história das cinzas - priscilla menezes
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História das Cinzas
Priscilla Menezes
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Para minha mãe.
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“ A vulnerabilidade das coisas preciosas é bela porque a vulnerabilidade é um sinal de
existência.” (Simone Weil)
“Só se encontrará a paz na ponta da lança.” (Santa Joana D´Arc)
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As portas estão fechadas, entardece. É preciso começar por algum lugar. Eu sei
que houve um princípio, ou ao menos um ponto quando tudo pareceu caminhar para
uma mesma direção. Ainda que estranho e pálido, existiu um começo. Um dia quando,
no meio de uma manhã estática e densa, coberta dos vapores de verão, eu penseiouvir um ruído diferente dos meus próprios. Quando o caos mudo de minha casa foi
atormentado por um outro silêncio, uma ausência de encontros ruidosos que não
vinha de minha própria inércia; mas de uma outra mudez.
Foi quando vieste pela primeira vez. Eu não sei bem se te aguardava
dolorosamente ou se já nem acreditava que algo como tu poderia me ocorrer. Eu
simplesmente permanecia imersa em uma vida opaca, feita de fundos falsos e
transparências mínimas. Uma vida de lentidões, pequenas incursões silenciosas que
nunca me moviam para além dos limites do bairro onde eu encontrava tudo que me
motivava até aquele ponto: a quietude, a casa antiga, os ventos da tarde, o mar. Talvez
fosse preciso dizer que naquele tempo eu vivia muito só, pois é possível viver como eu,
cercada de limites, mesmo para além do convívio de si mesmo. Mas era a solidão que
eu tinha escolhido. Não por desgosto, ou por mágoa; mas porque, há muito tempo, eu
havia simplesmente desistido. Uma desistência sutil, quase fácil, mansa, aérea. Aos
poucos, fui precisando cada vez mais dos espaços fechados. As vozes perdiam a
espessura, tudo de mais denso tornava breve e quebradiço. Não que eu tivesse sofrido
ruptura qualquer, ou que eu houvesse abandonado as pessoas e os encontros. Foi-me
simples e necessário ficar cada vez mais distante de ruídos, atritos, embates.
Primeiro decidi que voltaria à casa da infância, que estava então
completamente abandonada. Depois defini que passaria um ano ali, até que
retornasse a vontade de encontrar algo para além das beiradas da minha própria
espera.
Talvez eu me casasse, era possível. Havia um rapaz, chamava-se Tadeu. Era
arqueólogo, tinha nascido na mesma cidade que eu, mas passou longo tempo
escavando no exterior. Tadeu, à sua maneira, me fascinava. Era muito claro e branco,
parecia sempre acompanhado de uma luz que não pertencia ao resto do dia. Sorria
muito, nunca soluçava, era amplo. Mas o fato de escavar era que me causava mais
fascínio. Passávamos tardes longas conversando sobre suas escavações no Egito, emRoma, no Cairo. Tadeu me mostrava pequenas relíquias, cacos de ossos, lascas de
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metais. Colocava vidrinhos com terras de todos os lugares do mundo na palma de
minha mão e eu ficava pequena, cada vez mais mínima, perto dos terrenos infinitos de
Tadeu. Eu gostava de ficar em silêncio enquanto sua voz grave ocupava a distância
entre nós dois. Tadeu me tomava por tímida, recatada, talvez um pouco enigmática. Eeu ia visitá-lo, a cada tarde, na esperança de ouvir mais uma história sobre lugares
impossíveis e ver pequenas ruínas reluzentes brilhando em suas mãos seguras. Se
houvesse algo em Tadeu que eu desejasse para mim, seriam suas mãos. Eu devaneava
com a idéia das mãos do escavador sobre meu corpo, comparava sua pele clara e
espessa com a minha morena e fina e supunha o calor de suas palmas queimando
meus dedos gélidos, amortecendo meu corpo com seu toque febril. Eu achava que as
mãos de Tadeu continham todo o calor do sol. Eu o ouvia falar e me deixava levar por
suas escavações. Encantava-me quando dizia que havia cavado por meses, para
encontrar, por fim, o fragmento de algo que não sabia identificar, mas que amava e
que mantinha com delicadeza, admirando como a jóia incompreensível e secreta que
era.
Um dia, Tadeu me tocou.
Pôs suas mãos quentes em meus ombros, disse que me queria muito bem, que
se casaria comigo, me levaria para conhecer as amplitudes e as ruínas do mundo. Mas
acompanhar Tadeu não era o que eu queria, desejava antes a impossibilidade de viver
sua vida magnífica e me pôr, durante longas tardes, diante dessa interdição.
- Tadeu - eu disse a ele - Tadeu, tu és como o próprio sol, tua cor, tua luz. Eu me
queimo contigo, eu preciso estar distanciada de ti, eu preciso nunca te olhar
diretamente, mas sempre aos teus reflexos, tuas ondas, teus acontecimentos. Tadeu,
se eu te quero tão bem, é porque tu me fazes cega e deslumbrada. Se eu te amo,
Tadeu, é porque tu me ofuscas.
Tadeu então tomou o que dissera como uma espécie de acolhida. Disse que me
daria o tempo de um ano para que me preparasse e então partiu para Jerusalém. Eu fiz
uma mala pequena, com algumas roupas, agulhas e um bule e parti para a casa antiga
da infância.
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No começo, foi difícil me acostumar com as sombras. A casa esvaziada não
possuía luz elétrica, de modo que eu precisava usar velas para iluminar os quartos. As
sombras alongadas, oblíquas, provocadas pela iluminação tosca, no princípio me
atordoavam. Eu passava horas contemplando a extensão sombria de cada objeto,perplexa com aquele mundo de languidez e finuras, me perguntando se seria mais
forjado ou mais real do que aquele outro que tinha me acostumado a habitar. A minha
própria sombra era algo muito comprido e pontudo, uma lâmina que atravessava
meus passos pelo assoalho antigo da casa de meus pais. Nos primeiros dias me
acomodei no sótão. Era o local para onde me refugiava quando criança e onde
encontrava o conforto da solidão e das possibilidades infinitas, onde brincava com os
reflexos da luz e inventava reinos e galáxias secretos. Mas ali, quase duas décadas
depois, a umidade e o esquecimento do cômodo mínimo me causavam algo como
angústia, só que mais físico, mais cutâneo.
Nos dias que se seguiram, me mudei para o antigo quarto de meu irmão Artur.
Era belo e fresco mesmo então. Artur havia recoberto as paredes com papel azul
estampado de pequenos ornamentos ovalares. Havia ainda sua antiga cama, pesada
demais para ser transportada para a casa nova; sem colchão, nem lençol, sustentada
por uma madeira tenra e antiga. As prateleiras também tinham ficado e havia
pequenos objetos esquecidos ou deixados sobre elas: um soldadinho de metal
enferrujado, uma lupa quebrada, dois besouros extraviados de sua coleção, um trapo,
um livreto de latim. Acomodei-me na cama dura de meu irmão e ali permaneci
durante dias, levantando-me apenas para comer quando já sentia o estômago muito
esvaziado. Eu comprava comida na venda em frente da casa. Fazia apenas esse
pequeno trajeto de vinte ou trinta passos para além dos limites do portão. Depois de
um tempo, porém, consegui que a comida fosse levada até mim. Já fazia uma semana
que estava dentro de casa e mantinha uma rotina quase imperceptível. Acordava,
esquentava o chá, sentava-me na sala do andar superior, de onde se podia ver o mar.
Permanecia até que sentisse alguma necessidade do corpo, e sempre retornava.
Quando sentia sono, ia ao quarto de Artur e dormia sobre a cama rígida, amparada
apenas por uma manta fina. Sentia alguma dor no corpo, mas também a dor passava e
assim seguiam-se os dias sem que eu ouvisse o som da minha voz ou de algo além dosmeus passos, dos rangeres da casa e do ecoar do mar.
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Não estava infeliz, tampouco feliz. Estar ali não tinha a ver com a alegria, ou
com a angústia. Não era mágoa, ou descoberta. Nem santidade, nem perdição. Eu
estava lá com a mesma aceitação e a mesma intolerância de quem vive a vida inteira
vestindo a mesma pele.
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Estou escrevendo agora para conseguir. Eu preciso lembrar. Estive tão
enterrada em mim, tão enraizada no solo do meu corpo. Tão inundada e sem vontade
de palavras. Estive em núpcias com o nada. Por muito tempo, era a busca pelo nada
que me motivava. Eu me forçava suportar o tédio, o marasmo, o desespero, porquemantinha a crença secreta de que algo muito importante surgiria de meu
desprendimento. Que, privando-me de distrações, eu encontraria algo mais espesso,
mais profundo. Enquanto me recusava a tudo, eu mal sabia que buscava o todo, esse
intocável, esse indizível. Que, desde o princípio, eu viera aqui com ânsia de buscar a
minha verdade, algo que de mim transpusesse a tudo e que pudesse ser constante. Eu
queria achar o que em mim atravessaria a espessura de qualquer calamidade.
Agora estou sentada já faz uma hora nessa casa esvaziada, olhando para cada
peça que faz desse lugar um todo. Então me concentro no teto, o teto é importante.
Este é todo trançado com telhas de um barro espesso que deixa pequenos pontos de
luz o atravessarem. Encaro o teto com gravidade, é o limite vertical do meu olhar.
Estou sentada, encarando meu limite e penso que lá fora há o céu, repleto de um
compromisso com o infinito. Decido que prefiro estar aqui, onde o infinito me alcança
seco e difuso.
Toco o chão. Com as mãos, passeio pela textura da madeira que separa a vida
bruta do meu corpo da vida profusa e sutil que habita o solo. Há uma densa camada de
poeira que se estende no assoalho. Não me importo, deito-me sobre a poeira e me
envolvo da sensação de mim mesma.
Agora, levanto-me, percorro paredes. Vejo insetos que procuram vida nesses
blocos de madeira. Eles são diferentes entre si e se movimentam em suas velocidades
particulares. Ainda estou procurando a minha velocidade. A sala é não grande. Isso
quer dizer que posso olhá-la inteira de uma vez só.
Eu queria saber como eu seria se eu nunca tivesse sido olhada.
As paredes estão quase ocas, eu noto. São muito antigas e estão frágeis,
qualquer grande força poderia derrubá-las. Penso no que seria desse lugar sem as
paredes. O teto tombaria, o chão ficaria repleto de matéria desordenada. Ruína. Estou
em uma casa que a qualquer momento pode virar um vestígio. Essa fragilidade me
comove. Continuo dando voltas e olhando. Já olhei o teto, o chão, os lados; agora mevolto ao vazio que está aqui, bem no meio de tudo. Então, caminho pelo vazio e, num
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primeiro momento, ele me agrada; porque me traz habilidade para concentração. Aos
poucos, noto que começo a sentir medo. Já esperava por ele e o recebo com
serenidade. Sei que o medo veio do vazio, da compulsão imediata em evitá-lo. Sento-
me, estou cansada. Vou ficar assim até que eu possa sentir o medo como uma mantapesando sobre mim.
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Depois do primeiro mês, passei a explorar a casa. Passava algumas horas da
manhã investigando algum cômodo. O primeiro deles foi a antiga oficina de meu pai.
Meu pai era ourives e mantinha um pequeno ateliê anexo às dependências da cozinha.
A oficina era pequena e sem janelas, o que me obrigava a levar muitas velas parailuminá-lo. Os reflexos múltiplos provocavam as sombras mais diversas e tudo se
revelava de muitos modos. Do mobiliário antigo, tinha sobrado um banco, uma
prateleira e uma velha máquina de afiar. Sentei-me no banco e percebi que, sobre a
prateleira, permanecia uma velha caixa de ferramentas. Abri a caixa com cautela,
tinha medo de me ferir com algo pontudo. Lembrei das mãos sempre machucadas do
pai, que passava semanas moldando peças, concertando relógios. Meu pai sempre foi
um homem quieto, era alto e corpulento, tinha os cabelos espessos e acobreados,
talvez fosse gentil e carinhoso.
Da caixa, retirei uma balança muito pequena e dourada, uma faca com cabo de
madeira, alicates de tamanhos variados, uma régua metálica e pequenas pedras de
polir. Tocar nos velhos instrumentos do pai era como empreender uma grave
transgressão. O homem, sempre quieto e recolhido no trabalho, mantinha o ateliê com
as portas fechadas e, quando um filho entrava lá, por teimosia ou brincadeira, era
levado para fora pela força do braço e da voz rouca do pai. Fiquei por algum tempo
compondo uma ordem pessoal para organização dos instrumentos esquecidos.
Primeiro pus as pedras sobre a balança, deixando os alicates virados uns para os outros
acompanhando o comprimento da régua e perpendiculares à faca com o cabo de
madeira. Lembrei que o pai sempre guardava a faquinha no cós de sua calça, mesmo
quando saía da oficina para ir tomar café ou almoçar, e eu ficava refletindo sobre a
necessidade de ele guardar aquela lâmina perto do corpo dentro de sua própria casa e
ficava olhando a faca que permanecia tão perto do corpo do pai, chegando a marcar a
sua pele. O pai, uma vez, percebeu meu olhar interessado e me disse:
- Menina, guarda bem teus olhos.
E eu corria para o quintal de casa, assustada demais para conseguir falar. O pai
me assustava, pois era algo absolutamente diferente. Ao contrário da mãe e de meus
irmãos, que pareciam parte de um mesmo corpo, um mesmo contorno, uma mesma
carne, a figura do pai era uma coisa muito alheia e vaga. O corpo do pai, eu podiasupor, seria capaz de fazer coisas que eu nem mesmo imaginava; seria capaz dos
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gestos mais ternos e mais amplos. Ao contrário de mim, sempre pronta para os
mesmos movimentos, meu pai parecia guardar no corpo a potência infinita de
dissolver a inércia, sempre pronto e apto para a reação e a defesa. O corpo do pai era
o lugar do mistério e então eu olhava para faca que era o local de sua intimidade,talvez o depositário único de seu apego ou de seu receio. Guardei a faca no vão de
meus seios e ali a deixei por muito tempo, pensando que meu medo é lâmina que
apontava eu mesma contra minha pele, metade risco, metade amparo.
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O segundo cômodo a que retornei foi o quarto de Fabíola, a irmã mais velha,
que foi embora de casa primeiro para se casar. O quarto de minha irmã era todo em
tons claros, tendendo minimamente ao tom da terra. O papel de parede gasto e todos
móveis antigos permaneciam silenciosos, desprovidos de qualquer vestígio íntimo daantiga dona, como havia no quarto de Artur e na oficina de meu pai. Sobrou seu
armário, sua cama, sua cômoda e a antiga penteadeira com um imenso espelho no
centro. Fabíola deixou ali todos seus móveis, pois certamente ganharia outros do
marido na sua casa de casada.
Sentei-me no banco da penteadeira, encarei-me no espelho. Fazia muito tempo
que não observava meu reflexo. No primeiro momento, desviei o olhar. Mas então
prossegui e foi grande meu susto quando percebi que eu aparentava exatamente igual.
Meu vestido branco estava imundo, meu cabelo guardava o vestígio de uma trança
que há muito não era refeita; mas meu rosto não tinha mudado em nada e eu
continuava com a mesma expressão vaga nos olhos, com os mesmos lábios
entreabertos, as mesmas sobrancelhas grossas e marcadas.
No quarto de minha irmã, a mais bonita e talentosa das irmãs, eu lembrava de
minha grade afeição por Fabíola e supunha que ela jamais tivera sinais de minha
admiração. Fabíola era tudo o que eu desejava ser: alta, delicada, os ossos finos e
pontiagudos, os olhos claros e mansos, a voz aveludada, própria para os cânticos e
orações. Fabíola lia muito, estava sempre recolhida em seu quarto segurando algum
livro no colo, passando a ponta dos dedos na língua para virar as páginas. Era instruída
e delicada, satisfeita e sempre muito grata a tudo que lhe acontecesse. Ia às missas e
fechava os olhos o tempo todo, esboçando um sorriso terno e emocionado. Fabíola foi
quem aprendeu latim melhor, quem tinha o melhor bordado, quem tinha lido mais
clássicos, quem sabia melhor da história e da geografia. Era sempre fascinada por
algum assunto e estava sempre contente em partilhá-lo com quem quer que fosse.
Fabíola casou-se quando eu completava onze anos. Usou um vestido simples e
uma pequena coroa de flores, parecia transbordada de satisfação. Chorou lágrimas
discretas e jubilosas, agarrava-se à mão do marido como se naquele segurar-se
residisse sua própria beatificação. Depois de casada, foi-nos visitar poucas vezes. A
lembrança de Fabíola casada quase se esvai de minha memória. Lembro que passou ausar tons escuros de azul e acostumou-se a falar com a voz mais baixa. Tendo
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abandonado o canto e as letras, para cuidar com esmero do novo lar, preparando com
dedicação o quarto de seus filhos, que jamais vieram a nascer. Pensei na esterilidade
de Fabíola como uma perversão da vida. Justo ela, que era mais apropriada, que era
mais religiosa, que parecia mais mulher. Justo a que tinha o útero mais intumescido, osbraços mais preparados, a única, de todas nós, que jamais veio a engravidar. Olhei
para o quarto de donzela de minha irmã e tomando a velha penteadeira como um altar
feminino e familiar, depois de muitos meses, talvez muitos anos, entrelacei os dedos e
rezei.
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Que eu entenda que toda angústia é fantasma, que eu encare o vazio como a
própria feição do mundo, que eu descubra que amor não é alívio. Que toda dor torne
desapego, para que nenhuma aflição seja desperdício. Que eu tenha forças para Te
amar ainda que Tu não existas, que meu desejo seja possível mesmo sem seu objeto,que a minha raiz seja sempre a ausência de lugar. Que minhas necessidades sejam
escassas, que eu ame a mim mesma na mesma intensidade da minha solidão. Que eu
tenha paciência para nunca transformar meu sofrimento em crime, que o motivo da
minha dor nunca seja o próprio alívio. Que eu tenha força e lucidez para atravessar a
espessura do mundo e chegar próxima de Ti, que eu aceite todo o atrito do mundo
como sinal da minha inocência, que eu nunca me esqueça que toda paixão é sempre
acaso, que entenda que distância também é vínculo. Que todo ferimento me traga
para mais perto do corpo. Que minha vulnerabilidade seja mantida, pois enquanto eu
for vulnerável ainda estarei viva. Amém.
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Na sala do andar de cima, havia um retrato pintado a óleo. Um retângulo
pequeno cercado por uma grossa moldura metálica. Ocupava, solitário, a parede
oposta à das janelas. Quando me deparei com ele, depois de tantos anos, percebi quehavia me esquecido por todo esse tempo do pequeno objeto familiar. Encarei o
retrato de frente. A figura retratada, que estava agora coberta por densa camada de
poeira, era a de uma mulher jovem de volumosos cabelos ruivos, com a pele clara e os
olhos em deriva entre o verde e o azul. A textura de seus cabelos preenchia grande
parte da pintura, dando-lhe um aspecto dramático e desgrenhado. O minucioso
bordado de sua roupa, porém, transtornava seu aspecto ferino, concedendo-lhe uma
atmosfera doméstica e reservada. Com uma das mãos, a mulher segurava uma mecha
próxima ao rosto, intercalando os fios com a ponta de seus dedos; com a outra,
segurava um espelho. Olhando-se diretamente na superfície translúcida, a figura
mantinha uma expressão consternada, no limiar entre a preocupação e a curiosidade,
como se no seu espelho residisse a lembrança constante de que as coisas são
reveladoras quando violam a si mesmas, mas que em instante algum conseguem
abandonar inteiramente a medida de suas monotonias.
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Houve também a culpa. Os dias de angústia, quando meu pensamento incidia
sobre aqueles que haviam ficado para trás, sem indicação nem pista do meu paradeiro.
Houve o medo de estar louca, vivendo como uma pedinte em minha própria casa. Mas
meu alívio era justamente guardar o segredo. O segredo que, desde sempre, era o queme protegia do resto do mundo. E então eu retornava ao sótão, onde eu tinha sido
primeiro feliz, pois lá, na brincadeira da ocultação do meu corpo, era onde eu o sentia
mais vivo. E na sua completa inutilização, ele se tornava mais potente. Porque, desde
então, era preciso privar a todos o conhecimento do meu destino, para que este se
tornasse desejável. Naqueles dias pueris, quando até mesmo os pequenos segredos
me excitavam, esconder as colherezinhas de mamãe, brincar silenciosamente entre os
livros do pai, mudar pequenos enfeites minimamente de lugar, já havia uma relação de
posse entre mim e aquilo que eu escondia. E, naquela época, antes de dormir, eu
acariciava todos os meus segredos, repassando-os um a um, esmiuçando seus
detalhes, consumindo-os em suas pequenas importâncias. Como se apenas aquilo,
dentre todas as coisas do mundo, pudesse ser verdadeiramente meu. E ali, na casa
antiga dos pais, deslizando pelo chão antigo, pisando sobre camadas de passos já
dados, o meu corpo inteiro era o meu segredo. E nunca, até então, ele tinha sido tão
meu. E mesmo a culpa, mesmo o desamparo sem remédio, mesmo a loucura
entrevista cabiam, apaziguados, nesse meu impensado e brusco pertencimento de
mim.
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A cada dia que transcorria a casa se tornava mais precisa. O início de qualquer
encontro era sempre a medida do meu corpo. Foi a partir de mim que a casa antiga
tornou a existir. Essa casa, que então já não era a mesma da infância, só pôde se
erguer porque eu havia me erguido primeiro. Meu corpo que no começo se recolhiainteiro, porque se julgava muito distanciado do resto das coisas, agora misturava seus
resíduos com os restos, suas falhas com as ruínas, seu suor com a umidade. Meu corpo
e os corpos da casa se entremeavam, se dissolviam uns nos outros, construindo
identidades comuns, feitas de carne e casca, pêlo e teto, muco e chão.
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O quarto que eu procurei evitar até o fim foi o de Isabel. Mas, um dia qualquer,
distraída com a largura de meus passos, fui dar na porta do quarto da irmã. E, quando
já era impossível evitar o encontro, entrei. O quarto de Isabel tinha um cheiro muito
forte de mofo, pois certamente tinha ficado mais fechado que o de todos nós. Comuma vela iluminei as paredes. Estavam recobertas de infiltrações e guardavam muito
pouco da pintura original. Todos os objetos da irmã estavam lá dentro, intocados.
Mesmo suas roupas e seus enfeites haviam sido abandonados. Por algum tempo,
permaneci estática junto à porta. Alguns de seus retratos também permaneciam em
sua cômoda. Isabel era uma presença rara. Ruiva, com os cabelos longos e amplos; o
corpo forte e saliente, o rosto simples, quase infantil. Em uma das fotografias,
apresentava os primeiros sinais de sua gravidez. Sorria muito, amparada pelos braços
de papai e de seu noivo.
Olhei para seu quarto abandonado, recoberto de camadas de tempo
empoeirado, feito de cores esmaecidas e da imobilidade das coisas, como se na visão
do quarto de minha irmã residisse a própria imagem de sua desaparição. Seus objetos,
obedientes, se entregavam ao descaso do tempo, estáticos, no lugar onde haviam sido
deixados pelo toque de uma mão que há muito já não os visitava. E quando já não
sabia mais lidar com aquelas superfícies, que eram apenas o vestígio delas próprias,
abri, cautelosa, a gaveta. E notei que mesmo seus papéis permaneciam lá. Quase
inteiramente destruídos pelos cupins, alguns fragmentos ainda eram legíveis e eu os
identificava como trechos de diários, fragmentos de cartas recebidas, ou daquelas que
jamais foram enviadas. Apoiei a vela no criado-mudo, tomei os papéis em minhas
mãos.
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Sinto a tua falta. Falta-me andar pela noite, na busca de algum antídoto para a
tragédia da vida e então te encontrar. A ti, que és sempre vasta, amena, distante. Sinto
falta de tua reclusão, de poder caminhar sobre ti. Solitário em minha busca, cruzando
poucos olhares contigo, mas deslizando avidamente pela tua superfície. Como sesomente na impossibilidade de te habitar - me familiarizar contigo a ponto de ter
tornar banal, mundana - eu tivesse ainda algum motivo para continuar te visitando.
Sabendo que tu guardas sempre algum segredo para além de teus olhos acinzentados,
um pouco chuvosos. Teu idioma que quase domino, mas do qual sempre me falta uma
palavra. Teus dias densos, estáticos. Amanhã te esperarei.
Hoje recostei a cabeça na janela para olhar a chuva e me pareceu bonita a água que
despencava do céu e, junto ao meu envolvimento com a beleza, tu me vieste. E é tão
aborrecido, tão previsível quando tu me vens, porque me fazes ser redundante em
minhas conclusões. Pois conclui então, como sempre concluo, que é errado te desejar.
Errado, porque, um dia, por um instante, poderás também me desejar e, então, seria
como sempre: eu simples no meu jeito de me entregar. E pensei assim: tu virás um dia
e, porque eu te desejo tanto, tu acabarás precisando de mim também, porque nós dois
concordamos que é bom e necessário ter alguém em quem se possa se estender. Aí,
quando ansiares por mim, será tão horrível, tão brutal, porque serás imediatamente
gentil comigo e me dirás coisas como tu ficas tão linda assim com teus cachos te caindo
pelo rosto e a luz te acariciando de leve. E serei tua. No sentindo mais absurdo que isso
possa incluir. Escuta: serei tua. Não te apavoras? Eu me apavoro. Porque lembro
daquela nossa conversa no dia em que chovia e tu prometeste me levar pra onde eu
quisesse e fomos conversando, concordando com o que ambos acreditávamos ser
contradição. Não é engraçado – tu dizias – que pessoas acreditem possuir a coisa
amada quando nem podemos estar certos de que as coisas existem. E eu entendi tão
imediatamente que desviei o olhar do passei, para te enxergar. Das coisas – tu falavas
– só sei que se manifestam. A coisa em si é sempre escondida, difícil, porque, talvez, é
verdade, inexista. E, afinados, emergidos em idéias afinadas e delírios irmãos, eu decidi
que te desejava. Que tu eras bonito e triste e que isso me encantava. Mas hoje chovia
mais e eu encostava na janela para supor que, quando tu pedisses, eu me entregaria,minhas manifestações e até mesmo aquela parte que nós pensávamos sequer existir.
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Entendi que estava preparada para te dar o meu existir, meu não existir, meu silêncio
interior, meu estar sozinha. Tudo, com encanto e com pressa, deixaria em tuas mãos.
Mas o instante acabaria. Porque, ao mesmo tempo em que me amas como
possibilidade de ti, nada em mim te retém. Por isso mesmo que eu vou ficar aqui enquanto me aguardas, talvez impaciente, nesse quarto de hotel.
Em breve estaremos juntos novamente. Quando retornar da Argentina, casaremos. Teu
pai há de concordar. E, se não o fizer, te roubarei para mim e enfrentarei mil homens e
mil demônios, para te ter como minha mulher. Eu te aguardo com uma ânsia que
jamais experimentei. Como se tu, Isabelita, foste o início e o fim de todas as coisas. E
somente no teu corpo o mundo fosse verdadeiro e extenso.
Venha quantas vezes for possível. Hoje te aguardo com mais força do que ontem, com
a certeza que em breve estaremos juntos – os três.
É preciso que tu acredites em mim. As coisas estão muito complicadas no meu país.
Não posso deixar o partido agora. Sei que tua gravidez está adiantada e que teu pai se
impacienta com a demora de nosso casamento. Mas, muito em breve, estarei aí para
honrar com meu compromisso. Sinto muito tua falta.
Escrevo sem saber para onde remeter. Onde tu estás, que não aqui, para assistir ao
nascimento de teu filho? Tuas cartas não chegam mais e as que envio retornam para
mim. O que te aconteceu, meu amor? Terás sido maltratado por algum inimigo do
partido? Apenas a menção dessa idéia faz meu corpo estremecer. Sinto um vazio
enorme por dentro, ocupando o espaço onde deveria caber o preenchimento infinito de
carregar um filho teu. Mas de que me adianta carregar teu herdeiro se já não posso te
alcançar? Todos me olham com piedade, já desconfiam que fui abandonada por ti.
Creio que papai só não me surra por conta de meu avançado estado de gravidez. Já
não sei ao que recorrer. Nem as missas, nem os livros, nem mesmo a lembrança de ti
me apaziguam. Sinto como se estivesse no estado entre a respiração e o afogamento,
quando já não há mais volta, nem salvação. Meu corpo desfigurado espera pelo teu.Não há aceitação da alma que revogue do meu corpo seu direito de te ter. O filho que
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carrego exige o contato com o pai e me pune, com dores fortes, por não poder
apresentá-lo a ti. Já não choro e nem lamento, apenas calo, como se tudo em mim
houvesse secado. Por vezes, cogito ter sido apenas ingênua, tola; mas logo retorna a
impressão de que fui pouco. Que, como desde o princípio desconfiei, não havia nadaem mim, para além de um encontro de corpos, que te fizesse permanecer. Mas eu quis
correr o risco e permiti mesmo que tomasses meu corpo e meu espírito, fazendo em
mim um filho teu. Um filho que agora desconfio que jamais irás conhecer. Por que não
retornas, meu amor? Que festas para teus sentidos são essas que te são mais caras que
a mulher que te ama e o filho que te aguarda para vir ao mundo? Sei que escrevo para
ninguém. Sei que escrevo para evitar o grito.
Fiquei longo tempo sentada na cama de minha irmã. Pela primeira vez , era
como se eu ouvisse sua voz, pudesse ser confidente de seu pranto. Quis poder tocar-
lhe, dizer-lhe que seu corpo não estava desfigurado, que seu corpo era lindo, sublime
em sua condição. Mas não havia nada a dizer. Pois a irmã, morta de parto, antes
mesmo que eu completasse meus cinco anos, há muito já havia calado. Naquela noite
sem luzes, dormi no quarto que por tanto tempo evitei, rodeada pelos objetos de
minha irmã, aconchegada pela certeza de que tudo que se ergue está a caminho do
naufrágio e tudo aquilo que podemos atingir está sempre se aproximando de seu
esgotamento e seu sumiço.
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Já não era mais possível contar a passagem dos dias quando já nem mesmo aos
sinais da claridade eu me sentia motivada a responder, dormindo quando havia sono e
não mais quando a escuridão se anunciava. Havendo, assim, os dias completamente
escuros e aqueles feitos de pura luz. Quando, na sala do andar de cima, entre o mar eo retrato, as horas se alongavam e eu permanecia em silêncio, contemplando a
paisagem monótona ou simplesmente esvaziada de ato qualquer. Principalmente
depois de visitar algum cômodo, quando me sentia muito cansada e passava longo
tempo estática, procurando me afastar das angústias previsíveis, deixando que o
abandono e o silêncio espantassem as minhas conclusões, minhas amarras, minhas
pretensas respostas para perguntas inauditas. Tornando novamente o vazio como
lugar inicial, sem que os dias tivessem nenhuma tendência, nenhum propósito,
nenhuma vocação.
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Tu virias. Desde muito cedo, eu sabia que chegaria o dia que ficaríamos um
diante do outro. Quando ainda não te anunciavas de nenhuma maneira e nosso
encontro era tão absurdo quanto impensável, eu já percebia um tremular incomumnas sombras da casa e meu silêncio se tornava ainda mais profundo, mais pesado.
Quando minhas esperas beiravam a impaciência e eu buscava conforto imaginando
ouvir passos afundando no assoalho da casa, inventando um corpo que eu sabia que
subiria as escadas e viria ao meu encontro, sem temer, sem estranhar. Eu desconfiava
de uma presença sem saber nomeá-la e fechava os olhos para aceitar inteiramente
essa invasão, deixando meu corpo frágil e gentil, disposto para qualquer encontro.
Abandonando a rigidez, desfazendo a tensão, esmaecendo a consciência da lâmina
constante que guardava junto ao peito, entregando a ti o meu corpo, que era então o
que eu conservava com maior apego, com maior cuidado. Quando, por um instante, eu
abandonava a mim mesma, a casa, os antigos fantasmas e me sentia inteira rodeada
por um ar tão novo, que já não me sentia capaz de sustentar a respiração, e ofegava,
como quem leva o corpo para muito além de si mesmo. E era essa presença ausente
de qualquer figura que abrandava a vastidão da minha deriva. Sem pretender dar-te
um corpo, uma feição, eu te supunha. E mesmo então, mesmo por um instante, tu me
salvavas.
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No dia que resolvi visitar o quarto de Felipe chovia muito. O cômodo, quase
inteiramente esvaziado, tinha uma janela de frente para a rua de onde se podia ver a
chuva acumulando-se em pequenas poças. As paredes do quarto de Felipe estavammanchadas pela umidade e, do teto, pingavam alguma gotas, lentas e intermitentes.
No quarto não havia mobiliário algum, apenas uma mala fechada e um relógio de
pêndulo fora de funcionamento. Fiquei, por algum tempo, contemplando a chuva
antes de me aproximar dos objetos deixados pelo irmão. Com um dedo, experimentei
a densidade da poeira que repousava sobre a mala. Era uma mala antiga, pesada, sem
alças nem estampas. O tempo acumulado sobre a mala era espesso; mas, a seu lado, o
relógio estático atravessava distraído pelos dias, sem preocupar-se em encontrar-se
com as horas. A imagem dos dois objetos, mala e relógio, colocados sob a pequena
chuva doméstica era tão exata que me fazia recuar. Os objetos estavam pervertidos de
seus usos – a mala alheia do percurso, o relógio estrangeiro do tempo, o teto generoso
com a chuva, as paredes flexíveis com o ar. Tudo parecia haver criado uma ordem
própria para si, existindo harmoniosamente em discordância.
A chuva aumentava dentro e fora do quarto quando finalmente me aproximei
da mala. Abrindo-a com receio, descobri que possuía pouco conteúdo: três selos, um
mapa-mundi, caroços secos de uma fruta, penas, um estilingue, um pé de um sapato
de passeio, o esqueleto de uma pipa, um cachimbo, mechas de um cabelo escuro.
Confusa, fiquei olhando para o interior da mala, sem conseguir conceber em que
medida aqueles objetos se relacionavam e por que haviam sido deixados ali. Era como
se, em nossa partida, Felipe houvesse feito uma mala para a ida e outra para a
permanência, tendo deixado objetos que pertenciam mais a casa que a ele, ou mais a
sua infância que a sua juventude.
Lembrava de Felipe como um homem sempre calmo e presente, era o irmão
mais velho, que ajudava nos negócios do pai. Felipe estava sempre auxiliando o pai
desde pequeno e, quando não estava no trabalho, gostava de fazer pequenas
gentilezas para todos nós, indo à venda, levando correspondências ao correio,
ajudando os irmãos mais novos com as lições difíceis da escola. Parecia um homem
pragmático demais para que no momento da mudança tivesse tido a vontade deescolher pequenos objetos dissonantes e abandona-los em uma mala velha dentro de
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seu quarto. Mas ali estavam e eu me dispunha a conviver com eles, procurando
alguma memória que me ajudasse a torná-los mais possíveis, mais reais. Será que,
algum dia, por instantes, Felipe tivesse imaginado que alguém da família retornaria a
casa antiga e se depararia com a estranha e delicada coleção? Teria arranjado seupequeno relicário profano com a intenção de dizer, ou havia depositado sobre o chão
de seu quarto nada mais que um silêncio? Eu não alcançava a voz daqueles pequenos
objetos e precisei ficar olhando para eles até que fosse possível estarmos no mesmo
tempo e no mesmo lugar. Passou-me também a idéia de que cada objeto fosse parte
do corpo de alguém da família. A mala seria a mãe, grande, cheia de amplitude em seu
interior, pesada, quase imóvel, sempre larga o suficiente para reter a todos nós. O
relógio, do lado de fora, era o pai, distanciado, vigilante; mas sempre subversivo,
desencontrado de suas aptidões mais óbvias, mais funcionais. Os objetos no interior da
mala éramos nós, os filhos. Um tão drasticamente avesso ao outro, mas sempre
resignados a uma delicada convivência. Mas também esta idéia me pareceu ingênua e
entendi ali que eu vinha coletando todos os vestígios da casa como corpos de uma
compreensão, como se tudo que eu pudesse tocar estivesse carregado de uma
intimidade cheia de entendimento e cumplicidade; mas foi ali no quarto do irmão que
me dei conta de que a casa era também um depositário das coisas esquecidas, que
aquilo que eu tomava por um relicário podia ser mera banalidade, filho do acaso,
vestígio da desatenção. Pois tudo que eu tinha encontrado ali até então eu passava a
carregar comigo, como se minha solidão pudesse ser abrandada pela ilusão desses
encontros. Pois era sempre preciso carregar no corpo muito além do que era do corpo,
era preciso esconder os segredos por debaixo da pele, encontrar esconderijos,
refúgios, compor o cenário para o esquecimento. Habitar a casa sempre a partir dos
cantos, esta dobra que é meio cárcere e meio porta. Era preciso ficar ainda menor, ser
mais detalhe, ser rodeada pelos habitantes inertes, para deixar de ser somente eu
mesma o enfeite dos meus dias.
Mas era preciso também esperar pela manhã na qual iria acordar e decidir me
desfazer de todos aqueles excessos, romper com aquela imensidão de coisas que no
fim revelavam apenas uma enorme falta. Porque todo excesso que eu tinha buscado
até então era exatamente o excesso de falta. Era preciso caminhar, caminhar e não
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encontrar nada. Apenas ser encontrada pelas coisas que, por muito pouco, se
tornavam parte de mim.
Eu queria encontrar algum mistério, tropeçar em coisas impossíveis. E então
me punha a colecionar segredos, coisas difíceis, meio feias, meio gastas, quase sempreestranhas. Cercava-me de pequenos acúmulos efêmeros e esperava que um pouco do
escuro me entrasse no corpo. E então que eu também fosse mistério, toda contornada
de silêncio e incompreensão. Era preciso também ter onde depositar os vazios.
Encontrar conforto para o olhar que não tem onde morrer. Cada uma daquelas peças,
a invenção de um tato. Possibilidade de um encontro entre pele e casca. Eu ficava tão
completa inventando um segredo para cada um daqueles cacos. Era como uma lacuna
que estivesse grávida de completude. Era preciso ainda que eu parasse de tentar me
ver nessas coisas, que elas fossem apenas coisas, belas e inertes. Evitar a mim mesma
nos objetos da casa e dar preferência ao nada, ao muito pouco visível, guardar meu
olhar opaco de não saber o que gostar de olhar. E então voltar para a escuridão
primeira, que é a do próprio encontro de pálpebras. Tatear a escuridão das coisas
claras. Ajeitar um relicário efêmero, feito da longa história das coisas anônimas, que
tão logo fosse montado se desfizesse por inteiro. Guardar a importância tudo aquilo
que é esquecido.
Porque o esquecimento é um silêncio que o corpo consente.
E, desistindo de acrescentar qualquer realidade que fosse maior que suas
presenças irreparáveis, abandonei os objetos à chuva doméstica e ao trato dos dias.
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Depois do assombro que foi a visita ao quarto do irmão, passei a ficar muito
mais tempo no andar inferior, onde ficava a cozinha, a dispensa e a oficina do pai. Em
alguns dias me arriscava a passear pelo quintal, onde os arbustos adormecidos
conviviam com as árvores antigas, compondo um cenário que seria bucólico se nãoestivesse tão recoberto de pequenas mortes vegetais. Havia um banco em um dos
cantos, revestido de limo e ferrugem, mas onde gostava de me sentar para observar a
vida do jardim esquecido.
Uma tarde, imergida na contemplação de alguma mínima agitação, uma figura
inesperada atravessou o meu olhar. Assombrada, retrai o corpo de súbito e deixei
escapar um grito agudo. Fiquei por algum tempo em estado de alerta, quando percebi
por fim do que se tratava. Pequeno, esguio e negro, um gato passeava pelos caminhos
ocultos do quintal. Movia-se como se já possuísse intimidade com o terreno e como se
aquele passeio lhe fosse rotineiro. Fiquei olhando o gato sem quase me mover. Ele não
parecia querer ir a lugar algum, entretido com as relações que criava entre seu
pequeno corpo e os habitantes estáticos do quintal. Subia nas árvores menores e lá
deitava, para depois descer correndo e ficar parado em um canto, recolhido em seu
próprio corpo. Recortava a inércia bruscamente, jogando o corpo contra alguma
superfície, inventando uma vertigem imediata para si. Horas transcorriam-se enquanto
o gato percorria o quintal e eu o observava, fascinada com o traçado de seu pequeno
corpo negro, contrastando com o amarronzado constante do jardim. E como não era
possível prever seu movimento seguinte, cada instante de seu corpo diminuto era um
instante em si, sem manter uma relação direta com o anterior. Como se sua dança
fosse reinventada a cada novo passo.
O pequeno gato, nos primeiros dias, não pareceu particularmente interessado
em mim, enquanto eu passava tardes o contemplando. O dia que se moveu em minha
direção, fui tomada por uma súbita e incomum reação. Com um esgar quase felino, me
retrai no banco, trazendo os pés para cima do assento; mas o gato seguia vagaroso,
determinado a vir ao meu encontro. Chegou muito próximo de mim quando notei que
se tratava de uma fêmea. A gata me olhou, seus olhos eram acinzentados, quase azuis.
Ficou me encarando longamente até dar o impulso em suas patas traseiras que a
trouxeram para o encontro do meu corpo. Com a pequena criatura negra no colo,passei a sentir o que há muito já não experimentava: o contato com um corpo vivo.
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Sentindo os breves batimentos de seu coração, fiquei acariciando o animal até que ele
resolvesse dar o encontro por encerrado e seguisse novamente pelos desvios e abrigos
do quintal.
Como se me coubesse dar-lhe um nome, resolvi que a gata se chamaria Hannahe foi assim que passei a chamá-la quando nos encontrávamos nos dias seguintes no
quintal, percebendo que, aos poucos, a gata aceitava Hannah como um som que se
referia a ela, até reconhecê-lo completamente e tornar sua resposta imediata a seu
enunciado. Hannah se mostrou um animal afetuoso, apreciava o contato afável com o
meu corpo e trazia periodicamente passarinhos ou ratos para a beirada na porta, gesto
que eu compreendia como um delicado e estranho presentear. Depois de algum
tempo, passei a deixar a porta dos fundos entreaberta, para que Hannah pudesse
freqüentar a casa caso sentisse vontade. Mas a gata jamais deu um passo sequer em
direção ao interior, assim como eu passei a sempre chamar por ela e anunciar minha
presença quando me dirigia ao quintal, compactuando com o trato silencioso de nunca
nos invadirmos e não violarmos, em tempo algum, as nossas amplas solidões.
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Com a convivência quase diária com Hannah me tornei mais alegre, retomando
o hábito das risadas e da fala, passei também repentinamente a sentir necessidade de
me ocupar com alguma atividade manual. No quarto de Artur, encontrei alguns papéis
velhos e um pedaço de carvão e, sendo assim, decidi que iria me dedicar a desenhar.Circundada por aparições constantes de Hannah, buscava fazer anotações visuais.
Desenhava as árvores, os galhos secos amontoados, as folhas, os grãos de terra e o
vulto de Hannah, que só era possível de ser capturada quando estava dormindo ou
muito distraída. Desenhar me parecia a ocupação perfeita para aqueles dia renovados
em ânimo e agitação. Passei também a registrar outros aspectos da casa, como as
manchas de umidade, objetos e as sombras noturnas. Não sabia avaliar se eram bons
ou maus desenhos, pois para eles não havia nenhum critério, nenhuma utilidade. Eram
apenas imagens que emergiam de um rasgo do visível e logo se depreendiam dele,
assumindo suas vidas de invenção. Antes de serem registros, eram delírios, assombros.
E assim gostava que eles fossem: cúmplices das minhas retinas, testemunhas
silenciosas das minhas cotidianas precariedades.
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Agora que faz tanto tempo desses fatos ocorridos, me é difícil alcançá-los nas
suas demoras, seus estenderes. Agora que te tenho ao meu lado, e tento te explicar a
espessura do labirinto que te trouxe até aqui, eu te percebo com os olhos perdidos,
como se tu buscasses costurar cada um de meus passos ao seguinte, entendendo queo caminho que me trouxe até ti foi um trajeto em linha reta. Mas a verdade é que o
meu absurdo sempre foi meu fio condutor, e para que eu pudesse continuar neste
exílio voluntário era muito importante que nada fosse coerente, que apenas dos
torpores, dos desencontros, dos equívocos os dias fossem feitos. Pois, caso eu
buscasse a lógica, logo sairia pela porta, me voltaria a minha família e ao meu provável
casamento; mas, para habitar o caos, eu precisava assumir profundamente,
visceralmente, minha perigosa liberdade.
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Então houve o dia que decidi entrar no antigo quarto de meus pais. Como um
suicida que decide em um ímpeto pelo rasgo de sua vida, entrei no quarto onde tinha
sido concebida. Ali, onde ainda jazia a antiga cama, a penteadeira, o armário e as
mesas de cabeceira, não havia objeto pessoal qualquer que me reportasse à presençacálida de meus pais. Era um dia ensolarado e, pela cortinas bordadas da minha mãe, os
raios de sol guarneciam, tépidos, as feições do quarto. Por algum tempo, fiquei
prostrada junto à porta, sentindo um vazio que me gastava o corpo, lembrando do
toque de materno, de sua ternura morna. Pensar que minha mãe havia ficado para
trás, sem qualquer sinal de meu paradeiro, me trazia para muito perto da dor mais
aguda que me era possível supor. Era como a negação daquilo que me ligava às
generosidades do mundo, o alimento, a afeição, a ternura, o calor. Ali, eu sentia no
corpo a falta que fazia a experiência do pertencimento. A idéia de ter as feições
semelhantes às de outras pessoas, o tom de voz, os gestos, os hábitos, era então uma
visão muito esmaecida de mim mesma, que ali permanecia como alguém sem passado
nem destino, sem incidência nem dispersão, sem herança nem vestígio. Ali, muito mais
do que em qualquer outro lugar, era preciso estar muito convicta de minha escolha,
ter em mente a minha vontade de desprendimento, meu desejo ardente pelas núpcias
firmadas com a minha solidão. Mas foi ali também que eu compreendi que a escolha
pelo retorno à casa da infância não havia sido leviana; para além de mera comodidade,
o convívio com os vestígios de minha origem me deixava sempre ciente de que toda
liberdade existe na medida de uma falta, pois eu ainda estava a todo instante
buscando limites para o próprio ímpeto. A minha liberdade estava a todo tempo
margeada por suas constantes limitações, pois, por mais longe que eu me movesse,
jamais deixaria de ser filha de meus pais e carne deste mesmo corpo. Acaso íntimo,
específico acidente. Quando, depois de muitos dias, senti que as lágrimas se
adensavam e eu me sentia pronta para o pranto abissal que retinha nos meus olhos,
eu ouvi.
Como batidas rápidas de um pulso falho, teus passos se anunciavam e, ao ouvir
teus indícios, meu corpo todo se pôs em alerta; como quem pressente que tem a vida
em risco, em estado de limite. Então eu ouvi a tua voz. Grave e profunda, tua voz era o
som que me punha trêmula e atenta. Primeiro como um eco, distante e abafado edepois mais clara e íntima, tua voz se fazia presença e me solicitava. Meu corpo então
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não se movia, desejando permanecer naquele instante de urgência e sonho, temendo
que, caso se virasse em direção à porta, tudo pudesse se dissolver, súbito e
incontrolável, temporal em dia quente. Mas o instante que se alongava logo foi
tomando feições de realidade e eu entendi o que se passava: havia um homem queesperava frente à porta da minha casa.
Desci as escadas e fui ao seu encontro. Virei a chave, puxei a maçaneta. Nos
olhamos.
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- Eu vim buscar a gata. – disseste - Desculpe, mas acho que minha gata está
aqui, e vim buscá-la.
Entendi então do que se tratava. Hannah era uma estrangeira, vinha de outra
casa e, antes de ser a companheira única dos meus dias, era uma visitante esporádicado meu quintal. Respondi, instantes depois, que a gata havia chegado ali por ela
mesma e que poderia ir embora quando quisesse. Ficaste em silêncio, talvez me
tomando por uma espécie de louca – lembrei de como deveria estar minha aparência –
e parecias medir as tuas próximas palavras.
- Posso entrar então? - perguntaste.
- Entrar para quê? - repliquei, sentindo as batidas do meu coração rápidas e
obstinadas.
Disseste então que querias ver Simone, saber como ela estava, se desejava
retornar, se os filhotes já estavam para nascer. Perguntei-te, surpresa, se Hannah
estava prenha e respondeste que sim e que tinha sido depois disso que a gata tinha
fugido de casa, que tinha se tornado arisca e impaciente depois da gravidez. Entraste.
Te levei no quintal dos fundos ao encontro da gata, que repousava, suave, sobre o
banco de pedra.
- Simone! - gritaste, e a gata levantou os olhos, te encarando - Simone, vamos
para casa? - perguntaste com a voz amena.
Mas a gata apenas abaixou os olhou e tornou a descansar. Disse então que a
gata agora respondia por Hannah, que tinha sido este o nome que eu havia dado para
ela. Ficaste então, por um longo tempo, olhando para o pequeno animal; teus olhos,
que eram de um cinza profundo, pareciam ter tornado ainda mais acinzentados. Até
que, por fim, parecias ter decidido algo em teu silêncio e falaste que estava tudo bem,
que eu cuidasse da gata e acompanhasse o nascimento dos filhotes. Respondi que faria
isso, e novamente imergimos em um silêncio agudo.
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Como já não sabia mais o que falar, mas desejava profundamente continuar na
tua companhia, resolvi te oferecer um chá. Aceitaste prontamente e entramos na
cozinha, onde te sentaste no balcão e eu passei a acender o fogareiro. Então falaste. E,
cada vez que rompias o silêncio com tua voz áspera de homem, meu corpo se retraíaem um mínimo esgar, como quem morre ou quem desperta. Perguntaste se eu vivia ali
sozinha e respondi que sim. Perguntaste então se eu havia acabado de chegar, e eu
disse que já vivia lá há quase um ano. Calaste, talvez observando as precariedades da
casa, procurando entender como alguém poderia estar tanto tempo vivendo assim.
Mas nada falaste sobre isso, apenas disseste que moravas ali perto, na companhia de
alguns gatos. Virei na tua direção e sorri, sem dizer nada, e notei que me olhavas com
um semblante dolorido, que parecia ser fome ou compaixão.
Terminei de preparar o chá e levei até a mesa onde notei que observavas uma
pilha de papéis nos quais estavam meus desenhos mais recentes, perguntaste se tinha
sido eu que tinha feito todos eles e disse que sim, mas que eram apenas rabiscos,
coisas feitas para passar o tempo. Disseste que gostavas deles, que eles te tocavam de
alguma forma, porque pareciam fazer parte de uma experiência de intimidade de um
olhar muito povoado. Agradeci, tentando entender se dizias aquilo para ser gentil ou
se, de fato, minha intimidade poderia ter alguma coisa de encanto. Então, quando já
íamos terminando nossos chás, fizeste a proposta: deixarias a gata para mim desde
que, em troca, eu fizesse um retrato teu.
Sorri para ti, um sorriso cheio de contentamento e ansiedade; disse que tal
troca me parecia justa e que assim seria. Escolheste o cenário do quintal para que teu
retrato fosse feito.
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Sentaste no banco de pedra ao lado Hannah e eu sentei no chão, logo à tua
frente. Apoiando papel e carvão em um pedaço de madeira, olhei para teu rosto
buscando reter o que havia nele de mais marcante e essencial; mas teu rosto, teu
corpo inteiro, pareciam irresumíveis, tudo guardava uma importância singular eimpensada. Tentava iniciar pelos teus olhos, mas teus olhos revelavam não ser o teu
começo. Então arriscava começar na tua boca, mas também teus lábios não eram teu
início. Imaginava se o nascimento do teu rosto seria o teu pescoço, mas teu pescoço
afirmava que não, que não era este o caminho ainda. Tu te movias muito pouco, me
olhando fixo, aguardando calmamente. Quando o dia já ameaçava escurecer, tive que
te dizer a verdade: pouco tinha conseguido desenhar, precisava de mais tempo.
Disseste que haveria tempo então, que permanecerias o quanto fosse necessário.
Disse que poderias dormir ali no andar de baixo, na antiga oficina, e que no dia
seguinte retomaríamos o trabalho. Sorriste, por fim, um sorriso que beirava uma
risada e, se rias, não sabia se era da tua loucura, da minha imprudência ou da alegria
impensada que havia em nossa anônima cumplicidade.
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Naquela noite, enquanto te sabia dormindo no andar inferior, eu te aguardava,
retida, esperando que o vulto rápido do teu corpo tocasse a minha sombra oblíqua e a
dissolvesse. Tua ausência me alimentava de esperança e morte, e a todo instante
ansiava por sentir de novo o rasgo do teu olho sobre meu corpo dolorido. E quandotentava lembrar do teu rosto, já não era mais capaz. Fechava os olhos e podia até
supor a sensação viva de tuas mãos espessas corrompendo os contornos da minha
carne, mas teu rosto era lacuna, incógnita. Quem eras tu, afinal, homem do meu
corpo? Tu que apenas com a tua presença despertava o que era mais caos na minha
carne e tornava minha desordem o mais terno entre nós dois. Quem eras tu cujo
silêncio me rasgava e transtornava, me fazendo amalgamada de lacunas. Tu que
aceitavas meus vazios, meus delírios de quedas, minhas distorções, meus desvios e me
fazia querer deixar de combatê-los, entendendo que das minhas infindáveis faltas é
que me fazia inteira para ti; pois minha própria carne sempre foi derrota de si mesma
e meus contornos, as minhas próprias lassidões.
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Antes mesmo que fosse dia, já havia despertado. Desci silenciosamente
temendo tanto te encontrar quanto dar-me conta de tua partida, mas tu também já
havias acordado e, sentando na soleira da porta que separava a cozinha do quintal,
esperavas.- Tu já acordaste. - falei.
- Eu nem mesmo dormi. - respondeste.
Perguntei se por causa do desconforto das acomodações na oficina, mas
disseste que não, que não era por isso. Parecias muito menos alegre que no dia
anterior e, pela primeira vez desde tua chegada, tive medo. Não sabia o que fazer com
a tua aflição, não conhecia meios para te amparar e nem tinha consciência de conforto
qualquer que pudesse encontrar em mim para te oferecer. Temi então que fosse o fim
do nosso encontro, que tua tristeza recém admitida fosse o que em ti era limite,
impossibilidade. Tive medo de que toda a minha espera, que agora eu percebia tão
bem se concentrar na tua figura, convergir inteira para dentro de teus contornos, fosse
mesmo o acúmulo de meus ocos e fantasmas. Que não houvesse encontro qualquer
possível para além daqueles forjados por mim, entre minha solidão e meus delírios.
Mas então sorriste, e o sol que começava a despontar iluminou teu rosto forte e
disseste, com uma voz mais doce e mais gentil, que farias o chá desta vez para nós
dois. Aquele pequeno gesto de rotina que nos envolvia foi o que me salvou contra meu
medo e, sentada, olhei teu corpo passeando entre meus móveis e tuas mãos
manuseando as poucas louças da minha cozinha. Antever essa intimidade entre teu
corpo e minha casa era como supor uma intimidade entre nós dois, uma proximidade
que não era da carne, não era da fala, não era do tempo, que existia apenas no espaço
prolongado entre nossas palavras e na distância tão inquebrável quanto intolerável
entre nossos corpos. Serviste o chá e te sentaste à minha frente, durante longo tempo
não nos olhamos até que falaste por fim algo que parecias não agüentar mais manter
em ti mesmo.
- Que lugar é este, onde é que nós estamos?
Ponderei por algum tempo até responder que aquela era a minha casa, a casa
onde eu tinha nascido e onde agora eu havia voltado a habitar. Perguntaste então por
que é que tudo parecia tão antigo e sem uso e eu te disse que as coisas estavam comohaviam sido deixadas e que era assim que eu gostava que fossem, mais tocadas por
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suas próprias histórias do que pelo meu uso diário. Então, calaste. Ainda que eu
estivesse pronta para responder tuas próximas perguntas, para te contar minha vida
inteira, te dizer dos meus segredos mais escusos, tu te calaste, e eu não sabia então se
por aceitação ou por temor.Mais tarde, neste dia, te puseste novamente à minha frente para que teu
retrato fosse feito. Mesmo que desta vez teu rosto parecesse mais fácil e manso, era
inevitável que eu desenhasse um tanto enquanto outro tanto era apagado. Como
Penélope, que tecia quando havia luz e desfiava pela noite, eu construía e arruinava
teu retrato na mesma medida, sabendo que teu rosto jamais seria de todo
conquistado e que teu retrato havia de ser tanto presença quando desaparição. Era
nítido que teu retrato se modificava, mas ao fim daquele dia ele estava igualmente
inconcluso, como no dia anterior. Tu pareceste não te importar com isso, olhando para
o resultado provisório com satisfação e afirmando novamente que no dia seguinte
poderíamos continuar.
Naquela noite, enquanto fazíamos a última refeição, me disseste teu nome.
Sem que eu perguntasse, no meio de uma conversa sobre aspectos do tempo e da
estação, tu falaste. O som do teu nome parecia tanto pertencer a uma língua
estrangeira como ser um pedaço do meu próprio nome. Respondi apenas te dizendo o
meu. E então nos calamos e, sem dizer mais nada, fui em direção às escadas, lenta e
calmamente, ouvindo o som dos teus passos não muito distantes dos meus.
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Foi quando já chegava à sala do andar superior que decidi olhar para trás e
encarar teu corpo que vinha logo ao meu alcance. Ficamos frente a frente durante um
instante tão extenso quanto o instante indeciso entre a morte e a salvação. O retratona parede à nossa esquerda era a testemunha única desse encontro; no nosso outro
lado, apenas a noite densa e o mar intermitente. Perguntaste se eu tinha medo que tu
me machucasses. Eu respondi que não. Olhei para ti e dentro dos teus olhos havia
sinais de um desejo tão feroz que, por instantes, era possível te supor violento. Mas eu
não temia, em definitivo, a tua força. Se fosse o meu destino morrer ali pelos teus
braços, que assim fosse feito; mas nada me parecia tão certo e necessário que estar
dentro daquele instante, rodeada pelos vestígios de mim mesma, diante de ti.
Perguntaste, por fim, onde ficava o meu quarto e eu te indiquei a porta do
quarto de Artur, que era onde eu tinha dormido por todo esse tempo. Então
perguntaste novamente onde era o meu quarto, aquele que eu havia habitado antes
de habitar outro qualquer. Então fechei os olhos, como que para decidir em um
instante por qual caminho seguir, até perceber que não iríamos a lugar algum se não
fosse ao meu antigo quarto, este único cômodo que eu havia evitado e ignorado por
todo esse tempo. Estiquei a mão em tua direção e tu a seguraste. Guiei-te até o final
do corredor comprido onde estava, fechada, a porta que tinha protegido e
enclausurado meu corpo durante tantos anos.
Entramos.
O quarto estava mais empoeirado e sujo que qualquer outro cômodo, mas
parecias não te importar. Olhaste atentamente para cada uma das superfícies, com o
mesmo semblante ávido e grave com o qual olhavas para mim. Dentro do cômodo,
havia apenas uma mesa, algumas prateleiras e poucos objetos pessoais que eu nem
recordava haver deixado para trás. A lamparina que trazias contigo era então o que
nos iluminava e foi a intensidade crescente da luz que notei primeiro quando teu
corpo se aproximou. Estávamos muito perto quando tu falaste.
- Eu não sabia que estava pronto para te encontrar.
Eu disse que também não sabia, mas que estava feliz por enfim ter encontrado.
Disseste que me querias tanto que não sabias como começar a me tocar. E eu te disseque me fazia doente estar tão perto de ti e passar mais um instante sem te receber na
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minha pele. Perguntaste se eu sabia que iria doer e eu respondi que sim, que doeria,
mas que não havia nada que eu quisesse mais que a dor de ser corrompida por ti, de
ter minha integridade pervertida pela tua presença, pela plenitude de te acolher.
Então me seguraste contra teu peito e perguntaste por fim se eu desejava engravidar.Respondi que sim, que era isso o que eu queria. Então, gentilmente, me deitaste no
chão do meu antigo quarto e o vulto do teu corpo sobre o meu fez sumir a visão dos
vestígios de um passado que era então muito menos vivo e claro que o calor do corpo
que me abrandava e consumia.
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De dissolver e de adensar. Se há um encontro de braços, dedos e ar. Se te
respiro neblina, brisa, sereno. Se te espero. Eu permaneço – avessa, côncava,
passagem. De manusear feridas, contornar asperezas, dedilhar o sopro. Construo
mapas da tua pele clara, encontrando constelações que vestem teu corpo, atenta aoteu silêncio e as frestas da tua voz. Caminhamos com passos leves, nos amparando nos
tropeços, entrelaçando dedos, corpos e voz. Se conversamos e nos confundimos com a
dança das nossas bocas, é também porque nos olhamos com tantos olhos e nos
sentimos com tanta pele que se transbordamos é por dentro, nos umedecendo com a
liquidez das lágrimas suspensas e com a densidade dos naufrágios diários.
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Ainda que tentássemos dormir não conseguiríamos, pois tínhamos ânsia de
conversarmos sobre tudo aquilo que podíamos então lembrar sobre nós mesmo. Eu te
falei da minha família, da minha infância, dos meus amores e meus defeitos, dos meusanseios e da minha fuga. Tu me contaste sobre a cidade de onde vinhas, sobre como lá
sempre chovia, de como gostavas de morar perto do mar, das mulheres que havias
amado, dos teus dias solitários, das tuas ocupações e dos teus gatos, de tuas clausuras
e teus exílios. Eu te contei de meus pequenos crimes, me confessaste o teu pecado e a
tua redenção. Sabíamos que haveria muito tempo para dividirmos nossos
acontecimentos, mas não havia nada mais importante então que a mistura provisória
de nossas vozes, nossos corpos, nossas vidas.
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Quando perguntaste, dias depois, se eu desejava ir morar na tua casa, dei-me
conta de que não desejava mais habitar nenhuma casa que já estivesse pronta, mas
que queria construir uma, longe daquela, perto de outro mar. Concordaste semprotestar e me pus a recolher as coisas da casa que desejava levar comigo para a casa
nova que iríamos erguer. De início, mal cabia na mala a quantidade de pequenos
objetos que desejava levar comigo, miudezas recolhidas em cada um dos cômodos que
me pareciam preciosas demais para serem deixadas para trás. Depois, resolvi que não
queria carregar comigo nenhum dos fantasmas com os quais havia convivido por tanto
tempo e optei por colocar na mala apenas o que me fosse útil e essencial. Mas
também os utilitários pareciam supérfluos quando olhados com mais demora e decidi
por fim que não levaria comigo nada além da roupa do meu corpo, a nossa gata e teu
retrato inacabado.
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Tu mergulhavas em mim como se eu não tivesse um fundo.
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Naqueles dias que seguiram nossas núpcias o tempo parecia haver ganhado
novas feições. Os dias transcorriam alongados, como que para fazer caber uma novavida a cada instante pleno de nossa convivência. As palavras então já não eram tão
necessárias e passamos a buscar o conforto da partilha constante de nossos silêncios.
Eu olhava para ti já não tão desejosa em te descobrir inteiro na medida do meu olhar,
mas buscando te manter teus enigmas, confirmar os teus segredos. Tu que já eras ali o
amor mais profundo do meu corpo, o amor que já chegava aos meus ossos, às minhas
mais antigas fundações. Amor que, desde o primeiro instante, eu sabia que seria para
sempre minha pele e minha entranha, víscera e ternura.
Tu eras tão bonito mesmo ali, transtornado em teu susto e teu deslumbre.
Tinhas o corpo grande e pronto e um rosto que parecia ter atravessado a espessura de
muitos dias, guardando em si tanto sua integridade quanto a marca do tempo. Eras a
beleza exata e difícil que eu tinha escolhido para mim. Tua presença abismava minha
existência vacilante e por ter tão homem, eu sabia que, caótica e desordenada, eu era
tua mulher. Éramos avessos na carne e na alma, éramos o desconhecido e, por isso, o
mais fascinante de tudo que podia haver no mundo.
Naqueles dias, quando já tinha certeza de carregar um filho teu, não havia nada
tão completo e exato quanto deitar-me ao teu lado, passando a mão no ventre
enquanto, na profundidade de nossos silêncios, encarávamos o mesmo mar.
Compartilhávamos a visão da mesma vastidão e tal intimidade me parecia ser aquela
pela qual meu corpo se preparava desde seu primeiro pranto. E, quando adormecias,
eu permanecia acordada contemplando teu rosto impassível enquanto visitavas outros
países, outros quartos e outras camas; e me alegrava sabendo que eras inteiramente
livre e, ao mesmo tempo, meu eterno protegido e o meu constante algoz.
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Estou caminhando rente a um abismo e o que temo não é a queda, temo a
minha vontade de queda. Temo o ímpeto de abandonar meu corpo no ar, desapegar-
me ao meu peso, esquecer da minha solidez. Pois é nos meus pés que começa a
extensão do abismo que contorno: um abismo anexo, intrínseco. O abismo constantede um passo na proximidade do outro. Estou caminhando rente aos meus pés. A cada
passo, uma queda iminente; a cada iminência, uma nova queda inventada. O que temo
é a idéia de me lançar a ida sem a imagem da volta. Descobrir, desprevenida, os outros
lados do ar. É que me dedico ao saber violar-me e esqueço tantas vezes eu mesma de
me salvar.
Agora me sinto só.
Meu corpo anseia pelo encontro. Minha mudez se arrefece. Posso conversar com
fantasmas, soprar sussurros contra a escuridão. Mas é o abismo, sempre abismo,
recebe, cuida e depois devolve minha voz.
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Eu que te amo tanto, como agora te contar que, dias antes da nossa partida, eu
estava obstinada a te deixar. Não que me faltasse vontade de seguir contigo ou
coragem para enfrentar ao mundo áspero e imenso, faltava-me ânimo para abandonara casa e deixar que morressem todas as intimidades que havia descoberto entre minha
pele e todas aquelas superfícies. Temia abandonar o conforto e as já familiares
aflições, relutava tanto abrir mão de minha doméstica liberdade como de meus
íntimos impedimentos.
Enquanto te ouvia falar a respeito da casa nova, de como seria clara e espaçosa
e de como nosso quintal seria vivo e habitado, eu passava as mãos discretamente pela
madeira bruta do assoalho, como se revelasse à casa que tudo ficaria como estava,
que eu jamais seria capaz de abandoná-la. E, durante longas noites, quando
dormíamos enlaçados no chão de meu antigo quarto, os rangeres da casa velha eram
como as vozes de um lamento antigo. Um pranto noturno em uma língua que só eu
poderia compreender.
No dia em que estava pronta para te dizer que permaneceria, tu surgiste pálido
e ofegante, revelando que Hannah estava pronta para dar à luz. Descemos correndo,
assustados e eufóricos, ao encontro da gata no quintal. Hannah estava recolhida em
um canto. Arfava e gemia silenciosamente enquanto pequenas criaturas escorregavam
para fora de seu corpo. Foi-me espantoso ver o instante do nascimento. Eu, que tinha
por tanto tempo convivido com a dissipação e o afastamento, neste instante, me
sentia violada por um impensado e caótico sentimento de vida. Hannah vertia algum
sangue, tinha seu corpo exposto e marcado; mas não parecia sofrer. Quando todos
seus filhotes já haviam abandonado seu ventre, ficou miando calmamente e lambendo
suas crias enquanto estas procuravam ávidas pelo leite materno.
Tu, ao meu lado, permanecias calado e solene, observando, respeitoso, o
primeiro encontro entre a mãe e seus filhotes. Eu, que já não conseguia segurar o
pranto, olhava para o corpo violado da gata e pensava que todo nascimento é corte;
pois o rasgo é a condição do surgimento. Percebi ali que eu temia a escolha, temia ser
eu mesma a responsável pela transgressão de meus alcances. Temia, sobretudo, dar-
me conta que toda partida implica em uma ausência, pois me era penoso imaginar acasa, em sua existência perene, completamente inabalada pela minha desaparição. Era
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preciso aceitar que minha oquidão podia ser tangente à minha completude, que meu
vazio fosse a matéria constante de meu perpétuo nascimento.
Que com o corte e o sangue a vida passava a existir.
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Na véspera de nossa partida tu me olhavas com os olhos muito graves e eu te
perguntei o que te afligia. Disseste-me que tinhas tantos receios e vontades, que tudoem ti transbordava e se exauria. Olhaste-me longamente até finalmente dizeres que eu
era o fascínio mais ofuscante dos teus olhos, teu engano mais gentil, teu ímpeto mais
iluminado. Que eu era inteira bela, de uma beleza como a da luz que, mesmo sem
forma, mesmo sem corpo, era interminável. Que mesmo minha sombra te arrebatava.
Mesmo minha banalidade, minha ignorância, mesmo aquilo que em mim era falta e
desvio te era caro e indispensável. Disseste que teus olhos eram os olhos que olharam
uma vida inteira para então estarem prontos e se voltarem para mim e que, mesmo
quando eu fosse velha e gasta, teus olhos envelheceriam e gastariam na mesma
medida, para poderem me seguir. Disseste ainda que todas as minhas palavras eram o
avesso daquelas que tu dirias e por isso mesmo as palavras que tu precisarias ouvir por
toda tua vida. Disseste que eu era teu amor, teu fogo, tua penitência, teu lapso, teu
tesouro. A ausência de ti e tua incontestável presença.
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Será que por algum instante tu também chegaste a desistir? Em que momento
teus olhos se voltaram para a escuridão de tuas pálpebras e revisitaste o espaço
imenso da tua vida do qual eu permanecia alheia e estrangeira? Como eram as sombraque te perseguiam, qual era a densidade dos dias que deixavas para trás? Saber que
sempre terias a possibilidade do retorno, que tua origem seria sempre em um outro
lugar, me era assustador e excitante, como é todo grande risco, toda precipitação. E
então eu te segurava firme contra meu corpo, sabendo que entre nós sempre haveria
um espaço, uma distancia. Que toda pele que nos unia era também o escudo
irrevogável que nos manteria apartados.
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Agora te tenho aqui, ao meu lado. Vamos partir em breve. Olho para casa uma
última vez. As portas estão fechadas, entardece. É preciso começar por algum lugar.
Digo então adeus não ao passado que jamais conseguirei abandonar, mas ao vazioproduzido por ele e pelo o qual eu estive arrebatada por todo esse tempo. Despeço-
me de minha urgência pelo vazio, pois sei que meu vazio mais íntimo é feito do meu
próprio ser. Sei que minha solidão não precisa ser minha procura, pois ela já é o meu
maior pertencimento. Olho para teu rosto que me observa enquanto ando pela casa
neste último passeio. Olho para ti e sei que estarei sempre sozinha. Sei que te ter ao
meu lado não ameniza meu desamparo que precisei vir até aqui para olhar de frente e
aceitar. Olho para todas as superfícies me sabendo, eu mesma, apenas superfície e que
toda a profundidade que vim buscar no meu exílio doméstico era apenas ficção da
minha pele, engano pueril do meu olho adolescente. Toco meu ventre que já dá sinais
de seu preenchimento e com o outro braço inclino a garrafa que tenho na mão,
espalhando o líquido pelos cantos da casa. Sei que jamais retornarei, que esta casa não
existirá nunca mais, pois meus olhos já se fecham para oculta-la. Já não é mais
necessário que ela exista, eu agora sou capaz de aceitar minha tragédia, minha
constante melancolia com paz e sem calamidade. Não é preciso santidade, nem
martírio, mas apenas a medida do meu desejo que era o único lugar onde, até então,
eu nunca havia estado. Vou derramando líquido, vagarosa, e sei estás aqui ao meu
lado, segurando nossa gata e teu retrato em tuas mãos. Já banhei todas as superfícies,
podemos ir embora.
Depois do último passo para fora do quintal, te olho, como que pedindo tua
aceitação. Então risco o fósforo e lanço a chama que imediatamente consome grande
parte da antiga construção. Ficamos por algum tempo observando o fogo consumindo
a madeira antiga, até que todos aqueles lugares, aqueles espaços, aqueles vazios se
condensem na matéria ordenada e calma das cinzas.
Anoitece agora.
Seguimos em direção à rua e depois em direção ao mar. Em silêncio, nós dois