priscilla de paula pessoa
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO
MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
PRISCILLA PAULA PESSOA
0BNARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA
Campo Grande MS
Maio-2008
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PRISCILLA PAULA PESSOA
1BNARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA
Orientadora: Prof. Dra. Maria Adlia Menegazzo
Dissertao apresentada para obteno do ttulo deMestre ao Programa de Ps-Graduao em Estudosde Linguagens, da Universidade Federal de MatoGrosso do Sul, sob a orientao da Prof. Dr. MariaAdlia Menegazzo.rea de Concentrao:
Campo Grande
Maio - 2008
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PRISCILLA PAULA PESSOA
NARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA
APROVADA POR:
MARIA ADLIA MENEGAZZO, DOUTORA (UFMS)
ELUZA BORTOLOTTO GHIZZI, DOUTORA (UFMS)
PROF. DRA. ELISA DE SOUZA MARTINEZ, DOUTORA(USP)
Campo Grande, MS, ____ de ___________________ de _________.
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Coordenadoria de Biblioteca Central UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Pessoa, Priscilla Paula.P475n Narrativas, grafemas e escrituras na pintura / Priscilla Paula Pessoa. -- Campo
Grande, MS, 2008.
104 f. ; 30 cm.
Orientador: Maria Adlia Menegazzo.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Centro
de Cincias Humanas e Sociais.
1. Arte e literatura. 2. Pintura brasileira Mato Grosso do Sul. 3. Grafemas. 4.Escrita. I. Menegazzo, Maria Adlia. II. Ttulo.
CDD (22) 411759.98171
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AGRADECIMENTOS
minha me, Sonia, pelo constante incentivo busca de
conhecimento e de crescimento, das primeiras letras at esta
dissertao.
Ao meu marido, Eduardo, por seu apoio constante e amor
incondicional.
minha orientadora, Maria Adlia, por seu exemplo e sua
generosidade em partilhar conhecimento.
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"Escrever sobre arte como danar sobre arquitetura."
(Autor desconhecido)
I
RESUMO
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NARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA discute a presena marcantede elementos da escrita na pintura, apontando para dois sentidos: a necessidade humana denarrar e o aspecto plstico-visual das letras e das palavras. O trabalho apresenta, ainda, umaleitura dessa prtica por artistas contemporneos sul-mato-grossenses, situando-os para alm
da cena artstica local. Os conceitos de texto e de obra de Barthes e as teorias sobre a narrativade Goodman e Ricoeur constituem o campo terico de base. Adota-se um ponto de vistahistoricista para a verificao da origem e permanncia dessa prtica, concluindo-se, atravsda anlise e comparao de obras de arte, que os elementos da escrita associam-se pinturaocidental desde a antiguidade e alternam-se entre os diferentes sentidos, num movimento
pendular, sempre ligado presena ou ausncia de um carter narrativo na obra.
Palavras-chave: pintura; narrativa; arte sul-mato-grossense
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ABSTRACT
NARRATIVES, GRAPHEMES AND ESCRIPTURES IN PAINTING - discusses the strikingpresence of elements of writing in painting, pointing at two directions: the human need tonarrate and the plastic-visual aspect of the letters and words. The paper presents in addition, areading of that pratice by Mato Grosso do Sul contemporary artists placing them beyond thelocal art scene. The text and work concepts of Barthes and the theories on the narrative ofGoodman and Ricoeur constitutes the field of theoretical base. It adopts an historicist point ofview for checking the origin and permanence of that practice, concluding itself through theanalysis and comparison of works of art, which combine the elements of writing to the
painting since ancient western and alternate up between the different senses in a pendulum
motion, always linked to the presence or absence of a character in the narrative work.
Keywords: painting, narrative, Mato Grosso do Suls art.
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III
SUMRIO
RESUMO............................................................................................................................ I
ABSTRACT ....................................................................................................................... II
INTRODUO ................................................................................................................. 05
1 DELIMITANDO O CAMPO TERICO: TEXTO, GRAFEMA,
ESCRITURA E NARRATIVA ........................................................................................ 09
1.1 Texto: um conceito abrangente .................................................................................. 09
1.2 Grafemas e escrituras ................................................................................................. 11
1.3 Narrativa .................................................................................................................... 13
2 BUSCANDO UMA TRADIO ............................................................................... 18
2.1 Pintura e escrita na arte egpcia e grega: uma fuso e uma ciso .............................. 19
2.2 Pintura e escrita na Idade Mdia: um casamento ....................................................... 24
2.3 Renascimento das artes, adormecem as letras ............................................................ 26
2.4 O moderno e o fim das narrativas............................................................................... 30
2.4.1 As letras acordam: cubismo sinttico ............................................................. 32
2.4.2 Schwitters, ou Merz......................................................................................... 35
2.4.3 Pinturas abstratas, letras abstratas e as escrituras de Barthes......................... 37
2.5 O surrealismo e as narrativas contemporneas........................................................... 41
3 GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA CONTEMPORNEA ................. 47
3.1 Ps-guerra: o triunfo americano ................................................................................ 49
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IV
3.1.1 Expressionismo abstrato : Escrita e abstrao.................................... 50
3.1.2 Arte pop: escrita e figurao .............................................................. 53
3.2 Narrativa ps-moderna e arte conceitual.................................................................... 56
3.2.1 Anos 1970: sim s letras, no s tintas ............................................... 60
3.2.2 Anos 1980: volta da pintura e permanncia das palavras................... 65
3.2.3 Anos 1980: volta da pintura e permanncia das palavras................... 65
3.3 Agora, agorinha mesmo.............................................................................................. 68
4 - UM SOPRO DE CONTEMPORANEIDADE NA PINTURA DE MS ................... 73
4.1 Narrativas intimistas................................................................................................... 75
4.2 Narrativas conceituais ................................................................................................ 81
CONCLUSO.................................................................................................................... 88
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................ 93
NDICE DE FIGURAS ..................................................................................................... 100
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INTRODUO
No ano de 1435, publicado na Itlia o tratadoDa pintura, de Leon Battista Alberti.
Uma das primeiras obras a constituir a pintura como objeto terico, o tratado continha
ensinamentos tcnicos com base na anlise de obras, versando sobre as propriedades das
cores, noes de proporo e perspectiva, consideraes sobre luzes e sombras, entre outros
pontos analisados. O tratado o retrato de um ambiente e de um tempo em que a pintura era
ainda (e o seria por muito tempo) a pintura do mundo que se v "As coisas que no
podemos ver, ningum negar que elas no pertencem ao pintor. O pintor s se esfora por
representar aquilo que se v"(ALBERTI,1989, p.72); porm, naquela poca como ainda hoje,
falar de pintura ir alm da pintura; tom-la como motivo de exerccio analtico e
discursivo. Mais do que observar, trata-se de ler a obra de arte.
Dentre os vrios elementos que podem compor uma pintura um em especial mereceu
nossa ateno neste trabalho e foi tomado como objeto de estudo: os signos verbais, letras que
nas mais variadas formas e com diferentes funes sempre estiveram presentes desde as
primeiras realizaes pictricas do homem. Durante o sculo XX, tanto nos anos devanguarda quanto na arte posterior Segunda Guerra Mundial (momento tido como divisor de
guas entre moderno e contemporneo), ficou mais evidente o dilogo entre as artes visuais e
a literatura, acompanhando a diluio de limites entre as diferentes linguagens e a
conseqente quebra de fronteiras entre texto e imagem. Artistas plsticos retomaram a origem
visual da escrita, utilizando elementos textuais em suas obras: frases inteiras, grafismos
isolados, letras de diversos alfabetos, colagem de fragmentos de textos impressos, etc.,
fazendo uso da escrita como elemento grfico e/ou conceitual. Mais especificamente, desde aspalavras e as letras presentes nos quadros cubistas de Picasso e Braque o trnsito entre as
linguagens tem possibilitado ao artista explorar a ambigidade conceitual deste movimento.
Dos anos 1960 para c, em funo das transformaes radicais no terreno das artes
(a comear pela ruptura com suportes tradicionais e pela prpria definio da palavra arte
posta em xeque), uma das direes tomadas pelos estudos dessa rea foi aquela cuja
preocupao seria a de vincular o plano do contedo ao da expresso, buscando uma
metalinguagem que desse conta dos muitos planos da expresso em conexo a seus contedos
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semnticos: o texto no qual o plano da expresso tambm fizesse sentido. Para Barthes
(1988), diante da obra produz-se a existncia de um objeto novo, o texto. Isso no significa
que se possa separar materialmente obra e texto: a diferena que a obra um fragmento de
espao, como por exemplo, uma tela pintada que se pode segurar, tocar. O texto mantm-se
na linguagem, s existindo tomado num discurso, e seu movimento constitutivo a travessia
(ele pode espacialmente atravessar a obra). Assim, a obra funciona como um signo geral, e o
texto gera significao atravs de um movimento serial de desligamentos, cruzamentos,
variaes.
Dentro do tema das relaes entre grafemas, escrituras e imagens e de como a
atualidade tece os fios das tramas verbo-visuais que compem a cena contempornea,interessam-nos os processos de textualizao e de hibridizao textual, entendendo texto em
sentido amplo, como materialidade paralela que pode ser integrada por diferentes semioses. A
existncia na histria da arte (e predominantemente em obras modernas e contemporneas) de
pinturas que, alm dos elementos prprios da linguagem pictrica, tm gravadas em si
tambm elementos prprios da literatura, exige um modelo de anlise visual no qual o plano
do contedo seja abordado juntamente com o plano da expresso, sendo este o percurso
gerativo do sentido.
Na construo deste trabalho foi dada nfase ao ponto de vista historicista,
alinhavando os momentos na histria da pintura em que letras e tintas se encontram at chegar
cena contempornea, entendendo a obra de arte no como um objeto de originalidade
absoluta, mas como herdeira de uma tradio que sempre reaparece, ora por continuidade, ora
por resgate. Nesse ponto, para delimitar nosso objeto, foi de fundamental importncia v-lo
sob o ponto de vista de Gombrich, que comtempla em seus livros a existncia de arte em
todos os recantos do mundo, bem como demonstra a influncia que as manifestaes exercemuma sobre as outras; porm, ele afirma tambm existir uma histria da arte como um esforo
contnuo(p.55, 1995), ou seja, h a possibilidade de se identificar uma herana direta desde a
arte antiga egpcia at a atualidade, a chamada histria da arte ocidental, e com esse
recorte que trabalhamos aqui. A dissoluo dos limites precisos entre as linguagens artsticas
e o dilogo cada vez maior entre as categorias distintas de arte que resulta no hibridismo entre
literatura e pintura e que constitui nosso objeto de estudo s podem ser analisados como
fruto no de artistas isolados, mas como resultado de toda a sua bagagem, que constitudapor milnios de produo artstica que compe a histria da arte.
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Defende-se aqui de que o ponto chave para interpretar a presena de sinais verbais
na pintura reside na inteno narrativa da obra, e a partir deste vis se constri a linha de
interpretao das pinturas que servem de corpus do trabalho. Sobre o caso da pintura
contempornea, entende-se que o freqente uso de letras tem forte relao com a volta das
narrativas a esse meio e a necessidade de apoiar essa narrao em smbolos reconhecveis, em
palavras, uma vez que no se trata mais de um texto linear e cronologicamente organizado,
mas de uma forma de narrativa enviesada, desordenada, subjetiva e conceitual que, para ser
apreendida, necessita de vnculos com o observador, vnculo esse dado pelo conhecimento de
um cdigo, o sistema alfabtico e suas possibilidades comunicativas.
Dentro desse cenrio encontra-se um espao privilegiado para se pensar tambm asrelaes entre imagem e palavra na pintura contempornea de Mato Grosso do Sul e a relao
dessa produo com o cenrio nacional e mundial da arte. Desse modo, esta dissertao
contempla, por fim, o estudo da insero de grafemas e de escrituras na pintura
contempornea de Mato Grosso do Sul, identificando suas funes especficas no trabalho de
quatro artistas, Ana Zahran, Evandro Prado, Patrcia Rodrigues e Rafael Maldonado, e
tambm verificando como essa tendncia os situa no cenrio da arte atual, indicando as
vertentes poticas s quais estariam relacionados.
No primeiro captulo busca-se explicitar o suporte terico utilizado, delimitando os
significados de termos que sero usados ao longo de toda a dissertao: texto, grafema,
escritura e narrativa. Discute-se primeiramente a idia de texto como um termo abrangente
que se aplica a signos no apenas verbais, e mais que isso, contempla distintas linguagens
dentro de um mesmo plano. O conceito de textoproposto por Barthes (1988) ser adotado, por
razes programticas, uma vez que se demonstra eficiente para a anlise do objeto deste
estudo. Ainda nesse captulo, apresentam-se as definies degrafemae escritura- as distintasformas de caligrafia que aparecem nas pinturas estudadas. Entendo, a partir das definies
dadas por Cmara (1978, p.174) que grafemas so a unidade formal mnima da escrita,
smbolos grficos constitudos por traos visuais sistematizados, que permitem a transcrio
visual de palavras, representando fonemas na lngua oral. J Barthes (1977), cuja noo de
texto se tomou emprestada, d uma definio de escritura como sendo a grafia para nada, ou
o significante sem significado. Dentro desse entendimento, o ato de escrever produz uma
escritura quando os elementos caligrficos no so usados como instrumentos de umalinguagem formada de cdigos reconhecveis, mas atuam justamente como interditores da
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possibilidade de identifica-los com fonemas. Por fim, dada uma significao de narrativa,
termo essencial para a construo da hiptese aqui levantada de que a ausncia ou a presena
de uma narrativa altera a funo, assumida ao longo dos sculos, da insero de signos verbais
em pinturas.
O segundo captulo contempla o percurso histrico de nosso objeto, comeando com
um olhar sobre a maneira como imagem e grafemas formaram, muitas vezes, um mesmo texto
visual na arte antiga, clssica e medieval, buscando entender que funo tal expediente
exercia naqueles momentos e que tipo de narrativa era dada a ler ao espectador. Trata tambm
do perodo compreendido entre o sculo XVI e o final do sculo XIX, em que mngua o
hibridismo verbo-imagtico e a narrativa triunfa, mas sem o uso de palavras, exceto porrarssimas excees. Por fim, enfoca-se a arte chamada moderna (de final do sculo XIX at
meados do sculo XX), durante a qual a narrativa pictrica abandonada em favor da pura
explorao da linguagem pictrica, mas que, em contrapartida, apresenta movimentos cuja
produo freqentemente permeada por smbolos grficos cubismo, futurismo dadasmo e
surrealismo. Ainda nesse perodo aparecem as escrituras, a escrita para o nada, a narrativa
escondida, que tambm se faro presentes em pinturas contemporneas.
No captulo trs chega-se cena contempornea e demonstra-se a grande quantidade
de pinturas que, a partir dos anos 50 do sculo passado, incluem alm de elementos pictricos
tambm escrituras e especialmente grafemas, cujo uso est diretamente associado ao carter
conceitual da arte contempornea e especialmente volta da narrativa s artes visuais e,
principalmente, pintura, uma narrativa enviesada e descontnua na qual o hibridismo de
imagens e palavras torna-se essencial para sua apreenso.
Por fim, no quarto e ltimo captulo, discute-se a presena de escrituras - e maisnotadamente grafemas - na pintura contempornea de Mato Grosso do Sul, por meio da obra
de quatro artistas selecionados por sua participao efetiva no cenrio artstico estadual e
nacional e em cujas produes pictricas se nota tanto a presena de uma linha narrativa
quanto o uso sistemtico de grafias. Com base na anlise de um trabalho de cada artista,
encontra-se claras ligaes com obras contemporneas do mundo todo e demonstra-se como a
insero de textos verbais em textos visuais pode ser considerada uma marca indelvel da
pintura contempornea, que ultrapassa fronteiras, suportes e linguagens.
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CAPTULO 1
DELIMITANDO O CAMPO TERICO: TEXTO, GRAFEMA, ESCRITURA E
NARRATIVA
Quando se fala da insero de elementos da escrita numa obra pictrica, o primeiro
impulso geralmente o de discorrer sobre a relao entre textoe imagem. Tal relao, sob o
ponto de vista especfico da lingstica, poderia ser considerada correta: os textos so
seqncias de signos verbais sistematicamente ordenados. De acordo com Koch,
a coerncia que faz com que uma seqncia lingstica qualquer seja vista comoum texto, porque a coerncia, atravs de vrios fatores, que permite estabelecerrelaes (sinttico-gramaticais, semnticas e pragmticas) entre os elementos(morfemas, palavras, expresses, frases, pargrafos, captulos, etc), permitindoconstru-la e perceb-la, na recepo, como constituindo uma unidade significativaglobal (1995, p.45).
O texto seria o tecido lingstico de um discurso, e na acepo que prevaleceu at o
sculo XX, tratava-se de um discurso escrito nem mesmo sua realizao oral poderia ser
chamada de texto (SEGRE, 1989, p.153). Porm, na teoria semitica - que o ponto de vista
que interessa especialmente aqui falar sobre texto e imagem seria no apenas redundante,
como tambm limitaria imensamente nosso objeto. Por isso, faz-se necessrio antes de tudo
estabelecer conceitos que serviro de fundamento: texto, grafema, escritura e narrativa.
1.1 Texto: um conceito abrangente.
Uma viso clssica e abrangente de texto pode ser encontrada em Aguiar e Silva
(1988), para quem o termo origina-se do substantivo latino textus, que significa tecido,
urdidura, encadeamento e descende do particpio passado do verbo texere, que significa tecer,
entranar e entrelaar. Da se pode falar em tessitura de um texto: a rede de relaes que
garante sua coeso, sua unidade como um todo inter-relacionado.
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De acordo com Pignatari (1968, p.18), "Embora a palavra texto tenha como referente
o conjunto verbal, podemos estend-la aos signos em geral, definindo texto como umprocesso de signos que tendem a iludir seus referentes, tornando-se referentes de si mesmos e
criando um campo referencial prprio.Tomar-se- esse conceito amplo, lato, da palavra. O
expoente mximo dessa tendncia interpretativa foi o simbolismo russo, para o qual o mundo
representava um texto universal, composto por textos da vida e textos da arte. Esta metfora
do mundo retomada no final do sculo XX e com argumentos mais incisivos permitindo
ento considerar como texto uma composio estruturada, como por exemplo, um quadro.
Nesta perspectiva, podemos considerar como textos um bailado, um espetculoteatral, um desfile militar e todos os outros sistemas de signo relativos acomportamentos, do mesmo modo que aplicamos esse termo a um texto escritonuma lngua natural... (LOTMAN ,1978, p.51).
Tal definio permite de imediato, considerar tambm as obras pictricas como um
texto e abrindo-as para a questo que buscaremos responder com este trabalho: quais os
efeitos de sentido, poticos e estticos, decorrentes da insero de elementos da escrita na
obra de arte contempornea, tendo em vista a profuso de meios disposio do artista para
constru-la?
Pensar nas pinturas como um texto permite l-las, no apenas buscando
significao nas letras nelas inseridas, mas abrangendo os signos de vrias ordens que as
compem. Permite pensar os sgnos verbais dentro do quadro, mas tambm como parte de um
texto ou participando de uma intertextualidade - e no um texto por si s. Fiorin (2000)
define o termo intertextualidade como sendo a incorporao de um texto em outro. Por que
tantos artistas tm escrito em seus quadros? A explicao pode estar no inegvel dilogo
entre as artes, quando parmetros tidos como imutveis sofreram questionamentos a partir do
sculo XX e formas de expresso tidas como distintas ou contrrias, como visual x literrio,
por exemplo, j no tm sido obedecidas, por no fazerem sentido na arte contempornea.
Uma vez demarcado em sentido amplo o conceito de texto que adotaremos em
nossos estudos, importante estabelecer a diferenciao entre texto e obra e a maneira como
ambos coexistem nas pinturas de linguagens hbridas. Para Barthes (1988), diante da obra
produz-se a existncia de um objeto novo, o texto. Isso no significa que se possa separar
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materialmente obra e texto: a diferena que a obra um fragmento de espao, como por
exemplo, uma tela pintada que se pode segurar, tocar. O texto mantm-se na linguagem, s
existindo tomado num discurso, e seu movimento constitutivo a travessia (ele pode
espacialmente atravessar a obra). Assim, a obra funciona como um signo geral, e o texto gera
significao atravs de um movimento serial de desligamentos, cruzamentos, variaes. O
texto radicalmente simblico: uma obra que se concebe, percebe e recebe a natureza
integralmente simblica um texto (BARTHES, 1988, p.74).
Assim, podemos tentar definir o que quer dizer a obra fundamentados em sua
materialidade, mas o texto simblico, estruturado, mas descentralizado, de modo que
podemos ler um texto em partes ou analisar apenas alguns de seus aspectos, que o queprope esta dissertao: considerar a obra pictrica como um texto e nela sublinhar elementos
da escrita, fazendo uma leitura desse fragmento integrante do texto todo.
Ainda de acordo com Barthes,
O texto plural. Isso no significa que tem vrios sentidos, mas que realiza oprprio plural do sentido: um plural irredutvel... O texto no coexistncia desentidos, mas passagem, travessia. O plural do texto prende-se, efetivamente, no ambigidade de seus contedos, mas ao que se poderia chamar de pluralidade
estereogrfica dos significados que o tecem (1988, p.74).
Ora, como destacamos no incio deste captulo, a origem etimolgica da palavra
texto remete a tecido, tessitura, e os significantes evocados por Barthes formam essa trama,
sem deixar de ser fios que podem ser separados e analisados independentemente ou mesmo
lidos em seu contexto, porm com ateno particular para esses elementos. So textos dentro
do texto,o intertexto. O texto, para BARTHES (1988), o espao em que nenhuma linguagem
leva vantagem sobre outra, em que as linguagens circulam.
1.2.Grafemas e escrituras
O pressuposto para a descrio dos conceitos de grafema e de escritura est na
concepo de leitura conforme proposta por Goumelot:
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Ler dar um sentido de conjunto, uma globalizao e uma articulao aos sentidosproduzidos pelas seqncias. (...) Ler , portanto, constituir e no reconstituir umsentido. A leitura uma revelao pontual da polissemia do texto literrio (2001, p.108)
Dentro do texto que se apresenta para leitura quando observamos uma pintura,
sublinha-se aqui a insero de elementos da escrita (grafemas ou escrituras) na pintura
contempornea e de que maneira eles compem esse texto, lido isoladamente e em conjunto
com seu entorno, a prpria pintura.
Segundo Cmara, grafemas so:
smbolos grficos unos, constitudos por traos grficos distintivos, que nos
permitem entender visualmente as palavras na escrita, da mesma sorte que osfonemas nos permitem entend-las auditivamente na lngua oral (1978, p.174)
Os grafemas, inseridos numa obra pictrica, permitem no apenas sua leitura dentro
de paradigmas geralmente aplicados aos quadros - cor, ritmo, textura, peso e relao com os
outros elementos visuais em seu entorno (contraste, composio, etc); o grafema um cdigo,
(permitindo tambm a leitura de um significado convencionado, que a unidade fundamental
de um sistema de escrita, podendo representar um fonema nas escritas alfabticas), e obedece,
portanto, a toda uma referncia externa obra, exige do leitor o conhecimento desse cdigo e
tem uma significao que transcende sua mera aparncia visual. Faz parte do texto geral, mas
possui um sentido que se busca alm da obra.
Num sentido mais restrito, grafemas so as letras. Em acepo ampla, abrangem
tambm os sinais de pontuao, os ideogramas e os sinais diacrticos. Os sinais diacrticos da
lngua portuguesa so os acentos agudos, graves e circunflexos, o trema, o til, o apstrofo e o
hfen. Por ideogramas, entendemos os smbolos das escritas cuneiforme e chinesa, certos
sinais de trnsito, etc. Esses grafemas presentes na pintura, sejam eles formadores de palavrase frases ,ou apresentados em separado, so o objeto deste trabalho, sem deixar de considerar o
texto maior de que fazem parte, mas concentrando nesse foco nossa pesquisa.
Faz-se necessrio ainda considerar a insero de uma outra forma de grafia na
pintura contempornea. Barthes (1977) define escrituracomo sendo a grafia para nada, ou o
significante sem significado. Aqui, as palavras no so usadas como instrumentos de uma
linguagem, mas justamente como desfuncionalizao desta. A linguagem que constitui a
escritura recusa a condio de linguagem utilitria, no sendo apresentada apenas como um
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meiode comunicar cuja funo se extingue to logo ofim(a decifrao do significado verbal)
seja atingido. A escritura no cumpre essa funo, sua caligrafia no se identifica com letras e
alfabetos conhecidos do espectador, justamente porque uma escrita exclusiva do artista e
pertence apenas ao universo do quadro.
O que Barthes denomina aquiescritura a voz subjetiva que fala atravs da escrita
sem que o artista oculte suas possibilidades visuais atravs da completa submisso
legislao dos cdigos epistemolgicos estabelecidos; , pois, uma linguagem reflexiva, auto-
referencial, que visa recolocar o sujeito no centro do ato de enunciao; uma linguagem que ,
no dizer de Barthes (1977, p.17), "o grafo complexo das pegadas de uma prtica: a prtica de
escrever".
... as palavras no so mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos,so lanadas como projees, exploses, vibraes, maquinarias, sabores: aescritura faz do saber uma festa. (...) a escritura se encontra em toda parte onde as
palavras tm sabor (saber e sabor tm, em latim, a mesma etimologia). (...) essegosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo.(BARTHES, 1977, p.21).
Conforme apresentado na introduo desta dissertao, nossa hiptese a de que a
base eminentemente conceitual da arte contempornea e seu carter narrativo intensificam anecessidade de interpretao da obra, exigindo do leitor/observador uma disponibilidade para
perceber/ler as narrativas que de algum modo a perpassam. Se possvel poesia considerar o
espao em branco do papel como elemento de sentido, tambm ser possvel considerar a
presena da palavra grafema ou escritura como elemento de sentido da obra de arte visual.
1.3 Narrativa
No decorrer dos prximos captulos, a trajetria das narrativas na pintura ocidental
ser retomada e discutida, considerando-se a insero dos grafemas e escrituras na pintura
contempornea como um expediente ligado ao carter narrativo da obra. Porm, fazse
necessrio j neste primeiro momento, em que se expem os conceitos fundamentais para a
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construo deste estudo, buscar as diferentes significaes da expresso narrativae apontar a
acepo aqui aplicada.
Termo que deriva do snscrito gnrus (saber, ter conhecimento de algo) e narro(contar, relatar), os primeiros estudos da narrativa comearam a partir da Potica de
Aristteles (1992), escrita em torno do ano de 335 a.C, cujas premissas so importantes at
hoje. Basicamente narrar contar uma histria, e para tanto teremos personagens, cenrios,
conflitos, cenas. Assim, o termo narrativa secularmente associado literatura e durante
muito tempo, s a ela aplicvel.
Genette, em seu Discurso da Narrativa (1972), define-a sob trs aspectos: a
narrativa designa o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relao de
um acontecimento ou de uma srie de acontecimentos;por outro lado, Genette toma tambm
em considerao o contedo desse enunciado e designa por narrativa a sucesso de
acontecimentos, reais ou fictcios, que constituem o objeto desse discurso, e as suas diversas
relaes de encadeamento, de oposio, de repetio, etc.; finalmente, o autor considera que o
conceito de narrativa pode ser tambm visto como ato de narrar em si, isto , um
acontecimento: no aquele que se conta, mas aquele que consiste em que algum conte
alguma coisa.
Uma definio restrita de narrativa ligar-se-ia ao domnio da linguagem verbal
escrita, j que tradicionalmente ela entendida como "a representao de um acontecimento
ou de uma srie de acontecimentos, reais ou fictcios, por meio da linguagem, e mais
particularmente da linguagem escrita" (GENETTE, 1976, p.255). Por essa razo, durante
muito tempo, os estudos sobre narrativas permaneceram no domnio do registro verbal, dando
maior enfoque Literatura. Passa-se, contudo, que no s a literatura produtora denarrativas. importante reconhecer que outras artes, outros sistemas simblicos valem-se
tambm da narrativa, principalmente quando se entende o ato de narrar como "trao distintivo
de todo discurso humano" (ROCHA, 2003, p.38). Tal viso antropolgica permite aceitar o
fato de que a narrativa capaz de se materializar em suportes os mais variados, entre eles, a
pintura.
No sculo XX, a partir do estruturalismo (para o qual a coordenada temporal um
fenmeno de superfcie, investindo uma estrutura profunda lgica, mas acrnica) surgir uma
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espcie de teoria semitica da narrativa (ou narratologia) que se prope a estudar a
narratividade em geral (romances, contos, filmes, espetculos, mitos, anedotas, canes,
msicas, vdeos). Encabeados por Roland Barthes, estes estudos pretendiam encontrar uma
"gramtica" da narrativa. Barthes (1976, p.18) afirma que "a narrativa est presente em todos
os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, comea com a prpria histria da
humanidade. (...) fruto do gnio do narrador ou possui em comum com outras narrativas
uma estrutura acessvel anlise".
Desde a gnese do conceito de narrativa at meados dos anos 60 do sculo passado,
pode-se dizer que os estudiosos do tema buscaram encontrar o esqueleto do enunciado
narrativo. Desde ento, procurou-se reduzir a narrativa a sua forma mais simples eelementar, encontrando, assim, uma estrutura bsica que revelasse a forma geral dos
enunciados narrativos. Se pudssemos sintetizar esses estudos, talvez chegssemos a dois
princpios, concluindo provisoriamente que para haver uma narrativa preciso:
uma relao cronolgica e lgica entre os eventos e as aes dos atores;
que os eventos tenham uma organizao macro-proposicional (na verdade, este
segundo requisito uma conseqncia do primeiro, pois a estrutura macro-proposicional da narrativa, tal como vista pelos autores estudados, implica um
ordenamento seqencial e cronolgico dos eventos segundo uma lgica prpria do
enunciado narrativo.)
A forma cronolgica de ordenamento seqencial passar a ser criticada e
questionada por alguns autores a partir da dcada de 1960, sendo Goodman (1981) e Ricoeur
(1994) alguns de seus principais representantes. Os problemas da descronologizao da
narrativa e do papel do sujeito leitor foram estudados por Goodman (1981), analisando uma
srie de narrativas verbais ou em imagens, demonstrando que a narrativa capaz de suportar
quase qualquer tipo de reordenamento sem deixar de ser uma narrativa. Para o autor, a
seqencialidade cronolgica, no pode ser apontada como um elemento distintivo da
narrativa:
In a narrative, not a statement, which is not explicitly stated needs to be timelined(...) oredered, the narrative in any case remains a narrative. This puts us a
problem, because we think the narrative like a kind of speech whoose peculiarity isis the temporality, distinguished from the description or the exposure throughits
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temporal condition. We, however, found no such conditions. The temporality of
what is not said explicitly or implicitly distinguishes the narrative, as even thedescription or the painting of a static and momentary situation involves what
happened before or what will happen afterwards. A painting of a forest implicitly
tell us aboutgrowing trees na falling leaves, ansd a painting of a house means that
trees were cut for this(Goodman, 1981, p.111)1
.
Se assim considerarmos, tanto pinturas como pargrafos tm de ser lidos com base
em um cdigo que dado pelo universo cultural no qual a pintura ou texto verbal esto
inseridos. Tal concepo traz consigo o problema do leitor/observador, o qual tem de
apreender o cdigo para conseguir ler, seja o texto ou a pintura. E , justamente, tal elemento
de conveno que se agrega ao texto lingstico ou imagem e lhe fornece um contexto capaz
de estender, por meio do implicitamente dito, o seu sentido.
A narrativa, entretanto, no suporta qualquer tipo de reordenamento. Para Goodman
a representao temporal dos eventos continua sendo um elemento essencial e distintivo da
narrativa, embora tal representao no necessite mais ser expressa em termos de uma ordem
seqencial rgida. O fato de os eventos estarem representados desordenadamente no destri a
narrativa.
Poderamos lembrar neste momento a concepo de Kant (1996), segundo a qual o
espao a forma de nossa experincia exterior e o tempo a forma de nossa experincia
interior. Inerentes ao conceito de tempo so os conceitos de movimento e durao, seja dos
corpos observados, ou das palavras recitadas ou pensadas. Deste modo, o tempo encontra na
narrativa a sua representao mais clara e exata, a narrativa revela-se aqui como o carter
temporal da experincia humana. Por meio da definio de narrativa como representao do
tempo, Ricoeur (1994) introduz a proposta de uma descronologizao da narrativa. Se uma
narrativa ordenada cronologicamente corresponde a uma representao linear do tempo, esta
forma de representao, na verdade, no corresponde experincia psicolgica do tempo.Ricoeur prope, ento, que o estudo da representao da temporalidade deva no ser abolido,
mas aprofundado.
1Traduo nossa: Em uma narrativa, nem a enunciao, nem o que explicitamente enunciado necessitam sertemporizados (...) a narrativa reordenada de qualquer modo permanece sendo uma narrativa. Isto nos coloca um
problema, pois ns pensamos a narrativa como aquela espcie de discurso cuja peculiaridade a temporalidade,distinguida da descrio ou da exposio atravs de sua condio temporal. Ns, entretanto, no descobrimos talcondio. A temporalidade do que implicitamente ou explicitamente dito no distingue a narrativa, pois mesmo
a descrio ou a pintura de uma situao momentnea e esttica implica o que aconteceu antes ou o queacontecer depois. Uma pintura de uma floresta nos conta implicitamente sobre rvores crescendo e folhascaindo; e uma pintura de uma casa implica que rvores foram cortadas para isto.
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O mundo exibido por qualquer obra narrativa sempre um mundo temporal. (...) o
tempo torna-se tempo humano na medida em que est articulado de modo narrativo;
em compensao a narrativa significativa na medida em que esboa os traos da
experincia temporal (RICOEUR, 1994, p.15).
No captulo a seguir, inicia-se um percurso atravs da histria da pintura, discutindo-
se a presena de grafemas e escrituras na produo pictrica desde o antigo Egito at
atualidade e analisando como a presena hbrida de signos verbais e visuais nos textos das
pinturas est associado prtica narrativa.
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CAPTULO 2
BUSCANDO UMA TRADIO
Desde que teve a inteno de transmitir algum tipo de idia, ou de narrar um fato, o
ser humano utilizou sinais. Primeiramente gestos, posteriormente cdigos verbais e,
finalmente, imagticos. Na pr-histria os povos utilizavam figuras para transmitir
informaes, assim como as encontramos ainda hoje em vrias culturas; os indivduos se
comunicavam por meio de desenhos, usando smbolos para expressar pensamentos, emoes,
acontecimentos, o que chamamos de escrita pictorial. Escrita e pintura ao mesmo tempo. Essa
passagem foi aqui citada justamente para nos lembrar da gnese eminentemente visual das
letras, de sua origem irmanada com o desenho e a pintura que, milnios depois da inveno do
alfabeto fencio (tido como o primeiro), retomada com grande fora na arte contempornea.
Pintura e escrita hoje so modalidades distintas, porm em seu primrdio o vnculo
era extremamente estreito e a imagem pintada podia ser considerada uma forma de escrita,
bem como esta, sendo um veculo grfico, se comunica atravs de formas, pois no se
desenhou primeiro e em seguida se escreveu, mas imediatamente escreveu-se no sentido de
uma referncia feita linguagem (SAFOUAN, 1987, p.57). A escrita surgiu quando os
smbolos grficos foram usados para representar palavras da lngua. Na evoluo da escrita, a
relao icnica entre forma grfica e referente (fundamentalmente objetos materiais) deu
lugar aos sistemas pictogrficos e, posteriormente, ideogrficos. Segundo Cagliari (1989), os
sistemas atuais de escrita podem ser divididos em dois grandes grupos2: os sistemas de escrita
baseados no significado (escrita ideogrfica, como o chins na sua origem e os hieroglficos
egpcios) e os sistemas baseados no significante (escrita fonogrfica).
A escrita se diferencia de outras formas de representao do mundo, no s porqueinduz leitura, mas tambm porque essa leitura motivada, isto , quem escreve,
2Comeando pela expresso pictogrfica os desenhos pr-histricos a escrita se tornou ideogrfica, com a
utilizao signos pictricos para representar idias e objetos. A partir do alfabeto fencio, evidenciou-se a escritafonogrfica, sistema no qual as palavras so decompostas em unidades sonoras, que na sua verso visual so os
grafemas (cf. CAGLIARI, 1989).
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diferentemente por exemplo de quem desenha, pede ao leitor que interprete o queest escrito, no pelo puro prazer de faz-lo, mas para realizar algo que a escritaindica. A motivao da escrita sua prpria razo de ser; a decifrao constituiapenas um aspecto mecnico de seu funcionamento. Por isso que a leitura no sereduz somatria dos significados individuais dos smbolos, mas obriga o leitor a
enquadrar todos esses elementos no universo cultural, social, histrico, etc, em queo escritor se baseou para escrever (CAGLIARI, 1989, p. 74-75).
Como observou Cagliari, a inteno da escrita difere da representao artstica: a
linguagem escrita pressupe no apenas uma leitura imagtica, uma apreciao esttica, mas
lana ao observador o desafio de um trabalho de decodificao de smbolos. Mais
especificamente com o surgimento do alfabeto e seus grafemas, rompe-se a confluncia entre
arte e escrita; todavia, por um longo perodo, elas ainda sero apresentadas conjuntamente,
prtica s interrompida em sua assiduidade a partir do sculo XVI.
Escrevendo sobre as relaes entre pintura e tipografia Peignot (Apud PEREIRA,
1976, p.01) constata que em todas as pocas os pintores incorporaram letras s suas obras. O
autor lembranos do gosto pela figurao do material escrito, onipresente, por exemplo, nas
paredes egpcias, entre os judeus, nas civilizaes pr-colombianas e entre tantas outras
civilizaes para as quais o limite entre pintura e literatura, se existia, era tnue a ponto de no
ser importante separ-las em textos distintos.
2.1 Pintura e escrita na arte egpcia e grega: uma fuso e uma ciso
Podese afirmar que a histria da pintura comea mesmo antes da prpria histria,
no perodo que se habituou chamar de Pr-histria, com suas cavernas repletas de bises em
um continente ou de lhamas em outro. Porm, a histria da arte como esforo contnuo
(GOMBRICH, 1995, p.55) s comea h cerca de cinco mil anos, com os artistas egpcios,
que do incio a uma tradio cuja linha de trajetria, tal qual um fio de Ariadne3, pode ser
acompanhada at nossos dias: se a arte ocidental desdobramento da arte grega, da arte
egpcia que os helenos foram discpulos. Assim, para investigar o percurso do hibridismo
3
Ariadne, na mitologia grega, d a Teseu um novelo para que ele marque seu caminho no labirinto doMinotauro e consiga sair dele (cf. MEUNIER, 1994).
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entre literatura e pintura - caminho trilhado pelos artistas at a contemporaneidade h que se
dar o passo inicial s margens do Rio Nilo.
A proximidade entre a pintura e a escrita egpcias se inicia na prpria natureza deseus cdigos: a escrita egpcia, uma das mais antigas do mundo, no utiliza um alfabeto, mas
centenas de pequenos desenhos combinados de diferentes maneiras: os hierglifos. Cada
desenho utilizado seja por seu valor de imagem, seja pelo som que representa - e que, junto
a outros signos-sons, compem uma palavra mais complicada. A escrita e a pintura estavam
estreitamente vinculadas tambm por sua funo religiosa: as pinturas murais eram, em sua
maioria, narraes de histrias ou frmulas mgicas dirigidas s divindades e aos mortos.
Interessa-nos aqui especialmente esse carter narrativo das pinturas egpcias, nas
quais a leitura completa ocorria pela apreenso tanto dos cdigos da escrita quanto das
representaes imagticas. No se trata de pinturas nas quais so inseridos smbolos grficos,
nem de um texto literrio ilustrado: um texto nico se formava e narraes visuais e literrias
se tornavam inseparveis, de tal modo que somente em conjunto perfaziam o sentido
completo proposto por seu autor. Gombrich, na sua Histria da Arte, nos d um exemplo da
complexidade de leitura de uma dessas narrativas (Fig. 01):
As inscries em hierglifos dizem-nos exatamente quem ele [o representado] era,e que ttulos e honrarias reunira ao longo de sua vida. Seu nome, segundo se l, eraKnhumhotep, Administrador do Deserto Oriental, Prncipe de Menat Khufu, AmigoConfidencial do Fara, Conviva Real, Superintendente dos Sacerdotes, Sacerdotede Hrus, Sacerdote de Anbis, Chefe de Todos os Segredos Divinos e o maisimpressionante de todos Mestre de todas as Tnicas. esquerda vemo-lo caandoaves selvagens com uma espcie de bumerangue, acompanhado da esposa Kheti, daconcubina Jat, e de um dos seus filhos... No topo da porta vemos de novoKnhumhotep, agora apanhando aves aquticas numa rede. O caador sentava-seescondido atrs de uma corda de juncos, segurando uma corda ligada redeaberta... A inscrio diz: Canoagem no leito de papiros, os tanques de aves
selvagens, os brejos e os riachos; caando com a lana de duas ele traspassou trintapeixes. Como delicioso o dia de caa ao hipoptamo (1995, p. 62 e 63).
Trata-se, como se pode aferir a partir da leitura que nos dada por Gombrich, de
uma narrativa na qual nos so apresentados seus personagens, seu espao, e em seguida as
aes so descritas atravs das imagens. A histria contada mantendo uma seqencialidade
cronolgica, sendo lida de cima para baixo e da esquerda para direita. Conta ainda com um
desfecho, ou seja, uma narrativa na sua forma mais clssica: tem princpio, meio e fim.
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Segundo Chafe (1990), uma narrativa precisa de uma introduo, de um momento
(quando?), um local (onde?), personagens atuantes (quem?) e uma situao de fundo, na qual
o contedo da narrativa se desenvolve. Esse contedo deve ser constitudo por uma srie deeventos conectados que foram realizados ou experienciados pelos sujeitos. A pintura mural
analisada, bem como ocorre em muitas das pinturas egpcias, traz uma narrativa em que os
elementos pictricos e grficos se confundem num nico texto, cuja leitura s se torna
possvel em sua totalidade quando tanto seus elementos visuais quanto os verbais so levados
em conta, ou seja, nem a escrita nem a pintura funcionariam isoladamente.
Outro aspecto que no se pode deixar de levar em considerao neste estudo o da
existncia de cdigos obedecidos pelos artistas egpcios no apenas quando escreviam, mas
tambm quando desenhavam e pintavam: assim como os hierglifos, as formas tambm
tinham convenes a serem obedecidas para permitir sua leitura, conforme nos ensina
Gombrich:
O estilo egpcio incorporou uma srie de leis bastante rigorosas, e todo artista tinhaque aprend-las desde muito jovem. As esttuas sentadas deviam ter as mos sobreos joelhos; os homens eram pintados com a pele mais escura do que as mulheres aaparncia de cada Deus egpcio era rigorosamente estabelecida. (1995, p.65)
Fig. 01: Mural do tmulo de Knhumhotep, autor desconhecido, c. 1900a.C.
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Assim, na pintura egpcia, hierglifos e imagens misturam-se tanto em sua forma
quanto em sua funo e, nesse caso, escrita e imagens confundem-se inseparavelmente:
ambos so desenhos, ambos so cdigos estabelecidos e, juntos, formam um texto passvel de
leitura e de apreciao, uma narrativa literria completa, ao mesmo tempo uma obra de arte.
Ao contrrio do vasto material pictrico sobrevivente do Egito antigo, pouco se sabe
da pintura grega na antiguidade, uma vez que as poucas que chegaram at ns so aplicadas s
cermicas, principalmente vasos. A partir desses vasos e dos pouqusimos fragmentos da
pintura mural grega, pode-se constatar que a prtica da escrita casada com a pintura rara
nessa civilizao.
Segundo Piletti (1993), a Histria da Grcia antiga estende-se por 1400 anos e
divide-se em quatro perodos: Perodo Homrico, Arcaico (800 a.C. -500 a.C.), Clssico (500
a.C. -338 a.C.) e Helenstico (338 a.C. 30 a.C.). A arte grega do perodo arcaico recebe forte
influncia da arte egpcia e os artistas tomam como modelo suas pinturas e esculturas, pois
iremos ver que os mestres gregos foram escola com os egpcios, e todos ns somos
discpulos dos gregos. Assim, a arte do Egito reveste-se de tremenda importncia para ns
(GOMBRICH, 1995, p.81).
curioso notar como nesse processo de assimilao da arte egpcia pela arte grega a
relao ntima entre escrita e pintura que vigorava no antigo Egito desaparece quase que por
completo. Isso se explica, em parte, porque os ensinamentos egpcios foram, sim, levados em
conta, uma vez que eram fruto de conhecimento e isso era muito caro aos gregos. Porm, a
grande base para o artista grego foram seus prprios olhos e mesmo nos vasos do perodo
arcaico, com suas figuras bem contornadas e invariavelmente vistas de perfil, moda egpcia,
j vemos indcios de escoros e perspectivas nos objetos. Dentro dessa busca pelarepresentao realstica, parece natural que a parte literria da obra de arte fosse eliminada
em favor da observao e representao daquilo que se pode ver e tocar. Considerando o
carter visual eminentemente abstrato das letras (elas so signos que representam um fonema
ao invs de algo visvel), no surpreendente que o artista grego, em sua busca pela
apreenso do real, tenha deixado pelo caminho a insero da escrita nos textos pictricos.
Os gregos romperam os rgidos tabus do primitivo estilo oriental e empreenderam
uma viagem de descoberta a fim de acrescentarem s imagens tradicionais domundo uma quantidade cada vez maior de caractersticas obtidas atravs daobservao. Mas suas obras nunca se parecem com espelhos onde se refletem todos
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os recantos, ainda os mais inslitos, da natureza. Elas ostentam sempre o cunho dointelecto que as criou (GOMBRICH, 1995, p.79).
Na arte grega, no mais das vezes pintura uma arte, literatura outra e as duas no
se mesclam no compartilham o mesmo suporte, como ocorria nos murais egpcios. Mesmo ouso do alfabeto ao invs dos hierglifos ricamente desenhados refora demonstra que as letras
tm cada vez mais a funo de cdigo para leitura, formas abstratas e sistematizadas,
enquanto a pintura destinada ao deleite do observador, deleite este advindo no de uma
narrativa, mas da apreciao de um ideal de beleza. Isso nos leva ao terceiro ponto que
explica porque na pintura grega (e conseqentemente tambm na sua discpula romana)
elementos da escrita raramente so inseridos: enquanto a pintura egpcia por excelncia uma
pintura narrativa clssica, que conta uma histria completa - com princpio, meio e fim,extremamente preocupada com o carter documental da obra -, a pintura grega tambm
narrativa, porm nos narra geralmente uma passagem, o fragmento de uma histria, e essa
narrao no sempre precisa e est sujeita interpretaes diversas, dependendo do
observador e de seu nvel de conhecimento sobre a tradio grega. Observemos mais uma vez
a descrio que Gombrich faz de uma pintura, desta vez um vaso grego (fig. 2):
A figura representa um comovente episdio da histria de Ulisses: o heri volta
para casa aps dezenove anos de ausncia, disfarado de mendigo, com um bordo,alforje e tigela, e reconhecido por uma velha ama, que descobre na perna dele acicatriz de um velho ferimento quando lhe lavava os ps. O artista deve ter ilustradouma verso algo diversa da de Homero; talvez ele tivesse visto uma interpretaoteatral em que essa cena era interpretada... Mas no precisamos do texto exato parasentir que algo dramtico e comovente est acontecendo, pois a troca de olharesentre a ama e o heri quase nos dizem mais do que as palavras poderiam dizer.(1995, p. 94).
Fig. 02: Ulisses reconhecidopor sua velha ama, autordesconhecido, sc. V a.C .
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A partir das anlises que Gombrich faz do mural egpcio e do vaso grego, flagrante
como o primeiro depende da escrita para contar sua histria (perfeitamente espacializada, com
personagens nomeadas e situada dentro de uma seqncia cronolgica de acontecimentos),
que no deixa margem para dvidas ou interpretaes, uma vez que os hierglifos tenham
sido decifrados; j a pintura no vaso traz o pedao de uma histria da qual se pode imaginar
diferentes incios e desfechos possveis. Gombrich conhece a lenda de Ulisses e assim localiza
a cena dentro da Odissia homrica, porm, mesmo com essa informao adiciona,l sua
anlise d espao para o talvez.
A narrativa pictrica grega, da qual herdeira no s a pintura romana mas tambm
toda a tradio clssica ocidental posterior ao Renascimento, tem um carter eminentementevisual e se despe de palavras. A pintura mais comenta do que conta.
2.2 Escrita e pintura na Idade Mdia: um casamento
Como ensina Pereira (1976, p.1) em seu livro sobre hibridismo de letras e tintas,
sobejamente conhecido que durante a Idade Mdia crist se considerou e praticou a inscrio
de letras como um gnero artstico de fundamental importncia, pelo menos to importante
quanto a escultura e a pintura.
O valor esttico das letras volta a ser festejado e pelas mos dos monges em suas
transcries de livros, onde os grafemas so ricamente desenhados: a figurao do espao
textual, a exaltao da beleza dos smbolos grficos e a tomada de conscincia de sua origemvisual. Mas no apenas nos espaos destinados literatura - como os livros e os
pergaminhos que a escrita mistura-se com a arte: as pinturas produzidas em todo decorrer
dos mais de mil anos medievais so repletas de grafemas:
Efetivamente, durante mais de um milnio, das primeiras cenas das catacumbas ata plena definio da arte renascentista, atravessando inclume todas as vicissitudeshistricas, no imprio do oriente ou no mundo ocidental, os caracteres da escritasempre foram integrados aos afrescos, manuscritos, objetos de culto, mosaicos eretratos (PEREIRA, 1976, p.3)
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Uma espcie de regra instituiu-se no fazer artstico: todas as disciplinas - e
especialmente a pintura - dependiam desse heterognico meio de representao: dispor os
signos plsticos e os grafemas, compondo com eles um nico texto em que a imagem
esclarece o verbal que, por sua vez, ilumina o smbolo visualizado.
Vale ressaltar que a grande maioria da populao europia durante a Idade Mdia
no tinha acesso escrita. Portanto, a arte foi uma forma encontrada pela igreja de passar para
a sociedade os valores do cristianismo, e a produo pictrica medieval em grande parte de
cunho religioso. A interpenetrao desses recursos comunicacionais era uma necessidade
didtica, para que os fiis pudessem entender as narrativas presentes em murais, quadros e
afrescos.
Gombrich (1995) nos d notcia de que o papa Gregrio Magno, no fim do sculo VI
disse que a pintura pode fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que sabem ler.
Para que o propsito expresso por Gregrio fosse atendido, a histria tinha que sercontada da maneira mais clara e simples possvel...As idias egpcias sobre aimportncia da clareza na representao tinham voltado com grande pujana, porcausa da nfase que a Igreja dava clareza (1995, p.136).
H uma observao de Barthes (1984, p.31-34) sobre o estatuto da imagem na suarelao com o texto que pode elucidar o caso da pintura medieval: esta relao pode ser vista,
numa primeira instncia, como situao de duplicao do verbal, ou, no limite, de
ancoragem. Nessa funo, o signo visual explicitaria simplesmente o que j existe no
escrito, de forma didtica, elucidatria. H muito de reduntante nas pinturas medievais: os
grafemas, uma vez decifrados, trazem no mais das vezes a mesma narrativa que a leitura da
imagem nos d.
Um exemplo desta sede de clareza narrativa que levava o artista medieval a recorrer,
para alm dos elementos visuais icnicos, tambm aos signos verbais, o Pantocrtor de Sant
Climent de Tall (Fig.03). Na pintura, observamos a figura do Cristo e vrios santos em seu
entorno; ora, sabemos tratar-se de Jesus e de santos justamente porque foi durante a Idade
Mdia que se estabeleceu a iconografia crist4, com suas barbas, gestos e aurolas
4Para veicular as verdades da f e as tradies religiosas, a iconografia crist servia-se dos catecismos da pintura
e da escultura. As imagens dos Santos, de Nossa Senhora e da Santssima Trindade, com os seus adornos e seussmbolos, eram as explicaes desse catecismo. Deste modo, mais facilmente se entendia a doutrina efundamentava-se o culto que lhes era prestado.
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inconfundveis. Tal simbologia um cdigo visual, um condutor para a leitura: uma figura
humana sobre cuja cabea se v um halo luminoso santificada. Porm, para reforar ainda
mais a mensagem, o pintor medieval nomeia seus personagens, apresentando-nos no apenas
santos, mas especificamente Joo, Bartolomeu, e os outros apstolos que o tempo corroeu da
pintura mural de Tall.
As palavras funcionam aqui como legendas, elucidam a figura, da mesma maneira
de uma iluminura s avessas: assim como as obras literrias medievais eram pontuadas por
imagens que iluminavam o texto literrio, pinturas como o Pantocrator de Tall vinham no
mais das vezes acompanhadas de textos verbais com semelhante funo.
2.3. Renascimento das artes, adormecem as letras
Fig. 03: Pantocrtor de Sant Climent deTall, autor desconhecido, sculo 12 d. C.
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Ainda em plena Renascena, nos sculos XV e XVI, podemos localizar alguns casos
de insero de grafemas em pinturas - como em Andra Mantegna, Albrecht Drer e Hans
Holbein, entre outros. Pereira (1976, p.5) ressalta que nesses casos trata-se de
prolongamentos de uma velha tradio e no mais resultados de uma prtica artstica de
carter majoritrio. A partir daquela poca at o surgimento das vanguardas europias, o
costume de expressar-se por meio de imagem e letras torna-se marginalizado at praticamente
desaparecer da pintura ocidental, ficando restrito a aparies pontuais dentro de alguns
quadros ou nos ttulos das obras. Barthes ratifica essa informao, em seu ensaio A Imagem
da Letra:
Na verdade, palavra e imagem sempre estiveram em contato ao longo da histria dapintura ocidental, quer atravs das legendas e inscries caractersticas da pinturamedieval ou do primeiro Renascimento; quer de maneira mais sutil e dissimulada,nos ttulos que acompanham as pinturas, explicitando, ampliando ou restringindo o
poder narrativo das imagens (BARTHES, 1995, p.25).
Foulcault, em As palavras e as coisas,divide o perodo que vai do Renascimento
at hoje em trs etapas, de acordo com a relao que se estabelece entre palavras e imagens:
no Renascimento propriamente dito, a palavra seria a coisa; no Classicismo, que Foucault
localiza nos sculos XVII e XVIII, os dois termos se distanciariam, abrindo espao para a
representao; e, por fim, a modernidade corresponderia apenas aos sculos XIX e XX e secaracterizaria pela desagregao das representaes elaboradas anteriormente, culminando no
hibridismo entre linguagens dentro de um mesmo texto. A arte da chamada idade moderna,
como observou Foucault, a arte da anti-escrita: na pintura ocidental dos sculos XV ao XIX,
um dos princpios fundamentais o da distino completa entre o signo verbal e a
representao visual, ou seja, um pertenceria ao mundo literrio e outro ao pictrico. Dessa
forma, exceto por rarssimas excees, grafemas e imagens no deviam ser usadas numa
mesma obra e nas poucas vezes em que o foram, havia uma clara hierarquizao entre palavrae imagem, como na obra de Jacques Louis David, que ser analisada adiante. O essencial
que o signo verbal e a representao visual no so jamais dados ao mesmo tempo. Um plano
sempre os hierarquiza (FOULCAULT, 1989, p.92).
Em oposio tradio medieval, no perodo entre o Renascimento e o despontar do
sculo XX a prtica da insero de elementos literrios era espordica na arte ocidental e nas
poucas vezes em que aparecia constitua um recurso que tinha como nico intuito reforar a
narrativa (dentro do procedimento hierrquico), sem levar em conta o lado plstico dos
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grafemas: as letras quando aparecem esto em representaes de cartas, livros, tabuletas,
pergaminhos, tudo invariavelmente com o sentido de enunciao, sem interesse pela possvel
beleza e autonomia de um grafema. Concebe-se a pintura como reproduo das aparncias
visveis, das pequenas e grandes histrias humanas que os artistas procuraram contar com
preciso at o raiar do modernismo. O carter narrativo, a inteno de comentar um evento de
forma cronologicamente ordenada e obediente lgica comumente aceita fica evidente na
obra reproduzida abaixo, e at a chegada do modernismo, ser essa a tnica na pintura.
Jackes Louis David utiliza o realismo pictrico na descrio de uma cena na qual
cada gesto focalizado, por pequeno que seja, significa. EmA Morte de Marat (Fig.04), tem-se
a linha do horizonte - o instrumento tpico da separao terra/cu - confundida com aintimidade e a vulnerabilidade de Marat. Esta tambm a linha que separa o fato histrico e
mundano do alm e desconhecido e que antecipada e aproximada do observador pela
mesa/caixote/caixo - posto que aqui vai tambm o epitfio, com a dedicatria, no qual o
pintor assina e data. Acima da linha, temos apenas o escuro, um outro plano vazio e sem vida.
Fig. 04: A morte de Marat, de Jacques LouisDavid, 1793.
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importante chamarmos a ateno para os vrios elementos que implicitamente
remetem ao agir humano, colaborando para a construo de uma narrativa que nos mostra no
apenas Marat morto, mas nos d pistas sobre os acontecimentos que levaram a isso. Alm dos
instrumentos de manuseio (pena, punhal e folhas), o quadro nos apresenta vestgios diretos da
ao: a escrita e o corte sangrando. A mo de Marat acentuada como signo dramtico pela
inrcia do brao que jaz, mas tambm por uma dobra do tecido verde, por uma prega e pela
margem do tecido branco.
Alm das linhas e do desenho h tambm a disposio das cores, compreendendo, na
sua economia, sistematizao e dramaticidade. Sobre David, nos fala Gombrich:
Ele aprendera atravs do estudo da escultura grega e romana como modelar osmsculos e tendes do corpo, e dar-lhe a aparncia de nobre beleza; tambmaprendera com a arte clssica a deixar de fora todos os detalhes no essenciais aoefeito principal e a almejar a simplicidade. No h cores variegadas nem escoroscomplicados no quadro (1995, p.382).
Interessante ressaltar a presena de elementos da escrita permeando o texto visual
assim como ocorre freqentemente na pintura contempornea, porm funcionando justamente
como um reforo da seqencialidade da narrativa: David, com as palavras, identifica sua
personagem e nos conta um pouco do evento que culminou no assassinato de Marat, dando-nos a ler a carta em que Charlotte Corday, militante do partido moderado dos girondinos,
fazendo passar-se por uma admiradora que lhe pede auxlio (a carta que ele segura na mo),
consegue um pretexto para se encontrar com ele e assassinar Marat a punhaladas. Portanto, o
texto ali presente funciona como um elemento da narrativa, uma informao no percurso da
histria que se pretende contar sem maiores pretenes estticas ou poticas: seu valor
apenas enquanto um grafema que traduz um cdigo, o cdigo da escrita que nos d a ler uma
informao. Ao assinar o quadro dentro do contexto do texto visual, David nos faz pensar na
sua prpria presena na cena, como uma testemunha.
O efeito de toda a narrativa clssica, fosse literria ou pictrica, era justamente este,
o de fazer coincidir a causalidade com a seqencialidade, tornando a temporalidade narrativa
como um fator de coeso textual. Organizando a seqencialidade temporal segundo um
princpio de causalidade, as grandes narrativas criam uma intriga e um desenlace,
conferidores de sentido ao mundo. Nesta medida, obras como a de David so tcnicas ou
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mquinas de ordenao do tempo, de encadeamento do acontecimento, de modo a, numa
lgica em que a contigidade se funde ou coincide com a causalidade, engendrar o sentido.
2.4 O moderno e o fim das narrativas
No final do sculo XIX e incio do sculo XX, os elementos da escrita saem do
limbo ao qual haviam sido relegados para novamente integrarem as pinturas: deixam de ser
espordicos e subordinados para serem presenas constantes e assumirem as mais variadas
funes nos quadros dos artistas. Naquele perodo inicia-se o que se convencionou chamar
arte moderna. H controvrsias sobre os limites temporais do moderno e alguns de seus
traos distintivos: como separar clssico/moderno, moderno/contemporneo, moderno/ps-
moderno? Divergncias parte, observa-se uma tendncia nas obras de autores como Argan
(1993) e Gombrich (1993) em localizar na Frana do sculo XIX o incio da arte moderna.
O rompimento com os temas clssicos vem acompanhado na arte moderna e mais
especificamente na pintura - pela superao das tentativas de representar ilusionisticamente
um espao tridimensional sobre um suporte plano: a conscincia da tela plana, de seus limites
e seus rendimentos inaugura o espao moderno na pintura. Segundo Greenberg (1986), a
maior premissa da pintura moderna que ela deve mostrar os limites e os meios da prpria
pintura, comportando-se assim em detrimento da narrativa: para o autor, a pintura alcana a
perfeio quando se auto-reflete, quando serve para nos mostrar o que a prpria pintura,
quais os seus recursos e os seus instrumentos. O expressionismo abstrato, aps a Segunda
Grande Guerra - com nomes como Jackson Pollock, Arshile Gorky, Mark Rothko, entre
outros -, seria a materializao do que Greenberg julgava dever ser a pintura genuinamente
moderna. A forma e s a forma da pintura, o modo como a tinta liberta-se em direo tela e
como esta a recebe, podem provocar um prazer desinteressado, comunicvel e sem
necessidade de uma narrativa. Mais ainda: quando a pintura moderna questiona seu prprio
material classicamente estabelecido - a tinta e a tela , apresentando-se repleta de colagens
entre outras experimentaes, ela nada narra: discute, com o prprio observador, suas
possibilidades e seus limites. Barthes elucida como a linha narrativa da pintura clssica
substituda por uma linha que reflete e discute sobre si mesma.
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A partir da segunda metade do sculo XIX, com as alteraes e revolues que seprocessam na tcnica e na linguagem da pintura, esta afasta-se, cada vez mais, dafigurao realista e da narrativa francamente literria que a caracterizaram durantesculos. Novos instrumentos de representao do real (como a fotografia e
posteriormente o cinema) ganham popularidade e a pintura volta-se para si mesma
de maneira reflexiva e analtica discutindo questes inerentes sua prpriaestrutura enquanto discurso. (BARTHES, 1995,p.76).
Com efeito, a inveno e a popularizao de um meio to preciso de reproduzir o
que se v fragilizou as seculares estruturas em que se fundava a arte da pintura: ela no mais
precisa narrar o mundo ao seu redor e v-se destituda dessa funo. Fazia-se necessrio ento
que o artista buscasse outro caminho e, de acordo com Canton (2001, p.17), os modernistas
procuraram romper com a tradio, o individualismo autoral e os aspectos narrativos que para
eles banalizariam a arte, buscando uma forma de narrativa que transcendesse a representao:
a idia era retirar do espectador a possibilidade de se identificar com a narrativa, usando para
isso mtodos antiilusionistas5. Assim, ao mesmo tempo em que durante o moderno a prtica
narrativa se reinventa na literatura, nas artes visuais ela progressivamente abandonada em
favor da prpria linguagem: o tema da pintura modernista (exceto quando esta for dadasta ou
surrealista, casos dos quais trataremos adiante) a prpria pintura e suas possibilidades. Por
isso, causa ainda mais estranhamento que, em um cenrio aparentemente desfavorvel (j que
a insero de grafemas na arte ocidental sempre esteve intimamente ligada ao esforo de
narrar com mais clareza) ressurja com fora nos pintores o hbito de colocar em suas telas
signos verbais misturados s imagens. Ainda, alm disso, as escrituras a escrita para o nada
aparecem tambm no espao pictorial.
de fundamental importncia percorrer aqui essa trajetria das letras na pintura
moderna, uma vez que a pintura contempornea, mesmo quando no sua herdeira direta, a
tem na raiz de suas criaes. Entender qualquer aspecto da pintura contempornea pressupe
que dominemos tambm sua antecessora, e na arte moderna inaugura-se uma nova relao doartista com as palavras, baseada em dois pontos: o resgate do valor visual das letras e a
tentativa de reatar nas telas o ancestral vnculo entre escrita e imagem que fora rompido desde
o Renascimento.
A arte moderna rompe com a separao clssica das artes (literatura, pintura,
escultura, gravura etc.) e pe abaixo os limites to bem delimitados entre as diferentes
5 Ilusionismo, em arte, a capacidade de conectar o observador em um nvel de identificao e derelacionamento com a obra. (cf. CANTON, 2001, p19)
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linguagens, abrindo, entre outras possibilidades, a da desconstruo da escrita, ou seja, a
recuperao de sua origem visual tal qual foi concebida, relembrando o que parece bvio, mas
que poucos percebem: o valor ambguo das letras, que tanto so cdigos verbais como
tambm possuem valor visual. Letras tambm so desenhos e a conscincia desse fato
transborda nas telas modernas. Muito mais do que suas significaes e qualidades narrativas,
o que o artista da primeira metade do sculo XX busca ao inserir palavras em suas telas o
rompimento com a hieraquizao que imperava nas relaes entre imagem e escrita: o quadro
e sua legenda, o texto e sua ilustrao. Ao mesmo tempo que integra um e outro no quadro,
esse artista j no deseja narrar, explicitar ou explicar quando insere letras e palavras em suas
obras, pois as insere em fragmentos, retirando as palavras de seus contextos usuais e criando
novas relaes, ou mesmo subvertendo a caligrafia a ponto dela mais nada significar, excetodentro do contexto da prpria tela.
2.4.1 As letras acordam:o cubismo sinttico.
Dado que a forma - e no uma histria a ser narrada - passou a ser o objeto da arte, o
critrio para identificar uma obra como modernista passou tambm a ser naturalmente uma
explorao radical das potencialidades e dos instrumentos de cada tipo de arte. A relao entre
imagem e letra adquiriu uma autonomia explcita e a palavra se integrou ao espao pictrico
de forma sistemtica a partir da dcada de 10 do sculo passado, com o cubismo sinttico,
destacando-se os trabalhos pioneiros de Georges Braque e Pablo Picasso e seus papiers
colls6; uniam-se escrita e imagem em suas obras - sem que houvesse entre elas uma relao
hierrquica por meio de suas colagens verbais e visuais. Conforme observa Massim ( apud
PEREIRA, 1976, p.06), ... nenhum dos movimentos artsticos que se sucederam desde o
cubismo negligenciou o problema das relaes entre letras e imagens.
O palco do cubismo a Paris de pouco antes da 1. Guerra, uma cidade totalmente
urbana, em que as ensolaradas e buclicas cenas campestres, to caras aos impressionistas do
6
Em portugus, papis colados. A tcnica, usada h sculos como divertimento de crianas, utilizada comoelemento plstico nas pinturas cubistas de Pablo Picasso e Georges Braque a partir de 1912, aparecendo depoiscom freqncia em outros momentos da arte moderna e contempornea ( cf. MAILLARD, 1981)
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final do sculo XIX, so substitudas por um novo cenrio que interessa muito aos pintores do
sculo que ento se inicia, uma metrpole vida por progresso, movimento e modernidade,
povoada por uma visualidade que condiz com essa nova ordem: ruas pululantes de novos
signos, marcas e grafismos. Barthes afirma que naquele momento Paris era repleta de
quiosques de jornais, placas comerciais, cartazes vendendo produtos ou anunciando
espetculos. Essa paisagem dinmica e diversificada uma das primeiras inspiraes dos
pintores cubistas (1995, p.76). No por acaso o exemplo escolhido por ns foi uma obra de
Picasso (Fig. 05): nela encontram-se fragmentos de jornais contendo grafemas que compem
palavras legveis, expediente que, como adiante veremos, importante ferramenta da arte
contempornea.
O papel dos signos colados nesta e em outras obras cubistas duplo: por um lado,
aludem ao mundo real, encaixando-se assim na proposta cubista de tematizar objetos do
cotidiano, tranfigurando-os de forma potica e, dessa maneira, considerando a multiciplicidade
de pontos de vista sobre um mesmo motivo que caracteriza a obra cubista, as nominaes so
tambm includas. Por outro lado, a presena constante do jornal nas naturezas-mortas dos
cubistas denota uma ruptura com a tradicional representao desse gnero e o jornal remete
Fig. 05: Guitarra,de Pablo Picasso, 1913.
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eleio do universo urbano como tema cubista; nesse sentido, as palavras coladas sublinham os
vnculos com a realidade ttulos de jornais, fragmentos de panfletos, nomes de bares ou
bebidas. A periodicidade diria do jornal atua como metfora do tempo, da urgncia e da
dinmica, todos componentes do projeto pictrico cubista.
Nas pinturas cubistas essa insero tem outro carter alm de representar uma
metfora da sociedade em que estava locado: o de elemento de linguagem visual, repleto de
caractersticas plsticas:
A introduo da letra na pintura cubista se explicaria por fatores de ordem formal:no momento em que os pintores se afastam de uma concepo da pintura baseadano sistema analgico de figurao com perspectiva, no momento em que a
descontinuidade sistemtica do contorno das formas tende a faze-la desaparecer ouconfundir-se com o contingente espacial o emprego da letra se justifica ou comouma vontade de reintegrar o objeto no quadro (como um retorno ao real) ou numa
perspectiva mais ampla como uma maneira de fundar um novo sistema pictural,baseado no abandono dos meios tradicionais de representao (ARBEX, 2002,p.46).
Tomemos como exemplo a pintura-colagem cubista da fase sinttica Guitarra do
espanhol Pablo Picasso, j exposta na pgina anterior; nela, o artista no narra coisa alguma:
nela, o uso da colagem como forma de obter o efeito de textura ao invs da utilizao de
engenhos do pincel deixa ainda mais claro o rompimento do moderno com a representaoclssica, e est a a tnica da obra de Picasso e da maioria das outras pinturas modernistas:
nelas, discute-se a pintura e narra-se seu processo, e no outro tema. A insero do fragmento
de jornal cumpre vrias funes: rompe com a tradio ilusionista da pintura, uma vez que o
jornal no representado e sim colado; funciona como uma metfora da sociedade urbana e
sua urgncia pelo novo de cada dia; e traz - uma vez deslocada do ambiente literrio para o
artstico - uma revalorizao das qualidades plsticas da letra que juntamente com os outros
elementos da obra formam o texto visual.
Sob qualquer desses prismas, podemos afirmar que Picasso, em Guitarra, no narra
uma ao: ele reflete sobre seu tempo e lugar; discute a maneira de se representar uma
guitarra e um jornal, no com a inteno de iludir o observador com uma falsa
tridimensionalidade num espao bidimensional por excelncia como a tela, mas mostrando
justamente que isso que ela : um espao de apenas duas dimenses. Nas pinturas-colagem
dos cubistas, a insero de fragmentos de jornais ou mesmo a insero de letras pintadas nas
obras funciona como um recurso formal tem uma finalidade essencialmente composicional e a
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presena de uma narrativa se d de forma muito sutil: o artista cubista conta em sua obra o
processo de feitura do quadro, ou como Tassinari (2001, p.91) afirma, "Um espao em obra
possui uma espacialidade imanente ao mundo em comum. No o transcende, apenas traa
pontes para uma experincia esttica que vai do mundo ao prprio mundo".
2.4.2 Schwitters, ou Merz.
Vrios foram os artistas que seguiram o caminho aberto pelos cubistas e seuspapiers colls. Kurt Schwitters, entretanto, explorou profundamente as possibilidades de
materiais contendo grafemas em suas obras e pea fundamental para o entendimento da
fuso entre literatura e pintura na arte contempornea: com suas colagens verbais e visuais,
ele dilui no espao tradicionalmente pictrico (a superfcie plana do papel ou da tela) os
limites outrora rgidos entre as diferentes linguagens. Schwitters utiliza em suas colagens
palavras que, ao serem fragmentadas e retiradas de seu contexto original e colocadas no
contexto da tela, ganham novos significados (ou passam a ter nenhum).
O artista apropria-se de palavras encontradas em bilhetes de trem, anncios, restos
de jornais, e juntamente com outros fragmentos de cunho unicamente visual, eleva ao status
de arte o que antes era lixo de massa, eliminando as fronteiras entre imagem e letra, o que na
obra de Schwitters se transforma num texto nico e inseparvel. Haroldo de Campos dedicou
ao artista um ensaio no qual observa que os elementos tipogrficos funcionam em suas obras
como um fator que se resolve gestalticamente no conjunto das partes de um quadro,
indesligvel delas (1975, p.39).
Em 1919, numa das experincias com colagnes, aparece como elemento principal do
trabalho a parte de um anncio com a palavra Merz impressa, fragmento de um nome alemo
para Banco de Comrcio (Kommerzbank), que fora recortado ao acaso. Octavio Paz (2002, p.
57) considera que essa palavra pode referir-se tambm a Ausmerzen (resduos), Schmerz
(pena) e Herz (corao). Schwitters no entanto reintera que seu sinificado s existe dentro de
suas obras, sem relaes externas, e passa a adotar esse nome em todos os seus processos
criativos:
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(...) senti necessidade de encontrar um nome genrico para designar essa espcienova. Meus quadros , na verdade, escapavam s antigas classificaes, tais como:expressionismo, cubismo, futurismo ou qualquer outra. Denominei, pois, todos osmeus quadros, considerados como uma espcie, quadros MERZ (...). Mais tarde,estendi essa denominao minha poesia - escrevo poemas desde 1917 - e,
finalmente, a toda minha atividade correspondente. Eu mesmo, atualmente, mechamo MERZ (apud CAMPOS, 1975, p. 36).
Assim, apesar de legveis, as palavras na colagem no formam um texto narrativo:
compem, junto com outros elementos do quadro, um texto puramente visual. A fig. 06 um
exemplo de pintura Merz; Houve tambm o Merz desenho, as Merz esculturas, as Merz
publicaes. Schwitters promoviaMerz soirespor toda a Europa, com recitais de poesia e de
prosa e construiu tambm o Merzbau (edifcio Merz), uma instalao que ocupava vrias
dependncias de sua casa em Hanover. Em 1927, Schwitters chamava inclusive a si prprio
deMerz. O objetivo central do artista era remover as fronteiras entre as vrias formas de arte e
a vida cotidiana e reposicion-las com a noo de uma viso Merz total do mundo, inter-
relacionando todas as suas partes constituintes.
O discurso de Schwitters denuncia algumas premissas dadastas (ainda que ele notenha participado formalmente do grupo) que tambm regem a insero de smbolos verbais
Fig. 06 PinturaMerz 25A , de Kurt Shwitters, 1920.
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em suas obras: a aleatoriedade e o deslocamento. Enquanto na colagem cubista temos apenas
o deslocamento (o jornal de Picasso foi deslocado para a obra Guitarra e faz parte de um
novo texto, porm seus grafemas ainda formam palavras que podem ser decodificadas por
qualquer um que conhea a lngua francesa), Schwitters faz tambm uso da aleatoriedade. As
letras M, E, R e Z nada significam quando lidas em conjunto, mas a maneira como esto
dispostas nos indica como a leitura deve ser feita - da esquerda para a direita e numa ordem
retlinea e horizontal como manda a escrita ocidental. Em suas colagens, Schwitters utiliza,
pois, um princpio de decomposio, ao escolher fragmentos de palavras que, ao serem
utilizadas por ele, adquirem um novo significado, tiradas do seu contexto original e colocadas
em outro contexto (VENEROSO, 2006, p. 24).
Assim, Schwitters esvazia de sentido os grafemas que insere em suas obras para dar-
lhes novo significado, que s existe dentro daquele quadro, ou a partir de um quadro (como o
Merz). Diferentes observadores podem associarMerz com alguma palavra de sua lngua ou de
alguma outra que domine, com um nome prprio ou com alguma reminiscncia, porm no
pode haver um consenso sobre o significado da escrita como h, por exemplo, no quadro de
David (Fig. 04). A ausncia da narrativa no trabalho do alemo fica ainda mais patente
justamente pela insero de smbolos verbais: enquanto, que desde os egpcios, passando por
medievais e renascentistas, os artistas sempre usaram as letras para reforar, complementar ou
apoiar a histria que suas pinturas contavam, na obra de Schwitters as palavras que nada
significam eliminam aparentemente a possibilidade de l-las e, mais ainda, de entender a que
se referem.
pergunta, pode um texto referir o mundo, Ricoeur responde afirmativamente,mas com restries. Na verdade o texto no comporta uma referencia ostensiva - de
primeiro grau - mas antes uma referencia indireta, de segundo grau. Essareferencialidade interna ao prprio texto, na medida em que a escrita vaidesenvolver, no seu interior todo o ambiente, um mundo, explicitando, elaborandoesse mundo exterior. A escrita transporta-o para dentro da narrativa, de modo a quetodo o texto no perca a sua legibilidade... (BABO, 20027).
2.4.3 Pinturas abstratas, palavras abstratas e as escrituras de Barthes
A pintura cubista, bem como a dadasta, a futurista e a surrealista realizam variadas
experimentaes aplicando letras em suas telas: descontextualizaram fragmentos para criar
7http://www.eco.ufrj.br/epos/artigos/art_mbabo.htm
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novos textos dentro das pinturas, fazem jogos com a relao entre imagem e verbo e chegam
a esvaziar o sentido das palavras, apresentando grafemas em seqncia tpica de leitura, mas
que lidos no formam palavra conhecida. Paul Klee, em obras como Villa R (Fig. 07)
incorpora letras de tal forma a abolir completamente a hierarquia entre imagem e escrita,
reafirmando o valor visual dos signos grficos, com um grande R em primeiro plano que
subverte a tradicional fronteira entre cone e escrita numa pintura.
Em Vila R...logo se descobre inmeros outros grafemas, ligeiramente menosdeclarados. Toda a composiao tem por estrutura elementar uma articulao dedados escriturais, ou, em outras palavras: o convencional sistema da figura seesboroou integralmente, pois aqui a iluso da presena obtida por um jogo entreletras, uma espcie de jogo em potencial, uma pr-textualidade (PEREIRA, 1976,
p.11).
Klee chega ao extremo esvaziamento de um grafema enquanto significante verbal:
temos um R, alm de O, W, U e L, todos dispostos qual elementos pictricos e de forma a
no constituir sequer uma slaba; so as letras em estado puro, sem construir nenhuma
significao verbal possvel alem do prprio nome dessas letras e cujas presenas na tela
justifica-se exclusivamente por questes visuais. Porm, ainda nesse extremo so grafemas.
Ser o prprio Klee que, dando continuidade a suas obras hbridas de elementos
verbais e visuais, transpor o ltimo fio de ligao entre as letras e seu significado externoquando inaugura, paralelamente a artistas como Vassily Kandinsky e Jean Arp, uma nova
Fig. 07 Villa R , de Paul Klee, 1919
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visualidade: ele utiliza em algumas de suas pinturas abstratas da dcada de 1930 (fig. 08)
verdadeiros ideogramas assemnticos ou, como denominamos no primeiro captulo,
escrituras.Este momento de fundamental importncia para a histria da relao entre letras
e pinturas: o valor visual da escrita tudo o que importa e, ao contrrio dos exemplos
histricos at o sculo XIX, na arte moderna as trajetrias das letras e das narrativas na
pintura desconciliam-se, sendo que essa separao tem sua expresso mxima no momento
em que signos literrios so abstrados a ponto de se tornarem indecodificveis e totalmente
impossibilitados de narrar: pelo contrrio, eles escondem qualquer tipo de narrativa que
porventura houvesse - a abstrao do grafema, tornando-o uma escritura.
O exemplo de Kandinsky ainda mais adequado, como na obra Sucesso(fig. 09).
Nesta pintura, o artista nos remete aos cadernos com linhas e, principalmente, ao modo
milenar ocidental de escrever e ler: da esquerda para a direita, de cima para baixo, um
caractere aps o outro. Seja o leitor um egpcio, latino ou russo, esses pressupostos norteiam
a