priscilla de paula pessoa

Upload: thot777

Post on 17-Feb-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    1/108

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS

    PRISCILLA PAULA PESSOA

    0BNARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA

    Campo Grande MS

    Maio-2008

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    2/108

    PRISCILLA PAULA PESSOA

    1BNARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA

    Orientadora: Prof. Dra. Maria Adlia Menegazzo

    Dissertao apresentada para obteno do ttulo deMestre ao Programa de Ps-Graduao em Estudosde Linguagens, da Universidade Federal de MatoGrosso do Sul, sob a orientao da Prof. Dr. MariaAdlia Menegazzo.rea de Concentrao:

    Campo Grande

    Maio - 2008

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    3/108

    PRISCILLA PAULA PESSOA

    NARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA

    APROVADA POR:

    MARIA ADLIA MENEGAZZO, DOUTORA (UFMS)

    ELUZA BORTOLOTTO GHIZZI, DOUTORA (UFMS)

    PROF. DRA. ELISA DE SOUZA MARTINEZ, DOUTORA(USP)

    Campo Grande, MS, ____ de ___________________ de _________.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    4/108

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Coordenadoria de Biblioteca Central UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

    Pessoa, Priscilla Paula.P475n Narrativas, grafemas e escrituras na pintura / Priscilla Paula Pessoa. -- Campo

    Grande, MS, 2008.

    104 f. ; 30 cm.

    Orientador: Maria Adlia Menegazzo.Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Centro

    de Cincias Humanas e Sociais.

    1. Arte e literatura. 2. Pintura brasileira Mato Grosso do Sul. 3. Grafemas. 4.Escrita. I. Menegazzo, Maria Adlia. II. Ttulo.

    CDD (22) 411759.98171

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    5/108

    AGRADECIMENTOS

    minha me, Sonia, pelo constante incentivo busca de

    conhecimento e de crescimento, das primeiras letras at esta

    dissertao.

    Ao meu marido, Eduardo, por seu apoio constante e amor

    incondicional.

    minha orientadora, Maria Adlia, por seu exemplo e sua

    generosidade em partilhar conhecimento.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    6/108

    "Escrever sobre arte como danar sobre arquitetura."

    (Autor desconhecido)

    I

    RESUMO

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    7/108

    NARRATIVAS, GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA discute a presena marcantede elementos da escrita na pintura, apontando para dois sentidos: a necessidade humana denarrar e o aspecto plstico-visual das letras e das palavras. O trabalho apresenta, ainda, umaleitura dessa prtica por artistas contemporneos sul-mato-grossenses, situando-os para alm

    da cena artstica local. Os conceitos de texto e de obra de Barthes e as teorias sobre a narrativade Goodman e Ricoeur constituem o campo terico de base. Adota-se um ponto de vistahistoricista para a verificao da origem e permanncia dessa prtica, concluindo-se, atravsda anlise e comparao de obras de arte, que os elementos da escrita associam-se pinturaocidental desde a antiguidade e alternam-se entre os diferentes sentidos, num movimento

    pendular, sempre ligado presena ou ausncia de um carter narrativo na obra.

    Palavras-chave: pintura; narrativa; arte sul-mato-grossense

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    8/108

    II

    ABSTRACT

    NARRATIVES, GRAPHEMES AND ESCRIPTURES IN PAINTING - discusses the strikingpresence of elements of writing in painting, pointing at two directions: the human need tonarrate and the plastic-visual aspect of the letters and words. The paper presents in addition, areading of that pratice by Mato Grosso do Sul contemporary artists placing them beyond thelocal art scene. The text and work concepts of Barthes and the theories on the narrative ofGoodman and Ricoeur constitutes the field of theoretical base. It adopts an historicist point ofview for checking the origin and permanence of that practice, concluding itself through theanalysis and comparison of works of art, which combine the elements of writing to the

    painting since ancient western and alternate up between the different senses in a pendulum

    motion, always linked to the presence or absence of a character in the narrative work.

    Keywords: painting, narrative, Mato Grosso do Suls art.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    9/108

    III

    SUMRIO

    RESUMO............................................................................................................................ I

    ABSTRACT ....................................................................................................................... II

    INTRODUO ................................................................................................................. 05

    1 DELIMITANDO O CAMPO TERICO: TEXTO, GRAFEMA,

    ESCRITURA E NARRATIVA ........................................................................................ 09

    1.1 Texto: um conceito abrangente .................................................................................. 09

    1.2 Grafemas e escrituras ................................................................................................. 11

    1.3 Narrativa .................................................................................................................... 13

    2 BUSCANDO UMA TRADIO ............................................................................... 18

    2.1 Pintura e escrita na arte egpcia e grega: uma fuso e uma ciso .............................. 19

    2.2 Pintura e escrita na Idade Mdia: um casamento ....................................................... 24

    2.3 Renascimento das artes, adormecem as letras ............................................................ 26

    2.4 O moderno e o fim das narrativas............................................................................... 30

    2.4.1 As letras acordam: cubismo sinttico ............................................................. 32

    2.4.2 Schwitters, ou Merz......................................................................................... 35

    2.4.3 Pinturas abstratas, letras abstratas e as escrituras de Barthes......................... 37

    2.5 O surrealismo e as narrativas contemporneas........................................................... 41

    3 GRAFEMAS E ESCRITURAS NA PINTURA CONTEMPORNEA ................. 47

    3.1 Ps-guerra: o triunfo americano ................................................................................ 49

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    10/108

    IV

    3.1.1 Expressionismo abstrato : Escrita e abstrao.................................... 50

    3.1.2 Arte pop: escrita e figurao .............................................................. 53

    3.2 Narrativa ps-moderna e arte conceitual.................................................................... 56

    3.2.1 Anos 1970: sim s letras, no s tintas ............................................... 60

    3.2.2 Anos 1980: volta da pintura e permanncia das palavras................... 65

    3.2.3 Anos 1980: volta da pintura e permanncia das palavras................... 65

    3.3 Agora, agorinha mesmo.............................................................................................. 68

    4 - UM SOPRO DE CONTEMPORANEIDADE NA PINTURA DE MS ................... 73

    4.1 Narrativas intimistas................................................................................................... 75

    4.2 Narrativas conceituais ................................................................................................ 81

    CONCLUSO.................................................................................................................... 88

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................ 93

    NDICE DE FIGURAS ..................................................................................................... 100

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    11/108

    5

    INTRODUO

    No ano de 1435, publicado na Itlia o tratadoDa pintura, de Leon Battista Alberti.

    Uma das primeiras obras a constituir a pintura como objeto terico, o tratado continha

    ensinamentos tcnicos com base na anlise de obras, versando sobre as propriedades das

    cores, noes de proporo e perspectiva, consideraes sobre luzes e sombras, entre outros

    pontos analisados. O tratado o retrato de um ambiente e de um tempo em que a pintura era

    ainda (e o seria por muito tempo) a pintura do mundo que se v "As coisas que no

    podemos ver, ningum negar que elas no pertencem ao pintor. O pintor s se esfora por

    representar aquilo que se v"(ALBERTI,1989, p.72); porm, naquela poca como ainda hoje,

    falar de pintura ir alm da pintura; tom-la como motivo de exerccio analtico e

    discursivo. Mais do que observar, trata-se de ler a obra de arte.

    Dentre os vrios elementos que podem compor uma pintura um em especial mereceu

    nossa ateno neste trabalho e foi tomado como objeto de estudo: os signos verbais, letras que

    nas mais variadas formas e com diferentes funes sempre estiveram presentes desde as

    primeiras realizaes pictricas do homem. Durante o sculo XX, tanto nos anos devanguarda quanto na arte posterior Segunda Guerra Mundial (momento tido como divisor de

    guas entre moderno e contemporneo), ficou mais evidente o dilogo entre as artes visuais e

    a literatura, acompanhando a diluio de limites entre as diferentes linguagens e a

    conseqente quebra de fronteiras entre texto e imagem. Artistas plsticos retomaram a origem

    visual da escrita, utilizando elementos textuais em suas obras: frases inteiras, grafismos

    isolados, letras de diversos alfabetos, colagem de fragmentos de textos impressos, etc.,

    fazendo uso da escrita como elemento grfico e/ou conceitual. Mais especificamente, desde aspalavras e as letras presentes nos quadros cubistas de Picasso e Braque o trnsito entre as

    linguagens tem possibilitado ao artista explorar a ambigidade conceitual deste movimento.

    Dos anos 1960 para c, em funo das transformaes radicais no terreno das artes

    (a comear pela ruptura com suportes tradicionais e pela prpria definio da palavra arte

    posta em xeque), uma das direes tomadas pelos estudos dessa rea foi aquela cuja

    preocupao seria a de vincular o plano do contedo ao da expresso, buscando uma

    metalinguagem que desse conta dos muitos planos da expresso em conexo a seus contedos

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    12/108

    6

    semnticos: o texto no qual o plano da expresso tambm fizesse sentido. Para Barthes

    (1988), diante da obra produz-se a existncia de um objeto novo, o texto. Isso no significa

    que se possa separar materialmente obra e texto: a diferena que a obra um fragmento de

    espao, como por exemplo, uma tela pintada que se pode segurar, tocar. O texto mantm-se

    na linguagem, s existindo tomado num discurso, e seu movimento constitutivo a travessia

    (ele pode espacialmente atravessar a obra). Assim, a obra funciona como um signo geral, e o

    texto gera significao atravs de um movimento serial de desligamentos, cruzamentos,

    variaes.

    Dentro do tema das relaes entre grafemas, escrituras e imagens e de como a

    atualidade tece os fios das tramas verbo-visuais que compem a cena contempornea,interessam-nos os processos de textualizao e de hibridizao textual, entendendo texto em

    sentido amplo, como materialidade paralela que pode ser integrada por diferentes semioses. A

    existncia na histria da arte (e predominantemente em obras modernas e contemporneas) de

    pinturas que, alm dos elementos prprios da linguagem pictrica, tm gravadas em si

    tambm elementos prprios da literatura, exige um modelo de anlise visual no qual o plano

    do contedo seja abordado juntamente com o plano da expresso, sendo este o percurso

    gerativo do sentido.

    Na construo deste trabalho foi dada nfase ao ponto de vista historicista,

    alinhavando os momentos na histria da pintura em que letras e tintas se encontram at chegar

    cena contempornea, entendendo a obra de arte no como um objeto de originalidade

    absoluta, mas como herdeira de uma tradio que sempre reaparece, ora por continuidade, ora

    por resgate. Nesse ponto, para delimitar nosso objeto, foi de fundamental importncia v-lo

    sob o ponto de vista de Gombrich, que comtempla em seus livros a existncia de arte em

    todos os recantos do mundo, bem como demonstra a influncia que as manifestaes exercemuma sobre as outras; porm, ele afirma tambm existir uma histria da arte como um esforo

    contnuo(p.55, 1995), ou seja, h a possibilidade de se identificar uma herana direta desde a

    arte antiga egpcia at a atualidade, a chamada histria da arte ocidental, e com esse

    recorte que trabalhamos aqui. A dissoluo dos limites precisos entre as linguagens artsticas

    e o dilogo cada vez maior entre as categorias distintas de arte que resulta no hibridismo entre

    literatura e pintura e que constitui nosso objeto de estudo s podem ser analisados como

    fruto no de artistas isolados, mas como resultado de toda a sua bagagem, que constitudapor milnios de produo artstica que compe a histria da arte.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    13/108

    7

    Defende-se aqui de que o ponto chave para interpretar a presena de sinais verbais

    na pintura reside na inteno narrativa da obra, e a partir deste vis se constri a linha de

    interpretao das pinturas que servem de corpus do trabalho. Sobre o caso da pintura

    contempornea, entende-se que o freqente uso de letras tem forte relao com a volta das

    narrativas a esse meio e a necessidade de apoiar essa narrao em smbolos reconhecveis, em

    palavras, uma vez que no se trata mais de um texto linear e cronologicamente organizado,

    mas de uma forma de narrativa enviesada, desordenada, subjetiva e conceitual que, para ser

    apreendida, necessita de vnculos com o observador, vnculo esse dado pelo conhecimento de

    um cdigo, o sistema alfabtico e suas possibilidades comunicativas.

    Dentro desse cenrio encontra-se um espao privilegiado para se pensar tambm asrelaes entre imagem e palavra na pintura contempornea de Mato Grosso do Sul e a relao

    dessa produo com o cenrio nacional e mundial da arte. Desse modo, esta dissertao

    contempla, por fim, o estudo da insero de grafemas e de escrituras na pintura

    contempornea de Mato Grosso do Sul, identificando suas funes especficas no trabalho de

    quatro artistas, Ana Zahran, Evandro Prado, Patrcia Rodrigues e Rafael Maldonado, e

    tambm verificando como essa tendncia os situa no cenrio da arte atual, indicando as

    vertentes poticas s quais estariam relacionados.

    No primeiro captulo busca-se explicitar o suporte terico utilizado, delimitando os

    significados de termos que sero usados ao longo de toda a dissertao: texto, grafema,

    escritura e narrativa. Discute-se primeiramente a idia de texto como um termo abrangente

    que se aplica a signos no apenas verbais, e mais que isso, contempla distintas linguagens

    dentro de um mesmo plano. O conceito de textoproposto por Barthes (1988) ser adotado, por

    razes programticas, uma vez que se demonstra eficiente para a anlise do objeto deste

    estudo. Ainda nesse captulo, apresentam-se as definies degrafemae escritura- as distintasformas de caligrafia que aparecem nas pinturas estudadas. Entendo, a partir das definies

    dadas por Cmara (1978, p.174) que grafemas so a unidade formal mnima da escrita,

    smbolos grficos constitudos por traos visuais sistematizados, que permitem a transcrio

    visual de palavras, representando fonemas na lngua oral. J Barthes (1977), cuja noo de

    texto se tomou emprestada, d uma definio de escritura como sendo a grafia para nada, ou

    o significante sem significado. Dentro desse entendimento, o ato de escrever produz uma

    escritura quando os elementos caligrficos no so usados como instrumentos de umalinguagem formada de cdigos reconhecveis, mas atuam justamente como interditores da

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    14/108

    8

    possibilidade de identifica-los com fonemas. Por fim, dada uma significao de narrativa,

    termo essencial para a construo da hiptese aqui levantada de que a ausncia ou a presena

    de uma narrativa altera a funo, assumida ao longo dos sculos, da insero de signos verbais

    em pinturas.

    O segundo captulo contempla o percurso histrico de nosso objeto, comeando com

    um olhar sobre a maneira como imagem e grafemas formaram, muitas vezes, um mesmo texto

    visual na arte antiga, clssica e medieval, buscando entender que funo tal expediente

    exercia naqueles momentos e que tipo de narrativa era dada a ler ao espectador. Trata tambm

    do perodo compreendido entre o sculo XVI e o final do sculo XIX, em que mngua o

    hibridismo verbo-imagtico e a narrativa triunfa, mas sem o uso de palavras, exceto porrarssimas excees. Por fim, enfoca-se a arte chamada moderna (de final do sculo XIX at

    meados do sculo XX), durante a qual a narrativa pictrica abandonada em favor da pura

    explorao da linguagem pictrica, mas que, em contrapartida, apresenta movimentos cuja

    produo freqentemente permeada por smbolos grficos cubismo, futurismo dadasmo e

    surrealismo. Ainda nesse perodo aparecem as escrituras, a escrita para o nada, a narrativa

    escondida, que tambm se faro presentes em pinturas contemporneas.

    No captulo trs chega-se cena contempornea e demonstra-se a grande quantidade

    de pinturas que, a partir dos anos 50 do sculo passado, incluem alm de elementos pictricos

    tambm escrituras e especialmente grafemas, cujo uso est diretamente associado ao carter

    conceitual da arte contempornea e especialmente volta da narrativa s artes visuais e,

    principalmente, pintura, uma narrativa enviesada e descontnua na qual o hibridismo de

    imagens e palavras torna-se essencial para sua apreenso.

    Por fim, no quarto e ltimo captulo, discute-se a presena de escrituras - e maisnotadamente grafemas - na pintura contempornea de Mato Grosso do Sul, por meio da obra

    de quatro artistas selecionados por sua participao efetiva no cenrio artstico estadual e

    nacional e em cujas produes pictricas se nota tanto a presena de uma linha narrativa

    quanto o uso sistemtico de grafias. Com base na anlise de um trabalho de cada artista,

    encontra-se claras ligaes com obras contemporneas do mundo todo e demonstra-se como a

    insero de textos verbais em textos visuais pode ser considerada uma marca indelvel da

    pintura contempornea, que ultrapassa fronteiras, suportes e linguagens.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    15/108

    9

    CAPTULO 1

    DELIMITANDO O CAMPO TERICO: TEXTO, GRAFEMA, ESCRITURA E

    NARRATIVA

    Quando se fala da insero de elementos da escrita numa obra pictrica, o primeiro

    impulso geralmente o de discorrer sobre a relao entre textoe imagem. Tal relao, sob o

    ponto de vista especfico da lingstica, poderia ser considerada correta: os textos so

    seqncias de signos verbais sistematicamente ordenados. De acordo com Koch,

    a coerncia que faz com que uma seqncia lingstica qualquer seja vista comoum texto, porque a coerncia, atravs de vrios fatores, que permite estabelecerrelaes (sinttico-gramaticais, semnticas e pragmticas) entre os elementos(morfemas, palavras, expresses, frases, pargrafos, captulos, etc), permitindoconstru-la e perceb-la, na recepo, como constituindo uma unidade significativaglobal (1995, p.45).

    O texto seria o tecido lingstico de um discurso, e na acepo que prevaleceu at o

    sculo XX, tratava-se de um discurso escrito nem mesmo sua realizao oral poderia ser

    chamada de texto (SEGRE, 1989, p.153). Porm, na teoria semitica - que o ponto de vista

    que interessa especialmente aqui falar sobre texto e imagem seria no apenas redundante,

    como tambm limitaria imensamente nosso objeto. Por isso, faz-se necessrio antes de tudo

    estabelecer conceitos que serviro de fundamento: texto, grafema, escritura e narrativa.

    1.1 Texto: um conceito abrangente.

    Uma viso clssica e abrangente de texto pode ser encontrada em Aguiar e Silva

    (1988), para quem o termo origina-se do substantivo latino textus, que significa tecido,

    urdidura, encadeamento e descende do particpio passado do verbo texere, que significa tecer,

    entranar e entrelaar. Da se pode falar em tessitura de um texto: a rede de relaes que

    garante sua coeso, sua unidade como um todo inter-relacionado.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    16/108

    10

    De acordo com Pignatari (1968, p.18), "Embora a palavra texto tenha como referente

    o conjunto verbal, podemos estend-la aos signos em geral, definindo texto como umprocesso de signos que tendem a iludir seus referentes, tornando-se referentes de si mesmos e

    criando um campo referencial prprio.Tomar-se- esse conceito amplo, lato, da palavra. O

    expoente mximo dessa tendncia interpretativa foi o simbolismo russo, para o qual o mundo

    representava um texto universal, composto por textos da vida e textos da arte. Esta metfora

    do mundo retomada no final do sculo XX e com argumentos mais incisivos permitindo

    ento considerar como texto uma composio estruturada, como por exemplo, um quadro.

    Nesta perspectiva, podemos considerar como textos um bailado, um espetculoteatral, um desfile militar e todos os outros sistemas de signo relativos acomportamentos, do mesmo modo que aplicamos esse termo a um texto escritonuma lngua natural... (LOTMAN ,1978, p.51).

    Tal definio permite de imediato, considerar tambm as obras pictricas como um

    texto e abrindo-as para a questo que buscaremos responder com este trabalho: quais os

    efeitos de sentido, poticos e estticos, decorrentes da insero de elementos da escrita na

    obra de arte contempornea, tendo em vista a profuso de meios disposio do artista para

    constru-la?

    Pensar nas pinturas como um texto permite l-las, no apenas buscando

    significao nas letras nelas inseridas, mas abrangendo os signos de vrias ordens que as

    compem. Permite pensar os sgnos verbais dentro do quadro, mas tambm como parte de um

    texto ou participando de uma intertextualidade - e no um texto por si s. Fiorin (2000)

    define o termo intertextualidade como sendo a incorporao de um texto em outro. Por que

    tantos artistas tm escrito em seus quadros? A explicao pode estar no inegvel dilogo

    entre as artes, quando parmetros tidos como imutveis sofreram questionamentos a partir do

    sculo XX e formas de expresso tidas como distintas ou contrrias, como visual x literrio,

    por exemplo, j no tm sido obedecidas, por no fazerem sentido na arte contempornea.

    Uma vez demarcado em sentido amplo o conceito de texto que adotaremos em

    nossos estudos, importante estabelecer a diferenciao entre texto e obra e a maneira como

    ambos coexistem nas pinturas de linguagens hbridas. Para Barthes (1988), diante da obra

    produz-se a existncia de um objeto novo, o texto. Isso no significa que se possa separar

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    17/108

    11

    materialmente obra e texto: a diferena que a obra um fragmento de espao, como por

    exemplo, uma tela pintada que se pode segurar, tocar. O texto mantm-se na linguagem, s

    existindo tomado num discurso, e seu movimento constitutivo a travessia (ele pode

    espacialmente atravessar a obra). Assim, a obra funciona como um signo geral, e o texto gera

    significao atravs de um movimento serial de desligamentos, cruzamentos, variaes. O

    texto radicalmente simblico: uma obra que se concebe, percebe e recebe a natureza

    integralmente simblica um texto (BARTHES, 1988, p.74).

    Assim, podemos tentar definir o que quer dizer a obra fundamentados em sua

    materialidade, mas o texto simblico, estruturado, mas descentralizado, de modo que

    podemos ler um texto em partes ou analisar apenas alguns de seus aspectos, que o queprope esta dissertao: considerar a obra pictrica como um texto e nela sublinhar elementos

    da escrita, fazendo uma leitura desse fragmento integrante do texto todo.

    Ainda de acordo com Barthes,

    O texto plural. Isso no significa que tem vrios sentidos, mas que realiza oprprio plural do sentido: um plural irredutvel... O texto no coexistncia desentidos, mas passagem, travessia. O plural do texto prende-se, efetivamente, no ambigidade de seus contedos, mas ao que se poderia chamar de pluralidade

    estereogrfica dos significados que o tecem (1988, p.74).

    Ora, como destacamos no incio deste captulo, a origem etimolgica da palavra

    texto remete a tecido, tessitura, e os significantes evocados por Barthes formam essa trama,

    sem deixar de ser fios que podem ser separados e analisados independentemente ou mesmo

    lidos em seu contexto, porm com ateno particular para esses elementos. So textos dentro

    do texto,o intertexto. O texto, para BARTHES (1988), o espao em que nenhuma linguagem

    leva vantagem sobre outra, em que as linguagens circulam.

    1.2.Grafemas e escrituras

    O pressuposto para a descrio dos conceitos de grafema e de escritura est na

    concepo de leitura conforme proposta por Goumelot:

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    18/108

    12

    Ler dar um sentido de conjunto, uma globalizao e uma articulao aos sentidosproduzidos pelas seqncias. (...) Ler , portanto, constituir e no reconstituir umsentido. A leitura uma revelao pontual da polissemia do texto literrio (2001, p.108)

    Dentro do texto que se apresenta para leitura quando observamos uma pintura,

    sublinha-se aqui a insero de elementos da escrita (grafemas ou escrituras) na pintura

    contempornea e de que maneira eles compem esse texto, lido isoladamente e em conjunto

    com seu entorno, a prpria pintura.

    Segundo Cmara, grafemas so:

    smbolos grficos unos, constitudos por traos grficos distintivos, que nos

    permitem entender visualmente as palavras na escrita, da mesma sorte que osfonemas nos permitem entend-las auditivamente na lngua oral (1978, p.174)

    Os grafemas, inseridos numa obra pictrica, permitem no apenas sua leitura dentro

    de paradigmas geralmente aplicados aos quadros - cor, ritmo, textura, peso e relao com os

    outros elementos visuais em seu entorno (contraste, composio, etc); o grafema um cdigo,

    (permitindo tambm a leitura de um significado convencionado, que a unidade fundamental

    de um sistema de escrita, podendo representar um fonema nas escritas alfabticas), e obedece,

    portanto, a toda uma referncia externa obra, exige do leitor o conhecimento desse cdigo e

    tem uma significao que transcende sua mera aparncia visual. Faz parte do texto geral, mas

    possui um sentido que se busca alm da obra.

    Num sentido mais restrito, grafemas so as letras. Em acepo ampla, abrangem

    tambm os sinais de pontuao, os ideogramas e os sinais diacrticos. Os sinais diacrticos da

    lngua portuguesa so os acentos agudos, graves e circunflexos, o trema, o til, o apstrofo e o

    hfen. Por ideogramas, entendemos os smbolos das escritas cuneiforme e chinesa, certos

    sinais de trnsito, etc. Esses grafemas presentes na pintura, sejam eles formadores de palavrase frases ,ou apresentados em separado, so o objeto deste trabalho, sem deixar de considerar o

    texto maior de que fazem parte, mas concentrando nesse foco nossa pesquisa.

    Faz-se necessrio ainda considerar a insero de uma outra forma de grafia na

    pintura contempornea. Barthes (1977) define escrituracomo sendo a grafia para nada, ou o

    significante sem significado. Aqui, as palavras no so usadas como instrumentos de uma

    linguagem, mas justamente como desfuncionalizao desta. A linguagem que constitui a

    escritura recusa a condio de linguagem utilitria, no sendo apresentada apenas como um

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    19/108

    13

    meiode comunicar cuja funo se extingue to logo ofim(a decifrao do significado verbal)

    seja atingido. A escritura no cumpre essa funo, sua caligrafia no se identifica com letras e

    alfabetos conhecidos do espectador, justamente porque uma escrita exclusiva do artista e

    pertence apenas ao universo do quadro.

    O que Barthes denomina aquiescritura a voz subjetiva que fala atravs da escrita

    sem que o artista oculte suas possibilidades visuais atravs da completa submisso

    legislao dos cdigos epistemolgicos estabelecidos; , pois, uma linguagem reflexiva, auto-

    referencial, que visa recolocar o sujeito no centro do ato de enunciao; uma linguagem que ,

    no dizer de Barthes (1977, p.17), "o grafo complexo das pegadas de uma prtica: a prtica de

    escrever".

    ... as palavras no so mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos,so lanadas como projees, exploses, vibraes, maquinarias, sabores: aescritura faz do saber uma festa. (...) a escritura se encontra em toda parte onde as

    palavras tm sabor (saber e sabor tm, em latim, a mesma etimologia). (...) essegosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo.(BARTHES, 1977, p.21).

    Conforme apresentado na introduo desta dissertao, nossa hiptese a de que a

    base eminentemente conceitual da arte contempornea e seu carter narrativo intensificam anecessidade de interpretao da obra, exigindo do leitor/observador uma disponibilidade para

    perceber/ler as narrativas que de algum modo a perpassam. Se possvel poesia considerar o

    espao em branco do papel como elemento de sentido, tambm ser possvel considerar a

    presena da palavra grafema ou escritura como elemento de sentido da obra de arte visual.

    1.3 Narrativa

    No decorrer dos prximos captulos, a trajetria das narrativas na pintura ocidental

    ser retomada e discutida, considerando-se a insero dos grafemas e escrituras na pintura

    contempornea como um expediente ligado ao carter narrativo da obra. Porm, fazse

    necessrio j neste primeiro momento, em que se expem os conceitos fundamentais para a

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    20/108

    14

    construo deste estudo, buscar as diferentes significaes da expresso narrativae apontar a

    acepo aqui aplicada.

    Termo que deriva do snscrito gnrus (saber, ter conhecimento de algo) e narro(contar, relatar), os primeiros estudos da narrativa comearam a partir da Potica de

    Aristteles (1992), escrita em torno do ano de 335 a.C, cujas premissas so importantes at

    hoje. Basicamente narrar contar uma histria, e para tanto teremos personagens, cenrios,

    conflitos, cenas. Assim, o termo narrativa secularmente associado literatura e durante

    muito tempo, s a ela aplicvel.

    Genette, em seu Discurso da Narrativa (1972), define-a sob trs aspectos: a

    narrativa designa o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relao de

    um acontecimento ou de uma srie de acontecimentos;por outro lado, Genette toma tambm

    em considerao o contedo desse enunciado e designa por narrativa a sucesso de

    acontecimentos, reais ou fictcios, que constituem o objeto desse discurso, e as suas diversas

    relaes de encadeamento, de oposio, de repetio, etc.; finalmente, o autor considera que o

    conceito de narrativa pode ser tambm visto como ato de narrar em si, isto , um

    acontecimento: no aquele que se conta, mas aquele que consiste em que algum conte

    alguma coisa.

    Uma definio restrita de narrativa ligar-se-ia ao domnio da linguagem verbal

    escrita, j que tradicionalmente ela entendida como "a representao de um acontecimento

    ou de uma srie de acontecimentos, reais ou fictcios, por meio da linguagem, e mais

    particularmente da linguagem escrita" (GENETTE, 1976, p.255). Por essa razo, durante

    muito tempo, os estudos sobre narrativas permaneceram no domnio do registro verbal, dando

    maior enfoque Literatura. Passa-se, contudo, que no s a literatura produtora denarrativas. importante reconhecer que outras artes, outros sistemas simblicos valem-se

    tambm da narrativa, principalmente quando se entende o ato de narrar como "trao distintivo

    de todo discurso humano" (ROCHA, 2003, p.38). Tal viso antropolgica permite aceitar o

    fato de que a narrativa capaz de se materializar em suportes os mais variados, entre eles, a

    pintura.

    No sculo XX, a partir do estruturalismo (para o qual a coordenada temporal um

    fenmeno de superfcie, investindo uma estrutura profunda lgica, mas acrnica) surgir uma

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    21/108

    15

    espcie de teoria semitica da narrativa (ou narratologia) que se prope a estudar a

    narratividade em geral (romances, contos, filmes, espetculos, mitos, anedotas, canes,

    msicas, vdeos). Encabeados por Roland Barthes, estes estudos pretendiam encontrar uma

    "gramtica" da narrativa. Barthes (1976, p.18) afirma que "a narrativa est presente em todos

    os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, comea com a prpria histria da

    humanidade. (...) fruto do gnio do narrador ou possui em comum com outras narrativas

    uma estrutura acessvel anlise".

    Desde a gnese do conceito de narrativa at meados dos anos 60 do sculo passado,

    pode-se dizer que os estudiosos do tema buscaram encontrar o esqueleto do enunciado

    narrativo. Desde ento, procurou-se reduzir a narrativa a sua forma mais simples eelementar, encontrando, assim, uma estrutura bsica que revelasse a forma geral dos

    enunciados narrativos. Se pudssemos sintetizar esses estudos, talvez chegssemos a dois

    princpios, concluindo provisoriamente que para haver uma narrativa preciso:

    uma relao cronolgica e lgica entre os eventos e as aes dos atores;

    que os eventos tenham uma organizao macro-proposicional (na verdade, este

    segundo requisito uma conseqncia do primeiro, pois a estrutura macro-proposicional da narrativa, tal como vista pelos autores estudados, implica um

    ordenamento seqencial e cronolgico dos eventos segundo uma lgica prpria do

    enunciado narrativo.)

    A forma cronolgica de ordenamento seqencial passar a ser criticada e

    questionada por alguns autores a partir da dcada de 1960, sendo Goodman (1981) e Ricoeur

    (1994) alguns de seus principais representantes. Os problemas da descronologizao da

    narrativa e do papel do sujeito leitor foram estudados por Goodman (1981), analisando uma

    srie de narrativas verbais ou em imagens, demonstrando que a narrativa capaz de suportar

    quase qualquer tipo de reordenamento sem deixar de ser uma narrativa. Para o autor, a

    seqencialidade cronolgica, no pode ser apontada como um elemento distintivo da

    narrativa:

    In a narrative, not a statement, which is not explicitly stated needs to be timelined(...) oredered, the narrative in any case remains a narrative. This puts us a

    problem, because we think the narrative like a kind of speech whoose peculiarity isis the temporality, distinguished from the description or the exposure throughits

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    22/108

    16

    temporal condition. We, however, found no such conditions. The temporality of

    what is not said explicitly or implicitly distinguishes the narrative, as even thedescription or the painting of a static and momentary situation involves what

    happened before or what will happen afterwards. A painting of a forest implicitly

    tell us aboutgrowing trees na falling leaves, ansd a painting of a house means that

    trees were cut for this(Goodman, 1981, p.111)1

    .

    Se assim considerarmos, tanto pinturas como pargrafos tm de ser lidos com base

    em um cdigo que dado pelo universo cultural no qual a pintura ou texto verbal esto

    inseridos. Tal concepo traz consigo o problema do leitor/observador, o qual tem de

    apreender o cdigo para conseguir ler, seja o texto ou a pintura. E , justamente, tal elemento

    de conveno que se agrega ao texto lingstico ou imagem e lhe fornece um contexto capaz

    de estender, por meio do implicitamente dito, o seu sentido.

    A narrativa, entretanto, no suporta qualquer tipo de reordenamento. Para Goodman

    a representao temporal dos eventos continua sendo um elemento essencial e distintivo da

    narrativa, embora tal representao no necessite mais ser expressa em termos de uma ordem

    seqencial rgida. O fato de os eventos estarem representados desordenadamente no destri a

    narrativa.

    Poderamos lembrar neste momento a concepo de Kant (1996), segundo a qual o

    espao a forma de nossa experincia exterior e o tempo a forma de nossa experincia

    interior. Inerentes ao conceito de tempo so os conceitos de movimento e durao, seja dos

    corpos observados, ou das palavras recitadas ou pensadas. Deste modo, o tempo encontra na

    narrativa a sua representao mais clara e exata, a narrativa revela-se aqui como o carter

    temporal da experincia humana. Por meio da definio de narrativa como representao do

    tempo, Ricoeur (1994) introduz a proposta de uma descronologizao da narrativa. Se uma

    narrativa ordenada cronologicamente corresponde a uma representao linear do tempo, esta

    forma de representao, na verdade, no corresponde experincia psicolgica do tempo.Ricoeur prope, ento, que o estudo da representao da temporalidade deva no ser abolido,

    mas aprofundado.

    1Traduo nossa: Em uma narrativa, nem a enunciao, nem o que explicitamente enunciado necessitam sertemporizados (...) a narrativa reordenada de qualquer modo permanece sendo uma narrativa. Isto nos coloca um

    problema, pois ns pensamos a narrativa como aquela espcie de discurso cuja peculiaridade a temporalidade,distinguida da descrio ou da exposio atravs de sua condio temporal. Ns, entretanto, no descobrimos talcondio. A temporalidade do que implicitamente ou explicitamente dito no distingue a narrativa, pois mesmo

    a descrio ou a pintura de uma situao momentnea e esttica implica o que aconteceu antes ou o queacontecer depois. Uma pintura de uma floresta nos conta implicitamente sobre rvores crescendo e folhascaindo; e uma pintura de uma casa implica que rvores foram cortadas para isto.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    23/108

    17

    O mundo exibido por qualquer obra narrativa sempre um mundo temporal. (...) o

    tempo torna-se tempo humano na medida em que est articulado de modo narrativo;

    em compensao a narrativa significativa na medida em que esboa os traos da

    experincia temporal (RICOEUR, 1994, p.15).

    No captulo a seguir, inicia-se um percurso atravs da histria da pintura, discutindo-

    se a presena de grafemas e escrituras na produo pictrica desde o antigo Egito at

    atualidade e analisando como a presena hbrida de signos verbais e visuais nos textos das

    pinturas est associado prtica narrativa.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    24/108

    18

    CAPTULO 2

    BUSCANDO UMA TRADIO

    Desde que teve a inteno de transmitir algum tipo de idia, ou de narrar um fato, o

    ser humano utilizou sinais. Primeiramente gestos, posteriormente cdigos verbais e,

    finalmente, imagticos. Na pr-histria os povos utilizavam figuras para transmitir

    informaes, assim como as encontramos ainda hoje em vrias culturas; os indivduos se

    comunicavam por meio de desenhos, usando smbolos para expressar pensamentos, emoes,

    acontecimentos, o que chamamos de escrita pictorial. Escrita e pintura ao mesmo tempo. Essa

    passagem foi aqui citada justamente para nos lembrar da gnese eminentemente visual das

    letras, de sua origem irmanada com o desenho e a pintura que, milnios depois da inveno do

    alfabeto fencio (tido como o primeiro), retomada com grande fora na arte contempornea.

    Pintura e escrita hoje so modalidades distintas, porm em seu primrdio o vnculo

    era extremamente estreito e a imagem pintada podia ser considerada uma forma de escrita,

    bem como esta, sendo um veculo grfico, se comunica atravs de formas, pois no se

    desenhou primeiro e em seguida se escreveu, mas imediatamente escreveu-se no sentido de

    uma referncia feita linguagem (SAFOUAN, 1987, p.57). A escrita surgiu quando os

    smbolos grficos foram usados para representar palavras da lngua. Na evoluo da escrita, a

    relao icnica entre forma grfica e referente (fundamentalmente objetos materiais) deu

    lugar aos sistemas pictogrficos e, posteriormente, ideogrficos. Segundo Cagliari (1989), os

    sistemas atuais de escrita podem ser divididos em dois grandes grupos2: os sistemas de escrita

    baseados no significado (escrita ideogrfica, como o chins na sua origem e os hieroglficos

    egpcios) e os sistemas baseados no significante (escrita fonogrfica).

    A escrita se diferencia de outras formas de representao do mundo, no s porqueinduz leitura, mas tambm porque essa leitura motivada, isto , quem escreve,

    2Comeando pela expresso pictogrfica os desenhos pr-histricos a escrita se tornou ideogrfica, com a

    utilizao signos pictricos para representar idias e objetos. A partir do alfabeto fencio, evidenciou-se a escritafonogrfica, sistema no qual as palavras so decompostas em unidades sonoras, que na sua verso visual so os

    grafemas (cf. CAGLIARI, 1989).

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    25/108

    19

    diferentemente por exemplo de quem desenha, pede ao leitor que interprete o queest escrito, no pelo puro prazer de faz-lo, mas para realizar algo que a escritaindica. A motivao da escrita sua prpria razo de ser; a decifrao constituiapenas um aspecto mecnico de seu funcionamento. Por isso que a leitura no sereduz somatria dos significados individuais dos smbolos, mas obriga o leitor a

    enquadrar todos esses elementos no universo cultural, social, histrico, etc, em queo escritor se baseou para escrever (CAGLIARI, 1989, p. 74-75).

    Como observou Cagliari, a inteno da escrita difere da representao artstica: a

    linguagem escrita pressupe no apenas uma leitura imagtica, uma apreciao esttica, mas

    lana ao observador o desafio de um trabalho de decodificao de smbolos. Mais

    especificamente com o surgimento do alfabeto e seus grafemas, rompe-se a confluncia entre

    arte e escrita; todavia, por um longo perodo, elas ainda sero apresentadas conjuntamente,

    prtica s interrompida em sua assiduidade a partir do sculo XVI.

    Escrevendo sobre as relaes entre pintura e tipografia Peignot (Apud PEREIRA,

    1976, p.01) constata que em todas as pocas os pintores incorporaram letras s suas obras. O

    autor lembranos do gosto pela figurao do material escrito, onipresente, por exemplo, nas

    paredes egpcias, entre os judeus, nas civilizaes pr-colombianas e entre tantas outras

    civilizaes para as quais o limite entre pintura e literatura, se existia, era tnue a ponto de no

    ser importante separ-las em textos distintos.

    2.1 Pintura e escrita na arte egpcia e grega: uma fuso e uma ciso

    Podese afirmar que a histria da pintura comea mesmo antes da prpria histria,

    no perodo que se habituou chamar de Pr-histria, com suas cavernas repletas de bises em

    um continente ou de lhamas em outro. Porm, a histria da arte como esforo contnuo

    (GOMBRICH, 1995, p.55) s comea h cerca de cinco mil anos, com os artistas egpcios,

    que do incio a uma tradio cuja linha de trajetria, tal qual um fio de Ariadne3, pode ser

    acompanhada at nossos dias: se a arte ocidental desdobramento da arte grega, da arte

    egpcia que os helenos foram discpulos. Assim, para investigar o percurso do hibridismo

    3

    Ariadne, na mitologia grega, d a Teseu um novelo para que ele marque seu caminho no labirinto doMinotauro e consiga sair dele (cf. MEUNIER, 1994).

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    26/108

    20

    entre literatura e pintura - caminho trilhado pelos artistas at a contemporaneidade h que se

    dar o passo inicial s margens do Rio Nilo.

    A proximidade entre a pintura e a escrita egpcias se inicia na prpria natureza deseus cdigos: a escrita egpcia, uma das mais antigas do mundo, no utiliza um alfabeto, mas

    centenas de pequenos desenhos combinados de diferentes maneiras: os hierglifos. Cada

    desenho utilizado seja por seu valor de imagem, seja pelo som que representa - e que, junto

    a outros signos-sons, compem uma palavra mais complicada. A escrita e a pintura estavam

    estreitamente vinculadas tambm por sua funo religiosa: as pinturas murais eram, em sua

    maioria, narraes de histrias ou frmulas mgicas dirigidas s divindades e aos mortos.

    Interessa-nos aqui especialmente esse carter narrativo das pinturas egpcias, nas

    quais a leitura completa ocorria pela apreenso tanto dos cdigos da escrita quanto das

    representaes imagticas. No se trata de pinturas nas quais so inseridos smbolos grficos,

    nem de um texto literrio ilustrado: um texto nico se formava e narraes visuais e literrias

    se tornavam inseparveis, de tal modo que somente em conjunto perfaziam o sentido

    completo proposto por seu autor. Gombrich, na sua Histria da Arte, nos d um exemplo da

    complexidade de leitura de uma dessas narrativas (Fig. 01):

    As inscries em hierglifos dizem-nos exatamente quem ele [o representado] era,e que ttulos e honrarias reunira ao longo de sua vida. Seu nome, segundo se l, eraKnhumhotep, Administrador do Deserto Oriental, Prncipe de Menat Khufu, AmigoConfidencial do Fara, Conviva Real, Superintendente dos Sacerdotes, Sacerdotede Hrus, Sacerdote de Anbis, Chefe de Todos os Segredos Divinos e o maisimpressionante de todos Mestre de todas as Tnicas. esquerda vemo-lo caandoaves selvagens com uma espcie de bumerangue, acompanhado da esposa Kheti, daconcubina Jat, e de um dos seus filhos... No topo da porta vemos de novoKnhumhotep, agora apanhando aves aquticas numa rede. O caador sentava-seescondido atrs de uma corda de juncos, segurando uma corda ligada redeaberta... A inscrio diz: Canoagem no leito de papiros, os tanques de aves

    selvagens, os brejos e os riachos; caando com a lana de duas ele traspassou trintapeixes. Como delicioso o dia de caa ao hipoptamo (1995, p. 62 e 63).

    Trata-se, como se pode aferir a partir da leitura que nos dada por Gombrich, de

    uma narrativa na qual nos so apresentados seus personagens, seu espao, e em seguida as

    aes so descritas atravs das imagens. A histria contada mantendo uma seqencialidade

    cronolgica, sendo lida de cima para baixo e da esquerda para direita. Conta ainda com um

    desfecho, ou seja, uma narrativa na sua forma mais clssica: tem princpio, meio e fim.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    27/108

    21

    33

    Segundo Chafe (1990), uma narrativa precisa de uma introduo, de um momento

    (quando?), um local (onde?), personagens atuantes (quem?) e uma situao de fundo, na qual

    o contedo da narrativa se desenvolve. Esse contedo deve ser constitudo por uma srie deeventos conectados que foram realizados ou experienciados pelos sujeitos. A pintura mural

    analisada, bem como ocorre em muitas das pinturas egpcias, traz uma narrativa em que os

    elementos pictricos e grficos se confundem num nico texto, cuja leitura s se torna

    possvel em sua totalidade quando tanto seus elementos visuais quanto os verbais so levados

    em conta, ou seja, nem a escrita nem a pintura funcionariam isoladamente.

    Outro aspecto que no se pode deixar de levar em considerao neste estudo o da

    existncia de cdigos obedecidos pelos artistas egpcios no apenas quando escreviam, mas

    tambm quando desenhavam e pintavam: assim como os hierglifos, as formas tambm

    tinham convenes a serem obedecidas para permitir sua leitura, conforme nos ensina

    Gombrich:

    O estilo egpcio incorporou uma srie de leis bastante rigorosas, e todo artista tinhaque aprend-las desde muito jovem. As esttuas sentadas deviam ter as mos sobreos joelhos; os homens eram pintados com a pele mais escura do que as mulheres aaparncia de cada Deus egpcio era rigorosamente estabelecida. (1995, p.65)

    Fig. 01: Mural do tmulo de Knhumhotep, autor desconhecido, c. 1900a.C.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    28/108

    22

    Assim, na pintura egpcia, hierglifos e imagens misturam-se tanto em sua forma

    quanto em sua funo e, nesse caso, escrita e imagens confundem-se inseparavelmente:

    ambos so desenhos, ambos so cdigos estabelecidos e, juntos, formam um texto passvel de

    leitura e de apreciao, uma narrativa literria completa, ao mesmo tempo uma obra de arte.

    Ao contrrio do vasto material pictrico sobrevivente do Egito antigo, pouco se sabe

    da pintura grega na antiguidade, uma vez que as poucas que chegaram at ns so aplicadas s

    cermicas, principalmente vasos. A partir desses vasos e dos pouqusimos fragmentos da

    pintura mural grega, pode-se constatar que a prtica da escrita casada com a pintura rara

    nessa civilizao.

    Segundo Piletti (1993), a Histria da Grcia antiga estende-se por 1400 anos e

    divide-se em quatro perodos: Perodo Homrico, Arcaico (800 a.C. -500 a.C.), Clssico (500

    a.C. -338 a.C.) e Helenstico (338 a.C. 30 a.C.). A arte grega do perodo arcaico recebe forte

    influncia da arte egpcia e os artistas tomam como modelo suas pinturas e esculturas, pois

    iremos ver que os mestres gregos foram escola com os egpcios, e todos ns somos

    discpulos dos gregos. Assim, a arte do Egito reveste-se de tremenda importncia para ns

    (GOMBRICH, 1995, p.81).

    curioso notar como nesse processo de assimilao da arte egpcia pela arte grega a

    relao ntima entre escrita e pintura que vigorava no antigo Egito desaparece quase que por

    completo. Isso se explica, em parte, porque os ensinamentos egpcios foram, sim, levados em

    conta, uma vez que eram fruto de conhecimento e isso era muito caro aos gregos. Porm, a

    grande base para o artista grego foram seus prprios olhos e mesmo nos vasos do perodo

    arcaico, com suas figuras bem contornadas e invariavelmente vistas de perfil, moda egpcia,

    j vemos indcios de escoros e perspectivas nos objetos. Dentro dessa busca pelarepresentao realstica, parece natural que a parte literria da obra de arte fosse eliminada

    em favor da observao e representao daquilo que se pode ver e tocar. Considerando o

    carter visual eminentemente abstrato das letras (elas so signos que representam um fonema

    ao invs de algo visvel), no surpreendente que o artista grego, em sua busca pela

    apreenso do real, tenha deixado pelo caminho a insero da escrita nos textos pictricos.

    Os gregos romperam os rgidos tabus do primitivo estilo oriental e empreenderam

    uma viagem de descoberta a fim de acrescentarem s imagens tradicionais domundo uma quantidade cada vez maior de caractersticas obtidas atravs daobservao. Mas suas obras nunca se parecem com espelhos onde se refletem todos

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    29/108

    23

    os recantos, ainda os mais inslitos, da natureza. Elas ostentam sempre o cunho dointelecto que as criou (GOMBRICH, 1995, p.79).

    Na arte grega, no mais das vezes pintura uma arte, literatura outra e as duas no

    se mesclam no compartilham o mesmo suporte, como ocorria nos murais egpcios. Mesmo ouso do alfabeto ao invs dos hierglifos ricamente desenhados refora demonstra que as letras

    tm cada vez mais a funo de cdigo para leitura, formas abstratas e sistematizadas,

    enquanto a pintura destinada ao deleite do observador, deleite este advindo no de uma

    narrativa, mas da apreciao de um ideal de beleza. Isso nos leva ao terceiro ponto que

    explica porque na pintura grega (e conseqentemente tambm na sua discpula romana)

    elementos da escrita raramente so inseridos: enquanto a pintura egpcia por excelncia uma

    pintura narrativa clssica, que conta uma histria completa - com princpio, meio e fim,extremamente preocupada com o carter documental da obra -, a pintura grega tambm

    narrativa, porm nos narra geralmente uma passagem, o fragmento de uma histria, e essa

    narrao no sempre precisa e est sujeita interpretaes diversas, dependendo do

    observador e de seu nvel de conhecimento sobre a tradio grega. Observemos mais uma vez

    a descrio que Gombrich faz de uma pintura, desta vez um vaso grego (fig. 2):

    A figura representa um comovente episdio da histria de Ulisses: o heri volta

    para casa aps dezenove anos de ausncia, disfarado de mendigo, com um bordo,alforje e tigela, e reconhecido por uma velha ama, que descobre na perna dele acicatriz de um velho ferimento quando lhe lavava os ps. O artista deve ter ilustradouma verso algo diversa da de Homero; talvez ele tivesse visto uma interpretaoteatral em que essa cena era interpretada... Mas no precisamos do texto exato parasentir que algo dramtico e comovente est acontecendo, pois a troca de olharesentre a ama e o heri quase nos dizem mais do que as palavras poderiam dizer.(1995, p. 94).

    Fig. 02: Ulisses reconhecidopor sua velha ama, autordesconhecido, sc. V a.C .

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    30/108

    24

    A partir das anlises que Gombrich faz do mural egpcio e do vaso grego, flagrante

    como o primeiro depende da escrita para contar sua histria (perfeitamente espacializada, com

    personagens nomeadas e situada dentro de uma seqncia cronolgica de acontecimentos),

    que no deixa margem para dvidas ou interpretaes, uma vez que os hierglifos tenham

    sido decifrados; j a pintura no vaso traz o pedao de uma histria da qual se pode imaginar

    diferentes incios e desfechos possveis. Gombrich conhece a lenda de Ulisses e assim localiza

    a cena dentro da Odissia homrica, porm, mesmo com essa informao adiciona,l sua

    anlise d espao para o talvez.

    A narrativa pictrica grega, da qual herdeira no s a pintura romana mas tambm

    toda a tradio clssica ocidental posterior ao Renascimento, tem um carter eminentementevisual e se despe de palavras. A pintura mais comenta do que conta.

    2.2 Escrita e pintura na Idade Mdia: um casamento

    Como ensina Pereira (1976, p.1) em seu livro sobre hibridismo de letras e tintas,

    sobejamente conhecido que durante a Idade Mdia crist se considerou e praticou a inscrio

    de letras como um gnero artstico de fundamental importncia, pelo menos to importante

    quanto a escultura e a pintura.

    O valor esttico das letras volta a ser festejado e pelas mos dos monges em suas

    transcries de livros, onde os grafemas so ricamente desenhados: a figurao do espao

    textual, a exaltao da beleza dos smbolos grficos e a tomada de conscincia de sua origemvisual. Mas no apenas nos espaos destinados literatura - como os livros e os

    pergaminhos que a escrita mistura-se com a arte: as pinturas produzidas em todo decorrer

    dos mais de mil anos medievais so repletas de grafemas:

    Efetivamente, durante mais de um milnio, das primeiras cenas das catacumbas ata plena definio da arte renascentista, atravessando inclume todas as vicissitudeshistricas, no imprio do oriente ou no mundo ocidental, os caracteres da escritasempre foram integrados aos afrescos, manuscritos, objetos de culto, mosaicos eretratos (PEREIRA, 1976, p.3)

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    31/108

    25

    Uma espcie de regra instituiu-se no fazer artstico: todas as disciplinas - e

    especialmente a pintura - dependiam desse heterognico meio de representao: dispor os

    signos plsticos e os grafemas, compondo com eles um nico texto em que a imagem

    esclarece o verbal que, por sua vez, ilumina o smbolo visualizado.

    Vale ressaltar que a grande maioria da populao europia durante a Idade Mdia

    no tinha acesso escrita. Portanto, a arte foi uma forma encontrada pela igreja de passar para

    a sociedade os valores do cristianismo, e a produo pictrica medieval em grande parte de

    cunho religioso. A interpenetrao desses recursos comunicacionais era uma necessidade

    didtica, para que os fiis pudessem entender as narrativas presentes em murais, quadros e

    afrescos.

    Gombrich (1995) nos d notcia de que o papa Gregrio Magno, no fim do sculo VI

    disse que a pintura pode fazer pelos analfabetos o que a escrita faz pelos que sabem ler.

    Para que o propsito expresso por Gregrio fosse atendido, a histria tinha que sercontada da maneira mais clara e simples possvel...As idias egpcias sobre aimportncia da clareza na representao tinham voltado com grande pujana, porcausa da nfase que a Igreja dava clareza (1995, p.136).

    H uma observao de Barthes (1984, p.31-34) sobre o estatuto da imagem na suarelao com o texto que pode elucidar o caso da pintura medieval: esta relao pode ser vista,

    numa primeira instncia, como situao de duplicao do verbal, ou, no limite, de

    ancoragem. Nessa funo, o signo visual explicitaria simplesmente o que j existe no

    escrito, de forma didtica, elucidatria. H muito de reduntante nas pinturas medievais: os

    grafemas, uma vez decifrados, trazem no mais das vezes a mesma narrativa que a leitura da

    imagem nos d.

    Um exemplo desta sede de clareza narrativa que levava o artista medieval a recorrer,

    para alm dos elementos visuais icnicos, tambm aos signos verbais, o Pantocrtor de Sant

    Climent de Tall (Fig.03). Na pintura, observamos a figura do Cristo e vrios santos em seu

    entorno; ora, sabemos tratar-se de Jesus e de santos justamente porque foi durante a Idade

    Mdia que se estabeleceu a iconografia crist4, com suas barbas, gestos e aurolas

    4Para veicular as verdades da f e as tradies religiosas, a iconografia crist servia-se dos catecismos da pintura

    e da escultura. As imagens dos Santos, de Nossa Senhora e da Santssima Trindade, com os seus adornos e seussmbolos, eram as explicaes desse catecismo. Deste modo, mais facilmente se entendia a doutrina efundamentava-se o culto que lhes era prestado.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    32/108

    26

    inconfundveis. Tal simbologia um cdigo visual, um condutor para a leitura: uma figura

    humana sobre cuja cabea se v um halo luminoso santificada. Porm, para reforar ainda

    mais a mensagem, o pintor medieval nomeia seus personagens, apresentando-nos no apenas

    santos, mas especificamente Joo, Bartolomeu, e os outros apstolos que o tempo corroeu da

    pintura mural de Tall.

    As palavras funcionam aqui como legendas, elucidam a figura, da mesma maneira

    de uma iluminura s avessas: assim como as obras literrias medievais eram pontuadas por

    imagens que iluminavam o texto literrio, pinturas como o Pantocrator de Tall vinham no

    mais das vezes acompanhadas de textos verbais com semelhante funo.

    2.3. Renascimento das artes, adormecem as letras

    Fig. 03: Pantocrtor de Sant Climent deTall, autor desconhecido, sculo 12 d. C.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    33/108

    27

    Ainda em plena Renascena, nos sculos XV e XVI, podemos localizar alguns casos

    de insero de grafemas em pinturas - como em Andra Mantegna, Albrecht Drer e Hans

    Holbein, entre outros. Pereira (1976, p.5) ressalta que nesses casos trata-se de

    prolongamentos de uma velha tradio e no mais resultados de uma prtica artstica de

    carter majoritrio. A partir daquela poca at o surgimento das vanguardas europias, o

    costume de expressar-se por meio de imagem e letras torna-se marginalizado at praticamente

    desaparecer da pintura ocidental, ficando restrito a aparies pontuais dentro de alguns

    quadros ou nos ttulos das obras. Barthes ratifica essa informao, em seu ensaio A Imagem

    da Letra:

    Na verdade, palavra e imagem sempre estiveram em contato ao longo da histria dapintura ocidental, quer atravs das legendas e inscries caractersticas da pinturamedieval ou do primeiro Renascimento; quer de maneira mais sutil e dissimulada,nos ttulos que acompanham as pinturas, explicitando, ampliando ou restringindo o

    poder narrativo das imagens (BARTHES, 1995, p.25).

    Foulcault, em As palavras e as coisas,divide o perodo que vai do Renascimento

    at hoje em trs etapas, de acordo com a relao que se estabelece entre palavras e imagens:

    no Renascimento propriamente dito, a palavra seria a coisa; no Classicismo, que Foucault

    localiza nos sculos XVII e XVIII, os dois termos se distanciariam, abrindo espao para a

    representao; e, por fim, a modernidade corresponderia apenas aos sculos XIX e XX e secaracterizaria pela desagregao das representaes elaboradas anteriormente, culminando no

    hibridismo entre linguagens dentro de um mesmo texto. A arte da chamada idade moderna,

    como observou Foucault, a arte da anti-escrita: na pintura ocidental dos sculos XV ao XIX,

    um dos princpios fundamentais o da distino completa entre o signo verbal e a

    representao visual, ou seja, um pertenceria ao mundo literrio e outro ao pictrico. Dessa

    forma, exceto por rarssimas excees, grafemas e imagens no deviam ser usadas numa

    mesma obra e nas poucas vezes em que o foram, havia uma clara hierarquizao entre palavrae imagem, como na obra de Jacques Louis David, que ser analisada adiante. O essencial

    que o signo verbal e a representao visual no so jamais dados ao mesmo tempo. Um plano

    sempre os hierarquiza (FOULCAULT, 1989, p.92).

    Em oposio tradio medieval, no perodo entre o Renascimento e o despontar do

    sculo XX a prtica da insero de elementos literrios era espordica na arte ocidental e nas

    poucas vezes em que aparecia constitua um recurso que tinha como nico intuito reforar a

    narrativa (dentro do procedimento hierrquico), sem levar em conta o lado plstico dos

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    34/108

    28

    grafemas: as letras quando aparecem esto em representaes de cartas, livros, tabuletas,

    pergaminhos, tudo invariavelmente com o sentido de enunciao, sem interesse pela possvel

    beleza e autonomia de um grafema. Concebe-se a pintura como reproduo das aparncias

    visveis, das pequenas e grandes histrias humanas que os artistas procuraram contar com

    preciso at o raiar do modernismo. O carter narrativo, a inteno de comentar um evento de

    forma cronologicamente ordenada e obediente lgica comumente aceita fica evidente na

    obra reproduzida abaixo, e at a chegada do modernismo, ser essa a tnica na pintura.

    Jackes Louis David utiliza o realismo pictrico na descrio de uma cena na qual

    cada gesto focalizado, por pequeno que seja, significa. EmA Morte de Marat (Fig.04), tem-se

    a linha do horizonte - o instrumento tpico da separao terra/cu - confundida com aintimidade e a vulnerabilidade de Marat. Esta tambm a linha que separa o fato histrico e

    mundano do alm e desconhecido e que antecipada e aproximada do observador pela

    mesa/caixote/caixo - posto que aqui vai tambm o epitfio, com a dedicatria, no qual o

    pintor assina e data. Acima da linha, temos apenas o escuro, um outro plano vazio e sem vida.

    Fig. 04: A morte de Marat, de Jacques LouisDavid, 1793.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    35/108

    29

    importante chamarmos a ateno para os vrios elementos que implicitamente

    remetem ao agir humano, colaborando para a construo de uma narrativa que nos mostra no

    apenas Marat morto, mas nos d pistas sobre os acontecimentos que levaram a isso. Alm dos

    instrumentos de manuseio (pena, punhal e folhas), o quadro nos apresenta vestgios diretos da

    ao: a escrita e o corte sangrando. A mo de Marat acentuada como signo dramtico pela

    inrcia do brao que jaz, mas tambm por uma dobra do tecido verde, por uma prega e pela

    margem do tecido branco.

    Alm das linhas e do desenho h tambm a disposio das cores, compreendendo, na

    sua economia, sistematizao e dramaticidade. Sobre David, nos fala Gombrich:

    Ele aprendera atravs do estudo da escultura grega e romana como modelar osmsculos e tendes do corpo, e dar-lhe a aparncia de nobre beleza; tambmaprendera com a arte clssica a deixar de fora todos os detalhes no essenciais aoefeito principal e a almejar a simplicidade. No h cores variegadas nem escoroscomplicados no quadro (1995, p.382).

    Interessante ressaltar a presena de elementos da escrita permeando o texto visual

    assim como ocorre freqentemente na pintura contempornea, porm funcionando justamente

    como um reforo da seqencialidade da narrativa: David, com as palavras, identifica sua

    personagem e nos conta um pouco do evento que culminou no assassinato de Marat, dando-nos a ler a carta em que Charlotte Corday, militante do partido moderado dos girondinos,

    fazendo passar-se por uma admiradora que lhe pede auxlio (a carta que ele segura na mo),

    consegue um pretexto para se encontrar com ele e assassinar Marat a punhaladas. Portanto, o

    texto ali presente funciona como um elemento da narrativa, uma informao no percurso da

    histria que se pretende contar sem maiores pretenes estticas ou poticas: seu valor

    apenas enquanto um grafema que traduz um cdigo, o cdigo da escrita que nos d a ler uma

    informao. Ao assinar o quadro dentro do contexto do texto visual, David nos faz pensar na

    sua prpria presena na cena, como uma testemunha.

    O efeito de toda a narrativa clssica, fosse literria ou pictrica, era justamente este,

    o de fazer coincidir a causalidade com a seqencialidade, tornando a temporalidade narrativa

    como um fator de coeso textual. Organizando a seqencialidade temporal segundo um

    princpio de causalidade, as grandes narrativas criam uma intriga e um desenlace,

    conferidores de sentido ao mundo. Nesta medida, obras como a de David so tcnicas ou

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    36/108

    30

    mquinas de ordenao do tempo, de encadeamento do acontecimento, de modo a, numa

    lgica em que a contigidade se funde ou coincide com a causalidade, engendrar o sentido.

    2.4 O moderno e o fim das narrativas

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX, os elementos da escrita saem do

    limbo ao qual haviam sido relegados para novamente integrarem as pinturas: deixam de ser

    espordicos e subordinados para serem presenas constantes e assumirem as mais variadas

    funes nos quadros dos artistas. Naquele perodo inicia-se o que se convencionou chamar

    arte moderna. H controvrsias sobre os limites temporais do moderno e alguns de seus

    traos distintivos: como separar clssico/moderno, moderno/contemporneo, moderno/ps-

    moderno? Divergncias parte, observa-se uma tendncia nas obras de autores como Argan

    (1993) e Gombrich (1993) em localizar na Frana do sculo XIX o incio da arte moderna.

    O rompimento com os temas clssicos vem acompanhado na arte moderna e mais

    especificamente na pintura - pela superao das tentativas de representar ilusionisticamente

    um espao tridimensional sobre um suporte plano: a conscincia da tela plana, de seus limites

    e seus rendimentos inaugura o espao moderno na pintura. Segundo Greenberg (1986), a

    maior premissa da pintura moderna que ela deve mostrar os limites e os meios da prpria

    pintura, comportando-se assim em detrimento da narrativa: para o autor, a pintura alcana a

    perfeio quando se auto-reflete, quando serve para nos mostrar o que a prpria pintura,

    quais os seus recursos e os seus instrumentos. O expressionismo abstrato, aps a Segunda

    Grande Guerra - com nomes como Jackson Pollock, Arshile Gorky, Mark Rothko, entre

    outros -, seria a materializao do que Greenberg julgava dever ser a pintura genuinamente

    moderna. A forma e s a forma da pintura, o modo como a tinta liberta-se em direo tela e

    como esta a recebe, podem provocar um prazer desinteressado, comunicvel e sem

    necessidade de uma narrativa. Mais ainda: quando a pintura moderna questiona seu prprio

    material classicamente estabelecido - a tinta e a tela , apresentando-se repleta de colagens

    entre outras experimentaes, ela nada narra: discute, com o prprio observador, suas

    possibilidades e seus limites. Barthes elucida como a linha narrativa da pintura clssica

    substituda por uma linha que reflete e discute sobre si mesma.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    37/108

    31

    A partir da segunda metade do sculo XIX, com as alteraes e revolues que seprocessam na tcnica e na linguagem da pintura, esta afasta-se, cada vez mais, dafigurao realista e da narrativa francamente literria que a caracterizaram durantesculos. Novos instrumentos de representao do real (como a fotografia e

    posteriormente o cinema) ganham popularidade e a pintura volta-se para si mesma

    de maneira reflexiva e analtica discutindo questes inerentes sua prpriaestrutura enquanto discurso. (BARTHES, 1995,p.76).

    Com efeito, a inveno e a popularizao de um meio to preciso de reproduzir o

    que se v fragilizou as seculares estruturas em que se fundava a arte da pintura: ela no mais

    precisa narrar o mundo ao seu redor e v-se destituda dessa funo. Fazia-se necessrio ento

    que o artista buscasse outro caminho e, de acordo com Canton (2001, p.17), os modernistas

    procuraram romper com a tradio, o individualismo autoral e os aspectos narrativos que para

    eles banalizariam a arte, buscando uma forma de narrativa que transcendesse a representao:

    a idia era retirar do espectador a possibilidade de se identificar com a narrativa, usando para

    isso mtodos antiilusionistas5. Assim, ao mesmo tempo em que durante o moderno a prtica

    narrativa se reinventa na literatura, nas artes visuais ela progressivamente abandonada em

    favor da prpria linguagem: o tema da pintura modernista (exceto quando esta for dadasta ou

    surrealista, casos dos quais trataremos adiante) a prpria pintura e suas possibilidades. Por

    isso, causa ainda mais estranhamento que, em um cenrio aparentemente desfavorvel (j que

    a insero de grafemas na arte ocidental sempre esteve intimamente ligada ao esforo de

    narrar com mais clareza) ressurja com fora nos pintores o hbito de colocar em suas telas

    signos verbais misturados s imagens. Ainda, alm disso, as escrituras a escrita para o nada

    aparecem tambm no espao pictorial.

    de fundamental importncia percorrer aqui essa trajetria das letras na pintura

    moderna, uma vez que a pintura contempornea, mesmo quando no sua herdeira direta, a

    tem na raiz de suas criaes. Entender qualquer aspecto da pintura contempornea pressupe

    que dominemos tambm sua antecessora, e na arte moderna inaugura-se uma nova relao doartista com as palavras, baseada em dois pontos: o resgate do valor visual das letras e a

    tentativa de reatar nas telas o ancestral vnculo entre escrita e imagem que fora rompido desde

    o Renascimento.

    A arte moderna rompe com a separao clssica das artes (literatura, pintura,

    escultura, gravura etc.) e pe abaixo os limites to bem delimitados entre as diferentes

    5 Ilusionismo, em arte, a capacidade de conectar o observador em um nvel de identificao e derelacionamento com a obra. (cf. CANTON, 2001, p19)

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    38/108

    32

    linguagens, abrindo, entre outras possibilidades, a da desconstruo da escrita, ou seja, a

    recuperao de sua origem visual tal qual foi concebida, relembrando o que parece bvio, mas

    que poucos percebem: o valor ambguo das letras, que tanto so cdigos verbais como

    tambm possuem valor visual. Letras tambm so desenhos e a conscincia desse fato

    transborda nas telas modernas. Muito mais do que suas significaes e qualidades narrativas,

    o que o artista da primeira metade do sculo XX busca ao inserir palavras em suas telas o

    rompimento com a hieraquizao que imperava nas relaes entre imagem e escrita: o quadro

    e sua legenda, o texto e sua ilustrao. Ao mesmo tempo que integra um e outro no quadro,

    esse artista j no deseja narrar, explicitar ou explicar quando insere letras e palavras em suas

    obras, pois as insere em fragmentos, retirando as palavras de seus contextos usuais e criando

    novas relaes, ou mesmo subvertendo a caligrafia a ponto dela mais nada significar, excetodentro do contexto da prpria tela.

    2.4.1 As letras acordam:o cubismo sinttico.

    Dado que a forma - e no uma histria a ser narrada - passou a ser o objeto da arte, o

    critrio para identificar uma obra como modernista passou tambm a ser naturalmente uma

    explorao radical das potencialidades e dos instrumentos de cada tipo de arte. A relao entre

    imagem e letra adquiriu uma autonomia explcita e a palavra se integrou ao espao pictrico

    de forma sistemtica a partir da dcada de 10 do sculo passado, com o cubismo sinttico,

    destacando-se os trabalhos pioneiros de Georges Braque e Pablo Picasso e seus papiers

    colls6; uniam-se escrita e imagem em suas obras - sem que houvesse entre elas uma relao

    hierrquica por meio de suas colagens verbais e visuais. Conforme observa Massim ( apud

    PEREIRA, 1976, p.06), ... nenhum dos movimentos artsticos que se sucederam desde o

    cubismo negligenciou o problema das relaes entre letras e imagens.

    O palco do cubismo a Paris de pouco antes da 1. Guerra, uma cidade totalmente

    urbana, em que as ensolaradas e buclicas cenas campestres, to caras aos impressionistas do

    6

    Em portugus, papis colados. A tcnica, usada h sculos como divertimento de crianas, utilizada comoelemento plstico nas pinturas cubistas de Pablo Picasso e Georges Braque a partir de 1912, aparecendo depoiscom freqncia em outros momentos da arte moderna e contempornea ( cf. MAILLARD, 1981)

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    39/108

    33

    final do sculo XIX, so substitudas por um novo cenrio que interessa muito aos pintores do

    sculo que ento se inicia, uma metrpole vida por progresso, movimento e modernidade,

    povoada por uma visualidade que condiz com essa nova ordem: ruas pululantes de novos

    signos, marcas e grafismos. Barthes afirma que naquele momento Paris era repleta de

    quiosques de jornais, placas comerciais, cartazes vendendo produtos ou anunciando

    espetculos. Essa paisagem dinmica e diversificada uma das primeiras inspiraes dos

    pintores cubistas (1995, p.76). No por acaso o exemplo escolhido por ns foi uma obra de

    Picasso (Fig. 05): nela encontram-se fragmentos de jornais contendo grafemas que compem

    palavras legveis, expediente que, como adiante veremos, importante ferramenta da arte

    contempornea.

    O papel dos signos colados nesta e em outras obras cubistas duplo: por um lado,

    aludem ao mundo real, encaixando-se assim na proposta cubista de tematizar objetos do

    cotidiano, tranfigurando-os de forma potica e, dessa maneira, considerando a multiciplicidade

    de pontos de vista sobre um mesmo motivo que caracteriza a obra cubista, as nominaes so

    tambm includas. Por outro lado, a presena constante do jornal nas naturezas-mortas dos

    cubistas denota uma ruptura com a tradicional representao desse gnero e o jornal remete

    Fig. 05: Guitarra,de Pablo Picasso, 1913.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    40/108

    34

    eleio do universo urbano como tema cubista; nesse sentido, as palavras coladas sublinham os

    vnculos com a realidade ttulos de jornais, fragmentos de panfletos, nomes de bares ou

    bebidas. A periodicidade diria do jornal atua como metfora do tempo, da urgncia e da

    dinmica, todos componentes do projeto pictrico cubista.

    Nas pinturas cubistas essa insero tem outro carter alm de representar uma

    metfora da sociedade em que estava locado: o de elemento de linguagem visual, repleto de

    caractersticas plsticas:

    A introduo da letra na pintura cubista se explicaria por fatores de ordem formal:no momento em que os pintores se afastam de uma concepo da pintura baseadano sistema analgico de figurao com perspectiva, no momento em que a

    descontinuidade sistemtica do contorno das formas tende a faze-la desaparecer ouconfundir-se com o contingente espacial o emprego da letra se justifica ou comouma vontade de reintegrar o objeto no quadro (como um retorno ao real) ou numa

    perspectiva mais ampla como uma maneira de fundar um novo sistema pictural,baseado no abandono dos meios tradicionais de representao (ARBEX, 2002,p.46).

    Tomemos como exemplo a pintura-colagem cubista da fase sinttica Guitarra do

    espanhol Pablo Picasso, j exposta na pgina anterior; nela, o artista no narra coisa alguma:

    nela, o uso da colagem como forma de obter o efeito de textura ao invs da utilizao de

    engenhos do pincel deixa ainda mais claro o rompimento do moderno com a representaoclssica, e est a a tnica da obra de Picasso e da maioria das outras pinturas modernistas:

    nelas, discute-se a pintura e narra-se seu processo, e no outro tema. A insero do fragmento

    de jornal cumpre vrias funes: rompe com a tradio ilusionista da pintura, uma vez que o

    jornal no representado e sim colado; funciona como uma metfora da sociedade urbana e

    sua urgncia pelo novo de cada dia; e traz - uma vez deslocada do ambiente literrio para o

    artstico - uma revalorizao das qualidades plsticas da letra que juntamente com os outros

    elementos da obra formam o texto visual.

    Sob qualquer desses prismas, podemos afirmar que Picasso, em Guitarra, no narra

    uma ao: ele reflete sobre seu tempo e lugar; discute a maneira de se representar uma

    guitarra e um jornal, no com a inteno de iludir o observador com uma falsa

    tridimensionalidade num espao bidimensional por excelncia como a tela, mas mostrando

    justamente que isso que ela : um espao de apenas duas dimenses. Nas pinturas-colagem

    dos cubistas, a insero de fragmentos de jornais ou mesmo a insero de letras pintadas nas

    obras funciona como um recurso formal tem uma finalidade essencialmente composicional e a

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    41/108

    35

    presena de uma narrativa se d de forma muito sutil: o artista cubista conta em sua obra o

    processo de feitura do quadro, ou como Tassinari (2001, p.91) afirma, "Um espao em obra

    possui uma espacialidade imanente ao mundo em comum. No o transcende, apenas traa

    pontes para uma experincia esttica que vai do mundo ao prprio mundo".

    2.4.2 Schwitters, ou Merz.

    Vrios foram os artistas que seguiram o caminho aberto pelos cubistas e seuspapiers colls. Kurt Schwitters, entretanto, explorou profundamente as possibilidades de

    materiais contendo grafemas em suas obras e pea fundamental para o entendimento da

    fuso entre literatura e pintura na arte contempornea: com suas colagens verbais e visuais,

    ele dilui no espao tradicionalmente pictrico (a superfcie plana do papel ou da tela) os

    limites outrora rgidos entre as diferentes linguagens. Schwitters utiliza em suas colagens

    palavras que, ao serem fragmentadas e retiradas de seu contexto original e colocadas no

    contexto da tela, ganham novos significados (ou passam a ter nenhum).

    O artista apropria-se de palavras encontradas em bilhetes de trem, anncios, restos

    de jornais, e juntamente com outros fragmentos de cunho unicamente visual, eleva ao status

    de arte o que antes era lixo de massa, eliminando as fronteiras entre imagem e letra, o que na

    obra de Schwitters se transforma num texto nico e inseparvel. Haroldo de Campos dedicou

    ao artista um ensaio no qual observa que os elementos tipogrficos funcionam em suas obras

    como um fator que se resolve gestalticamente no conjunto das partes de um quadro,

    indesligvel delas (1975, p.39).

    Em 1919, numa das experincias com colagnes, aparece como elemento principal do

    trabalho a parte de um anncio com a palavra Merz impressa, fragmento de um nome alemo

    para Banco de Comrcio (Kommerzbank), que fora recortado ao acaso. Octavio Paz (2002, p.

    57) considera que essa palavra pode referir-se tambm a Ausmerzen (resduos), Schmerz

    (pena) e Herz (corao). Schwitters no entanto reintera que seu sinificado s existe dentro de

    suas obras, sem relaes externas, e passa a adotar esse nome em todos os seus processos

    criativos:

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    42/108

    36

    (...) senti necessidade de encontrar um nome genrico para designar essa espcienova. Meus quadros , na verdade, escapavam s antigas classificaes, tais como:expressionismo, cubismo, futurismo ou qualquer outra. Denominei, pois, todos osmeus quadros, considerados como uma espcie, quadros MERZ (...). Mais tarde,estendi essa denominao minha poesia - escrevo poemas desde 1917 - e,

    finalmente, a toda minha atividade correspondente. Eu mesmo, atualmente, mechamo MERZ (apud CAMPOS, 1975, p. 36).

    Assim, apesar de legveis, as palavras na colagem no formam um texto narrativo:

    compem, junto com outros elementos do quadro, um texto puramente visual. A fig. 06 um

    exemplo de pintura Merz; Houve tambm o Merz desenho, as Merz esculturas, as Merz

    publicaes. Schwitters promoviaMerz soirespor toda a Europa, com recitais de poesia e de

    prosa e construiu tambm o Merzbau (edifcio Merz), uma instalao que ocupava vrias

    dependncias de sua casa em Hanover. Em 1927, Schwitters chamava inclusive a si prprio

    deMerz. O objetivo central do artista era remover as fronteiras entre as vrias formas de arte e

    a vida cotidiana e reposicion-las com a noo de uma viso Merz total do mundo, inter-

    relacionando todas as suas partes constituintes.

    O discurso de Schwitters denuncia algumas premissas dadastas (ainda que ele notenha participado formalmente do grupo) que tambm regem a insero de smbolos verbais

    Fig. 06 PinturaMerz 25A , de Kurt Shwitters, 1920.

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    43/108

    37

    em suas obras: a aleatoriedade e o deslocamento. Enquanto na colagem cubista temos apenas

    o deslocamento (o jornal de Picasso foi deslocado para a obra Guitarra e faz parte de um

    novo texto, porm seus grafemas ainda formam palavras que podem ser decodificadas por

    qualquer um que conhea a lngua francesa), Schwitters faz tambm uso da aleatoriedade. As

    letras M, E, R e Z nada significam quando lidas em conjunto, mas a maneira como esto

    dispostas nos indica como a leitura deve ser feita - da esquerda para a direita e numa ordem

    retlinea e horizontal como manda a escrita ocidental. Em suas colagens, Schwitters utiliza,

    pois, um princpio de decomposio, ao escolher fragmentos de palavras que, ao serem

    utilizadas por ele, adquirem um novo significado, tiradas do seu contexto original e colocadas

    em outro contexto (VENEROSO, 2006, p. 24).

    Assim, Schwitters esvazia de sentido os grafemas que insere em suas obras para dar-

    lhes novo significado, que s existe dentro daquele quadro, ou a partir de um quadro (como o

    Merz). Diferentes observadores podem associarMerz com alguma palavra de sua lngua ou de

    alguma outra que domine, com um nome prprio ou com alguma reminiscncia, porm no

    pode haver um consenso sobre o significado da escrita como h, por exemplo, no quadro de

    David (Fig. 04). A ausncia da narrativa no trabalho do alemo fica ainda mais patente

    justamente pela insero de smbolos verbais: enquanto, que desde os egpcios, passando por

    medievais e renascentistas, os artistas sempre usaram as letras para reforar, complementar ou

    apoiar a histria que suas pinturas contavam, na obra de Schwitters as palavras que nada

    significam eliminam aparentemente a possibilidade de l-las e, mais ainda, de entender a que

    se referem.

    pergunta, pode um texto referir o mundo, Ricoeur responde afirmativamente,mas com restries. Na verdade o texto no comporta uma referencia ostensiva - de

    primeiro grau - mas antes uma referencia indireta, de segundo grau. Essareferencialidade interna ao prprio texto, na medida em que a escrita vaidesenvolver, no seu interior todo o ambiente, um mundo, explicitando, elaborandoesse mundo exterior. A escrita transporta-o para dentro da narrativa, de modo a quetodo o texto no perca a sua legibilidade... (BABO, 20027).

    2.4.3 Pinturas abstratas, palavras abstratas e as escrituras de Barthes

    A pintura cubista, bem como a dadasta, a futurista e a surrealista realizam variadas

    experimentaes aplicando letras em suas telas: descontextualizaram fragmentos para criar

    7http://www.eco.ufrj.br/epos/artigos/art_mbabo.htm

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    44/108

    38

    novos textos dentro das pinturas, fazem jogos com a relao entre imagem e verbo e chegam

    a esvaziar o sentido das palavras, apresentando grafemas em seqncia tpica de leitura, mas

    que lidos no formam palavra conhecida. Paul Klee, em obras como Villa R (Fig. 07)

    incorpora letras de tal forma a abolir completamente a hierarquia entre imagem e escrita,

    reafirmando o valor visual dos signos grficos, com um grande R em primeiro plano que

    subverte a tradicional fronteira entre cone e escrita numa pintura.

    Em Vila R...logo se descobre inmeros outros grafemas, ligeiramente menosdeclarados. Toda a composiao tem por estrutura elementar uma articulao dedados escriturais, ou, em outras palavras: o convencional sistema da figura seesboroou integralmente, pois aqui a iluso da presena obtida por um jogo entreletras, uma espcie de jogo em potencial, uma pr-textualidade (PEREIRA, 1976,

    p.11).

    Klee chega ao extremo esvaziamento de um grafema enquanto significante verbal:

    temos um R, alm de O, W, U e L, todos dispostos qual elementos pictricos e de forma a

    no constituir sequer uma slaba; so as letras em estado puro, sem construir nenhuma

    significao verbal possvel alem do prprio nome dessas letras e cujas presenas na tela

    justifica-se exclusivamente por questes visuais. Porm, ainda nesse extremo so grafemas.

    Ser o prprio Klee que, dando continuidade a suas obras hbridas de elementos

    verbais e visuais, transpor o ltimo fio de ligao entre as letras e seu significado externoquando inaugura, paralelamente a artistas como Vassily Kandinsky e Jean Arp, uma nova

    Fig. 07 Villa R , de Paul Klee, 1919

  • 7/23/2019 Priscilla de Paula Pessoa

    45/108

    39

    visualidade: ele utiliza em algumas de suas pinturas abstratas da dcada de 1930 (fig. 08)

    verdadeiros ideogramas assemnticos ou, como denominamos no primeiro captulo,

    escrituras.Este momento de fundamental importncia para a histria da relao entre letras

    e pinturas: o valor visual da escrita tudo o que importa e, ao contrrio dos exemplos

    histricos at o sculo XIX, na arte moderna as trajetrias das letras e das narrativas na

    pintura desconciliam-se, sendo que essa separao tem sua expresso mxima no momento

    em que signos literrios so abstrados a ponto de se tornarem indecodificveis e totalmente

    impossibilitados de narrar: pelo contrrio, eles escondem qualquer tipo de narrativa que

    porventura houvesse - a abstrao do grafema, tornando-o uma escritura.

    O exemplo de Kandinsky ainda mais adequado, como na obra Sucesso(fig. 09).

    Nesta pintura, o artista nos remete aos cadernos com linhas e, principalmente, ao modo

    milenar ocidental de escrever e ler: da esquerda para a direita, de cima para baixo, um

    caractere aps o outro. Seja o leitor um egpcio, latino ou russo, esses pressupostos norteiam

    a