o racionalismo de rousseau - derathe

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  • 8/13/2019 O Racionalismo de Rousseau - Derathe.

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    Depois, como se houvesse esquecido tais acusaes,v-se o autor celebrar, com o mesmo vigor e convico, aorigem celeste da s razo. Onde buscar a s razo, seno

    no que a sua fonte? E que pensar daqueles que se consagrama corromper nos homens essa chama divina que Deus lhesdeu para gui-los? A esse texto pouco conhecido da NovaHelosa4 corresponde a clebre passagem da Profisso de fdo vigrio saboiano: O Deus que adoro no um Deus dastrevas, ele no me dotou de um entendimento para proibir-mede us-lo: dizer-me para submeter minha razo ultrajar seuautor. 5

    Com efeito, se a razo um dom de Deus, seriaimpossvel condenar seu uso, e Rousseau, que reivindica ahonra de ser um homem que raciocina6, defende, por todaparte, em poltica como em religio, os direitos da razo,contra aqueles que, em nome da autoridade ou do preconceito,gostariam de silenci-la.

    No se deve, em nada, punir o uso da razo, nemmesmo o raciocnio; tal punio deporia fortemente contra

    nenhuma indicao bibliogrfica especial se referem a essa edio que,como se sabe, considerada a vulgata das obras de Rousseau).4Ibid., III Parte, Carta XVIII (IV, p.250)5P.168.6Cartas escritas da montanha, III, p.206: Isto, penso, do direito de umhomem que raciocina. Conferir Carta a Montmollin,Motiers, 24 agosto1762, Correspondncia Geral, publicada por Th. Dufour, Paris, Colin, 20vols., in-8, 1924/1934, t.8, n.1501, p.83 (a partir de agora, designaremosessa edio pelas iniciais C.G.): no bom que se pense que um homemde boa f que raciocinano pode ser membro de Jesus-Cristo. Aparece omesmo na Profisso de f, nas rplicas do Raciocinador, p.170: Quem

    quer que deseje recusar a razo deve convencer sem dela se servir; p.171:No h nada mais incontestvel do que os princpios da razo.

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    aqueles que a infligissem, diz ele, nas Cartas escritas damontanha.7

    igualmente s razo que o pensador nos remetepara preservar-nos dos descaminhos do corao. O corao o que se l naNova Helosa nos engana de mil maneiras, eage sempre por um princpio suspeito: mas a razo visa o que bom; suas regras so seguras, claras, fceis na conduta davida; e somente se extravia em especulaes inteis que paraela no foram feitas.8

    Entretanto, ainda mais frequentemente, Rousseau nosrecomenda consultar a natureza, cujos movimentos sosempre retos. A voz da natureza, para Rousseau, menos a denossas inclinaes que a da conscincia. Mas a prpriaconscincia no um juzo da razo, o impulso de um sersensvel.9 Embora se oponha, em ns, ao amor de nsmesmos, ela, como ele, vem do domnio da sensibilidade.Amor do bom ou do belo moral, sentimento inato, instinto

    divino, em seu princpio ela permanece independente daprpria razo10. Ora, segundo Rousseau, a conscincia quedeve ser a regra de nossas aes, porque infalvel, enquantoacontece da razo extraviar-se. Creio ter uma regra maissegura, diz Jlia na Nova Helosa, e nela me mantenho.Consulto em segredo minha conscincia; ela nada me censura,

    7III, 206.8IIIa Parte, Carta XX (IV, p.256).9 Profisso de f do vigrio saboiano, p.145. E do sistema moralformado por essa dupla relao, a si mesmo e a seus semelhantes, quenasce o impulso da conscincia. Conferir p.143: Os atos da conscinciano so juzos, mas sentimentos.10 Profisso de f, p.145: O princpio imediato da conscincia,

    independente da prpria razo. (Conferir Emlio, liv.I (II, p.36): Aconscincia... embora independente da razo.

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    e a conscincia jamais engana uma alma que a consultesinceramente.11

    Notemos, no entanto, que se em Rousseau se encontraa anttese entre a conscincia e a razo12 uma, infalvel, aoutra, sujeita ao erro , tambm frequentemente acontece de onosso autor declarar que uma e outra concordam ou secompletam13. Certos textos, mesmo, apresentam-nas comoinseparveis para a conduta da vida, e, s vezes, Rousseauemprega indiferentemente um ou o outro termo para designara regra de nossos deveres. Os melhores guias que podem ter

    as pessoas honestas so a razo e a conscincia, diz ele numde seus primeiros escritos14, como dir mais tarde no Emlio:O que , pois, o homem virtuoso? aquele que sabe vencersuas afeies; porque ento segue sua razo, sua conscincia;faz seu dever; mantm-se na ordem e dela nada pode afast-lo.15

    Ficam bem claros, pois, dois aspectos da doutrina de

    Rousseau: um, sentimental, o outro, racionalista,aparentemente, inconciliveis. Ora Rousseau declara quedevemos escutar a voz da natureza, que nossos verdadeirosmestres so a experincia e o sentimento 16 e ora, aocontrrio, aconselha-nos a seguir a razo.

    Alternadamente, a conscincia e a razo soapresentadas como o guia que o homem recebeu de Deus para

    11III Parte, Carta XVIII (IV,p.252).12Conferir textos da Profisso de fcitados p.1, nota 1.13 Profisso de f, p.143: Se tais doutrinas pudessem um dia germinarentre ns, a voz da natureza, assim como a da razo, se ergueriamincessantemente contra elas.14Resposta a Senhor Bordes, I, p.63.15Liv.V(II, p.416).16Emlio, liv. III (II,p.149).

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    conduzi-lo. s vezes, se opem, outras vezes, seus elos soto estreitos que parecem confundir-se. Enfim, no queconcerne prpria razo, vemos Rousseau, em alguns

    momentos, recus-la, como uma fonte de erros ou desofismas, e depois, exalt-la, como a chama divina que o Sersupremo nos deu para nos esclarecer.

    A temos algo que pode desconcertar o leitor maisperspicaz. Entretanto, a menos que se conclua que seusescritos esto cheios de incoerncia, preciso admitir, como oprprio Rousseau nos adverte17, que suas contradies so

    puramente verbais, e procurar ver o verdadeiro pensamento doautor, para alm do aparente desacordo das frmulas.18

    Foi o que fizeram seus melhores intrpretes. O leitorno se surpreender ao v-los dividir-se em dois grupos: uns,esforando-se por mostrar que, apesar de muitas frmulasracionalistas, a doutrina e o mtodo de Rousseau so deinspirao sentimental, e os outros, afirmando que o apelo ao

    sentimento no impede Rousseau de permanecer basicamenteracionalista.

    17 A menos que se admita que os escritos de Rousseau sejam apenasincoerncia e pura extravagncia, somos obrigados a dar-lhe crditoquando assegura que suas contradies so verbais e, distinguindo ossentidos diversos que d s mesmas palavras, procurar penetrar at seuverdadeiro pensamento, escreve G. Beaulavon em seu artigo sobre Afilosofia de J.-J. Rousseau e o esprito cartesiano (em Estudos sobre

    Descartes,publicao da Revue de Mtaphysique et Morale, Paris, 1937,pp.334/336). Sobre as declaraes de Rousseau relativas a suas pretensascontradies, ver, nesse mesmo artigo, a nota 5 da p.335.18E isso tanto mais que no temos aqui o recurso de invocar uma evoluodo pensamento de Rousseau. Escrevi sobre diversos assuntos, massempre nos mesmos princpios, sempre a mesma moral, a mesma crena,as mesmas mximas, e, se se quiser, as mesmas opinies, escreve ele na

    Carta ao Senhor de Beaumont (III, 59). Conferir Beaulavon, ibid, p.334,nota 3.

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    A primeira tendncia encontra a sua mais claraexpresso nas obras de Pierre-Maurice Masson19, de uma

    19A religio de Jean-Jacques Rousseau (Paris, Hachette, 3 vols., in-16,1916);A profisso de f do vigrio saboiano, de Jean-Jacques Rousseau,edio crtica a partir dos manuscritos de Genebra, Neuchtel e Paris, comuma introduo e um comentrio histrico, Paris, 1914, in-8. Entre os quetomam a doutrina de Rousseau por puro sentimentalismo, citemos,igualmente, Brunschvicg, que, em O progresso da conscincia (Paris,1927), consagrou a Rousseau um captulo intitulado A religio doinstinto; Pierre Lasserre Rousseau s pensa com seus instintos, dizele em seu livro sobre o Romantismo francs (3. ed., Paris, 1908, in-16,

    p.77) e Victor Basch. No decurso de uma sesso da Socit Franaise dePhilosophie consagrada unidade na obra de Jean-Jacques Rousseau(27 de fevereiro de 1932), Basch recusava inclinar Rousseau para okantismo, como o fazia Cassirer, e declarava-se francamente partidrio datese sentimentalista: Ponho como centro, dizia, como fonte do gnio deRousseau, no essa vontade moral, essa vontade autnoma, essa liberdademetafsica concebida por Kant, e cuja essncia totalmente estranha natureza sensvel e sensual de Rousseau, mas o que contrrio vontaderacional, a saber, o sentimento oposto ao entendimento, razo, esse

    sentimento... que, para mim, a prpria alma de Rousseau homem comode Rousseau pensador. Tenho sentido antes de pensar, a sorte comum dahumanidade. Tenho-o experimentado mais do que qualquer outro: nessadeclarao h todo Rousseau... Sentimento igual ao individualismo, comisso que construo, de minha parte, todo Rousseau (Bulletin de la Socit

    franaise de Philosophie, abril-junho 1932, pp.68/69). Ser precisoacrescentar que, apresentada sob uma forma to radical, a interpretaosentimentalista nos parece absolutamente insustentvel? A citao deRousseau extrada das Confisses (Parte I, liv.I) foi reproduzida com um

    erro, imagino, devido estenografia. Eis o texto exato: Eu sinto antes depensar: a sorte comum da humanidade, que experimentei mais do que osoutros (Confisses, edio integral, publicada por Ad.Van Bever, Paris,1927, 3 vols., in-8, t.I, p.10).Rousseau dizia, tambm, na Profisso de fdo vigrio saboiano (ed. Beaulavon, Paris, Hachette, 1937, pp.143/144):Existir, para ns, sentir; nossa sensibilidade incontestavelmenteanterior nossa inteligncia, e temos tido sentimentos antes de idias.Esses dois textos no significam que a sensibilidade seja prefervel ousuperior razo. Rousseau afirma somente que lhe anterior. Por isso no

    podemos compartilhar a opinio de Jacques Maritain, quando escreve:Jean-Jacques Rousseau no s professa em teoria a filosofia do

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    erudio to segura e que, desse ponto de vista, impemautoridade. Para Masson, a exaltao do sentimento sexpensas da razo 20que traduz o pensamento profundo de

    Jean-Jacques. O racionalismo de Rousseau, apesar daintransigncia de certas frmulas, s se manifesta porsobressaltos, de uma maneira episdica; tanto mais speroquanto mais intermitente 21.

    G. Beaulavon, que representa a tendncia oposta22,

    sentimento, como os moralistas ingleses do seu tempo, que so aindaintelectuais e analistas dissertando sobre a sensibilidade. J se observoumuitas vezes, ele mesmo e com que intensidade! todo sentimento; elevive com todas as fibras de seu ser, com uma espcie de herosmo, o

    primado da sensibilidade. (Trs reformadores, Paris, 1925, in-8,pp.135/136). De modo algum h em Rousseau quero dizer, no Rousseaupensador o primado da sensibilidade. O que ele sempre afirmou foi oprimado da vida moral sobre a vida puramente especulativa, mas pensouencontrar a soluo do problema moral numa espcie de equilbrio entre arazo e o sentimento, mais que no reino exclusivo do instinto.20Profisso de f do vigrio saboiano, p.275, nota 2 da p.114, do texto daedio original da obra.21A religio de Jean-Jacques Rousseau, t.II,A profisso de f de Jean-

    Jacques, p.95.22 Entre os representantes da mesma tendncia, citemos igualmenteHffding, Lanson, Drkheim e Parodi, ou ainda, Albert Schinz, que, todoseles, em diversos graus, admitem que Rousseau permanece umracionalista. Numa importante obra sobre o Emlio, publicada em 1941 (A

    educao do homem novo, Issoudun, 2 vols., in-8 ), Andr Ravier aborda,em vrias ocasies (t.II, pp.174 ss., 308 ss.), o problema que aqui nosinteressa. Para ele, o que caracteriza a atitude de Rousseau o equilbriodo sentimento e da razo. Ao mesmo tempo que sobre as potncias darazo, diz ele(t.II, p.365), Jean-Jacques se apia sobre as potncias dosentimento. No mais numas que nas outras, mas igualmente. Longe deadmitir, com P.-M. Masson, que a razo seja para Rousseau uma potnciade dissoluo e de anarquia (A religio de J.-J. Rousseau, t.II, p.88),Ravier sublinha a confiana que nosso autor deposita na razo e o papel

    importante que esta faculdade exerce na educao de Emlio. Suaconfiana na razo, sua f na bondade de seu papel indiscutvel, diz ele

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    refuta a interpretao de Masson, no vigoroso artigo que jtivemos ocasio de citar, assim como na edio clssica daProfisso de f. Para Beaulavon, ao contrrio, longe de ser

    intermitente, o racionalismo de Rousseau normal eessencial, mesmo tendo seus limites e dando lugar aosentimento. Rousseau de modo algum contrrio ao espritode Descartes.

    Dessas duas interpretaes, a primeira aquela de P.-M. Masson nos parece radicalmente falsa. A respeito desteponto, estamos inteiramente de acordo com Beaulavon e, se

    reabrimos hoje um debate que, sem dvida, jamais serfechado, s acessoriamente para refutar a argumentao deMasson a demonstrao de Beaulavon nos parecendodecisiva a esse respeito , mas, antes, para completar e, emcertos pontos, retificar a prpria interpretao de Beaulavon.

    muito louvvel o fato de Beaulavon ter mostradoque em Rousseau no h uma oposio, mas uma constante

    colaborao do sentimento e da razo. Mas no estamosseguros de que essa colaborao se faa unicamente nosentido que ele aponta: a razo esclarecendo o sentimento.23O

    (t.II, p.175), falando de Jean-Jacques. Ravier se afasta, pois,sensivelmente, da tese defendida por P.- M. Masson, todavia sem ligar-sequela de Beaulavon, e sem afirmar claramente que a doutrina deRousseau, apesar do lugar que a ocupam o corao e o sentimento,

    permanece de inspirao racionalista.23Notemos, entretanto, que Beaulavon admite tambm que o sentimentoexerce, por sua parte, uma influncia benfazeja sobre a razo, lhe servindode guia. O mtodo original de Rousseau diz ele, na introduo de suaedio do Contrato social (4.ed., Paris, 1931, p.20) consistir, pois, noem afastar sistematicamente a razo, mas em uni-la estreitamente aosentimento, em dar-lhe o sentimento como ponto de partida e controle.

    Na introduo sua edio da Profisso de f do vigrio saboiano (p.33),ele emprega uma frmula anloga para resumir o pensamento de

    Rousseau: Deus, diz ele, no nos deu o sentimento para dispensar-nos darazo, mas para nos ensinar a p-la em obra e a dela bem nos servir.

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    pensamento profundo de Rousseau seria, antes, que no existes razo num corao corrompido, e que a prpria conscinciadeve servir de princpio ou de regra para a razo que, sem tal

    guia, arrisca extraviar-se de erros em erros e de engendraros piores sofismas. Nesse sentido, a pureza do corao seria acondio da reta razo.

    o que tentaremos mostrar, retomando o problema emseu conjunto e, sem nos limitarmos anlise dos textos deRousseau, nos esforaremos por confront-los com seusantecedentes histricos e com as teorias que, em nossa

    opinio, destinam-se a refutar.Isso nos levar a:

    1) Opor as maneiras de ver de Rousseau a certoracionalismo, aquele dos juristas Pufendorf, Barbeyrac eBurlamaqui, que nosso autor certamente leu, e que tentourefutar em seus escritos;

    2) Aproximar Rousseau, no de Descartes, a quemseria, antes, oposto, mas de Malebranche. Sabe-se que opensamento de Rousseau se formou numa atmosferaoratoriana e malebranchista.24 Nessas condies, as

    Essas frmulas so muito prximas de nossa prpria interpretao, maisprximas mesmo do que pensvamos no comeo. Fazemos questo aquide prestar homenagem memria de Beaulavon. Seus escritos sobre

    Rousseau, tanto os seus artigos como as suas edies clssicas do Contratosocial e da Profisso de f, foram para ns um guia precioso em nossaspesquisas. Queramos expressar-lhe toda a nossa gratido, pela dvida quecom ele contramos, quando tomamos conhecimento de sua morte, pela

    Revue de Mtaphysique et Morale que lhe consagrou uma curta notcianecrolgica no seu n.1 de 1944 (pp.95/96).24Ver, sobre esse assunto, alm das duas obras de P.-M. Masson, o notvellivro de Ch.W. Hendel, Jean-Jacques Rousseau, Moralista, 2 vols. ,Oxford, 1934, especialmente os captulos I, XIV e XVIII, que contm

    numerosas aproximaes entre Rousseau e Malebranche, assim como oartigo de mile Brhier, As leituras malebranchistas de Jean-Jacques

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    em sociedade27, mas da no se deduz que a sociedade seja mem si mesma. somente a sociedade mal governada que nosdeprava28, pois com boas instituies sociais nascem a justia

    e a virtude. Do mesmo modo, os sofismas da razo provmde uma razo corrompida que s se apia sobre si mesma e,por isso, encontra-se desviada pelas paixes. , pois, umarazo mal conduzida 29, uma razo sem princpio que nosdesencaminha. Em compensao, a s razo nos vem de Deus: a chama divina que ele nos d para guiar-nos.30

    Quando se afirma, com P.- M. Masson, que Rousseau

    considerou a razo como uma faculdade suspeita eimpotente, na realidade, assim se atribui a Rousseau a teoriaque os telogos catlicos de seu sculo no cessaram de lheopor e que ele sempre combateu.

    Para esses telogos,31a razo uma faculdade suspeita

    27No Emlio, Rousseau afirma, no livro IV, que a sociedade deprava e

    perverte os homens (II, p.207) e, no livro I, que quanto mais eles serenem, mas se corrompem (ibid., p.27).28Todos esses vcios no pertencem tanto ao homem quanto ao homemmal governado, escreve Rousseau no Prefcio doNarciso (V, p.106).29Carta ao Senhor de Franquires (C.G., t.XIX, p.61).30Nova Helosa, Parte III, Carta XVIII (IV, p.250)31Haver necessidade de precisar que aqui se trata unicamente da teologiacatlica que Rousseau encontra diante dele, e dos telogos seus

    adversrios? Nossa observao deixaria de ser exata se lhe dessem umsentido mais geral e pensassem que aludo teologia catlica em seu todo.Nesse caso, seria fcil opor-nos todos os pensadores que, no seio datradio catlica, representam a corrente racionalista. Nem Santo Toms,nem Malebranche no entanto, to diferentes entre si admitiriam que arazo uma faculdade suspeita. Para eles, a razo tem seu domnio prprio

    aquele da cincia, e mesmo, da metafsica onde nela preciso confiar.Nossa razo, sem dvida, no isenta da corrupo oriunda do pecado,mas no deve limitar-se a constatar sua tara original. Embora obscurecida

    pelas trevas do pecado, a razo humana, em grande medida, permanececapaz de retificar-se por si mesma.

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    porque uma faculdade decada. Desde que esta faculdadenatural decaiu do estado de sua perfeio original, s pode serum guia cego diz, por exemplo, o abade Andr.32Essa ,

    na realidade, uma idia crist, inseparvel da doutrina daqueda do homem, e que o autor de Emliojamais quis admitir.O que os catlicos censuraram em Rousseau, sobretudo,muito mais que os seus ataques contra a autoridade da Igreja,foi no querer reconhecer que nossa luz natural obscurecidapelas trevas do pecado. Para convencer-se disso, basta ler osescritos que os telogos catlicos consagraram refutao doEmlio nos anos que se seguiram sua publicao33.Encontra-se em todos esses escritos a mesma censura:Rousseau acreditou demasiado na razo e no sentiu toda asua insuficincia. Tambm h grande empenho em lembrar-lhe a queda da razo, as suas fraquezas e a sua cegueira.

    Todos esses telogos catlicos notaram que, nadoutrina de Rousseau, a razo absolutamente s 34, e queno pode ser de outro modo no sistema de um autor que

    rejeita o pecado original. Interpretao profunda e que mereceser sublinhada. O princpio da bondade natural do homem nosignifica somente, em Rousseau, que nascemos sem tendnciapara o mal, mas tambm que todas as nossas faculdadesnaturais, em si mesmas, so ss, e s se corrompem por nossaculpa. Se assim , por que a razo seria exceo? Rousseau,pois, certamente, teria assumido o princpio dos

    32Refutao da nova obra de Jean-Jacques Rousseau, intitulada:Emlioou Da educao, Paris, 1762, in-8 , p.113.33Conferir o captulo precedente onde se encontram todos os textos queno nos pareceu indispensvel reproduzir aqui.34 A frmula do arcebispo de Paris. Aps haver lembrado, em seuPastoral contra o Emlio,que para Rousseau no necessrio acreditarem Deus para ser salvo, ele acrescenta:Uma tal pretenso

    soberanamente absurda, sobretudo no sistema de um escritor que sustentaque a razo absolutamente s. (Obras de Rousseau, III, p.50).

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    jurisconsultos, e sustentado, por sua vez, que o entendimento naturalmente reto.

    Logo, rejeitamos a interpretao de P.- M. Masson,no somente porque est em desacordo com os textos mas,sobretudo, porque est em contradio com o sistema doautor. A lio que se depreende dos escritos de Rousseau no a que Masson deduz. Rousseau jamais acreditou que algumdevesse abster-se de usar sua razo o que seria,propriamente, um absurdo , mas, ao contrrio, quis nosensinar a dela fazer bom uso.

    Embora tenha dito que tudo degenera entre as mosdos homens 35, Rousseau no pensa que o mal seja semremdio. O que o preocupou, ao contrrio, foi saber como oshomens poderiam evitar os males que operam. Procurou, pois,em quais condies podemos preservar nossa razo dacorrupo e conservar-lhe sua retido natural. Trata-se, paraele como para Descartes, de bem conduzir sua razo, ou de

    elevar o homem s razo.Mas ningum melhor do que Rousseau sentiu as

    dificuldades da tarefa, nem melhor esclareceu os obstculosque nos impedem de bem usar nossa razo. Para Rousseau, obom uso da razo um ideal difcil de atingir, e l s se podechegar ao termo de uma educao bem conduzida: De todasas instrues prprias do homem diz ele naNova Helosa

    aquela que o ser humano adquire mais tarde e maisdificilmente a prpria razo (IV, p.393).

    Na verdade, as dificuldades que o homem deve superarso de duas espcies: umas tm a ver com a natureza da razoe, as outras, com as condies prprias de seudesenvolvimento.

    35Emlio, Livro I (II, p.3).

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    A. da natureza da razo ser limitada, e por no quererlevar em conta esse fato que tantos homens se enganam.O mau uso do saber , pois, uma das fontes mais

    importantes de nossos erros. Bem frequentemente, arazo nos engana porque mal conduzida e se perdeem especulaes que ultrapassam seu alcance. Aoperigoso raciocinador, que desconhece os limitesnaturais da razo, Rousseau ope o raciocinadormoderado, o homem ao mesmo tempo razovel emodesto, em que o entendimento, exercido, maslimitado, sente seus limites e neles se concentra. 36Oprimeiro princpio da sabedoria ou, se quiser, a primeiraregra do mtodo saber ignorar aquilo que nopodemos saber37: Uma vez que diz Rousseau ,quanto mais os homens sabem, mais se enganam, onico meio de evitar o erro a ignorncia. No julgueis,assim, nunca vos enganareis. Esta a lio da naturezatanto quanto da razo.38Os limites da razo no sero

    mais uma fonte de erro para quem souber resignar-secom a ignorncia, e deixar na incerteza todas asquestes que ultrapassam o seu alcance.

    Entretanto, ningum pode resignar-se a ignorar o quelhe importa saber, e vimos que h questes capitais quasetodas aquelas que se referem religio , sobre as quais arazo incapaz de tomar partido, porque os argumentos de

    uma e de outra parte se equilibram. Mas o homem poderemediar essa insuficincia da razo, fazendo apelo aosentimento interior. ele que, nesse caso, pode nos trazeruma certeza que a razo no mais capaz de fornecer-nos.Logo, conforme razo consultar o sentimento interior, pois

    36Carta ao Senhor de Franquires, p.52.37Profisso de f, pp.91/92.38Emlio, Livro III (II, p.176)

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    a prpria razo que, tomando conscincia de seus limites, decerto modo nos remete a ele. Tal , creio, o sentido que deveser dado clebre frmula do vigrio saboiano: Minha regra,

    de entregar-me ao sentimento mais do que razo, confirmada pela prpria razo. 39

    B. Uma segunda srie de dificuldades vem das condiesdo desenvolvimento da razo. De todas as nossasfaculdades, essa a que se desenvolve mais tarde, enossa pressa em utiliz-la lhe d um mau hbito,costumes viciosos, mesmo antes que seja apta para nos

    esclarecer. Assim, o primeiro erro a evitar acreditarque a criana nasce com sua razo toda formada e quebasta coloc-la em obra. No h preconceito maisnefasto para a educao das crianas. Ao contrrio, preciso persuadir-se e persuadi-las que a razo estacima de sua idade, porque o uso prematuro da razoconduz ao verbalismo e corrompe o juzo que se forma,primeiro, pelo contato das coisas e o exerccio dos

    sentidos. Rousseau no se cansa de denunciar as faltasde uma educao tagarela que, sob o pretexto de fazerdas crianas precoces argumentadores, faz com queacreditem demais nas palavras.

    Mas o desenvolvimento da razo no apenas tardio,tambm condicionado pelo da vida social. Esse um pontosobre o qual insistimos longamente no primeiro captulo e

    essencial para a doutrina de Rousseau. Para ele, sociabilidadee racionalidade so inseparveis. Se o selvagem, do segundoDiscurso, reduzido ao puro instinto, que, vivendo noisolamento do estado de natureza, ele pode, sem prejuzo,dispensar o uso da razo. Foi por uma providncia muitosbia que as faculdades, de que dispunha em potncia, s sedesenvolvessem com as ocasies de exerc-las, a fim de no

    39Profisso de f, p.100.

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    lhe serem nem suprfluas e impostas antes do tempo, nemtardias e inteis para a necessidade.40

    Assim, para Rousseau, as faculdades do homem s sedesenvolvem em funo de suas necessidades. Enquanto foruma faculdade suprflua, a razo permanecer umafaculdade virtual. O homem s adquire o uso de sua razono momento em que este se torna indispensvel para viver,isto , quando para ele comea a vida social. Mas se a vidasocial torna necessrio o desenvolvimento da razo, tambm ela que o torna possvel, pois somente com o concurso de seus

    semelhantes o homem pode adquirir as luzes que lhe fariamfalta pela eternidade se vivesse sempre solitrio. O homemque, privado do socorro de seus semelhantes e sem cessarocupado em prover s suas necessidades, reduz-se apenas aoandar de suas prprias idias, (...) envelhece e morre antes desair da infncia da razo.41 Por a se v o quanto sosolidrios o desenvolvimento da razo e o da sociabilidade.

    Esta solidariedade no sem perigo para a razo. Se avida social tem a vantagem de favorecer o desenvolvimentoda razo, em compensao, tem o inconveniente de fazernascer paixes de que o homem est isento no estado denatureza. por isso que a razo nascente corre o risco de serescravizada por nossas paixes ou de tornar-se um joguete daopinio. Como garanti-la? Aqui intervm a conscincia,faculdade providencial, instinto divino, que deve servir de

    guia nossa razo. Para preservar nossa razo dos extravios aque a levariam fatalmente nossas paixes, preciso submet-la direo da conscincia.42

    40Discurso sobre a desigualdade(Pol.Writ.,I, p.159).41Carta ao Senhor de Beaumont (III,p.75).42Qual o valor dessa soluo? Para que fosse satisfatria, seria necessrio

    que a conscincia ou o sentimento interior no corram por si mesmos osriscos de ser corrompidos ou sufocados pelas paixes. Isso o que fazia

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    Rousseau admite, com a maioria dos filsofos, que aspaixes e os preconceitos so a fonte principal de nossoserros. Se tantos raciocnios so sofismas, porque, em lugar

    de raciocinar tomando por base as verdades primitivas,colocamos em seu lugar as nossas opinies, nossospreconceitos ou nossas paixes. preciso, pois, que o

    notar a Rousseau um de seus refutadores, o abade Bergier: O senhor noignora diz ele o quanto as paixes podem enfraquecer o sentimentointerior. (O desmo refutado por si mesmo, Paris, 3.ed., 1766, Primeira

    Parte, p.47). Rousseau s podia prestar homenagem clarividncia de seuadversrio. No declara, ele mesmo, em Profisso de f (p.147), que aconscincia tmida, que muitas vezes incapaz de resistir aos

    preconceitos, pois a sua ruidosa voz sufoca a sua? Rousseau reconheceuto bem as insuficincias da conscincia que, no Emlio,lhe d por guia arazo! No livro V, depois de haver indicado que existe para toda aespcie humana uma regra anterior opinio e que esta regra osentimento interior, Rousseau acrescenta: importa-lhes (s mulheres)cultivar uma faculdade que sirva de rbitro entre os dois guias, que nodeixe de nenhum modo perder-se a conscincia, e que corrija os erros do

    preconceito. Esta faculdade a razo (II, p.354).

    Como negar que aqui exista alguma incerteza no pensamento deRousseau? Para combater as paixes, remete-nos constantemente daconscincia razo, sem deliberadamente tomar partido. Nesse sentido,sua teoria dos remdios para as paixes permanece uma das partes fracasde seu sistema. Entretanto, conforme a Nova Helosa (Parte III, CartaXVIII), a contemplao do ser supremo constitui o melhor remdio para as

    paixes: na contemplao desse divino modelo escreve Jlia que a

    alma se purifica e se eleva, que ela aprende a desprezar suas baixasinclinaes, e a superar suas tendncias vis. Um corao penetrado dessassublimes verdades recusa-se s pequenas paixes dos homens (IV,

    p.248). Pode-se lamentar que Rousseau no tenha dado mais amplitude aessa idia. Aprofundando-a, certamente teria sido levado a reconhecerainda mais claramente a impotncia da conscincia e da razo diante das

    paixes. O que o teria tornado, talvez, menos hostil idia de um socorrosobrenatural. Todavia, ele no podia reconhecer a necessidade dessesocorro sem renunciar a todos os seus princpios. Em todo caso, Rousseau

    nunca esteve to perto da idia crist quanto nesse admirvel texto daNova Helosa.

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    sentimento interior intervenha para nos preservar desse mauuso da razo. ele que, de certo modo, distingue o verdadeirodo falso, quando se trata dessas noes primitivas que no

    podemos deduzir do que j sabemos.De uma maneira mais geral, colocando a razo sob o

    controle da conscincia, Rousseau quer indicar, sobretudo,que no se pode separar o exerccio do pensamento dasvirtudes morais e que a correo do juzo depende, antes detudo, da justia do corao. Neste ponto, por toda a sua vida,permaneceu fiel concepo que expressara j no Projeto

    para a educao do Senhor de Saint-Marieque , sabe-se, umde seus primeiros escritos: 43

    A justia do corao escrevia ele, nesse opsculo quando se afirma pelo raciocnio, a fonte da justia doesprito: um homem honesto quase sempre pensacorretamente (...). Parece, com efeito, que o bom sensodepende ainda mais dos sentimentos do corao que das luzes

    do esprito, e tem-se a experincia de que as pessoas maisinformadas e mais esclarecidas nem sempre so as que seconduzem melhor nos negcios da vida: dessa maneira,depois de haver enchido o Senhor de Saint-Marie de bonsprincpios de moral, poderamos, em certo sentido, consider-lo como bastante avanado na cincia do raciocnio (III,p.39).

    Esse o ponto de vista de um moralista para quem ocorao e a razo no so duas faculdades rivais, mas, aocontrrio, devem prestar-se mtuo apoio. O sentimentointerior deve servir de guia para a razo e reconduzi-la no retocaminho da verdade44 quando ela se extravia em

    43Composto em 1740, vinte anos antes do Emlio.44

    Conferir esse texto da Carta ao Senhor de Franquires: Eis como, detodas as partes, essa voz forte e salutar do sentimento interior faz voltar ao

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    argumentaes sofsticas ou especulaes que no foramfeitas para ela: todavia, no conseguiria substitu-la.Beaulavon interpreta fielmente o pensamento de Rousseau

    quando escreve: Deus no nos deu o sentimento paradispensar-nos da razo, mas para nos ensinar a empreg-la e adela bem nos servir.45

    * * *

    De tudo o que precede, poderemos concluir comodeixamos entender desde o comeo deste trabalho queRousseau, apesar do apelo ao sentimento interior, permaneceracionalista?

    Tudo depende, sem dvida, do que se entenda porracionalista, porque h racionalistas de vrias espcies.Laporte nos advertiu muitas vezes contra os perigos de taltentativa, de modo que nos seria difcil aqui seguir seuexemplo e, ns tambm, dar uma definio do racionalista.46Preferimos remeter os leitores Introduo de seu trabalho

    sobre O racionalismo de Descartes. Ali encontraro, emparticular, esta observao:

    A primeira marca do racionalista , sem dvida, diz oVocabulrio filosfico, acreditar na razo; e, para acreditar narazo, preciso comear por acreditar que ela existe. Falandofrancamente, esta uma crena bastante difundida; poucaspessoas ousariam negar que o homem raciocina, e que tem a

    potncia de discernir o verdadeiro do falso. Mas alguns

    seio da verdade e da virtude o homem que foi extraviado por sua razo malconduzida (C.G., t.XIX, p.61).45Profisso de f, Introduo, cap. III, p.33.46O Racionalista, como o Sofista de Plato salva reverentia ummonstro incompreensvel, ou que s se deixa compreender ao preo de

    uma caa longa e penosa, escreve Laporte (Le rationalisme de Descartes,Paris, 1945, in-8 , Introduo, p.x).

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    relacionam este discernimento e essa capacidade de raciocnioao jogo da imaginao, dos sentimentos e das tendncias. Serque se racionalista quando se declara, com o Tratado da

    natureza humana:A razo nada mais do que um misteriosoe ininteligvel instinto de nossas almas? Aparentemente, no.O racionalista deve, pois, reivindicar para a razo umanatureza original, irredutvel quela do instinto e daafetividade. 47

    Ora, que o nosso autor preencha as duas condiesformuladas nesse texto nos parece fora de dvida: Rousseau

    acreditou na razo e no a reduziu ao instinto.Pronunciando-se por sua vez contra a anlise de

    Condillac48 escreve Brunschvicg , Rousseau no tem ainteno de opor sistema a sistema: no pretende rebaixar arazo humana em proveito do instinto animal, segundo oparadoxo da Apologia de Raymond Sebond, nem dar contadaquele por este, como Hume foi tentado a fazer. 49

    No significativa essa confisso de Brunschvicg,alis, to pouco inclinado a incluir Rousseau entre ospensadores racionalistas?

    Falta-nos, agora, precisar em que sentido Rousseaunos parece ser racionalista e, para tanto, trs observaes nosso suficientes.

    1. O racionalismo de Rousseau um relativismo:Rousseau um racionalista consciente dos limites da razo.Em toda a sua obra, no cessou de afirmar que nossa razo limitada, sem, entretanto, como mais tarde o faria Kant,

    47Ibid.,p.xv.48 Trata-se da anlise do instinto, desenvolvida no Tratado dos animais(1755).49O progresso da conscincia, t.I, p.273.

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    descobrir um critrio que permitisse determinar seus limites eas condies de seu emprego legtimo. Alis, jamaisconsiderou esses limites como um defeito de nossa razo; via

    neles antes um efeito da sabedoria da natureza, porquepodemos, sem preconceito, ignorar o que ultrapassa o alcancede nosso entendimento, quando no nos importa conhec-lo.

    Ao limitar a nossa razo, quis a natureza que o saberno fosse a meta de nossa vida, que deve ser consagrada aoamor da virtude e prtica de nossos deveres.

    O que Rousseau condena nos textos de aparncia anti-racionalista, na realidade, a filosofia do Iluminismo, e todosos que, como os Enciclopedistas, s vem salvao para ohomem no progresso dos conhecimentos. nesse sentido queescreve, nas Cartas morais: A razo rebaixa, mas a alma seeleva, se somos pequenos por nossas luzes, somos grandes pornossos sentimentos e, seja qual for o nosso lugar no sistemado universo, um ser amigo da justia e sensvel s virtudes

    no , de modo algum, abjeto por sua natureza.50

    Embora Rousseau a parea difamar a razo para

    melhor exaltar o sentimento, quer afirmar, sobretudo, aprimazia da vida prtica sobre a vida especulativa, tema quelhe to familiar e retorna constantemente em seus escritos.Mas est bem longe de pensar que se possa dispensar a razona conduta da vida. Ao contrrio, a razo que leva o

    homem ao conhecimento de seus deveres.

    51

    A razo,escreve Jlia para Saint-Preux, tem por nica finalidade o que bom; suas regras so seguras, claras, fceis na conduta davida; e ela s se extravia em especulaes inteis que para elano foram feitas. 52

    50Carta IV, C.G., t.III, Apndice, p.361.51Emlio, livro V(II, p.354).52Nova Helosa, Parte III, Carta XX (IV, p.256).

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    Disso se depreende que, para Rousseau, a razopermanece um guia seguro em seu uso prtico, enquantoarrisca extraviar-se em sua funo especulativa, quando se

    aventura para alm de seus limites naturais. Encontra-se, pois,em Rousseau, em germe, a distino que mais tarde serelaborada por Kant, entre a razo especulativa e a razoprtica.

    2. Entretanto, Rousseau no concebe a natureza darazo maneira de Kant. Nada mais estranho ao seupensamento do que um sistema rgido de categorias. Mas isso

    no uma caracterstica negativa. Para dizer a verdade,estamos bastante constrangidos ao tentar definir a natureza darazo em Rousseau, uma vez que, em sua obra, no existeuma teoria do conhecimento propriamente dita.

    Em compensao, ali encontramos duas definies darazo, das quais, uma tomada de emprstimo de Condillac, ea outra tem uma origem malebranchista. No plano

    psicolgico, a razo se define como uma regra ou um guiaque, no homem, resulta do emprego judicioso de todas as suasfaculdades. No propriamente uma faculdade; compostapor todas as outras faculdades humanas. 53 Como a razoassim definida se divide em razo sensitiva e razo intelectual,no h em Rousseau a oposio que os cartesianosestabeleceram entre a razo e os sentidos.54 Neste ponto,Rousseau permanece fiel discpulo de Condillac, que foi,

    incontestavelmente, o seu mestre de psicologia.Se passarmos ao domnio da metafsica,Rousseau nos

    aparece como discpulo de Malebranche, uma vez que ento

    53Emlio, Livro II (II, p.57).54 Conferir o texto to significativo de Emlio e Sofia: Na idade das

    paixes, eu formava minha razo pelos meus sentidos; o que serve paraenganar os outros foi para mim o caminho da verdade. (III, p.2).

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    define a razo pela idia de ordem: A razo diz ele, nasCartas morais55 a faculdade de por em ordem todas asfaculdades de nossa alma de modo conveniente natureza das

    coisas e a suas relaes conosco.Tal definio no inconcilivel com a precedente,

    mas ali se encontra o eco de preocupaes metafsicas queestavam ausentes na primeira. Na verdade, Rousseaucontentou-se em justapor, em sua doutrina, duas concepesdiferentes da razo. Pareceu-lhe natural ser ao mesmo tempodiscpulo de Malebranche e de Condillac, porque cada uma

    dessas influncias se situa num plano diferente do seupensamento.

    3. Segundo Laporte, a posio diante da religio decisiva para determinar se um autor , ou no, racionalista.Por isso nos parece necessrio, para terminar, retornar questo da religio de Rousseau.

    Laporte assinala, tambm, que o pensamento cristo

    admite um irracional a dupla face: Esse irracional diz ele ,que est acima e, no, abaixo de nossa razo, expressa-se, noplano especulativo, pela noo de mistrio, e, no plano moral,pela noo da graa, entendida como uma infusoextraordinria, temporria e livre, da vida divina ao maisntimo da vida humana. Seu nome verdadeiro sobrenatural.56

    Ora, desse ponto de vista, nada pode ser maissignificativo do racionalismo de Rousseau do que a suaaverso pelos mistrios e a sua negao da graa. Em relaoaos dogmas assegura o vigrio saboiano , minha razo me

    55Carta II (C.G., t.III, Apndice, p.352).56O racionalismo de Descartes, p.XII.

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    diz que devem ser claros, luminosos, surpreendentes por suaevidncia.57

    Quanto graa concebida como um socorroextraordinrio de Deus, Rousseau ali no menos hostil doque aos mistrios. EmNova Helosa58, Saint-Preux se esforapara convencer Jlia que a graa assim compreendida aomesmo tempo suprflua e contrria justia de Deus. Narealidade, Rousseau reduz a nada a oposio que a filosofiamedieval havia estabelecido entre a natureza e a graa. Paraele, a graa divina se confunde com as faculdades naturais que

    Deus nos deu para preencher nosso destino sobre a terra.Ao criar o homem diz Saint-Preux , ele (o Ser

    supremo) dotou-o de todas as faculdades necessrias pararealizar o que dele exigia; e quando lhe pedimos o poder debem faz-lo, nada lhe pedimos que j no nos tenha dado. Elenos deu a razo para conhecer o que bom, a conscincia paraam-lo, e a liberdade para escolh-lo. nesses dons sublimes

    que consiste a graa divina; e como todos os recebemos,todos ns contamos.

    Rousseau retira de sua religio todo o irracional.Ningum mais do que ele foi adversrio do sobrenatural.Sobrenatural! Que significa essa palavra? No o entendo,diz o Raciocinador, na Profisso de f do vigrio saboiano59.Por isso mesmo, alis, Rousseau se distancia da religio

    crist, acreditando permanecer fiel ao seu esprito.

    57Profisso de f, pp.167/168.58Parte VI, Carta VII(V, p.33 nessa pgina que se encontra o textocitado antes). Estudamos mais em detalhe a crtica rousseauniana da graaem nosso artigo sobre Jean-Jacques Rousseau e o cristianismo (Revue de

    Mtaphysique et Morale, outubro 1948).59P.170.

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    Laporte definiu assim a atitude religiosa doracionalista: Ele se acomodar ao rigor do incognoscvel. Enunca vai tolerar o sobrenatural.60 Tal frmula se aplica a

    Rousseau melhor do que a qualquer outro pensador.

    Robert Derath (1905/1992) nasceu em Besanon, na Frana.Estudou no Liceu Louis-le-Grand e em Sorbonne. Residiu, de 1935

    a 1938, no Instituto Francs, em Berlim e em Viena. Depois de suadefesa de tese, foi nomeado professor de filosofia na Universidadede Nancy. Derath consagrou sua vida ao estudo da obra de Jean-Jacques Rousseau, que no cessou de examinar, notadamente emsuas relaes com o pensamento daqueles que o antecederam (comoBodin, Hobbes, Pufendorf ou Locke), de seus contemporneos(como Condillac, Montesquieu ou Hume) e, mesmo, de sua

    posteridade (como o caso de Kant e de Hegel). Alm desse

    comparatismo prodigado por sua grande erudio, na Histria daidias que Derath buscar os elementos para a anlise genealgicaque produziu sobre as ideias de Rousseau investigando de formasistemtica e rigorosa o conjunto de fontes que o filsofoexpressamente menciona, ou apenas deixa entrever em seusescritos. Suas obras mais conhecidas so Le rationalisme de Jean-Jacques Rousseau, de 1948, resultante de sua tese de doutoramento,(ainda indita no pas e da qual publicamos aqui dois excertos) eJean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps, de1950 (Jean-Jacques Rousseau e a cincia poltica de seu tempo.Trad. Natalia Maruyama. So Paulo: Editora Barcarola/DiscursoEditorial, 2009). Robert Derath foi tambm responsvel pela

    60O racionalismo de Descartes, p.XIX. Notemos que Laporte (pp.XIV eXVIII) inclui Rousseau entre os irracionalistas. Acreditamos ter

    mostrado, ao contrrio, que Rousseau apresenta todas as caractersticas doracionalista, tal como o definiu Laporte.

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    organizao e comentrios da edio das obras polticas deRousseau pela prestigiosa Bibliotque de la Pliade.

    Suzana G. Albornoz, graduada em Cincias Sociais, mestre edoutora em Filosofia, estudou filosofia poltica na EHESS, emParis, e lecionou na FURG, Rio Grande, e na UNISC, Santa Cruzdo Sul. Traduziu O livro de Manuel e Camila, de Ernst Tugenhat(c/C.M.Serralta, 2002). Entre outros, publicou: tica eutopia(1985), O que trabalho(1986), O enigma daesperana(1998), O exemplo de Antgona(1999) e Trabalho eutopia na modernidade(2011);