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Os labirintos da gua. Diniz Conefrey (Quarto de Jade)
Se queremos ver na banda desenhada uma arte, temos de entender
ser-lhe prpria uma natureza dada a deslocaes e descontinuidades,
intervalos e quedas, titubeaes e balbuciamentos, renegaes mesmo
daquela que poder ser vista como a natureza natural dos seus mais
tpicos objectos, e os elos mais contumazes entre as imagens e entre
as palavras, e entra aquelas e estas. Se ela arte, ento est aberta
a toda a espcie de pesquisas, sobretudo aquela que lhe alarga os
contornos, e no somente mestria da respeitabilidade de todos os
caminhos j trilhados e confinados a uma beleza que satisfaz somente
os hbitos empedernidos de um qualquer territrio. (Mais)
O confronto com a leitura de Os labirintos da gua, novo hausto de
Diniz Conefrey na elaborao de uma estrutura de imagens em resposta
a poemas de Herberto Helder, no pretende de maneira alguma que
saiamos desse conflito sem um qualquer distrbio na prpria forma de
ler. No lhe chega a apreciao, a compreenso. Ele exige que se
reformulem os protocolos de entendimento prprios rea a que parece
dizer respeito. Que rea essa? Chega dizer ser a banda desenhada?
Ter de se adjectivar como banda desenhada potica ou artstica, de
ensaio, num movimento duplo de justificao e legitimao social mas
tambm de tentativa bacoca de querer separar uma coisa de outra?
Como se Labirintos viesse por cima ou pelo menos por fora daquilo a
que usualmente se chama banda desenhada? No, fiquemo-nos por esse
termo, aceitando que ele no sofre nem teme a abertura por dentro a
que Conefrey acede.
Labirintos oferece aquilo a que podemos numa primeirssima fase
de abordagem chamar de adaptaes, mas que bastas vezes neste espao j
descrevemos como tradues, de textos do poeta Herberto Helder, forma
de banda desenhada. So esses textos as prosas Aquele que d a vida e
(uma ilha em sketches) e o texto a mquina de emaranhar paisagens, a
que podemos chamar, talvez, de poema. Diniz Conefrey j havia
publicado os dois primeiros textos em Arquiplagos, um lbum de
formato franco-belga clssico, pela man (2001). Se por um lado esse
antigo formato est mais prximo da matria original, e incita
necessariamente a um relacionamento fsico e leitura diferentes com
o texto, uma rpida comparao entre as edies demonstrar que a
presente, do prprio autor, tem algumas vantagens: a reproduo da
arte parece ser feita atravs de fotografia e no de digitalizaes, o
que garante da manuteno de alguma textura adicional, volume,
dimensionalidade da arte original, que tambm se deve ao trabalho de
iluminao. Em Arquiplagos tudo surge um pouco mais plano (a imagem
que aqui revelamos de comparao pssima, mas tentava demonstrar essa
dimenso). E se em Labirintos as cores parecem mais escurecidas e
menos iluminadas, a verdade que h um concerto mais complexo das
cores, ao passo que na primeira edio os magentas estavam to
esbatidos que quase amareleciam ou azulavam em demasia os
ambientes. Apenas nos parece que a legendagem algo mecnica demais
(at por contraste edio anterior, manual), no se procurando um maior
grau de simbiose e integrao com a matria propriamente visual, o que
lhe retira alguma elegncia. Os visitantes da Tinta dos Nervos
tiveram oportunidade de ver em primeira mo alguns dos originais,
paisagens abstractas, dalgumas das pginas que vem aqui compor
paisagens, agora no seu contnuo fluxo e na relao directa que
permitem com o leitor.
A questo de reproduo no de somenos. Ainda que acreditemos que a
obra de arte propriamente dita da banda desenhada s tem lugar no
seu objecto final de texto reproduzido, a verdade que a
materialidade da prpria reproduo tem um papel decisivo na forma
como esse mesmo texto ser frudo. Falamos aqui de uma fase at antes
do formato (lbum franco-belga, comic norte-americano, livro
europeu, tankonbon, etc.), que tambm importante. Qualquer desenho,
qualquer marca no papel, como se sabe, antes de ser qualquer coisa,
isto , antes de representar algum objecto (se o for, pois pode ser
abstracto, casos repetidos em mquina), -se a si mesmo, essa mesma
marca. Haver casos em que essa marca se deseja to invisvel que
desaparea sob a iluso do que representa. o que ocorre nos casos da
maior parte da banda desenhada e da ilustrao clssica, comercial,
etc. Quando olhamos para um desenho do Tintin, vemos Tintin, e no
nos concentramos na grossura da linha preta que perfaz o seu
contorno fechado, o modo como est colorido, etc. Todavia, h outros
casos em que a matria mesma do desenho no se oculta, e trazida para
primeiro plano mesmo. Breccia, Ricci, Coch, Mattotti, Vhmki, Lemos,
Steadman, Steinberg, so apenas alguns dos nomes de autores parentes
deste territrio que fazem bascular muitos dos seus desenhos entre a
camada da representao e a da expresso (plstica, material, do plano
de inscrio, etc.). Conefrey, poder-se- dizer, sempre foi um cultor
dessa abordagem, fosse atravs da colagem, do desenho a linha, ou
mesmo das experincias digitais, mas sobretudo nesta sua vertente de
artista de mixed media (papis texturados, cola acrlica, tintas de
toda a sorte, fragmentos de fotografia, colagens) que esse plano se
torna saliente de uma maneira vividssima.
Herberto Helder, na sua prtica de tradutor, emprega uma palavra
bem diferente. Veja-se As magias. Escreve ele poemas mudados para
portugus. Mudados quer num sentido mais prosaico, de quem muda de
espao, daqui para ali, mas tambm mutados, como tendo sofrido uma
transformao nas suas molculas, uma transmutao e alterao das sua
natureza prpria, mas ainda assim guardando como que uma fmbria, um
qualquer fantasma do que havia estado no objecto original. Conefrey
no faz meras adaptaes (no obstante o que a capa reza) que possam
ser empregues numa sala de aula, forma de simplificar ou sequer de
sensibilizar leitura da poesia. Isso seria no apenas um desservio
poesia como uma ofensa pattica fora da poesia. Mas talvez a palavra
traduo, mesmo no sentido de Flaubert-Tsvetaeva que temos empregue
tantas vezes, possa no fazer sentido aqui, uma vez que no estamos
perante aquela questo do autor francs - como que ele tirou isto
daquilo? -, e seja de facto essa mudana herbertiana a ideia de
entender o processo do autor de banda desenhada.
Como escreve Antnio Guerreiro num ensaio sobre o poeta (na Textos
& Pretextos no. 17), a poesia de Herberto Helder no corresponde
a uma poesia de representao de formas e de sentimentos, mas antes
feita de energia e intensidade, composta de materiais verbais,
ritmos, repeties, estruturas frsicas. E talvez se possa dizer que
essa intensidade mais significativa no texto a mquina de emaranhar
paisagens que nos outros dois. Talvez assim se possa compreender
igualmente que a intensidade das mudanas para a banda desenhada
sejam, nos primeiros casos, mais narrativas e representacionais do
que o terceiro texto, indito nesta edio, tal como j notado por Joo
Ramalho Santos e Joo Miguel Lameiras.
De facto, ao olharmos para estes trs textos mudados, encontramos
trs estratgias distintas, que de certa forma tentam respeitar
igualmente as intensidades distintas dos prprios textos: Aquele que
d a vida surge como uma banda desenhada quase clssica, no sentido
em que distribui vinhetas de uma forma conducente ao entendimento
de um eixo espcio-temporal naturalista, e tanto as legendas
narradoras como os bales de fala vo concorrendo para o claro
sentido da diegese. Conefrey tira partido de planos oblquos,
incrustaes, sobreposies de vinhetas, j para no falar dos planos,
expresses, cor, numa busca incessante por vrias dimenses visuais e
estruturais, mas todas elas esto, de certa forma, subsumidas ao
programa do conto.
(uma ilha em sketches) opta por no empregar sequer uma palavra do
texto original, se bem que no caso desta edio a prosa seja
apresentada antes da banda desenhada, como que convidando o leitor
a familiarizar-se com o vocabulrio, os ritmos, o entrosamento das
imagens textuais, de maneira a procurar na banda desenhada os
mesmos ndulos de sentido, as imagens correspondentes.
Finalmente, Conefrey trabalha sobre a composio a mquina de
amaranhar paisagens, de 1963, um exerccio de combinatria e
aleatoriadade sobre fragmentos textuais, a tentativa de fundar o
infinito num nmero finito de materiais, de uma maneira muito mais
livre e at mesmo, arriscar-nos-amos a dizer, combativa, por relao s
abordagens mais costumeiras da banda desenhada. O texto de Helder
criado atravs das estratgias de recombinao. Seleccionando trechos
de textos considerados basilares da civilizao e cultura ocidental -
a saber, o Gnesis e o Apocalipse, o alfa e o mega da coleco Bblia,
e trechos de Villon, Dante e Cames - o poeta recorta-lhes os
contextos, e f-los conviver num mesmo espao e, a cada passo, vo
desfiando-se e tecendo-se entre si, para se justaporem, cruzarem, e
pela multiplicao ou ocultao, atingirem uma outra natureza. Como de
esperar, Conefrey veste essa estratgia na sua busca pelas imagens:
algumas parecem querer estar o mais prximos dos objectos ditos
pelas palavras, outras procuram elos distantes, estas inscrevem-se
numa fuga de formas abstractas mas que possivelmente poderamos
imaginar coordenadas num qualquer movimento, numa animao, numa juno
que se fosse seguindo, aquelas abandonam personagens humanas de ar
esqulido perante o peso inexorvel das palavras ditas: Deus
separando os cus e as guas, o dia e a noite, a noite tenebrosa do
Inferno de Dante, todos perante a Maravilha fatal da nossa idade de
Cames. Existem vinhetas que parecem esculpir as formas suaves e de
veludo de pastis nocturnos, outras que apresentam as duras
angulosidades da fotografia de vincos de tecidos. Vogamos de cenas
secas e texturadas, da terrvel colina ou do limbo, a paisagens mais
luxuriantes, gneas, talvez das cpulas que estalam, das florestas,
de outros limbos. Variam-se paisagens ruidosas e plancies
silenciosas, algumas de pouca variao cromtica e outras onde linhas
se cruzam em formas promissoras mas que jamais se coalescem numa
deciso (e que recordam, em parte, os jogos combinatrios de Frieda
Harris para o Tarot de Crowley). Qui sejam todas tentativas do
autor de banda desenhada compreender o que se encontra dentro desta
luz e desta morte, como pede o texto.
Ao considerarmos o acto do desenho (e da colagem, da pintura, da
justaposio, da estruturao das pginas, da composio de um livro) como
uma extenso dos actos do corpo, e aquele exerccio de combinatria
textual como ecos desse mesmo corpo, vislumbraremos outra dimenso
daquela mudana Ainda em Photomaton & Vox, Helder escreve Agora
o poema um instrumento, mas no das disciplinas da cultura. uma
ferramenta para acordar as vsceras (). Age no crtex cerebral, camos
em percepes novas, tudo se torna fsico. Acto fsico de inscrio,
liberto agora pelo acto fsico da leitura.
Conefrey re-encadeia as suas imagens num fluxo que nada tem a ver
com o agencement espcio-temporal, ou da clareza narrativa ou
representativa do mundo. Estas sequncias so iluminadoras
to-somente, e por isso mais fortemente, das suas ligaes, uma
sucesso de imagens-cristal, se quiserem recuperar um conceito caro
a Deleuze. Apesar da presena do corpo, nos actos a montante e a
jusante da obra, as imagens saem dos eixos do tempo e do espao,
para surgirem como uma intensidade pura. Haver - at pela prpria
paginao, o objecto-livro, que institui o acto de ler, processo
temporal - uma obrigatoriedade presa ao mundo, mas no na sua cognio
conceptual, no na sua intensidade esttica. Porm, de forma alguma o
autor e a obra fazem abandonar a lgica prpria da banda desenhada, a
sua histria e tradio, a sua matria de expresso e espao de
experimentao. Podem colocar em causa, de forma patente e paciente,
alguns dos seus supostos limites ou limiares de dilogo com outras
reas criativas, mas no os desejam rasgar.
Algo curioso numa abordagem descritiva quer da escrita de Helder
quer do trabalho de Conefrey seria apod-los de austeros, difceis,
complexos, mas isso diria mais das prticas de leitura de quem o
articula, ou dos contextos normativos em que os seus textos
circulam em dificuldade, no fluxo de rudos mais salientes, do que
de algo intrinsecamente natural s produes de ambos. curioso, por
essa razo, ou nem tanto, que um livro desta natureza tenha tido uma
recepo crtica algo limitada, com excepo daqueles mais atentos e
sensveis a um territrio bem alargado da banda desenhada. Esta, com
a poesia, constitui um mercado ou territrio de nicho em Portugal,
bem distintos como de esperar, e uma experincia, como esta, que as
faa cruzar torna-se ainda mais um nicho no interior de outro. Ainda
assim, no podemos considerar este livro de Conefrey como existindo
num vazio total numa hipottica categoria. No entanto, ser
imperativo ser-se muito preciso na compreenso no que se poderia a
ele irmanar para configurar uma categoria.
Com efeito, a combinao da poesia com a banda desenhada no , de
forma alguma nem indita nem nova. Mas dizer isso dizer pouco, pois
a juno de uma e outra no somente uma questo de adio nem tampouco de
verter um contedo numa forma. Existem casos de adaptao em que um
autor visa transformar o poema numa situao, digamos, narrativamente
legvel e visvel, uma mera mise en images como um caso particular de
Mzires sobre Victor Hugo (veja-se aqui), um caso normativo mas
pouco expressivo; existem casos de maiores mal-entendidos, porm.
Tambm existem casos de colaboraes ou adaptaes sobre matria potica
verbal em veculos de banda desenhada eles prprios conducentes a uma
ambiguidade e extenso de sentidos mais alargados, como possvel
entender a poesia por oposio - o que no um bom princpio, mas
aceitemo-lo nesta tipologia tentativa - prosa. So os casos de
diceindustries com K. Hausladen ou de Lus Manuel Gaspar e os seus
poetas. Atingiramos ento aquele territrio em que so os prprios
autores de banda desenhada que tecem mecanismos estruturais,
estilsticos, da energia prpria aos seus instrumentos que permitem a
entrada num territrio potico - que, mais uma vez, nada tem a ver
com representao ou sentimentos. Aproveitem ou no matria
pr-existente, empreguem ou no o verbo, colaborem ou no com um
escritor, teremos Warren Craghead III, Ilan Manouach, Andrei
Molotiu, Von Blixen, Aidan Koch, Lala Albert a construir essa
pequena constelao. E Diniz Conefrey vem instalar-se, no seu modo
prprio, na sua pesquisa individual e singular, nesse canto, que vai
alargando o territrio de forma efectiva e iluminada.
Mas possvel que esta leitura possa ora no ser suficiente ou ir
longe demais nalguns aspectos. As armadilhas so muitas. Mas enfim,
como escreve o prprio Helder em Photomaton & Vox, E leia-se
como se quiser, pois ficar sempre errado.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro.