história da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de...

18
HISTÓRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E O INTERESSE ECONÔMICO COMO FUNDAMENTO DO DIREITO DE PUNIR Wolney Perrucho 1 RESUMO Este artigo versa sobre a história da pena, no qual objetivamos analisar, no decorrer dos períodos históricos a transformação da forma de punir àqueles que delinqüem. O estudo inicia-se no final da Idade Antiga, observando a evolução, se assim podemos chamar, da pena aplicada na baixa idade média, observando as transformações sócio-econômicas e a repercussão dessas no modelo punitivo adotado por um determinado Estado. O surgimento de um modelo de acumulação de capital assume importante, isso no final da idade média, muda substancialmente a motivação da aplicação de pena, passando a ter destacada influência o incipiente mercado, que passa a regular a necessidade de pender, na medida que se precisa de mais ou menos braços para mover a nascente industria. Surge a pena privativa de liberdade, cada vez executada com maiores requintes de crueldade, e no decorrer da história, em que pesem os esforços dos humanistas, e as diversas teorias que tentam encontrar fundamentos científicos para a real função da pena, o que se constata é que a gênese da criminalidade está na exclusão, fomentada e sustentada pela hegemonia de uma classe dominante sobre outra classe, sendo o direito penal e pena instrumentos de controle social. Palavras-chave: pena; teorias de prevenção; exclusão; controle social. INTRODUÇÃO O tema Sistema Penitenciário, e, por via de conseqüência, o fundamento do direito de punir, encontra cada vez mais espaço na atualidade, mormente diante do aumento da violência urbana. Há evidente desencontro entre o discurso acadêmico acerca do direito de punir, sempre embasado nas teorias da prevenção geral e da prevenção especial, verificando em alguns momentos históricos o predomínio de umas sobre outras, e a realidade dos números, que apresenta a população carcerária, especialmente na Bahia, formada por afrodescendentes e semi-analfabetos (analfabetos funcionais) 2 . O que vê é que os presos que hoje cumprem penas privativas de liberdade, mais das vezes em masmorras modernas, têm a mesma origem daqueles que, desempregados, sem 1 Mestre em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social pela FVC; Juiz de Direito; graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); pós-graduação lato sensu: Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade Batista Brasileira (FBB);Professor de Direito Penal e Processo Penal, ex-Agente da Polícia Federal. 2 Fonte Ministério da Justiça. Disponível através de www.mj.gov.br

Upload: pictdireitofrbparalela

Post on 10-Jul-2015

4.183 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

HISTÓRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE E O INTERESSE

ECONÔMICO COMO FUNDAMENTO DO DIREITO DE PUNIR

Wolney Perrucho 1

RESUMO

Este artigo versa sobre a história da pena, no qual objetivamos analisar, no decorrer dos períodos históricos a

transformação da forma de punir àqueles que delinqüem. O estudo inicia-se no final da Idade Antiga, observando

a evolução, se assim podemos chamar, da pena aplicada na baixa idade média, observando as transformações

sócio-econômicas e a repercussão dessas no modelo punitivo adotado por um determinado Estado. O surgimento

de um modelo de acumulação de capital assume importante, isso no final da idade média, muda

substancialmente a motivação da aplicação de pena, passando a ter destacada influência o incipiente mercado,

que passa a regular a necessidade de pender, na medida que se precisa de mais ou menos braços para mover a

nascente industria. Surge a pena privativa de liberdade, cada vez executada com maiores requintes de crueldade,

e no decorrer da história, em que pesem os esforços dos humanistas, e as diversas teorias que tentam encontrar

fundamentos científicos para a real função da pena, o que se constata é que a gênese da criminalidade está na

exclusão, fomentada e sustentada pela hegemonia de uma classe dominante sobre outra classe, sendo o direito

penal e pena instrumentos de controle social.

Palavras-chave: pena; teorias de prevenção; exclusão; controle social.

INTRODUÇÃO

O tema Sistema Penitenciário, e, por via de conseqüência, o fundamento do direito

de punir, encontra cada vez mais espaço na atualidade, mormente diante do aumento da

violência urbana.

Há evidente desencontro entre o discurso acadêmico acerca do direito de punir,

sempre embasado nas teorias da prevenção geral e da prevenção especial, verificando em

alguns momentos históricos o predomínio de umas sobre outras, e a realidade dos números,

que apresenta a população carcerária, especialmente na Bahia, formada por afrodescendentes

e semi-analfabetos (analfabetos funcionais)2 .

O que vê é que os presos que hoje cumprem penas privativas de liberdade, mais das

vezes em masmorras modernas, têm a mesma origem daqueles que, desempregados, sem

1 Mestre em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social pela FVC; Juiz de Direito; graduado em

Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); pós-graduação lato sensu: Metodologia do Ensino

Superior pela Faculdade Batista Brasileira (FBB);Professor de Direito Penal e Processo Penal, ex-Agente da

Polícia Federal. 2 Fonte Ministério da Justiça. Disponível através de www.mj.gov.br

Page 2: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

oportunidades de viverem como elite, eram empurrados para fora dos muros das cidades

fortificadas, e passavam a sobreviver da mendicância, da prostituição, de pequenos crimes, ou

seja, eram excluídos.

Concordamos com o sustentado por Guimarães (2007), sendo evidente que no âmago

da evolução dos conceitos de crime e de pena no curso da história, é plenamente identificável

o liame entre o que se entendia como crime na idade média com o que consideremos crime

hoje no Brasil.

No mesmo sentido do pensamento de Guimarães (2007), entendemos que a sanção

penal tem sua fundamentação principalmente em razões de ordem econômica e social, isso

desde o mercantilismo, ou capitalismo primitivo, até o Brasil de agora, evidenciando uma

profunda relação entre a economia e o sistema punitivo.

Guimarães(2007) utiliza-se das idéias de Rusche & Kirchheimer para lastrear seu

entendimento, e estes demonstram que o desenvolvimento social e econômico, ou seja, o

desenvolvimento das forças de produção, é que vai permitir a definição ou exclusão de

determinadas condutas como criminosas, e das penas que lhes são consectárias(RUSCHE &

KIRCHHEIMER, 2004, p.4).

Os institutos correcionais alcançaram o ápice de desenvolvimento durante o

mercantilismo, e proporcionaram grande ímpeto ao novo modo de produzir. Posteriormente, a

importância econômica desses institutos desaparece com o surgimento da fábrica (RUSCHE,

KIRCHHEIMER, 2004, p.4-5).

Como demonstra Rusche & Kirchheimer (2004, p.4), para cada fase do

desenvolvimento econômico, político e social de um povo observa-se sistema de repressão,

estabelecendo as condutas como criminosas, bem como as penas cabíveis.

O modelo adotado hoje pelo Brasil para reinserção social prima pela preparação do

apenado em cumprimento de pena privativa de liberdade para o retorno ao mercado de

trabalho, o que fica evidenciado na Lei de Execuções Penais, em consonância com os

Tratados Internacionais firmados pelo Brasil, principalmente a Resolução 01/2008, da

Organização dos Estados Americanos – OEA.

Em que pese ser a legislação brasileira de boa qualidade, a prática nos mostra a

ineficiência do sistema penitenciário, que não alcança os objetivos previstos na Lei de

Execuções Penais, principalmente diante do baixo orçamento disponibilizado para o sistema;

baixo preparo do pessoal técnico; e do predomínio da ociosidade dentro das Unidades

Prisionais (BITENCOURT, 2004, p. 231), isto é, não há interesse político de mudar a

Page 3: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

estrutura prisional brasileira, o que é reflexo do modelo sócio-econômico que

experimentamos, cuja origem é encontrada ainda na idade média.

2 A PENA NA IDADE MÉDIA.

É assente na doutrina que na Idade Antiga a prisão não tinha caráter de sanção penal,

servindo apenas com o objetivo de contenção e guarda dos acusados, no sentido de preservá-

los fisicamente até o momento do julgamento, quando muitas das vezes eram executados.

Até Roma, tão desenvolvida no Direito Civil, era incipiente no Direito Penal, não

admitindo, mais das vezes, a prisão com objetivo outro que não fosse a custódia e contenção,

sendo elucidativo o texto de Ulpiano, no Digesto. (BITENCOURT, 2005, p. 6): Carcer enin ad

continendos homines non ad puniendos haberit debit. (A prisão serve não para o castigo dos homens,

mas para a sua custódia).

Finda a Idade Antiga, cujo marco tradicionalmente aceito é a queda do Império

Romano, e a invasão da Europa pelos povos bárbaros, inicia-se a Idade Média, onde o Direito

Penal e a pena assumem novos contornos.

As penas corporais e de morte não foram abolidas de imediato com a passagem para

Idade Média, mas se observa que, de acordo com a situação econômica prevalente, adotou-se

um modelo de punição:

En la historia de la ejecución penal pueden distinguirse diversas épocas durante las

cuales prevalecieron sistemas punitivos completamente diferentes. Penas pecuniarias

y Penances fueron los métodos de sanción preferidos durante la alta Edad Media.

Más tarde, durante la baja Edad Media, fueron gradualmente reemplazados por un

severo sistema de penas corporales y de muerte que, a su vez, alrededor del siglo

XVIII fueron reemplazadas por las penas privativas de libertad. (RUSCHE &

KIRSCHHEIMER, 2004, p. 7).

O que se busca neste artigo e mostrar o marco fundamentador das razões do modelo

penal existente no país, cujas bases começam a ser visualizadas já na idade média, que

podemos didaticamente também subdividir em alta e baixa idade média.

Na alta idade média, conforme descrito por Rusche & Kirschheimer (2004), diante

da baixa população, e da grande quantidade de terras ainda existente, o nível de vida era bom

o suficiente para não gerar conflitos que não pudessem ser regulados através de penas

pecuniárias, e penances, esta devida ao que fora injuriado, e aplicada por uma autoridade não

judicial (RUSCHE & KIRSCHHEIMER, 2004, p. 7), e, eventualmente a lei do feudo,

caracterizada pela vingança privada, então ainda admitida.

Page 4: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

Ainda destaca-se que o modelo de colonização de parte da Europa pelos germanos,

que necessitava de grande quantidade de mão de obra, ocasionou a migração de pessoas para

aquela região, principalmente fugindo da forma de tratamento rígido dos senhores feudais, o

que ocasionou o surgimento de novas cidades, e ainda conduziu à mudança de tratamento dos

servos pelos senhores, tudo contribuindo para a diminuição das tensões sociais.

Na época, conforme leciona Rusche & Kirschheimer (2004), a principal forma de

controle social, a dissuadir práticas violentas, era o medo da vingança privada pela parte

agredida, uma vez que o crime era considerado como um ato de guerra, que poderia alcançar

extensões de elevada monta, a afligir a paz pública, vez que um pequeno desentendimento

entre vizinhos poderia envolver os parentes, servos, amigos, com funestas conseqüências.

Destaca-se o fato de que na época não havia um poder central forte, percebendo-se

como finalidade do direito penal da época a manutenção da paz, a ser alcançada através da

aplicação de penas pecuniárias.

A dosimetria da pena era fundada na classe social do ofendido e do ofensor,

verificando-se, conforme Radbruch apud Rusche & Kirschheimer (2004, p. 9),que a diferença

de classe levou à situação de uma pena pecuniária aplicada não poder ser adimplida em razão

da falta de recursos do réu pobre. Para solucionar tal situação levou à substituição, para em

tais situações, da pena pecuniária para a pena corporal de prisão.

A partir de então, evidencia-se a opção por um modelo de pena que nasce com

aplicação limitada a uma determinada categoria social, qual seja, os desprovidos de renda ou

recursos para pagar por sua liberdade.

Rusche & Kirschheimer, apud Graven, e conforme o que consta do art. 4º do

Estatuto da Cidade de Sion, datado de 1338, mostra a previsão de multa de 20 libras para

casos de agressão, todavia, dispõe que não tendo o agressor capacidade de pagamento da

pena, sua pena seria substituída por privação de liberdade, devendo ser enviado para a prisão,

onde seria alimentado apenas com pão e água, até que algum morador da cidade intercedesse

por ele, ou fosse perdoado pelo bispo.

Aos poucos, diante de fatores como o crescimento das funções sancionadoras dos

senhores feudais, e, mais tarde, a lucratividade do exercício da atividade jurisdicional, pois

parte das penalidades importas eram destinadas aos seus aplicadores, levou do direito penal a

perder seu caráter privado, passando a interessar ao rei o seu exercício.

Las observaciones de Holdsworth acerca de que los derechos reales sobre los bienes

mostrencos, las confiscaciones y los bienes del condenado parecían interesar a los

jueces por lo menos tanto como el mantenimiento de la ley y el orden, revelan la

Page 5: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

preocupación principal de los administradores de justicia en esa época. En la

Toscaza, en el sur de Alemania, en Inglaterra y en Francia, el intento de obtener

ingresos de los fondos de la administración de la justicia criminal, constituyó uno de

los principales factores para transformar el derecho penal, de un mero sistema de

arbitraje entre intereses privados, en una parte fundamental del derecho público.

(RUSCHE & KIRSCHHEIMER, 2004, p. 10).

Verifica-se que na baixa idade média ocorreu a gradual substituição da penas

pecuniárias e penaces por penas corporais severíssimas e pela pena de morte, para, em

seguida, por volta do século 18, serem também substituídas pelas penas privativas de

liberdade, podendo-se claramente perceber a influência do poder econômico a supedanear tais

mudanças.

No século XV há registros de empobrecimento da população da Europa,

principalmente pelo aumento da população, sendo determinante a falta de terras cultiváveis,

uma vez que o cansaço da terra, excessivamente cultivada ao longo dos anos, exigia a

implementação de um modelo de descanso de áreas agricultáveis, com o rodízio de pastagens,

o que levou à queda de produção, desemprego, e fome.

Tawney, apud Rusche & Kirschheimer (2004), em seu livro Religion and the Rise of

the Capitalism, publicado em 1926, informa que a cidade de Florença, em 1380, tinha uma

população de aproximadamente 90.000 habitantes, sendo que cerca de 17.000 habitantes

sobreviviam da caridade.

Naquela época, o inchaço na periferia das cidades, levou a formação de grupos de

criminosos, saqueadores e miseráveis, muitos vitimados pelas pestes que dizimavam as

populações européias.

É justamente entre os séculos XIV e XV que ocorre a transição do feudalismo para o

capitalismo, construindo-se um direito penal, não mais destinado aos iguais e possuidores de

recursos para pagamento de penas pecuniárias, mas dirigidos a atingir os despossuídos

Henri Sanson, conhecido como o verdugo de Paris, afirmou que “até 1791 a lei

criminal é o código da crueldade legal”, o que demonstra o claro objetivo de controle social

da pena na idade média, que visava provocar medo em toda a sociedade (BITENCOURT,

2005, p. 8).

Durante todo o período da Idade Média, a idéia de pena privativa de liberdade não

aparece. Há, nesse período, um claro predomínio do direito germânico. A privação

da liberdade continua a ter uma finalidade custodial, aplicável àqueles que seriam

“submetidos aos mais terríveis tormentos exigidos por um povo ávido de distrações

bárbaras e sangrentas. A amputação de braços, pernas, olhos, línguas, mutilações

diversas, queima de carne a fogo, e a morte, em sua mais variadas formas,

constituem o espetáculo favorito das multidões desse período histórico”.

(BITENCOURT, 2005, p. 8).

Page 6: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

A opressão dos pobres pelos abastados sempre foi uma realidade em todas as épocas,

o que variou foi a capacidade de indignação dos miseráveis, que mais das vezes sucumbiu

subjugado pelo poder dos ricos, que sempre encontrava meios para justificar a dominação.

Conquanto subjugados, o crescimento da miséria e da fome fazia explodir a

violência, não por simples maldade, ou por justificativas outras de natureza metafísica, mas

por revolta, fazendo surgir uma coragem insana, aliada ao descontrole da desesperança.

Quando a revolta explodia, a reação da elite era sempre marcada pela violência, e os

fundamentos não eram outros além da manutenção de privilégios.

Sempre existiu o capitalismo, entretanto, antes do mercantilismo e da Revolução

Industrial, se limitava a pequenos grupos da sociedade. Os nobres, os latifundiários,

os militares, os camponeses, os artesãos e lavradores, não foram, stricto sensu,

capitalistas. A concentração de capital e de riqueza nas mãos dos mercadores e

banqueiros – cujo poderio começava a substituir o da nobreza – trouxe consigo

desorganização social e miséria. Em Siena, em 1371, dois mil mercenários ao

serviço dos mercadores invadiram os bairros pobres e assassinaram homens,

mulheres e crianças, sem distinção nem piedade, empalando a uns em lanças e

cortando aos meio a outros com seus machados. Tratava-se de uma represália

porque os trabalhadores de lã – acossados pela fome e pelo desespero – tomaram o

palácio público, derrubaram o governo e colocaram no poder os reformadores.

(RENÉ BODERO apud GUIMARÃES, 2007, 99).

O século XVI é o marco do que se poderia chamar de embrião do capitalismo, que é

o surgimento do mercantilismo, mudando sobremaneira as relações sociais, mormente ao criar

uma nova concepção de trabalho, diante do abando do sistema feudal de produção, com os

camponeses, que cultivavam apenas para subsistência, tendo que se adequarem ao sistema

fabril de produção.

Assim, no século XVI, são introduzidas e desenvolvidas as condições

desenvolvimento posterior do capitalismo: burguesias bancárias e financeiras;

Estados nacionais dispondo de meios de conquista e de dominação; uma concepção

de mundo que valoriza a riqueza e o enriquecimento; é apenas nesse sentido que se

pode datar o século XVI a era do capitalismo. Mas se faz necessário um olhar

moderno, iluminado pelo conhecimento do desenvolvimento posterior do

capitalismo industrial, para aprender e dar um nome ao „capitalismo mercante‟do

século XVI, que ainda não passa do embrião daquilo que poderá ser chamado mais

tarde de capitalismo. (BITENCOURT apud BEAUD, 2005, p. 116).

3 A PENA NA IDADE MODERNA.

Page 7: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

Na transição da Idade Média para a Idade Moderna, ao lado do fundamento

econômico e político para o surgimento da pena privativa de liberdade, alguns estudiosos

apontam a influência da Igreja Católica e do Direito Canônico, todavia reconhecendo tal

influência na formação dos sistemas penitenciários, não a reconhecemos como fundamentação

do modelo de pena de prisão até hoje verificado, tendo que tal é a ideologia do capital e a

dominação de uma classe sobre outra.

Realmente, o embrião da prisão moderna vai surgir naquele momento de transição do

feudalismo para um novo modelo de acumulação de capital, em meio de uma crise social e

econômica, que gerou um contingente de prostitutas, vagabundos, mendigos e retirantes, que

circulavam por toda Europa. (GUIMARÃES, 2007).

Os governos locais utilizavam ações de limpeza, com expulsões, chicotadas,

tatuagens a fogo, mutilações de orelhas e enforcamentos, todavia não havia forca suficiente

para matar tantos pobres, exigindo-se outra solução para a contenção da pressão social.

A solução encontrada foi a criação de “Houses of Corretions”, ou seja, Casas de

Correção, onde deveriam ser recolhidos os mendigos, prostitutas e desocupados em geral,

sendo a primeira, considerada como precursora da prisão moderna, a localizada em Bridewell,

em Londres, inaugurada em 1552.

Bridewell, um castelo destinado pelo rei da Inglaterra para o recolhimento dos

excluídos, era dirigido com extremo rigor, e buscava reformar os recolhidos através da

disciplina e do trabalho. Servia também como meio de prevenção geral, uma vez que

objetivava ainda desestimular as práticas indesejadas pela classe dominante, principalmente a

vadiagem e a ociosidade.

Outra finalidade das Houses of Corretion, ou Bridewells, como ficaram conhecidas,

pois se espalharam pela Inglaterra, era levar o preso a adquirir renda e ter vantagem

econômica através de seu trabalho, que era desenvolvido no ramo têxtil (BITENCOURT,

2005, p. 17).

Ao mesmo tempo é brutal o aprendizado da disciplina manufatureira. Os mendigos,

encerrados nos asilos, devem aprender uma profissão; os ociosos, as moças solteiras,

o pessoal dos conventos, podem ser obrigados a trabalharem nas manufaturas; as

crianças devem ir ao aprendizado. Para os operários, a missa no início do dia, o

silêncio ou cânticos durante o trabalho; as multas, o açoite ou a golilha em caso de

erro; a jornada era de doze a dezesseis horas; os baixos salário; a ameaça de prisão

em caso de rebelião (BEAUD apud GUIMARÃES, 2007, p. 101).

Page 8: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

Na mesma época a França enfrentava problemas semelhantes, adotando soluções

também semelhantes para o tratamento dos excluídos:

As guerras religiosas tinham arrancado da França uma boa parte de suas riquezas.

No ano de 1556 os pobres formavam quase a quarta parte da população. Essas

vítimas da escassez subsistiam das esmolas, do roubo e assassinatos. O parlamento

tratou de enviá-los às províncias. No ano 1525 foram ameaçados com o patíbulo; em

1532 foram obrigados a trabalhar nos encanamentos para esgotos, acorrentados de

dois em dois; em 1554 foram expulsos da cidade pela primeira vez; em 1561 foram

condenados às galés e em 1606 decidiu-se, finalmente, que os mendigos de Paris

seriam açoitados em praça pública, marcados nas costas, teriam a cabeça raspada e

logo seriam expulsos da cidade. (DE GROOTE, apud BITENCOURT, 2005, p. 15).

Com o mesmo objetivo surgem na mesma época estabelecimentos em toda a Europa,

como as Workhouses na Inglaterra, a primeira já em 1697, para depois se espalhar por toda a

Inglaterra, chegando ao número de 26 no final do século XVIII.

Em Amsterdam são criadas as casas de correção para homens, rasphuis e para

mulheres, spinhis, e em 1600 é criada uma casa de correção para internação de jovens

delinqüentes.

As casas de correção eram destinadas ao tratamento de pequenos delitos, uma vez

que para os mais graves aplicavam-se as demais penas corporais, como açoite, pelourinho e

morte.

Já naquela época os resultados das penas de prisão não atingiam os fins apregoados,

quais seja a reforma e reeducação do delinqüente, conforme Radbruch apud

Guimarães(2007). Mas será que o surgimento da prisão explica-se apenas em razão de

motivações econômicas e políticas, ou religiosas, ou ainda em face da impossibilidade de se

aplicar a pena de morte, isso diante do grande contingente de delinqüentes?

Bitencourt (2005), aponta quatro causas que se destacam como fundamento para o

surgimento da prisão, não mais como custódia, mas como pena, que se inter-relacionam, e não

esgotam as possibilidades.

O primeiro aspecto é a mudança das idéias no século XVI, com a maior valorização

da liberdade, com o inicio de um pensamento racionalista. Naquela época a forma de tratar o

mal, representado pelas trevas, era a exposição à luz, representando em relação ao crime a

confissão pública antes de seu expurgo.

O segundo aspecto, já caracterizando uma mudança de paradigma, é a necessidade de

ocultação de certas condutas, em prol da boa consciência, servindo a prisão para ocultar o

criminoso e também o castigo, inclusive para que o criminoso não fosse sequer lembrado.

Page 9: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

O terceiro aspecto é representado pelas transformações socioeconômicas decorrentes

da transição do modelo feudal para um novo modelo de acumulação de capital, ou seja, a

saída da Idade Média e o ingresso na Idade Moderna.

Tais transformações conduziram o mundo da época a vivenciar o empobrecimento de

parcela considerável das populações, levando multidões à mendicância e à criminalidade. E

como reflexo do crescimento da delinqüência na Europa, entra em declínio a pena de morte,

uma vez que não cumpre o seu papel de evitar que a delinqüência aumente, levando a se

buscar outras soluções.

Surge então, como uma invenção memorável, a pena de prisão, como sucedânea da

pena de morte, com a esperança de ser o mais eficaz meio de controle social, capaz, portanto,

de punir o delinqüente, e inibir a prática de novos delitos.

Por fim, como quarta causa apontada por Bitencourt (2005), apresentam-se as causas

econômicas, às quais acrescenta-se também a política. Não se pode olvidar que o cárcere

prestou-se como instrumento de regulação do mercado de trabalho, aumentando em número

de indivíduos quando havia excedente de mão de obra, ou quando estava sobre-valorizada, e

esvaziava quando faltavam braços para o trabalho.

Naquele período, como já observado, o trabalho forçado é aplicado

indiscriminadamente, demonstrando sua intima relação com a prisão, a ponto de se ter

dificuldades de perceber se o objetivo de se prender era afastar o delinqüente do convívio

social ou forçar a trabalhar. Com isso, muitas vezes o trabalho dos reclusos era utilizado para

obtenção de lucros para o Estado e também para particulares.

A pena surge então com caráter de retribuição apenas, não tendo outra motivação

para sua aplicação que a inflição de um mal, como conseqüência do ilícito praticado.

O que se segue é a verificação de que o cárcere, diante do crescimento da

criminalidade, e da concepção de que deve ser necessariamente um local para expiação do

mal causado, transforma-se em um lugar cada vez menos salubre e humano.

Novamente uma conjunção de fatores conduz à mudança no que podemos chamar de

sistema penal vigente no século XVIII, pois, ao lado do declínio da concepção teológica, com

o crescimento do racionalismo e do cientificismo, vêm-se também mudanças no panorama

econômico mundial, com a queda na demanda por mão de obra

A crueldade do sistema repressivo e as péssimas condições das prisões, foram

marcas recorrentes no século XVIII, inclusive com leis de extremo rigor, e defesas

ideológico-doutrinárias, feitas por criminalistas da época, a justificar a necessidade da dureza

das penas e da desnecessidade de locais salubres para os presos.

Page 10: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

As leis em vigor inspiravam-se em idéias e procedimentos de excessiva crueldade,

prodigalizando os castigos corporais e a pena capital. O direito era um instrumento

gerador de privilégios, o que permitia aos juízes, dentro do mais desmedido arbítrio,

julgar os homens de acordo com sua condição social. Inclusive, os criminalistas

mais famosos da época defendiam em suas obras procedimentos e instituições que

respondiam à dureza de um rigoroso sistema repressivo (BITENCOURT, 2007, 32).

Então, na segunda metade do século XVIII, inicia-se um movimento de oposição ao

modelo repressor vigente, com críticas abertas às leis e seus fundamentos, por serem agora

entendidos como violadores da dignidade do ser humano. São idéias inculcadas nas ideais

iluministas, com forte influencia de Voltaire, Montesquieu e Rousseau, sustentado a exigência

de uma proporcionalidade entre a ação delituosa e a reprimenda aplicada.

Relata Foucault

O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade do

século XVIII: entre os filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados,

parlamentares; nos chaiers de doléances e entre os legisladores das assembléias. É

preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e a

cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco. O suplício

tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde

ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o “cruel prazer de punir”.

Vergonhoso, considerado da perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da qual

ainda se espera que bendiga “o céu e seus juízes por quem parece abandonada”.

(FOUCAULT, 2007, p. 63).

Os ideais que vão influenciar na mudança da forma de se apenar são os mesmos que

conduziriam à Revolução Francesa, e que vão ser manifestos de forma contundente no

pensamento em Cesare Bonesana, o Marques de Beccaria, em Jonh Howard e em Jeremy

Bentham.

O papel de Beccaria é fundamental para o atual modelo de pena privativa de

liberdade, sendo ele considerado como o iniciador daquela que ira posteriormente ser

chamada de Escola Clássica do Direito Penal, sendo marco relevante o lançamento de seu

livro intitulado Dos Delitos e das Penas, lançado em 1764.

As idéias de Beccaria, forjadas no pensamento iluminista, de base contratualista,

foram lançadas em um livro bem escrito, de leitura fácil, com o desenvolvimento de idéias de

forma lógica e convincente, que cala fundo nas mentes da época, alcançando repercussão que

ultrapassa os séculos, conduzindo ao estudo sistematizado e científico do Direito Penal,

questionando a extensão do direito de punir e as formas de punição.

Sua formação liberal, e sua concepção contratual da sociedade, conduzem à

fundamentação de um direito de punir fundado na violação do pacto social, mas limitado à

proporcionalidade da violação, razão porque se insurge de forma veemente à pena de morte.

Page 11: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

Verifica-se já em Beccaria (2006, p. ) um posicionamento utilitarista em relação à

pena, pois tinha ela, em sua concepção um fim determinado, que seria “impedir o réu de

causar novos danos a seus cidadãos e afastar os demais do cometimentos de outros iguais”.

Sugeria ainda que a escolha da pena, e a forma de aplicá-la, deveriam respeitar a

proporcionalidade, mas sempre o seu objetivo era de causar “impressão mais eficaz e mais

durável sobre o ânimo dos homens”, todavia, na direção contrária do que antes ocorria,

deveria ser o menos aflitiva possível ao corpo do réu.

Destaca-se ainda sua defesa para que os julgamentos fossem rápidos, evitando a

verdadeira tortura para o réu que é a indefinição que vive enquanto aguarda o julgamento, o

que é até hoje vivenciado.

A marca do pensamento de Beccaria é a humanização da pena criminal, conduzindo

à mudança de paradigma, finalmente substituindo-se as penais aflitivas e capitais pela pena

privativa de liberdade, a ser aplicada de forma não aflitiva, com o tratamento mais humano do

delinqüente.

Jonh Howard também tem destacada influência na implantação da pena privativa de

liberdade, a ser aplicada de forma mais humanizada, sendo o seu livro The state of prisions in

England na Wales with na account of some goregn, publicado em 1777, um marco para o

despertamento acerca da realizada carcerária.

Howard exerce grande influencia no penitenciarismo moderno quando separa direito

penal de execução penal, e ao lançar o embrião do que viria a ser a formação de agentes

penitenciários, com formação específica para lidar com o encarcerado e ainda escolha de um

juiz para execução da pena. (BITENCOURT, 2005).

Também lança a tese do isolamento noturno do preso, em celas pequenas, mas

salubres, o que vai influenciar na nona regra das Regras Mínimas para o Tratamento dos

Reclusos, em sua primeira parte.

REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DE PRISIONEIROS

Adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e

Tratamento de Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo

Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de

31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Em

25 de maio de 1984, através da resolução 1984/47, o Conselho Econômico e Social

aprovou treze procedimentos para a aplicação efetiva das Regras Mínimas (anexo).

.................................

Locais destinados aos presos:

9.

1.As celas ou quartos destinados ao isolamento noturno não deverão ser ocupadas

por mais de um preso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário da

população carcerária, for indispensável que a administração penitenciária central

Page 12: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

faça exceções a esta regra, deverá evitar-se que dois reclusos sejam alojados numa

mesma cela ou quarto individual. (DHnet)

Já Benthan (2002, p. 23), um utilitarista, molda sua teoria da pena numa concepção

hedonista, uma vez que sustenta que é a busca do prazer orienta as ações humanas, sendo

assim, sustenta que as penas devem ter a gravidade necessária para que o indivíduo, ao pensar

delinqüir, sopese o que é mais gratificante, o prazer de agir, ou a dor da pena, e o que vencer,

dirigirá sua conduta.

Benthan utilizava os termos prevenção geral e prevenção especial, significando a

prevenção geral a voltada a evitar a prática do delito, e a prevenção especial a voltada

diretamente àquele que, não contido pela intimidação geral, culmina em delinqüir, mas com o

objetivo de sua correção. Todavia em seu pensamento preponderava a prevenção geral à

especial. (BITENCOURT, 2004).

Por reconhecer as mazelas do cárcere, que serviam mais para corromper que para

reformar, preocupa-se com a melhoria das condições para o cumprimento da pena, inclusive

com a laborterapia, como instrumento de grande importância para o que hoje chamamos de

reinserção social.

Benthan também é o primeiro a preocupar-se com a arquitetura das prisões, sendo o

criador do sistema panótico, assim descrito por Foucault (2007, p. 166):

[...] ma periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de

largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é

dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm

duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra que dá

para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar

um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um

condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber

da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas

nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ato está

sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo

panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem para e reconhecer

imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três

funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-

se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra,

que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.

O que se constata é que o modelo panótico, embora em sua fundamentação também

buscasse a reforma do delinqüente, mostrou-se como eficiente modelo de dominação e

subjugação total do indivíduo, funcionando como meio para alcançar a domesticação dos

encarcerados, inclusive através do trabalho (BITENCOURT, 2004).

Page 13: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

4 SURGIMENTO DAS TEORIAS FUNDAMENTADORAS DA PENA.

De todo o expendido, observa-se que doutrinariamente surgiram três grupos de

teorias, para justificar os fins e fundamentos da pena, não olvidando, por tudo que

defendemos, que a gênese da criminalidade está na exclusão, fomentada e sustentada pela

hegemonia de uma classe dominante sobre outra classe, sendo o direito penal e pena

instrumentos de controle social.

As teorias absolutas, ou retributivas, fundamentadas exclusivamente na ação

criminosa, lecionava que se punia por uma exigência da justiça, em razão da reprovabilidade

da conduta humana, retribuindo-se o mal do crime, com o mal da pena, re-equilibrando-se a

sociedade, abalada pelo fato criminoso. Fundada no brocardo punitur quia peccatum est,

pune-se porque pecou.

São teóricos mais importantes desse período os alemães Kant e Hegel. O primeiro

entende que o cumprimento da norma é um imperativo categórico, não tem pode ser utilizada

para qualquer fim, inclusive para fomentar o bem, mas é um fim em si mesma, em face do

descumprimento da lei, vez que cumprir a lei é um imperativo categórico.

Para Hegel, com a teoria lógico-jurídica, a pena e a negação do delito e a afirmação

do Direito anteriormente negado pelo delito (PRADO, 2006, 525). Mostra-se como um jogo

de sinais em uma operação matemática, onde a pena e a negação de uma negação, que é o

crime, resultando logicamente em uma afirmação, que é o Direito posto.

Nos dias de hoje a idéia de retributividade da pena está relacionada ao princípio da

proporcionalidade, a justificar que a pena deve ter o valor negativo equivalente ao desvalor da

conduta violadora da norma.

As teorias absolutas ou de retribuição sofrem severas críticas na contemporaneidade,

sendo relevante o posicionamento de Roxin aclarado por Bitencourt.

Roxin despreza totalmente a teoria retribucionista, ou, como ele a chama, teoria da

expiação, “porque deixa sem esclarecer os pressupostos da punibilidade, porque não

estão comprovados seus fundamentos, e, porque, como conhecimento de fé

irracional, além de impugnável, não é vinculante”. (BITENCOURT, 2004, p. 120).

As Teorias Relativas, ao contrario de fundadas em punitur quia peccatum est, era

expressa pelo brocardo punitur ut ne peccetur, ou seja, pune-se para que não peque,

mostrando-se com duas funções bem distintas, quais sejam a de prevenção geral e a prevenção

especial.

Page 14: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

Ao contrário das teorias absolutas da pena, as chamadas teorias relativas propõem

que a sanção deve possuir uma finalidade. A pena não deve servir à realização da

justiça na Terra, mas para a proteção da sociedade. Ela não constitui um fim em si

mesma. Ela constitui um meio de prevenção. Dessa forma, o sentido da pena é

exclusivamente evitar a prática de delitos no futuro. Sendo a pena um instrumento

político-criminal que atua sobre os cidadãos de forma impositiva e causando-lhes

um mal, não pode a pena simplesmente ser retributiva ou expiatória. É preciso ser

alcançada uma finalidade, qual seja, a profilaxia do crime, isto é, a sua prevenção

(AMARAL, 2005, p. 183).

Assim, a pena, para as teorias da prevenção, tem por finalidade evitar a ocorrência

do delito, num primeiro momento atuando como coação psicológica e geral, sobre toda a

sociedade, para evitar a prática do crime. No segundo momento, na forma de prevenção

especial, age sobre a pessoa do delinqüente, para sua intimidação, correção e imobilização.

Não podemos esquecer, como já visto, a origem do sistema punitivo e sua intrínseca

relação com o mercado e com o poder das classes dominantes, expresso de forma indelével na

natureza utilitarista da pena para as Teorias Relativas.

Naquele momento, no final do século XVIII e início do século XIX, no auge da

Revolução industrial, a pena não se presta mais à restauração da ordem jurídica ou para

intimidar os membros da comunidade, tem agora a função de defesa da “nova ordem”

(BITENCOURT, 2004).

[...] O delito não é apenas a violação à ordem jurídica, mas, antes de tudo, um dano

social, e o delinqüente é um perigo social (um anormal) que pões em risco a nova

ordem. Essa defesa social referia-se a alguns dos setores sociais: o econômico e o

laboral. Trata-se da passagem de um Estado guardião a um Estado intervencionista,

suscitada por uma série de conflitos caracterizados pelas graves diferenças entre

possuidores e não possuidores dos meios de produção, pelas novas margens de

liberdade, igualdade e disciplina estabelecidas. Diante da impossibilidade de

resolver as tensões e contradições do mercado, “o Estado teve de abandonar sua

função de guardião do mercado para intervir precisamente na sua regularização”.

(BITENCOURT, 2004, p. 131).

Conforme Amaral (2005), a teoria da prevenção geral subdivide-se em Positiva, onde

a pena é tida como instrumento utilizado pelo Estado para manter e reforçar a confiança da

comunidade na validade e na vigência das normas penais e do ordenamento jurídico-penal.

Busca manter a confiança da população na força e capacidade de agir do Estado para gerir-se

e manter a paz social. É o chamado Direito Penal Simbólico.

A Prevenção Geral Negativa, chamada de Teoria da Coação Psicológica ou Teoria da

Intimidação, objetiva a prevenção do crime através de mecanismos que servem para frear ou

impedir a prática do delito, através da coação psicológica.

Roxin apud Teles apresenta a Teoria Unificadora Dialética, para a qual:

Page 15: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

O Direito tem natureza fragmentária, subsidiária e limitada, sendo sua missão

proteger os bens jurídicos mais importantes das lesões mais graves. Assim o Estado

só pode construir tipos em tais circunstâncias, constituindo situação de prevenção

geral. Não funcionando o primeiro anteparo, parte-se para o segundo, que é a

concretização da pena, constituindo-se aí a prevenção especial. De todo modo, a

pena só se justifica se tiver a finalidade de recuperar o agente do crime, aperfeiçoá-

lo, e ensiná-lo valores ético-sociais cultivados pela sociedade, para que ele possa

retornar ao convívio social.

O Direito de punir do Estado, jus puniendi, em um estado democrático de direito e

social, deve jungir-se aos estreitos limites da prevenção geral e especial, servindo com freio

ao poder estatal, poder esse ideologicamente comprometido com as elites, os direitos

individuais do cidadão, e, fundamentalmente, o princípio da dignidade humana.

CONCLUSÃO

Conforme exaustivamente analisado, no curso da história a privação da liberdade não

foi sempre o modelo adotado para a punição do indivíduo que descumpria as regras sociais,

entretanto, máxime em face do surgimento do capitalismo, passa a classe dominante a valer-

se da economia para tudo justificar, inclusive o que venha a ser crime ou a função da pena,

prevalecendo sempre da expressão das leis de mercado.

Becker apud Guimarães (2007) observa a influência do mercado na formatação

social, a tudo regulando, de modo que as diversas intervenções verificadas na sociedade são

decorrentes da relação de oferta e demanda:

Certamente, eu cheguei à posição de que a abordagem econômica é uma abordagem

compreensiva que é aplicável a todo comportamento humano, seja ele um

comportamento que envolve preços em dinheiro ou preços determinados em outros

valores, decisões repetidas ou espaçadas, decisões mais ou menos importantes,

finalidades mecânicas ou emocionais, pessoas pobres ou ricas, terapeutas ou

pacientes, homens de negócio ou políticos, professores ou alunos. As aplicações da

abordagem econômica assim considerada são tão extensas quanto o escopo da

economia na definição dada anteriormente que enfatiza recursos escassos e fins

compatíveis. [...] um imposto sobre o produto de um mercado reduz a oferta do

mesmo, seja ele um imposto sobre gasolina que reduz o uso da gasolina, punição a

criminosos (que é um “imposto”sobre o crime) que reduz a quantidade de crimes ou

um imposto sobre salários que reduz a oferta de trabalho a esse setor de mercado.

(BECKER apud GUIMARÃES, p. 21-22).

A compreensão que resulta evidente é que o crime é um conceito variável de cultura

para cultura, de época para época, mas fundamentalmente, de ideologia para ideologia, sendo

marcante a influência do poder econômico que essa ideologia busca justificar.

Page 16: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

Confirmando esse entendimento, Guimarães (2007, p. 22) afirma que há íntima

relação entre o Direito Penal e os interesses econômicos dos detentores do poder, o que antes

era propositalmente ocultado, mas hoje é mais explícito.

Surge como algo evidente, por mais brutal que possa parecer aos olhares leigos e

crédulos, que os interesses econômicos influem de forma relevante no momento legislativo,

isto é, na elaboração das leis penais, e com isso na aplicação das mesmas, sendo inelutável a

compreensão que o interesse econômico está na base da justificação ao direito de punir.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Ubirajara Batista de. O Sistema Penitenciário Baiano: A Ressocialização e as

Práticas Organizacionais.Ufba, 2001. Disponível em: http://www.mj.gov.br/depen/>. Acesso

em 05/06/2007.

AGUIAR, Ubirajara Batista. O sistema penitenciário e os Direitos Humanos – a

ressocialização e as práticas organizacionais. BAHIA ANÁLISE & DADOS Salvador, v. 14,

n. 1, p. 209-222, jun. 2004. Disponível em:

http://www.sei.ba.gov.br/publicacoes/publicacoes_sei/bahia_analise/analise_dados/pdf/direito

s_humanos/18_ubirajara_aquiar.pdf>. Acesso em 14/07/2008.

AMARAL, Cláudio do Prado. DESPENALIZAÇÃO PELA REPARAÇÃO DE DANOS – A

Terceira Via. Leme/SP: J.H. Mizuno, 2005.

ARANTES, Ester Maria de M. Do governo dos livres e dos cativos. Considerações sobre a

história das prisões no Brasil. 2005. Disponível em:

http://www.pol.org.br/debate/materia.cfm?id=148&materia=769>. Acesso em 14/07/2008.

BARATTA, Alessandro. CRIMINOLOGÍA CRÍTICA Y CRÍTICA DEL DERECHO

PENAL. Mexico: Siglo veintiuno editores, 2004.

BENTHAN, Jeremy. Teoria das Penas Legais e Tratado dos Sofismas Políticos.Leme/SP: CL

EDIJUR, 2002.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. Causas e alternativas.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Atualizada

EC 48.São Paulo: RT, 2005.

BRANDÃO, Cláudio. Teoria Jurídica do Crime. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 3ª. Ed. São

Paulo: Saraiva, 2004.

CABETTE, Eduardo Luiz S. Criminologia no Século XXI. Revista Electrónica del Centro de

Investigaciones Criminológicas de la USMP-PERÚ- 3RA. EDICIÓN.

http://www.derecho.usmp.edu.pe/centro_inv_criminologica/revista/articulos_revista/2007/arti

culo_cabette2_PDF.zip. Acesso em 03/05/2008.

Page 17: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. 34 ed. Petrópolis:

Vozes, 2007.

GUIMARÃES, Cláudio Alberto Gabriel.Funções da pena privativa de liberdade no sistema

capitalista. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

MAGNABOSCO, Danielle. Sistema penitenciário brasileiro: aspectos sociológicos . Jus

Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em:

<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1010>. Acesso em: 13 jul. 2008.

O BRASIL atrás das grades: uma análise do sistema penitenciário. São Paulo: Human Rigths

Watch (HRW), 1999. Disponível em :

http://www.hrw.org/portuguese/reports/presos/agrad.htm>. Acesso em 13/07/2008.

PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias. Projetos jurídicos e realidade carcerária no

Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 333, 5 jun. 2004. Disponível em:

<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5300>. Acesso em: 06 jul. 2008.

PINTO, J.M.R, e outros. Um Olhar sobre os indicadores de analfabetismo no Brasil. In

Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. 2000. v.81, n° 199, p. 511 a 524. set/dez.

PORTO, Roberto. Crime Organizado e Sistema Prisional. São Paulo: Atlas, 2007.

Regras Mínimas para Tratamento de Presos. 1º. Congresso das Nações Unidas sobre

Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes.

http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/fpena/lex52.htm < acesso em 03/07/2008>.

_____________________RESOLUCIÓN 1/08. Principios y Buenas Prácticas sobre la

Protección de las Personas Privadas. de Libertad en las Américas.

www.cidh.org/pdf%20files/resolucion201-08%20ESP%20FINAL.pdf < acesso em

15/06/2008.

ROBERT, Philippe. Sociologia do Crime; tradução de Luis Alberto Salton Peretti. Petróplis,

RJ: Vozes, 2007.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER. PENA Y ESTRUCTURA SOCIAL. Bogotá, D.C.:

Editorial Temis S.A., 2004.

SANTANA,Gilton Carlos da Silva. A explosão demográfica nos cárceres de Salvador: uma

negação do direito à ressocialização?.2006. Disponível em:

http://www.frb.br/ciente/2006_2/DIR/DIR._Gilton_Santana__Rev._Denise_02.01.07_.pdf>.

Acesso em 14/07/2008.

TELES, Ney Moura. DIREITO PENAL. Parte Geral Arts. 1º.a 120. 2ª. Edição. São Paulo:

Atlas, 2006.

Page 18: História da pena privativa de liberdade e o interesse econômico como fundamento do direito de punir

UNDP. Human Development Report 1990. Concept and Measurement of human

development. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/reports/global/hdr1990/chapters/>.

Acesso em 19/07/2008.

ZAFARONI, Raul; PIERANGELI, J.H. Manual de Direito Penal Brasileiro V.1. Parte Geral.

6ª. Edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.