cinzas no café

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“O candomblé sempre me encantou por sua beleza, por seu tesouro de ritos e mitos fascinantes.” Entrevista com Ordep Serra As cores quentes da nossa herança na Moda Negrife “eu não sou uma pessoa acadêmica nem tenho tendências para tal.” Ondjaki As angústias do homem moderno em meio ao caos cotidiano. Conto Baile Black Boombastic – A festa que só tem gente bonita, dos seus black-powers aos carapinhas. Lande Onawale, o renascer de um escritor e o nasci- mento de um eu-enunciador textual negro. Edição 3 Revista artístico-acadêmica. Novembro 2012 As cinzas não caem à toa no café.

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revista cinzas apresenta a 3 edição

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Page 1: Cinzas no Café

“O candomblé sempre me encantou por sua beleza, por seu tesouro de ritos e mitos fascinantes.” Entrevista com Ordep Serra

As cores quentes da nossa herança na Moda Negrife

“eu não sou uma pessoa acadêmica nem tenho

tendências para tal.” Ondjaki

As angústias do homem moderno em meio ao caos cotidiano. Conto

Baile Black Boombastic – A festa que só tem gente bonita, dos seus

black-powers aos carapinhas.Lande Onawale, o renascer de um escritor e o nasci-mento de um eu-enunciador textual negro.

Edição 3 Revista artístico-acadêmica. Novembro 2012

As cinzas não caem à toa no café.

Page 2: Cinzas no Café
Page 3: Cinzas no Café
Page 4: Cinzas no Café

Editor Chefe - Davi Nunes Diretor de edição – Inussa GomesCoordenador de edição – Marcio CostaSupervisor de edição – Pardal do JaguaripeRevisão – Pardal do JaguaripeProjeto Gráfico – Lina MendesDiagramação – Lina Mendes

EXPEDIENTE

Colaboradores:

Textos:

Alan de Barros: poeta, licenciado em filosofia pela UFBA, mestrando em educação e contemporaneidade pela UNEB, atu-almente vem atuando como cineasta na direção geral dos curtas - Abismos de Flores (Fic), Autocontradição Performativa (Fic), Barbárie Sonora (Doc).

Biba Barreto: capoeirista (Grupo Ginga – Mestre Itapoan), graduada em Educação Física (UNIME), graduando em Pedago-gia (UNEB), bolsista CNPq (Iniciação Científica).

Daiane Santos: bacharel em Comunicação Social pela Faculdade Hélio Rocha (2008). Mestranda em Políticas Públicas, Gestão Social do Conhecimento e Desenvolvimento Regional pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – 2012.

Jurandir Rita: nasceu na cidade de Maragogipe. Participou do Caruru dos Sete Poetas (2008) como poeta convidado, colaborou em publicações alternativas (Caos, Poesia com cachaça, etc.) e no Reverso (2007), jornal laboratório do curso de Jornalismo da UFRB.

Paulo Monteiro: 27 anos, solteiro, de Monte Santos/BA. Estagiário no Laboratório de Informática da UNEB- Universidade do Estado da Bahia.

Sid Summers: Estudante de Ciências Contábeis da UNEB, tem dois livros publicados por demanda: “Ratos com Asas” pela editora Clube de Autores e “Prazer, Sid!” pela AgBooks.

Verusca Cristina: 21 anos, graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia.

Ilustrações:

Cajila Caã (Crônica): graduanda em Design pela Universidade do Estado da Bahia;

Daniel Santana (Conto; Pimenta nos olhos; Caiu na Rede é Texto; Chapoetico): ilustrador, graduando em Design pela Esco-la de Belas Artes – UFBA.

Ênio Saldanha (Entornos; Teatro-Entrevista, Conta Fundo): graduando em Design pela Universidade do Estado da Bahia.

Fotografias:

Fernando Maltez (Artigo): 31 anos, diretor de arte. Graduado e profissional em Publicidade e Propaganda. A fotografia sempre foi presente no seu dia-a-dia e hoje, além de hobby, trabalha como fotógrafo profissional. O cotidiano urbano o atrai e é onde tenta se inserir nesse contexto, mostrando o que muitas vezes passa despercebido pelos olhos da rotina.

Lana Mendes (Nu Circuito): fotógrafa, graduanda em Comunicação e Produção Cultural pela Universidade Federal da Bahia.

Michel Assis (Fotografia): fotógrafo, natural de Salvador, mora atualmente em Camaçari. Teve seus trabalhos publicados na revista espanhola Mambo. Dedica boa parte do seu tempo para aprimorar a sua paixão pela arte, para trazer ao públi-co uma maneira especial de ver a essência das coisas.

Su Lopes (Fotografia e Artigo): filha do caos; estudante de Filosofia, por escolha, vocação, ou alguma trama desconheci-da. Bolsista do PIBID- Filosofia UFBA.

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista Artístico Acadêmico Cinza no Café. ano 2, n.3, nov-jan2012- Salvador BA Eduneb. Universidade do Estado da Bahia.TrimestralISSN: 1. Arte — Periódicos. 2. Literatura— Periódicos. 3. Cultura — Periódicos. I. Universidade do Estado da Bahia CDD- 700

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CINZAS NO CAFÉAno 02

Novembro 2012

CONTO (Bosta Sofisticada) - As angústias do homem

moderno em meio ao caos cotidiano. 8 CINZAS INDICA! ((Lande Onawale) – O renascer de um escritor e o nascimento de um eu-enunciador textual negro. 11

CRÔNICA (Nota sobre: Universidade e Apocalipse

Zumbi) 11

ENTREVISTA (Ondjaki) – “eu não sou uma pessoa acadêmi-

ca nem tenho tendências para tal.” 19 CAIU NA REDE É TEXTO (Liberdade de Exposição) – As redes sociais como palanque político. 22

ARTIGO (A relação entre a “baianidade nagô” e o

samba) – ...e o samba nasceu na Bahia. 24

QUE FIGURA(Ordep Serra) – “O candomblé sempre me

encantou por sua beleza, por seu tesouro de ritos e mitos fascinantes.” 30

TEATRO ENTREVISTA Falas reais com ficcionalização teatral: No pal-co das Cinzas Ordep Serra, Ondjaki e Lande. 32

ENTORNOS(Narandiba em negrito) – Do cheiro

de quilombo à constituição periférica contemporânea. 35

PIMENTA NOS OLHOS (Na boa, véi! Isso é ranço da miséria ideológica) – A inserção do negro nos espaços de poder da sociedade. 40

NU CIRCUITO (Moda Negrife) – As cores quentes da nossa herança. 27

FOTOGRAFIA (olhares sobre o cotidiano afro-baiano) 7 (Su Lopes) 18 (Michel Assis)

CHÁPOÉTICO Poesias urbanas e concretas. 38

CATA(E)VENTOS (Baile Black Boombastic) – A festa que só tem gente bonita, dos seus black-powers

aos carapinhas. 43

Editorial

Um modelar afro-baiano dá o tom das palavras tracejadas no contínuo azeviche das páginas arroladas nesta terceira edição da revista Cinzas no café. Um eu enunciador que se quer e se manifesta como um ruflar de tambor negro se apresenta para o leitor com toda magia e ginga textual. Os ensaios, artigos, contos, entre-vistas, crônicas, poesias, ilustrações e fotografias trazem o sol que queima a criar ficções, expressões sen-síveis de arte e ciência, que brilham como ônix imperiosa, emergindo outra literatura, menos pálida, sem as amarras eurocêntricas de expressão humana secularmente estabelecidas.

DAVI NUNESEDITOR CHEFE

FOTOGRAFIA (olhares sobre o cotidiano afro-baiano) 37 (Michel Assis)

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Apresentação

A Revista Cinzas no Café surge da necessidade de uma expressão ar-tístico-acadêmica dentro do ambiente universitário, buscando dessa forma ser uma nova possibilidade de manifestação estudantil. A revis-ta emerge de maneira original, propondo um espaço de confluência entre as expressões artísticas e científicas, a qual os estudantes terão a possibilidade de publicar os seus trabalhos. Na verdade, Cinzas no Café busca equilibrar essas duas formas de criação do conhecimento, ambas importantes para construção do caráter e/ou da personalida-de desta revista. Logo, surge num momento em que o corpo discente universitário se encontra ansioso por um veículo que o possibilite a ser sujeitos do seu próprio processo criativo.

Page 7: Cinzas no Café

[email protected] - facebook.com/revistacinzasnocafe

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Me chamo Will, Will Ca-gliostro. Estou numa fi la longa, atendimento mé-dico público, por que hoje não estou disposto a tra-balhar. Tenho um subem-prego asqueroso na pe-riferia. Que se fodam os que dependem de mim. Vão se passar horas até que eu seja atendido. Me-recida folga extra... Com sorte, se minha interpre-tação teatral de dor for bem sucedida, eu consi-ga mais uns dias longe do meu algoz diário, calvário que me mantêm preca-riamente vivo. Sou insis-tente como todo miserá-vel.

Chegando minha vez... Entrego documentos e assino papeis. Sento na rota semicircular de um dos ventiladores de pa-rede para ser alcançado com um frequencia re-gular das suas rajadas mornas de vento que amenizam a sensação do mormaço. Fecho os olhos acomodado o melhor possível na cadeira de es-tofamento exposto. Não espirro. Felizmente a ca-deira é inabitável até para os ácaros.

O ambiente é hostil não somente para os ácaros. Entretanto, com o tem-po aprendemos a ser du-ros por necessidade. Tal-vez por isso, mais do que pela louca racionalidade humana, nos tornamos a espécie dominante do planeta. Desenvolvemos singularmente a capa-cidade de não ouvir e da indiferença, uma coura-ça de calos que envolvem o corpo e que se projeta para além dele, transcen-dendo limites interiores e exteriores. Somos de-formados... Me conforto no prazer gratuito dos boquetes de minha putas imaginárias.

Nunca gozo com boque-tes. Nem na minha ima-ginação. Já fui agraciado com as caricias bucais de muito alta qualidade, boquetes performáticos, boquetes profi ssionais do qual já me deram a medi-da exata da minha caceta através da profundidade alcançada na garganta. Obstinado em meus so-nhos, não desistiria tão facilmente. Tenho fetiche por lésbicas. Se virgens, melhor. Mas elas nun-

ca aceitam por nenhu-ma parte do meu corpo na boca. Principalmente meus bagos ou pau. Não se eu não usar a força.

Caralho, não se passaram nem 30 minutos. Tic, tac! Tic, tac! Tic, tac! Os pon-teiros do relógio se mo-vem ritmados embalados pelo tédio coletivo. Bati-das cardíacas precisas em um mecanismo morto. Na sala de espera abafada entra uma mulher. Ela é alta demais e isso não me atrai, mas estou pronto para uma exceção mais uma vez. Sua anca larga delineada por sua calça excessivamente apertada desperta os sentidos dos homens enclausurados voluntariamente no vão frontal da clinica. Longa espera, tão ampla e longa quanto o desespero hu-mano. Fichas esgotadas, não há mais vagas para o atendimento. Todos la-mentamos sua partida pois compartilhávamos a certeza de que ela era o doce saber da cura, o remédio para a humani-dade.

Recordo-me dos meus

Bosta Sofi sticadaPor Sidney Fortes Summers

CONTO

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amigos, pessoas próxi-mas e presentes em mi-nha vida. Uma ex-mulher desequilibrada, mais lou-ca que o comum, ofer-tou-me o aluguel de um apartamento a minha escolha para que eu não tivesse mais contato com eles. Eu poderia aceitar a proposta e fazer uma festa de boas vindas com eles para ela. Entretan-to, eu estaria pondo em risco a vida deles. Minha morte era certa... Inútil pensar na morte agora.

Estava me tornando gra-ve, um falso doente tão enfermo quanto o doente imaginário de Molliere. A espera deixa todos apa-rentemente mais pensa-tivos. Circunspeção for-çada. Fruição estética do silêncio.

O silêncio ambiente é quebrado pelos ruídos cacofônicos de um bêba-do disparatado que discu-te política solitariamente. Ele gestilucava, prague-java e gritava para seu

adversário imaginário, o rival vencedor que sequer existia. Amigo íntimo do fracasso, o ébrio era seu companheiro insepará-vel. Focando a atenção nas conversas alheias ouvi alguém comentar a prisão do chinês comu-nista que fabricava coxi-nhas com carne huma-na, outro culpava o novo hormônio do peixe pelo crescimento do número de homossexuais no seu bairro, ele afirmava com absoluta certeza que o tal

CONTO

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hormônio Omega 3 era uma criação dos ateus contra a igreja. Era uma espera longa que mal ha-via começado e que já era insuportável para todos, uma tortura psicológica, o inferno sartriano, um antídoto contra falsos necessitados. Ao mesmo tempo tudo era perfeito. A beleza do universo está na falta de sentido de to-dos seus componentes, no caos inerente a todas as coisas. Desorganiza-ção entrópica que tende incondicionalmente ao inanimado.

Histórias absurdas de uma realidade paralela... Ao meu lado um homem torto, Quasimodo pós--moderno, me diz que es-tava ali por conta de mais uma surra exagerada e sem motivo que levara da policia. Contou-me da primeira vez que ganha-ra cicatrizes por contar a verdade, respondeu à pergunta do policial “o que tem nos bolsos?”. “Duas cebolas e um pé de coentro”. Ele havia aca-bado de voltar da feira livre vizinha. Dessa vez perguntaram onde fi ca-va a boca, ele respondeu que fi cava logo abaixo do nariz. O homem mal po-dia fi car de pé. Nada res-pondi e ele permaneceu imóvel e sorridente, into-cado pela náusea. Até que ponto aquilo era mentira ou verdade, não sei.

Por mim, tanto faz... Pos-

sibilidades. Em algum lugar do mundo o men-dicante revoltado exige óbolos com a certeza que seus emolumentos nunca devem ser fruto de qual-quer tipo de esforço. Ele não percebe o quão é ri-dículo ou vergonhoso. Ele não somente aceita tal situação caricata como ainda se nega a engen-drar mudanças. A minha glande é rosa e as veias do meu pau são calibro-sas e pulsantes. Conspí-cuos pelos pubianos ful-vos. Não me atrase em meus caminhos. Foda-se.

Existem doentes mentais das mais diversas espé-cies e discutir com eles é sempre perda de tempo. Os idiotas se multiplicam pelo mundo e o mais sau-dável a fazer é evitá-los c todas as forças. Mais cedo ouvi a história de um homem que não se satisfazia sexualmente com mulheres ou outro homem que não ele pró-prio. Não era um narcisis-ta. Era sensível apenas ao toque da sua mão direi-ta, nem com a esquerda conseguia muita coisa. No banheiro coletivo do seu trabalho ele era visto diariamente nas primei-ras horas da manhã, pés apontando para o céu, enquanto, encostado na parede abaixo do chuvei-ro, trabalhava duro em si mesmo, no seu membro enrijecido. Em completu-de, um homem auto-sufi -ciente.

Em outro lugar do mundo, sei que existe gente como eu, oriunda do mesmo planeta, que compreen-de o que está dito e o que não está dito em cada fragmento de discurso atrofi ado ou gesto fei-to ou ainda não feito por mim. Irmã astral incestu-osa, cúmplice em pecados secretos. Somos abso-luto amor intenso e au-todestrutivo, absolvidos amalgamados, anulados e faiscantes em diferen-ças semelhantes, quei-mamos e ardemos forte em alguma manifestação de enérgia transcenden-tal e pura. Força que nos alimenta para além dos alimentos e nos move em sintonia por bares, cafés, cinemas e estradas. In-fi nitas convergências no espaço infi nito. Universo de super-corda.

Meu nome é Will, sou o Will Cagliostro e isso não signifi ca ou vale nada. Sou mais um factotvm, grânulo insignifi cante, folha seca que vagueia in-certa pelo espaço, expul-so do lar por ventanias, um aborto mal sucedido, minha morada é a tem-pestade... Posso ser tudo, qualquer bosta sofi stica-da, mas permaneço aqui, mofando nessa sala de espera.

CONTO

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Por e-mail deu-se a en-trevista permeada de um lirismo, de uma eu enunciador que se quer e se manifesta negro, da Cinzas no Café com o bancário, graduado em história, poeta, contista, compositor e educador baiano, Lande Onawale. Lande teve seus primei-ros poemas publicados no início da década de 90, no Jornal Nacional do Mo-vimento Negro Unifi cado (MNU). Notabilizou-se pelos brilhantes poemas e contos publicados em diversas ontologias: Qui-lombos de palavras (BA), Terras de Palavras(RJ) Black Notebooks (EUA), Cadernos Negros (SP) en-tre outras. As suas publi-cações individuais são os livros: O Vento (poemas), Kalunga (poemas) e Sete:

diásporas íntimas (con-tos).

Lande, a infância, para grande parte dos escrito-res, é um berço de inspi-ração. Na sua infância em Salvador se encontra os elementos que o constru-íram como escritor?

Penso que sim, mas como algo inevitável, uma ins-piração não exatamente consciente. Já se disse que a pessoa é, aos 80 anos, o que já era aos 8... Sendo uma fase onde se consolidam aspectos fundamentais da nossa afetividade e cognição, fatalmente é um mina-douro de emoções pra toda vida. Por outro lado, há também uma atitude, essa, sim, consciente de resgatar situações que

contenham uma dose de poesia que eu julgue ca-paz de tocar, instigar, es-timular o leitor presente.

Sabemos que a branqui-tude, o embranquecime-to difi cultam aos negros o empoderamento de uma identidade afro-brasilei-ra, mas no caso da sua literatura... quando foi que surgiu, em seu texto, um eu enunciador que se quer negro ou ele sempre existiu?

Num país racista como o Brasil, o desenvolvimento de uma Consciência Ne-gra fi gura-se como um renascimento. Mal saido da adolescência, com 19, 20 anos a partir da minha aproximação do Movi-mento Negro, é que meu olhar sobre uma boa par-

lande OnawalePor Davi Nunes

CINZAS INDICA!

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te da existência humana começa a mudar – e a literatura, consequente-mente, acompanha essa mudança.

Como foi o processo de mudança do nome de origem colonialista para a apropriação identitária do nome africano, consti-tuindo a família Onawale? Foi algo, digamos, natu-ral pra mim, óbvio. Uma necessidade de ir mais fundo - além do pré-no-me - no questionamento de uma herança mais que colonialista, escravocra-ta.

Quantas áfricas cabem em seu coração? A míti-ca, a moderna ou ela toda em sua grandiosidade cultural, linguística e con-tinental?

Repito o que já disse a so-cióloga Vilma Reis: que-remos todas as Áfricas, inclusive a mítica!

A elite brasileira é tão ra-cista e atrasada quanto um republicano america-no de cem anos; sua obra literária, além de ser uma expressão estética, surge para a superação desse racismo?

A minha necessidade de expressão literária sur-ge com objetivos menos pretenciosos... Em algum momento – e sabe-se lá por que – veio essa von-tade de escrever sobre

meus próprios sentimen-tos, sobre as idiossincra-sias do mundo e do ser humano. Depois, quando ‘renasço’, é que passo a achar que a literatura que faço pode ajudar no com-bate ao racismo e ao pre-conceito racial.

Como se dá a relação de sobrevivência e criação literária do escritor ne-gro?

A busca do ganha-pão imponderável difi culta o aprofundamento em gêneros mais extensos como o romance, que exi-

CINZAS INDICA!

Sem dúvida, a labuta diária é

um difi cultador ao processo cria-tivo de algo mais

complexo

ge maior tempo disponí-vel à escrita?

Sem dúvida, a labuta di-ária é um difi cultador ao processo criativo de algo mais complexo, como um romance, mas eu acre-dito muito na disciplina, como meio de solucio-nar ou amenizar o drama dessa equação – embora eu seja um indisciplina-do...Outro dia, inclusive, ouvi Cuti dizendo que, ao menos em respeito à vida conturbada de Lima Barreto, devíamos nos constranger ao fi car re-clamando de certas con-

dições inadequadas para a criação. Sete: diásporas íntimas seu livro de contos, que desponta poderosos per-sonagens e signos afro--brasileiros, através de uma escrita enxuta e madura, foi inspirado na divindade afro-brasileira Esù, como foi o processo de escrita e de reverência ao orixá?

Em verdade, ainda não fi z um livro conceitual, digo, criado a partir de um conceito. ‘O Vento’, “Kalunga...’, ‘Sete...” to-dos foram ‘montados’ e, talvez, haja algum mérito na edição, pois busquei uma coesão entre forma e conteúdo. Assim, não houve uma inspiração ‘di-reta’ em iNzila/Exú, mas privilegiei textos onde estivessem presentes aspectos essenciais des-se iNkisi, dessa energia. Sete (ou Se7e rsrs), aqui, não é um numeral, mas um conceito – talvez até um substantivo...próprio.

A torre de marfi m dos clássicos já lhe seduziu, ou os tambores poéti-cos dos quilombos foram sempre os instrumentos da sua inspiração?

Já, sim. Por sedução, ou por imposição. Somos quase todos um tanto corrompidos pelo racis-mo, pelo eurocentrismo, né? A pesquisa da Profª Drª Dalcastagné, consta-ta que quase 100% dos

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CINZAS INDICA!

autores e personagens da literatura brasileira con-temporânea são brancos! Se pensarmos que essa realidade é reproduzida pelos meios de manuten-ção da cultura e da edu-cação – escola, univer-sidade, teatro, ciname, televisão...pô, quase que não há como escapar...mas há o tambor, né? “Tem um tambor, tem um tambor, tem um tambor...tem um tambor, dentro do peito tem um tambor” grita Carlos Assumpção. Aí você entende quando falo em renascimento. Fui aprender já grande a usar a caneta como ‘agdavi’... Qual a importância dos cadernos negros para a li-teratura brasileira e para você já que tem trabalhos publicados neles?

O Cadernos é uma das antologias regulares mais longevas das Américas – senão a mais. Só por isso, já é revestida de enorme signifi cado para a litera-tura brasileira. Contudo, o Quilombhoje com o Ca-dernos Negros e outras iniciativas trazem para a cena literária nacional, essa voz negra silenciada, de que nos fala Dalcas-tagné. De algum modo, penso que nosso texto vem (inter)ferindo a idéia hegemônica (e eurocên-trica) do que se concebe secularmente como lite-ratura, como ‘boa’ lite-ratura. Para mim, a pu-blicação foi crucial por, pelo menos, duas razões:

onde primeiro publiquei, em livro, e onde come-ço a lidar pra valer com a crítica – o processo de seleção dos textos previa que autores, teóricos e leitores, pseudoidetifi ca-dos, avaliariam todos os textos. O mercado editorial para os escritores negros e te-mas afro-brasileiros ain-da é muito fechado?

O mercado editorial para autores e temas proscri-tos é muito fechado, e nós, negros, bem como nossa vida fazemos par-te da “lista branca”, dos assuntos tabus – sobre-tudo quando enuciados

Somos quase todos um tanto

corrompidos pelo racismo, pelo eu-rocentrismo, né?

por nós mesmos. Eviden-temente, a sociedade se transforma, a luta pelo reconhecimento da nos-sa humanidade avança e, fatalmente, vemos luzes no que se pensava ser o fi m do túnel. Eu tenho, ainda, uma confi ança muito grande no poder da literatura de tocar as pessoas, de seduzí-las, encantá-las, cativa-las dentro de um desejo de liberdade de imaginação e expressão.

Por fi m, que lição você deixa para os escritores

que se iniciam na escrita de uma literatura mais ensolarada, buscando expressar os sentimen-tos azeviches presos na alma?

Não chamaria de lição, mas de confi ssão: desco-bri que o grande sol vai dentro de cada um de nós. Não devemos temê--lo, porque o medo é, como sabemos, o avesso da realização. O racismo nos interdita a nós mes-mos e, como consequ-ência, fi camos proibidos, desautorizados a emitir uma voz que soe autôno-ma, a proferir nossas ver-dades sobre o que quer que seja. Nesse sentido, ser um escritor ou escri-tora é o que a sociedade racista menos espera de um(a) negro(a), escrever seria quase nosso avesso, pois que mais fazemos nós fi ccionistas senão in-ventar mundos e verda-des? Agora imagine se dissermos que o mundo é negro, então...Ah, não! Essa não! Assim já é de-mais! Rsrs Eu não temo escrever sobre mim/nós, sobre “feridas que ain-da estão abertas e sendo mexidas”, como já dis-se a escritora Toni Mor-rison... Ao contrário do que dizem alguns autores e críticos, a minha luta não me limita, a minha luta me liberta! Dentro de cada peito negro está toda a humanidade, den-tro de cada suspiro, cada riso, cada grito.

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Nota sobre: Universidade e Apocalipse Zumbi∞

Precisamente hoje, nes-se dia, em um domingo amanhecido fi quei na dú-vida se acordei com inspi-ração ou a inspiração me acordou. Na realidade es-sas duas ideias são gosto-sas de pensar. Nesse mo-mento me encontro “no aqui e no agora” escre-vendo essa “nota” algu-mas linhas para lembrar/recordar sobre o que é viver na Universidade e como ela pode ser pare-cida com um Apocalipse Zumbi (ApZ). Já vi/ouvi por aí, que existem mui-tas possibilidades (em um cenário na literatura apocalíptica zumbi – “ou não”) de se tornar um zumbi: Seja por vírus (O famoso “T-vírus” de Resi-dent Evil), seja por radia-ção (ah... não me lembro de nenhum exemplo por agora) seja por infecção (quando somos mordi-dos, arranhados ou acon-tecimentos parecidos) seja ouvindo “Thriller” de Michael Jackson (É uma brincadeira nesse caso

[?]), mas também dizem “as más línguas” (?), que há uma possibilidade de virar Zumbi ingressando na Universidade.

Quanto mais caminhar-mos em direção a “ilu-minação” da academia (titulação) mais as carac-terísticas de Zumbis apa-recem: Ficar acordado durante a noite terminan-do aquele artigo cujo títu-lo é: “A História sem fi m” - É um passo muito im-portante para entranhar essa nova maneira de ser zumbifi cada. Quem sabe o Ministério da Saúde em breve lançará a campa-nha: “O MINISTÉRIO DA SAÚDE ADVERTE: Beber café todos os minutos do dia poderá provocar sintomas de zumbifi ca-ção e seus males serão crônicos degenerativos” - ou quem sabe fi car tão, mais tão alienado/a em “produzir” (não importa o compromisso e a qua-lidade com a Educação e as pessoas) para alimen-

tar o monstro maior da academia (e seus auto-res/professores/percus-sores), talvez esse seja o pior tipo de infecção, a mais avassaladora e que se propaga em uma proporção grande e com rapidez absurda. No en-tanto, não é sobre “virar Zumbi” que quero des-crever, e sim a respeito de como a sobrevivência a essa infecção é muito parecida com o caminhar na graduação (equivalem também aos mestrados, doutores...). As histórias sobre esse acontecimen-to zumbi (muitas pes-soas “torcem” para isso acontecer, provavelmen-te seriam os primeiros a morrerem) são sempre variadas, no entanto, ge-ralmente iniciam-se com uma gigantesca confusão e/ou um acidente catas-trófi co, o personagem principal (insira seu nome aqui: ________________) fi ca totalmente desnor-teado, ou pode está desa-cordado e despertar em

CRÔNICA

“você tem pernas perfeitas, não é? Levante, ande e siga em frente” (Edward Elric)

Por Biba Barreto

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um ambiente novo ou por mudar radicalmente e ra-pidamente (quase de ma-neira imediata) seu modo de agir/pensar.

Os personagens se en-contram em um cenário totalmente novo, estra-nho aos seus olhos, que fazem ressoar em sua alma. Reparem se esse início não parece com o ingressar em uma Uni-versidade: (...) E fi nalmen-te passamos no vestibu-lar após um ano (ou bem mais) de estudos (des)ne-cessários para nossa vida, acordamos cedo e anima-dos para irmos ao nosso primeiro dia de aula, afi -nal o “Universo”, a Uni-versidade nos aguarda. Para nossa primeira sur-presa-estranha o cená-rio é novo (igual a ApZ), por mais que existam ca-deiras, mesas e quadros quase idênticos aos anos escolares, o ar desse novo ambiente é estranho, o caminho para chegar é diferente, começamos a nos sentir perdidos (mes-mo que por alguns estan-tes). No ApZ a prioridade é encontrar pessoas para tentar entender o que está ocorrendo e se pos-sível encontrar pessoas, que conhecemos. No nos-so primeiro dia, tentamos encontrar alguém para nos direcionar, nos mos-trar as coisas, realmente nos ajudar ou só conver-sar (não é por acaso que somos chamados de ca-louros – “recrutas” -).

Após alguns dias o per-sonagem, que vive na destruição zumbi, já re-conhece algumas difi cul-dades e imagina/realiza o que terá que fazer para SOBREVIVER – essa é a sua prioridade – Elabo-rar estratégias, recolher recursos (alimentos, re-médios, armas), reunir o maior número de pesso-as para continuar supe-rando as mais diversas eventualidades. Com o passar das Unidades fa-zemos as mesmas coisas, já sabemos as estratégias dos professores para nos “morderem” e elabora-mos as nossas, armaze-nemos a maior quanti-dade de café possível em nossa dispensa, e já cria-mos a nossa “panelinha” de trabalhos (Já sabemos o que cada um faz e NÃO FAZ na equipe) e continu-amos a estudar. Contra os Zumbis tudo é válido, inclusive machucar, ferir ou até mesmo matar um “companheiro” ou “com-panheira” nossa para continuarmos vivos, além do mais os personagens precisam prestar muita atenção e possuir certos cuidados com quem irão se alinhar para comparti-lhar suas ideias, seus re-cursos e a sua vida. E ago-ra pensem: Quem nunca tomou uma verdadeira rasteira em algum mo-mento da graduação ou na pós? Por algum colega que apostaríamos tudo e na hora que realmente

precisamos do apoio dele, o mesmo nos “deixa mor-rer” ou “mata”? Por vezes dói, mas precisamos con-tinuar caminhando entre as disciplinas.

Existe um tipo de infec-ção, vírus, doença (como queiram chamar) na Uni-versidade que surge com os movimentos (indepen-dente qual seja). Alguns dos seus companheiros de grupo “se contami-nam” com alguns proje-tos que nem eles sabem quais são! Simplesmente e cegamente começam a disseminar “suas ideias” pelos quatros ventos dos corredores. Há também quem se venda em tro-ca de proteção, um sta-tus mais seguro entre os demais “sobreviventes”, qualquer artifício é válido (mentir, roubar, trapace-ar); Igualmente como se vive no ApZ: Se necessá-rio muitos permitem que injetem o “próprio vírus”, que desumaniza as pes-soas e as transformam em caricaturas que nunca foram. Na Universidade a brutalidade é silenciosa e astuciosa, às vezes quan-do nos dando conta – “O verdadeiro caindo em si” – já estamos encurrala-dos em um canto, mas não devemos nos entre-gar facilmente (nunca) aos “mortos-vivos”.

No entanto, a maior dor é a da perda... Um grupo que começa com 40/50 estudantes (ou sobrevi-

CRÔNICA

Page 17: Cinzas no Café

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REFERÊNCIAS:

Anime Fullmetal Alchemist: Bro-

therhood – 3º Episódio

Histórias de vida – E de todos nós

Histórias de Zumbis – Jogos, HQ’s,

Filmes.

ventes) muitos são deixa-dos ao longo do caminho, muitos são sacrifi cados, muitos param não por-que querem, mas por precisarem. Seja porque necessitarem trabalhar para sustentar a famí-lia, porque não possuem condições de continuar indo, seja porque viraram pais ou mães, sejam pelas mais diversas responsa-bilidades/adversidades (muitos são os resultados de uma equação injusta do “nosso” sistema, no qual hoje somos subme-tidos). É difícil ver essas pessoas morrerem no

passar das disciplinas, nas mazelas do caminho dos semestres, nos sen-timos impotentes, mas precisamos continuar ca-minhando... Sabem por que? Pois, AINDA não po-demos ajudar o sufi ciente para que esses elementos (evasão e perdas das mais distintas) aconteçam e se pararmos também nada terá valido esses sacrifí-cios dos nossos amigos/amigas (até mesmo dos contaminados que ain-da continuam perambu-lando entre as salas da Universidade) Todos nós carregamos em nossa es-

sência e alma a esperan-ça das mudanças e da hu-manidade (sem exceção). Aos que sobreviveram e sobrevivem ao Apocalip-se Zumbi da Universida-de não parem! Levantem e andem! E se for conta-minar alguém, contamine com as ações e esperan-ças de um mundo melhor.

CRÔNICA

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Numa dessas tentativas fortuitas, no facebook, A Cinzas no café conseguiu a entrevista com o escri-tor Angolano, nascido em Luanda, Ndalu de Almei-da, mais conhecido como Ondjaki. Seus livros vêm sendo publicados em vá-rias línguas, ganhando crescentes premiações, mas notadamente, no Brasil, o prêmio Jabuti,

em 2008, com o Romance AvóDezanove e o segredo do soviético. Sua escrita

perpassa por vários gê-neros literários: poesia,

contos, teatro e romance. Além disso, suas prosas e estórias são costuradas por um lirismo vibrante, constituindo uma escrita com grande beleza poé-tica. Ondjaki o passado, as lembranças da sua infân-cia em Luanda lhe serve como um local poético que lhe deixa sensível à

Por Davi Nunes

Ondjaki

ENTREVISTA

aprender a ler os medos, aprender a ler as armadilhas do Ego. E ler.

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escrita?

Penso que o passado é um desses lugares ao qual poderemos ser sensíveis. Certamente existem ou-tros, e são diferentes de escritor para escritor. O passado são vários luga-res, várias portas e jane-las, membros infi nitos de um labirinto que infl uen-cia a escrita, os afectos, as decisões literárias e até o futuro.

Quando foi que você per-cebeu que era bom em criar, imaginar histórias e colocá-las no código lin-guístico, transformá-las em literaturas?

Não sei dizer ao certo... Não acho que seja fácil dar um tempo ou lugar exacto para o momento em que se decide come-çar a escrever. Até por-que a escrita, às vezes, é muito anterior ao acto de registrar coisas em pa-pel. A dada altura, enten-di que fazia sentido, para mim, além dos livros, ler também a realidade. Absorvê-la para depois a devolver em escrita, em poesia, em memória in-ventada. Mas tudo isto, na realidade, são discur-sos mais ou menos racio-nais que fazemos sobre algo que talvez não seja tão racional.

As estórias advindas da oralidade em Luanda moldam a construção das

suas histórias fi ccionais?

Não sei. Não acho que trabalhe com estórias “advindas da oralidade em Luanda”; acho que há certas estórias que comportam, devido ao seu conteúdo ou estilo, elementos da oralidade urbana de Luanda. Ou de Angola. O mais interes-sante é conseguir perder a fronteira entre a his-tória e as estórias. Entre uma estória e pedaços da História. Isso é bonito em Angola: nem sempre

ENTREVISTA

Não acho que seja fácil dar um tempo ou lugar exacto para o momento em que se decide

começar a escrever.

a fi cção é o outro lado da realidade. Muitas vezes convivem, irmanam-se, ultrapassam-se todos os dias, ao ponto de perder-mos a noção de qual se-ria qual, ou qual é o nosso papel neste “palco hu-mano”. No fundo, somos todos um pouco actores. Até Deus.

Você se formou em socio-logia, em Portugal, a vida acadêmica ajudou na sua formação de escritor, ou os trabalhos acadêmicos retardavam o seu proces-so de escrita literária?

Penso que a vida acadê-mica me ajudou na mi-nha vida pessoal. Sempre se aprende um pouco na universidade. E sempre se cresce um pouco, com os livros que se lê e as pes-soas com quem nos cru-zamos, sejam alunos ou professores. Penso, sin-ceramente, que foi isso que andei a fazer duran-te anos na universidade, seja na licenciatura, seja no doutoramento: andei a cruzar-me com um gru-po interessante de pesso-as e de livros. Mas eu não sou uma pessoa acadê-mica nem tenho tendên-cias para tal. Gosto de dar aulas, mas já no campo da escrita inventiva, da li-teratura comentada pela óptica da minha sensibi-lidade. Isto é: sou mais a pessoa do pátio da uni-versidade, com cigarros e conversa, do que aquele aluno da sala de aula...

Quais são os escritores que lhe infl uenciaram, tanto os africanos quan-tos os Brasileiros e qual o da sua estima e admira-ção na atualidade?

São diversos. Sobretudo são livros, não são os au-tores. Todo o livro que me faz sonhar e ou crescer, é um bom livro para mim. Estimo esses autores, que me desafi am, que me fazem repensar o mundo ou a minha pessoa.

Agualusa afi rmou que é

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ENTREVISTA

na maneira como o texto respira que se percebe, se ele vai ser um conto, um romance ou uma po-esia. Como você identifica isso na construção de seu texto?Isso vai-se revelando. Ou abruptamente, logo de início, ou logo de segui-da. O texto e as palavras também falam conosco, também nos ajudam a seguir um caminho ou se recusam a colaborar com ele. O tempo vai dando mais treino e sensibilida-de. E vamos ficando ami-gos, nós e os textos, nós e as palavras. Ou amigos ou amante ou inimigos. To-das essas “tensões” ser-vem para escrever...

O sentimento de nostal-gia, de saudade contri-buem para você entrar em seu estado de inspira-ção e escrita?

Às vezes, sim. Essa porta que e abre para a escri-ta, esse momento que às vezes não conseguimos explicar, feliz ou infeliz-mente, continua a ser um mistério para mim. O “pa-ratrasmente”, como diria o grande Odorico, é sem-pre um lugar de mistério, como um templo talvez sagrado onde fosse muito delicado entrar. Um lugar que às vezes nos recebe de braços abertos e, ou-tras, com cuspidelas de fogo. É preciso estar pre-parado para o abraço ou para o fogo. Respeitando a literatura, sendo coe-rente com a arte de es-crever, vamos aprenden-do a lidar com o “templo”. E com o tempo.

O povo angolano se as-semelha com o brasileiro na maneira de encarar os

problemas da vida sem-pre com humor, tirando alegria de onde só pode-ria tirar tristeza?

Sim. Ou talvez seja o povo brasileiro que se asseme-lha ao angolano...

Por fim, o que você acon-selharia para os que se iniciam na escrita literá-ria?

Ler. Cruzar o pensamen-to com o sentir, exercitar, viver, aprender a ler os medos, aprender a ler as armadilhas do Ego. E ler. E depois esquecer tudo isto, e recomeçar do va-zio. E voltar a ler. É um caminho cíclico de apren-dizagens que não tem fim. No fim, será bom se formos abençoados com o dom de alguma humil-dade. Mas é raro. Muito raro.

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Devo iniciar esta edição do Caiu na rede é tex-to agradecendo a todos aqueles que fizeram uso deliberado de seus perfis em redes sociais para a ampliação da campanha política de inúmeros can-didatos à cargos públicos. Vocês, junto aos que se posicionaram contra esse ato, proporcionaram va-liosos momentos de en-tretenimento a mim, e a tantos outros, com suas discussões acaloradas e pausadamente argumen-tadas. Durante esses meses de campanha, houve aque-les que defenderam o não-uso das redes sociais para fins políticos, com base de que este não se-ria o lugar para se discu-tir essas questões, mas o massacre daqueles que usaram, e abusaram, de suas atualizações para promover, ou despromo-ver, algum indivíduo, gru-po ou partido político, foi inevitável. Fujo, aqui, ao árduo labor de tentar contextualizar um pensamento que pos-sa ser base de algum ar-gumento, capaz de julgar se a atitude de utilizar o meio social digital em prol de potencializar al-guma campanha política, deve ser vista como algo repreensível, ou não. Digo repreensível, pois foi com tal atitude que nos depa-

ramos em nossos cons-tantes passeios lá pelas bandas largas do ambien-te sócio digital, neste pe-ríodo de efervescência política. Aqueles que não queriam se deparar, em suas atualizações, com nada relacionado à políti-

ca, agiam como a pesada mão da justiça, conde-nando quem expunha sua visão/opinião/obsessão políticas. Daí a pergunta: devemos mesmo sublimar a liber-dade de expressão/expo-sição em um meio digital

Liberdade de ExposiçãoPor Marcio Costa

CAIU NA REDE É TEXTO

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público? Quem ali está, fica suscetível a se depa-rar com os mais diversos tipos de visões e opiniões, uma vez que não se pode controlar todo o conte-údo que se encontra na internet, muito mais em uma rede social. São os

próprios usuários quem escolhem aqueles que serão seus amiguinhos nesse mundo tecnodigi-tal, contudo, parece que aqueles perfis que preen-chem sua lista de conta-tos estão ali com o fardo do indesejado e devem

agradecer o favor de não serem bloqueados. Por que, ao invés de escolher a opção (possível e muito simples) de não receber mais atualizações de al-gum usuário, estes, que acham que o conteúdo deve adequar-se aos seus gostos pessoais, prefe-rem dividir com sua lista de amigos, grupos, pági-nas, etc., sua insatisfação com alguma publicação que não os agrada? É essa liberdade que gera inúmeras discussões acerca de qual seria a for-ma “correta” de se utili-zar as redes sociais. Mas, correta segundo quem, ou para quem? Estamos, a todo o momento, afir-mando a nossa necessi-dade de sermos vistos e ouvidos em nossos meios sociais, então, partindo dessa precisão, trans-plantamos para a nossa world wide web o anseio de uma visualização mas-siva.Como antes disse, ao acei-tarmos o termo de uti-lização (o qual ninguém lê) de alguma rede social, ficamos suscetíveis à su-perexposição alheia, seja ela sobre questões políti-cas ou sobre o funciona-mento da flora intestinal de alguém. Só temos que ter em mente que, utili-zando-me da sabedoria de Randy Newman,“it’s a jungle out there”.

CAIU NA REDE É TEXTO

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Os negros africanos “tra-zidos” ao Brasil vieram de Angola, Congo, Moçambi-que, Nigéria e antigo Da-omé, atual Benin. Os Ban-tos foram os primeiros a chegarem aos trópicos brasileiros, e vieram da Costa Ocidental africa-na, ao norte do Equador, o chamado ciclo da Gui-né, que correspondem a Angola e Congo, também chamada de África Cen-tral. O continente africa-no representa uma reali-dade bastante complexa e multifacetada, por isso, para explicar o signifi-cado atribuído ao termo Banto, Pessoa de Castro (2010) afirma: “Banto é

um termo criado no final do século XIX pelo lin-guístico Bleek, e não se caracteriza em língua ou etnia, mas sim uma de-nominação para o grupo de 500 línguas faladas na África Subequatorial”.

Autores clássicos de obras que buscam a iden-tidade nacional do povo brasileiro com relação ao contingente negro afri-cano sobre a nossa cul-tura e sociedade, como Nina Rodrigues e Gilberto Freyre, se caracterizam como “[...] defensores da pureza nagô em detri-mento das manifestações mistas dos bantos [...]”,

como nos apresenta Oli-veira (2007, p. 26). O au-tor ainda afirma que:[...] a valorização da iden-tidade jêjê-nagô foi cria-da em detrimento de uma identidade banto, posto que a primeira foi tomada como a “legítima” e “au-têntica” identidade ne-gra, uma vez que manti-nha-se mais “pura” frente aos valores civilizatórios africanos, enquanto que a identidade dos bantos fi-cou relegada ao discurso de inferioridade étnica, posto que mais “mistura-da” seria também menos africana e menos legítima da “cultura negra”. (OLI-VEIRA, 2007, p. 33)

ARTIGO

A RELAÇÃO ENTRE A “BAIANIDADE NAGÔ” E O SAMBA

Por Daiane Nascimento Santos

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Sobre isto, Oliveira ques-tiona:quais são os fatores que contribuíram para que, apesar da diversidade de etnias, línguas, origens, religiões, enfim, da diver-sidade cultural reinante entre os escravos afri-canos no Brasil, prevale-cesse a cultura de uma dentre as muitas etnias africanas que aqui apor-taram? (OLIVEIRA, 2007, p. 35)

A constituição da valori-zação do africano “puro” em detrimento ao mesti-ço brasileiro é reafirma-da pela preferência dos nagôs em relação aos bantos, abordada nos es-tudos clássicos sobre o

assunto, o que corrobora no enfoque depreciativo da mestiçagem brasileira.A partir do século XVIII, enquanto os traficantes de escravos de outras re-giões brasileiras perma-neciam nas rotas de An-gola e Congo, houve uma alteração no contingente negro da população baia-na, pois a Bahia passou a enviar os tumbeiros para Costa da Mina e, em se-guida, para o Golfo do Be-nin. Sobre as etnias que formaram o contingente negro brasileiro, apre-sento: a] bantos – denominação de um tronco linguísti-co que caracterizava um grupo de pessoas que tinham como atributo a

produção de objetos de cerâmica, a prática da agricultura e a criação de gado. Eles dominavam a técnica da metalúrgica, inclusive conferiam valor sagrado ao ferro. Foram os primeiros a serem tra-zidos como mercadoria para a colônia brasileira.b] jêjês – grupo do Golfo de Benin que trouxeram os voduns.c] nagôs - grupo de língua Yorubá que trouxeram os Orixás e os Orikis (can-ções dos Orixás). d] haussás - grupo “trazi-do” em menor quantida-de. No século XIV, envol-vidos pela maré islâmica na África, aprenderam a ler e escrever em árabe, e, ao chegarem ao Bra-

ARTIGO

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sil no século XIX, foram chamados de malês. Para este grupo, o islamismo organizou-se em cren-ça efi caz, a respeito do desconhecimento dos se-nhores brancos, na orga-nização das insurreições, na qual a Revolta dos Malês, em 1835, é a mais conhecida e difundida na historiografi a ofi cial. Estes termos étnicos são contemporâneos na his-tória da própria África, inclusive alguns deles não fi zeram parte da história colonial brasileira. Con-tudo, Reis e Gomes eluci-dam:[...] em muitos sentidos, essas designações étni-cas eram criações colo-niais porque não reconhe-ciam diferenças políticas, culturais e religiosas na África. [...] A formação de novas identidades e “co-munidades imaginárias” de acordo com rótulos coloniais foi um processo complexo e incompleto que teve lugar no Bra-sil (REIS;GOMES, 1996, p. 378).

Importante salientar que etnia é uma palavra que foi usada pela primeira vez em 1935 num Con-gresso em Amsterdã, em substituição à palavra raça, e está diretamen-te relacionada à língua, como assevera Pessoa de Castro (2010): “a lín-gua substância o espaço identitário de um povo”. Por conseguinte, não te-mos uma etnia brasileira,

ARTIGO

à exceção dos índios, isto porque a língua portu-guesa é falada em outros países. No Brasil pode-mos identifi car a etnici-dade, conceito político--ideológico marcado por pragmáticas diferencia-das de uma mesma lín-gua, afi nal a língua por-tuguesa é apontada por usos diferenciados nos países em que se instituiu como língua ofi cial e que foi introduzida pelas prá-ticas culturais.

Munanga (2003, p.14) afi rma que “não existe uma única cultura branca e uma única cultura negra e que regionalmente po-demos distinguir diversas culturas no Brasil”. Sem relegar as heranças jêjê e nagô na cultura afro-baiana, se faz necessário anunciar também a he-rança banto na constitui-ção da nossa cultura.

No português brasileiro, de acordo com as formu-lações da etnolinguista Pessoa de Castro (2010), a vocalização, que é o uso contínuo de vogais nas sílabas, construídas com uma consoante(c) e uma vogal(v) – (cv), se dá devido à semelhança do português arcaico com o sistema vocálico do gru-po banto, mais especifi -camente o Quimbundo, o que caracteriza a presen-ça da língua africana - do tronco linguístico banto - na nossa língua. Portanto, importante na discussão

acerca da força da cul-tura jêjê e nagô na Bahia. Partindo da língua, pode--se mencionar uma pala-vra do grupo banto que foi apropriada pela língua portuguesa e que deu origem a um ritmo carac-terístico da cultura bra-sileira: samba. A origem dela vem de: Kusamba que signifi ca orar, rezar, como uma celebração rítmica e dançante para os deuses. Entretanto, os colonizadores não per-cebiam que se tratava de uma celebração religiosa, o que pode explicar a sus-tentação dos cultos e da cultura africana no Bra-sil, mais especifi camente na Bahia. Já o semba era o movimento da umbiga-da que foi inserido nessas celebrações. Como a in-serção dos negros africa-nos escravizados se deu inicialmente na Bahia, consolidando o sistema escravagista no país en-tre os séculos XVI e XIX, podemos assegurar que o samba “nasceu” aqui, contudo trazido pelos bantos (Pessoa de Castro, 2010).

REFERÊNCIAS: Freyre, Gilberto. Casa-grande e Senzala. 51. ed. SP: global, 2006.Munanga, Kabengele. uma abordagem conceitu-al das noções de raca, racismo, identidade e et-nia. palestra proferida no 3º seminário nacional relações raciais e educação. rio de janeiro: 2003.Nina rodrigues, Raymundo. Os Africanos no Brasil. Salvador: Madras, 2008.Oliveira, Eduardo David de. A ancestralidade na encruzilhada. Curitiba: editora gráfi ca Popular, 2007.Pessoa de Castro, Yeda. A infl uência das línguas africanas no português brasileiro. Salvador: centro de estudos afro-orientais/UFBA, 1990.______, Yeda. correspondência pessoal. Salva-dor: UNEB, Curso de línguas africanas, março e junho de 2010.Reis, João José; Gomes, Flávio dos Santos (org.). Liberdade por um fi o: História dos quilombos no Brasil. SP: Companhia das Letras, 1996.

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O cenário feminino da moda soteropolitana tem uma forte representan-te, com trabalhos que se caracterizam pelos seus traçados coloridos nas peças e, sobretudo, com o olhar afinado para as ten-dências que fazem parte do cotidiano das mulhe-

res afro-brasileiras. Madá é uma mulher que acima de tudo corre atrás. Filha de costurei-ra, é alguém que cresceu em meio a tecidos, mo-delagens, fitas métricas, alfinetes, máquinas e foi aprendendo que existia um universo além das

roupas que via nas vitri-nes. Ela é formada em Estilis-mo e Produção de Moda pelo SENAC, tendo ga-nhado, nesta instituição, o concurso em homena-gem aos 40 anos da mi-nissaia. O nome Negrif surgiu de

Madá Negrif

NU CIRCUITO

Por Inussa Gomes

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NU CIRCUITO

uma história que se deu do continente africano para o Brasil. Segundo a estilista, um africano que veio ao país à estu-do, comprou os seus pro-

dutos e na saída lhe dis-se que eram muito bons e que precisava de um nome: Negrif. Ela adorou.A tendência é produ-zir, direcionando apenas

para o conceito Afro. Isto é justamente o que vem a identificar as peças que podem ser encontradas no Salão Negrif.

Madá é a Negrif e leva o seu rosto na ex-pressão gráfica como a própria marca.

O estilo Afro vem fazendo um look diferente no mercado: “tecidos africanos são símbolos incompre-ensíveis para quem não conhece a arte africana”

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Negrif aborda nas suas roupas os significados, linguagens e códigos da cultura afro.

NU CIRCUITO

As ilustrações dos tecidos africanos mostram uma imagem onde o ho-mem não é o centro do Universo.

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Tenho a cidade do Salva-dor e o Recôncavo baiano como constantes obje-tos: de inspiração, em sua produção artística e de estudos, em sua produção acadêmica e envolvendo os vários aspectos artís-ticos, culturais e sociais, relacionados a essas regi-ões, Ordep Serra, escritor premiado, vencedor do prêmio de melhor livro do ano no Prêmio Nacio-nal Academia de Letras da Bahia/Brasken, lá em 2008, com o livro “Sete Portas”, o qual, na épo-ca, Antônio Torres julgou como “um livro de contos do peso de um Amarcord de Fellini”, falou, via e--mail, um pouco sobre o seu processo de escrita. Cinzas - Sabe-se que as reminiscências da infân-

cia de um autor contam muito para sua formação enquanto escritor. Qual a importância de sua infân-cia em Cachoeira para a concepção da inspiração de sua escrita?

Ordep - Estou sempre re-vivendo minha infância em Cachoeira. Posso dizer que minha cidade natal se converteu no meu perso-nagem mais importante, pelo menos nos contos.

Mas eu a tomo como uma síntese do Recôncavo... E por vezes a transfor-mo em outra cidade, que pode estar em diferentes lugares do mundo. Meu interesse de antropólo-go pela região se explica facilmente: nunca deixei de me interessar por meu povo, por minha terra. No “Sete Portas” misturei memória e imaginação, mas é claro que minha infância está muito pre-sente neste livro. Trans-formada, claro: exposta ao impacto do presente e até do futuro. Devo di-zer que minha infância cachoeirana está sempre mudando e por vezes se passa em outros locais, em outros tempos. Mi-nha Cachoeira se derra-ma pelo mundo afora.

Ordep SerraEntrevistador – Inussa Gomes e Marcio Costa

QUE FIGURA

Não me preocupo em fi xar frontei-ras, não me

interesso por elas.

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Cinzas - A religiosidade afro-brasileira é caracte-rística recorrente de sua produção, seja represen-tada em alguma obra lite-rária, seja tema de algum de seus estudos. Como essa sua relação com o candomblé se manifesta, principalmente, em seu processo de escrita lite-rária?

Ordep - O candomblé

QUE FIGURA

sempre me encantou por sua beleza, por seu tesouro de ritos e mitos fascinantes. Minha liga-ção com este mundo é muito forte e na minha literatura isso se mani-festa do modo mais es-pontâneo: tenho sempre comigo os encantados, que me tocam com sua música divina. A escrita literária em que me em-penho parte dessa músi-ca, que é a de minha ori-

gem negra. Mas minha origem não me aprisiona, antes me dá liberdade de frequentar diferentes es-paços. Minha negritude é multicor.

Cinzas - Sendo um autor de obras literárias e ensa-ísticas, o senhor acredita que uma forma de escri-ta pode complementar a outra? Ou deve-se man-ter uma distância entre ambas?

Ordep - Não procuro es-tabelecer distância entre minha prosa ensaística e a literária. A diferença dos gêneros pode, por si, criar distâncias, pelo menos na superfície; mas no meu caso elas não são forçadas, não partem de um propósito de separa-ção. O ensaio pode ser, também, uma forma de poesia. Os estudos en-volvem uma exigência

crítica toda especial e se desenvolvem de forma argumentativa. Isso ten-de a diferenciá-los da fic-ção, pelo menos em prin-cípio. Ainda assim, tudo se interpenetra, pois, como bem disse Geertz, estamos na época dos blurred genres. Não me preocupo em fixar fron-teiras, não me interesso por elas. As fusões são mais interessantes. Além disso, gosto da variedade.

Nunca me preocupei em saber se um estudo em que me empenho deve ser classificado como an-tropologia, sociologia ou história, por exemplo. Al-guns dos meus escritos literários eu mesmo não sei se podem classificar--se como contos, novelas ou poemas. Isso não me importa. Prefiro mesmo a mistura, frequento os limbos com prazer.

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Ao fim de um seminário sobre Literatura afro--baiana, na cidade do Salvador, em que foi dis-cutida a importância do emergir textual negro nas obras dos escritores contemporâneos, tanto os africanos quanto os afro-brasileiros, Ondjaki, Lande e Ordep Serra fo-ram convidados pelo En-trevistador Cinzas, com seu gingado soteropo-litano, a irem ao Pelou-rinho para ouvir o som dos tambores enquanto conversam, molhando as palavras aos goles da cer-veja gelada em um início de noite boemia. Todos estão sentados em uma mesa posta ao lado de

fora do Bar do Carmo, en-quanto observam o pas-sar dos que apressam o passo e se aglomeram ao pé da escadaria da Igreja de Santa Bárbara, ao som do Ijexá.

ORDEP (ouvindo o som do Ijexá): O candomblé sem-pre me encantou por sua beleza, por seu tesouro de ritos e mitos fascinan-tes.

ENTREVISTADOR CINZAS (virando de uma só vez um copinho de cravinho): Essa sua ligação com o candomblé também é bem visível em sua pro-dução escrita, não?

ORDEP (com o semblante reflexivo de um babalo-rixá): Minha ligação com este mundo é muito forte e na minha literatura isso se manifesta do modo mais espontâneo...

ENTREVISTADOR CIN-ZAS (enchendo o copo de Ondjaki com cerveja): Ondjaki, para você, o pas-sado é um local de inspi-ração?

ONDJAKI (distraído com o passar de uma bela moça passível de literatura): Penso que o passado é um desses lugares ao qual poderemos ser sensíveis. Certamente existem ou-tros, e são diferentes de

TEATRO ENTREvISTA

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escritor para escritor. O passado são vários luga-res, várias portas e jane-las, membros infinitos de um labirinto que influen-cia a escrita, os afectos, as decisões literárias e até o futuro.

ENTREVISTADOR CIN-ZAS (pedindo um cigarro ao atendente do bar): E você, Lande, vê a infância como lugar de retorno à criação?

LANDE (lembrando de seu tempo de menino em Salvador): Penso que sim, mas como algo inevitável, uma inspiração não exa-tamente consciente. Já se disse que a pessoa é, aos

80 anos, o que já era aos 8... Sendo uma fase onde se consolidam aspectos fundamentais da nossa afetividade e cognição, fatalmente é um mina-douro de emoções pra toda vida. Por outro lado, há também uma atitude, essa, sim, consciente de resgatar situações que contenham uma dose de poesia que eu julgue ca-paz de tocar, instigar, es-timular o leitor presente.

ORDEP (se identifican-do com a traquinagem de um menino descalço): Estou sempre revivendo minha infância em Ca-choeira. Posso dizer que minha cidade natal se

converteu no meu perso-nagem mais importante, pelo menos nos contos. Mas eu a tomo como uma síntese do Recôncavo... E por vezes a transfor-mo em outra cidade, que pode estar em diferentes lugares do mundo.

ENTREVISTADOR CINZAS (negando o cigarro a um “sacizeiro”) Lande, como se afirma a identidade negra em um país como o Brasil?

LANDE (observando en-quanto um comercian-te branco nega um copo d’água a um catador de latinha): Num país racista como o Brasil, o desen-

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volvimento de uma Cons-ciência Negra figura-se como um renascimento. Mal saído da adolescên-cia, com 19, 20 anos a par-tir da minha aproximação do Movimento Negro, é que meu olhar sobre uma boa parte da existência humana começa a mudar – e a literatura, conse-quentemente, acompa-nha essa mudança.

ORDEP (batendo o pé ao som de um atabaque): Minha negritude é multi-cor.

ENTREVISTADOR CINZAS (direcionando o olhar a uma mesa de estudantes de intercâmbio de Ango-la): O povo angolano se assemelha muito ao bra-sileiro...

ONDJAKI (rindo vendo um típico “nego do Pelô” cor-tejando uma europeia): Ou talvez seja o povo bra-sileiro que se assemelha ao angolano...

ENTREVISTADOR CINZAS (jogando fora o cigarro já quase no final): E o pro-cesso de escrita de vo-cês...

ONDJAKI (retomando sua seriedade lírica comum): O texto e as palavras também falam conosco, também nos ajudam a seguir um caminho ou se recusam a colaborar com ele. O tempo vai dando mais treino e sensibilida-de. E vamos ficando ami-

gos, nós e os textos, nós e as palavras. Ou amigos ou amante ou inimigos. To-das essas “tensões” ser-vem para escrever...

LANDE (colocando o copo com firmeza sobre a mesa): De algum modo, penso que nosso texto vem (inter)ferindo a idéia hegemônica (e eurocên-trica) do que se concebe secularmente como lite-ratura, como ‘boa’ litera-tura. Para mim, a publi-cação foi crucial por, pelo menos, duas razões: onde primeiro publiquei, em li-vro, e onde começo a lidar pra valer com a crítica.

ORDEP (em tom afirmati-vo): Não me preocupo em fixar fronteiras, não me interesso por elas. As fu-sões são mais interessan-tes. Além disso, gosto da variedade [...]. Alguns dos meus escritos literários eu mesmo não sei se po-dem classificar-se como contos, novelas ou poe-mas. Isso não me impor-ta. Prefiro mesmo a mis-tura, frequento os limbos com prazer.

ENTREVISTADOR CINZAS (vendo o “sacizeiro” de antes fumando a bitu-ca do cigarro ainda ace-so que jogara no chão): Deem alguma recomen-dação aos novos escrito-res.

LANDE (profético): des-cobrir que o grande sol vai dentro de cada um de

nós. Não devemos temê--lo, porque o medo é, como sabemos, o avesso da realização.

ONDJAKI (aconselhando como um griot africano): Ler. Cruzar o pensamen-to com o sentir, exercitar, viver, aprender a ler os medos, aprender a ler as armadilhas do Ego. E ler. E depois esquecer tudo isto, e recomeçar do va-zio. E voltar a ler. É um caminho cíclico de apren-dizagens que não tem fim. No fim, será bom se formos abençoados com o dom de alguma humil-dade.

ENTREVISTADOR CINZAS (olha as horas em seu ce-lular sem crédito): Teria uma aula neste mesmo horário, mas o Pelourinho me segura...

ONDJAKI (sorri timida-mente): Sou mais a pes-soa do pátio da univer-sidade, com cigarros e conversa, do que aquele aluno da sala de aula...

O som dos atabaques vão aumentando e começam a abafar o som das vo-zes dos entrevistados, os quais se veem atraídos até aquela escadaria que ecoa toda a beleza do povo baiano. O Entrevis-tador Cinzas pega outro cigarro ao pagar a conta e inicia mais uma aventu-ra na noite com os gran-des escritores, Ondjaki, Lande e Ordep Serra.

TEATRO ENTREVISTA

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A Minha avó, Maria Ale-xandrina e a Xanda, preta velha, conhecedora das folhas da antiga Narandi-ba, In memoriam.

Estórias sempre deve-riam ser grafadas numa estética escritural em negrito. Essa fonte tem o ensolarado civilizatório, a queimar a palidez fan-tasmagórica e clássica do papel em branco, explici-tando e criando outras ci-vilizações: quilombos, tri-bos, guetos, favelas, que transpassam sua cultura e costumes no boca-a--boca atemporal da ora-lidade. Uma anti-episte-

me clássica surge vivaz, “barulhenta” ressoante como som de tambor, a tecer e construir, neste breve ensaio, conheci-mentos sobre o bairro Narandiba, localizado no Cabula, centro geográfi-co da cidade do Salvador--Ba.

Narandiba é uma palavra de origem tupi-guarani: [narã(laranja) + diba ( lu-gar)], ou seja, significa literalmente “lugar com muita laranja”. O Cabula, até a metade do século passado, se caracteriza-va como local que pos-suía muitas fazendas de

laranjas, responsáveis por abastecer, com este produto, grande parte da cidade do Salvador. Dessa herança cítrica e agrária está à origem do nome do subdistrito, Na-randiba. Com a modela-ção moderna do bairro: a construção da Avenida Edgar Santos, do Hospi-tal Geral Roberto Santos, do hospital psiquiátrico Juliano Moreira, entre outras obras, que incenti-vou a vinda de um grande contingente populacional do interior do Estado - fo-ram-se as laranjas, ficou--se o belo nome indígena. Narandiba é toda delimi-

Narandiba em negritoPor Davi Nunes

ENTORNOS

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tada por marcos institu-cionais: o monumento ao médico e primeiro reitor da Universidade Federal da Bahia-UFBA, Edgar Santos (1884-1962) co-nhecido por todos os mo-radores do bairro como “cabeção”, localizado na encruzilhada entre Cabu-la, Narandiba e Saboeiro, onde as oferendas a Exu, orixá da comunicação, da fertilidade, são ofertadas para abrir o canal de co-municação e pedir a ben-ção a todos os ancestrais, que na escravatura, fo-ram quilombos do Cabu-la. Outra instituição im-portante é o hospital, que leva a nomeação do mé-dico, professor e político, Roberto Santos, hospital que trata das enfermida-des dos soteropolitanos, como dos baianos de vá-rios outros municípios; além disso, outro estabe-lecimento tradicional no bairro é o hospital psiqui-átrico que leva o nome do primeiro professor uni-versitário negro no Brasil, um brilhante intelectual, percursor da psiquiatria brasileira, Juliano Morei-ra (1873-1932).

A ocupação do território do bairro, com a densi-dade demográfica que se encontra na atualidade, começou há pouco tem-po, na década de 90, se comparado com outros subdistritos do Cabu-la. Nesta época, o morro que fica abaixo do Hospi-tal Geral Roberto Santos

foi sendo ocupado, como as margens direita e es-querda da Avenida Ed-gar Santos, constituindo, não sem a opressão do estado, os intra-bairros, denominados pejorativa-mente de “invasões”, que foram formando guetos, os quais possuem uma dinâmica permeada de trocas solidárias, traços reminiscentes de quilom-bo; a construir costumes, hábitos e culturas, for-mando outro modelo ci-vilizatório menos empali-decido, mais negrito.

Segundo estórias conta-das pelos moradores mais antigos, principalmente a negra Xanda, que residia na Rua Edgar Medrado Junior, em depoimen-to anterior a sua morte, este ano, ao remontar a Narandiba anterior a essa constituição contempo-rânea e urbana de um bairro da periferia, falou sobre a beleza da região: dos rios, fontes de água e cachoeira; da abundancia de frutas, de pescados e de caças. Disse ainda, através da sua sabedo-ria oral de preta velha, que no local onde hoje é uma praça, a “Rótula do Juliano”, lugar de recrea-ção, shows de pagode, de hip-hop, jogos de futsal e basquete; um espaço de entretenimento coletivo dos moradores da comu-nidade, mas que em épo-cas remotas foi um rio em que o povo saía do Beiru, e de outros locais do Ca-

bula, para se banhar nele. Boa parte do território nessa região era revesti-do de água doce, e, com a modernização periférica do bairro, tudo foi viran-do asfalto, pista, esgoto.

Outro aspecto de Naran-diba é o forte comércio de bens e serviços (for-mais e informais), que dinamizam o cotidiano da comunidade. Merca-dinhos, mini-shoppings, padarias, pequenas em-presas, além da poderosa multinacional brasileira, a Odebrecht, que se en-contra instalada no sub-distrito. A mata atlântica foi quase completamente destruída, a natureza já não oferta os frutos, que até a década de 80, se conseguia com facilidade. Tudo agora se possui e se consome pelo intermédio do “Deus visível”, o capi-tal.

No interior dos intra-bair-ros se encontra ainda, em Narandiba, resquícios da constituição antiga do bairro. Na mata restante se sente o cheiro de qui-lombo; nas casas de laje, telhas e blocos verme-lhos, todos olham ain-da a vida um dos outros; compartilham os medos, as estórias, as violências cotidianas; resistem, com coragem, às interpeles da vida; constroem costu-mes, hábitos e culturas, um modo civilizatório em cor negrita.

ENTORNOS

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Modernos demais

Casos, lances, bolos-doidos. Brevidade. Não há tempo para gaguejar, engasgar, mastigar. Engula o outro! Coma a outra! Rapidez. É, piva: perdeu a sua vez! O próximo, por favor, porque a fila corre na escada rolan-te. Agora não! Não tenho tempo, você também não. Já deu a hora. Vou-me em-bora!Mas pra onde vou não sou nem conhecida do mordo-mo porque lá não é Pasár-gada. Pra onde vou? Sigo partida nessa partida. Vou partir a mil, a mim, a ti, os nós de nós. Vou vazar, cur-var o beco, abrir o gás, cair fora. Agora! Em boa hora? Com quem? Pra lugar Ne-nhum. Vamos embora, vumbora, bora, bó!Bó no mesmo caminho, mas de almas separadas. Bora pra um mesmo canto sem cânticos, com vísceras. Vamos embora apresen-tar fora dos palcos a nos-sa representação de nós mesmos. Diante de mim, um outro tão (mal) vestido, velado. Véus, elmos, capas, coletes à prova de toques, alma à prova de alma. Figu-rino da moda (?). Comprei também, vesti também, embrulho pra presente! Va-mos em boa hora com nos-sos corações desalinhados, mas escorrendo volúpia por entre as pernas e com olhos flamejantes.

Por Verusca Cristina

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vicio de linguagemMinha língua em tua vagina toda tarde

Por Alan de Barros

ÁGUA-FORTE PARA SAL-VADOR

A cidade é um cavalo sem cabrestos! Desossou o que restou de caçador de borboletas em mim.Desprecavido tornei-me peixe adormecido no ritmo.

O horror rói os meus olhos:um camundongo delira no asfalto.Brota-se, então, carnu-das pétalas nos olhos de quem o ver. A boca desnutri-se para-lítica,pois a fome é um cão violento.

Por Jurandi Rita

CAPOEIRA

Ê capoeira!No melaço de cana,Na cana um melaço,Na roda de samba,Num jogo de perna e de braço.Um branquelo na rodaSambando feito mulata,Vibrante ao som de cor-das,Queimante feito fumaça.Na favela Pageu,Aruak, Jê, Canudos,Guerra, guerreiro,No sotaque do mestiço,Capiba, capora,Capoeiragem.Um menino jogando ca-poeira,Uma cabocla, uma ren-deira,No Raso da CatarinaVirgulino Ferreira.No som do birimbauMestre BimbaCortando em miúdos o vento.Um negro bem aguerridoDando murro em ponta deFaca, facão,Gulha, punhal, navalha,Na Matadeira.Ê capoeira!Ê camarada!Ê bagaceira!Cabocla mulata.

Por Paulo Monteiro

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Acomodado numa das poltronas reservadas, na primeira fi la do já lotado salão nobre da univer-sidade, João sente que olhares de censura o fu-zilam pelas costas. Mo-vido por um instinto de defesa aguçado, vira-se e constata quão incômoda é a sua presença naquele ambiente, já que os olhos da plateia se esbugalham ainda mais escandaliza-dos, quando percebem os traços grossos de sua face negra como as noi-tes sem luar. Voltando-se novamente para frente, percebe de soslaio que uma distinta senhora, sentada à sua direita, me-de-o da cabeça aos pés com a indiscrição acinto-sa dos alcoviteiros.

Com o intuito de amai-nar aquela situação nada confortável, ele a encara com uma lua nova entre os lábios, abrindo a possi-bilidade para um contato mais amistoso. Contudo, a reação imediata da res-peitável senhora é a de estreitar a bolsa contra o próprio corpo, esconden-do o colar de madrepéro-las que ostenta sobre o busto pálido e pelancudo. Diante de tal gesto des-cabido, só se confi rma o

que ele já desconfi ava. Aquela hostilidade gene-ralizada é mais um caso de...

Porém, antes de concluir o fatídico raciocínio, vê--se obrigado a desviar a atenção para a esquerda, por causa de um tapinha indelicado que recebe no ombro.

– Bora levantando daí ne-gão! Ó... Não sabe ler não, é? Rosna em seu ouvido, um tipo caucasiano ar-rogante e engravatado, apontando ostensiva-mente o aviso que indi-ca “reservado” na parte posterior da poltrona em que aquele João-Nin-guém teve a audácia de se sentar.

Sem dar tempo para uma resposta à altura dessa afronta tão indecorosa, o tipo caucasiano engra-vatado se dirige para o palco, traçando todos os passos da etiqueta re-comendada, iniciando a solenidade na condição de mestre de cerimônia. Passadas as ladainhas ini-ciais, comuns às soleni-dades mais pomposas, eis que o tipo caucasiano en-gravatado convoca para subir ao palco, a maior

autoridade do recinto: – Agora, para compor a mesa, convidamos a Vos-sa Excelência, Senhor Mi-nistro João da Silva dos Santos.

Para o espanto geral da plateia e palidez cada-vérica do tipo caucasia-no engravatado, João levanta calmamente da poltrona, revelando os longos dreadlocks pen-didos sobre a face talha-da pelos traços fortes de sua ancestralidade afri-cana. Logo, um crescente “Óooo!” de pasmo em dó maior ecoa por todos os cantos do recinto, dian-te daquele “espetáculo escabroso”, para usar as palavras da distinta se-nhora das madrepérolas no momento em que con-templava, horrorizada, o negro mais importante que já tinha visto em toda sua vida.

Talvez, o tom fi ccional da narrativa acima pos-sa induzir o leitor a crer que essa cena tenha-se passado em alguma te-lenovela das oito, marca-da pela sordidez de seus personagens e pelos fi -nais clichês de cunho mo-ralizante. Porém, essa é a realidade diária de mui-

Por Pardal do Jaguaripe

PIMENTA NOS OLHOS

Na boa, véi! Isso é ranço da miséria ideológica.

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Acomodado numa das poltronas reservadas, na primeira fi la do já lotado salão nobre da univer-sidade, João sente que olhares de censura o fu-zilam pelas costas. Mo-vido por um instinto de defesa aguçado, vira-se e constata quão incômoda é a sua presença naquele ambiente, já que os olhos da plateia se esbugalham ainda mais escandaliza-dos, quando percebem os traços grossos de sua face negra como as noi-tes sem luar. Voltando-se novamente para frente, percebe de soslaio que uma distinta senhora, sentada à sua direita, me-de-o da cabeça aos pés com a indiscrição acinto-sa dos alcoviteiros.

Com o intuito de amai-nar aquela situação nada confortável, ele a encara com uma lua nova entre os lábios, abrindo a possi-bilidade para um contato mais amistoso. Contudo, a reação imediata da res-peitável senhora é a de estreitar a bolsa contra o próprio corpo, esconden-do o colar de madrepéro-las que ostenta sobre o busto pálido e pelancudo. Diante de tal gesto des-cabido, só se confi rma o

que ele já desconfi ava. Aquela hostilidade gene-ralizada é mais um caso de...

Porém, antes de concluir o fatídico raciocínio, vê--se obrigado a desviar a atenção para a esquerda, por causa de um tapinha indelicado que recebe no ombro.

– Bora levantando daí ne-gão! Ó... Não sabe ler não, é? Rosna em seu ouvido, um tipo caucasiano ar-rogante e engravatado, apontando ostensiva-mente o aviso que indi-ca “reservado” na parte posterior da poltrona em que aquele João-Nin-guém teve a audácia de se sentar.

Sem dar tempo para uma resposta à altura dessa afronta tão indecorosa, o tipo caucasiano engra-vatado se dirige para o palco, traçando todos os passos da etiqueta re-comendada, iniciando a solenidade na condição de mestre de cerimônia. Passadas as ladainhas ini-ciais, comuns às soleni-dades mais pomposas, eis que o tipo caucasiano en-gravatado convoca para subir ao palco, a maior

autoridade do recinto: – Agora, para compor a mesa, convidamos a Vos-sa Excelência, Senhor Mi-nistro João da Silva dos Santos.

Para o espanto geral da plateia e palidez cada-vérica do tipo caucasia-no engravatado, João levanta calmamente da poltrona, revelando os longos dreadlocks pen-didos sobre a face talha-da pelos traços fortes de sua ancestralidade afri-cana. Logo, um crescente “Óooo!” de pasmo em dó maior ecoa por todos os cantos do recinto, dian-te daquele “espetáculo escabroso”, para usar as palavras da distinta se-nhora das madrepérolas no momento em que con-templava, horrorizada, o negro mais importante que já tinha visto em toda sua vida.

Talvez, o tom fi ccional da narrativa acima pos-sa induzir o leitor a crer que essa cena tenha-se passado em alguma te-lenovela das oito, marca-da pela sordidez de seus personagens e pelos fi -nais clichês de cunho mo-ralizante. Porém, essa é a realidade diária de mui-

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tos “Joões-(que uma par-te conservadora da socie-dade brasileira insiste em enxergar na eterna con-dição de)-Ninguéns”.

Isso se torna ainda mais evidente com o crescente ingresso dos indivíduos negros e afrodescenden-tes nos espaços de poder, quando passam a ocu-par, cada vez mais, posi-ções decisivas e cargos

infl uentes na conjuntura social brasileira. Diante desse panorama histórico promissor, infelizmente, ainda se confi gura como regra a lógica reacionária de que quanto mais alta é a posição ocupada pelo negro, mais preconceito ele sofre. Na esteira des-sa equação diretamente proporcional, os setores mais conservadores da sociedade brasileira ain-

da lançam mão do velho e efi ciente mito da de-mocracia racial para en-cobrir o apartheid real e simbólico que, silencioso, opera sorrateiramente em prol da manutenção daquele país do fi nal do século XIX, conhecido por ter sido o último do mun-do a sair do modo de pro-dução escravista.

Mas, como “quem fala

PIMENTA NOS OLHOS

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PIMENTA NOS OLHOS

bem macio, acaba ou-vindo alto”, para citar o grande sambista baiano, Ederaldo Gentil; o discur-so hipócrita e aveludado de que vivemos em “um país miscigenado e sem preconceito racial” (cuja finalidade é a de perpetu-ar a perversa exclusão ét-nica que se opera desde os tempos da escravidão)

recebeu um duro golpe com a implantação do sistema de cotas raciais nas universidades públi-cas.

De imediato, surgem os defensores da democra-cia excludente entoando, raivosos, o discurso da meritocracia para rotular as cotas raciais como me-

didas antidemocráticas. Porém, os mesmos não percebem que tal discur-so reacionário é tão infun-dado quanto um castelo de cartas ao sabor das brisas. Afinal, o que as co-tas raciais corrigem, são justamente as discrepân-cias históricas no campo das oportunidades, já que as mesmas sempre foram

negadas à grande parcela afrodescendente da po-pulação brasileira para serem doadas àqueles que se valiam do nepo-tismo, dos processos se-letivos fraudulentos e do clientelismo para assegu-rar os seus privilégios he-reditários.

Logo, pode-se afirmar

que cotas sempre exis-tiram em nosso país, só que, antes, eram desti-nadas aos filhos da Casa Grande e, agora, passa-ram a ser reservadas aos filhos da Senzala. Daí, a importância de serem necessariamente raciais. Desse modo, através das cotas, os negros e afro-descendentes terão a

oportunidade de se in-serirem, aos poucos, nos espaços de poder da so-ciedade brasileira, pois, só assim se conseguirá eliminar das (in)consci-ências, o ranço da miséria ideológica que se reve-la das mais explícitas às mais discretas formas de preconceito racial.

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Salvador da Bahia, co-ração do Brasil. Cidade abençoada por todos os Santos onde “porra” tem sete sentidos e de um povo alegre e feliz, por-tadores de axé. Uma das

únicas do mundo com duas cidades em uma só, baixa e alta, e ain-da com elevador e tudo para transportar. Onde o povo mora no Uruguai e trabalha todos os dias

em Roma. Do Pelourinho, onde batuque e reza se beijam e Jesus tem o seu próprio terreiro, e onde a rua é a academia paten-teada na formação dos artistas.

BAILE BLACK BOOMBASTIC DE SALvADOR

CATA(E)VENTOS

Por Inussa Gomes

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Black Boombastic de Sal-vador, nome inspirado no sucesso musical do ar-tista Shaggy, durante a década de 1990. A ideia surge de uma grande confraternização entre Afro Jhow e seus amigos para comemorar mais uma edição de seu ani-versário, ocorrido em ju-nho de 2012 e apresen-tando, em primeira mão, o seu novo trabalho musi-cal com uma incrível mis-tura de ritmos.

CATA(E)VENTOS

Afro Jhow busca parceria com o Sankofa African-bar, através de uma agra-dável estrutura rústica, permitindo que o cenário faça parte do conteúdo de sua festa com pista de dança, lounds, áreas para fumantes e decoração que refl etem a sua inspi-ração musical. Destaque também para a localiza-ção, mais que acessível ao público, em um Pelou-rinho que já é propício à festa.

A partir da ideia de reu-nir amigos, o Rapper Afro Jhow divide o palco com artistas, como: Mr. Ar-mengue, Coscarque (seu parceiro em algumas produções), Léo Souza, Fábio Jahgun (compadre de Afro Jhow que, viven-do na Califórnia-USA, desenvolve um trabalho inovador de reggae), Dj Leandro (curador do pro-jeto Vitrola 71), Dj Kiko ( músico do projeto), den-tre outros.

A primeira edição foi um grande sucesso em Sal-vador se tornando uma festa que se consolida cada vez mais. A explosão nas redes sociais inevita-velmente faz Afro Jhow pensar nas próximas edi-ções da festa, acreditan-do que deve manter a presença de convidados, colaborando com a difu-são de novas produções para a cena musical em Salvador.

Nesta nova edição do Bai-le BlackBoombastic, Afro Jhow apresenta novo projeto intitulado Afro Jhow - Misturando Rit-mos e Emoções -, conso-lidando sucessos, como: I Love My Hair, Me Leva Pro Céu, Dendê de Oya e Eu sou Quilombo. O show destaca-se por um estilo altamente dançante e um repertório diversifi cado, composto por: Hip Hop, Zouk, Samba Reggae, Semba, Soul, Raga Mur-

fi ng e Dance Hall.

Fica então a expectativa que, pagando apenas R$ 10,00, o público se agita-rá no verão de Salvador com edições quinzenais no já consagrado Baile Black Boombastic.

Fica então a expectativa que, pagando apenas R$ 10,00, o público se agitará no verão de Salvador com edições quinzenais no já consagrado Baile Black Boombastic.

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