contexto histórico do leitor também

influencia sua interpretação e leitura. No caso específico do século XVII, grande parte da

produção romanesca buscou atingir uma realidade histórica que a própria história não

conheceu. Mesmo contendo um pano de fundo histórico específico, as causas dos

acontecimentos eram narradas livremente, sem alguma preocupação factual, ou para com a

verdade histórica.

Segundo Goulemont:

No século XVIII, os teóricos não pararam de contrapor o romance à história: de um lado, a verdade e os exemplos morais, de outro, a mentira e os efeitos corruptores: o debate prosseguiria ao longo do século, entre adversários e defensores do romance, entre historiadores e romancistas. (GOULEMONT, 1993, p. 694).

Contudo, ainda no século XVII esta idéia de história vai ser posta em xeque por

Descartes. Ora, a filosofia cartesiana não comporta a contingência no interior de um sistema

dedutivo e por isso negligenciou o estudo da história sob o argumento de sua incapacidade de

precisão. E por que a história estaria livre de qualquer possibilidade de se tornar uma ciência

sob o viés cartesiano?

Porque o conhecimento do passado é incerto, impreciso, portanto, duvidoso. A história

destoa completamente do modelo de demonstrações aritméticas e geométricas louvado por

Descartes. Em outras palavras, o passado não é evidente em si mesmo, portanto está fora do

campo de criação das verdades eternas e universais.

A narrativa histórica jamais poderia ser verdadeira, quer pelo ceticismo do historiador

com relação ao passado, quer pelas “pistas falsas” que ameaçam a autenticidade dos

documentos bem como dos testemunhos históricos.

Além destes problemas, Descartes acreditava que o sujeito que se atém demais aos

acontecimentos do passado acaba deixando de prestar atenção nos acontecimentos de seu

próprio tempo.

Neste sentido, o próprio Descartes denota sua visão de história:

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Quando somos por demais curiosos pelo que se passou nos séculos passados, ficamos em geral, muito ignorantes do que se faz no presente. Além disso, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e mesmo as histórias mais fiéis, quando não modificam ou aumentam o valor das coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, pelo menos omitem quase sempre as circunstâncias mais baixas ou menos ilustres. Daí resulta que o resto não parece tal qual é, e que os que regulam os seus costumes pelos exemplos que deles extraem ficam sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos dos nossos romances e a conceber projetos que ultrapassam as suas forças. (DESCARTES, 2002, p. 24).

Entretanto, se suspendermos o caso da atitude cartesiana com relação à história, temos

um afinamento maior entre o empirismo e a possibilidade de se produzir um conhecimento

histórico. A partir da década de 40 dos Setecentos, a tradição experimentalista inglesa é

descoberta na França como um arsenal crítico direcionado ao caráter abstrato da filosofia e

das ciências sob o rigor cartesiano. O resultado desta descoberta impulsionou o surgimento de

um novo “fermento intelectual” que daria a forma ao empirismo dentro da filosofia iluminista.

Segundo Venturi, “Através da obra de Bacon, de Shaftesburury, de Berkeley, é o

pensamento inglês que encontra recepção na França.” (VENTURI, 2003, p. 221). A teoria do

conhecimento da escola de Bacon, da qual Locke e Newton foram oriundos (destaque também

para os membros da Royal Society) se orientava por um outro sentido. Na base do empirismo

estava o pressuposto de que o conhecimento deve ser alicerçado na experiência e não na

constituição de um sistema.

Além do mais, para o empirismo uma generalização só pode ser validada mediante a

apresentação de uma série de exemplos que possam lhe servir de apoio. A idéia de

experiência alimentava a curiosidade com relação ao passado e dos exemplos que se podiam

tirar dele.

Sobre este tema de um conhecimento histórico empírico Hadock afirmou que “os

ofícios de filósofo político e de historiador tinham-se fundido numa ciência do homem que

restituía à história o papel familiar de ‘ensinamento de filosofia mediante exemplos’”.

(HADOCK, 1989, p.109).

Não se pode deixar de lembrar também que desde o século XVII, os relatos das

viagens às novas terras trouxeram à tona a existência de povos, culturas e histórias até então

desconhecidas aos europeus. O contato com estes mundos inóspitos (China e Américas)

aguçou ainda mais a curiosidade com relação ao passado.

A história e as ciências do homem a partir de um esforço conjunto buscavam validar

os “novos” usos e os costumes como “leis” da natureza humana equivalentes às leis da

gravidade formuladas pela física. Diante deste desafio, o papel do historiador deve ser de

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máxima atenção às regularidades ao ponto de descrevê-las precisamente tal qual procede um

cientista natural com as observações feitas a partir da realização de uma experiência.

Segundo Ernst Cassirer, durante o Iluminismo autores como Voltaire, Montesquieu,

Diderot, entre tantos outros, usaram da crítica racional para depurar a análise dos fenômenos e

acontecimentos humanos do peso que a tradição historiográfica medieval havia depositado

sobre esta na forma de superstições e dogmas religiosos.

Neste sentido, o autor aponta para o historiador-filósofo Pierre Bayle como um

precursor do Iluminismo que ainda no final do século XVII destilou a verdade histórica dos

cânones da religião, inaugurando o que chamou de uma “historiografia profana”.

Sobre Bayle, Cassirer prossegue:

Bayle não fez muito menos pela história do que Galileu para a física. Galileu exige a independência total da física em relação ao texto bíblico para a interpretação dos fenômenos, impõe e justifica metodicamente esta exigência: Bayle abre o caminho dessa independência em história. Foi ele quem realizou, mutatis mutandis, a revolução copernicana em história. Em vez de basear a “verdade” da história em um pretenso dado objetivo imposto dogmaticamente pela Bíblia ou pela Igreja, ele retorna às fontes subjetivas, às condições subjetivas dessa verdade. A crítica das fontes históricas, que lhe serviu de ponto de partida, adquire em suas mãos uma amplitude cada vez maior até converter-se numa espécie de “crítica da razão histórica”. Nada é mais errôneo e prejudicial segundo ele, do que o preconceito de que a verdade histórica poderia e deveria ser aceita como moeda corrente, na base do crédito. Mas, pelo contrário, a missão da inteligência consiste em proceder à cunhagem da moeda e em testar cuidadosamente cada peça, antes de pô-la em circulação. (CASSIRER, 1994, pp. 279-280).

Sobre Bayle, Edgar Salvadori de Decca acrescentou:

Uma vez que a verdade histórica deveria ser buscada fora dos cânones da religião, Bayle não apenas inaugura uma historiografia profana como amplia de forma considerável o próprio campo documental do historiador. Para ele, uma vez que a verdade histórica afastava-se da autoridade da Bíblia, ela poderia ser encontrada em todos os eventos do passado mediante uma crítica rigorosa das fontes. A matéria-prima do historiador deixava de ser a documentação de caráter eclesiástico para se ampliar a todo o universo de registros deixados pelo passado. (DECCA, 1995, p.61).

A preocupação em revelar a verdade ofuscada pelos “erros” impostos à pesquisa

historiográfica tradicional foi sem dúvida, um dos objetivos de Bayle ao fazer seu Dicionário

crítico. Para isso, o historiador-filósofo apresentou sua obra na forma de uma coletânea de

erros reproduzidos até então na produção do conhecimento histórico.

Alguns autores como Cassirer e Decca acreditam que Bayle identificou como fonte de

tantas falhas a atitude de parcialidade do historiógrafo diante da escrita da história. Ou seja, a

permissão que este possui para fabricar pretensas verdades em seus relatos nos moldes de sua

própria vontade, ou interesses, quer estes estivessem atrelados à religião, à família, à política,

ao serviço do Reino, etc.

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É importante analisar que tanto em Bayle quanto em seus sucessores, a secularização

da história trouxe conseqüências muito relevantes para o desenvolvimento posterior da

historiografia moderna. Ao sugerir ao pesquisador de história uma postura de imparcialidade,

e de superação de suas paixões no seu fazer histórico, o problema da objetividade ganha uma

atenção especial, e se apresenta como uma ética para a profissão dos historiadores.

Não obstante, a aplicação de métodos racionais ao estudo do passado possibilitou a

realização de pesquisas em outras áreas que até então eram consideradas tabus, bem como o

contato com a diversidade de fontes que registravam os acontecimentos humanos em sua

multiplicidade.

A figura de Bayle deteve um papel central para apontar a relevância de um novo

estatuto teórico-metodológico para a historiografia moderna. No entanto, neste momento

ainda não se pode identificar uma verdadeira filosofia da história em Bayle.

Nesta mesma direção, Cassirer afirmou:

Bayle nunca nos deu uma verdadeira filosofia da história; a bem dizer, se considerarmos a sua concepção geral e as suas premissas metodológicas, ele nem mesmo podia tentar oferecer-nos uma. O primeiro a enveredar por esse caminho foi Giambattista Vico, cujo Principi di uma scienza nuova d´intorno allá comune

natura delle nazioni constituíram o primeiro esboço sistemático de uma filosofia da história. Na verdade essa obra, concebida numa perspectiva de oposição deliberada a Descartes e destinada a expulsar o racionalismo da história, essa obra que se apóia mais na “lógica da imaginação” do que nas idéias “claras e distintas”, nenhuma influência exerceu sobre a filosofia do Iluminismo. Permaneceu mergulhada numa obscuridade donde só viria a ser tardiamente retirada por Herder. (CASSIRER, 1994, p. 282)

Se por um lado o cartesianismo negou a cientificidade da história, por outro o

empirismo condicionou-a aos métodos e pressupostos de pesquisa provenientes das ciências

naturais. Diante desta situação é importante perceber que ao longo do Iluminismo subtraiu-se

da história literária toda sua plausibilidade a partir da crítica constante de “filósofos e sábios

desde Descartes a Bayle”, como bem lembrou Collingwood: “Só no tempo de Kant é que os

filósofos conceberam a idéia de conhecimento como dizendo respeito a um objeto relacionado

com o ponto de vista do conhecedor”. (COLLINGWOOD, 1994, p.103).

E foi a partir do amadurecimento desta idéia de interação entre sujeito e objeto que a

história passou a ser compreendida não como o estudo do passado em si mesmo, mas como

um estudo que tem relação com o próprio presente do historiador. Antes de Kant elaborar sua

teoria do conhecimento baseada no conceito de interesse41

que valida as interferências do

sujeito sobre o objeto, os iluministas estudavam o passado de formas diferentes. Mas,

41 Este conceito pode ser encontrado em CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, pp. 198-199.

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preponderantemente, o desligando de seu próprio presente, ou afirmando a superioridade do

século das Luzes sobre tudo que já havia sido experimentado anteriormente pelo espírito

humano.

2.4.6 A idéia de progresso histórico

De acordo com Jacques Le Goff a idéia de progresso se desenvolveu de forma clara

desde o século XV com a invenção da imprensa e culminou no século XVIII com a

Revolução Francesa. No entanto, o autor afirma que uma teoria do progresso não conseguiu

ser construída até pelo menos o início do século XVII. Isto ocorreu porque a noção de

progresso do Humanismo consistia em engrandecer seus avanços em relação à Idade Média,

mas, a referência que se tinha de progresso era a Antigüidade, que deveria ser revisitada. Daí

deriva a idéia de Renascença em voga nas artes, na ciência e filosofia daquele período

histórico.

O autor sugere que entre a primeira metade do século XVII até a primeira metade do

século XVIII a noção de progresso vigorava, sobretudo no âmbito da ciência. Depois teria se

expandido aos domínios da história, da filosofia, da economia, etc. A questão central aqui é,

de que modo esta idéia de progresso nasceu e veio a ser o sentimento compartilhado pelos

filósofos das Luzes?

O avanço das artes mecânicas, ou das invenções; o nascimento da ciência moderna,

suas teorias heliocêntricas protagonizadas por Copérnico42 e Galileu, o prestígio do método

científico de Bacon, o recrudescimento da fé na razão cartesiana, o sistema newtoniano,

apontavam uma coerência com a idéia de progresso científico e da forma de lidar com o

mundo.

À altura do Iluminismo, estas progressões da ciência já podiam ser constatadas e

traduzidas em melhorias para a vida prática. Acreditava-se em uma ciência com autoridade de

identificar as leis que regem o mundo natural, físico, moral e social sob o intento de aprimorar

a dominação e ação humana nestas esferas.

No tocante à ciência moderna, a noção de progresso está presente em suas vertentes

fundamentais: entre os empiristas e entre os racionalistas. Para Bacon, o rigor do método

científico proporciona o delineamento de uma fronteira que isola a ciência e a técnica de

qualquer tipo de saber “mágico”. A explicitação de um método fundamentado nas

42 Conferir o Diagrama do sistema heliocêntrico de Copérnico no ANEXO E.

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experiências enquanto sinal de conhecimento verdadeiro, acumulativo, traria um ponto de

partida para a realização de experiências vindouras.

Acerca deste método Bacon ressaltou:

Mas a verdadeira ordem da experiência, ao contrário, começa por, primeiro, acender o archote e, depois, com o archote mostrar o caminho, começando por uma experiência ordenada e medida – nunca vaga e errática -, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos experimentos. Pois nem mesmo o Verbo Divino agiu sem ordem sobre a massa das coisas. Não se admirem, pois os homens de que o curso das ciências não tenha tido andamento, visto que, ou a experiência foi abandonada, ou nela (os seus autores) se perderam e vagaram como em um labirinto; ao passo que um método bem estabelecido é o guia para a senda certa que, pela selva da experiência, conduz à planura aberta dos axiomas. (BACON, 1999, p.65).

Para Bacon, a idéia de continuidade das experiências faz com que a ciência acumule

verdades e progrida. Descartes por seu turno, apoiado nas matemáticas, buscou unificar a

ciência a partir de demonstrações que comprovam a subordinação da natureza a leis. Neste

sentido, galgou seu método de investigação científica e filosófica como proposta de progresso

das ciências.

Sobre seu método, Descartes elucidou: “Entendo por método regras certas e fáceis,

graças às quais o que as observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e

chegará, sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento de tudo aquilo que seja capaz”.

(DESCARTES, 2002, p.81).

É possível conceber que a idéia de progresso é intrínseca ao conhecimento científico

produzido na modernidade. O saber é progressivo porque é alicerçado sobre a idéia de

colaboração. Isto significa que a perfeição de nenhuma ciência se restringe à obra de um

indivíduo, mas ao esforço de sucessivas gerações de sábios.

No final do século XVII, a noção de progresso vai fermentar o debate filosófico que

ficou conhecido como a “querela entre os antigos e os modernos”. Esta noção de progresso

não surge de outro domínio senão da ciência moderna e vai ser o núcleo do confronto com a

ciência da Antigüidade. Os modernos acreditavam ter superado a filosofia natural de

Aristóteles, por exemplo.

No Século das Luzes este debate encontra a confirmação majoritária da superioridade

dos modernos. O enciclopedismo, corrente intelectual de ampla expressão do século XVIII

incorporou este sentimento de otimismo diante da aquisição e acumulação de conhecimentos

considerados “positivos”, no sentido de verdadeiros.

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Sobre a visão de progresso dos enciclopedistas, Cassirer esclareceu:

Até os mais moderados e os mais refletidos entre os pensadores verdadeiramente “científicos” sentem-se impelidos para a frente, empolgados por esse movimento. Ainda não se atrevem a definir os seus fins últimos, mas não podem escapar à sua potência e acreditam sentir que se avoluma nele, através dele, como que um novo futuro da humanidade. (CASSIRER, 1994, p. 34).

Para Diderot a Enciclopédia não era apenas uma compilação de saberes, mas uma

tentativa de mudar o modo de pensar. Foi responsável pela difusão do pensamento do grupo

parisiense de philosophes pelo resto da Europa. Por se tratar de um dicionário das ciências e

das artes oriundo de uma cultura técnica, o acesso às idéias parecia estar facilitado. Sua

proposta de mudança de pensamento parte da negação da autoridade da tradição diante da

segurança de verdade e de progresso que acompanha a ciência moderna desde seu

nascimento.

Sob a luz da citação acima é possível perceber que a idéia de progresso deixa

transbordar para a história uma “otimização” do devir histórico, ou seja, a noção de história

como a própria realização do progresso através do tempo.

Cassirer resolve ainda uma outra questão que geralmente tende a confundir o

progresso histórico com o futuro da humanidade, ou com a natureza da razão do século XVIII.

Neste aspecto, ele faz uma sábia distinção:

O progresso verdadeiro não diz respeito à razão, nem à humanidade enquanto tal, mas unicamente à sua exteriorização, à sua revelação empírico-objetiva. E é justamente esta revelação progressiva, esta caminhada da razão em direção à transparência acabada que constitui o sentido verdadeiro do progresso histórico. (CASSIRER apud LE GOFF, 1996, p.249).

Embora os iluministas estivessem animados por um espírito de progresso franqueado

pelo êxito obtido pelas ciências, não necessariamente acreditavam que o futuro era sinônimo

de progresso irreversível. Existiam também aqueles que desconfiavam desta idéia de um

progresso acompanhado na ciência e nas artes. Em sua obra, Discurso sobre as ciências e as

artes, Rousseau chegou a afirmar que ambas as atividades não estavam contribuindo para o

progresso dos costumes humanos, mas, ao contrário, estavam corrompendo-os. Em suas

Cartas persas, o Barão de Montesquieu questionou a superioridade da cultura eurocêntrica e a

crença na idéia de progresso levado aos povos não-civilizados através da colonização

européia.

Ademais, a negação da tradição presente no discurso dos philosophes nem sempre

estava condizente com suas ações. Isto pode ser percebido na ambigüidade política de alguns

destes pensadores que não raro trabalhavam para os monarcas absolutos. Ou seja, de certo

modo ainda estavam vinculados ao Ancien Regime ao mesmo tempo em que reivindicavam

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autonomia intelectual e a não censura aos conteúdos emancipacionistas na formação e

educação do povo em geral.

Venturi lembra que Voltaire foi um exímio freqüentador da corte de Frederico II

(exaltado por Kant em seu opúsculo sobre o Iluminismo) na Prússia, mas que ao desentender-

se com o monarca saiu de lá como fugido. Relata ainda que Diderot projetou a Universidade

de Moscou sob a encomenda de Catarina da Rússia, mas foi levado ao cárcere por ordens

supremas do monarca Luís XVI. Os exemplos são diversos.

Mesmo os que reconheciam um tempo de progresso talvez jamais vivido até então,

não sabiam o que esperar do futuro. O progresso estava materializado nas invenções

tecnológicas, no método científico e se concretizava como resultado da eficácia da razão

humana. Não havia necessariamente uma garantia de que o futuro seria o desdobramento

perpétuo deste progresso.

Kant, por sua vez, não acreditava ter vivenciado uma época do Iluminismo onde todo

o progresso já estava acumulado, mas acreditava estar vivendo um período iluminado, em que

o processo de aperfeiçoamento natural das disposições racionais humanas estava acelerado,

mas não completo.

Aproximadamente meio século antes das observações de Kant sobre o Iluminismo,

Vico também reconhecia o progresso alcançado pelo desenvolvimento da razão humana e

suas conseqüências na vida social e privada do homem. Em contrapartida, encontrava uma

ameaça de decadência moral instalada no excesso de racionalidade da cultura iluminista,

como veremos mais adiante, no próximo capítulo.

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III A HISTÓRIA NA CONCEPÇÃO DE VICO:

Vico concordava com a idéia de uma natureza comum a todos os homens em voga na

filosofia setescentista, expressa na obra de grandes nomes daquele século como Bacon e

Spinoza. Ao discorrer sobre a “natureza comum das nações” na Ciência Nova, o que faz Vico

senão retomar este tema?

Todavia, é de extrema importância esclarecer um ponto muito polêmico de seu

pensamento. Sobre este problema Croce assegura que a “Scienza Nuova dìntorno alla comune

natura delle nazioni” é por vezes reconhecida equivocadamente como uma ciência da

filosofia da história, ou simplesmente como uma filosofia da história. O próprio Michelet em

sua tradução francesa interpretou-a como uma “philosophie de l´histoire”, “reduzindo a

complexidade da obra viquiana” no dizer de Croce.

A parte histórica da Ciência Nova não é uma narração filosófica da história da

humanidade, pois não trata de um processo linear e homogêneo desempenhado por todas as

nações e com um fim comum preestabelecido. Portanto, a obra-prima de Vico não pode ser

designada por “filosofia da história” no argumento croceano.

Além do mais, em sua Ciência Nova, Vico jamais mencionou especificamente uma

“ciência da história” isolada das outras formas de conhecimento humano. Por outro lado, é

inegável o fato de que no interior da obra se encontrem peças indispensáveis à elaboração de

uma idéia de história. Desde o princípio verum-factum ao curso do desenvolvimento

intelectual e cultural das nações, Vico filosofa acerca do homem levando em conta sua

historicidade.

Neste capítulo, alguns temas pontuais tratados por Vico na Ciência Nova foram

selecionados no sentido de viabilizar uma discussão acerca do conhecimento histórico.

3.1 A Sabedoria de um Modo Geral

Vico acredita que a sabedoria não é algo dado de imediato aos homens, antes pelo

contrário, é fruto de um esforço progressivo que os pretensos “sábios” devem exercitar a cada

instante. Para o autor, tampouco o sábio deve desviar-se de sua vida social, mas deve situar-se

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em “praça pública” no dizer do próprio napolitano. A transmissão de seus saberes particulares

deve atingir toda a comunidade de uma nação para que esta esteja apta a conhecer o mundo.

Tendo isto em vista, não se erra em dizer que Vico atribuiu à sabedoria uma ação

prática capaz de beneficiar todos os homens, posto que em seu pensamento o saber não se

limita a simples contemplação das essências eternas. Em Vico, o saber acompanha um outro

aprendizado: o de como saber. A sabedoria pode “aperfeiçoar o homem” (na paráfrase de

Vico a Platão) mediante uma ação política e social: a educação.

É possível relacionar a idéia de educação apresentada na Ciência Nova com o processo

de constituição do mundo civil. Desta forma, para Vico educar o espírito implica em um

processo individual atrelado ao início do desenvolvimento de uma consciência civil. Esta

consciência, por sua vez, deve reverberar sobre as nações na forma de valores sociais a serem

disseminados no interior do senso comum.

Para que a semente da consciência civil possa ser plantada no senso comum, é preciso

que todo conhecimento seja disseminado e publicizado sem maiores restrições aos homens.

Neste aspecto, Vico tomou as palavras de Sólon, “conhece-te a ti mesmo”, não como

um convite à introspecção, mas por um reclame a favor do engajamento dos plebeus diante de

seus direitos políticos, fato que levou Atenas de uma república aristocrática a uma república

democrática:

Converteu-se, pois, a Sólon em autor daquele célebre mote Nosce te ipsum43

que, por sua grande utilidade civil para o povo ateniense, foi inscrito em quase todos os lugares públicos daquela cidade. Quiseram depois os eruditos ver nele uma grande admoestação, como de fato é, no âmbito das coisas metafísicas e morais, e, por causa de Sólon foi tido como sábio hábil por sua arcana sabedoria, e convertido num dos sete sábios da Grécia. Sob este aspecto, e porque de tal reflexão começaram em Atenas todas as ordens e todas as leis que formam uma república democrática, é por isso mesmo, levada em conta à maneira de pensar mediante caracteres poéticos dos primeiros povos, tais ordens e tais leis, assim como para os egípcios todas as invenções úteis à vida civil humana se atribuíam a Mercúrio Trimegisto, todas foram atribuídas a Sólon pelos atenienses. (VICO, 1979, p.94)

Ainda neste ponto, Vico se mostra bastante atualizado com a idéia moderna do saber.

Ia de encontro ao argumento de que todo conhecimento produzido deveria ser consumido, de

modo a levar o homem a refletir com autonomia e desenvolver sua capacidade crítica de

apreender a realidade. O próprio conhecimento deveria estar suscetível à crítica, para que suas

ratificações implicassem não apenas no melhoramento do próprio saber, mas antes disso, da

vida privada e, sobretudo social dos homens.

Todavia, antes da crítica deveria ser ensinada a “tópica”, a verdadeira arte do engenho,

isto é, a faculdade de inventar. Kant chamou de “tópica transcendental” a teoria dos lugares

43 “Conhece-te a ti mesmo”.

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supra-humanos, isto é, as posições atribuídas aos conceitos no intelecto puro, ou na

sensibilidade pura. Neste caso, o ensinamento da tópica deveria evitar a anfibolia, ou seja, o

uso duvidoso dos conceitos da reflexão.

Pois não se julga bem se não se conhece tudo sobre a coisa a ser julgada. É do

interesse da tópica conhecer para conseqüentemente bem julgar. Portanto, a formação da

eloqüência dos filósofos deveria se guiar por essa ordem. Para Vico, o ensino da arte crítica

anterior ao da tópica poderia destruir a imaginação (engenho) e incapacitar seus aprendizes

para a vida prática. Esta é uma particularidade da proposta de Vico para a educação dos

jovens que reflete uma de suas desavenças com os métodos de ensino de seu tempo.

Apesar disso, pode-se reforçar que Vico apresenta uma concepção moderna de

educação. Para continuar este argumento, voltemos ao caso da interpretação viquiana de

Sólon. Vico premiou Sólon por sua utilidade para a vida civil humana, e afirmou que nos

lugares de circulação pública da cidade de Atenas estavam inscritas as palavras de sua

máxima: “Conhece-te a ti mesmo”. Ora, Vico viu em Sólon a idéia de um sábio que segundo

o próprio napolitano deve “firmar-se em praça pública” e transmitir seus conhecimentos aos

transeuntes, em geral.

Sugeriu um caráter político para a ação educativa, que está contido no aprendizado de

tudo o que é produto do mundo civil humano. Isto pode ser concluído quando Vico ressaltou a

contribuição dos ensinamentos de Sólon para o despertar da consciência política dos plebeus

atenienses. O que, consequentemente acarretou na contestação de um modelo de governo

aristocrático que não permitia a participação popular. Neste caso, o ensino das humanidades

se apresenta de forma crucial, uma vez que permite ao homem se conhecer, adquirir uma

consciência civil e lutar pelo aprimoramento da vida em sociedade.

Neste sentido, a educação deve, portanto desenvolver a memória, a imaginação, o

aprendizado das línguas, a poesia, e todas as disciplinas que Vico denominou de “sabedoria

vulgar” ou de “sabedoria poética”. Se educar, significa entrar nas humanidades, termo que

pode ser aplicado tanto para referir-se ao estudo daquilo que diz respeito ao próprio homem,

quanto para o que remete à composição de uma vida no formato social. Logo, a educação é

um projeto pensado para atingir a nação inteira e não apenas um indivíduo isolado.

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Sobre a finalidade da educação orientada pelos estudos humanísticos, Vico

anunciou44:

O homem, sob o castigo do pecado separou-se de sua língua, mente e coração; sendo a língua, capaz de traduzir as idéias e sem esta, o homem não podia unir-se com outro homem; a mente, sem a qual a variedade das opiniões derivadas dos sentidos não contribui para que um homem possa viver junto a outro homem; e finalmente o coração, que uma vez corrompido, nem mesmo a uniformidade dos vícios concilia um homem com outro. O que demonstra que o castigo de nossa Corrupção deva ser emendado com a Virtude, com a Ciência, com a Eloqüência: as únicas três coisas que levam o homem a sentir o mesmo que outro homem. E através das quais se atém um fim aos estudos: pois respeita a ordem de estudar; demonstra, visto que as línguas foram o meio mais importante de firmar a sociedade humana; que das línguas devem se iniciar os estudos; porque todas elas concernem à memória, através da qual se destaca admiravelmente a infância: a idade dos infantes de débil raciocínio não por outro modo se regula, se não através de exemplos, que devem ser aprendidos com a vividez da fantasia para comover; pela qual a infância se mostra maravilhosa: depois os infantes deviam guardar a lição de História assim fabulosa, como verdadeira. (VICO, 1728, pp. 203-205)

A passagem acima representa a leitura de Vico sobre o estágio intelectual dos

fundadores das nações. Os homens ao perderem suas línguas, com raciocínio debilitado e com

o coração corrompido, eram compensados por uma robusta capacidade de fantasiar o mundo.

Ao propor esta interpretação da inteligência dos primeiros homens, Vico descobre uma

expressão de verdade que é característica da sabedoria poética. Sobre a sabedoria de um modo

amplo, Vico acrescentou que, “ora, antes de arrazoar sobre a inteligência poética, é-nos

indispensável vermos, de um modo genérico, o que é sabedoria. ‘Sabedoria’ é a faculdade que

comanda todas as disciplinas, mediante as quais se apreendem todas as ciências e artes, que

integram a humanidade.” (VICO, 1979, p. 68)

44 Texto original: L´uomo in pena del peccato, è diviso dall´uomo con la lingua, con la mente, e col cuore; con

la lingua, che spesso non soccorre, e spesso tradisce l ´ídee, per le quali l´uomo vorrebbe e non può unirsi con

l´uomo; con la mente, per la varietà delle opinioni nate dalla diversità de` gusti de`sensi, ne´quali uom non

conviene con altr´uomo; e finalmente col cuore, per lo quale corroto, nemmeno l´uniformità de´vizi concilia

lúomo con l´uomo. Onde pruova, che la pena della nostra Corruzione si debba emendare con la Virtù, con la

Scienza, con l´Eloquenza: per le quali trè dose unicamente l´uomo sente lo stesso, che altr´uomo. E ciò per

quello riguarda l´ordine di studiare,; pruova, che siccome le lingue furono il più potente mezzo di fermare

fermare l´umana società; così che dalle lingue deono incominciarsi gli studi; poiche elle tutte s´attengono alla

memoria, nella quale vale mirabilmente la fanciullezza: létà de´fanctasia per ommuovere; nella quale la

fanciulleza è meravigliosa: quindi i fanciulli si devono trattenere nella lezion della Storia così favolosa, come

vera.

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3.2 Da Sabedoria Poética

Vico pensou a sabedoria a partir da distinção entre a sabedoria poética e a sabedoria

discursiva. A primeira se situa no início do curso das nações. Trata-se de uma sabedoria

vulgar, rude e brutal da qual compartilhavam os primeiros homens que deram início a vida

coletiva e política da humanidade.

Acerca da sabedoria poética, Vico proferiu45:

Todas as histórias das nações gentílicas tiveram princípios fabulosos, e que para os gregos (dos quais herdamos tudo que havia na Antigüidade gentílica) os primeiros sábios foram os poetas teólogos, e a natureza das coisas de sua criação era rústica por sua origem; deste modo e não de outro se deve estimar a sabedoria poética. (VICO, 2004, p. 249).

A partir do fragmento citado acima, se pode concluir que Vico entendeu por sabedoria

poética o modo de pensar característico dos primeiros homens, ou o início do

desenvolvimento da mente e da razão humanas. Os “fundadores das nações”, como diria o

próprio autor, eram ainda incapazes de formular conceitos e, portanto, se valiam da força da

imaginação para estruturar coletivamente as suas experiências.

A imaginação era a fonte dos “caratteri poetici” (caracteres poéticos) ou dos

“universali fantastici” (universais da imaginação) que compreendem justamente as imagens

significativas, provenientes de categorias sensíveis e concretas que mais tarde seriam

aperfeiçoadas e transformadas em “conceitos”. Nas origens das nações, os homens ignoravam

as causas naturais dos fenômenos com os quais se confrontavam. No entanto, dispunham da

força da imaginação para dar sentido ao mundo que os circulava. Assim, incapaz de conhecer

conceitualmente a natureza, o homem a imaginava.

As particularidades de uma determinada experiência eram generalizadas para as

demais, o que constitui o princípio da indução. A partir de um exemplo significativo, portador

de algum valor religioso ou moral, experiências “similares” eram integradas sob o mesmo

caráter. Segundo Vico, “o princípio é, portanto, uma reação sensível, uma expressão diante

dos fenômenos da natureza, à altura das qualidades primitivas dos homens.” (VICO APUD

GIRARD, 2001, p. 7).

45 Texto original: Tutte le storie delle nazioni gentili hanno avuto favolosi princìpi, e che appo i greci (da´quali

abbiamo tutto ciò ch´abbiamo dell´antichità gentilesche) i primi sappienti furon i poeti teologi, e la natura delle

cose che sono mai nate o fatte porta che sieno rozze le lor origini; tali e non altrimenti se deono stimare quelle

della sapienza poetica.

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Trata-se de uma forma puramente imaginativa de expressar as experiências humanas,

mediante as imagens de deuses, de heróis, de poetas. É interessante perceber que Vico não se

satisfaz em buscar compreender as primeiras formas humanas de conhecer o mundo quando

se refere a uma sabedoria poética. Vai além, no ímpeto de compreender o que estas imagens

retratadas pela imaginação dos primeiros sábios falam sobre eles mesmos.

Neste sentido, Vico escruta a mitologia e a poesia sob as formas principais dos

caracteres poéticos. Mediante ambas, estruturavam-se as experiências fundamentadas por um

sentido fornecido pela imaginação poética: Júpiter exprimia os auspícios; Homero, por sua

vez, a história e a memória do povo grego; Ulisses, a prudência e a perseverança; Aquiles, a

coragem e a força; etc.

3.2.1 A mitologia e a poesia

Muitos autores, leitores e/ou intérpretes de Vico consideram a descoberta da sabedoria

poética ou da sabedoria dos primeiros homens, a “chave” para se compreender a Ciência

Nova. Esta “descoberta”, se deve ao emprego de uma nova concepção da mitologia que vai na

contramão das noções que enfatizam a mitologia enquanto mera ilustração retórica, estética,

meramente decorativa. A noção de mitologia em questão, também desconsidera a idéia de um

conjunto de fábulas que guardam significados profundos e secretos que não podem ser

reveladas no mundo concreto das experiências.

A despeito destas noções acerca da mitologia, Vico considera os mitos e as fábulas

como expressão direta da mentalidade, ou do modo de pensar dos fundadores das nações.

Trata-se da maneira grosseira, vulgar e rude que eles experimentavam sua sensibilidade, suas

experiências primitivas.

Neste sentido, Vico conseguiu estabelecer uma verdade natural do mito, entendendo

pela construção das fábulas e narrações míticas uma interpretação não corrompida dos

sentidos dos primeiros homens46:

Que as fábulas, em sua origem, foram narrativas verdadeiras e severas (por onde mythos, a fábula, foi definida vera narratio, como muitas vezes afirmamos já); as quais nasceram primeiramente rudes, e por isso mesmo se tornaram impróprias, depois alteradas, a seguir inverossímeis, logo mais obscuras, um passo a mais, escandalosas, e, finalmente, incríveis. E estas são as sete fontes de dificuldade das fábulas, das quais rapidamente abordamos no livro segundo. (VICO, 2004, p. 559)

46 Texto original: Che le favole nel loro nascere furono narrazioni vere e severe (onde mythos, la favola, fu

diffinita “vera narratio”, come abbiamo sopra più volte detto); le quali nacquero dapprima per lo più sconce, e

perciò poi si resero improprie, quindi alterate, seguentemente inverisimili, appreso oscure, di là scandalose, ed

alla fine incredibili; che sono sette fonti della difficultà delle favole, i quali di leggieri si possono rincontrare in

tutto il secondo libro.

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Não corrompida, porque a fantasia permitiu-lhes, elaborar uma representação mais

sofisticada da realidade onde podiam encontrar e identificar a razão para as coisas que lhes

aconteciam. Esta capacidade mutuamente despertava a atenção dos homens aos deuses

míticos, a quem atribuíam à força dos fenômenos naturais, a força do destino, a origem das

grandezas e fraquezas humanas, etc.

Não obstante, em sua noção própria de mitologia, Vico encontrou um instrumento de

investigação capaz de penetrar os espíritos dos primeiros homens, capaz de conhecer a forma

particular através da qual eles se exprimiam. O estudo da mitologia não apenas deve ser

ministrado no ímpeto de interpretar fábulas, mas de acessar o modo característico de pensar

dos fundadores das nações. Para Vico, este parece ser o objetivo maior.

Então, ao interpretar os deuses da mitologia grega e romana, Vico não simplesmente

organizou representações simbólicas de uma espiritualidade profunda específica daqueles

povos. Mas antes disso, encontrou um sistema de caracteres poéticos estruturados pela

imaginação capaz de dar um sentido às caóticas experiências primitivas. Deste modo, Júpiter

é o caractere poético representante do raio, que mais tarde será associado a tudo o que

concerne à religião para estes dois povos (gregos e romanos).

A palavra poesia vem de “poien” que em grego significa fazer. No sentido grego, ser

poeta consiste em ser um criador, isto é, fundar um fazer humano que remete à produção

espontânea dos primeiros homens. Para Vico, isto constitui a atitude poética, e não o que

concebemos hoje em dia por poeta: o sujeito que possui um talento particular e é dono de um

agudo refinamento estético.

O conceito de poesia é nuclear no pensamento viquiano. Ele é um conceito-chave para

conhecer a natureza poética dos primeiros homens. Para aprofundar a discussão sobre poesia

em Vico, é mister considerar alguns de seus fundamentos estabelecidos no III livro da Ciência

Nova (1744): “Della Discoverta Del Vero Omero” (A descoberta do verdadeiro Homero), que

são apresentados em abordagens distintas.

No referido Livro, Vico associou história e poesia47:

47 Texto original: Quella verità ch´intese Lodovico Castelvetro: che prima dovette nascere l´istoria , dopo la

poesia; perchè la storia è una semplize enonziazione del vero, ma la poesia è una imitazione di più. (...) E

l`uomo, per altro acutissimo, non ne se ppe far uso per rinvenire i veri principi della poesia, col combinarvi

questa pruova filosofica, che qui si pone per: Ch´essendo stati i poeti certamente innanzi agli storici volgari, la

prima storia debba essere poetica.

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Aquela verdade que foi proposta por Ludovico Castelvetro: que primeiramente deve ter nascido a história, e só depois a poesia, já que a história é uma simples enunciação do verdadeiro, enquanto que a poesia é uma imitação a mais (...) Esse homem, em outros aspectos agudíssimo, não soube fazer disso um uso adequado a fim de descobrir os verdadeiros princípios da poesia, mediante a adequada combinatória desta prova filosófica, que nós assim iremos expressar: Que tendo existido os poetas certamente antes dos historiadores vulgares, a primeira história deve ser a poética. (VICO, 2004, pp. 558-559)

Vico percebeu o valor histórico dos próprios caracteres poéticos, e acreditou que

independentemente de suas qualidades fantasiosas, as formas narrativas da poesia e do mito

eram tomadas por fatos concretos. Deste ponto de vista, os poemas homéricos têm valor

essencial de fontes históricas para a compreensão dos tempos obscuros, pois dão testemunho,

em forma mítica, de fatos históricos reais.

Não é à toa que Homero foi considerado por Vico o “primeiro historiador” da nação

grega, justamente por ter ele através de seus poemas constituído uma historiografia poética.

Para Vico, enfim, Homero não é um personagem real, antes e ainda mais que isso, é um

caractere poético. Isto porque a obra de Homero permeada de contradições e numerosas

incoerências não é fruto de seu talento particular, mas é a expressão de uma poesia popular

que foi desenvolvida e preservada pela memória dos gregos durante séculos.

Sob o juízo de Vico, a produção poética corresponde a uma obra coletiva, pertencente

a toda uma nação. Ela se manifesta menos por obras individuais, que por uma sabedoria capaz

de representar um mosaico de elementos culturais (como a de Homero) referentes a uma

nação: metafísica, lógica, política, cronologia, física, moral, astronomia, geografia, etc.

Por outro lado, a produção poética, a criação de metáforas, dos caracteres poéticos, e

das divindades é um desígnio da necessidade natural dos primeiros homens, no intuito de

coletivizar e estruturar suas experiências.

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Sobre a necessidade natural de criação dos caracteres poéticos Vico prosseguiu48:

Que os caracteres poéticos, nos quais consiste a essência das fábulas, nasceram da necessidade natural, incapaz de abstrair-lhe as formas e as propriedades dos objetos. E, por via de conseqüência, deve ter sido esta a maneira de pensar de povos inteiros, que se viram impelidos a situar-se no âmbito de tal necessidade natural, o que sucedeu nos tempos de sua maior barbárie. Eterna propriedade delas é o engrandecerem sempre as idéias dos particulares. A respeito disso há um belo passo de Aristóteles nos Livros morais, quando diz que os homens de idéias curtas transformam em máximas todos os particulares. Esta deve ser, aliás, a razão de seu dito: porque a mente humana, que é indefinida, vendo-se premida pela robustez dos sentidos, não pode celebrar a sua quase divina natureza senão engrandecendo com a fantasia esses particulares. Por isso será talvez que, tanto entre os poetas gregos quanto entre os latinos, as imagens dos deuses e também dos heróis resultam sempre maiores do que as dos homens. (VICO, 2004, pp. 559-560)

A partir da lógica de transformar os particulares em máximas, ou do princípio da

indução, os poetas conseguiam expor suas experiências à esfera coletiva. A crença nos deuses,

por exemplo, permitiu aos poetas-teólogos dar vida as coisas inanimadas, tal qual procedem

as crianças quando brincam com objetos e se utilizam da imaginação para vivificá-las.

A analogia entre a atividade poética e a infância se viabiliza pela robusta imaginação

que as caracteriza, devido ao seu rico engenho, isto é, poder de criação. Esta forma de

sabedoria poética não é, portanto, em nada um defeito do intelecto humano para Vico. Ao

contrário, trata-se de uma verdadeira sabedoria coletiva, compartilhada por todos os homens,

criadora de leis, de instituições civis e políticas, que permitiram afirmar o direito romano

como um “poema sério”.

Numerosas descobertas estão ligadas a esta sabedoria: o verdadeiro Homero, a origem

do direito, das instituições sociais, das religiões e das línguas, da imaginação e da poesia

dentro dos processos educativos. Prospectivamente, a produção poética pode ainda ter a

função de um indicador do curso das nações. O que significa que, através da intensidade da

própria atividade poética, é possível identificar um diagnóstico do curso histórico de uma

determinada nação.

Obviamente, ao contemplar a rica produtividade poética de Homero, Vico reflete a

atitude poética dos antigos gregos, especificamente49, “estando os caracteres poéticos nessas

48 Texto original: Che i caratteri poetici, ne´quali consiste l´essenza delle favole, nacquero da necessità di

natura, incapace d´astrarne le forme e le proprietà da´subbietti; e, ´n conseguenza, dovett´essere maniera di

pensare d´intieri popoli, che fussero stati messi dentro tal necessità di natura, ch’è ne’ tempi della loro maggior

barbarie. Delle quali è eterna proprietà d’ ingrandir sempre l’ idee de’ particolari: di che vi ha un bel luogo

d’Aristotile ne’ Libri morali, ove riflette che gli uomini di corte idee d’ ogni particolare fan massime. Del qual

detto dev’ essere la ragione: perché la mente umana, la qual è indiffinita, essendo angustiata dalla robustezza

de’ sensi, non può altrimente celebrare la sua presso che divina natura che con la fantasia ingrandir essi

particolari. Onde forse, appresso i poeti greci egualmente e latini, le immagini come degli dei così degli eroi

compariscono sempre maggiori di quelle degli uomini. 49 Texto original: Essendo tali stati i caratteri poetici, di necessità le loro poetiche allegorie, come si è sopra

dimostro per tutta la Sapienza poetica, devon unicamente contenere significati istorici de’ primi tempi di Grecia.

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condições de necessidade de alegoria poética, como se demonstrou por toda a Sabedoria

poética, devem unicamente conter significados históricos dos primeiros tempos da Grécia”.

(VICO, 2004, p. 561)

No entanto, ao propor uma “natureza comum entre as nações”, Vico assegura que

todas as nações passaram, mais cedo ou mais tarde pelo estágio da sabedoria poética. Ou seja,

todas elas criaram suas próprias divindades, que davam um sentido aos rituais do matrimônio

e do sepultamento que para Vico são universais. Por corolário da crença em seres

transcendentais, cada nação organizou sua própria religião, momento, aliás, que segundo o

napolitano, representa uma aceleração no curso histórico das nações. Isto se considerarmos as

contribuições da religião enumeradas por Vico, para a eficiência da vida social e civilizada.

Antes de fechar a discussão acerca da sabedoria poética, é importante discorrer sobre a

religião, cujo surgimento se deve às formas poéticas e míticas de interpretação do mundo. Em

Vico, a religião está na base das instituições civis e políticas.

3.2.2 A religião

A noção do devir histórico em Vico acompanha as vicissitudes das formas de pensar

das nações, sobretudo da latina e grega. Este caminhar de um mundo infante imerso na

fantasia para um mundo adulto em que prevalece o raciocínio é uma compreensão da história

enquanto trajeto das próprias formas de cognição humanas. Os meios humanos de perceber o

mundo modificam-se em conformidade com a ação do devir histórico.

Neste sentido, pode-se dizer que Vico apresentou sua Ciência Nova como um trabalho

de “história das idéias humanas”, como pode se observar a partir do fragmento abaixo 50:

O terceiro aspecto principal é uma história das idéias humanas que, como foi visto pouco antes, se iniciou com as idéias divinas a partir da contemplação do céu feita com os olhos do corpo: uma vez que na ciência augural os romanos diziam “contemplari”, observar as partes do céu de onde vinham os augúrios ou se observavam os auspícios, de onde devem ter chegado aos gregos as primeiras ‘divinas ou sublimes coisas de contemplar-se’, que terminaram em coisas abstratas, metafísicas e matemáticas. (VICO, 2004, pp. 273-274)

Quando Vico enfatiza no fragmento acima a passagem “contemplação do céu feita

com os olhos do corpo”, parece estar chamando atenção para a capacidade natural de

50 Texto original: Terzo principal aspetto è uma storia d´umane idee, che come testé si è veduto, incominciarono

da idee divine con la contemplazione del cielo fatta con gli occhi del corpo: siccome nella scienza augurale si

disse da´romani “contemplari” l´osservare le parti del cielo donde venissero gli augùri o si osservassero gli

auspìici,, onde dovettero venir a´greci i primi divine o sublimi cose da contemplarsi”, che terminarono nelle

cose astratte metafisiche e mattematiche.

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conhecimento que portamos através dos sentidos. Contemplar o céu, todavia, possibilitou toda

uma sistematização da vida, tomando por referência a posição dos astros, os relâmpagos e

trovões, que segundo o nosso autor eram associados a manifestações naturais de divindades, a

exemplo de “Giove”, Júpiter da mitologia romana, que como sabemos, equivale a Zeus na

mitologia grega.

O exercício de contemplar o céu primeiramente com os olhos e demais dispositivos

sensitivos do corpo, fez com que os primeiros homens relacionassem as forças da natureza às

divindades. Assim diz Vico terem feito os primeiros romanos, identificando a presença de

Júpiter no soar de estrondosos trovões e dos clarões repentinos dos relâmpagos.

As forças da natureza estavam para os fundadores das nações relacionadas a uma outra

natureza transcendental, ligada ao divino:

Júpiter fulmina e aterroriza os gigantes. E cada uma das nações gentílicas teve seu Júpiter. Esta dignidade contém a história física que as fábulas nos preservaram: ter havido o dilúvio universal sobre toda a terra. Esta mesma dignidade, com o seu antecedente postulado, deve deixar bastante claro que, nos limites de tal longuíssimo decurso de anos, as ímpias raças dos três filhos de Noé reduziram-se a um estado ferino, e mediante ferina propagação esparramaram-se e dispersaram-se pela enorme selva da terra, e, através de uma educação ferina provieram e resultaram gigantes ao tempo em que pela vez primeira o céu expediu raios, depois do dilúvio. (VICO, 1979, p. 43)

Para Vico, a crença e a fé nos deuses possibilitou a formação de uma das mais

significantes e antigas instituições humanas em seu ponto de vista, a religião, “dado que as

nações todas começaram de um culto a uma divindade qualquer, os pais, no estágio das

famílias, devem ter sido peritos na adivinhação dos auspícios, sacerdotes que sacrificavam a

fim de obtê-los ou bem compreendê-los, e os reis que levavam as leis divinas às suas

famílias.” (VICO, 1979, p. 50)

Antes de discutir o tema da religião em Vico é interessante não deixar de considerar a

sua própria condição de homem religioso, ou, melhor, de cristão. Este traço de sua

personalidade, sem dúvida, veio a influenciar toda a sua idéia de história, com relação ao

próprio movimento do devir histórico associado à ação da Providência, bem como no que

remete às suas observações acerca da natureza das primeiras “nações gentílicas”, além de

discussões relativas à importância da religião para a vida em sociedade, etc..

Segundo Philippe Ariès, o advento do cristianismo contribuiu de modo até então

inédito para a aproximação entre o homem e a história. Antes do Cristianismo, durante toda a

Antigüidade clássica não era comum constatar o sentimento de preocupação existencial

perante a história. Esta é uma novidade trazida pelo próprio cristianismo, ressalta o autor

francês.

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Na Antigüidade, salvo Roma, à medida que esta se libertava das influências

helenísticas, não se pensava a história como algo solidário, ou seja, como um processo

compartilhado por todos os homens em conjunto, a partir de uma mesma origem e com um

fim pré-estabelecido. Antes, ao contrário, era um tempo em que os atos memoráveis e,

portanto passíveis de narração estavam atrelados ao universo mitológico, à passagem de um

modelo de governo que se quer mostrar superior aos demais nos momentos de controvérsia

política, etc.

Não há preocupação com as origens, com o meio ou fim, não vigora ainda uma idéia

de história enquanto continuidade. Afora as fábulas, o enaltecimento das qualidades morais,

as narrações mitológicas, tudo que está nestes interstícios, parece não ter importância ou não

despertar curiosidade ao conhecimento daquele período.

Segundo Ariès:

A idéia de uma estreita dependência entre o homem e a história, eis uma autêntica contribuição do cristianismo. Sempre poderemos, se nos dermos o trabalho, descobrir verdades cristãs antes do cristianismo, na sabedoria antiga. Mas ainda não se tinha, em momento algum, conhecido este desenvolvimento histórico do sagrado na duração, desde as origens (que, aliás, permaneceram no estado de mitos isolados, atemporalizados), até o nascimento de Cristo; um dia do reino de César Augusto, sendo Herodes tetrarca da Galiléia. E a vida de Cristo se tornou, em plena luz da história, o episódio central do sobrenatural cristão: a redenção, e o aparecimento de uma nova humanidade regenerada, onde a Igreja mantém a presença do espírito. Todos os momentos da vida cristã ligam-se a esta grandiosa história. (ARIÈS, 1914, p. 98)

De acordo com esta observação de Ariès, não apenas Vico, mas toda a cultura

ocidental estaria contaminada pela idéia de uma “história da humanidade” que o cristianismo

retomou a partir do nascimento de Cristo. Ao distinguir a história profana da história sagrada

a partir do nascimento do Messias, o que representa de certo modo a humanização do divino,

ou mais que isso, a ação de Deus sobre a história dos homens, o cristianismo inaugurou um

calendário para a contagem do tempo da história da humanidade.

A partir de então, a preocupação de um sentido histórico para a existência humana

ganha ênfase. Vem à tona uma nova versão da história humana, que parte de uma origem

mítica anterior ao tempo dos homens, rumo ao momento de renovação da humanidade

marcado pelo nascimento de Cristo, e daí segue até os dias atuais para um determinado fim.

Este trajeto é algo que deve ser rememorado e comemorado (desde seu ponto de partida)

enquanto houver mundo, segundo a doutrina cristã.

O modelo de história apresentado por Vico na Ciência Nova está consoante com todas

estas preocupações voltadas ao sentido histórico da existência humana despertadas com o

advento do cristianismo. Ora, Vico aborda a segregação da história sagrada e da história

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profana, elege cronologicamente os sete povos mais antigos da humanidade51, propõe, a seu

modo, o movimento da história associando-lhe à ação da Providência, e, sobretudo assegura

que a religião cristã é a religião do Deus verdadeiro.

Em uma abordagem mais ampla, Vico dispõe no coração da Ciência Nova a noção um

tanto contraditória da “história ideal eterna” que ao mesmo tempo enfatiza o aspecto empírico

da história (história profana) e recorre a um modelo histórico “ideal” (história sagrada).

Vico aponta dois momentos diferentes na história da humanidade: um que remete

diretamente ao fazer humano ou ao “mundo civil”, e outro que o autor chamou de “macro-

história” caracterizada pelas catástrofes (a Queda do homem do paraíso, o Dilúvio, a confusão

entre as línguas das nações52, etc.) que remetem à ação divina e, portanto não podem

constituir objeto de uma ciência.

Sobre a história sagrada, Vico defendeu:

A história sagrada é mais antiga do que as mais antigas histórias profanas até nós chegadas, tanto mais porque trata de modo muito pormenorizado e bastante longo, de mais de oitocentos anos, do estado natural sob os patriarcas, ou seja, do estágio das famílias, a partir dos quais, como concordam todos os políticos, surgiram depois os povos e as cidades. Desse estágio a história profana ou nada ou muito pouco e bastante confusamente relata. (Vico, 1979, p.38).

Para Vico, o limite entre a história sagrada e a história profana representa o desenho da

linha fronteiriça entre o livre-arbítrio e a ação divina. O estatuto retórico da Ciência Nova

possibilita a abordagem destes dois componentes históricos: o empírico e o ideal. Nesta obra,

Vico traça o ciclo eterno de uma história ideal no interior do qual se orientam os cursos das

nações seguindo necessariamente as etapas de seu nascimento, progresso, decadência e fim.

O estabelecimento desta ordem (que é a história ideal eterna) permite distinguir as

verdadeiras diferenças históricas através do estudo comparado dos cursos percorridos pelas

nações. Partindo daí se pode concluir que o esquema de Vico não é propriamente um tratado

de história universal, pois ao mesmo tempo em que se pretende universal, respeita os ritmos

diferenciados do curso das nações. Neste sentido, as particularidades históricas de cada

contexto cronológico, geográfico e cultural são valorizadas dentro desta ordem histórica

estabelecida. Disse Vico, “a ordem das idéias deve proceder segundo a ordem das coisas”.

(VICO, 1979, p. 48).

51 Segundo Vico, os sete povos mais antigos da humanidade são: hebreus, caldeus, celtas, fenícios, egípcios, gregos e romanos. Este dado pode ser conferido na “Tavola Cronologica” que Vico apresentou no início da terceira edição da Ciência Nova. A título de consulta, esta “Tábua Cronológica” está nos anexos deste trabalho de dissertação. 52 Lembre-se aqui da narração bíblica da Torre de Babel.

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Seguramente a busca de Vico por um sentido histórico para a humanidade, de fato, não

constitui nenhuma novidade. Neste aspecto, Vico foi antecedido por muitos, para efeito de

vislumbre vale citar aqui a obra considerada como a primeira filosofia da história já escrita:

“A cidade de Deus”, de Santo Agostinho. No entanto, dentre as diferenças que separam Vico

de Santo Agostinho podem-se destacar duas: em primeiro lugar, a Ciência Nova não é uma

obra de filosofia da história e em segundo plano, as preocupações que levaram ambos a

refletir sobre os mesmos temas são distintas.

Sobre a primeira diferença, pode-se argumentar que por mais que a Ciência Nova seja

um modelo interpretativo da história, Vico não preestabelece um fim para a história, embora

aponte para uma possibilidade de sentidos. E por isso, acreditamos que sua obra não consiste

em uma filosofia da história, pois ele não considera em sua Ciência Nova a finalização ou o

acabamento da história.

. O movimento da história proposto por Vico consiste em olhar para trás no intuito de

construir uma identidade cultural, sobretudo para os próprios italianos. Aí, a preocupação

com a constituição do mundo civil e, portanto, com o passado, parece ser uma preocupação

anterior a de olhar para frente no sentido de prever o ponto final da história.

Em contrapartida, ao tempo de Santo Agostinho, este fim era considerado com muita

certeza. Não se pode esquecer que quando escreveu A cidade de Deus, esteve preocupado em

desconstruir a idéia de que o cristianismo estaria atrelado às causas do fim de Roma. Segundo

Ariès, neste sentido, Santo Agostinho apresentou o seu próprio modelo interpretativo da

história em que o mundo dos homens fatalmente caminhava para seu final, independente do

nascimento do mundo cristão, ou da Queda do Império Romano. Preocupou-se ainda em

rebater o argumento que o fim de Roma seria o fim do mundo e, subseqüentemente da Igreja

representante de Cristo. Enfim, as razões principais que impulsionaram a escrita de sua obra-

prima estavam arraigadas à tradição romana e à sua perspectiva milenarista.

Vico, por sua vez, escreveu a Ciência Nova em aproximadamente duas décadas, tendo

praticamente reescrito a obra em sua terceira e última versão, a de 1745. Àquela altura, Vico

estava preocupado com a produção do conhecimento de seu tempo. Embora fosse um homem

de muita religiosidade, sua obra-prima parecia estar mais empenhada à questão de

fundamentar uma ciência do mundo das coisas humanas mesmo que em seu modelo

interpretativo da história, a ordem de uma “história ideal eterna”, ocupe um lugar central na

proposta de um curso histórico das nações.

No entanto, o valor histórico que Vico atribuiu à religião enquanto elemento de

agregação dos primeiros homens em torno de um formato de vida social, não se restringe ao

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fato de ter ele sido um homem religioso. Vico encontrou na religião o fundamento social e

político que possibilitou a formação das “primeiras repúblicas”, para usar suas próprias

palavras. Em Vico, as religiões são, com efeito, a garantia de sociabilidade dos homens e da

ordem do “mundo civil”. Pois a religião reúne os seus adeptos em torno de um mesmo fim, a

adoração dos deuses, ao mesmo tempo em que os sensibiliza no sentido de uma convivência

pacífica e de proteção a um ou mais deuses e seus respectivos adoradores.

A religião tem para Vico conseqüências políticas e sociais muito relevantes:

Onde quer que os povos mediante as armas se enfureceram, de modo a que não tenham mais vigência ali as leis humanas, o único poderoso meio de os serenar é a religião. Esta dignidade estabelece que no estado sem estatuto de lei a providência divina encaminhou os homens ferozes e violentos a encaminharem-se para a humanização e a ela disporem as nações, neles despertando uma idéia confusa da divindade, começaram a dispor-se em uma certa ordem. Tal princípio das coisas, entre “ferinos e violentos” não soube ver Tomas Hobbes, pois extraviou-se a buscar-lhes os princípios com o “acaso” de seu Epicuro. Por isso mesmo, por magnânimo que fosse o seu esforço, com proporcional e infeliz evento, acreditou haver enriquecido a filosofia grega dessa considerável parte, que certamente lhe faltou (como refere Jorge Pasch, De eruditis huius saeculi) de considerar o homem em toda a sociedade do gênero humano. Hobbes nem sequer o teria pensado de forma diversa, se a religião cristã não lhe houvesse subministrado motivo, já que ela exige para todos não a justiça, mas a caridade. E assim começamos por refutar Políbio em sua alegação falsa: se no mundo existissem os filósofos, as religiões não se fariam necessárias. Pois, na verdade, se não existissem as repúblicas, que não podem ter nascido sem as religiões, não existiriam filósofos no mundo. (VICO, 1979, pp. 40-41)

As religiões dos homens primitivos são enxergadas por Vico como fator crucial para o

fim do “nomadismo bestial”. Sobre estas religiões que chamou de “pagãs”, Vico elevou as

vantagens da religião do povo hebreu legada pela Cristandade, “e que se caracteriza por uma

relação direta e privilegiada com o verdadeiro Deus”. (VICO apud GIRARD, 2001, p.48)

Para Vico, “a religião hebraica foi fundada pelo verdadeiro Deus com proibição

expressa das adivinhações, baseadas nas quais surgiram todas as nações gentílicas. Esta

proposição constitui uma das principais razões de se dividir o mundo antigo das nações entre

hebreus e Gentios.” (VICO, 1979, p.39)

Apesar disto, Vico não considerou as religiões primitivas menos fecundas que a

religião hebraica e, nem aparenta ter sido este o seu objetivo ao estudá-las. Ao contrário, Vico

as identificou por construções de “poetas teólogos” que diante da incapacidade de explicar

racionalmente suas experiências, imaginavam uma sociedade naturalmente constituída de

deuses. É o que Vico denominou de uma “teogonia natural”, isto é, o conjunto de divindades

cujo culto forma o sistema religioso de um povo politeísta.

A discussão da religião em Vico atravessa toda sua noção de história expressa na

Ciência Nova, uma vez que tal instituição é apontada como um fato que propiciou a

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constituição das nações. Não obstante, a religião sob a abordagem viquiana, é compreendida

historicamente, como substrato do desenvolvimento do espírito humano, ou mais

propriamente como uma de suas expressões mais elevadas, capaz de expor a imaginação

coletiva das experiências humanas.

Na Ciência Nova, Vico através do estudo do sentimento religioso (e suas modificações

no curso do devir) parece apontar as origens da vida social humana, ao mesmo tempo em que

vislumbra a natureza das primeiras nações. Talvez a ênfase de Vico no tema da religião não

tenha deixado de ser em parte, uma crítica ao tempo em que viveu, ou a “idade dos homens”.

O que pode ser sintomático em sua nostalgia pela crença e fé de outrora, em

contraponto a postura anticlerical dos filósofos franceses de grande eco nos Setecentos. Em

suas palavras, Vico denunciou, “o excesso de reflexão afrouxa os laços religiosos, portanto

sociais, e os povos [adquirem o hábito] de cada qual só pensar em seu interesse particular [...]

e, em meio à multidão dos corpos, [vivem] em solidão absoluta mentes e vontades”. (VICO

apud HUISMAN, 2001, p. 994).

Sem dúvida, o deslocamento da fé em Deus e do sentimento religioso para a

racionalidade humana que estampou o pensamento de muitos dos iluministas franceses

(Voltaire, Bayle, Hobbes, etc.) foi algo que produziu certo mal estar em Vico. Por outro lado,

o avanço da ciência moderna e das “novas idéias” que sopravam da França para a Itália

repercutiram em sua obra aqui analisada, especialmente em seu modo de compreender a

história enquanto conhecimento. O filósofo não era, e estava muito distante de ser um

reprovador da fé na razão humana. Muito ao contrário, em vez de escolher entre Deus e o

homem, Vico os uniu em seu esquema.

Disse Vico:

Eis o homem em si próprio, no modo próprio de ser homem, isto é, em sua mente e em sua alma, ou então, como intelecto e vontade. A sabedoria deve ultimar o homem, nestas suas partes constitutivas, vindo a segunda logo depois da primeira, a fim de que a partir da mente iluminada mediante a cognição das coisas mais altas a alma se resolva pela eleição das melhores coisas. Neste universo, as coisas mais altas são as que intencionam para esse argumento a respeito de Deus. Já as coisas melhores são as que concernem ao bem de todo o gênero humano. “Divinas” se chamam as primeiras; “humanas coisas”, as últimas. A verdadeira sapiência deve, pois, ensinar a cognição das coisas divinas, para conduzir ao sumo bem as coisas humanas. (VICO, 1979, p. 69)

Ao passo que desenvolve sua razão, o homem se torna apto a meditar sobre coisas

mais altas, mais complexas e este refinamento intelectual deve estar atrelado às humanas

coisas, isto é, “ao bem de todo o gênero humano”. Neste sentido, Vico colocou o

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desenvolvimento das idéias humanas em um continuum que vai desde a consciência poética à

consciência prosaica, ou reflexiva.

3.3 Da Sabedoria Reflexiva

Sem dúvida, o desenvolvimento da mente humana constitui um dos pontos mais

originais do pensamento viquiano. A novidade está justamente na não-oposição entre a

sabedoria poética e a reflexiva. Em vez disso, Vico sugere uma continuidade entre uma e

outra, sem pender para lado algum.

Sobre o problema da razão e imaginação na obra de Vico, Ariosvaldo da Silva Diniz

complementou:

A importância de Vico, neste domínio, foi demonstrar que a relação entre razão e imaginação, ao invés de formar uma oposição, era uma relação de complementaridade ou continuidade entre a parte e o todo. Na Ciência Nova, quando procurou diferençar os estágios da consciência através dos quais a humanidade passou do primitivismo para a civilização, ele sugere – utilizando a quádrupla distinção entre os tropos lingüísticos – uma continuidade e não uma oposição entre consciência poética (mítica) e consciência prosaica (científica). (DINIZ, 1998, p. 18).

A consciência poética e suas formas fantásticas de conhecer o mundo são tão

importantes quanto às ciências e as reflexões dos filósofos, de modo que se não fosse aquela,

o estágio posterior de desenvolvimento da razão humana não teria sido alcançado. Mais uma

vez, Vico demonstra sua enorme preocupação com uma “ordem natural das coisas humanas”,

que consegue acessar através do estabelecimento de idades humanas.

A ligação entre o fazer, o sentir e o pensar humano revelada pela investigação

filológica, trouxe a Vico a conclusão de que o homem percorre três etapas distintas em seu

desenvolvimento intelectual. São estas: a idade divina, a idade heróica e a idade dos homens.

Vico sintetiza estas etapas do desenvolvimento do espírito humano:

Os homens primeiramente sentem sem se aperceberem, a seguir apercebem-se com o espírito perturbado e comovido, e, finalmente, refletem com mente pura. Este aforismo é o princípio das sentenças poéticas, que são formadas com sentidos de paixões e de afetos, diferentemente das sentenças filosóficas, que se constituem pela reflexão e mediante os raciocínios. Por isso, estas marcham vigorosamente para a verdade, quanto mais se aproximam dos particulares. (Vico, 1979, p.46).

Ao longo da idade divina, Vico identifica a passagem da história sagrada para a

história profana, onde destaca a atuação de dois povos como os fundadores das nações: os

hebreus e os gentios. Neste momento de fundação das nações, Vico perscruta a sabedoria

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primeira do gênero humano a partir de caracteres poéticos. E aí ele constrói a sua idéia de

barbárie dos sentidos, onde a debilidade da razão é compensada pelo poder da criatividade,

por uma forma de conhecimento fantástico da qual eram dotados os primeiros homens.

Segundo Vico, “tanto mais robusta a fantasia, quanto mais débil o raciocínio” (Vico, 1979,

p.29).

As manifestações da força da natureza associadas à ira dos deuses originou certo

temor que levou os primeiros homens a suprimir seus instintos e a criar as famílias, primeiras

ordens civis. Estas famílias eram patriarcais e segundo Vico estavam voltadas para o temor de

Deus. É possível que aqui Vico tenha pensado na história da primeira forma de governo dos

povos hebreus (patriarcal), considerados os mais antigos, de acordo com sua tábua

cronológica disposta na Ciência Nova.

A idade heróica é costumeiramente apresentada a partir da constituição de um governo

oligárquico formado por alianças estabelecidas entre os chefes familiares. Estas eram seladas

com o objetivo de conter ataques e invasões externas, bem como de fortalecer a harmonia

interna das comunidades.

Algumas virtudes heróicas tais quais, a prudência, a força e a piedade eram

disseminadas pelos grupos hegemônicos da aristocracia e refletem os valores morais desta

idade. Todavia, a atmosfera da idade heróica permanecia violenta, cruel e espantosa, segundo

Vico. A fantasia era prevalecente sobre a razão de modo que a realidade não se distinguia da

imaginação. Para ilustrar este período Vico recorre aos poemas homéricos, destacando a

presença da mitologia na vida cotidiana dos gregos.

Diferente da sabedoria heróica, segundo Vico, a sabedoria poética se define como uma

força que consente aos homens ultrapassar a sua natureza corpórea e celebrar a natureza

“semi-divina” do espírito. Vico identificou na idade dos heróis um “princípio motor” de

desenvolvimento do espírito humano que tem uma forte inspiração da Providência, neste

sentido.

A idade dos homens é o momento em que a razão atinge o ápice de seu

desenvolvimento. É marcada pelo surgimento da língua vulgar, isto é, tempo em que as idéias

humanas podem ser raciocinadas e traduzidas por palavras. Para Vico, a terceira idade

humana, apresentou a última forma de governo em que finalmente se firmaram as nações: a

monarquia.

A idade humana é o tempo dos filósofos, da ciência e, portanto, de uma sabedoria

reflexiva, derivada de uma consciência prosaica. A seu modo, os filósofos concebiam o

direito com uma linguagem arrojada e ao mesmo tempo alcançável a todos. Acreditavam os

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filósofos da idade humana, em um direito natural abstrato e em uma forma de governo que

haveria sido a mesma dos primeiros tempos: a monarquia. Vico disse, “é tradição popular que

a forma de governo no mundo tenha sido a monarquia.” (VICO, 1979, p. 51). Comumente, a

sabedoria dos primeiros reis era comparada à sabedoria dos filósofos.

Neste sentido, Vico prosseguiu:

Vulgar tradição é também que os primeiros reis foram sábios, pelo que Platão com vão desejo prognosticava estes antiqüíssimos tempos nos quais os filósofos reinavam ou os reis filosofavam. Todos estes aforismos demonstram que nas pessoas dos primeiros pais estiveram reunidos sabedoria, sacerdócio e reino. E que o reinado e o sacerdócio estavam dependentes da sabedoria, uma sabedoria que não é recôndita dos filósofos, mas a vulgar dos legisladores. Por isso mesmo, a seguir, em todas as nações os sacerdotes foram coroados. (VICO, 1979, pp. 50-51).

Sob a luz deste aforismo, é possível perceber a distinção que Vico operou entre a

sabedoria dos primeiros Reis e a sabedoria “recôndita dos filósofos”. Neste sentido, mais uma

vez, o autor historiciza a sabedoria humana e contextualiza suas expressões. Novamente, Vico

demonstra o movimento de seu modelo interpretativo da história, rompendo com noções de

uma história pensada sob o propósito de utilizar o passado para confirmar a superioridade do

tempo presente, em voga no Iluminismo.

Vico acrescentou53: “(...) sobre a fantasia que os primeiros Reis tivessem sido

monarcas, tal qual são os presentes, não haveriam permitido se formarem as Repúblicas, com

a fraude e a força, como se é então imaginado, não haveriam permitido começar as nações.”

(VICO, 1728, p. 248).

A questão da sabedoria reflexiva própria da idade humana é um problema-chave para

se discutir as relações entre Vico e o Iluminismo e entre a sua obra da maturidade – a Ciência

Nova - e a história. Ao refletir sobre a sapienza riposta (sabedoria reflexiva), o napolitano

encontra o ponto de chegada da caminhada de um mundo infante para um mundo adulto.

Naturalmente, deste ponto de vista, o autor ressalta inúmeras vantagens trazidas na esteira do

aperfeiçoamento da racionalidade humana, desde que orientada pela “Mão Oculta” da

história, ou seja, pela Providência.

Por outro lado, a razão desenvolvida a revelia da inspiração divina e unicamente

norteada pelo livre-arbítrio humano, pode desviar as nações de seus cursos e prejudicar o

funcionamento do mundo civil. Em sua leitura do posicionamento cético e anticlerical dos

filósofos oitocentistas, Vico pôde reconhecer uma ameaça de declínio anunciada pelo triunfo

dos caracteres racionais de conhecimento sobre as formas poéticas de sabedoria. A razão

53 Texto original: (...) sulla fantasia che i primi Rè fussero stati Monarchi, quali sono i presenti, non abbiano

affato potuto incominciare le Republiche, anzi con la froda, e con la forza, come si è fin ora immaginato, non

abbiano potuto affatto cominciare le nazioni.

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cultuada a ponto de sua exaustão desencadearia de acordo com o filósofo, o enfraquecimento

da religião e da moral (conduta ética). Neste sentido, o autor também interpretou este estágio

como o presságio de uma “barbárie da razão”.

Todavia, não cabe neste trabalho, posicionar Vico contra o Iluminismo por sua censura

à vaidade da razão humana. Esta foi uma observação das possíveis conseqüências da

conjuntura intelectual que Vico experimentou. Não se trata necessariamente de uma

condenação, mas, de modo talvez mais adequado, de um alerta. Pois, o modelo de Vico

propõe que as nações consultem a Providência para que possam acelerar o próprio

desenvolvimento no curso da história. O afastamento da Providência seja em que tempo for,

pode encaminhar os homens à barbárie.

Para aprofundar a compreensão sobre este modelo, é imprescindível discutir as

expressões do espírito das nações ao longo das três idades humanas. O estudo das línguas e do

direito possibilitou a Vico recuperar o grau de desenvolvimento das nações em suas

respectivas “faixas etárias”. Sendo tanto a língua quanto o direito índices da evolução social

que possibilitam reconstituir os modos de pensar de cada uma das três idades humanas.

a) A língua e o direito

Vico disse certa vez que “o homem não é propriamente nada mais que espírito, corpo e

língua, e a língua está posicionada no centro entre o espírito e o corpo”. (VICO apud

GIRARD, 2001, p. 29). A posição intermediária entre o corpo e o espírito dá a linguagem um

papel essencial no mundo humano, pois simboliza a passagem do corpo ao espírito, ou seja,

corresponde a realização da natureza social do homem.

Cada etapa do curso das nações é, ao mesmo tempo, uma etapa de desenvolvimento da

linguagem:

Ora, para ingressarmos na dificilíssima questão da formação destas três espécies seja de línguas seja de letras, impõe-se-nos estabelecermos este princípio: que, assim como num mesmo tempo começaram os deuses, os heróis e os homens – já que também eram homens aqueles que ficcionalmente imaginaram os deuses, acreditando, contemporaneamente, sua própria natureza heróica mesclada da natureza dos deuses e da natureza dos homens – assim, a um só e mesmo tempo, iniciaram-se as três referidas línguas (acompanhando-as, obviamente, em igual passo, as letras). Mas com essas relevantíssimas três diferenças: que a língua dos deuses foi quase muda, e pouquíssimo articulada; a dos heróis, igualmente mesclada de articulação e de mudez, e, por vias de conseqüência, mesclada de falares vulgares e dos caracteres heróicos, com os quais os heróis escreviam, aos quais Homero denomina sémata; a língua dos homens, quase toda articulada e muito pouco muda, dado que não há língua vulgar de tal forma copiosa, em que não haja mais coisas do que palavras. (VICO, 1979, p. 109)

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A primeira língua, a divina, é mental, sem fala, exprime a sabedoria poética dos

primeiros homens. Como estes ainda não podiam articular palavras, se comunicavam por

sinais, gestos, com o corpo. O mesmo procedimento é válido para atribuir significados aos

objetos, o que aproxima os fundadores das nações das crianças.

Esta língua divina concebe imagens de deuses que como vimos, permite estruturar a

experiência dos homens, além de possibilitá-los construir as fábulas e a mitologia. Os

caracteres divinos se constituem através de imagens, que são os hieróglifos, ou “expressões

corporais e imaginadas das emoções humanas”.

A linguagem heróica, por sua vez, não abandona as imagens e se utiliza da rudeza das

metáforas poéticas para fazer menção a posição política dos heróis e seus direitos de

propriedade. Não é à toa que há todo um simbolismo na utilização de emblemas e escudos. Os

caracteres heróicos celebram heróis como Aquiles ou Hércules, como se pode constatar em

consulta aos poemas homéricos.

Enfim, a última língua é a humana, onde a linguagem já se encontra articulada.

Paulatinamente, a poesia cede lugar a prosa e isto se reflete em todo o desenvolvimento

político e civil da idade humana. Trata-se de uma linguagem vulgar, uma vez que é capaz de

reunir o povo inteiro no seio de uma nação.

Ao realizar esta ampla análise das três línguas, Vico parece ter encontrado um fio

condutor do desenvolvimento da racionalidade humana, sobretudo na primeira edição da

Ciência Nova. Buscou uma espécie de “etimologia universal”, o que pode ser interpretado

como um tronco comum a todas as línguas existentes.

A respeito disso, alegou:

Foi por isso, que nós na primeira edição da presente obra, cogitamos uma Idéia de

um dicionário mental que nos subministrasse as significações a todas as línguas

diversamente articuladas, reduzindo-se todas as determinadas unidades de idéias, em sua substância, unidades essas que com vários enfoques diversos dos povos, resultaram em vários vocábulos distintos. Disto ainda agora fazemos uso ao estabelecer a atual [versão] da Ciência. (VICO, 1979, p. 108)

Análoga a compreensão dinâmica da língua, pode-se afirmar que o nosso filósofo

concebeu o direito. Vico propõe uma natureza comum entre os homens e as nações, que não é

eterna, mas que se modifica conforme a ação do devir histórico. Esta proposta é uma das

contribuições primordiais de Vico ao desenvolvimento das ciências humanas e sociais. Ao

considerar o desenvolvimento mental e cultural do homem fora de um modelo etnocêntrico54,

54 Apesar do fato que as fontes utilizadas por Vico para pensar esta natureza presente em todos os homens, basicamente se restrinja aos povos hebreus, gregos e latinos, Vico leva em conta a idéia de ritmos diferenciados que cada nação específica processou seu desenvolvimento racional. Isto o poupou de comparações valorativas entre os povos ou entre os estágios de desenvolvimento das cognições humanas. (n. d. a. )

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anacrônico ou difusionista ainda na primeira metade do século XVIII, o filósofo napolitano

trouxe um modelo interpretativo da história que rompia com muitas tendências naturalísticas

da ciência Setecentista: o jurisnaturalismo é uma delas.

Segundo Vico, o direito natural das gentes se iniciou em algum momento, e foi

produto dos costumes destas gentes primeiras. A concepção viquiana de estar no tempo rompe

com a idéia de uma natureza estática, portanto de um direito eterno sustentada por autores

como Grócio (sobre quais obras Vico se aprofundou em sua formação intelectual), Selden e

Pufendorf. Para estes teóricos do direito natural, o direito é abstrato, foge à efemeridade do

mundo humano, e por ser imutável, pode ser comparado em todas as épocas e lugares.

Em seu argumento Vico elucidou:

As doutrinas devem começar onde começam as matérias que versam. Esta dignidade, aqui albergada em razão da matéria particular do direito natural das gentes, será universalmente usada em todas as matérias que aqui se abordam. Por isso, seria de propô-la entre as dignidades gerais. Colocamo-la aqui, pois nesta, mais do que em qualquer outra matéria particular, faz esplender a sua verdade e a relevância de fazermos uso dela. As gentes começaram antes das cidades, e correspondem àquilo que os latinos chamaram de gentes maiores, isto é, nobres casas antigas, como a dos pais, com as quais Rômulo compôs o senado, e com o senado, a cidade romana. Assim como pelo contrário, chamaram-se gentes minores as casas mais recentes, fundadas depois das cidades, tais as dos pais com que, expulsos os reis, Júnio Bruto encheu o senado, como que dessangrado pelas mortes dos senadores executados por Tarquínio Soberbo. (...) Em virtude dessas três dignidades, os três sistemas de Grócio, Selden e Pufendorf falham nos seus princípios, que começaram com as nações vistas por ele na sociedade de todo o gênero humano. Já este, entre todas as primeiras nações, como aqui será demonstrado, começou desde o tempo das famílias, sob os deuses das gentes chamadas “maiores”. (VICO, 1979, pp. 61-62).

Sendo assim, não era raro que os jurisnaturalistas mencionados cobrassem a

sofisticação do direito característico aos tempos que Vico definiria por idade humana, nos

tempos primitivos. Para nós, historiadores em pleno exercício de suas funções no século XXI,

este julgamento constitui um anacronismo. Para Vico, tal atitude invertia a ordem estabelecida

por ele para o curso das nações, e neste sentido, negava a existência do próprio direito dos

fundadores das nações.

Para Vico, a universalidade do direito não é nem abstrata nem teórica, mas surge no

curso de seu desenvolvimento que reproduz as modificações do espírito humano. Neste

sentido, ele marca o início das expressões de sabedoria poéticas dos homens: ele é cruel, duro

e severo, agregado à letra da lei, a lei das XII Tábuas de Roma.

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Com relação as XII Tábuas, Vico proferiu:

Assim devem ter aderido (affigersi) às XII Tábuas muitíssimas leis que a seguir demonstraremos terem sido estatuídas nos tempos posteriores. E (como plenamente demonstramos nos Princípios do Direito universal), dado que a lei do domínio quiritário, pelos nobres tornada comum aos plebeus, foi a primeira lei escrita em pública tábua (pela qual, de modo exclusivo, foram criados os decênviros), por seu aspecto de liberdade popular todas as leis que igualaram a liberdade e depois se inscreveram nas tábuas públicas foram atribuídas aos decênviros. (VICO, 1979, p. 95)

Na idade heróica, o direito procede por duelos, guerras, as quais Vico se refere por

“direito das armas” ou por “guerras justas”. Vico compreende as leis nesse momento como

uma expressão das contendas heróicas presentes nas repúblicas aristocráticas. Neste sentido,

observou que, “os fracos querem as leis. Os poderosos lhas recusam. Os ambiciosos, para

granjear popularidade, promovem-nas. Os príncipes, para igualar os poderosos com os débeis,

protegem-nas.” (VICO, 1979, p. 55)

Por conseguinte, o direito é refletido por filósofos e busca se estender a todos os

homens através da linguagem vulgar. Compreendendo o direito como evolução, Vico faz

lembrar Kant, que mais tarde, desenvolveria sua “História universal de um ponto de vista

cosmopolita”, sob esta mesma perspectiva de movimento.

Em Kant, a violência dos tempos bárbaros criou a necessidade de estabelecimento de

uma ordem sob a qual os homens pudessem viver pacificamente. Esta necessidade remonta ao

projeto da própria natureza para que o desenvolvimento das disposições racionais humanas

capacite o homem a administrar o direito universalmente. Já em Vico, as lutas heróicas

representam o meio pelo qual a Providência planejou a realização da natureza social do

homem.

3.4 A Providência e o Movimento da História

3.4.1 A Providência divina

A única certeza da realidade do mundo das nações é o “corso”, governado pela

Providência. De acordo com Croce, neste caráter a Ciência Nova pode ser definida como uma

“Teologia civil racionalizada da Providência divina”. Em sua reflexão acerca do tema da

Providência em Vico, Croce distingue dois sentidos em que o filósofo utiliza este termo: para

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designar a divindade providente que rege o destino dos homens e, para qualificar a ação

positiva da Providência sobre o mundo dos homens.

Identifica em ambas as acepções um significado em comum: a idéia que o homem tem

de Deus. Primeiro, o homem percebe Deus na forma de mito (idade dos deuses e dos heróis),

para depois percebê-lo de forma raciocinada, isto é, filosoficamente (idade dos homens).

Segundo Vico, as antigas nações gentílicas contemplavam Deus a partir do

reconhecimento de seu atributo providente. O presságio e a adivinhação consideradas as

formas primeiras de conhecer, foram também as primeiras formas humanas de conceber Deus.

Sem estas formas primitivas de conhecimento não se constituiria no homem a sabedoria e

nem a moralidade que no juízo de Vico são derivadas do temor e da reverência aos poderes

superiores que governam as coisas humanas. Vico define a Providência por um “espírito

eterno e infinito” que por sua função é “arquiteta do mundo das nações”.

Reconhece nela a ordem que permite amarrar os interesses particulares dos homens

(livre-arbítrio) a um fim universal que diz respeito à vida social e ao desenvolvimento do

direito natural:

O direito natural das gentes proveio dos costumes das nações, entre si conformes no referente a um senso comum humano, sem nenhuma reflexão e sem tomar como exemplo uma nação a uma outra. Esta dignidade, com a afirmação de Dião já referida, estabelece que a Providência é a ordenadora do direito natural das gentes, porque ela é a rainha dos negócios dos homens. (VICO, 1979, p. 61).

A grande originalidade do pensamento viquiano com relação à Providência é que esta

deixa de ser compreendida como força transcendental que age de maneira sobrenatural e

imediata sobre a história humana. Em Vico, Ela age de maneira mediata: enquanto fonte de

orientação ao espírito humano. Em outras palavras, a Providência não age sozinha, e tem

como seu princípio motor o livre arbítrio humano que é “fabbro” (operário) do mundo das

nações.

Se por um lado a Providência significa a união dos interesses individuais dos homens

que permite a sociabilidade da vida humana, por outro, ela se vale destes interesses

particulares para assentar uma ordem das coisas civis (as línguas, a religião, o direito etc.).

Neste sentido, a heterogeneidade das vontades humanas desaparece pouco a pouco do curso

das nações e se confundem com o projeto da Providência para os homens: a retidão do

espírito, ou a eleição das coisas que possam beneficiar todo o gênero humano.

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Na conclusão da Ciência Nova, Vico discorre sobre uma “eterna república natural

ótima em cada uma de suas espécies, ordenada pela divina providência55”:

Encerremos, pois, com Platão a presente obra. Apresenta ele uma quarta espécie de república, na qual os homens honestos e de bem fossem os senhores supremos: o que equivaleria a uma verdadeira aristocracia natural. Tal república, qual a compreendeu Platão, assim conduziu a Providência desde os albores das nações, ordenando que os homens de estaturas gigantescas, mais fortes, que deviam vagar pelas alturas das montanhas, como fazem as feras que são de mais robusta natureza, aos primeiros raios depois do dilúvio universal, de si mesmos aterrorizados por entre as cavernas dos montes, se submetessem a uma força superior, que imaginariam ser Zeus. E, completamente assustados, conquanto fossem só orgulho e ferocidade, se humilhassem diante de uma divindade. Aliás, em uma tal ordem de coisas humanas, não se pode pretender tenha sido adotado pela providência divina outra decisão para pôr cobro ao seu natural nomadismo por entre a grande selva da terra, com o fim de ali introduzir a ordem das coisas civis. (VICO, 2004, p. 697)

No entanto, a Providência não age em senso próprio. Ela pode ser pensada como uma

ordem universal dentro da qual flui o curso das nações. Esta ordem constitui, portanto um

quadro regulador do curso das nações, enquanto que a liberdade humana constitui seu

princípio motor.

Assim, Vico afirma que em alguns momentos, por exemplo, ao longo das lutas

heróicas, a Providência não interveio sobre as escolhas ou os costumes humanos, pois já

estava estabelecida para mais adiante uma ordem de desenvolvimento da religião cristã.

O lugar da Providência em Vico é crucial para a compreensão de seu pensamento. É a

“Providenza” a força determinante de uma ordem de desenvolvimento humano, que exige

racionalidade imanente no curso da história, que encoleira a liberdade do homem ao papel de

verdadeiro criador.

Todavia, a ação da Providência ou da “Razão Imanente”, sobre a história humana não

representa um movimento contínuo linear, tampouco de progresso irreversível. O modelo

viquiano propõe um movimento cíclico para o curso das nações, o que Vico definiu por corso

(curso) e ricorso (recurso).

55 Texto original: Conchiudiamo adunque quest’opera com Platone, il quale fa uma quarta spezie di repubblica, nella quale gli uomini onesti e dabbene fussero supremi signori: che sarebbe la vera aristocrazia naturale. Tal reppublica, la qual intese Platone, così condusse la provvedenza da’ primi incominciamenti della nazioni, ordinando che gli uomini di gigantesche stature, più forti, che dovevano divagare per l’alture de’ monti, come fanno le fiere che sono di più forti nature, eglino, a’ primi fulmini dopo l’universale diluvio, da essi atterrandosi per entro le grotte de’ monti, s’assoggettissero ad una forza superiore, ch’ imaginarono Giove, e, tutti stupore quanto erano tutti orgolio e fierezza, essi s’umiliassero ad una divintà: ché, ‘n tale ordine di cose umane, non si può intender altro consiglio essere stato adoperato dalla provvedenza divina per fermargli dal loro bestial errore entro la gran selva della terra, affine d’introdurvi l’ordine delle cose umane civili.

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3.4.2 Corso e ricorso da história

Na percepção de Vico, o fluxo histórico das nações é impulsionado por uma dialética

oscilante entre o curso e o recurso da história. O curso é a ordem universal de

desenvolvimento da humanidade que atribui uma natureza comum às nações. Ao estabelecer a

idéia de curso, Vico pôde ordenar o desenvolvimento da razão humana a partir da incursão

das nações em três idades diferentes: divina, heróica e humana. Estas idades se relacionam

aos estágios percorridos pela história profana, ou seja, são inerentes ao desenvolvimento do

mundo civil.

Naturalmente, em Vico a idéia do “corso” apresentada como uma ordem universal de

desenvolvimento do mundo civil remete à ação da Providência divina. Consiste em um

conceito pelo qual Vico trilha o progresso das nações que seguem em um mesmo sentido,

determinado pela “Razão Imanente” (ou Providência).

Embora o corso remonte a um plano divino para a história profana, isto é, o percurso

obrigatório que todas as nações realizam rumo ao desenvolvimento da sociabilidade humana,

Vico apresenta uma particularidade ao refletir este conceito. Este trajeto não é uniforme ou

linear. Ou seja, as nações vivem as três idades humanas em ritmos diferenciados e cada uma

delas tem suas próprias características culturais relativas à língua, religião, leis, organização

social e política, etc.

Neste sentido, o desenvolvimento das nações é multidirecional ou apresenta uma

heterogeneidade de sentidos, uma vez que não é uniforme. As particularidades culturais

também levam a pensar a multiplicidade cultural das nações, de modo que cada processo

possa ser interpretado como uma progressão específica no interior do desenrolar de uma

ordem universal. O corso, todavia, pode ser interrompido pelo “ricorso”. Ao contrário do que

se pensa recorrentemente, a idéia de recurso não é a antítese da idéia de curso. É seu

complemento, pois se considerarmos o curso como um fenômeno, o recurso seria um

epifenômeno.

Em um estágio de recurso não é propriamente a nação que está imersa em uma

situação de degenerescência, mas sim os elementos constituintes de sua cultura. Em outras

palavras, a organicidade destes é afetada, ou estancada. Vico acreditava que a Idade Média,

por exemplo, foi um momento de recurso na história das nações européias, em que a

racionalidade humana foi ofuscada pela obscuridade do dogma e do hermetismo religioso.

Como já foi discutido antes, também enxergou no conhecimento de seu tempo uma

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possibilidade de barbárie retornada, ou de ricorso, desencadeada pelo excesso de razão e pela

morte dos caracteres poéticos.

Em Vico, o estado de barbárie está atrelado à idéia de retorno, “ricorso” a um estágio

de desenvolvimento inferior ao atingido, mas não necessariamente indica um retrocesso ao

estado anterior. É o encerramento de um ciclo histórico que abre um outro, particular a cada

nação, mas universal na ordem do fluxo histórico impulsionado pelo “corso” e “ricorso”.

Cada fase atingida é, no entanto, diferente da anterior, a história não se repete, não é

circular e sim cíclica. De praxe, a metáfora do espiral sustentada pelos intérpretes de Vico

parece ser a mais adequada para definir o movimento de seu modelo interpretativo da história.

Vico propõe a idéia de retorno como uma intervenção divina no curso histórico das

nações. Neste âmbito, o ricorso é um estágio de provação, de purificação, tem efeito

regenerador e possibilita um ressurgir no curso com toda a força inicial. A realidade nova

desencadeada daí, não seria mais um retorno ao estágio anterior, pois como Vico estava

interessado em fazer uma história dos modos de pensar, portanto uma história das idéias é

importante lembrar que as idéias não retrocedem.

3.5 Reflexões sobre Vico e o Iluminismo

Em primeiro lugar, para produzir reflexões acerca da idéia de história apresentada por

Vico em sua Ciência Nova, seria interessante depará-la com a noção hegemônica de história

do final do século XVII para o início do século XVIII. Em seguida, a idéia viquiana de

história será confrontada com os dois pilares da ciência iluminista: o empirismo e o

racionalismo cartesiano. Vamos ao primeiro ponto.

No segundo capítulo, vimos que o gênero literário do romance se confundiu com a

história no século XVII. Boa parte da produção romanesca do período em questão buscou

alcançar uma realidade histórica que não podia ser atingida pela história.

Neste sentido, Goulemot acrescenta que:

São os romances que pertencem à série de histórias secretas, como os de Caumont de La Force (Histoire secrette de Marie de Bourgone (1694), Histoire secrette de

Henri IV, roy de Castille (1695)...), que querem explicar pelos impulsos do coração e pela libertinagem, as revoluções por que passaram os governos. (GOULEMOT, 1993, p.964)

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Independente dos fins a que busca atender o romance histórico, se tende ao mero

divertimento de seus leitores, ou se apresenta alguma intenção moral, é quase sempre certo

que este ocasiona uma reflexão sobre a história e sobre suas relações com o destino dos

homens. Neste caso, a ficção ou a identificação entre os heróis romanescos e os

acontecimentos reais da história são colocados em plano secundário.

Ora, ao esboçar uma conjuntura histórica específica, a ficção é emoldurada pela

realidade de um quadro geral referente a um dado período. Daí, os destinos individuais de

personagens fictícias, ou de situações anedóticas, ganham uma fundamentação histórica. De

um modo geral, o romance histórico almeja acessar a memória cultural de seus leitores e

propiciar a sensação de alguma familiaridade ou de identificação com o pano de fundo

histórico da trama.

A idéia de uma “memória cultural” também pode ser encontrada na forma com que

Vico buscava apreender os modos de pensar através dos caracteres poéticos. Os poemas

homéricos são estudados por Vico não para distinguir o que é real do que é ficção, mais para

reconstituir toda uma tradição da sabedoria poética que narrava seus acontecimentos através

de fábulas fantásticas, expressava seus valores morais através da mitologia, etc.

A poesia está para Vico assim como o romance está para a historiografia do séc. XVII:

ambos são tomados por verdadeiros testemunhos históricos, independentemente de seus

componentes fantásticos ou fictícios. Neste sentido, Vico perscrutou os princípios da história

Romana narrada por Tito Lívio, Virgílio e Cícero não para impor seu estatuto de verdade

sobre o deles, mas para a partir do contato com estas fontes construir uma identidade cultural

para o próprio povo italiano.

Ao lidar com a obra destes historiadores, Vico buscou reconstituir a história das

instituições italianas, buscando alcançar as origens do direito romano, da religião Católica, do

desenvolvimento da língua latina, etc.

Ao findar sua Autobiografia, Vico anunciou56:

Com esta obra, Vico com a glória da Religião Católica dá a vantagem à nossa Itália de não invejar a Holanda, Inglaterra e a Germânia Protestante e os três Princípios desta Ciência, e que nesta nossa idade, nos braços da verdadeira Igreja se descobriram os Princípios de toda a humana, e Divina Erudição Gentílica. (VICO, 1728, p. 251)

56 Con la qual opera il Vico com gloria delle Cattolica Religione produce il vantaggio alla nostra Italia di non invidiare all’Olanda, Inghilterra, e la Germania Protestante i loro tre Principi di questa scienza, e che in questa nostra età nel grembo della vera Chiesa si scuoprissero i Principi di tutta l’umana, e Divina Erudizione

Gentilesca.

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No caso específico de sua Autobiografia, vale salientar, que Vico recorre à tradição

cultural italiana no intuito de viabilizar um projeto de reforma educacional para a Itália, que

fosse mais flexível ao emprego de novos métodos de estudo. Na verdade, a idéia de escrever a

Autobiografia não surgiu de Vico.

Sobre esta polêmica, Peter Burke relata que:

No entanto, a idéia de escrever a autobiografia não foi dele mesmo. A obra foi na realidade encomendada por um certo Conde Porcía, um soldado de pretensões literárias que estava a serviço da República de Veneza, e fazia parte de um projeto geral de reunir as autobiografias intelectuais de homens eminentes, a fim de documentar seus métodos de estudo e os obstáculos que haviam encontrado em seus caminhos, e, assim, poder reformar o sistema educacional e colocá-lo sobre uma sadia base empírica. O projeto foi provavelmente idéia do polímata veneziano, o frade e arquiteto Carlo Lodoli (1690-1761), um admirador que não foi plenamente apreciado em seu tempo. (BURKE, 1997, p. 23)

Os intelectuais italianos adeptos desta reforma almejavam que a Itália acompanhasse a

renovação cultural impulsionada pela ciência iluminista, que se alastrava por toda a Europa.

Neste sentido, a Itália berço do Renascimento, cenário cultural importantíssimo para o

desenvolvimento da ciência moderna, não podia isentar-se das repercussões que as novas

idéias encaminhadas da França imprimiam em seu sistema educacional.

Por outro lado, conter o renovamento da cultura era a ordem do dia de muitos grupos

conservadores representantes de instituições arcaicas como a Igreja, a nobreza em sua ala

mais reacionária, alguns sistemas de governo milenares ou mesmo seculares estabelecidos no

poder. Esta situação se configurava especialmente em capitais (como Nápoles e Roma) ou em

províncias que exerciam influência econômica sobre as demais (como Florença).

Naturalmente, a mudança nos modos de pensar o Estado, o direito e enfim, de conceber o

mundo, representavam uma ameaça à hegemonia cultural, política e, claro econômica que

estes centros logravam.

Ainda no fim de sua autobiografia, Vico dedicou a obra ao Cardial Lorenzo Corsini,

também adepto da implantação de uma reforma no sistema educacional italiano.

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Disse Vico57: Por tudo que tem creditado o livro, convém meritar o Eminente Cardial Lorenzo Corsini, para quem está dedicada a satisfação nesta não última aprovação: Obra que

a antigüidade da língua, e solidez da Doutrina, basta para fazer conhecê-la, que

também vive hoje no espírito Italiano, não menos a nativa particularíssima aptidão

à Toscana eloqüência, que o robusto destemor a novas produções nas mais difíceis

disciplinas. Onde eu me congratulo com esta sua ornamentadíssima Pátria. (VICO, 1728, p. 251)

Vico ressalta naturalmente um “robusto destemor” que ainda “hoje” (em seu tempo)

habita no “espírito italiano” em referindo-se a “novas produções nas mais difíceis

disciplinas”. Aqui, mais uma vez Vico consulta a autoridade da tradição da “língua” e da

“Doutrina” italiana para se reportar à bravata dos italianos na produção do saber.

O passado dos italianos estudado por Vico com o fito de construir uma identidade

cultural se afasta do procedimento dos iluministas com relação ao passado. Enquanto Vico

refletia historicamente os elementos culturais que constituem o “espírito italiano” indo até a

tradição greco-romana, os historiadores-filósofos estudavam o passado para libertá-lo do peso

da tradição.

Vico pôde reconhecer na tradição valores independentes da razão, a exemplo da

imaginação. Para o autor, a sabedoria poética não é menos importante que a sabedoria

reflexiva, apenas constitui a primeira um tipo de conhecimento fantástico, que interpreta o

mundo a partir do poder de criação da mente humana em sua infância. Mas, que é uma forma

de conhecimento tão válida quanto à sabedoria raciocinada.

Tome-se o seguinte exemplo. Enquanto Vico parece ter buscado diferentes expressões

de verdade no contato com fontes históricas, (o que pode se confirmar, por seu interesse pelos

poemas homéricos, pelas narrações das origens da história Romana, por suas influências de

Platão, etc.) o historiador-filósofo Pierre Bayle pretendeu elencar uma série de erros

cometidos pela historiografia tradicional em seu Dicionário crítico.

Neste sentido, Bayle buscou subtrair o caráter anedótico da história Setecentista. Não

obstante, preocupou-se em estabelecer uma atitude ética para os que escreviam a história, e

que muitas vezes falseavam as verdades dos fatos ou apresentavam falsos relatos por

verdadeiros, mediante a rigorosa crítica das fontes históricas.

Por outro lado, Vico também apresenta pontos em comum com a idéia moderna de

história defendida por Pierre Bayle. Tanto Vico quanto Bayle distinguiram a história sagrada, 57 Texto original: Per tutto ciò hà havuto il libro la fortuna di meritare dall’Eminent. Cardinale Lorenzo

Corsini, a cui stà dedicato, il gradimento con questa non ultima lode: Opera al certo che per antichità di lingua,

e per solidezza di Dottrina basta a far conoscere, che vive anche oggi negl’Italiani spiriti, non meno la nativa

particolarissima attitudine alla Toscana eloquenza, che il robusto felite ardimento a nuove produzioni nelle più

difficili discipline. Onde io me ne congratulo com cotesta sua ornatissima Patria.

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(ou macro-história) definida por uma história divina (que, portanto não pode constituir o

objeto de uma ciência humana) da história profana, compreendida por uma história do mundo

civil e de tudo aquilo que é engenho de sua própria obra. Nesta última alternativa Vico

encontra os elementos que podem constituir uma ciência do homem.

O napolitano colocou a história profana ao alcance do conhecimento humano, através

de sua idéia de “uma natureza comum entre as nações”, ampliando a autoridade das fontes

eclesiásticas para tudo aquilo que resultasse da invenção humana, tal qual Bayle. A diferença

aqui é que Bayle contestou a autoridade da Bíblia enquanto fonte histórica, enquanto Vico,

em sua condição de católico, não o fez.

Em certo sentido, Vico também pode ser identificado como mais um intelectual que

resgatou a tradição baconiana para dentro do credo científico iluminista. Neste aspecto, tal

qual Newton formulou as leis da força da gravidade, Vico encontrou leis que regem a história:

o corso e o ricorso. Ao fazê-lo, estava na verdade reclamando a possibilidade de uma ciência

do mundo civil (recusada por Descartes) junto à corrente de pensamento do empirismo.

O mundo fenomenológico, outrora descartado pela ciência cartesiana encontra um

lugar privilegiado na constituição do pensamento viquiano. Para Descartes as artes, a

literatura e a historiografia estavam fora da alçada das ciências por considerá-las

entretenimento. Vico ao contrário, reúne todas as produções do espírito humano no cerne de

sua Ciência Nova.

Para isto, discerniu o estudo da natureza e o estudo do mundo dos homens, isto é, do

mundo da história. Segundo Vico, a natureza é fruto da obra divina e, portanto só Deus é

capaz de conhecê-la profundamente, uma vez que é o seu criador. Em contrapartida, o mundo

civil é o resultado de uma construção social, e, portanto é inteligível ao intelecto humano.

Cabe aos homens compreender o mundo em que vivem a partir da interpretação do

significado dos mitos, do estudo da formação da língua, da poesia, das leis, da constituição

dos sistemas de governo, enfim, a partir da historicidade das culturas.

De acordo com Vico:

Na noite das densas trevas que envolvem a primeira Antigüidade, tão distante de nós, brilha a eterna e infalível luz de uma verdade acima de qualquer questionamento: que o mundo da sociedade civil foi certamente feito pelo homem, e seus princípios, portanto, devem ser achados dentro das modificações da nossa própria mente. (VICO apud BURKE, 1997, pp. 88-89).

A passagem acima denota a preocupação de Vico em estabelecer princípios

legitimadores dos estudos humanísticos, que se encontram no interior das próprias criações

humanas. As novas diretrizes ou a racionalidade que o napolitano sugere para as ciências

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humanas consiste no próprio desenvolvimento das cognições humanas, bem como de suas

respectivas formas de conhecer.

No entanto, não apenas na fonte das experiências humanas bebe o modelo viquiano de

história. A idéia de uma história ideal eterna parece ser um tanto contraditória se pensarmos

que busca reunir o aspecto empírico da história a um esquema ideal e eterno, portanto,

abstrato. Neste sentido, a Ciência Nova permite através de seu complexo estatuto retórico,

relacionar um nível empírico e histórico (a exemplo da história dos gregos e romanos) a um

nível filosófico e científico, que seria ideal e eterno. Vico realiza esta associação mediante o

emprego de princípios e axiomas onde os apresenta.

A filologia é um destes princípios, que permite a Vico perscrutar a língua, as leis, a

religião, dentre demais elementos culturais característicos dos povos. Naturalmente como

pode ser percebido na Ciência Nova, o autor prioriza os povos gregos e romanos e

consequentemente as nações ocidentais que governam seu curso na história sob a ação do

verdadeiro Deus. Vico buscou unir a filologia à filosofia, de modo que, ao mesclar dois níveis

retóricos distintos, permitisse que sua obra capital fosse simultaneamente um estudo de

“filosofia e história dos costumes humanos”.

Do contato entre filologia e filosofia Vico encontrou a possibilidade de abordar

cientificamente os elementos componentes do mundo civil:

A filosofia considera a razão, de que procede a ciência do verdadeiro, a filologia considera a autoridade do arbítrio humano, de que resulta a consciência do certo. Esta dignidade, em sua segunda parte, define como filólogos todos os gramáticos, historiógrafos e críticos, que se ocuparam do conhecimento das línguas e das empresas dos povos, tanto em seu território, tais como os costumes e as leis, quanto fora dele, como as guerras, os tratados de paz, as alianças, as viagens e os intercâmbios comerciais. Esta mesma dignidade, comprova haverem falhado pela metade tanto os filósofos que não aferiram as suas razoes pela autoridade dos filólogos, quanto os filólogos que não se deram ao cuidado de verificar as suas autoridades pela razão dos filósofos. Se uns e outros tivessem feito isso, teriam sido mais úteis às republicas e nos teriam antecedido no meditar desta Ciência. (VICO, 1979, p. 10)

Enquanto para Descartes a filosofia se restringe ao plano das abstrações lógicas e ao

conhecimento supra-sensível, para Vico a filosofia deve mergulhar no mundo do homem e

ajudá-lo a livrar-se de sua Corrupção, guiando-lhe o raciocínio através da inspiração divina.

Antes de iniciar a discussão final acerca das famosas polêmicas entre Vico e Descartes, é

jogada a questão: poderiam os dois autores ter algo em comum? Em linhas gerais, a atenção

filosófica do século XVII está centrada na supressão da componente pragmática e subjetiva do

conhecimento orientada pelo rigor cartesiano da precisão. De acordo com o italiano Nicola

Badaloni o século XVIII legou a missão de definir a relação entre a filosofia cartesiana do

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XVII com a ciência e com o mundo civil em seu plano social e político. Este seria o problema

filosófico de maior dimensão no século XVIII, segundo o autor.

A incumbência dos filósofos do século XVIII é por um lado mais que um simples

rearranjo da filosofia do XVII, visto que visa o estancar da primeira crise dos pressupostos

gerais da filosofia cartesiana. Não obstante, também é pauta da agenda do século XVIII

adaptar o ideal de ciência às novas exigências de uma sociedade burguesa em pleno

desenvolvimento. É exatamente a partir da emergência desta crise interna da metafísica

cartesiana que Vico caminha no intuito de esclarecer em termos de necessidade social a

passagem de um mundo que outrora prevalecera à imaginação (fantasia), para um mundo no

qual agora (no tempo de Vico) prevalece a razão.

Concordando com a idéia de Nicola Badaloni de que a crise interna da metafísica

cartesiana já estava anunciada desde antes da crítica viquiana, pode-se dizer que Vico

encontrou algumas “fragilidades” no projeto de expansão da razão cartesiana. Uma delas, diz

respeito à metodologia posicionada no coração daquele sistema. A razão cartesiana não

conseguia se expandir para além da matemática e da física mediante a qual ampliou seu raio

de influência através do êxito da física mecânica e do triunfo do mecanicismo enquanto

corrente do pensamento moderno. Todavia, a polêmica contra o método geométrico, assume

em Vico um caráter muito geral e engloba também resíduos do próprio cartesianismo58.

Mas, é inegável que Vico rompe com Descartes quando afirma ter encontrado os

princípios que possibilitam a formulação de um conhecimento verdadeiro do mundo das

experiências, ou seja, do mundo dos homens, do mundo da história. A consciência da

historicidade do homem e de tudo aquilo que constitui a obra humana, traz à perspectiva

viquiana um lugar especial para o sujeito do conhecimento.

Conhecendo sua própria criação, o sujeito criador também é o sujeito determinante

para construir o juízo das coisas mundanas. Neste sentido, o sujeito não é meramente um eu

pensante das coisas abstratas, mas, estabelece as relações de juízo sobre aquilo que está à sua

volta, sobre aquilo que pode conhecer profundamente e está aquém do mundo civil. A tomada

de consciência histórica das produções do espírito humano é o ponto de partida para o

conhecimento e o juízo sobre as coisas. Mesmo que não se deva, pode-se arriscar dizer que a

ontologia viquiana antecipa a questão do sujeito refletida por Kant a partir do conceito de

interesse.

58 Peter Burke afirmou que “sem dúvida, Vico pretendia apresentar as principais conclusões da Ciência Nova sob a forma geométrica de deduções de um conjunto de axiomas”. (Burke, 1997, p.29).

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Vico trouxe para o Iluminismo uma nova concepção entre o homem e a história e

libertou a filosofia da clausura do plano das idéias para o mundo sublunar. Nestes aspectos, a

controvérsia entre Vico e Descartes é inegável. Muito embora, isto não signifique que o

pensamento de Vico seja inconciliável ao de Descartes. Na verdade, Vico defendia a

racionalidade de uma ciência do homem tal qual Descartes o fizera com a matemática, a física

e as ciências da natureza. Neste sentido, o filósofo napolitano deu continuidade ao que

Descartes já havia iniciado.

A concepção cartesiana de ciência tinha em seu núcleo o método geométrico como

modelo de abstração e de acesso à dimensão das idéias claras e distintas. A concepção

viquiana de ciência a seu modo encontrava outros princípios que buscavam legitimar a

pertinência dos estudos humanos, mas que não destoavam dos fins do cartesianismo, e do

próprio ideal de ciência em voga na Idade das Luzes – atingir o conhecimento verdadeiro

através do desenvolvimento da razão humana.

Vico também estava afinado com a idéia de um conhecimento sistemático, produzido

por colaboradores, de modo que em meio à diversidade as ciências pudessem constituir uma

unidade59:

No ano de 1708, havendo a régia Universidade determinado fazer uma solenidade pública de abertura dos estudos, e dedicá-la ao Rei, com um discurso a ser proferido na presença do Cardinal Grimani Vice-Rei de Nápoles, veio felizmente a Vico meditar um tema, que contesse alguma nova descoberta, que fosse útil ao mundo das letras, que produzisse um desejo digno de enumerá-la dentre as de Bacon, no seu novo Mundo das Ciências. Ele se enganava sobre as vantagens e desvantagens da

nossa maneira de estudar em confronto a dos Antigos em todas as espécies de

saber: e quais vantagens nossas, e por quais razões poderiam se desviar; e tendo

estas se desviado, não se pode com as vantagens dos Antigos fazer compensações;

tanto que uma Universidade inteira de hoje em dia, seria um só Platão, e tudo mais

que nós estimamos sobre os Antigos; porque todo o saber humano, e divino se

sustenta em toda parte com um espírito (método), que custa em todas suas partes, o

ato de dar as mãos entre as Ciências, e não que alguma constitua impedimento à

outra. (VICO, 1728, pp. 207-208).

Sob a luz do texto elaborado pelo próprio Vico, é possível afirmar que o autor concebe

o conhecimento na forma de um sistema. Segundo Kant um sistema constitui “a unidade de

59 Texto original: Ma nell’ano 1708, avendo la Reggia Università determinato fare un’Apertura di studi

pubblica solenne, e dedicarla alla presenza del Cardinal Grimani Vicerè di Napoli, e che perciò si doveva dare

alle stampe; venne felicemente fatto al Vico di meditare un’Argomento, che portasse alcuna nuova scoverta, ed

utile al Mondo delle lettere, che sarebbe stato un desiderio degno da esser noverato tra gli altri del Bacone, nel

suo nuovo Mondo delle Scienze. Egli si raggira d’intorno a’ vantaggi, e disvantaggi della maniera di studiare

nostra, messa al confronto di quella degli Antichi in tutte le spezie del sapere: e quali svantaggi della nostra, e

con quali ragioni si potessero schivare; e quelli, che schivar non si possono, con quai vantaggi degli Antichi si

potessero compensare; tanto che un’intiera Università di oggi dì fosse per essemplo un solo Platone, con tutto il

di più, che noi godemo sopra gli Antichi; perche tutto il sapere umano, e divino reggesse dapertutto con uno

spirito, e costasse in tutte le parti sue, si che fi dassero le Scienze l’un’all’altra la mano, nè alcuna fusse

d’impedimento a nessuna.

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múltiplos conhecimentos, reunidos sob uma única idéia”. (KANT apud ABBAGNANO,

2003, p. 908). Neste ponto, Vico se aproxima muito de Descartes ao pensar a organização do

conhecimento dentro de um sistema.

Em contrapartida, o filósofo italiano estava consciente de que no interior do sistema

cartesiano o desenvolvimento dos estudos humanísticos não tinha seu lugar garantido. Este

era um dos limites da razão cartesiana: não conseguir imprimir em outras ciências seu

princípio comum a partir de um método geométrico. Mesmo tendo distinguido o estudo da

natureza do estudo dos homens, Vico não chegou a condenar o estudo da matemática ou da

natureza. Antes, pelo contrário, o autor compreendia a matemática, ou a física, e as Ciências

todas como um produto da racionalidade humana, socialmente e historicamente

condicionados. O homem é simultaneamente o sujeito criador e juiz dos conhecimentos que

formulou sobre o mundo, tanto no que se refere à natureza quanto à sociedade.

De fato, uma coisa estava clara para Vico, se o método dedutivo não possibilitava

expandir a razão para todas as ciências, o sistema cartesiano deveria ser repensado. No ímpeto

desta missão, Vico propôs no lugar do cogito, o princípio do verum/ factum. Mas, não

destruiu o cartesianismo, antes pelo contrário, buscou identificar suas insuficiências e

concertá-las a seu modo, falando da Itália, aproximadamente quase um século após a morte de

Descartes.

Vico estava insatisfeito com a restrição do cartesianismo a outros conhecimentos que

não fossem a matemática, ou a filosofia abstrata60, “não se imaginava que astutamente por fim

Renato delle Carte em torno do método de seus estudos assentasse apenas sobre a sua

filosofia e Matemática, e prostrasse todos os outros estudos, que compunham a divina, e

humana erudição”.(VICO, 1728, p. 151).

A tentativa de reformar o modelo cartesiano de ciência e de expandir a razão para

outras searas do conhecimento é uma atitude muito coerente com a proposta iluminista de um

conhecimento verificável, ajustável, que em seu interior dispõe de instrumentos críticos que

viabilizam sua própria correção. Não há dúvidas de que a atitude de Vico com relação ao

sistema cartesiano estava em harmonia com a cultura científica do Iluminismo.

A contribuição de Vico à expansão da razão e da crítica às ciências demonstra sua

posição de intelectual coerente com as preconizações da ciência e filosofia iluminista. Mesmo

que Vico tenha apresentado alguma resistência ao excesso de razão, ou tenha desconfiado da

60 Texto original: Non fingerassi quì ciò che astutamente finse Renato delle Carte d’intorno al metodo de’ suoi

studi, per porre solamente su la sua filosofia, e Mattematica, ed aterrare tutti gli altri studi, che compiono la

divina, ed umana erudizione.

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idéia de um progresso histórico irreversível vigente nas idéias de alguns iluministas como

D’Alembert, Vico pode ser visto como um homem de seu tempo. Assimilou o racionalismo e

o experimentalismo em seu sistema embora tenha atrelado o arbítrio humano á ação da

Providência.

Isto reflete apenas o que Venturi alertou sobre os ritmos e as condições de recepção

das idéias iluministas em outros centros. Na Itália, a força da tradição humanista era muito

grande, o que pode ser conferido em Vico quando elegeu o método filológico para realizar

estudos das leis dos antigos romanos, ou dos poemas homéricos a fim de resgatar a história e

a memória dos gregos. A idéia de engenho, ou poder de criação também parece sair desta

mesma tradição.

Rossi lembra que muitos intelectuais e cientistas italianos recepcionavam as idéias

iluministas tentando harmonizá-las às suas próprias concepções, em vez de abandoná-las por

“novas” doutrinas. Por isso, naturalmente, Vico não pode ser comparado a um philosophe

como Voltaire, por exemplo. Sua realidade era outra, sua tradição também. A França era o

coração do Iluminismo e a Itália era um centro receptor e mesmo questionador dos novos

ventos transformadores. Seguindo este raciocínio, Vico não precisou fazer concessão de sua

fé para contagiar-se pelas idéias iluministas.

O problema de pensar Vico como um homem fora de seu tempo, quer seja à frente, ou

atrás, é fruto de uma reflexão simplista e reducionista do Iluminismo. É produto de um senso

comum segundo o qual o século das Luzes foi um processo linear em toda a Europa e que

produziu os mesmos efeitos por onde passou. Em suas últimas linhas, o presente trabalho se

despede almejando ter alcançado seu objetivo maior: apresentar a idéia de conhecimento

histórico em Vico dentro do momento iluminista em que viveu.

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CONCLUSÃO

O ato de tentar caracterizar o Iluminismo a partir de sua “unidade” deve levar em

consideração o questionamento comum por uma reorientação racional em todas as áreas do

conhecimento. Partindo deste ponto de vista, chegamos à conclusão que as respostas

derivadas deste questionamento não são necessariamente as mesmas, e que estas não

permitem uma caracterização baseada em um princípio unitário.

Logo, percebemos que na própria França levantaram-se vozes diferentes

argumentando os caminhos a se seguir sob a luz da razão: Diderot, Bayle, Rousseau,

Montesquieu, Voltaire, etc. O que permite agregar todos estes pensadores no seio do

movimento iluminista francês não é a similitude de suas reflexões, mas sim o questionamento

comum que as produziram.

Fora da França, a diferença entre as respostas para uma reorientação racional é ainda

mais díspar. Isto ocorre por conta do ritmo e do impacto com que as idéias iluministas foram

absorvidas em outras partes. Estas se chocavam com uma tradição que não é francesa e,

portanto, muitas vezes foram adaptadas à realidade local de seu centro receptor. Contudo, não

deixavam de surtir efeito sobre os seus modos de pensar o conhecimento na qualidade de uma

poderosa ferramenta em favor da melhoria da vida social e privada do homem.

A questão do conhecimento aberto à crítica, uma característica substancial do

pensamento filosófico e científico iluminista, implicou em um revezamento de princípios, de

métodos e de enunciados. Mas, de modo geral, a forma de um conhecimento ajustável e com a

possibilidade de ser reorientado quando desviado do progresso, era preservada. E esta era a

condição para perpetuar o progresso das ciências e se possível acelerá-lo ao longo do

Iluminismo, mediante o bom emprego da razão em seus domínios.

Nesta perspectiva, Newton foi reconhecido por envolver-se em discussões que

mudariam o curso do pensamento do século XVIII. O seu debate com os cartesianos originado

a partir da física, colocou os fundamentos da racionalidade científica preconizada pelo

cartesianismo segundo o princípio da dedução no centro de muitas indagações. Para Newton,

a pesquisa experimental deveria cercar o terreno das ciências, de modo que, o que estivesse

para além dos limites da estrita observação não poderia constituir o elemento de uma ciência.

Aproximadamente vinte anos depois, na Itália Vico também apontava a fragilidade do

sistema cartesiano que não conseguia expandir a razão para outras ciências que não a

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matemática e a física. Todavia, Vico não se restringiu assim como outros debatedores do

cartesianismo na Itália, a apontar as conseqüências perigosas que o método “subjetivo” (modo

como alguns intelectuais italianos se referiam ao método dedutivo) baseado na idéia de cogito

representavam para a religião, ou a discutir a partir da escolástica se o cogito seria ou não um

silogismo, e se considerado um silogismo fosse ele defeituoso ou não. Também não estava

Vico satisfeito em simplesmente protestar contra o desprezo cartesiano frente à história, à

retórica e à poesia.

Vico foi ao coração da questão e contestou o princípio da evidência estabelecido por

Descartes como verdade científica. Para o napolitano, o método dedutivo não atendia as

exigências de revelar à razão, novos campos do conhecimento. A consciência de ser um ser

pensante, produtor de idéias para Vico não resolve o problema da verdade científica, porque

as idéias também são equivocadas e podem ser refutadas quando não bem fundamentadas.

No intuito de reformar a racionalidade científica a seu modo, Vico aproveitou-se da

própria crise interna dos pressupostos cartesianos. Estabeleceu o princípio do verum/ factum,

a partir do qual o conhecimento do mundo humano se torna inteligível à mente de seus

próprios gestores. As instituições civis, as ciências, e tudo que é produto das potencialidades

racionais humanas pode ser conhecido por aqueles que as construíram. Contudo, para

conhecer o mundo das coisas humanas, é preciso conhecer como este mundo se constituiu e se

organizou ao longo do devir histórico.

Neste sentido, pode-se dizer que Vico assim como tantos filósofos iluministas, a

exemplo do próprio Newton, representou a busca revigorada por um conhecimento seguro.

Sem renunciar a seus costumes e aspectos tradicionais de seu modo de pensar, Vico deu sua

contribuição à ciência iluminista, com estilo próprio.

Enfim, Vico trouxe à tona um novo relacionamento com a história, apresentando-a a

possibilidade de organização enquanto um conhecimento científico, dotado de racionalidade

própria, com métodos e princípios característicos. Talvez, sem intencionar, tenha ainda

ressaltado a importância da história como forma de compreender o desenvolvimento da

própria razão humana e suas respectivas formas de conhecer, com o fito de demonstrar uma

natureza comum entre as nações. Pois em Vico, assim como em Descartes,os homens são

dotados das mesmas capacidades intelectuais, pois são seres racionais que se distinguem dos

não racionais por sua própria natureza pensante.

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ANEXOS

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ANEXO A – Retrato de Vico

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ANEXO B – Contra capa da Ciência Nova

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ANEXO C – Gravura do frontispício da Ciência Nova

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ANEXO D – Tábua cronológica

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ANEXO E – Sistema heliocêntrico de Copérnico

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