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ESPORTE E MID1A: NOVAS PERSPECTIVAS A INFLUÊNCIA DA OBRA DE HANS ULRICH GUMBRECHT Organização Ronaldo Helal Fausto Amaro edf UCIj Rio de Janeiro 2015

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ESPORTEE MID1A:NOVAS PERSPECTIVAS

A INFLUÊNCIA DA OBRA DE

HANS ULRICH GUMBRECHT

Organização

Ronaldo Helal

Fausto Amaro

e d fU C I j

Rio de Janeiro 2015

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho E d ito ria l

Bernardo Esteves Erick Felinto

Glaucio M arafon ítalo M oriconi (presidente)

Jane RussoM aria Aparecida Ferreira de A ndrade Salgueiro

Ivo Barbieri (membro honorário)Lucia Bastos (membro honorário)

R eitorRicardo Vieiralves de Castro

V ice-reitor Paulo Roberto Volpato Dias

edu e r

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Copyright © 2015, dos autores.Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

w EdUERJEditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRORua São Francisco Xavier, 524 - MaracanãCEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel./Fax.: 55 (21) 2334-0720 / 2334-0721www. eduerj .uerj [email protected]

Editor Executivo Coordenadora Administrativa Apoio Administrativo Coordenadora Editorial Assistente Editorial Coordenadora de Produção Assistente de Produção Supervisor de Revisão RevisãoCapaProjeto e Diagramação

ítalo Moriconi Elisete Cantuária Roberto Levi Silvia Nóbrega Thiago Braz Rosania Rolins Mauro Siqueira Elmar Aquino Aline Canejo Fernanda Veneu Thiago Netto Emilio Biscardi

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIU S/NPROTEC

E77 Esporte e mídia : novas perspectivas : a influência da obra de HansUlrich Gumbrecht / organização Ronaldo Helal, Fausto Amaro. - Rio de Janeiro : EdUERJ, 2015.312 p.

ISBN 978-85-7511-375-2

1. Esportes. 2. Estética. 3. Gumbrecht, Hans, Ulrich, 1948- .4. Comunicação de massa e esportes. I. Helal, Ronaldo.II. Amaro, Fausto. I. A influência da obra de Hans Ulrich Gumbrecht.

CDU 796.011.7

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Sumário

Apresentação: O que a área de mídia e esporte tem a dizersobre a contribuição de Gumbrecht?..................................................... 7

Perdido numa intensidade focada.........................................................13Hans Ulrich Gumbrecht

Corpo, performance e materialidade: por um olharnão hermenêutico nos estudos sobre esporte.......................................29Fausto Amaro e Ronaldo Helal

Futebol, engajamento e emoção........................................................... 49Arlei Sander Damo

O rosto do craque: fascínio da teletransmissãoesportiva..................................................................................................95Márcio Telles da Silveira

Experiências estéticas do futebol no cinema brasileirocontemporâneo.................................................................................... 119Ana Maria Acker

Adorno, Benjamin e Gumbrecht: contribuições teóricaspara a relação futebol e comunicação................................................139Anderson David Gomes dos Santos

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O futurismo: exponenciando o caráterestético do esporte.................................Víctor Andrade de Meló

163

Fascínio nas arquibancadas: apontamentosmetodológicos para uma cartografia dos afetos, materialidadessonoras e produção de presença na prática esportiva.................... 201Pedro Silva Marra

Uma partida em imagens: Instagram, futebol ematerialidades da comunicação......................................................... 233Débora Gauziski e Fausto Amaro

O esporte como a mais bela marginalidadeda vida: articulando estética, comunicação e cultura.................... 255Allyson Carvalho Araújo

Seleção brasileira, futebol-arte e Gumbrecht: o fascíniopela “amarelinha”................................................................................ 277Filipe Mostaro

Sobre os organizadores........................................................................305

Sobre os autores.................................................................................. 307

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Apresentação: O que a área de mídia e esporte tem a dizer sobre a contribuição

de Gumbrecht?

Pensar o esporte na Comunicação não é um fazer que conta com muitas décadas de história, como outras áreas den­tro dos próprios estudos de mídia. E, contudo, crescente o número de produções que trabalham com qualidade a interfa­ce entre mídia e esporte. A melhora qualitativa e quantitativa dessas pesquisas, que se reflete em livros e artigos, deve-se, em grande medida, aos autores utilizados como base para as reflexões e hipóteses desenvolvidas. Mais recentemente, um dos teóricos mais lidos e problematizados na área de esportes vem sendo o alemão Hans Ulrich Gumbrecht. A partir dessa constatação, nós, os organizadores deste livro, reunimos uma amostra das pesquisas que tiveram influência das ideias de Gumbrecht sobre o universo esportivo.

Discípulo de Hans Robert Jauss na universidade de Bo­chum, Gumbrecht tem forte formação literária e fez parte da segunda geração da Escola de Constança, que defendia uma estética da recepção como teoria e método literários. Em 1989, tornou-se professor de literatura comparada (francês, italiano, alemão, espanhol e português) da Universidade de Stanford nos EUA, com uma formação acadêmica globalizada, tendo

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estudado em Paris, Munique e Salamanca. Além disso, des­de a década de 1970, vem ao Brasil periodicamente ministrar cursos e palestras. Vale lembrar que, aos 26 anos de idade, já havia obtido a certificação acadêmica alemã (Habilitationss­ch rift)i — tal diplomação lhe possibilitava orientar doutores. Seus interesses são tão plurais quanto sua formação, passando dos esportes à política, tendo como suporte teórico tanto a filosofia quanto a história e a literatura.

Conhecemos Gumbrecht pessoalmente no XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom 2012), em Fortaleza, que teve como tema “Esportes na Idade Mídia”. Naquela ocasião, ele proferiu a palestra de encerra­mento do XXXV Ciclo de Estudos Interdisciplinares da Co­municação (Cecom). Muitos dos que estavam presentes talvez não soubessem que, além de um teórico apropriado pela ci- bercultura, Gumbrecht também é um pensador do esporte. Ao final do evento, apresentamo-nos ao teórico. Trocamos algumas palavras, que ajudaram a fomentar a ideia de fazer um livro sobre a influência de sua obra. Naquele momento, tão tímido quanto nossa conversa encontrava-se o estágio de produção do livro.

Após um tempo adormecido, o projeto do livro retornou em 2014. Ao buscarmos a autorização de Sepp, como Gum­brecht gosta de ser chamado, fomos recebidos com alegria e empolgação, o que aumentou nossa vontade de levar adiante o projeto. Convidamos nove pesquisadores brasileiros que se utilizavam do pensamento gumbrechtiano e ficamos felizes por todos, sem exceção, terem aceitado. Somos gratos a todos eles, que contribuíram desinteressadamente para tornar esse livro possível.

O leitor encontrará neste livro 11 artigos sobre diferen­tes aspectos do mundo do esporte e que se utilizam, em algu­ma medida, das contribuições do pensamento gumbrechtiano.

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Apresentação 9

O primeiro trabalho foi escrito pelo próprio Gumbrecht para a revista Aletria (Letras/UFMG) e gentilmente cedido por ele para a abertura do nosso livro. Nele, Gumbrecht abor­da resumidamente os principais pontos de sua reflexão sobre o fascínio proporcionado pelo esporte. Em Elogio da beleza atlé­tica (2007), essas mesmas ideias encontram-se mais extensa­mente trabalhadas. Porém, o leitor pode ter aqui um primeiro contato com o cerne do pensamento desse autor.

Coube a nós, os organizadores, introduzir o debate so­bre o impacto da obra de Gumbrecht nas Ciências Sociais e na Comunicação, com especial destaque para os estudos sobre o esporte. Nosso artigo se propôs a esclarecer o modo como o pensador alemão trabalha com as questões inerentes ao es­porte (corpo, prática, recepção) em seus livros Elogio da beleza atlética (2007) e Corpo e fo rm a (1998). Além desses, utiliza­mos também o já bastante conhecido e citado Produção d e presença (2010). Nosso objetivo é que o artigo sirva de guia te­órico para os demais trabalhos do presente livro, introduzindo algumas das principais reflexões que Gumbrecht aponta para a área do esporte e da comunicação.

Em “Futebol, engajamento e emoção”, Arlei Damo constrói sua reflexão em torno do engajamento clubístico, acrescentando à discussão suas próprias contribuições teóricas e reflexivas. No primeiro momento do texto, Damo revisita as contribuições de Norbert Elias e Gumbrecht, tecendo re­flexões críticas aos dois autores. Logo em seguida, empreende o objetivo principal do artigo, problematizando as razões do torcer clubístico.

Já Márcio Telles da Silveira escreve sobre o fatídico episódio da cabeçada do jogador francês Zidane no zagueiro italiano Materazzi. Logo na introdução, o autor levanta al­guns questionamentos sobre o lugar da televisão no processo de fruição do espetáculo esportivo: “E ser fiel aos fascínios do

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esporte como identificados por Gumbrecht em detrimento de outras esferas de sentido, como as informações provenientes de replays e estatísticas? Afinal, não seriam o replay e o slow motion outro fascínio, este só possível na televisão?”. A seguir, Telles propõe que os rostos exibidos durante os “tempos mor­tos esportivos” seriam o oitavo fa scín io do esporte, não previs­to por Gumbrecht em sua tipologia (presente no livro Elogio da beleza atlética). A análise em si concentra-se em fram es do rosto de Zidane coletados durante a transmissão televisiva da final da Copa de 2006.

Por sua vez, Ana Maria Acker traz um panorama do cinema brasileiro contemporâneo e seus enfoques estéticos so­bre o futebol. A análise cobre um amplo período: de 1995 a 2012. Trabalhando com o conceito de produção de presen­ça proposta por Gumbrecht (2010), a autora reflete sobre a nostalgia e o desejo de reviver o passado nos filmes Boieiros— era uma vez o fu teb o l (1998), Boieiros 2 — vencedores e ven ­cidos (2006), Garrincha — estrela solitária (2003), Carandiru (2003), O ano em que meus pa is saíram- d e fér ia s (2006), Linha de passe (2008) e Heleno (2012).

Em seguida, o artigo “Adorno, Benjamín e Gumbrecht: contribuições teóricas para a relação futebol e comunicação”, escrito por Anderson David Gomes dos Santos, situa um novo momento nos estudos em mídia e esporte. Para Santos, os trabalhos atuais na área distanciam-se da velha dicotomia apo­calípticos versus integrados. Assim, seu objetivo é criar pontes teóricas para a apropriação de autores frankfurtianos como Adorno, Horkheimer e Benjamín com os estudos sobre o es­porte, além da perspectiva das materialidades da Comunica­ção difundida, principalmente, por Gumbrecht.

Yictor Andrade de Melo volta seu olhar para as relações entre o esporte e a arte, buscando em Gumbrecht, entre outros autores, uma possível contribuição para essa associação. Para

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Apresentação 11

isso, ele elege o futurismo como locus de investigação, per­correndo diferentes aspectos desse movimento artístico e suas interseções com o esporte.

O ambiente sonoro criado pelas torcidas em jogos de futebol é objeto de pesquisa de Pedro Silva Marra. Assistir ao vivo uma partida no estádio representaria uma experiên­cia distinta da escuta radiofônica e das imagens televisivas. O som, nesse sentido, atuaria como um elo entre os torcedo­res e os jogadores em campo, criando um cenário propício e singular para as partidas ali jogadas. O texto discute ainda os desafios metodológicos que Marra teve de lidar para re­alizar seu mapeamento sonoro nos jogos do Clube Atlético Mineiro em dois estádios de Belo Horizonte e região metro­politana, em 2011 e 2013.

Partindo da constatação de que os artigos que trabalham com a interface Comunicação e Esporte no Brasil trazem tradi­cionalmente uma abordagem ligada à sociologia clássica - tratan­do normalmente de representações sociais e teorias jornalísticas e tendo como método principal a análise do discurso midiático —, Débora Gauziski e Fausto Amaro analisam as formas de apropria­ção do Instagram, aplicativo de compartilhamento de imagens, por torcedores de futebol. A partir de algumas tags referentes à final da Libertadores 2012, os autores efetuam uma investigação acerca da produção de presença nas fotos postadas.

Allyson Carvalho Araújo caminha entre momentos distintos da pesquisa sociocomunicacional sobre o esporte- desde um período em que esse era visto como um tema menor até sua valorização e seu reconhecimento como área relevante. Araújo utiliza-se das reflexões de Gumbrecht para pensar a produção estética imbricada nas manifestações es­portivas. Passeando pela modernidade e pela contempora- neidade, o autor tece seu argumento acerca do lugar do es­porte na teoria e na vida sociais.

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Por fim, Filipe Mostaro ficou com a responsabilidade de escrever o artigo que encerra este livro. O ensaio do au­tor busca relacionar o “futebol-arte” brasileiro, praticado por craques como Garrincha e Pelé, com a ideia de intensidade proposta por Gumbrecht. Como explicar o fascínio desperta­do pelo modo de jogar de nossa seleção? Como as carreiras de Garrincha e Pelé nos ajudam a entender o processo de cons­trução de um estilo de jogo que é, ao mesmo tempo, fasci­nante em sua estética e emblemático do “ser brasileiro” nos discursos produzidos a posteriori? Essas e outras questões são desenvolvidas por Mostaro.

Diante de trabalhos tão distintos, apesar de se debruça­rem sobre um tema em comum (o esporte), identificamos uma intenção partilhada por todos os autores: produzir conteúdo re­levante que consolide ainda mais a área de estudos em mídia e esporte. As contribuições de Gumbrecht sobre o tema ficam evidentes em todas as análises.

Esperamos que este livro possa servir como mais um estímulo para pesquisas e reflexões acadêmicas sobre o campo.

Ronaldo Helal Fausto Amaro

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Perdido numa intensidade focada: esportes e estratégias de

reencantamento1

Hans U lrich Gumbrecht

De vez em quando, as intervenções dos profissionais práticos tornam-se momentos especialmente inspiradores na vida dos profissionais das ciências humanas. Isso porque so­mente aqueles podem confirmar se as nossas construções con­ceituais e experimentais estao no bom caminho, ao mesmo tempo em que apenas eles têm autoridade para justificar o es­forço de levarmos adiante certas ideias que começaram a bro­tar nas nossas mentes como intuições ousadas e, justamente por isso, muitas vezes vagas. Um desses momentos intelectuais decisivos aconteceu durante o colóquio “O corpo do atleta” (The a th lete’s body), organizado pelo Athletic D epartm ent e pelo D epartment o f Comparative Literature a t Stanford Uni­versity, em 1995. No evento, Pablo Morales, ganhador de três medalhas de ouro como nadador em Jogos Olímpicos e alu­no da Universidade de Stanford, declarou, quase en passant, como o vício de “se perder numa intensidade focada” o havia levado de volta às competições esportivas após uma primeira

1 Publicado originalmente na revista Aletria (Letras/UFMG), jan.-jun. 2007, v. 15. Trad, de Georg Otte. Original em inglês. Disponível em http://www. periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/1380.

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aposentadoria do esporte e numa idade que simplesmente pa­recia impossibilitar qualquer sucesso em nível mundial.

Bastante explicitamente, o complexo conceito de Mo- rales referia-se tanto à experiência do espectador quanto à do atleta. O fato que lhe trouxe de volta a experiência de “se per­der numa intensidade focada”, como algo que, para ele, ainda era indispensável, foi a transmissão de uma prova dos Jogos Olímpicos de 1988:

Nunca vou esquecer a corrida da grande Evelyn Ashford, quando ela, última colocada na corrida de revezamento, veio de trás para ganhar o ouro para os Estados Unidos. A corrida havia sido apresentada por completo, até o fim; depois mos­traram um replay com a câmera focada no rosto de Ashford antes, durante e após a corrida. Seus olhos seguiram primei­ro a pista, depois focaram o bastão, depois a curva em frente. Longe da multidão, longe mesmo da sua competição, eu a vi perdida numa intensidade focada. O efeito foi imediato. Tive que me retirar da sala. Mas quando, nas horas seguin­tes, comecei a refletir sobre a minha reação, me dei conta do que havia perdido: aquela sensação particular de perder-se numa intensidade focada.2

O relato de Pablo Morales me ajudou a distinguir três dimensões diferentes na experiência do esporte. Primeiro, a palavra “perder-se” aponta para o isolamento e a distância específicos dos eventos esportivos com relação ao mundo cotidiano e as suas preocupações, semelhante àquilo que Immanuel Kant denominou “desinteresse” da experiência estética. Segundo, aquilo que os atletas e os espectadores

2 Citado do meu livro Inpraise ofathletic beauty (Elogio da beleza atlética), p. 50. Tal livro é a fonte de vários fatos históricos e, antes de tudo, o ponto de partida para alguns conceitos e motivos que tentarei desenvolver nas páginas seguintes.

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Abertura 15

“focalizam” - como algo já presente ou ainda por vir - pertence ao domínio das epifanias, ou seja, ao acontecimento de uma aparição, mais exatamente aos acontecimentos de aparições que mostram corpos em movimento como formas temporalizadas. Por último, tanto a experiência quanto a expectativa das epifanias são acompanhadas por halos de intensidade, isto é, por uma consciência quantitativamente elevada das nossas emoções e dos nossos corpos.

Descrever a experiência do esporte como a de “per­der-se numa intensidade focada” sugere que o esporte pode se tornar, tanto para os atletas quanto para os espectado­res, uma estratégia de reencantamento secular, uma vez que “perder-se” converge com a definição do sagrado como um domínio cujo fascínio reside no fato de ele estar separado do mundo cotidiano. Epifanias pertencem à dimensão do reencantamento exatamente porque a tendência, própria da modernidade, à abstração sempre acarretou também a ten­dência de se substituir as epifanias por “representações”, isto é, modos não substanciais de aparecimento. Além disso, a intensidade caracteriza um nível da nossa relação com o mundo e com nós mesmos que normalmente está destina­do a desaparecer na trajetória para o desencantamento (que se tornou estranhamente tão normativo para nós) - e que, ao mesmo tempo, se transforma numa condição para que o reencantamento aconteça. Ainda mais do que em outros ca­sos de reencantamento secular, parece evidente que praticar esportes e assistir a eventos esportivos podem ser considera­dos “estratégias” sociais. Por hora não está claro o que exa­tamente essas práticas podem estar substituindo na cultura contemporânea, e, enquanto não associamos a elas um único objetivo ou uma função mais ampla, temos a impressão de que a presença e a importância crescentes do esporte hoje

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ocupam o lugar de algo - e devem, de fato, estar ocupando o lugar de algo - que perdemos.

Em quatro breves reflexões, tentarei retomar algumas características de um mundo anteriormente “encantado” que recuperamos - na maioria das vezes de maneira inconscien­te - quando praticamos ou assistimos a atividades esportivas. Primeiro, vou me concentrar na perform an ce do atleta como um evento que possibilita a ocorrência de (algo equivalente a) milagres, para, em segundo lugar, tentar identificar com­ponentes do reencantamento, principalmente efeitos de “epi­fania” vivenciados pelo espectador. A terceira parte tratará do estádio como lugar “sagrado”, e, para concluir, descreverei um tipo específico de “gratidão” que vincula muitos espectadores à presença e à memória de seus atletas favoritos.

I

Graças ao seu conteúdo teológico complexo, basta ler algumas odes de Píndaro para entendermos como os atletas vitoriosos eram considerados “heróis” na Grécia antiga - sem a distância irônica que normalmente mantemos quando usa­mos essa palavra hoje em dia — e como os heróis eram semi­deuses. Pois não havia dúvida de que, nos grandes momentos dos atletas, o poder dos deuses (e os próprios deuses) se tor­navam presentes - presentes no espaço e no corpo do atleta. Assistir às competições dos atletas proporcionava aos seus es­pectadores a certeza de estar perto dos deuses. A expectativa de que os deuses iriam querer se envolver na competição atlética era consistente com aquilo que os gregos acreditavam saber sobre a maioria deles: basta pensar em Hermes, Afrodite, He- festo, Posêidon e, principalmente, em Zeus, para se dar con­ta de como as identidades desses deuses eram construídas em

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cima de vários tipos de potência física. Tanto a Ilíada quanto Odisseia deixam claro que esses deuses estavam constantemen­te competindo entre si por meio de sua força física, e que o agon (isto é, a luta e a competição) era sua forma preferida de vida - e muitas vezes, de fato, a única razão do seu interesse pelos humanos.

A proximidade com os deuses, cuja presença efetiva o agon do atleta supostamente provocava e incorporava, era o motivo principal pelo qual todos os jogos pan-helênicos, mais evidentemente os de Olímpia e de Delfos, eram orga­nizados na proximidade de santuários religiosos. Isso porque a aparição dos deuses era o tipo de acontecimento que se su­punha tornar-se real no espaço - e pode bem ter sido a par­tir dessa premissa que Martin Heidegger tomou inspiração para descrever o que ele chamou de “desvelamiento do Ser” e o “acontecimento da verdade” mediante uma topologia espa­cial - ou seja, como “enleio” ou “aproximação” - e por meio de sua interpretação etimologizante da “objetividade” como aproximação num movimento horizontal.3 Ao mesmo tempo, uma cultura que, tal como a da Grécia antiga, conta com a presença de deuses como possibilidade permanente não tende a usar palavras como “milagre” ou a elaborar uma dimensão específica do “miraculoso”. Mais uma vez, porém, as odes de Píndaro deixam claro que as grandes vitórias olímpicas eram vistas como acontecimentos da presença divina, isto é, como eventos que excediam os limites do humanamente possível. Poderíamos mesmo especular que os gregos não se preocu­pavam em manter recordes, ou seja, em saber quão longe um disco havia sido lançado ou o quanto um corredor se havia

3 Para mais evidências com relação a essa tese e ainda uma lista de referências a Heidegger, conferir Gumbrecht em Production o f presence (2004, pp. 64-78).

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distanciado dos seus rivais, pois os poderes divinos tornariam risível qualquer tipo de medição.

Evidentemente e por uma série de boas razoes, chamar de “divino” o desempenho de um atleta ou apreciar como “miraculosa” sua potencial quebra de recorde é considerado um sintoma de mau gosto intelectual. Nas últimas décadas, vários esportes desenvolveram métodos de treinamento cien­tíficos - e numa série de países isso fez surgir um trabalho aca­dêmico bem capaz de esclarecer, racionalmente, aquilo que os gregos entendiam como sendo a inspiração divina do desem­penho atlético. Os atletas bem-sucedidos de hoje estão muito conscientes do quanto dependem do progresso de pesquisas altamente especializadas e também aprenderam a distinguir claramente esse fundamento, necessário para seu desempe­nho, daquilo que consideram resquícios de superstição pesso­al. A maneira como eles vivem e relembram seus momentos mais inspirados converge fortemente, entretanto, com a tra­dição que vê o encantamento como presença divina. Dessa perspectiva, é significativo que bein g in the zone (“entrar na área”),4 uma metáfora espacial, tenha se tornado uma forma convencional entre os atletas de hoje para evocar momentos especialmente inspirados - ocasiões que desafiam qualquer explicação racional. Eis aqui uma descrição de como é “entrar na área” por J. R. Lemon, um dos melhores runn ing backs (literalmente: “corredores de fundo”) da história do time de futebol americano de Stanford:

Quando o jogador entra na área, ele é tomado por um es­tado de hipersensibilidade e tensão. Isso explica a aparente facilidade da minha corrida em direção à en d zone. Não é que eu não esteja me esforçando tanto quanto os outros jo-

4 Nota do tradutor.

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gadores em campo. Ocorre apenas que, nesse estado de hi- persensibilidade, as coisas se movem muito mais devagar do que para os outros jogadores em campo. Os meus sentidos ficam muito mais atentos ao que está acontecendo à minha volta e fazem com que eu reaja um pouco mais rápido que os outros jogadores, fazendo com que eu pareça fluir mais.

Evidentemente, J. R. Lemon evita a linguagem religio­sa nesse depoimento, mesmo que ele certamente não esteja su­gerindo que bein g in the zone seja um estado totalmente con­trolado pelas suas intenções. Um jogador tem de estar física e mentalmente bem preparado para se abrir a esse estado - mas isso não é suficiente. O que é mais necessário acontecer para que um jogador “entre na área” dependerá, como diríamos hoje, de ele estar “ligado”, de um determinado jogo ser “dele” ou não - dependerá daquilo que os gregos chamavam de ins­piração divina.

II

Se, para um atleta, being in the zone é um estado cujo acontecimento ele está esperando “em intensidade focada”, o foco do espectador, principalmente em jogos de equipe, está voltado para a emergência de belas jogadas. Jogadas bonitas são a epifania da forma. Em última instância, sem dúvida, a maioria dos espectadores quer que o “seu” time ganhe — mas, se a vitória fosse tudo, bastaria simplesmente verificar, a cada rodada, a tabela com os resultados. Uma bela jogada - por exemplo, quando J. R. Lemon recebe a bola de trás e encon­tra uma brecha na linha de defesa, que ele atravessa correndo para conseguir mais um f i r s t down - é uma epifania da for­ma. Isso porque ela tem sua substância nos corpos dos atletas

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envolvidos; a forma que ela produz é improvável e, portanto, é um evento (alcançado contra a resistencia da defesa do outro time). Final e principalmente, a bela jogada é epifanica porque ela é urna forma temporalizada, que começa a desaparecer no exato momento em que aparece.

Para cada um dos espectadores, uma bela jogada produ­zida pelo seu time traz um instante de felicidade. Respiramos fundo e, por um momento, percebemos como o sucesso e a con­fiança dos jogadores tornam-se contagiosos e parecem nos levar consigo. Pelo menos é isso que a maioria dos espectadores espera que aconteça com eles, mais exatamente — e sem que tenham consciência disso - aqueles espectadores que interiorizaram as regras e os ritmos do jogo e que não têm interesse profissional em analisar o que está acontecendo no campo, como no caso de técnicos e jornalistas. Esses espectadores, que podemos chamar de ‘ espectadores comuns”, podem permitir-se dar vazão às suas emoções, logo se sentindo parte de um corpo comum (mais do que propriamente coletivo). É dentro desse corpo comum que espectadores que nunca haviam se visto antes e nunca se verão depois se sentem à vontade para se abraçar, e é esse corpo co­mum que gosta de fazer o movimento da ola nas arquibancadas. Pegar-se fazendo esse movimento e ouvindo o ruído que ele é capaz de produzir em certos momentos do jogo provoca uma autopercepção que aumenta a coesão do corpo do espectador. O corpo comum dos espectadores pode se tornar a base para que os torcedores sintam-se unidos aos jogadores de seu time e, em algumas raras e gloriosas ocasiões, até mesmo conquistar o outro time e seus torcedores. Foi esse o clima quando, na noite de inauguração do Stadium Australia, em Sydney, o time de rúgbi da Nova Zelândia conseguiu uma vitória sensacional so­bre sua arquirrival Austrália - e os jornais, mesmo na Austrália, celebraram a partida unanimemente como “um dos melhores jogos da história do rúgbi”.

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Parece haver um nível de participação em que a fruição e a apreciação de belas jogadas excedem o desejo da vitória, em que a convergência comunal ultrapassa a dinâmica da ri­validade. A ambiguidade inerente a tais momentos certamente aparece em outros tipos de corpos comunais, principalmente naqueles formados pela experiência religiosa. Deve ter sido a promessa de superar o recolhimento individual que motivou uma das mais canônicas interpretações da Igreja cristã como “corpo místico de Cristo”. Mas a história nos mostra como, em determinados momentos, os “corpos” de diferentes de­nominações colocaram-se contra os outros, levando a guer­ras religiosas devastadoras, enquanto, em outros momentos, comunidades religiosas abriram-se com entusiasmo à fusão e à felicidade ecumênica. Se hoje em dia as divisões que se­param as diferentes interpretações e formas do Islã parecem estar mais irreconciliáveis que nunca, o momento é favorável à celebração da unidade cristã. E pode não ser por acaso que estádios construídos para times esportivos estejam sendo usa­dos como locais para eventos religiosos de massa. Enquanto existirem comunidades religiosas, é banal - e simplesmente inadequado — dizer que o esporte se transformou na “religião do século XXI”. Mas é óbvio que, hoje, o esporte e um entu­siasmo renovado por experiências religiosas convergem como caminhos para reencantar o mundo moderno.

III

Diante desse pano de fundo, não é preciso muita imagi­nação teórica para ver que os estádios possuem o status de es­paços sagrados. Eles ganham essa aura por serem visivelmente disfuncionais, isto é, por serem marcadamente diferentes de espaços e edifícios que desempenham funções predefmidas na

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nossa vida cotidiana. Do ponto de vista económico, nao há nada mais descabido na cultura contemporánea que a constru­ção de novos estadios em áreas centrais, onde os terrenos são extremamente caros. Isso porque as instalações esportivas não apenas impossibilitam a verticalização predial que normal­mente maximiza as vantagens financeiras do terreno adqui­rido; acima de tudo, os estadios ficam vazios durante a maior parte da semana e, muitas vezes, até mesmo por mais tempo.

Tal fato não explica apenas por que os estádios vazios, como espaços sagrados, exercem uma atração quase irresis­tível sobre os aficionados do esporte. Mais do que tudo, os estádios enquanto espaços sagrados são espaços que exigem e desencadeiam um comportamento ritualizado durante os momentos relativamente breves em que estão sendo utiliza­dos. Estar num estádio, tanto para os espectadores quanto para os atletas, não diz respeito fundamentalmente à inven­ção e à exibição de ações individualizadas. Estar num estádio significa inscrever-se, fisicamente, numa ordem preexistente que permite apenas espaços restritos de variação. Cada even­to, cada país e cada momento na história do esporte desen­volvem seus próprios rituais, suas atitudes e seus gestos que abrem uma dimensão para interpretações individuais infini­tas. Basta pensar nas transformações históricas graduais nos uniformes dos diferentes esportes, nas mudanças das atrações oferecidas durante os intervalos dos jogos ou nos sinais de tensão ou respeito mútuo entre jogadores de times rivais (do cavalheirismo arcaicamente “atlético”, passando pelo anta­gonismo claramente mal-intencionado até o falso sorriso de amizade das estrelas da mídia).

Por detrás da diversidade colorida dessas tendências, po­rém, há um padrão estrutural que se impõe em qualquer evento esportivo - e que está claramente relacionado com a natureza do estádio enquanto espaço sagrado. É o contraste entre os mo-

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mentos vazios e inativos e os momentos preenchidos com a mais intensa atividade corpórea, contraste que, reiterado em muitos níveis diferentes, mimetiza a relação entre os estádios quase sempre vazios e o agitado ambiente urbano à sua volta. Quando o espectador comum entra no estádio, meia hora ou dez minu­tos antes do início do jogo, ele verá e será imediatamente atraído pelo campo vazio, que é uma promessa do momento iminente em que os times ocuparão o campo. E no momento totalmen­te não surpreendente, mas explosivamente excitante em que os times entram em campo que os espectadores são absorvidos em suas identidades e atitudes comunais.

Após essa cena inaugural, o contraste central passa a ser a diferença constantemente repetida entre movimentos lentos (ou a ausência de movimento) e a velocidade e a po­tência típicas da per fo rm an ce atlética. Provavelmente, não há outro esporte de equipe que exiba de maneira mais vigorosa o potencial desse elemento estrutural que o futebol ameri­cano. Precedendo o início de cada jogada, dois times de 11 jogadores ficam de frente um para o outro, como em imagens congeladas, desenhando formas complexas no campo. O que pode suceder, a partir do segundo em que o cen ter lança a bola ao quarterback para iniciar uma nova jogada, não é com­pletamente coberto pelo contraste entre o belo jogo (ofensivo, neguentrópico) e o poder de destruição (entrópico) da defesa. Isso porque o futebol americano também oferece um tipo de situação em que, após os segundos de imagem imobilizada, nem a forma ordenada nem o caos acontecem, sendo esse “nem uma coisa, nem outra” motivo para o pedido de tempo (ou ojfside). Atendendo a essas chamadas, os jogadores vol­tam para as linhas laterais para falar com seus técnicos, antes de se colocarem novamente em posição. Nada de relevante acontece nesse meio tempo. E é essa impressão de “nulidade” que importa.

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Poderíamos especular que os jogadores e espectadores no estádio produzem conjuntamente, em diferentes níveis, uma incorporação daquilo que Martin Heidegger (1986, p. 1), no movimento de abertura da sua Introdução à metafísica (An in- troduction to metaphysics), identificou como uma questão filosó­fica primordial, a saber, a questão sobre a existência de algo em contraposição ao nada. Essa questão pode facilmente provocar uma vertigem existencial em quem se atrever a pensar sobre suas possíveis consequências. Mas incorporar uma questão é diferen­te de pensá-la a fundo e de expor-se ao seu impacto existencial. Certamente, os jogadores e os espectadores não têm ideia algu­ma daquilo que eles possam estar incorporando - e têm menos ainda a intenção de fazê-lo. É como se, no espaço sagrado do estádio, eles cumprissem um mandamento religioso para o qual nem palavras nem teologias estão disponíveis.

IV

Quando se fala e se escreve sobre o esporte a partir de um ângulo histórico, a tendência é a de se superestimar os momentos de repetição que sugerem continuidade. Tal tendência que, pro­vavelmente, se origina da intuição - indubitavelmente adequada- de que a nossa participação no esporte, seja como atletas ou como espectadores, remonta a camadas profundas e por isso mes­mo meta-históricas da existência humana. Contra essa tendência de focalizar invariantes históricas, é importante destacar que, por outro lado, as circunstâncias sob as quais essas camadas da nossa existência estão sendo ativadas pelo esporte apontam para uma surpreendente descontinuidade histórica.5 Houve momentos, en­tre a Grécia antiga e o presente, em que teria sido difícil descobrir

5 O segundo capítulo de In praise o f athletic beauty (Elogio da beleza atlética, 2006) apresenta mais evidências para esse ponto de vista.

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algum fenômeno semelhante à nossa ideia atual de “atletismo”. Nenhum dos esportes de equipe, por exemplo, cuja incomparável popularidade no início do século XXI nos leva a identificá-los com o esporte como um todo, existia antes de meados do século XIX. As multidões que eles atraem aos estádios e à mídia têm crescido continuamente nos últimos cem anos — e parecem con­tinuar a crescer. Assim, torna-se inevitável - e, talvez, até mesmo irrefutável — a ideia de que a história — pelo menos quantitativa­mente - triunfante dos esportes de equipe aponta para uma nova e importante função de compensação: uma função de compen­sação e reencantamento secular - numa época em que o processo de secularização e desencantamento do mundo (no sentido webe- riano) pode ter alcançado um estado de quase perfeição na nossa esfera pública globalizada. Pois existe ainda algum fenômeno hoje em dia que se dá o direito de apresentar-se publicamente como não racional e não pragmático?

Podemos também perguntar, nesse contexto, por que os times e suas epifanias da forma coletivamente produzidas parecem hoje nos fascinar até mais do que os jogadores mais destacados dessas equipes. E por que também estamos nos afastando, mesmo que devagar, daquele tipo de concentra­ção quase exclusiva em atletas individuais que caracterizava os esportes da antiga Grécia ou o universo surpreendentemente popular do boxe profissional na Inglaterra do fim do século XVIII e início do século XIX (hoje em dia, jogadores que cul­tivam interminavelmente o estrelato individual, como o britâ­nico David Beckham, claramente tiveram seu status diminuí­do no mundo do atletismo). Uma possível explicação pode ser que, na sua forma atual, o reencantamento propiciado pelo esporte (e outros fenômenos) não mais parece ser um dom concedido pelos deuses a atletas que são semideuses, mas, pro­vavelmente, é um efeito do comportamento bem coordena­do - talvez até sacramentalmente coordenado - da multidão.

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É difícil prever para onde essa evolução nos levará. De qual­quer maneira, o esporte, com seus efeitos reencantadores, con­quistou boa parte do mundo do lazer contemporáneo. Como tal, ele se coloca num contraste rígido com os mundos público e profissional (os quais dificilmente poderiam ser mais desen­cantados). Deveríamos entender as mais recentes conquistas da moda - você pode usar bonés de beisebol roupas esportivas da Nike no escritorio — como indicativas de um futuro em que o esporte deixará suas marcas na dimensão racional da nossa existência coletiva?

Hoje, muitos de nós sentem esse efeito benéfico do es­porte como compensação de coisas que estamos perdendo e já podemos ter perdido irreversivelmente no processo do desen­cantamento moderno - entre elas, a possibilidade de reservar algum lugar para o corpo na nossa existência. Isso poderia ex­plicar por que tantos fãs do esporte - e eu certamente sou um deles - experimentam uma gratidão ao mesmo tempo intensa e vaga com relação aos seus heróis mais admirados. Trata-se de uma gratidão “vaga” porque sabemos, de alguma maneira, que os atletas ou ex-atletas, enquanto pessoas privadas, não são realmente os destinatários dela. É claro que há algumas raras ocasiões que nos oferecem a possibilidade de dizer, pesso­almente: “Obrigado, senhor Jeter, por ter sido um shortstop tão extraordinário para os New York Yankees durante tantos anos”, ou “Caro senhor Montana, nunca vou me esquecer da suave precisão dos seus passes para tou ch -dow n”. Mas, estatistica­mente pelo menos, é improvável que nossos heróis retribuam algum dia essa gratidão e, menos ainda, que eles conversem pessoalmente conosco. Acima de tudo, sentimos que o refe­rente da nossa gratidão literalmente transcende o patamar dos indivíduos e das conversas individuais. Nesse sentido, nossa gratidão é semelhante àquela que levava os gregos a acredi­tar numa proximidade espacial com os deuses como condição

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para os grandes sucessos atléticos. Entretanto, como tantos de nós perdemos, em nossas existências privadas, os horizontes religiosos tradicionais da transcendência, essa gratidão é des­viada, por assim dizer, para o mundo que possuímos. A grati­dão pelos grandes momentos esportivos transforma-se na gra­tidão pelas coisas que aprovamos, desfrutamos e apreciamos nas nossas vidas cotidianas. Agradecer por aquilo que temos não nos torna necessariamente “acríticos” ou “afirmativos”; apesar de ser provavelmente esse o receio que explica por que tantos intelectuais, mesmo aqueles que adoram assistir ou pra­ticar o esporte têm muitos problemas em ficar em paz com ele.

Referências

GUMBRECHT, H. U. Production ofpresence·. what m eaning cannot convey. Stanford: Stanford UP, 2004.

------ . In praise o fa th letic beauty. Boston: Harvard UP, 2006.HEIDEGGER, M. An introduction to metaphysics. Trad. Ralph Manheim.

New Haven: Yale, 1986.

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Corpo, performance e materialidade: por um olhar não hermenêutico nos

estudos sobre esporte1

Fausto Amaro Ronaldo Helal

Introdução

Presenciamos atualmente uma gradual revalorização de um paradigma até então pouco estimado e utilizado pelas Ciências Sociais. Enquanto a sociologia clássica ou do social (Latour, 1994), herdeira do pensamento e do método de Émi- le Durkheim, foca-se no sujeito - o homem como o grande eixo sobre o qual o mundo gira - , a “nova” sociologia, vinda do resgate dos ideais de Gabriel Tarde por Bruno Latour e outros,2 pleiteia um olhar mais detido para os objetos (os não humanos ou inumanos). A própria noção de modernidade e pós-modernidade é posta em xeque por Latour no livro Jam ais fom os modernos (1994). Gumbrecht, por outro lado, ainda crê

1 Esta é uma versão atualizada do artigo publicado na Revista Fronteiras, 2013, v. 15, pp. 211-219.

2 Latour afirma que: “I’m convinced that if sociology had inherited more from Tarde (not to mention Comte, Spencer, Durkheim, and Weber), it could have been an even more relevant discipline” (2005, p. 14).

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na validade dessas duas “condições”, teorizando sobre ambas3 (1998, pp. 137-51).

Outro deslocamento presente nessa sociologia das as­sociações ou associologia (Latour, 2005) ou sociologia das ciências e das tecnologias (Callone e Law, 1997) está na abor­dagem metodológica. Ressaltamos que a tradição moderna ocidental adota a hermenêutica, na interpretação de textos e imagens, como fonte primordial de obtenção do conhecimen­to e método legítimo de seu fazer científico. Bruno Latour, Steven Shaviro, Michel Callón, Hans Gumbrecht e outros teóricos, por sua vez, mudam a perspectiva na descrição dos objetos pesquisados. Para esses autores, devemos esgotar um objeto por meio justamente de sua descrição4 — artifício ar­duamente criticado por muitos orientadores de teses e disser­tações em Ciências Sociais, como destacou André Lemos em sua palestra na Compós 2012.5 No decorrer desse processo descritivo, encontraríamos as respostas e os achados que pro­curávamos inicialmente, ou não, mas apostas erradas também fazem parte da ciência.

Um dos principais autores a documentar esse processo de “retomada” epistemológica e empírica foi Hans Ulrich Gumbrecht. Em seu livro Produção depresença (2010),6 logo nos

3 Para uma discussão sobre o conceito de moderno ao longo da história, com base na reflexão de Gumbrecht, ver o artigo de Araújo (2006).

4 No livro Em 1926: vivendo no limite do tempo, logo nas primeiras linhas, Gumbrecht esclarece seu método de escrita, que se aproxima de uma pro­posta à história descritiva e de uma ética não hermenêutica: “Cada verbete abstém-se tanto quanto possível de ‘expressar’ a voz individual do autor, de interpretações profundas e de contextualizações” (Gumbrecht, 1999, p. 9).

5 Palestra de apresentação do artigo “Espaço, mídia locativa e teoria ator-re- de”, no GT Comunicação e Cibercultura, realizada no dia 14 de junho de 2012, das I4h às 16h, durante a XXI Compós em Juiz de Fora.

6 Para uma crítica dessa obra, sugerimos a leitura da resenha de Daher e de sua tréplica (201 la, 201 lb), bem como da resposta de Gumbrecht à resenha e à tréplica (2011a, 2011b). Nesse debate, de argumentos apaixonados de ambos os lados, destacamos a diferenciação que Daher (201 lb) expõe entre

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dois primeiros capítulos, ele fornece aos leitores um elucidativo panorama histórico do interesse acadêmico pela dimensão material dos objetos. Nesse sentido, tomamos emprestadas as palavras de Erick Felinto (2001, p. 4) para justificar nossa predileção por esse autor alemão: “A trajetória intelectual de Gumbrecht pode ser tomada paradigmaticamente como núcleo para uma genealogia da teoria das materialidades da comunicação”.

O presente artigo propõe-se a esclarecer o modo como esse intelectual alemão trabalha com as questões inerentes ao esporte (corpo, prática, recepção) em seus livros Elogio da be­leza atlética (2007) e Corpo e fo rm a (1998). Além desses, uti­lizaremos também o já bastante conhecido e citado Produção d e presen ça (2010). Buscamos destacar primordialmente em que instância seu pensamento sobre o esporte cruza com os conceitos dessa nova sociologia.

O elogio de Gumbrecht ao esporte

Qual seria a melhor maneira de começarmos uma parte do artigo que trata da contribuição de Gumbrecht para os estudos sobre esporte do que contando um pouco da história desse alemão? Discípulo de Hans Robert Jauss na Universida­de de Bochum, Gumbrecht possui forte formação literária e fez parte da segunda geração da Escola de Constança, que de­fendia uma estética da recepção7 como teoria e método literá­rios. Desde 1989, é professor de literatura comparada da Uni­versidade de Stanford e conta com uma formação acadêmica

sentido e significado, além da explicação de Gumbrecht sobre como essa dicotomia epistemológica aparece em sua obra.

7 Em poucas palavras, essa corrente acadêmica, inaugurada por Jauss em opo­sição ao estruturalismo então em voga, foca no leitor e nas condições sócio- -históricas em que sua leitura se processa.

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globalizada (estudou em Paris, Munique e Salamanca). Além disso, vem periodicamente ao Brasil, desde a década de 1970, ministrar cursos e palestras.8 Com 26 anos, já havia obtido a certificação acadêmica alemã (Habilitationsschrift) que lhe permitia orientar doutores - válido enfatizar o quão difícil é obtê-la; Walter Benjamín, por exemplo, não a conseguiu, mas devemos levar em conta, é claro, o contexto sócio-histórico que separa os dois pensadores (Rocha, 1998, p. 7). Seus inte­resses são tão plurais quanto sua formação, passando dos es­portes à política, tendo como suporte teórico tanto a filosofia quanto a história e a literatura. Seus trabalhos convergem “em torno da rubrica das ‘materialidades da comunicação’” (Silvei­ra, 2010, p. 184). Sua busca é por maior igualdade, de atenção e de quantidade de trabalhos, entre os paradigmas hermenêu­tico (ou clássico) e não hermenêutico, e não pela substituição completa de um sistema por outro (o que seria um erro, além de uma incongruência ideológica). Em uma linha evolutiva dos estudos de mídia, podemos dizer que Gumbrecht resga­ta, em certa medida, o ideário mcluhaniano, que aproxima os meios de comunicação da experiência sensível.

A definição gumbrechtiana de esporte perpassa a desco­berta de pontos em comum entre suas diferentes modalidades (boxe, futebol, basquete, vela etc.) e que considerem também as motivações de sua atração estética. Para ele, “[...] qualquer coisa a que chamemos de esporte é uma forma de perform ance, ou seja, qualquer tipo de movimento corporal visto da pers­pectiva da presença” (Gumbrecht, 2007, p. 66). Ele identifica, nas perform ances atléticas, a preponderância da arete sobre o agón. Arete “significa buscar a excelência com a consequência (mais que com o objetivo) de elevar algum tipo deperform an-

8 Para entender um pouco da influência brasileira em Gumbrecht e de seu afeto pelo nosso país, ver Antoniolli e Batalhone (2009).

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c e a limites individuais ou coletivos” (Gumbrecht, 2007, p. 56). Essa visão proporcionada pela arete conferiria um caráter mais elevado ao esporte, menos sujeita às críticas normalmen­te feitas pelos intelectuais, que se baseiam em sua dimensão competitiva (agorí) e, por vezes, violenta. Ele destaca ainda a cisão entre os esportes e o mundo do dia a dia, o real banal - uma perspectiva teórica que não é de todo nova aos estudiosos do esporte: “Ao tornar possíveis o agón e o arete, as regras dos esportes confirmam e consolidam a insularidade que separa o esporte do mundo do cotidiano” (Gumbrecht, 2007, p. 61). Para os teóricos da Escola de Frankfurt, essa dissociação entre o mundo “real” e o dos esportes seria vista como alienadora das massas. Não obstante, em Gumbrecht, esse afastamento do cotidiano é visto como condição precipua de recepção e apreciação do espetáculo esportivo.

Gumbrecht diagnostica, no livro Elogio da beleza atlé­tica9 (2007), um descaso da academia com a temática do es­porte. Semelhante análise era compartilhada pelos intelectuais brasileiros que trabalhavam com o esporte na década de 1990, como Ronaldo Helal (1990) e Roberto DaMatta (1982). Ele dirige sua crítica àqueles que adotam uma perspectiva clássica em suas investigações sobre o esporte ou apenas o veem como um tema de menor importância, não digno de ser estudado. Utilizam-no como algo menor, mera “escada” para falar de outras esferas sociais ou como metáforas da sociedade — “es­crever sobre o esporte em nome de uma causa não esportiva” (Gumbrecht, 2007, p. 29). Ou ainda o superdimensionam, como o fez o antropólogo Roger Callois (1990), ao elevar o esporte à esfera do sagrado. Não falam do esporte em si; ape-

9 É importante destacar que esse livro foi inspirado por um artigo que Gum­brecht publicou no suplemento cultural “Mais!” da Folha de S. Paulo, em 11 de março de 2001 (Gumbrecht, 2010, p. 200).

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nas o descrevem ou criticam. Não o elogiam, e daí vem o res­sentimento do autor alemão. A veia da nova sociologia fica evidente nessa crítica à abordagem iluminista do esporte por grande parte dos intelectuais, que consiste em somente criticar o esporte, em vez de utilizá-lo “como instrum ento de crítica” (Gumbrecht, 2007, p. 30, grifos do autor).

Logo nas páginas iniciais do livro citado, Gumbrecht coloca-se como um sujeito torcedor, utilizando-se da terceira pessoa do singular para impessoalizar seu discurso. Poderia ser qualquer leitor a relatar aquelas experiências. De modo nostál­gico, por vezes poético, o “ele” narrativo relata suas memórias de ídolos e cenas de esportes diversos, como o sumô, o hóquei no gelo e o atletismo. Evidenciam-se as formas dos atletas e seus corpos, em traços ora de uma trivialidade próxima ao ho­mem comum, ora quase divina, ressaltando a perfeição perfor- mática. Buscaríamos incorporar as sensações de nossos ídolos ao vê-los em campo: “Em sua memória, você [...] sente um impulso percorrer seus músculos, como se para corporificar o feito de seu herói” (Gumbrecht, 2007, p. 23).

Parece-nos que, por meio dessa catarse de emoções, Gumbrecht quer introduzir seu argumento quanto ao poder que a beleza atlética exerce sobre os receptores (os torcedo­res). Mais do que pela lógica racional, seu discurso busca convencer através dos sentimentos que suas palavras desper­tam — efeitos de presença. Compartilhamos das sensações experienciadas pelo sujeito-narrador e sentimo-nos tocados pelas imagens vivas de sua memória. “Essa determinação em ver e em valorizar a beleza atlética como encarnação dos va­lores mais altos da cultura é o que desejo chamar de elogio. E essa capacidade de fazer elogios é o que perdemos - ao ponto de a própria ideia nos parecer embaraçosa” (Gumbre­cht, 2007, pp. 26-7, grifos do autor). O elogio de Gumbrecht seria uma forma de gratidão aos momentos de prazer e vita­

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lidade que os atletas - heróis em suas breves carreiras - nos proporcionaram (2007, pp. 175-8).

O pensador alemão debate ainda o caráter estético do esporte, contrapondo-o a outras experiências estéticas10 e criti­cando, em diversos momentos, os intelectuais que rebaixam o esporte a uma categoria distinta das obras de arte. Nossa ideia de experiência estética estaria impregnada pelos preceitos da dita “alta cultura”, uma ideologia transmitida e interioriza­da por todas as classes sociais. Em outras palavras, ele busca o belo no esporte e indaga sobre sua validade enquanto obra de arte.11,12 Acreditamos que o esporte possua uma beleza pe­culiar, ainda que não seja uma obra estática, imodificável e atemporal (típica dos museus de arte).

Outra reflexão interessante nesse sentido nos é apresen­tada por Günter Gebauer e Christoph Wulf, que aproximam o esporte do teatro e do ritual pelo caráter mimético dos três,

10 Cabe aqui deixarmos claro o que o autor entende por experiência estética, expressão que será repetida algumas vezes em nosso ensaio: “Procuro descre­ver como “experiência estética” qualquer experiência que oscile entre efeitos de significado (no sentido de “significação”) e “efeitos de presença” (qual­quer experiência que não se esgote na significação, como se tem tornado típico da cultura atual)” (Gumbrecht, 2011b, p. 5). E mais uma vez inte­ressante notar que, ainda que defenda a existência da dimensão da presença, Gumbrecht não exclui a importância da produção de sentido (Gumbrecht, 2010, p. 39).

11 Acerca desse status do esporte enquanto arte, ver o segundo capítulo do livro de Melo (2006), intitulado “Esporte e arte: a natureza do diálogo”. A partir deste, descobrimos também o texto “Esporte — visto esteticamente e mesmo como arte?”, de autoria de Welsch (2001).

12 Dúvida semelhante perpassa Luís Fernando Veríssimo em crônica publica­da no jornal O Globo (2012): “Pouca gente aprecia’ futebol como se fosse uma obra de arte. Apreciar’ significa distanciamento, um prazer puramente estético sem outro tipo de envolvimento. Quem gosta mesmo de futebol [...] é um apaixonado, e um apaixonado não aprecia’”. Aqui encontramos a mesma pergunta, mas com uma resposta pronta: não seria possível enxer­gar o futebol como obra de arte. Podemos criticar a separação incisiva que Veríssimo propõe entre os sentimentos associados à obra de arte: por que só poderíamos apreciá-la e não nos envolvermos com paixão?

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mas o diferencia enquanto forma artística: “[...] o esporte não é nenhum dos dois, nem arte nem ritual, mas uma alternativa, como uma terceira via que se desvia de um caminho originário comum” (Gebauer e Wulf, 2004, p. 159). Na obra desses au­tores, M imese na cultura , é interessante a leitura que fazem do esporte em seu caráter mimético, como algo já dado (em suas regras e rituais), mas aberto a apropriações e formado por uma rede de associações maior que o sujeito (“os gestos, os outros jo­gadores, os concorrentes, os espectadores, semelhantes situações antigas e resultados”). Guardadas as devidas distinções de pes­quisa e objeto, esta proposição teórica aproxima-se daquela de Gumbrecht (2007), quando este trata da produção de presença no esporte, e a de Latour (2005), sobre as redes sociotécnicas que ensejam as ações.

Com o auxílio de Kant em sua Crítica do ju ízo, Gum­brecht busca subsídios para sustentar sua argumentação sobre o caráter belo do esporte, distinto das outras artes, bem como seu apelo atrativo enquanto experiência estética. Na ótica kantiana, esta seria desinteressada tanto para os atletas quanto para a audiência e estaria fundamentada em um sentimen­to interiorizado (e não passível de racionalização), tendendo ao senso comum (por exemplo, a unanimidade nacional em torno da beleza do futebol praticado pela seleção brasileira de 1970). Acrescenta também o olhar focado de espectadores e atletas, que se desligam momentaneamente de suas vidas “re­ais” durante os eventos esportivos e concentram suas atenções apenas no esporte — o que ele denomina como “intensidade da concentração” (Gumbrecht, 2007, p. 45).

O belo possui uma “impressão de intencionalidade”, ainda que não a possua de fato, tendo, na verdade, um fim em si mesmo (Gumbrecht, 2007, p. 40). De todo modo, Gum­brecht prefere manter separada a experiência estética de uma obra de arte daquela do esporte, apesar de considerar que: “a

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arrancada de Jesse Owens no final do revezamento dos qua­trocentos metros rasos na Olimpíada de 1936 [...] é tão bela quanto as melhores esculturas de Michelangelo” (2007, p. 41). E propõe uma: “[...] compreensão da beleza específica do esporte em meio a todas as outras variedades da experiência estética” (p. 43).

Percebemos até aqui uma crítica e uma aproximação teórica na obra de Gumbrecht: crítica à metodologia herme­nêutica comum aos trabalhos acadêmicos sobre esporte - ele quer elogiar, não interpretar;13 e a aproximação com relação à teoria das materialidades, uma vez que ele se propõe a analisar os corpos quase como objetos, o que compreenderemos me­lhor no próximo tópico.

Produzindo presença no esporte

Primeiramente, é importante expormos a definição de presença. Segundo Gumbrecht, “algo presente é algo que está ao alcance, algo que podemos tocar, e sobre o qual temos per­cepções sensoriais imediatas” (Gumbrecht, 2007, p. 50). Su­cintamente, o termo produção de presença é utilizado “para designar os efeitos da materialidade da comunicação” (Hanke,2006, p. 6). É peremptório lembrar que materialidade não se refere somente a aspectos físicos de um meio, o que implica não desconsiderarmos os efeitos de presença em um estádio, ainda que não possamos, enquanto espectadores, tocar lite­ralmente a bola, o gramado, o tatame, os corpos dos atletas. A presença estabelece seu espaço quando a diferenciamos do

13 Esclarecemos o sentido em que utilizamos essa palavra ao longo do texto: “Interpretar o mundo quer dizer ir além da superfície material ou penetrar nessa superfície para identificar um sentido (isto é, algo espiritual) que deve estar atrás ou por baixo dela” (Gumbrecht, 2010, p. 48).

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sign ificado }A Esse é, aliás, outro ponto de debate entre a socio­logia clássica e a sociologia das associações.

A presença leva em conta a materialidade dos objetos, ainda que não exclua totalmente sua dimensão interpretativa (considerada a única preocupação dos sociólogos do significa­do — hermenêuticos). A presença seria anterior a qualquer tipo de concessão de significado, como nas perform ances do tenista Roger Federer: “[...] a forma e o ritmo desses movimentos [do tenista], como objeto de nossa percepção e de nossa memória, tendem a se tomar independentes daquilo que poderíamos interpretar neles” (Gumbrecht, 2007, p. 62). Em outras pala­vras: “O esporte, segundo Gumbrecht, não se propõe a repre­sentar nada que não seja sua própria produção de presença” (Rocha, 1998, p. 20).

E pela presença (física e ao vivo) que assistimos à perform an ce de atletas praticando algum esporte. Gumbrecht, todavia, não exclui a dimensão da ação no esporte, que seria a atribuição de significado aos corpos, lances, movimentos. Michael Hanke (2006, p. 8), nesse sentido, afirmará que: “[...] qualquer metodologia nas ciências humanas que inicia a investigação na materialidade deve alcançar o nível da interpretação, e vice-versa, a interpretação tem que considerar as condições materiais de produção deste sentido”. A recepção aqui não é um ato de passividade, como poderíamos supor em uma análise marxista superficial. Ela envolveria duas atitudes primordiais por parte dos espectadores: análise estratégica do jogo/apresentação/performance e comunhão com os demais torcedores nas arquibancadas (Gumbrecht, 2007, p. 145). A intensidade do “ao vivo” pode ser aproximada do conceito de aura do objeto artístico original em Benjamín (2000).

14 São sete as diferenças esmiuçadas por Gumbrecht. Não as detalharemos aqui por não ser o objetivo primordial do artigo (Gumbrecht, 2007, pp. 51-4).

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O caráter dramático é igualmente importante para o potencial aurático do esporte se concretizar, tanto ou mais que as vitórias. As derrotas dramáticas constroem lendas, cercadas de uma aura especial, como o Boston RedSox e a seleção brasileira de1982, citados por Gumbrecht (2007, pp. 63-4).

A dimensão da presença se manifestaria também no es­tar junto para torcer (o sentido de comunhão entre torcedores fanáticos de que falamos alhures) — um ato de não intencio­nalidade (ausência de atribuição de significado) e de rompi­mento das regras cotidianas que censuram o congraçamento do indivíduo na multidão. O gritar em conjunto “E campeão” ressoa como uma manifestação física dessa presença: “trata-se de um ponto físico de autorreferência pelo qual a multidão percebe a si mesma e transforma-se num corpo único” (Gum­brecht, 2007, p. 151).

Outrossim, o teórico destaca a diferenciação entre a as­sistência ao vivo do embate esportivo e a interpretação poste­rior. Trata-se de uma árdua tarefa descrever em palavras o pra­zer estético. Para ele: “[...] os significados que atribuímos aos corpos e aos movimentos nunca correspondem totalmente ao impacto emocional de sua presença física” (Gumbrecht, 2007, p. 47). Aqui, temos presentes duas vertentes do pensamento gumbrechtiano. Uma que diz respeito à atenção que legamos à presença dos diferentes suportes para a produção de sentido em determinada experiência. O que, ato contínuo, nos remete à materialidade desse suporte — por exemplo, papel, pedra e tela de LED. No esporte, a presença pode ser mais bem expe­rimentada ao vivo, em comunhão com os atletas que a produ­zem, e a materialidade se encontra primariamente no corpo dos atletas (não negligenciamos o fato que os aparatos tecno- midiáticos utilizados para acompanhar os eventos esportivos - rádio, televisão, tablet, computador, celular, jornal - também são dotados de uma dimensão material particular). No desem­

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penho corporal desses indivíduos, incluída suas consequentes manifestações (corridas, pulos, saltos, cabeçadas), está grande parte do belo e da experiência estética do esporte.

Em Elogio da beleza atlética, Gumbrecht propõe uma reflexão do esporte a partir, e tão somente, dos corpos dos atletas, entendidos em sua materialidade e presença. É interes­sante perceber a objetivação que ele faz desses corpos, aproxi­mando-os quase de objetos. Ele quer tê-los como base de seu pensamento. Assim expõe sua proposta:

O que poderia significar, afinal de contas, escrever sobre o “esporte como esporte”? [...] O que estou me comprometen­do a fazer neste livro, portanto, é uma coisa bem diferente e simples: vou tentar manter os olhos e a mente concentrados nos corpos dos atletas, em vez de abandonar o tópico do esporte para “interpretar” esses fenômenos como uma “fun­ção” ou uma “expressão” de alguma outra coisa (Gumbrecht, 2007, p. 31).

No mesmo livro, ele traça ainda uma curta história do esporte, desde a Antiguidade até a Contemporaneidade, passando pela Idade Média e pela Moderna. Nas Olimpíadas pan-helênicas, os corpos nus, untados em óleo, eram a nor­ma; uma regra cultural, conforme salientado por Gumbrecht (2007, p. 72). O reflexo do corpo, sob a luz do sol, produzia uma imagem aurática, que distanciava o atleta dos espectado­res, “homens comuns”. O desempenho atlético era eviden­ciado pelos corpos desnudos, que, segundo Sennett (2010, p. 32), também estariam associados à civilidade. Este seria um dos fatores para a atração da audiência: “estar na presença [...] dos corpos reluzentes dos atletas” (Gumbrecht, 2007, p. 73). Outro fator preponderante era a oportunidade de estar diante de heróis em uma arena que mimetizava, com eficácia,

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um palco religioso para o culto a divindades de carne e osso. O estádio em formato de um anel fechado aumentaria a sen­sação de se estar à parte do mundo, em outra dimensão da realidade. Percebe-se aqui, uma vez mais, “o problema dos desejos de transcendência, [...] objeto de reflexão constante na obra de Gumbrecht” (Araújo, 2006, p. 321).

No período medieval, o significante possuía uma função mais preponderante e não havia uma separação clara entre for­ma e substância, corpo e espírito - vide a cerimónia católica de transubstanciação do corpo de Cristo pela hóstia, isto é, torná- -lo novamente presente (Gumbrecht, 2010, pp. 50-2). Foi ain­da nessa época que presenciamos um momento de latência do esporte, em grande parte devido à influência do cristianismo e da Igreja, que tinham uma visão dicotômica do corpo: “ao mesmo tempo glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado” (Le Goff e Truong, 2012, p. 29).

Na Idade Moderna, durante o Iluminismo, houve uma supervalorização da mente e do intelecto, intensificando o pro­cesso de depreciação do corpo e da atividade física: “A dissemi­nação do livro impresso como meio de comunicação, desde o final do século XV, introduziu uma mudança estrutural que fez com que as formas comunicativas passassem a excluir o corpo tanto quanto possível” (Gumbrecht, 1998, p. 121).

Esse cenário começa a mudar com a fascinação crescente com os esportes entre os séculos XVIII e XIX e com a influ­ência de autores como Goethe e Rousseau, que ressaltavam a importância da prática de atividades físicas. Assim, “o fato de que muitas montanhas famosas dos Alpes foram escaladas pela primeira vez por cavalheiros prósperos do final do século XVIII pode ser interpretado como sinal precoce de uma mudança cul­tural na direção dos sentidos e da experiência corpórea” (Gum­brecht, 2007, pp. 89-90). Logo depois, o lazer, como atividade extracotidiana (fuga da rotina), passou a ser buscado por todos,

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e não somente pelas classes mais abastadas na Europa. Não nos esqueçamos também dos Jogos Olímpicos Modernos, reinsti­tuídos no fim do século XIX. Essa busca por atividades corpó­reas, em uma época de valorização da razão, coaduna-se com a proposição de Gumbrecht de que, em sociedades nas quais o significado é maior que a presença, esta tende a se manifestar por diferentes meios visando a “equilibrar a balança”.

Nos regimes fascistas do século XX, a cisão entre corpo e espírito volta a ser novamente enfatizada e divulgada pela im­pressa oficial (Gumbrecht, 1998, pp. 129-30). Enfim, o que Gumbrecht termina por deixar evidente é a não linearidade na história do esporte, a despeito de algumas convergências, desde a Antiguidade até os dias atuais. Haveria uma oscilação entre períodos mais propícios ao esporte e outros de repressão às prá­ticas corpóreo-desportivas, o que representaria uma variação também na intensidade dos momentos de presença e de sentido.

Ao tratar aqui do corpo humano e de sua materialidade, não podemos deixar de mencionar os estudos já produzidos na área de Comunicação e Esporte e que buscam relacionar o estilo de jogar futebol brasileiro com as nossas danças e ginga caracte­rísticas. Como salientado por Lovisolo e Soares (2011), muito se tem escrito sobre essa suposta associação, mas pouquíssimas pesquisas tentaram efetivamente descobrir a real ligação entre o estilo brasileiro, com seus movimentos corporais peculiares, e a dança. Acreditamos que os insights teóricos de Gumbrecht poderiam vir a ser justamente o suporte que os pesquisadores brasileiros buscavam para encaminhar suas investigações nesse sentido. Tentar, por exemplo, encontrar a resposta por meio do fascínio dos torcedores pelos corpos atléticos e da associação entre estes corpos e o mundo natural (ar, terra, água).

Destacamos ainda o fato de não existir uma separação entre as dimensões da natureza e da cultura na discussão de Gumbrecht sobre o esporte. Pelo contrário, elas se entrecru-

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zam em muitos momentos de sua argumentação. Em Gebauer e Wulf, essa ligação é mais bem dimensionada: “o esporte é uma lembrança de como os homens se comportam diante do meio ambiente (material e pessoal)” (2004, p. 160).

Outro ponto é a relação entre corpos humanos e não hu­manos em esportes como as corridas de Fórmula-1 e de cava­los.15 Aqui fica evidente a associação entre dois atores visando à melhor perform ance em conjunto. Tanto o carro de corrida quanto o cavalo são dotados de agências, no sentido latouriano e, sem a perfeita interação com eles, o piloto e o jóquei não de­sempenham corretamente suas atuações. “O fascínio dos hipó­dromos e dos autódromos está nessa fusão dos corpos humanos extraordinários com forças animais ou mecânicas superiores” (Gumbrecht, 2007, p. 127). A relação dos meios enquanto ex- tensores dos corpos humanos já era destacada, ainda que com outro enfoque, por McLuhan em sua clássica obra Os meios de comunicação como extensões do homem (2001).

Por fim, reiteramos que a materialidade está presente quando analisamos o suporte de assistência do jogo. Estar no estádio acompanhando ao vivo seria uma experiência estéti­ca dotada de maior presença do que assistir ao jogo em casa, diante da tevê ou escutando rádio. Compartilhar do espetáculo com uma multidão de aficionados pelo esporte produziria uma presença singular. Segundo Gumbrecht, “como sua realidade está na tela da tevê, as jogadas do campo não se aproximam de seus corpos nem partem deles, e isso muda fundamentalmente a dinâmica da troca de energia” (Gumbrecht, 2007, p. 156).

15 Outro teórico a investigar essa relação foi Roland Barthes. No artigo “O que é o esporte?”, ele percorre a questão-título, ressaltando que a explica­ção para a prática esportiva entre os homens pode estar justamente no embate contra a natureza e as máquinas: “[...] no esporte, o homem não enfrenta di­retamente o homem; há entre eles um intermediário, algo que está em jogo, máquina, disco ou bola. E essa coisa é o próprio símbolo das coisas; é para possuí-la, dominá-la, que se é forte, habilidoso, corajoso” (2009, p. 105).

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Mas, como é típico de seu fazer teórico, ele não atribui um jul­gamento de qualidade às duas experiências: “Assistir a esportes pela tevê e assistir a esportes no estádio são apenas duas for­mas de lazer diferentes e igualmente legítimas” (Gumbrecht,2007, p. 156). Inclusive, chega a dotar a tevê de um potencial crescente de presença: “O argumento segundo o qual uma ida ao estádio jamais poderia atingir a pletora de detalhes e a vi­são geral da ‘cobertura esportiva’ possibilitada pela televisão se torna cada dia mais forte e convincente” (Gumbrecht, 1998, p. 134). Sobre os estádios, não podemos negligenciar também sua dimensão material peculiar, que nos proporciona sensações tão díspares quando cheio em dia de jogo e vazio nos demais dias da semana. Gumbrecht, aliás, deixa explícita sua fascina­ção por estádios vazios em regiões centrais das cidades (2007, pp. 157-9).

Considerações finais

Adepto e um dos fundadores da (nova) corrente filosófi­ca das materialidades - sendo denominado neossubstancialista por críticos - , Gumbrecht recebe essa influência que perpassa todos os seus textos utilizados neste artigo. Ele reitera, sempre que possível, que “[..·] é um equívoco crer que as humani­dades e as artes devam lidar exclusivamente com fenômenos constituídos de significação e não com fenômenos baseados na substância” (Gumbrecht, 201 la, p. 3). Destaca também a importância do fascínio exercido pelo esporte sobre as pessoas para sua continuidade e seu sucesso. Sem essa vontade e o prazer dos torcedores em estarem presentes nos eventos espor­tivos, estes, com certeza, não ocupariam o lugar de destaque que hoje possuem em nossa sociedade.

Buscamos ao longo desse artigo ressaltar a visão sin­gular do esporte desenvolvida por Gumbrecht, por meio das

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noções de materialidade e presença, buscando no esporte um significante para experiências estéticas, e nao apenas um meio para a produção de sentidos. Daí, entendemos a ênfase do autor na observação dos corpos e de sua perfeição atléti­ca, que nos proporcionariam prazeres efêmeros, inexplicá­veis hermeneuticamente e extracotidianos. A dimensão da presença, como vimos, seria concretizada na assistência ao vivo de um espetáculo esportivo, dotado de beleza artística singular, distinta de outras esferas da arte e da cultura. Pen­sar o esporte, pelo viés da teoria das materialidades, implica considerar as condições sócio-históricas e materiais da recep­ção (no estádio, em casa, no bar, pela tevê, pelo rádio) e a produção de presença que lhe é inerente.

O estudo da obra de Gumbrecht aponta para alguns caminhos até então pouco explorados nos estudos da relação entre mídia e esporte. Entre aqueles que ficaram mais eviden­tes para nós estão: (I) uma historiografia da relação entre o corpo atlético e as imagens dele veiculadas nos meios de co­municação - abordar o corpo pela ótica da presença (a beleza atlética, a perfeição de movimentos); (II) pesquisas de recep­ção que enfoquem as motivações dos espectadores em perma­necer horas, semanalmente, acompanhando ao vivo ou lendo a posteriori notícias sobre esporte (de onde viria esse fascínio é a grande questão de Gumbrecht); (III) retratar, por meio de uma narrativa imagética, histórias icônicas do esporte16 ou a história de uma modalidade esportiva por meio de imagens a ela associadas (essa seria uma forma de historiografia mais descritiva e focada na presença); (IV) elencar quais seriam as materialidades presentes em uma dada modalidade esportiva ao longo do tempo (e questionar-se sobre suas temporalidades- quais os motivos da mudança); (V) discussões epistemoló-

16 Nessa perspectiva, ver o capítulo de Gauziski e Amaro neste mesmo livro.

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gicas sobre os estilos de jogo no futebol e em outros espor­tes a partir do referencial das materialidades; (VI) entender a produção de presença que diferentes meios de comunicação produzem ao transmitir eventos esportivos (isso, em parte, já é feito, ainda que de maneira rudimentar e restrita ao futebol, quando se compara com a narração radiofônica e a televisi­va); e (VII) investigações acerca do relacionamento associativo entre os atletas e seus instrumentos de trabalho (bolas, luvas, uniformes, tacos, raquetes cavalos, carros), enquanto poten- cializadores ou elementos vitais para seu desempenho.

Poderíamos continuar indefinidamente traçando possi­bilidades de pesquisa a partir de Gumbrecht, mas creio que aquelas que foram aqui avultadas já nos permitem constatar como a interface Comunicação e Esporte pode ser afetada positivamente pelo legado teórico de Gumbrecht e, a partir de suas ideias, construir novos corpus de pesquisa, enfoques temáticos e investigações epistemológicas. Terminamos por concluir que o esporte, sendo fundado no corpo, é predomi­nantemente cultura de presença. Não obstante, sua apropria­ção pelos espectadores e sua reprodução pelas mídias formam uma cultura de sentido.

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Futebol, engajamento e emoção

Arlei Sander Damo

Introdução

Não restam dúvidas quanto à centralidade das emoções no universo do esporte. Elas são uma busca para a qual o es­porte é um espaço de produção, como sugere Norbert Elias, mas também são a matéria-prima da qual o esporte se serve para promover seus eventos. As emoções estão em toda a par­te, até mesmo no mundo da ciência e do mercado, mas exis­tem espaços que se especializaram em manipulá-las. Embora o esporte não seja o único, é certamente um deles. Fácil de constatar, difícil de explicar.

Ao juntar futebol, estética e política, este texto preten­de ser uma contribuição às tentativas em curso de olhar para o esporte como um fato social da maior relevância para a compreensão da contemporaneidade. O foco recai sobre o futebol, esta “bagatela mais séria do mundo”, como diria o antropólogo Christian Bromberger, que se expandiu rapi­damente ao longo do século XX, sendo apropriado pela polí­tica e pelo mercado, mas que ainda carece de teorizações mais consistentes. O que segue não passa de uma contribuição modesta e articulada, basicamente, a partir de um diálogo

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crítico com a bibliografia consolidada e a recuperação de alguns aspectos que considero importantes das minhas pró­prias investigações.

Na primeira parte do texto recupero, rapidamente, as contribuições de Norbert Elias e Hans Ulrich Gumbrecht, dois dos principais autores que discutem seriamente o esporte sem os preconceitos acadêmicos habituais. Procuro enfatizar as divergências com relação a eles porque tenho a pretensão de colocar em cena outros olhares. Assim, na primeira parte, faço uma breve síntese da contribuição destes autores para a compreensão do esporte — talvez uma síntese demasiadamen­te breve e injusta; em todo caso, centrada naquilo que escre­veram sobre a relação do esporte com as emoções; no caso de Elias, a partir da questão da violência, e de Gumbrecht, da estética. A sequência, subdividida em duas partes, trata do que seria minha contribuição à discussão, com a recupe­ração da maneira como construí a noção de pertencimento clubístico, a meu juízo uma noção importante para compre­ender o viés político das emoções no espectro do futebol na medida em que ela articula um sistema que movimenta as emoções a partir da relação pendular entre identidades (nós) e alteridades (eles/outros).

Muitos argumentos aqui apresentados já vieram a pú­blico em outras circunstâncias, e valeria a pena documentá- -los. Isso porque, além de ingrata, a tarefa seria inútil, dado que certas repetições e adequações são inevitáveis quando se trabalha durante longo tempo com um mesmo tema. Só darei importância à contextualizaçao quando esta for indis­pensável ou esclarecedora. Por fim, devo acrescentar que esta parte do texto foi publicada, originalmente, na revista Histó­ria: questões e debates (Damo, 2012), sendo reelaborada para esta ocasião.

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Futebol, engajamento e emoção 5 1

Teorizando as emoções esportivas

E forçoso admitir, não sem uma pontada de frustração, que estamos devendo uma teorização mais consistente do fe­nômeno esportivo. Os avanços promovidos pelas ciências humanas nas três últimas décadas foram fundamentais para problematizar o tema em termos diversos daqueles propostos pelas teorias da alienação - mais preocupadas em combater do que em compreender o esporte - ou pelas ciências do esporte— demasiadamente implicadas com a promoção deste, em par­ticular de sua versão espetacularizada. Entretanto, a recente e já extensa produção em ciências humanas - sobretudo no campo da sociologia, da antropologia e historiografia - não foi suficiente para oferecer uma reposta abrangente e consistente para um fenômeno social que em pouco mais de um século impregnou-se à vida moderna.

À exceção de Norbert Elias, que vinculou o esporte à sua teoria sobre o processo de civilização, atribuindo-lhe um sentido alargado na dinâmica da sociedade ocidental, como espaço de produção de emoções controladas, não temos outras perspectivas teóricas de largo alcance.1 Para tornar o cenário mais nebuloso, a teoria eliasiana passa por um processo de re­visão na atualidade, tendo perdido parte do ímpeto adquirido ao longo das décadas de 1970 e 1980.2 No Brasil, a descoberta eliasiana ocorreu com uma ou duas décadas de atraso e, por incrível que pareça, no que se refere às produções que temati- zam o esporte, continua sendo usada sem a devida crítica. De mais a mais, a contribuição de Elias - só ou em parceria com

1 Não quero dizer com isso que Elias seja o único autor relevante para com­preender o esporte em perspectiva mais alargada. Estou me referindo exclu­sivamente ao encaixe teórico.

2 Para um balanço das teorizações e da recepção eliasiana, sugiro os textos de Charrier (1986, 2010) e Delzescaux (2001).

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Eric Dunning - nos ajuda a compreender o processo de con­versão dos antigos jogos populares em esportes modernos, mas pouco esclarece sobre outro processo, tão ou mais importante, que foi a espetacularização e a mercadorização, ocorridas com mais ênfase a partir da segunda metade do século XX.

Em certo sentido, a problematização do esporte coinci­diu com um momento intelectual de crítica às metanarrativas e isso talvez explique, em parte, certa ênfase nos particularis­mos e nas especificidades - a exceção fica por conta de histo­riadores amadores e de jornalistas, cuja produção deixa muito a desejar em termos de densidade teórica. Ao afirmar que a guinada contemporânea é mais particularista não significa que ela seja desprovida de preocupações teóricas. Parece-me, no entanto, que ela é mais profícua no diálogo com teorias alheias ao campo da produção esportiva do que preocupada em re­solver questões suscitadas neste espaço. Isso é particularmente válido para o caso da antropologia, cuja ênfase oscila entre a etnografia e o diálogo com outros campos já consolidados teoricamente - identidade, conflito, violência, consumo e até etnologia, entre outros. Ainda está por ser discutido a fun­do quais são as questões que o esporte coloca. E isso significa pensar no lugar do esporte - em toda a sua complexidade - no mundo contemporâneo. E tarefa árdua, certamente, que está à espera de realização.

Digamos que fosse possível e desejável propor uma te­orização do esporte ou das práticas esportivas numa perspec­tiva tal que pudéssemos ser abrangentes e ao mesmo tempo dar conta da diversidade, pelo menos em seus contornos mais gerais. Por onde deveríamos começar? Ou: de qual perspec­tiva as práticas esportivas nos parecem mais compreensíveis? Certamente não é de um ponto de vista a partir do qual elas sejam reduzidas a uma finalidade, seja ela econômica, política, profilática ou qualquer outra. Duas pistas me fazem crer que a

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perspectiva estética pode ser um excelente ponto de partida, o que nao implica pensar que seja a única. A primeira pista tem a ver com o fato de que o esporte se consolidou num espaço e num tempo socialmente identificados, pelo menos nas socie­dades modernas, como um espaço-tempo para o consumo de bens materiais ou simbólicos aprazíveis. Uma vez que ocupa esse espaço-tempo, encontra-se em relação estreita de comple­mentaridade e concorrência com a produção e a oferta de ati­vidades afins, como o são o teatro, o cinema e a música, entre outras. Não se pode negar que existe uma indústria esportiva e, sob vários aspectos, ela se parece muito com a indústria cul­tural (ou de bens simbólicos).

A segunda pista é corolária da constatação anterior, em­bora mais focada no público. O sucesso do empreendimento esportivo, que não é propriamente planejado e tampouco con­trolado, pelo menos na sua diversidade - à exceção da versão espetacularizada - está claramente vinculado à expansão da ética hedonista moderna, nos termos sugeridos por Campbell (2001). Esta ética, à diferença de uma ética tradicional, de co­notação dionisíaca, está associada a um consumo para o qual a imaginação desempenha uma mediação fundamental. Con­forme Campbell,

[...] é comparativamente fácil (pelo menos para o homem moderno) usar a imaginação para evocar imagens realistas de situações ou acontecimentos que produzem uma emoção no imaginador: uma emoção que, se controlada, pode por si mesma suprir todo o estímulo necessário a uma experiência agradável. É esta uma aptidão que é fácil demais de se ter como certa, esquecendo-se de que é um acréscimo compara­tivamente recente ao repertório de experiências da humani­dade (2001, p. 112).

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De fato, o que seria da moda sem a imaginação de que as roupas podem mudar o status de uma pessoa? E do roman­ce, se o leitor não pudesse se reportar aos personagens, experi­mentando em seu próprio íntimo as sensações descritas na fic­ção? E do futebol, cujo objetivo principal do jogo consiste em fazer uma bola cruzar os arcos defendidos por um grupo rival? A constituição do gosto esportivo em geral e do futebol em particular passa pelo incremento desse poder de imaginação, uma construção coletiva, pública e tensionada, que é impreg­nada aos indivíduos por meio do processo de socialização. Os grandes estádios, a multidão intrépida e as narrativas épicas são as formas objetivas dessa construção espetacular do futebol e elas podem induzir, mas jamais forçar uma dada experiência agradável. Esta só pode se realizar plenamente com a interiori- zação da capacidade de imaginação, equivalente à construção de uma dada sensibilidade profundamente estética, emotiva, cognitiva e, em certos casos ao menos, política.

O gosto por perform ances aprimoradas não difere, sob muitos aspectos, ao gosto pelo aprimoramento da p er fo r­mance, em termos de modelagem corporal ou de rendimento propriamente dito. Este tipo de experiência está presente em todos os esportes, sendo uma busca especialmente deliberada naqueles rotulados de radicais - diante deles o futebol pare­ce uma reminiscência do Quattrocento, o que não o impede de ser apreciado. Por meio deles, em especial nos discursos de seus praticantes e de seus fruidores, nota-se o quão valoriza­do é a experimentação, o que os coloca numa certa vanguar­da esportiva, podendo esta ser comparada, num plano mais alargado, com as vanguardas artísticas contemporâneas, para as quais a experimentação é um valor incontestável. Pensar nestes termos não significa algo oposto do que propôs Elias, quando fala em busca de excitação, mas é algo diverso, pois acentua os meandros da constituição do gosto esportivo.

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Os escritos de Gumbrecht (2006) sobre o esporte — e não apenas sobre o futebol, embora este ocupe um papel des­tacado - são joia rara, pois focalizam justamente a questão estética. Em vez de desconstituir a legitimidade do gosto do público esportivo e dos seus praticantes, algo frequente entre os intelectuais, Gumbrecht segue na direção contrária, bus­cando entender o que faz do esporte algo tão apreciado. Para tanto, alia o domínio em teoria literária à sua experiência, tão ampla quanto diversificada, como frequentador e espectador de eventos esportivos. A mediação é feita a partir de uma pers­pectiva kantiana, mas sem se limitar a ela.

Pela originalidade, fluência e elegância, os escritos exer­ceram grande influência sobre minha forma de pensar a esté­tica futebolística, embora tenha seguido um caminho diverso de Gumbrecht, quiçá pelo reconhecimento de que ele havia avançado consideravelmente na direção a que se propusera. Alguns aspectos dessa diferença podem ser úteis para ampliar o entendimento do envolvimento com o esporte, um interesse do tipo desinteressado como é frequente no mundo artístico- pelo menos quanto a isso estamos de acordo. Um dos argu­mentos fortes de Gumbrecht (2006, p. 38), seguindo uma re­ferência explícita à Kant, trata o desinteresse como uma marca distintiva da experiência estética. De fato, os torcedores não ganham nem perdem efetivamente com o resultado dos jogos, salvo quando fazem apostas paralelas, mas nesse caso trata-se de um envolvimento diferente, de um jogo de outra natu­reza e ainda assim passível de ser analisado desde um ponto de vista estético. Acompanho-o inclusive quando argumenta que mesmo os profissionais muito bem remunerados, que são exceção à regra, tendem a colocar os dividendos econômicos em segundo plano quando estão em ação (Gumbrecht, 2006, pp. 38-9). Em que pese os espectadores em geral, e os torcedo­res de futebol em particular, seguidamente os tratarem como

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mercenários - categoria de acusação preferencial, pelo menos no Brasil - , o esporte de alta p erform an ce demanda uma mo­dalidade de envolvimento dos profissionais que ultrapassa a contraprestação monetária pura e simples. Isso não significa que sejam desapegados, mas a relação entre produção e remu­neração não se aplica ao esporte, como de resto também não se aplica às carreiras artísticas em geral, tal como na indústria ou no comércio.

Em sua interpretação, Gumbrecht pressupõe uma cisão com relação ao cotidiano, com o que eu concordo apenas em termos. Por um lado, esta diferenciação é pertinente e clara­mente observada quando se acompanha a movimentação do público em direção aos espetáculos, sendo este deslocamento não apenas físico, mas também simbólico e emocional. Há, efetivamente, um “trânsito”, que até o presente não foi devi­damente estudado. Em certas ocasiões ele é tão perturbador que lembra os efeitos promovidos pelos rituais religiosos, em particular daqueles que apostam no transe como um estágio estratégico para a “experimentação de outros mundos”. Como descrevi alhures, inspirando-me na noção de perform ance, de Paul Zumthor (2000), um dos mestres declarados de Gum­brecht, os torcedores a caminho do estádio vão constituindo a ruptura com relação ao cotidiano na medida em que aderem a uma sequência de pequenos ritos ou perform ances - agrupa­mentos coletivos, xingamentos, cânticos, ingestão de bebidas alcoólicas, maconha e afins etc. — de modo a produzir um sen­timento de communitas (Turner, 2013[1974], pp. 97-155), configurando o espaço do espetáculo como algo diverso e por vezes oposto ao cotidiano.

Por outro lado, a noção de perform ance auxilia a pensar numa experiência estética ampliada, que não começa ou termi­na abruptamente com o jogo propriamente dito, embora tenda a encontrar seu ponto alto no seu decurso, especialmente se o

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embate for absorvente. Todavia, o fato de o engajamento ser uma condição importante para experimentar plenamente o es­petáculo futebolístico, como será argumentado oportunamente neste texto, além do fato de que o jogo continua sendo comen­tado na sociabilidade que o segue, indica a clara possibilidade de estabelecer conexões entre o ordinário e o extraordinário. As trocas jocosas que fluem nas redes de sociabilidade constituem, elas mesmas, uma modalidade de jogo; um esgrimir-se no ter­reno das palavras, uma poética muito singular na qual se desta­cam os torcedores com senso de humor, capazes de provocar o riso, algo tão valorizado quanto um lance de campo. Pela minha experiência etnográfica, eu me atreveria a dizer que são os torce­dores mais aficionados os que tendem a conectar estes espaços- -tempos, projetando a modulação emocional do jogo para seu antes e depois. De todo o modo, esta conexão é um fato que não pode ser negligenciado, pois é a razão de existir tanta oferta de programação midiática extrajogo - por que os torcedores leem as notícias diárias nos jornais ou assistem àquelas intermináveis mesas de discussões nas noites de domingo?

Outro ponto de descolamento com relação a Gumbrecht provém da ideia, outra vez pinçada de Kant, segundo a qual uma coisa é bela ou não dependendo exclusivamente de um “sentimento interior de prazer ou de desprazer” (2006, p. 39, tradução minha). Pelo contrário, o prazer e o desprazer são, em boa medida, construções coletivas — o que não significa que sejam consensuais — e envolvem uma rede de agentes e de agências que produzem muitos dos parâmetros a partir dos quais os juízos individuais são promovidos. Na esteira da sociologia da arte de Bourdieu (1999, 2007), mas com um toque etnográfico, Heinich (1997) mostra como a apreciação da arte contemporânea depende, em boa medida, da socialização do sujeito nesse universo, sendo frequente, inclusive, a presença de mediadores especializados

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em instalações do gênero. Assim, o papel desses mediadores é auxiliar na decifração da obra de arte, que do contrário poderia vir a ser desconsiderada como tal. Heinich usa este exemplo para mostrar que toda apreciação em arte é, em alguma medida, mediada, podendo-se dizer o mesmo para o caso do esporte. É tanto mais ampla a possibilidade de apreciação de um esporte quando se compreende as regras, a lógica dos eventos, o contexto do confronto e assim por diante. Nada disso está dado, devendo ser apreendido, em graus diferenciados, ao longo da socialização e por vezes da prática de cada modalidade. Tanto na arte quanto no esporte, o que é imperceptível ao leigo bem pode ser algo extraordinário ao cultivado.

Não discordo da hipótese de que certos eventos possam ser universalmente apreciados (Gumbrecht, 2006, p. 40), mas é igualmente verdadeiro o fato de que alguns o são mais in­tensamente para segmentos restritos. Para quase todos os tor­cedores brasileiros, exceto os gremistas, o empate em 3 a 3 entre Grêmio e Estudiantes de La Plata, pela Libertadores de1983, sequer figura em suas memórias. Para uma geração de gremistas, no entanto, o jogo é lembrado como “a batalha de La Plata”, sendo muito mais do que um jogo, dadas as cir­cunstâncias com que o resultado se produziu e, sobretudo, ao contexto de então — o Grêmio vencia por 3 a 1 e o Estudiantes empatou o jogo com apenas sete jogadores em campo, mas ainda assim o Grêmio passou de fase e tornou-se campeão da Libertadores. Esse jogo poderia ser tratado como uma epifa­nia, se comparado com outros jogos, mas Gumbrecht reserva este termo para determinados eventos do jogo, que seriam uni­versalmente apreciáveis, o que é um tanto discutível, uma vez que as circunstâncias de um mesmo evento podem ser vividas de modo distinto por diferentes espectadores, como no caso do exemplo citado.

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Em alguns textos anteriores, usei Gumbrecht como um ponto de partida crítico, explicitando por que não seguia sua orientação, em que pese ela fosse tentadora. O argumento não é diferente aqui e isto não implica diminuir o autor, mas apon­tar outras direções possíveis, algo absolutamente rotineiro no espaço da produção intelectual. Diria, pois, que meu interes­se não é polemizar com Gumbrecht, mas dialogar com ele, centrando minha atenção na questão do engajamento e nas experiências que ele proporciona. Em certo sentido, e já me antecipando a uma crítica possível, desloco a atenção do jogo para o contexto do jogo, o que significa menos uma descon­sideração pelos eventos propriamente esportivos e mais uma estratégia analítica, influenciada por uma dada perspectiva de sociologia e de antropologia da arte, que destoa daquela usada por Gumbrecht. No espaço esportivo, tão importante quan­to a experiência estética é a experiência política, no sentido de tomar parte, de envolvimento e explicitação pública deste envolvimento a ponto de torná-lo, por si só, um espetáculo.

O engajamento

Ao invocar uma perspectiva estética para compreender o esporte, não estou pensando em reduzir o olhar para ques­tões de beleza ou torpeza. Isso pode vir a ser um interessante objeto de discussão - que será retomado oportunamente, in­clusive - mas está longe de constituir o foco analítico princi­pal. A experimentação e a emoção, indissociadas das noções de gosto e de envolvimento, constituem o cerne da questão para a qual gostaria de contribuir, agregando um componente político, muito presente no espectro do futebol de espetácu­lo. Gostaria de acrescentar, contudo, que não pretendo olhar para o futebol a partir do aparato teórico da ciência política, mas trabalhar a partir das noções nativas, aquelas acionadas

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pelos agentes em campo, na direção de uma teoria etnográfica da política (Abélès e Jeudy, 1997), aqui adaptada para o que poderia vir a ser pensado como uma teoria etnográfica das emoções políticas.

Privilegio, pois, a busca pela originalidade e especifi­cidade das emoções experimentadas no espectro do futebol e, particularmente, daquele segmento voltado para o espetá­culo. Os objetivos são modestos, bem aquém de uma contri­buição efetiva para uma “teoria das emoções esportivas”. Na verdade, recupero alguns elementos de pesquisas anteriores, desenvolvidas para a dissertação de mestrado (Damo, 1998) e para a tese de doutorado (Damo, 2005). Boa parte desses argumentos foi explicitada, com maior ou menor ênfase, em textos produzidos a partir dessas pesquisas. Em todo caso, faço aqui uma espécie de retomada desses trabalhos, desta­cando aspectos que dizem respeito à produção dos argumen­tos, da razão pela qual fui levado a dar tanta importância aos aspectos estéticos e políticos condensados na noção de pertencimento clubístico.

Na dissertação, as questões da identidade clubística, das tensões a respeito, dos vínculos dos torcedores a seus clu­bes, da educação, da sensibilidade e da expressão das emoções constituíam o objeto principal da investigação. Já a tese trata­va da formação de jogadores e, a rigor, não necessitava reto­mar as questões supracitadas. Todavia, ao avançar com a et­nografia, fui descobrindo que um dos aspectos importantes na formação dos jogadores, e que excedem os investimentos rea­lizados nas técnicas corporais específicas, passava pela dimen­são emocional e, mais especificamente, por um aprendizado de como lidar com a ansiedade e a pressão do público. A partir de certo momento, incorporei a hipótese de que a formação de jogadores, diria mesmo que a existência de uma carreira dessa natureza, não existiria sem que houvesse um público

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para valorizá-la, remunerá-la e exigi-la. Cada vez mais foi ficando claro que a formação de jogadores não poderia ser descolada das expectativas do público e, em se tratando de futebol, o público não é uma massa dispersa, antes comunida­de de pertença relativamente bem arranjada em torno dessas instituições denominadas clubes. Retornar ao clubismo foi, então, um percurso natural.

Neste texto em particular, trato de vários aspectos en­volvendo a relação entre emoção e política presentes no con­ceito de pertencimento clubístico. O ponto de partida é um dos capítulos da tese que não foi integralmente aproveitado por ocasião da conversão desta em livro. Trata-se do segundo capítulo, denominado “A trama simbólica das emoções clu- bísticas: uma contribuição à compreensão do gosto pelo fute­bol de espetáculo” (Damo, 2005, pp. 57-96), que na origem estava subdividido em três partes, sendo que duas delas não foram utilizadas ou o foram apenas superficialmente quando da preparação do livro. Esse material de origem foi revisado e ampliado, mas, como se trata de um tema sobre o qual me ocupo há vários anos, não será surpresa que, aqui e ali, rea­pareçam argumentos veiculados também em outros textos de minha autoria.

Por muito tempo, inquietou-me o fato de encontrar em textos não acadêmicos as definições mais apropriadas, aque­las que pareciam melhor retratar o sentimento de devoção aos clubes de futebol por parte dos torcedores. A convicção acentuou-se ao longo da pesquisa de mestrado com relação à qual o pertencimento clubístico constituiu-se no objeto cen­tral. Para ser franco, a noção de pertencimento clubístico foi forjada em meio à escrita da referida dissertação e talvez seja sua principal contribuição. Desde o princípio daquela investi­gação, trabalhei com o conceito de identidade social, tentando adequá-lo para o espaço do futebol, o que efetivamente não se

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mostrou um problema. Não me interessava tanto pela questão das torcidas organizadas, o foco principal das investigações na década de 1990, mas pela identificação dos torcedores com seus clubes num plano mais amplo. Por um lado, procurava resgatar as diferentes modalidades de vínculo, não apenas en­tre os torcedores e seus clubes, mas dos torcedores de um mes­mo clube entre si, dos clubes com as cidades e regiões onde estão sediados ou, ainda, com categorias sociais mais alarga­das, como raça e classe social, as mais recorrentes no contexto brasileiro - e não sem motivos. Por outro lado, havia a questão concernente ao sentimento que amalgama os torcedores a seus clubes, caracterizando tal modalidade de vínculo por uma for­te conotação exclusivista (dito único e imutável), um tipo ana­crônico se pensado com relação à modernidade e, sobretudo, à contemporaneidade, em que sobressaem as escolhas do tipo mutável, reversível, instrumental e assim por diante.

Ao direcionar o olhar para a questão dos vínculos clu- bísticos, independentemente de quais fossem, o jogo de fu­tebol foi sendo parcialmente desfocado. Este caminho gerou algumas vantagens e muitas desconfianças. Vantagens inegá­veis por me distanciar do discurso midiático, sobretudo dos cronistas esportivos e dos historiadores amadores. Esses pro­fissionais criam e recriam, ininterruptamente, categorias de apreciação do espetáculo, pois este é o papel que lhes é devido. É o caso, por exemplo, da categoria futebol-arte, tantas vezes incorporada às narrativas acadêmicas sem o devido cuidado, como se fossem um dado positivo — como se o futebol-arte efetivamente existisse ou tivesse existido. O deslocamento não tem a intenção de forjar uma modalidade de verdade para ser confrontada com sua antítese, mas reconhecer que existe uma diferença substantiva de propósitos entre a produção acadê­mica e aquela dos cronistas. Isso porque estes fazem parte do campo e têm por atribuição - no que concerne à divisão social

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do trabalho no âmbito do futebol de espetáculo - a produção de narrativas performáticas, no sentido de tornar os espetácu­los ainda mais espetaculares, com o perdão da redundância.3

Por ocasião da etnografia realizada em meados dos anos de 1990, fui indagando diretamente aos torcedores acerca das razões de seu apreço pelo clube ao qual se diziam apaixona­dos, mas não encontrei para minhas perguntas - mal formula­das, talvez - senão respostas lacônicas, óbvias ou redundantes: “gosto do Grêmio porque ele é azul”; “não sei o porquê, mas sempre gostei desse time”; “todos na minha família são colo­rados”; “para mim, o Grêmio é tudo” e, aquela que foi a gota d’água para repensar os procedimentos, “não sei como dizer! Ser gremista é experimentar todas as emoções. Ser gremista é ter orgulho de sê-lo”. Esta última tornar-se-ia epígrafe de um dos capítulos da dissertação, e a razão de tal escolha, bem me lembro, foi o fato de uma definição aparentemente tão evasiva ter sido extraída de uma redação classificada em segundo lugar num concurso realizado pelo próprio Grêmio, o que significa­va que ela dizia algo partilhado por outros gremistas.4

Durante a revisão bibliográfica da referida dissertação, fui colecionando, em contrapartida, frases que eu imaginara poder ouvir de meus informantes, em lugar de seus reitera­dos embaraços, evasivas e obviedades. Tais frases não eram de colegas antropólogos ou sociólogos, mas em grande parte retiradas de seus textos, nos quais eram referidas em citações, muitas delas em epígrafes, atribuídas a José Lins do Rego, Luiz Fernando Verissimo, Carlos Drummond de Andrade, Nelson

3 A aproximação entre o campo esportivo e o campo artístico, a partir da contribuição bourdiana sobre o mercado de bens simbólicos, e, sobretudo da antropologia da admiração, de Nathalie Heinich, me fariam ratificar o acerto desta tomada de posição. Sobre isso, conferir Damo (2011).

4 A presença do Grêmio, aqui, deve-se ao fato de que o trabalho de campo foi realizado no entorno deste clube.

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Rodrigues, Armando Nogueira e assim por diante (Damo, 1998, pp. 57-62).

Os poetas e cronistas, com o domínio singular da pa­lavra, textualizavam aquilo que meus informantes tinham di­ficuldade de expressar: suas emoções. De todas as anotações que colecionei, aquela que mais me impactou e da qual jamais me afastei foi de Carlos Drummond de Andrade, que repro­duzo a seguir:

A estética do torcedor é inconsciente: ele ama o belo atra­vés de movimentos conjugados, astuciosos e viris, que lhe produzem uma sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes uma emoção política. Somos Flu­minenses ou Vascos pela necessidade de optar, como somos liberais, socialistas ou reacionários. Apenas, se não é rara a mudança do indivíduo de um para outro partido, nunca se viu, que eu saiba, torcedor de um clube abandoná-lo em favor de outro (Andrade, 1957, p. 47).

Drummond não apenas juntou futebol, emoção e po­lítica, senão que deslocou para o primeiro plano da relação à questão do engajamento. A ideia de que a escolha de um clube— Drummond usa “time” como sinônimo de clube - assemelha- -se à predileção por um partido, no sentido de envolvimento e comprometimento. Ela foi essencial na concepção da noção de pertencimento clubístico, uma vez que o termo “pertencimen­to” me parecia mais forte do que “identificação”.5 Existem os

5 Na verdade, o termo “clube” é um dos substantivos que vêm sendo usados mais ou menos em toda a parte para se referir ao coletivo agregado no en­torno de objetivos comuns, mormente vinculados a atividades atinentes ao espaço-tempo do lazer e do entretenimento. O termo é de origem notada- mente inglesa {club) e no Brasil pode ser substituído, sem prejuízo de senti­do, por grêmio, associação, sociedade, entidade e assim por diante. A opção pelo termo clube - além de clubístico, clubismo e outros neologismos - não

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torcedores que se identificam com uma agremiação ou mes­mo com um time, podendo ser isso até circunstancial. “Per­tencimento”, em contrapartida, soa mais vigoroso e combina melhor com aquele grupo de torcedores que efetivamente dá suporte à equipe que representa o clube, independentemente de frequentar os estádios ou ser associado, embora esses sejam bons indicativos do envolvimento de um torcedor. Em outras palavras, pertencimento define melhor aqueles que se deixam permear pela perform an ce da equipe que representa o clube, os que têm seu humor alterado em função dos êxitos e fracassos. São esses torcedores que, ao fim e ao cabo, dão aos clubes uma existência prolongada, ao ponto de torná-los instituições cen­tenárias — algo que no Brasil nem se compara com os partidos políticos, por exemplo.

“Pertencimento clubístico” foi, portanto, um neologis­mo forjado para dar conta de uma modalidade de vínculo identitário próprio à esfera do futebol, mas que poderia ser ampliado, pois, em países nos quais o futebol não é o es­porte hegemônico, o clubismo pode estar vinculado a outras modalidades coletivas - ao beisebol, rúgbi, basquete etc. A noção prestou-se não apenas para produzir um distancia­mento com relação às noções nativas correspondentes — tor­cer, gostar, amar, ser apaixonado etc. - , mas também para especificar, no espectro do torcer, um segmento de público militante, não necessariamente pela frequência aos estádios, nem mesmo pelo vínculo a grupos organizados, e sim emo­cionalmente engajado a ponto de estender as emoções vivi­das no espaço-tempo do jogo para além dele.

Embora o significado do verbo torcer tenha sido amplia­do, para dar conta das manifestações futebolísticas, denotan-

teve qualquer conotação extraordinária. Foi apenas a escolha que me pareceu mais conveniente, por ser mais recorrente.

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do uma atitude mais ativa do que sugere o verbo assistir,6 ele ainda não alcança a densidade sugerida pelo termo pertencer. A teoria eliasiana acerta ao sugerir o conceito de excitação como um mote para compreender o que se passa com a expe­riencia das plateias esportivas, pois o termo implica um desta­cado componente emocional. Todavia, a teoria apresenta cer­to viés funcionalista, supondo que o esporte é um dos espaços que a modernidade reservou para que os indivíduos pudessem experimentar um tipo de sensação intensa, de matar e morrer por procuração, porém circunscrita socialmente pelas regras, que restringem tal possibilidade ao plano mimético ou simbó­lico. Nesta perspectiva, as erupções de violência, como aquelas que frequentemente observamos entre as torcidas organizadas, seriam, pois, um desvio. Mesmo admitindo que a teorização do processo de civilização não é tão simplória quanto supoe alguns críticos de ocasião de Elias, é preciso reconhecer que, neste ponto, a teoria possui uma lacuna. Pelo que ela enuncia qualquer indivíduo, em busca de excitação, poderia encontra­da facilmente no espectro esportivo. No entanto, não é isso que se observa quando se olha o perfil e mesmo as justificati­vas do público que acorre aos estádios.

Elias e Dunning (1992) recorreram, como tantos outros intérpretes das emoções esportivas, aos fundamentos da tra­gédia grega, supondo que há nos eventos esportivos um resi­dual trágico: alternância de sentimentos que produzem emo­ções fortes, com intensa participação do público, instado a manifestar-se abertamente, mantendo certo limiar de controle. As emoções esportivas seriam do tipo mimético, experimenta­das a partir de sentimentos despertados por “medo e compaixão

6 Não custa lembrar que o coletivo “assistência” era usado para designar os frequentadores dos estádios até vir a ser substituído, ninguém sabe ao certo como e por que, pelo termo “torcida”.

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ou ciúme e ódio por simpatia com os outros, mas de uma ma­neira que não é seriamente perturbante e perigosa [...]. Na esfera mimética são, por assim dizer, transpostos numa combinação diferente. Perdem seu ferrão” (Elias e Dunning, 1992, p. 124). Com pequenas adaptações, pode-se substituir o termo “espor­te” por “teatro” ou “cinema” e o dito manteria o sentido, o que indica claramente sua perspectiva generalizante.

Em linhas gerais, a teoria eliasiana aplica-se ao esporte, mas, como já citado, pouco contribui para o entendimento das especificidades, em especial dos diferentes sistemas simbó­licos que dão suporte às emoções. A propósito, Geertz (1989) serve-se de referências muito próximas das de Elias - inclusive com referências explícitas à Poética , de Aristóteles - na inter­pretação da briga de galos balinesa. Por certo, encontramos na tragédia grega elementos que também estão presentes na estrutura do esporte moderno, mas isso não é suficiente ou de­masiado amplo para a compreensão de como se constitui e se mobiliza um dado público, sobretudo para o caso do futebol.

Em uma etnografia que continua sendo uma referência em termos de sofisticação metodológica e astúcia interpretati­va, Bromberger (1995, p. 272-3) colocou o engajamento, que é anterior ao espetáculo propriamente dito, como um mediador essencial. Segundo esse antropólogo, “cest la passion partisane qui donne sens, sei et intérêt à la confrontation. [...] La parti- sanerie est la condition nécessaire pour assurer um máximum d’intensité pathétique à la confrontation”.7'8 As sensibilidades e

7 “É a paixão partidária (engajada) que dá sentido, sabor e interesse ao jogo. [...] O partidarismo (engajamento) é a condição necessária para assegurar um máximo de intensidade emotiva ao jogo” (tradução minha).

8 Não por acaso, citando outra vez Bromberger, “a los hinchas italianos se los llama tifosi, y ésta es una palabra derivada de tifo, que significa apoyo, pero etimológicamente significa tifus, una enfermedad contagiosa, una de cuyas variantes se traduce en fiebre y agitación nerviosa. El tifosi es aquél que tomo la decisión de sentir plenamente la intensidad del drama convir-

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os juízos estéticos engajados podem variar em intensidade e for­ma, mas não serão jamais neutros, mesmo quando se passa do pertencimento clubístico ao pertencimento nacional, nos casos de enfrentamento entre equipes representando Estados-nações.

Tomando-se, pois, a questão do engajamento como ful­cral para entender a constituição do público no futebol de espetáculo, pode-se afirmar que existem, a rigor, duas estraté­gias principais, sendo que a cada uma delas corresponde um circuito de competições - e também de rivalidades, tensões e assim por diante. Um desses circuitos, que no presente é con­trolado econômica e politicamente pela FIFA e suas parceiras, concentra-se, basicamente, em eventos nos quais competem equipes representando Estados-nações. Outro circuito, mais amplo e menos sujeito às ingerências da FIFA, mas ainda as­sim sob sua tutela, é composto pelos múltiplos certames de competições clubísticas - isso inclui desde uma competição continental, como a Champions League ou a Libertadores da América, até os campeonatos de futebol amador, restritos a cidades ou bairros.

Uma vez que as regras do jogo são as mesmas; que os atletas que atuam no circuito nacionalista também atuam e possuem vínculos empregatícios com os clubes — no entanto, o inverso não ocorre; que as categorias de apreciação estética usadas pela mídia e pelo público são comuns aos dois circui­tos, pode-se afirmar que a principal diferença entre eles é da ordem do simbólico, uma vez que diz respeito à modalidade de engajamento dos respectivos públicos. Em outras palavras, o combustível que move o circuito do nacionalismo advém da

riéndose en actor (y no simple espectador) de una historia incierta que se construye ante sus ojos, y en cuyo desarrollo cree poder influir a través de una intensa participación corporal y vocal. Efectivamente, aquí, a diferencia de las películas y las piezas de teatro, las cartas no están echadas antes de la representación [...]” (2011, p. 22).

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identificação dos torcedores com as equipes que representam a nação. Trata-se, portanto, de uma identificação que desliza do âmbito do nacionalismo para o futebol, tal qual ocorre com outros esportes em que pese as diferenças em termos de tradi­ções. O trabalho de identificação entre um pequeno coletivo — uma equipe de 11 atletas — e outro, muito extenso - integrado pelos que se reconhecem como membros de uma nação - é facilitado neste último caso. Todavia, não basta vestir o time de futebol com as cores da bandeira nacional para que a ma­gia da identificação se produza. A relação metonímica não se produz naturalmente.

Converter uma equipe de jogadores num símbolo vivo da nação requer certo investimento, mas, como já disse muito apropriadamente Hobsbawm (1990), não é algo que requeira estratégias mirabolantes. Basta observar como, às vésperas de competições importantes, a exemplo da Copa do Mundo ou das copas continentais, como a Eurocopa e a Copa América, existe uma intensa mobilização no sentido de promover a afe­tação, projetando a identidade nacional no time de futebol que a representa e vice-versa. Em geral, esta tarefa compete à mídia esportiva, sem que, no entanto, seja uma deliberação planejada. O fato é que a mídia tem razões próprias para promover tais eventos e seu trabalho converge em relação aos interesses das entidades promotoras - casos da FIFA, da UEFA e assim por diante. Com muita frequência, os intelectuais são mobilizados e a preferência recai, obviamente, pelos especialistas em temas relativos à formação da identidade nacional. Nos últimos anos, esses megaeventos receberam um forte incremento mercadoló­gico, de modo que a publicidade comercial tem produzido peças visando a vincular seus produtos aos sentimentos nacionalistas com a expectativa de alavancar as vendas e, ao proceder dessa maneira, acabam por suscitar e fortalecer tais sentimentos. Em países como o Brasil, que carece de eventos e heróis capazes de

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unificar e condensar o pertencimento nacional, o time de fute­bol organizado para as copas e outras disputas do gênero acaba cumprindo esta função, razão pela qual os brasileiros param para assistir aos jogos, enquanto o dia alusivo à independência do Brasil é tratado como um feriado convencional - afora os desfiles militares, que ganharam impulso durante a ditadura, o que é uma contradição, pois a independência não custou uma única gota de sangue.

Paralelamente ao circuito movido pelo nacionalismo, existe aquele integrado pelos clubes. Na verdade, são múl­tiplos circuitos, em geral consolidados a partir de fronteiras continentais, nacionais, regionais e até mesmo locais, con­quanto estes últimos fiquem à margem da espetacularização. À diferença do circuito do nacionalismo, que se beneficia de uma identificação já estabelecida no âmbito do nacionalismo de Estado, a produção de identidades no espectro do clubismo é um processo mais complexo, pois os clubes são, em geral, entidades laicas. Empregando-se o mesmo processo do nacio­nalismo, chega-se, facilmente, a identificar um time com uma empresa, uma escola, um partido político, uma causa, uma ci­dade e assim por diante. Todavia, os chamados grandes clubes, que integram a elite dos circuitos nacionais, lograram extrapo­lar tais fronteiras, drenando para seu entorno pertencimentos bastante heteróclitos e ordenando-os de modo a produzir uma identidade própria. Se observarmos as identidades e as dife­renças que constituem as rivalidades no clubismo, veremos o quanto elas estão impregnadas por elementos pinçados do espectro mais amplo da sociedade, tensões que são drenadas para as arquibancadas dos estádios, tornando os eventos fute­bolísticos um espetáculo que extrapola a dimensão esportiva. A ideia de que certos enfrentamentos dramatizam os dilemas sociais é amplamente compartilhada por todos aqueles que se debruçam sobre o tema no campo das ciências sociais.

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O clubismo é, pois, uma ampla trama social e cultural. Nada impede que se trate a dimensão simbólica dessa trama como uma modalidade de totemismo moderno, com a ressal­va expressa de que esta não é a única possibilidade de abordá- -lo. Duas ponderações breves são aqui necessárias (Damo,2005, pp. 63-6). Em primeiro lugar, tratar o clubismo como um totemismo não é uma antropologia às avessas, pois não há pretensão de explicar o complexo pelo simples. O que está no cerne do totemismo, enquanto conceito, é uma modalidade de representação coletiva articulada em forma de sistema. A esco­lha dos totens, que certas sociedades fizeram recair sobre espé­cies animais, é uma arbitrariedade cultural, razão pela qual os clubes de futebol podem ser aqui tomados como totens, como equivalentes a gaviões, águias, urubus e assim por diante.

Toledo (1996, pp. 52-73) formulou uma versão de to­temismo futebolístico brasileiro tomando como ponto de par­tida os animais escolhidos pelos torcedores como símbolos dos clubes - gavião/Corinthians, macaca/Ponte Preta, porco/Pal- meiras, urubu/Flamengo, galo/Atlético Mineiro etc. - , limi- tando-se, no entanto, em apresentar a diversidade e justificar as identificações e interpretando-as como marcas diacríticas. O fato é que os animais ou personagens — saci/Inter, mosque- teiro/Grêmio etc. - servem como símbolos de identificação, tal qual a camiseta, o boné, a bandeira ou qualquer vestimenta nas cores do clube. Nesse caso, são elementos visuais de me­diação entre os torcedores e os clubes ou dos torcedores entre si - pode-se pensar também em outros elementos de mediação não visuais, como cânticos e xingamentos. Em que pese um porco representar o Palmeiras, permanece em aberto a questão fundamental: o Palmeiras representa o quê? Ou, por outra, o que significa ser palmeirense?

Em vez de pensar que o jogo cria um público, por que não pensar que o público cria o jogo? E isto em dupla pers­

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pectiva: a partir daquilo que o público acrescenta ao jogo, em termos de expectativas, de comentários, de fantasias e assim por diante; e a partir daquilo que o público aficionado fez, ao longo de décadas, para tornar os jogos tão absorventes, reple­tos de virtuosismos, enfim, espetaculares. A perform an ce dos jogadores não faz sentido separada do contexto do jogo, pois, no espectro do futebol de espetáculo, um jogo não é apenas confronto de duas equipes, mas de comunidades de sentimen­to pontualmente representadas. Tais confrontos, pelo menos no presente, não se dão aleatoriamente, mas no interior de circuitos previamente articulados, chamados de campeonatos. Esses campeonatos são conformados por fronteiras - geográ­ficas, econômicas etc. - e, o que é mais importante, parte do envolvimento do público tem a ver com os dilemas, as tensões, enfim, com os sentidos forjados no âmbito dessas fronteiras.

A questão da identidade ou, como preferimos na antro­pologia, da identificação, pois implica um jogo entre identi­dade e alteridade, está profundamente vinculada ao futebol. Isto se deve, em parte, ao fato de esta questão - que embora clássica, se renova de forma surpreendente - ser fulcral para a compreensão de qualquer dinâmica de grupo. De outra parte, o espaço do futebol, em particular aquele voltado para o es­petáculo, oferece-se como uma fonte generosa de questões a serem investigadas, pois nele são extensos e multifacetados os arranjos em termos de identidades e alteridades. A estrutura agonística do jogo, que pressupõe uma disputa bem demarca­da entre um eu (ou nós) e um outro (ou outros), favorece, so­bremaneira, a instauração da identificação e da diferenciação. Ainda mais que um jogo, como o de futebol, é um rito do tipo disjuntivo, no qual os contendores lutam para promover uma cisão entre vencedores e vencidos. Mas não se deve esquecer que uns e outros são partes indissociáveis da dinâmica do jogo, pois basta que um deles se negue a cumprir o papel que lhe é

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estruturalmente designado - deixar de atacar ou, o que é pior, de defender - para que o jogo perca o sentido. Adversários de um jogo são, sob este ponto de vista, parceiros de um evento. Afinal, o jogo suscita a presença de um outro contra quem, mas também com quem, se joga.

No universo do futebol de espetáculo, a questão da re­presentação coloca-se abertamente como um drama aos apre­ciadores e um problema interessante de ser investigado do ponto de vista antropológico. Diferentemente do engajamen­to elementar ao jogo, requisitado por todas as modalidades de práticas esportivas assentadas sobre a estrutura agonística, incluindo-se o jogo de cartas, no caso do espetáculo temos um engajamento secundário, cuja dimensão circunstancial se sobressai com relação à estrutura. No segundo caso, os com­ponentes políticos tornam-se mais evidentes, pois a ideia de representação implica, necessariamente, mediação e, portan­to, negociação. Muito embora a vitória seja um componente importante na afirmação de uma equipe ou de um jogador frente aos torcedores de clube ou seleção, a ideia do que seja uma boa ou má representação excede, consideravelmente, a questão dos resultados. A dedicação, a coragem, a bravura (em uma só palavra, a entrega), são também valorizadas, mesmo na derrota.

Assim como existe uma história dos livros e outra das práticas de leitura, há uma história dos jogos e deveria ter ou­tra de como os torcedores são envolvidos por e com eles. Para que possamos reconstituir as práticas do torcer - o que impli­ca perguntar por quem, como, onde, com quem e para quem - , é preciso alargar nosso horizonte compreensivo acerca dos significados do pertencimento, seja ele a uma equipe que re­presenta um clube ou um Estado-nação. Precisamos alargar o entendimento de como se produzem e se reproduzem os vínculos, em especial o de indivíduo-clube, do qual emerge

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uma categoria singular de pessoa, o torcedor, e os vínculos entre os clubes, dos quais emerge uma cartografia singular das identidades e das diferenças coletivas.9

A fidelidade clubística e as trocas jocosas

E possível considerar um sujeito plenamente socializado para o futebol de espetáculo quando ele tiver experimentado as oscilações decorrentes do fato de pertencer a um clube de futebol. Seria dizer o mesmo afirmando-se que um torcedor sentirá a pleno o que significa torcer quando experimentar trocar de clube e perceber que isso é demasiadamente custoso ou, ainda, tentando gostar de outro, sentir-se tocado pelo an­tigo clube do coração. A fidelidade é estruturante no clubismo e seu amálgama é afetivo — por isso tão consistente e difícil de ser verbalizada pelos torcedores. Eles sabem que são fiéis a seus clubes e o dizem abertamente.10

As hipóteses daqui por diante são arrojadas. A primeira dá conta de que a fidelidade clubística é um valor arbitrário, mas que confere a este pertencimento uma especificidade. A pergunta é: como este valor foi constituído? A esta pergun­ta, é oferecida a seguinte conjectura: a fidelidade é um valor indissociável à noção de pertencimento na medida em que cumpre, no clubismo, uma função estabilizadora. Sem esta

s Sobre este ponto de vista, Nunes (2011) avança com a noção de pertenci­mento clubístico de diversas direções. As referências que ele faz à maneira como utilizo este conceito revelam de uma leitura atenta e criteriosa do meu trabalho, inclusive nas críticas que enuncia. Noutro momento, pre­tendo me posicionar a respeito, não com a finalidade de polemizar, mas de ampliar o diálogo nesta questão tão delicada que são as emoções no espectro do futebol.

10 Não há demérito nisso, em que pese não seja de praxe os homens do futebol anunciarem outras modalidades de fidelidades - “pega mal”. E mais ou me­nos generalizada a ideia de que, no Brasil, troca-se de “partido, de mulher e de religião, mas não se muda de clube de futebol”.

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estabilidade dos vínculos entre torcedores e clubes, o sistema não se sustentaria. Ou ainda, se os torcedores pudessem trocar de clube toda a vez que desejassem, não haveria como circular as emoções para além do espaço-tempo do jogo.

Esse raciocínio sugere, por seu turno, outra observação importante: há circulação de emoções clubísticas para além do espaço-tempo do jogo, sendo que as emoções vividas por ocasião do jogo possuem com elas estreita relação. Mas os ar­ranjos são distintos. O ódio ritual que é possível (e legítimo) de ser experimentado pelo “outro” nas circunstâncias do jogo precisa ser reconvertido taticamente, pois o sentido principal das trocas jocosas não é o acirramento das inimizades, mas o seu contrário. Embora aquele a quem a gozação seja dirigida seja um “outro”, trata-se de uma alteridade próxima, com a qual é possível e mesmo desejável conviver — o colega de escola ou de trabalho, o vizinho, um parente, amigo e assim por diante. O que prepondera aqui é a piada bem feita, que faz rir conjuntamente. O espaço-tempo extrajogo - fora do ritual, portanto — mantém com o espaço-tempo do jogo uma relação de oposição e complementariedade. A irrupção de agressividade fora do espectro ritualístico - seja do tempo, do espaço ou dos meios empregados (quando passa da vio­lência verbal à agressão física, por exemplo) — tende a ser per­cebida socialmente como anômala, embora recorrente entre certos grupos de torcedores.11

11 A violência entre as torcidas organizadas, barra-bravas e grupos afins não está fora desta dinâmica do clubismo, mas ela o extrapola e requer outras chaves interpretativas, que não são objeto deste texto. Como se trata de uma violência organizada, precisa ser compreendida numa perspectiva mais ampla, que leve em conta, entre outros aspectos, o prestígio que essas per­formances revertem aos indivíduos e grupos, dentro e fora do circuito clu- bístico. As abordagens de Toledo (1996), Zucal (2010) e Hollanda (2009) ajudam a compreender a dinâmica desses grupos.

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De mais a mais, é a partir da compreensão da maneira como se articulam umas e outras que se pode avançar na com­preensão da estética torcedora, conectando estas com outras emoções e, portanto, o futebol com outros fatos sociais e afe­tivos. A fidelidade é tomada como a constante no sistema clu- bístico. Ela determina que um torcedor mantenha-se informa­do acerca do cotidiano do time que representa seu clube para além do espaço-tempo ritual e assim conecta o ordinário e o extraordinário, os bastidores e o espetáculo, as discussões com as emoções e assim por diante. Além disso, a fidelidade não apenas possibilita a comunicação cifrada entre os torcedores, sobretudo no que tange às emoções — se você é gremista, então sabe o que sente um colorado quando o Inter perde ou ganha —, senão que os posiciona no sistema: uma vez Flamengo, Fla­mengo até morrer. As implicações disso ver-se-ão em breve.

Para compreender a implicação que tem a fidelidade para o clubismo, é preciso, em primeiro lugar, desvencilhar-se da ideia de que as emoções explicam-se por elas mesmas. Como afirma Le Breton,

[...] les sentiments et les émotions ne sont pas des états absolus, des substances transposables d’un individu et d’un groupe à l’autre, ce ne sont pas, ou pas seulement, des pro­cessus physiologiques dont le corps détiendrait le secret. Ce sont des relations. Les perceptions sensorielles ou le ressenti et l ’expression des émotions paraissent l’émanation de l’inti­mité la plus secrète du sujet, mais ils n’en sont pas moins socialement et culturellement modèles (1998, p. 7 ).12

12 “O s sen tim entos e as em oções náo são estados absolutos, substâncias que se pode transpor de um indivíduo a outro. Elas tam pouco são, ao m enos não exclusivam ente, processos fisiológicos cujos segredos estariam contidos no corpo. Trata-se de relações. As percepções sensoriais ou a sensação e a expressão das emoções parecem a em anação mais secreta do sujeito, m as isto

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Desse modo, pode-se avançar afirmando que as emoções experimentadas no espectro do futebol não são irracionais, tam­pouco geradas espontaneamente ou aleatoriamente. Não são nem mesmo redutíveis às hipóteses psicologizantes, sobretudo aquelas que as explicam a partir do subterfúgio à regressão e à animalização “das massas” ou de outras reduções do gênero.13 O pertencimento clubístico é uma espécie de máscara e implica uma transição de uma personagem a outra. Particularmente, implica a identificação de um indivíduo a dada coletividade e, portanto, uma transubstancialização de indivíduo a persona. Isso pressupõe, como afirma Rabain-Jamin, “l ’existence dune ordre de symboles, d une logique des représentations et d’un dispositif rituel qui lui assignent une place aussi bien qu un rôle dans la société et lui assurent une reconnaissance [...]”14 (Ra- bain-Jamin, 2002, p. 571).

“E-se Fluminense ou Vasco como se é comunista ou capitalista”, disse Drummond. No entanto, para cada qual das incontáveis máscaras que adotamos ou herdamos ao longo da existência, existe uma forma de herdá-las e em certos casos uma razão para existirem, assim como emoções compatíveis aos respectivos usos. O pertencimento clubístico com certe­za não se encontra na ordem das necessidades biológicas ou instrumentais, quaisquer que sejam. Ainda assim, quase todos os brasileiros, sobretudo os homens, torcem por um clube de futebol, o que indica haver certo ônus em não se torcer por

não significa que elas não sejam socialmente e culturalmente modeladas.” (tradução minha).

13 Para uma crítica sucinta, porém suficiente às tendências psicologizantes de senso comum aplicadas ao entendimento dos espetáculos esportivos ou de multidões, conferir Ehrenberg (1991).

14 “A existência de uma ordem de símbolos, de uma lógica das representações e de um dispositivo ritual que lhe designam um espaço e também um papel na sociedade e lhe asseguram um reconhecimento [...]” (tradução minha).

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clube algum.15 É preferível ser de alguém a não ser de nin­guém, ao menos em se tratando de futebol. Não torcer por algum clube - o que seria o equivalente a não pertencer a ninguém — é ser um simples indivíduo, pois o pertencimento, pelo fato de integrar o sujeito a uma dada comunidade de sentimento, pessoaliza-o. Não torcer por clube algum é não usar uma máscara, o que efetivamente não acarreta qualquer sanção de ordem jurídica ou moral, apenas é ser ignorado, um “ninguém” em matéria de emoções e jocosidades clubísticas. Nesse particular, a maneira como os torcedores experimentam a transição de indivíduos a pessoas - ou de cidadãos a flamen- guistas, por exemplo.

A transição de indivíduo a pessoa, no caso do clubismo futebolístico, é algo que compete, primeiramente, à família, razão pela qual, suspeita-se, tornam-se as emoções futebolís­ticas, já na origem, indexadas a outro sistema de pertenças no qual o fluxo de emoções é igualmente intenso. Não há espaço para exemplos, com narrativas a este respeito,16 mas merecem ser reiterados alguns dados já referidos e comen­

15 Segundo a pesquisa Datafolha de 2007, aproximadamente 26% dos brasi­leiros não torcem para nenhum time/clube. Disponível em http://datafolha. folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=538. Acesso em 25 mai. 2012.

16 Suponho que meus leitores tenham, em seus circuitos de sociabilidade, pessoas — normalmente homens - que deem ao pertencimento clubístico razoável ou muita importância. Devem lembrar, então, caso estes adultos tenham filhos, netos, sobrinhos ou afiliados, de episódios ou narrativas em torno de um evento aparentemente banal: a primeira ida ao estádio do neófito. Mesmo sem ter trabalhado sistematicamente sobre o tema — razão pela qual partilho minhas impressões — os depoimentos de que dis­ponho dão conta de que este é um evento dramático para a relação entre pai-filho, tio-sobrinho, padrinho-afiliado e assim por diante. Os adultos costumam ficar constrangidos em revelar publicamente a meticulosidade com que operam a escolha do jogo ao qual o neófito será apresentado ao clube pelo qual ele já deve pertencer, por opção do adulto. E se o time perder? Será que ele não vai se frustrar e querer mudar de clube? Mas, se não for levado de uma vez, não haverá o risco de ele se interessar pelo clube rival?

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tados alhures, apoiados em pesquisa realizada no âmbito de Porto Alegre (Damo, 1998, pp. 75-85). Em praticamente 70% dos casos, a escolha do clube, dito do coração, fora feita por influência da rede de sociabilidade familiar - avô, pai, irmão, tio, primo, sobretudo - ou muito próxima a ela — padrinho e amigos de infância e/ou adolescência. Ninguém nasce palmeirense ou flamenguista, mas não são raros os que assim se declaram. É o caso dos proselitizados na primeira infância, quase sempre meninos, filhos, netos, irmãos meno­res ou afilhados de um torcedor fanático. A mesma pesquisa indica que as escolhas clubísticas, ao menos entre os porto- -alegrenses, ocorrem até os 10 anos de idade para aproxima­damente 70% dos casos. Quase a metade dos entrevistados disse ter feito a escolha antes dos 5 anos de idade, o que deixa claro que foram, antes de mais nada, escolhidos. À época em que a pesquisa foi realizada, 1996, 10% dos entrevistados declaravam ter mudado de clube, sendo que mais de 85% afirmaram que não mudariam “jamais”.

A hipótese de que a fidelidade clubística pudesse ser um desdobramento das afinidades parentais levou-me a traçar al­guns mapas cruzando parentesco e pertencimento clubístico, entre os meninos e meninas da Leão XIII, meus informantes ao longo da pesquisa visando à tese (Damo, 2005, pp. 87-8). Em 80 casos de descendência paterna em le grau, pai/filho ou filha, nos quais havia indicação de pertença — nem todos os informantes souberam indicar os clubes pelos quais torcem sua parentela mais distante —, houve 67 coincidências e 13 incompatibilidades entre pai e filho ou filha. Ou seja, para cada cinco descendentes que seguem a predileção paterna, ao menos um destoa. No entanto, se considerarmos o universo possível de clubes para quem torcer, o fato de que 80% dos filhos acompanhem a preferência do pai e mais de 30% dos netos a do avô paterno é um dado notável.

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No caso do Brasil, as identidades clubísticas são cliva­das pelos regionalismos. A dupla Gre-Nal detém índices ele­vados de preferência entre os sul-rio-grandenses e, sobretudo, entre os porto-alegrenses, caracterizando o Estado e a cidade como os mais “bairristas” do Brasil.17 Como as preferências se concentram em apenas dois clubes - e se distribuem qua­se equanimemente entre eles —, os percentuais de fidelidade na transmissão do pertencimento tendem a ser supostamente mais elevados do que em outros estados ou cidades. Nos es­tados onde existem mais clubes ou onde os clubes locais não têm muita expressão nacional, esses percentuais tendem a se dissipar. Ainda assim, é desconcertante observar o tanto que o parentesco interfere não apenas na escolha do clube, mas tam­bém na maneira como a sensibilidade dos neófitos é moldada.

O fato de a escolha do clube ser influenciada preferencial­mente por um parente consanguíneo do sexo masculino levou- -me à formulação da hipótese de que a fidelidade clubística pu­desse estar relacionada com o valor simbólico atribuído aos laços de sangue, tão presentes no parentesco. Dadas as influências da parentela consanguínea no acesso ao clubismo em geral, e na es­colha de um clube em particular, o pertencimento clubístico po­deria ser tomado enquanto uma espécie de tradução das afinida­des de sangue. O pertencimento seria inquebrantável, pois assim é que são pensados, do ponto de vista da nossa cultura, os laços de sangue, como sugere Schneider (1992).18

17 Seguindo os dados da pesquisa Datafolha de 2007, observamos que em tor­no de 84% dos habitantes do Rio Grande do Sul torcem por clubes sediados no próprio Estado, sendo que este índice alcança 91 % com relação à cidade de Porto Alegre. Para mais informações consultar o endereço: http://datafo- lha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=538. Acesso em 25 mai. 2012.

18 “What are called ‘blood ties’ can be understood as the bonds of solidarity that are caused by or engendered by the actual biological connectedness, sometimes figured as genetic, sometimes hereditary, sometimes in emotion­al terms. Or the notion of blood can be understood as figurative, iconic, but still attending for the bonds of solidarity, bonds which are deeply affective,

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Outro dado interessante é o englobamento das mulhe­res nos casos de matrimónio. Nessa mesma pesquisa, realizada por ocasião da tese, e em outras ocasiões em que retomei esta questão, ficou evidente a incorporação das mulheres pelos ma­ridos para os casamentos das gerações mais antigas. É evidente que isso ocorre nos casos em que o pertencimento delas não é entusiástico — salvo uma exceção, ao menos, em que a vovó “saiu do armário” depois da morte do marido - , ou seja, em que não há interesse pelas coisas do futebol e, particularmente, pelo clubismo. Poder-se-ia afirmar, ainda, que, assim como é cada vez menor a tendência de as mulheres incorporarem o sobrenome da família do marido por ocasião do casamento, ou não mais suprimirem a identificação com a família de ori­gem nas mesmas circunstâncias, também é menos frequente a mudança de pertença clubística. Poder-se-ia conjecturar, fi­nalmente, que dada a flexibilização das diferenças dos papéis sexuais, a tendência é encontrar cada vez menos mulheres dis­postas a abrir mão do que quer que seja, mesmo de uma heran­ça aparentemente frívola, como é o pertencimento clubístico. O fato é que esses casos de englobamento da esposa pelo ma­rido ainda são frequentes, enquanto o inverso é, francamente, um tabu - ao menos não registrei nenhum caso até o presente.

O englobamento das mulheres, a reprodução das per­tenças por três ou às vezes mais gerações de consanguíneos do sexo masculino, além de os ritos de convencimento serem fre­quentemente dirigidos pelos homens - pai, avô, irmão entre outros. - e tanto mais cuidadosamente orquestrados para se­duzir os meninos com relação às meninas, sobretudo quando o adulto declarar-se torcedor passional, além de outros fatos observáveis no cotidiano, levaram-me a formular uma nova

deeply binding, actually breakable but to be broken under the most un­usual, tragic, unforgivable circumstances” (1992, p. 195).

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hipótese. Segundo ela, a proeminência masculina na prática do futebol e nos estádios, assim como em quase tudo o que diz respeito a este esporte, exceto, talvez, o interesse pela seleção nacional, que corre à margem do clubismo - operando a partir das pertenças ao Estado-nação —, seria uma espécie de residual do patriarcado. Antes de responder afirmativamente à hipó­tese de que o patriarcado sobreviveria disfarçadamente sob a pele de um espetáculo moderno, convém ampliar e diversifi­car a amostragem, o que está fora do alcance dessa investiga­ção. Entretanto, a aproximação do clubismo com o parentesco possibilita compreender as razões pelas quais os machos empe- nham-se em reproduzir seus pertencimentos clubísticos entre os consanguíneos, aqueles a quem o valor atribuído aos laços de sangue indica uma solidariedade inquebrantável. Com os filhos, os netos, os irmãos e os sobrinhos espera-se viver junto os altos e baixos atinentes às disjunções futebolísticas.

Já se disse que o pertencimento é uma máscara herdada quase sempre de um parente consanguíneo do sexo masculino e que a partir dela o torcedor não pertencerá apenas a uma comu­nidade de sentimento imaginada, mas a um sistema integrado por várias comunidades, definido aqui como clubismo, entre elas aquela a quem lhe será ensinado a gostar e outra que haverá de aprender a desdenhar. Ou seja, um pai tende a tornar seu filho palmeirense, como ele, mas é o sistema de pertenças que fará, a ambos, desdenharem os corintianos. Na prática, os pro­cessos costumam ser simultâneos e é esta “outra face” do clubis­mo, aquela do desdém, do ódio, do chiste e das jocosidades, que será aqui destacada, pois ela distingue a circulação das emoções futebolísticas de outras modalidades de sociabilidade. Além da identidade, por meio do clubismo, vive-se a alteridade.

Um jogo de futebol é um evento produtor de disjunção e toda a disjunção implica possibilidades antitéticas: vitória/ derrota, êxito/fracasso e assim por diante. A cisão entre perde-

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dores e vencedores tem como função desestabilizar tempora­riamente o sistema. Ou ainda e numa só palavra: a disjunção dinamiza o clubismo. Herdar a pertença significa habituar-se a sentimentos de alegria quando o time vence e de entristeci­mento ou enfurecimento quando ele perde, mas a persona clu- bística é igualmente estimulada a alegrar-se com a derrota do arquirrival e a calar diante de seu êxito. Rejeitar estas trocas é negar-se a viver a alteridade proposta pelo clubismo e, portan­to, negar-se a participar de um potente circuito de jocosidades com forte conotação afetiva.

A alegria, a tristeza, a dor, a excitação, o êxtase, a ira e a desolação, entre outros sentimentos próprios aos torcedores, são expressos claramente, seja no estádio ou fora dele. São ex­pressões obrigatórias, como diria Mauss (1979, pp. 147-53), na medida em que se complementam, pois, sendo antitéticas, umas e outras estão completamente imbricadas. A dor dos gremistas é o combustível da alegria colorada, razão pela qual aprender a amar o Inter é tão importante quanto detestar o Grêmio e o processo de socialização torcedora inclui tal sen­sibilidade. A incorporação dos dispositivos de amor e de ódio diante da derrota e da vitória, tanto quanto com relação a um “nós”, representado pelo clube/time amado, e a um “outro”, identificado com o clube/time rival, é um processo gradativo, de educação sentimental, pois a expressão pública desses in­sultos envolve algumas regras com relação a espaços, tempos, pessoas e, sobretudo, certo autocontrole acompanhado de hu­mor, sarcasmo, ironia e criatividade.

Se observadas com atenção, nota-se que as trocas de insultos ordinários (jocosidades) entre os torcedores rivais não são da mesma ordem daquelas processadas em circuns­tâncias rituais. Os insultos ordinários são relativamente ame­nos e assemelham-se sob vários aspectos, incluindo-se o tom ambíguo entre a hostilidade e a amistosidade, ao que Mauss,

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seguindo M. Radin, denominou como jok in g relationships ou “parentesco por brincadeira” (1969 [1926]).19 É importante retomar Mauss pelas possibilidades que seu artigo sugere, entre as quais a vinculação do parentesco por brincadeira com os sistemas de prestações totais e, particularmente, com os rituais de trocas agonísticas, em que se destaca, eviden­temente, o potlatch . Preocupado sempre com o concreto, Mauss dirá que cada sociedade tem seu próprio parentesco por brincadeira, mas ele também sugere comparações que de resto não devem ser compreendidas senão a partir dos fluxos: quem brinca com quem, quais as regras de etiqueta, quais são os tabus, quais os termos lícitos, ilícitos, preferen­ciais e assim por diante.

E qual seria, afinal, a modalidade preferencial de jocosi­dade veiculada nas trocas clubísticas? Gracejar talvez seja um termo demasiadamente polido para expressar as brincadeiras entre torcedores rivais. Preferem os homens, que de resto são os que mais apreciam estas trocas, termos como “gozar”, “ti­rar sarro”, “arriar-se”, “deitar-se”, “judiar”, “pegar no pé” e outros do gênero, quase todos ambíguos, com indisfarçável conotação sexual. No estádio, um colorado xingará a todos os gremistas, mas fora dele só gozará os (nos) que pertencem

19 Na esteira de Mauss, Radcliffe-Brown (1973) deu ao parentesco por brin­cadeira uma roupagem funcionalista, o que não retira sua atualidade. “O parentesco por brincadeira é uma combinação peculiar de amistosidade e antagonismo. O comportamento é tal que em qualquer outro contexto so­cial exprimiria e suscitaria hostilidade; mas não é entendido seriamente e não deve ser tomado de modo sério. Há uma pretensão de hostilidade e real amistosidade. Em outras palavras, o parentesco é o do desrespeito lícito. Assim, qualquer teoria completa sobre ele deve ser parte de uma teoria do lugar do respeito nas relações sociais e na vida social de modo geral. Mas este é um problema sociológico muito amplo e importante; porque é evidente que toda manutenção da ordem social depende do adequado tipo e grau de respeito para com certas pessoas, coisas, ideias ou símbolos” (p. 116). Sobre este tema, embora com enfoque diferenciado, conferir o texto etnográfico de Gastaldo (2010).

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à sua rede de sociabilidade, normalmente a mais próxima ou intensa - amigos, parentes, colegas de trabalho, vizinhos e as­sim por diante. Fazem piadas, perguntam pelo resultado de um jogo que já sabem, insinuam, riem, enviam torpedos, vão ao trabalho com a camiseta do clube (com um brinco, um bottom, um adereço qualquer), enfim, há mil e uma possibili­dades de exibir-se, de provocar, de gozar o outro. Entretanto, são sobretudo as metáforas sexuais as moedas principais que circulam pelas redes de homossociabilidade. Como tais jocosi­dades são lícitas aos olhos do clubismo, o porteiro goza o (no) condômino, e vice-versa, sendo que nesses casos de clara assi­metria de status o fluxo tende a ser iniciado pelo torcedor de status mais elevado. Ao gozar “o” ou “no” torcedor arquirrival, abre-se a possibilidade de vir a ser gozado ou, preferindo-se, está se autorizando uma modalidade peculiar de comunicação. A licenciosidade instaurada pelas jocosidades clubísticas faz do futebol um poderoso dispositivo de sociabilidade transversal, rompendo diversas hierarquias e categorias sociais, tais como: pobre/rico, negro/branco, criança/adulto, mulher/homem e assim por diante.

Algumas regras são importantes para que os fluxos se­jam regulares e permanentes. Pode-se não gostar de futebol; detestá-lo, inclusive. Nesse caso, o sujeito estará fora desse universo, não havendo risco de ser insultado por nenhum amigo ou subordinado, à exceção, é claro, se tiver o azar de cruzar com torcedores a caminho do estádio. Eles xingam in­discriminadamente todos os que não compartilham com eles o êxtase do pertencimento, quer dizer, dos que não estão dis­postos a brincar, a entrar para o mundo da fantasia. O que o sistema não tolera, de modo algum, é a ambivalência: a) da­quele que ora gosta, ora não gosta de futebol; b) daquele que ora torce por um clube, ora por outro. Ambos não são bons para se brincar, pois eles não permitem a circulação — quer di-

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zer, o dar e o receber - das gozações, não se conformando aos principios elementares das identidades e alteridades sugeridas pelo sistema.

Se você é Inter e o Inter ganha, então você tem o direito a dar uma gozada no seu colega gremista. Se o Inter perde, tem a obrigação de receber, preferencialmente calado e de forma amis­tosa, para que quando o Inter vencer lhe seja permitido retribuir a gozação. Negar-se a ser gozado é negar-se a receber e, como tal, negar-se a participar das trocas, o que pode vir a ser toma­do como falta de compostura - de espirito de humor, leveza, amenidade, jogo de cintura etc. Assim, chega-se à compreensão, por uma segunda via, das razões pelas quais o pertencimento é imutável. Se fosse permitido mudar de clube, não haveria como impedir que um torcedor o fizesse a toda hora, conforme a con­veniência. O clubismo, por extensão, ruiria imediatamente. Se você é Inter e seu time vence, pode tomar a iniciativa de fazer a piada, de pôr o sistema em circulação, de insultar a honra dos gremistas, especialmente quando o time deles foi derrotado pelo seu. Isso implica, de um ponto de vista posicionai, tornar-se ati­vo/passivo. E o que é notável: é o seu time quem lhe torna ativo ou passivo. Pela perform ance dele é que alguém terá o direito a fazer ou o dever de receber uma jocosidade; de gozar em ou ser gozado por alguém. Talvez por isso o sofrimento faça parte da rotina de quem se diz torcedor, dos homens em particular. Afi­nal, ser torcedor é tornar-se suscetível de vir a ser passivizado metaforicamente.

Como o clubismo e, sobretudo, os fluxos jocosos coti­dianos mobilizam preponderantemente o público masculino, mas não exclusivamente, não há como fechar os olhos quanto às possibilidades de transcender o campo do futebol em dire­ção à sexualidade; ou de tramá-los, quem sabe. Se pertencer é correr o risco de ser insultado, gozado e passivizado, seria lógico pressupor que o sistema haveria de sugerir a interdição

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de certos fluxos - afinal, nossa cultura impõe determinados tabus sexuais. O fato de herdar o pertencimento de um paren­te ou amigo muito próximo à família não seria justamente o mecanismo que impede o fluxo jocoso entre aqueles a quem outro sistema simbólico, no caso o parentesco, interdita esta modalidade de trocas?

Há, efetivamente, certa lógica nisso, pois o que se perce­be, concretamente, é que o pai que não se empenha em fazer do filho mais um membro da sua comunidade de pertença certamente não é alguém que se importe verdadeiramente com o clubismo. Ou, por outra, trata-se de alguém para quem pouco lhe interessa o futebol e, sobretudo, alguém para quem as jocosidades atinentes ao clubismo não lhe sensibilizam, ra­zão pela qual jamais gozará e, por extensão, dificilmente será gozado por alguém. Na hipótese de que o filho viesse a se tor­nar um torcedor fanático, as possibilidades de fluxos jocosos entre eles estariam de qualquer modo descartadas. Em sentido inverso, é o torcedor dito fanático, aquele que vive o clubismo a pleno, o protótipo do proselitista. Se entendermos as goza­ções, dado o seu duplo sentido, como interditas a certas classes de relações, reencontramos então uma segunda razão para a tendência, dos consanguíneos masculinos anularem a possibi­lidade de jocosidades entre eles, fazendo com que seus descen­dentes herdem-lhes a predileção clubística. Dizendo um tanto simplificadamente, o clubismo torna possível que se goze o patrão, a autoridade, o ricaço e quem quer que se permita, mas não o pai e o irmão, nem o pai do pai, nem os irmãos do pai, nem os filhos dos irmãos do pai, nem os amigos que se quer tanto quanto se fossem irmãos. Enfim, preservam-se aqueles com quem se possui laços de sangue, reais ou inventados.

Essas são hipóteses arrojadas. Cabem, portanto, ponde­rações - a primeira delas reforçando, uma vez mais, a necessi­dade de complementá-las com dados empíricos, corroboran-

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do-as ou refutando-as. Nao vem ao caso detalhar a maneira como elas poderiam ser testadas, mas isso nao é apenas possí­vel, senão que desejável. De outra parte, convém ressaltar que a procura por regras e sentidos ocultos não é o fim último da antropologia, razão pela qual o que justifica conjecturas como as que foram aqui realizadas é a importância do sistema de pertenças para a compreensão do futebol de espetáculo.

Finalização

Nem todos os que se declaram torcedores são do tipo “fanático”, “doente”, “maluco”, enfim, aqueles para quem o clubismo efetivamente importa. Assim, existe uma plêiade de possibilidades de se fruir um espetáculo futebolístico, mas é indiscutível que ele só chegou a ser o que é graças à militância dos torcedores pelos seus clubes, motivo pelo qual não se pode compreender o espetáculo sem olhar para as razões daqueles que o sustentam emocional e engajadamente. Espero não ter deixado a impressão de que se vai ao estádio para torcer por um time a fim de evitar que o pai (o filho, o avô, o próprio torcedor etc.) seja passivizado metaforicamente por meio das jocosidades do dia seguinte. Porém, são os tipos libidinosos — no sentido de libido, desejo, paixão, luxúria - , completamente envolvidos na e pela trama das pertenças que fazem o futebol ser diferente de outros esportes no Brasil. E é por essa razão que se atribui aqui tanta importância ao clubismo e ao per- tencimento, sendo este último o elo afetivo capaz de dragar os individuos para um universo no qual são instigadas as alteri- dades de quase todas as espécies.

O pertencimento produz illusio, como uma modali­dade de adesão ao jogo quase absoluta e que é produto do jogo ao mesmo tempo em que é condição de seu funciona­mento. A noção de illu sio tem por referência as considera-

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ções de Bourdieu (s/d) sobre o funcionamento do campo da política, mas o ponto de partida para tal analogia, bem como para a adoção de uma dada perspectiva estética sobre os futebóis, que marca a “versão do autor”, é certamente aquela passagem de Drummond referida no início deste texto. Sem a obrigação de segui-lo integralmente, repro­duzo a passagem em que consta o essencial para o enten­dimento da noção bourdiana de illu sio e, por extensão, da vinculação do clubismo com a participação engajada na po­lítica, certo partidarismo, quem sabe.

A illusio é condição para se compreender aquela que tal­vez seja a razão pela qual o futebol é um espetáculo diferen­ciado: a excitação diante do risco e, portanto, do medo de ser gozado, de ser passivizado, de ser subjugado pelo outro que, normalmente, é alguém próximo - não por acaso as rivalida­des mais densas no Brasil são entre clubes de uma mesma ci­dade. Não menos importante é a excitação de partilhar os afe­tos, algo que os homens podem fazer entre eles e em público. Os estádios não são propriamente públicos, nem privados. Em geral, são frequentados por pessoas acompanhadas e afe­tivamente próximas. Pode-se também optar por lugares nos quais o pertencimento é partilhado com mais facilidade, como nas gerais, frequentadas pelas camadas populares, cuja expres­são dos sentimentos clubísticos é notadamente efusiva, talvez porque a educação dos sentidos faculte-lhes certo autocontro­le a que estão submetidos os modernos. Porém não há nada mais triste do que estar só em meio à multidão.

Por mais primárias que se revelem as emoções torcedo­ras, há sempre um sistema simbólico a orientá-las. Falta-nos avançar e mostrar, a partir de casos concretos, como se produ­zem nos estádios de futebol e fora deles, por ocasião de jogos ou não, certas modalidades de comportamento que, se não são únicas, são, no entanto, peculiares. Nos estádios, por exem-

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pio, são permitidas certas manifestações que ordinariamente não seriam toleradas, pois, assim como o templo é o lugar da prece, o estádio é a tribuna dos insultos.

O pressuposto de que o público do futebol é engajado é um ponto de partida e tem consequências mais amplas do que se poderia supor em um primeiro momento. Pensada em termos exclusivamente financeiros, a paixão clubística é um péssimo negócio, pois os torcedores nada podem esperar como retribuição. Sob a égide do profissionalismo, regime econômico e jurídico vigente na atualidade, os jogadores ga­nham mesmo quando o time perde, ao passo que os torcedo­res perdem mesmo quando o time ganha. Afinal, o dinheiro empenhado - direta ou indiretamente - não é jamais retor­nado. Além do dinheiro, o tempo é outra modalidade de bem empenhado pelos torcedores. Se, com relação ao dinhei­ro, pode-se afirmar que eles perdem quando dão, acerca do tempo, deve-se ressaltar que seu empenho está envolto pela noção de risco. Ademais, não há garantias de que uma tarde de domingo gasta num estádio seja sinônimo de prazer. Por essas e outras, não se pode pensar no interesse pelo futebol de espetáculo como algo restrito àquilo que se passa dentro de campo, ao jogo propriamente dito.

Como o futebol é coletivo, a tarefa de representação recai sobre um time, e não sobre um indivíduo. Em todo o caso, os times mudam muito rapidamente e o apreço que os torcedores têm por eles também. Os clubes, ao contrário dos times, geralmente têm uma longa trajetória, alguns de mais de um século. Eles desafiam a duração e, por isso mesmo, permi­tem uma identificação duradoura. O fato de que os torcedores cantam o hino dos clubes, numa prova de identificação in­questionável, mesmo quando as perform ances do time são tão ruins que acabam rebaixando a equipe, ilustra este a dimensão sagrada e a solidez da identificação.

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Do ponto de vista antropológico, o clubismo pode ser definido como um sistema de representações que opera à ma­neira do totemismo, do nacionalismo, do partidarismo ou de qualquer outro sistema em que a unidade básica à qual o in­divíduo se vincula é posta em relação com outras unidades. Embora a analogia precedente tenha implicações profundas, sobretudo do ponto de vista teórico, um destaque é suficiente para a continuação do argumento. O clubismo é um sistema de representações estruturado, de modo que o indivíduo, ao tornar-se torcedor, é capturado por códigos que orientam seu comportamento e moldam sua sensibilidade. Não convém exagerar no peso coercitivo deste sistema, mas é fato que ele funciona plenamente quando as regras são respeitadas. Isto implica dizer que alguém que se tornou torcedor do Barcelona deverá se opor pelas regras de afinidade do sistema, ao Espa­nhol (rivalidade circunscrita à Catalunha) e ao Real Madrid. Na maior parte dos casos, o sistema opera tendo no ponto de partida uma díade - uma rivalidade arquetípica —, mas não são raros os casos em que três e até quatro clubes podem compor a base das afinidades.

A sugestão de pensar o clubismo como uma modalidade de totemismo visa, fundamentalmente, a destacar a importân­cia da dimensão simbólica e, particularmente, ao fato de que a ênfase da contribuição de Lévi-Strauss, autoridade indiscu­tível nesta questão, recai sobre a relação entre as partes. Quer dizer que, além de destacar a importância fulcral da noção de pertencimento clubístico, se ganha em compreensão de como os torcedores pensam e vivem suas emoções quando se leva em conta o fato de que o pertencimento a um clube implica o pertencimento a um sistema de relações. Este sistema não é menos real pelo fato de sua existência ser preponderantemen­te simbólica, dado que as emoções, facilmente observáveis no plano empírico, são constituídas simbolicamente. Sem com-

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preender a história de uma rivalidade, não há como atribuir sentido à segmentação de público e, sobretudo, às hostilidades que permeiam a relação entre esses segmentos. Sob certo as­pecto, e esta talvez seja a consideração mais importante a este respeito, a relação entre os clubes ou, preferindo-se, as rivali­dades e as lealdades, têm uma natureza simbólica parcialmente descolada do mundo empírico, na medida em que, tanto aqui quanto no âmbito da nação, as tradições são inventadas.

Em todo o caso, a compreensão da história das rivali­dades não pode seguir o curso da historiografia convencional. O que é fundamental de reconstituir, tanto quanto possível, é o processo de adensamento simbólico das disputas, conside­rando não apenas os dados factuais - jogos, gois, artilheiros etc. - , mas a história sentimental. Claro que as questões suscitadas pelo imaginário do clubismo atualizam-se concretamente, por ocasião das disputas propriamente futebolísticas. Quando foi dito que o clubismo, enquanto um sistema de crenças e de sentimentos, tem certa autonomia com relação aos aconteci­mentos factuais, não se imaginou um descolamento completo. Antes, pretendeu-se enfatizar que, tão ou mais importante do que os lances de um jogo, é a experiência de tê-los vivido que importa efetivamente aos torcedores.

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O rosto do craque: fascínio da teletransmissão esportiva

Márcio Telles da Silveira

O episódio é curioso: aos três minutos do segundo tem­po da prorrogação (18 minutos no tempo agregado) da final da Copa do Mundo 2006 entre Itália e França, com a bola no campo de ataque italiano, é marcada uma infração em fa­vor dos franceses. A televisão foca normalmente esta situação- sem perceber que, fora de suas lentes, ocorria o episódio que marcaria aquela edição do torneio. O jogo continua, a infração é cobrada e o time francês parte para o ataque. Então o atacante para no centro do campo, mantendo a bola sob seu pé - a câmera, normalmente ancorada na bola, também para. Tão perdida quanto os seus espectadores, a televisão cor­ta para uma imagem do árbitro argentino Horacio Elizondo atravessando o gramado para socorrer o zagueiro italiano Mar­co Materazzi, estirado no gramado. Próximo corte: Zinédine Zidane ajustando as mangas de sua camiseta. Volta Elizon­do, ainda sem saber o que ocorreu, no meio de um bolo de jogadores italianos. Novo corte: o goleiro italiano Gianluigi Buffon discute com alguns jogadores franceses, com dedo em riste. Logo o replay de outra câmera é recuperado: em câmera lenta, o cerebral médio francês cabeceia o peito do zagueiro italiano. Como observa José Miguel Wisnik, naquele primeiro

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momento “o ato de violência acontece de maneira invisível e, mesmo no estádio, fora do campo de atenção geral; no se­gundo momento, torna-se hipervisível e repetido compulsiva­mente aos bilhões de olhos” (Wisnik, 2008, p. 164).

A partir daí, desnudada a agressão, o lance deixa perplexos jogadores, torcedores, jornalistas e telespectadores, e se converte em h it imediato (chegou a ser registrada por um empresário chinês para explorá-la em camisetas e cacarecos sortidos). A imagem da agressão cristaliza-se entre o panteão especular e espetacular do esporte, de Jesse Owens a Muhammad Ali a Nadia Comaneci.

A televisão inicia uma espécie de jogo do detetive: mos­tra Zidane e seu rosto ainda vermelho de raiva (18m49s1), retorna para Elizondo debatendo com os jogadores italia­nos (18m57s), então mais uma vez Zidane, como se a esfin­ge do craque estivesse desmoronando aos olhos do mundo (19m07s). Retorna a Buffon (19ml2s), encarnando o acusa­dor, que protesta com o auxiliar, levando o dedo ao próprio olho afirmando, ao mesmo tempo, que viu o lance e que sabe que o bandeirinha é cúmplice.

Estou a descrever, creio, aquilo que a teletransmissão esportiva tem de potencialmente “dialógico”: um vai e vem de planos contendo rostos que, incapazes de expressar-se oral­mente, transformam a superfície de seus rostos em materia­lidades comunicacionais. Também estou a descrever aquilo que é fa scinan te na teletransmissão esportiva, uma experiên­cia possível apenas para quem está na poltrona de casa e não na arquibancada do estádio. Observar os rostos dos atletas é hipnotizante: somos tragados para dentro da imagem, ora ten­

1 Todos os tempos são dos dois tempos da prorrogação somados. Logo, 18 minutos equivalem a três minutos do segundo tempo da prorrogação.

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O rosto do craque: fascínio da teletransmissão esportiva 97

tando desvendar seus significados, ora embriagando-se apenas em sua presença.

Em Elogio da beleza atlética (2007), Gumbrecht argu­menta que a experiência de assistir a perform ances atléticas é muito próxima à apreciação do belo nas artes visuais. Trata-se de um processo que resulta de um intenso diálogo entre a p e r ­fo rm an ce executada e o espectador, que se dispõe a se envolver na presença da beleza atlética durante um fugaz “momento de intensidade”, assim absorvendo a “sensação de estar em sinto­nia com as coisas do mundo” (Gumbrecht, 2010, p. 147) ao deixar-se ser por elas levado.

Para Gumbrecht, a perform an ce atlética é dotada de uma série de fascínios, compreendidos como o “olhar que é atraído - e até paralisado - pelo apelo de algo que é percebido” (Gumbrecht, 2007, p. 109). São em número de sete: corpos esculpidos; sofrimento diante da morte; graça; instrumentos que aumentam o potencial do corpo; formas personificadas; jogadas; tim ing (Gumbrecht, 2007, p. 109). Vários desses fascínios apresentam-se, juntos, em maior ou menor grau dependendo da modalidade esportiva. Afinal, “é improvável que exista alguma modalidade cujo apelo possamos captar em sua plenitude, associando-o apenas a um tipo de fascínio” (Gumbrecht, 2007, p. 109).

Já que, para Gumbrecht, o esporte é uma “questão de estar ali no momento em que as coisas acontecem e em que as formas emergem através dos corpos, uma presença real e em tempo real” (Gumbrecht, 2007, p. 19), pois este é cons­tituído de formas que “se revelam no mesmo momento em que começam a desaparecer” (Gumbrecht, 2007, pp. 22-3; Gumbrecht, 2010, p. 147), é de se indagar se o autor leva em consideração as práticas mediadas de espectância (ou apreciação) esportiva. Ainda que muito dos fascínios sejam de origem voyeurística - como o deleite de observar corpos,

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formas e jogadas - vários deles apresentam-se de maneira diferente, ou mesmo estão ausentes, na mediação esportiva.

Poder-se-ia indagar qual é o objetivo da televisão na me­diação dos esportes. E ser fiel aos fascínios do esporte como identificados por Gumbrecht em detrimento de outras esfe­ras de sentido, como as informações provenientes de replays e estatísticas? Afinal, não seria o replay e o slow motion outro fascínio - este só possível na televisão? Se “uma jogada boni­ta é produzida pela convergência súbita e surpreendente dos corpos de vários atletas no tempo e no espaço” (Gumbrecht, 2007, p. 134), a capacidade de parar este momento, decom­pô-lo em diferentes fram es e velocidades, e mesmo torná-lo disponível para posterior apreciação, potencializa o prazer do olhar e é sem dúvida fascinante por si.

Creio que as esferas de presença e de sentido ao qual o telespectador se insere são bastante diferentes daquelas do estádio. Como “toda partida é constituída por gestualidades (passes, dribles, chutes, carrinhos, abraços etc.) e sonorida- des (apito, exclamações, gritos, advertências, palmas, vaias, cânticos etc.)” (Franco Jr., 2007, p. 270), a fruição mediada tem como característica a “falta da experiência sensória de mover-se com a multidão e embriagar-se com a atmosfera [...] de um evento único no espaço-tempo” (Rowe, 1999, p. 147, tradução minha).

Como observa um comentador, para Gumbrecht “uma ‘presença’ é algo tangível, com o qual mantenho uma relação no espaço e que tem algum tipo de impacto sobre o meu corpo e os meus sentidos” (Silveira, 2010, p. 184). Logo, a relação espacial de envolver-se na esfera do estádio abre o corpo do espectador para uma gama de intensidades diferentes daquelas possíveis ao telespectador. Estar na arquibancada atento a uma jogada permite a emergência súbita e violenta de uma bela for­

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ma que, do contrário, pode passar despercebida na televisão- que, por sua vez, pode ser visível apenas no replay.

Assim, me parece bastante evidente que tipo de experi­ência estética de âmbito esportivo Gumbrecht privilegia em seu livro. Porém, ainda que o autor jamais cite diretamen­te a televisão ou o rádio como intermediários da experiência estética,2 é possível aplicarmos suas categorias e seus fascínios à experiência de assistir a uma final de Copa do Mundo do outro lado do mundo no sofá de nossas casas. Os corpos, a graça, as jogadas e o tim in g estão todos lá; mas crer que eles não sofram transformações - “transcriações” - por meio da imposição dos aparelhos midiáticos e de seus processos de mi- diatizaçao é, no mínimo, ingênuo.

Em defesa de Gumbrecht, seu trabalho não se propõe a analisar a obsessão cultural com as formas mediadas de fruição atlética. Como um “elogio” à beleza do esporte, ele nos dá pistas para pensarmos o esporte dentro de sua própria esfera (de significado e de presença), sem precisarmos trans­formar os corpos dos atletas em signos para algo escondido sob a superfície (Gumbrecht, 2007, p. 31). A pertinência de seu trabalho para a análise m ediada dos eventos esportivos cabe ser descoberta por nós, pesquisadores da área de comu­nicação e esporte.

2 É verdade que há uma citação à televisão, quando Gumbrecht debate o de­poimento do nadador norte-americano Pablo Morales, que “não diferencia sua experiência como espectador da experiência como atleta. Pelo contrário, aquilo que viu na tela de TV o ajudou a perceber, pela primeira vez, o que o tinha motivado a praticar esportes no nível mais alto de competição. Perder- -se na intensidade da concentração é a fórmula impressionante, complexa e precisa pela qual ele liga o fascínio de assistir a esportes à motivação do desempenho” (Gumbrecht, 2007, pp. 44-5, grifo meu). Aqui, porém, a te­levisão é entendida como uma mediadora não entre Morales e o fascínio da beleza atlética, mas entre Morales e sua memória, que o “ajudou a perceber” o que o fascinava enquanto atleta.

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Mais do que debater cada um dos fascínios e observar como são “transcriados” pela televisão - o que, sem dúvida, é um trabalho interessante - , quero aventar que a profusão de rostos durante os tempos mortos esportivos (entendidos como aqueles momentos em que a bola, efetivamente, não está em jogo) é o oitavo fa scín io do esporte, exclusivo da forma mediada e que não é possível de ser experimentado por um espectador dentro do estádio. Tendo como objetivo apresentar o rosto e sua superfície afetiva como esse fascínio, minha análise se debruçará sobre alguns fram es do rosto de Zidane durante a final da Copa do Mundo de 2006 entre França e Itália, imediatamente após o episódio famigerado do coiip d e boule, descrito anteriormente. Antes de iniciar, introduzirei algumas considerações teóricas e metodológicas pertinentes para compreender meu lugar de fala sobre fute­bol e televisão: tempos mortos; molduras e molduraçoes; e personas televisivas.

Preliminares teóricas

Entendo tempos mortos como aqueles tempos despro­vidos de fluxo de ação esportiva, não televisiva. Quando a bola está fora de jogo, por exemplo, a televisão habituou-se a apresentar aos telespectadores outros momentos da partida: replays, imagens da torcida e, o que aqui interessa, rostos de jogadores, treinadores e árbitros.

Uma das possibilidades para se compreender esses tem­pos mortos é, como faz Dubois (2004), apreendê-los como “tempos de espera” provocados pelo evento, momentos em que nada “de interessante” acontece. O desinteresse, porém, só é verdade sob a ótica esportiva e, mesmo assim, pode ser facilmente contestável. Afinal, “gastar tempo” é uma tática empregada por times de futebol tanto quanto qualquer outra.

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Ou, que dizer dos esportes como o basquete, que param o relógio quando a bola não está em jogo? O tempo morto en­quanto elipse narrativa daquilo que é relevante - o futebol dentro das quatro linhas - é uma contradição em seus termos.

A experiência de se assistir à televisão não diferencia, no fluxo televisivo, um tempo morto para o esporte de outro não morto. Pelo contrário, ambos são dotados de sentidos e produtivos de presença, aqui compreendida como essa relação corpóreo-sensitiva entre o objeto apresentado e o telespecta­dor. Afinal, “a narração televisual, alternando tempos mais e menos concentrados [...] instaura audiovisualidades de cuja natureza também os tempos mortos são constitutivos” (Kilpp,2006, p. 111).

Na leitura global das práticas televisivas, tendo a con­cordar com Yvana Fechine (2008), para quem os tempos mortos são constitutivos da própria televisão em seu formato mais popular, o “ao vivo”. Sendo os tempos mortos aquelas situações em que o fluxo principal da atividade televisionada é interrompido - o intervalo entre uma música e outra em um show de rock, por exemplo - , pode-se perceber que a televi­são “reage” a esses momentos, preenchendo-os com recursos técnico-expressivos. No tocante que o “ao vivo” é intricado fenômeno semiótico, estes recursos inseridos dentro da tele­transmissão - o replay, o slow motion, as imagens de personas etc. — obedecem a propósitos específicos dentro da narrativa televisual a fim de evitar que o tempo morto do evento torne- -se também tempo morto esportivo, aquele momento em que a teletransmissão sai do ar, “congela”, ou “se perde”.

Como já sugeri, no caso do futebol um dos objetos que ocupam os tempos mortos são imagens de pessoas, notada- mente rostos: jogadores, treinadores, árbitros, cartolas do clu­be, torcedores, celebridades. Chamo esses tipos de personas·. pessoas de carne e osso que a televisão dá a ver como tais, mas

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que são, em verdade, construções televisivas (Kilpp, 2003). O conceito de persona televisiva expande a ideia de pessoa: mais do que apontar para um indivíduo e sua individualidade, refere-se a uma “identidade preconcebida” pela televisão, a ser ocupada por diversos indivíduos, independente de quem.

Persona televisiva, assim compreendido, é uma das “molduras” componentes da teletransmissão esportiva, que também é construída por outras molduras e outras moldurações, todas sobrepostas. “Molduras” são, segundo Suzana Kilpp (2003), territórios de significação construídos conforme a lógica de cada meio: programas, faixas de horário, gêneros, grade de programação etc. Enquanto isso, “moldurações” são os processos técnico-estéticos que combinam, no interior de uma moldura, os elementos visuais: composição e escolha de quadros e planos, artifícios visuais e ritmo de montagem, entre outros. Aquilo que é composto por esses entrelaçamentos são ethicidades televisivas: imagens do mundo que a televisão apresenta como real, mas que são, em verdade, construios seus.

Assim como o âncora é uma moldura dentro da mol­dura de programa telejornal, jogadores, treinadores, árbitros, celebridades e torcedores são molduras dentro da moldura teletransmissão esportiva. Logo, não importa quem vista o papel do jogador durante uma teletransmissão, mas sim que os jogadores são moldurados de maneira mais ou menos con­vergente entre várias transmissões de várias partidas diferen­tes, em vários locais do mundo. Quando uma emissora do interior gaúcho ou da Malásia capta e transmite uma partida de futebol local, há um “modelo” composto de moldurações e enquadrado dentro de certas molduras que é seguido intui­tivamente pelos responsáveis pela transmissão. No mais das vezes, este modelo é a Copa do Mundo.

Para começar a desvendar a persona do jogador, é pre­ciso individualizá-la: não adianta perceber o clichê de que o

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futebol é um jogo coletivo, mas sim de que “a atuaçáo de um só indivíduo pode repercutir sobre o todo” (Franco Júnior,2007, p. 304). Esta talvez seja a chave de interpretação para a persona jogador: enquanto o indivíduo está sempre se apoian­do entre o “privado” e o “público”, o “eu” e o “outro”, sendo que o “outro”, neste caso, é tanto os companheiros de time quanto os adversários. Parte integrante de um todo inapre- ensível (o clube não é apenas o time que entra em campo, mas um conjunto de imagens de passado, presente e futuro, resumidas nos torcedores, dirigentes, comissões técnicas e jo­gadores), “o jogador busca o sucesso pessoal, para o qual de­pende em grande parte das qualidades pessoais dos membros do time” (Franco Júnior, 2007, p. 304).

Ao jogador, então, cabe azeitar-se no time (isto é, perder sua individualidade ao doá-la para os demais) ou deixá-lo.3 Aqui começa aquilo que Eco chama de “degeneração da com­petição”: a criação de seres humanos especializados — o atleta, entendido como “um ser que hipertrofiou um único órgão, que faz de seu corpo a sede e a fonte exclusiva de um jogo” (1984, pp. 222-3). O homem-instrumento, com sua individualidade extirpada, deve servir ao jogo e ao time, preencher espaços e executar funções - o atleta é um burocrata. Ainda assim, quando a televisão trabalha com esta persona , ela tende a des­fazer a engrenagem do time, separar as partes e devolver-lhes

3 Lembro de jogadores como Denílson, que atuou por uma dúzia de clubes, sem obter sucesso considerável em nenhum. Este era um jogador que jogava “para si” - o que no jargão futeboleiro chama-se “fominha”: mais preocupa­do em executar suas belas pedaladas (um de seus apelidos) do que ajudar os companheiros de time a conseguir o objetivo comum da vitória. Sintomática e, ao mesmo tempo, prova da capacidade de leitura de um treinador, Denílson entrou os últimos minutos da final entre Brasil e Alemanha em 2002, colocado em campo por Luiz Felipe Scolari com a missão de “segurar o jogo” — ou seja, de pedalar à vontade. Casos assim de individualismo - por exemplo, também o de Robinho - podem ser vistos, se pensarmos o futebol, enquanto metáfora linguística, como exemplo de prolixidade (Franco Júnior, 2007, pp. 348-92).

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a unicidade que perderam no momento em que foram encai­xadas e transformadas em mecanismo.

Se nos tempos mortos a “ação” esportiva é interrompi­da, outra ação torna-se foco televisivo: aquela que ocorre nos rostos e músculos faciais dessas personas. A diferença é que, no caso dos rostos, a ação não é uma explosão dinâmica e essencialmente física, como o drible ou o chute, mas muito mais sutil. Ademais, esses rostos devem ser pensados dentro da trama da partida: a inserção da imagem de um jogador após marcar um gol ou de um close do mesmo jogador minutos mais tarde agregam sentidos diferentes. O primeiro designa um tempo em que a bola continua sendo âncora do quadro, mesmo se morta; o segundo já se refere a um regime de ima­gem distinto. Chamo-os, respectivamente, de rostos reflexivos e rostos intensivos.

Rostos reflexivos

Deleuze (1985) aponta que o rosto não é apenas o con­teúdo do primeiro plano {close), como é o próprio primeiro plano - o que ele chama de imagem-afecção (p. 115), “ao mesmo tempo um tipo de imagens e um componente de to­das as imagens” (p. 114). A Deleuze, o primeiro plano ofere­ce uma “leitura afetiva de todo filme”, aquilo que passa pelos (e nos) rostos transborda para as outras imagens do filme (e da teletransmissão). E um excesso sem sentido - ao menos de imediato — portanto afeto, que Deleuze caracteriza como “todo modo de pensamento que não representa nada” (De­leuze, 1978).

Para Deleuze, o rosto é uma “placa nervosa porta-órgãos que sacrificou o essencial de sua mobilidade global, e que reco­lhe ou exprime ao ar livre todo tipo de pequenos movimentos locais, que o resto do corpo mantém comumente soterrados”

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(Deleuze, 1985, p. 115). O rosto, portanto, é tanto uma su­perfície comunicacional quanto um órgão que se especializou para recepção e, portanto, teve de sacrificar o essencial de sua motricidade; como característica, porém, faz os movimen­tos do rosto e de outros órgãos entrarem em séries intensi­vas; é “unidade refletora e refletida” (Deleuze, 1985, p. 114). Assim, qualquer coisa entre os dois poios — superfície refle­tora e movimentos intensivos — é um “rosto”, ou é tratado enquanto tal. O primeiro plano nunca é de rosto; o primeiro plano é um rosto, independentemente de o motivo ser uma face humana ou uma bola.

As técnicas artísticas do retrato já vislumbravam aqueles que Deleuze identifica como os dois poios da imagem-afec- ção. Ora o pintor apreende os contornos do rosto e o rostifica , quer dizer, faz do rosto a expressão de uma qualidade comum a várias coisas diferentes (um espanto ou uma admiração, por exemplo), todavia sempre referenciado a um objeto externo - o polo reflexivo. Ora o pintor se recusa o contorno, e opera “por traços dispersos tomados na massa, linhas fragmentárias e quebradas” (1985, p. 115), o que vai criar traços de rostici- dade a partir de micromovimentos de expressão - o polo in­tensivo, pois é a expressão de uma potência que passa de uma qualidade à outra, como o amor, o desejo, o ódio; um tipo de afeto que independe do outro corpo para se tornar afecção, mas que é afecção a partir de sua interioridade de percepção.

Na teletransmissão esportiva, estes dois poios da ima- gem-afecção são habituais, e normalmente se misturam. Fi­xado em algo, o “rosto reflexivo” sente admiração ou espanto em referência a um objeto externo — o gol perdido, a bola mal chutada, a ameaça do adversário. É um tipo de primeiro plano corriqueiro e ainda ancorado à bola enquanto linha narrativa, já que a ação foi ou será gerada enquanto seu tempo era vivo, e sua inserção segue-se logo após a bola parar de rolar. Ora este

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tipo de imagem-rosto serve para identificar os jogadores, ora para revelar o apreço ou o desgosto após um lance de tensão. No rosto dos jogadores, esta tensão é uma reação imediata, produzida pelo jogo em seu aspecto mais raso, o de narrati­va em construção, ou seja, no presente. Por exemplo: Zidane prestes a ser expulso em 2006, ainda irado com as ofensas do zagueiro italiano (Figura 1).

Figura 1 - 0 rosto de Zidane

Fonte: Teletransmissão ABC (Nova York, Estados Unidos).

É interessante retornar à conceituação de afeto, compre­endidos como vetores virtuais atualizados por meio daquilo que Deleuze chama de “afecção”, o momento em que o corpo sofre ação de outro. Por exemplo: “o Sol me aquece” é uma afecção do meu corpo, o produto do composto ação-efeito, e não do Sol apenas. É por isso que todo encontro, isto é, “toda mistura de corpos será chamada afecção” (Deleuze, 1978). Há no rosto de Zidane, superfície produtora de afetos, algo que me prende e que me afeta, uma “mistura de corpos” que produz algo novo: talvez fique com raiva, talvez com pena, mas é impossível passar incólume a tal expressão (de raiva? De desgosto?).

Na obra de Deleuze (e de Guattari), “afeto” sempre está entrelaçado a “perceptos”, quer dizer, depende de ser percebi­do por aquele que sente. Neste caso, “percepções” e “afecções” são o produto atualizado de alguns dos “perceptos” e “afetos”

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contidos naquilo que Deleuze e Guattari (1992) chamam de “bloco de sensações” de uma obra de arte. Eles se dão a sen­tir, mas sem jamais esgotá-los no momento do encontro en­tre obra e espectador aquele momento que, creio, Gumbrecht (2007, 2010) chama de “experiência estética”. Para Deleuze e Guattari, a função do artista é inventar novos blocos de sensa­ções, pois da linguagem o artista extrai “perceptos” e “afetos”, assim como dela o filósofo extrai conceitos e o cientista, pros­pectos (1992, pp. 36-7).

Na minha leitura de Gumbrecht, a “experiência estética” presentifíca/atualiza alguns desses afetos e perceptos, causando um “impacto imediato sobre corpos humanos” (Gumbrecht, 2010, p. XIII). Retornando a Deleuze e Guattari, poder-se-ia argumentar que a “produção de presença” é a soma da “afecção” e da “percepção”, e de todos os corpos e blocos de sensações envolvidos em um único encontro.

Na intricada rede de afetos que são as imagens-afecção, Canevacci sobrepõe ao rosto a máscara (que pode ser pensada como outra moldura), compondo aquilo que chama de v i­sits, “o ‘visual’ do primeiro plano que, por um lado, se dila­ta apenas para o rosto do ator e, por outro, restringe todo o campo visível ao próprio rosto” (2009, p. 143). Para ele, os primeiros planos televisivos recuperam valores simbólicos do passado por meio de uma máscara que “torna divino e imor­tal seu ‘usuário’” (Canevacci, 2009, p. 143): as “estrelas” (de televisão, de Cinema, do futebol...) revivem em seus rostos a magia arcaica e divina daquele que é visto. Ao mesmo tempo, o excesso de primeiros planos esvazia a força deste símbolo, destituindo-o da mesma “magia” que atrai as atenções.

A “máscara” a ser vestida pelos jogadores não é apenas a de estrela (com certeza reservada para alguns dos melhores pro­dígios das quatro linhas, como Zinédine Zidane, Cristiano Ro­naldo, Lionel Messi, Xavi Hernández ou Ronaldinho Gaúcho),

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mas também a de propulsor da própria narrativa televisiva do esporte. E assim, por exemplo, que será Sérgio Ramos e sua ex­pressividade fisionômica que serão buscados na teletransmissão da final da Copa de 2010 (em detrimento de Xavi e Andrés Iniesta — esse com exceção do gol — jogadores mais talentosos, mas menos sanguíneos); ou então Arjen Robben quando se en­furece com o árbitro, e não o talentoso Wesley Sneijder e sua passividade. Neste recorte, o rosto não é o resumo da narrativa possível, mas é a própria narrativa: de rosto em rosto, primeiro plano a primeiro plano, vai criando uma narrativa que é refor­çada pelos acontecimentos dentro de campo, não o contrário.

Por exemplo: Sérgio Ramos na final da Copa de 2010, após perder uma chance de gol no começo do jogo, olha para o céu e reclama consigo - seus traços expressivos são tão forte que a televisão se vê tentada a reprisá-los; logo, um minuto após a sequência ao vivo, ela mostra de novo Ramos talvez naquele que seja o ápice da série, com o jogador bradando para o ar com os braços abertos. Diria que, apesar do lance ser corriqueiro em uma partida de futebol — a tentativa e erro da marcação do gol - o telespectador é “afetado” pela inserção do rosto de Ramos em slow motion logo depois da repetição da jogada, que, de outra maneira, passaria batida. Como lem­bra Abreu e Lima, o slow motion e sua potência máxima, o super slow motion, proporcionam “aos telespectadores imagens fantásticas e plasticamente impressionantes, com detalhes que passariam despercebidos pela rapidez com que acontecem” (Abreu e Lima, 2012, p. 6). É sintomático que se opte por um rosto e não por um corpo ao utilizar-se deste recurso durante uma teletransmissão. Rostos como Sérgio Ramos em 2010 e Zidane em 2006 se voltam para fora ao mesmo tempo em que se expressam a partir de dentro, refletem os acontecimentos exteriores e são consequências diretas da partida, mas também revelam um pouco da interioridade de cada ser.

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Rostos intensivos

Assim chegamos ao rosto “intensivo”, que forma uma série autônoma e tende ao limite, produzindo uma nova qua­lidade, que é expressa em sua superfície; quer dizer, o rosto sofre mutações em suas características físicas dentro de uma série de imagens e, portanto, provoca rupturas, gera curtos- -circuitos. Ramos perdeu o chute e Zidane está furioso após a agressão verbal sofrida e a agressão física cometida. Todavia, a cobrança pessoal toma conta de seus rostos e revela-se aos poucos na superfície, de tal maneira que a televisão julga inte­ressante ao ponto de reprisar em slow motion.

Jogadores como Zidane - os craques — fazem de seus rostos a tela na qual se condensam passado, presente e futuro. E preciso certo nível de conhecimento sobre o futebol para con­seguir perceber as várias nuances e camadas, não só de afeto, mas também de significado, que se sobrepõem sobre estas ima­gens. Há uma tendência à serialização e à fidelização da audiên­cia nas teletransmissões esportivas que carece ainda de estudos.

Voltando ao rosto de Zidane (figura 1): o francês está furioso, e seu semblante passa por uma conversão brutal, do craque moderno e blasé ao mais baixo dos agressores passio­nais. Nestes breves fram es, que não duram mais do que três segundos, o passado como um dos maiores craques do futebol da história condensa-se com toda a desilusão e a frustração do fim não apenas do sonho francês do segundo título, nem do jogo, mas de toda uma carreira (Zidane havia anunciado dias antes que se aposentaria após a final). Na imagem de Zi­dane, o passado do craque, junto com o futuro interrompido e o presente irascível e incontrolável, encontra-se fora de eixo.

Esse tipo de imagem-rosto existe por si mesma, inde­pendente da bola, repleta de algo que falta ao primeiro tipo: o senso de perspectiva, do jogo em si, da vida das pessoas que

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naquele ínfimo espaço-tempo vestem-se da persona do joga­dor. O jogo para e a televisão corta, mas agora não para o jogador que acabou de chutar em gol, aquele que foi expulso ou aquele que vai cobrar o escanteio, e sim para outro, talvez o capitão do time adversário que está a realizar sua ducentési­ma partida com a camiseta de seu clube, talvez o zagueiro que falhou no gol ocorrido há vinte minutos, talvez o ídolo e cra­que, a quem sempre se espera a execução do desequilíbrio em prol de sua equipe. Esses rostos já não têm a bola como centro, mas seus poios são dotados de duas qualidades que as demais não possuem: a memória do futebol, que se volta ao passado, onde os feitos desses jogadores construíram sua carreira e seu estatuo como “craques”; e a expectativa do jogo, que se volta ao futuro, ou seja, a possibilidade desses feitos ancestrais vol­tarem a se repetir naquela partida.

Ao voltar-se ao passado, o rosto do jogador tornar-se imagem-lembrança, que nao pode, segundo Deleuze leitor de Bergson, ser confundida com a “lembrança pura”, esta sempre virtual. Antes, a imagem-lembrança é uma espécie de “magne­tizador” por trás da lembrança pura, aquilo que Deleuze cha­ma de “lençol ou contínuo que se conserva no tempo” (1990, p. 149). Assim, a imagem-lembrança é uma atualização de um ponto do lençol de passado, mas que não tem em si o passado, apenas sua herança (sua imagem).

A princípio, pode parecer curiosa esta associação aos clo- ses de jogadores de futebol com imagens-lembranças, já que, ao contrário dos filmes de Resnais, Robbie-Grillet e Wellcs (exem­plos de Deleuze, 1990), nenhuma destas imagens parecem ter sido trabalhadas e ensaiadas, sequer os jogadores-personagens colocados em cena e seus rostos montados (e a montagem é o trunfo do grande exemplo de Deleuze, O ano passado em Ma- rienbad). Mas, ao mesmo tempo, é inegável que exista algo acontecendo nestas imagens: seu magnetismo é tanto centrípeto

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quanto centrífugo e, quando olho Zidane em dose na Copa de 2006 (figura 1), é quase impossível evitar que os poros de seu rosto na imagem em high defin ition evoquem na minha me­mória seus gois magníficos pelo Real Madrid e pela Juventus, ou suas duas cabeçadas certeiras no gol de Taffarel na final da Copa de 1998.

Curiosa singularidade do futebol: fora o replay, que cos­tuma se referir a um passado imediato e ainda muito próximo, tal esporte não possui formas intrincadas de construção de ou­tros espaços-tempos imagéticos; ainda assim, ele o faz da ma­neira mais simples: pela contemplação. É por meio dela que se traça uma rede que coloca em relação pontos muito díspares e distantes, que se fendem para dentro da própria imagem - a seriedade do rosto de Zidane em 2006 é o inverso da sua ale­gria em 1998 - criando uma topografia, um lençol de passado que tem muito ou nada a ver com a lembrança pura.

Deleuze discorre sobre o desencadeamento de tal pro­cesso da seguinte maneira:

É provável que, quando lemos um livro, assistimos a um espetáculo ou olhamos um quadro, e com mais razão, quando somos nós mesmos o autor, um processo análogo se desencadeie: constituímos um lençol de transformação que inventa um tipo de continuidade ou de comunicação transversais entre vários lençóis e tece entre eles um con­junto de relações não localizáveis. Deslindamos assim um tempo não cronológico. Extraímos um lençol que, através de todos os outros, apreende e prolonga a trajetória dos pontos, a evolução das regiões. E sem dúvida é esta uma tarefa que corre o risco de dar em fracasso: ora produzi­mos apenas um a poeira incoerente feita de empréstimos justapostos, ora formamos meras generalidades, que tudo o que retêm são semelhanças. É todo o domínio das fal-

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sas lembranças pelas quais nos enganamos a nós mesmos, ou tentamos enganar os outros. Mas é possível que a obra de arte consiga inventar tais lençóis paradoxais, hipnóti­cos, alucinatórios, que têm a propriedade, a um só tempo, de ser um passado, mas sempre por vir (Deleuze 1990, pp. 150-1).

Há uma articulação complicada a fazer: o rosto de Zi­dane, em 2006 (figura 1), não é apenas o passado e suas glórias, nem o presente e seu desempenho, mas o futuro e sua abertura. É uma imagem que se articula em três níveis diferentes de tempo, sem ancorar-se a nenhuma. Ainda que ela esteja no presente, potencialmente a imagem deixa passar por si o conjunto de relações que formam lençóis de passado e imagens-lembrança, um passado sempre em devir e enga­nador; e a cristalização que expurga o futuro do presente, relaciona a afecção do torcedor com o afeto do jogador, para então criar esta coisa complicadíssima que se chama, o mais das vezes, de criação.

No caso de Zidane, a máscara por ele vestida, a do craque, sobrepõe-se à do jogador e à da pessoa e parece se expandir, aparentemente ruindo para abarcar aquele novo Zidane, que cede a seus desejos e anseios, mas então fazen­do do próprio golpe um espetáculo digno de sua desenvol­tura como jogador. Afinal, o ato do coup d e bou le em si é epifânico dentro dos parâmetros estabelecidos por Gum­brecht, já que os três aspectos que o autor considera essen­ciais estão presentes: em primeiro lugar, “nunca sabemos se ou quando ocorrerá uma epifania”; em segundo, “quando ocorre, não sabemos que intensidade terá”; em terceiro, “a epifania na experiência estética é um evento, pois se des­faz como surge” (Gumbrecht, 2010, p. 142). Sendo cra­que, podíamos esperar de Zidane uma cobrança excelente

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de pênalti - como ele cobrou. Ou um drible espetacular — como ele fez. Todavia, nao conheço nenhum espectador de futebol, por mais insano que seja que pudesse esperar uma agressão física com tamanha classe e desenvoltura, a poucos minutos do fim de uma Copa do Mundo em que seu time estava jogando melhor. Aquele momento fugaz, por mais que seja repetido diversas vezes, foi único e irrepetível em sua insuspeita “genialidade”, pois

o desenho do golpe, em sua evidência chocante, guarda curiosamente a singularidade do gesto de um peladeiro clas- sudo, que se move m algré tou t dentro da regra digna de um jogador de linha: sem usar as mãos em improvável soco, sem dar lugar à confusão de um empurra-empurra tão típico, nesses casos, sem borrar a imagem . A nítida marrada no peito acolchoado de Materazzi tem um valor de ícone: ela expõe num relance a figura do bode, o tragos, da tragédia, o fá rm a ­cos consagrado e execrado, premiado e punido, soberano e pária, veneno e remédio, símbolo oculto e óbvio da Copa de 2006. O futebol devolvido interrogativamente às suas bases (Wisnik, 2008, pp. 166-7).

Bestial e besta: o ato representa o amplo espectro do craque e sua imprevisibilidade que, após uma cobrança de pênalti impossível que será repetida por décadas a fio, entra para a história pela segunda vez no mesmo jogo, ago­ra pela agressão impensável, que se configura iconicamente como símbolo da Copa mais mecânica de todas (Galeano, 2010, p. 224). Ao provocar um curto-circuito na máscara do craque, Zidane confere-se algo que já não possuía, uma nova qualidade, o rompimento de padrões homogêneos - não é isso mesmo o que esperamos de um artista genial? Novos “blocos de sensações”?

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É a sina do craque: ser a potência e o encavalamento de tempos em seu corpo. Wisnik, a respeito desta figura confusa, admite que “a imprevisibilidade criadora, que põe em jogo a ‘lógica da diferença’, não é obra de engenharia mas de bricola­gem , de adaptação e de invenção poética” (2008, p. 132, grifo do autor). Ou seja, ao olharmos para o rosto do craque, não podemos deixar de prever o imprevisível, de querer o impos­sível, de esperar o extraordinário. Deposita-se nesta imagem, que aparentemente é um simples rosto, uma expectativa que não tem par em outras imagens do futebol, sequer - arrisco - televisivas. Se, como diz Gumbrecht, nos relacionamos com atletas de alto desempenho à espera de epifanias, de nos sen­tirmos envoltos por seus feitos magníficos, o rosto do craque na teletransmissão é a expressão desse desejo.

à guisa de conclusão

Acredito que a proposta de adicionarmos o rosto como mais um fascínio à lista de beleza atlética de Gumbrecht e, por consequência, de o adicionarmos na lista em construção dos fascínios televisivos, difere daquilo que é corriqueiramente aceito por teóricos da comunicação quando pensam na profu­são de rostos nas narrativas televisivas.

Para autores como Canevacci (2009), Kilpp (2003) e Machado (1990, 1997), o rosto é entendido como o objeto por excelência da linguagem televisiva. Como aponta Macha­do (1990), ao articular fragmentos para sugerir o todo (siné- doque), a televisão acaba se valendo do primeiro plano como recorte do programa, tanto por situar o telespectador dentro da grade de programação quanto por limitação técnica (que aí se converte em opção estética): o rosto seria “a presença por excelência, fixada em planos de sequência muito longos nos quais se alternam as fisionômicas de um ator com as de outro”

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(Canevacci, 2009, p. 141) e o diálogo se daria, na televisão, entre as imagens fisionômicas das personas televisivas. Macha­do (1990, 1997) nota que esta é a característica dos telejor- nais, das telesséries norte-americanas e das novelas brasileiras, ao menos até fim do século passado.

Há também outra questão, ainda mais técnica, que Ma­chado (1997) articula: como o vídeo é uma imagem de baixa definição, planos gerais ou com grande quantidade informa­tiva (de detalhes, quer dizer) não são tão precisos quanto no cinema. Portanto, a opção por planos mais limpos, mas que precisam, de alguma maneira, serem igualmente expressivos- o rosto e a fisionomia, com suas múltiplas fases intensivas e reflexivas, seriam alternativa para a baixa definição caracterís­tica da imagem videográfica.

Essa explicação é rasteira. Basta observar as transmissões de várias categorias esportivas, não apenas o futebol, para per­ceber que, se o rosto fosse alternativa para a baixa qualidade do vídeo, as primeiras teletransmissÕes utilizar-se-iam mais deles do que as últimas, quando é justamente o contrário. Há uma sobrevalorização do rosto nas teletransmissÕes recentes, por causa dos e não apesar dos avanços técnicos na definição e na qualidade da imagem videográfica. A virada para dentro do gramado é o mote para os últimos avanços, como spidercams e câmeras 3D.

Como argumenta Rial (2003), a teletransmissão do fu­tebol passou do olhar distante à imersão, querendo ver “por dentro”, “tocar” os astros da bola. Na era da alta definição (a partir de 2006), a presença de closes muito próximos nos tem­pos mortos ignora a evolução tecnológica pela qual passou a imagem televisiva nas últimas décadas e o raciocínio emprega­do por Machado. O close, o primeiro plano, não é alternativa possível à má qualidade televisiva; é, no caso do futebol, traço estilístico, o que demonstra que tal obsessão pelo rosto deva

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ser buscada além da questão tecnológica - talvez, como pre­tendi demonstrar, no seu fascínio.

Ao longo de Produção e presença, Gumbrecht (2010) nota, inquieto, que a iminência da “virada” de uma cultura de sentido para uma de presença pode ser pressentida no cine­ma blockbuster e seus efeitos especiais cada vez mais realistas e imersivos, que apelam mais aos sentidos do que à imaginação. Não basta mais imaginar que Nova York está sendo destruída por alienígenas; precisamos sentir o perigo e nos deixarmos impactar pelas imagens. Da mesma maneira, a teletransmissão esportiva tem se voltado da análise cerebral (“tática”) em dire­ção ao afeto e à beleza plástica das jogadas - como o exemplo do superslow motion (Abreu e Lima, 2012).

Creio que essa “virada” possa ser argumentada por uma segunda leitura: é que, por mais afeto que os primeiros planos sejam capazes de gerar, esses rostos são como os do cinema mudo. Alijados da voz e do poder de fala, jogadores, treinado­res e demais personas “falam” por meio de seus traços faciais, muitas vezes exageradamente. São o inverso das talking heads, cabeças falantes, mas sem corpos; aqui são corpos sem fala. Enquanto sujeitos, os jogadores na transmissão são imperfei­tos, já que uma das partes fundamentais para a individuali­zação (a fala) lhes falta. Daí, talvez, o recurso da encenação exagerada dos boieiros e a vocalização despretensiosa dos tor­cedores, nas arquibancadas ou nos sofás. Se a fala articulada é expressão do nosso intelecto, a expressão corporal revela nosso lado animalesco e que foge do filtro da mente, como os es­pecialistas em leitura corporal bem sabem. O esporte e suas imagens apelam para o segundo polo, da presença, e escapam do primeiro, do sentido.

Gumbrecht (2007, p. 55), seguindo Eco (1984), crê nos corpos dos atletas como adaptados a formas e funções múl­tiplas, mas extremamente especializadas. Entretanto, todo o

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O rosto do craque: fascínio da teletransmissáo esportiva 1 1 7

desempenho para o qual o corpo atlético é capaz está reduzido na televisão, ao menos enquanto potência visual, ao rosto. São os rostos e não os corpos que se oferecem às interpretações de narradores e comentaristas, que os “decifram” como se fossem grandes redes de significados, mas que sao, em última análise, produtoras de presença. O rosto na teletransmissáo esportiva é fascinante por causa disso - e poderia muito bem ser soma- do aos sete fascínios esportivos identificados por Gumbrecht. O rosto dos esportistas é o centro para o qual toda a televisibi- lidade converge. Se os corpos são essenciais para o esporte, eles são acessórios para a televisão.

Afinal, o rosto dos atletas é capaz de exprimir sentidos que, de outro modo, permaneceriam submersos se a trans­missão se limitasse a gravar os jogadores de corpo inteiro, ou então os obrigasse a falar sobre seus desempenhos esportivos. Como, afinal, colocar em palavras a sensação de “perder-se na intensidade do momento”, aquela bela fórmula de Gumbre­cht (2007, pp. 44-5), algo tão corpóreo? Retorno para o rosto de Zidane na final de 2006 e sei - e sei que ele sabe - o quão perdido na intensidade daquele momento ele estava.

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Experiências estéticas do futebol no cinema brasileiro contemporâneo1

Ana Maria Acker

Introdução

Ao longo da história, o cinema brasileiro produziu di­versos filmes, ficcionais ou documentários, sobre esportes. En­tre essas produções, as que abordam o futebol constituem um corpus significativo (Melo, 2006), embora ainda permaneça a impressão de que a cinematografia nacional tenha dado pouca importância à modalidade mais popular do país.

O presente artigo propõe discutir algumas características dos longas-metragens sobre esse esporte realizados de 1995 a 2012, para além do debate da representação do esporte nessas produções. Assim, a ideia é pensar: quais sensações do mundo da bola são estimuladas nas telas? O objetivo, portanto, é pro- blematizar como os filmes propõem experiências estéticas do futebol a partir das escolhas temáticas e de que modo estas são

1 Este capítulo deriva da dissertação de mestrado Entre efeito de presença e de sentido: experiências estéticas do fu tebo l no cinema brasileiro contemporâneo, defendida em março de 2013, no Programa de Pós-Graduação em Comu­nicação e Informação da UFRGS, com orientação da Prof Dra Miriam de Souza Rossini. Disponível em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/hand- le/10183/71266/000879717.pdf?sequence=l. Uma versão desse texto foi publicada na Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audio­visual — Imagofagia, em abril de 2014.

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tratadas pela linguagem audiovisual. As reflexões apresentadas resultam de análise empreendida em sete produções: Boieiros — era uma vez o fu teb o l (1998) e Boieiros 2 — vencedores e vencidos (2006), ambos de Ugo Giorgetti; Garrincha - estrela solitária (2003), de Milton Alencar; Carandiru (2003), de Héctor Ba- benco; O ano em que meus pa is saíram d e fér ia s (2006), de Cao Hamburger; Linha d e passe (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas; e Heleno (2012), de José Henrique Fonseca.

O texto é dividido em duas etapas - na primeira, há uma contextualizaçao do futebol como experiência estética na vida cotidiana, das materialidades comunicacionais pelas quais ele se apresenta. Para essa argumentação, os conceitos de Hans Ulrich Gumbrecht sao fundamentais e direcionam a observa­ção empreendida nas obras. Já na segunda é apresentada uma síntese das análises, a fim de perceber como o cinema brasilei­ro contemporâneo explora o sensível do esporte em questão.

O esporte como experiência estética

Aparições de corpos no espaço, epifanias, momentos de intensidade que desaparecem quase que ao mesmo tempo em que surgem no espaço. Esses são alguns dos termos usados por Hans Ulrich Gumbrecht para definir eventos esportivos e relacioná-los com a experiência estética. Ao refletir sobre os efeitos de presença, o autor salienta que esses nos aproximam da dimensão corpórea do mundo:

Assim, o que é presença? O que queremos dizer quando dizemos que alguma coisa tem presença? Talvez de forma surpreendente, presença enfatize muito mais o espaço que o tempo (a palavra latina prae-esse literalmente significa “es­tar diante de”). Algo presente é algo que está ao alcance, algo que podemos tocar, e sobre o qual temos percepções

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sensoriais imediatas. A presença, nesse sentido, não exclui o tempo, mas sempre associa o tempo a um lugar específico (Gumbrecht, 2007, p. 50).

A relação espacial de algum modo aproxima sujeito e objeto; não há separação entre ambos. Gumbrecht con­sidera que assim, na dimensão da presença, “[...] as pesso­as sentem-se parte do mundo físico, e contíguas aos objetos que o compõem” (Gumbrecht, 2007, p. 51). No caso dos esportes, interpretar excessivamente seus fenômenos acaba por reduzi-los, esvaziando as sensações que proporcionam. O autor alemão define a experiência estética como uma osci­lação entre efeitos de presença - relação sensível, perceptiva com o mundo - e de sentido, que diz respeito à interpretação (Gumbrecht, 2010).

A produção de presença, uma relação com o mundo es­pacial, corpórea, sensível, traz conceitos não interpretativos. Gumbrecht considera que as ciências humanas ainda apresen­tam dificuldades para lidar com tais questões e defende o res­tabelecimento do “[...] contato com as coisas do mundo fora do paradigma sujeito/objeto (ou numa versão modificada desse paradigma), tentando evitar a interpretação [...]” (Gumbrecht, 2010, p. 81). E possível evitar a interpretação, a produção de sentido? O próprio teórico problematiza o desafio. Em outros momentos de Produção d e presença , ele fala da possibilidade de “[...] imaginar uma situação intelectual em que a interpre­tação deixe de ter exclusividade” (Gumbrecht, 2010, p. 105). É necessário que o campo da Comunicação se proponha a olhar para os objetos não apenas com a prioridade de estabelecer interpretações sobre eles, e sim procurando neles o que há de comunicativo para além dessa dimensão. No caso dos estudos sobre esportes, essa postura torna-se fundamental, uma vez que as modalidades apelam para o sensível.

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Gumbrecht reitera diversas vezes o caráter de beleza de jogadas, lances de esporte. Segundo ele, “[...] as jogadas que surgem em tempo real na partida são surpreendentes até para os treinadores e para os jogadores que as executam, porque precisam ser realizadas contra a resistência imprevisível da de­fesa do outro time” (Gumbrecht, 2007, p. 134). A experiên­cia estética relacionada com os esportes passa pela beleza de jogadas, porém não se restringe a isso. Se a fruição se dá na oscilação entre efeitos de presença e de sentido, essa relação ultrapassa a dimensão do belo. Uma experiência com o estéti­co, um momento de intensidade não necessariamente precisa estar condicionado ao prazer em termos positivos. No esporte, lembra o professor de Stanford, “a graça e a violência muitas vezes caminham juntas” (Gumbrecht, 2007, p. 122).

Há um paradoxo na fala do teórico das Materialidades, pois, ao mesmo tempo em que ele destaca as experiências que o contato com práticas esportivas proporcionam, enfatiza que:

[...] as competições atléticas não expressam nada, portanto não oferecem nada a ser lido. Elas nos fascinam com “corpos que pesam” (“bodies that matter”, um trocadilho útil inventado pela filósofa Judith Butler), corpos que se adaptam a formas e funções múltiplas. Ao interpretar essas formas e funções cor­porais e transformá-las em significado, corremos o risco de re­duzir, se não de destruir, o prazer singular que desfrutamos nos eventos esportivos (Gumbrecht, 2007 p. 55).

O “nada” a ser lido remete à ausência de conteúdos edi­ficantes da experiência estética. Dar significado ao efeito de presença pode limitá-lo, mas é importante perceber que, ao mesmo tempo em que salienta a insularidade do fenômeno estético, Gumbrecht o caracteriza, aponta os elementos que o constituem e problematiza as sensações que evoca.

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De certa maneira, o autor realiza em seus argumentos aquilo que define como característica básica da experiência es­tética: produção de presença e de sentido oscilam e coexistem em tensão nos objetos. Embora haja um esforço do teórico em olhar para as práticas esportivas sem interpretações demasia­das, ele acaba o fazendo quando tenta discutir as percepções que identifica a partir do contato com jogos e competições. Parece inevitável interpretar, só que isso não impossibilita a problematização da produção de presença, já que este conflito é do jogo, seja ele o acadêmico ou do futebol, como salienta Wisnik (2008):

E só essa ausência sintomática do futebol que permite falar, com tanta certeza, da insignificância do conteúdo do jogo, quando seria preciso entender que, nele, como nas artes e na música, o conteúdo está ali como se não estivesse: na au­sência de significado, mas fazendo sentido e pondo em cena conteúdos conflitivos e catárticos que o transformam nesse vespeiro universal de congraçamento e violência (Wisnik, 2008, p. 45, grifo do autor).

O “conteúdo estar ali como se não estivesse” pode ser relacionado com a oscilação entre presença e sentido que o esporte proporciona. Interpretar as sensações que surgem na fruição estética certamente impõe barreiras a ela; entretanto, isso parece inevitável se a intenção é pensar sobre essa experi­ência estética. E, consequentemente, pensá-la não quer dizer igualá-la em intensidade e emoção.

Os objetos desses fenômenos não necessariamente pre­cisam ser entendidos como os estádios, campos e ginásios. O contato com o esporte também se dá pelas materialidades que transformam, criam outras experiências. Televisão, rádio, internet, cinema e papel são meios que estão no caminho e

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que de certa maneira alteram a relação com as modalidades. Gumbrecht reconhece a influência da tecnologia nos efeitos de presença e de sentido e salienta que o consumo do evento é diferente, dependendo do lugar:

A torcida dos estádios [...] pode ser barulhenta ou silenciosa, mas em princípio não é permeada por atos de comunica­ção — embora nos estádios mais modernos telões enormes aproximem a experiência da multidão à da transmissão pela TV. Mais ainda que o comentário dos locutores, dispositivos eletrônicos como o reph y e a câmera lenta geram uma im­pressão de análise. Uma transmissão ou um replay no telão do estádio podem dar aos torcedores a ilusão de que eles possuem as mesmas informações que o técnico está usando para analisar uma jogada que acabou de acontecer, e para repensar a estratégia de jogo. Mas o que a transmissão aban­dona de vez e não é capaz de substituir é a copresença física de espectadores e atletas como condição mais elementar para a comunhão (Gumbrecht, 2007, p. 155).

Os meios técnicos eliminam a vivência simultânea com os eventos; todavia, não se pode afirmar que a experi­ência estética mediada seja menos intensa que a vivenciada no mesmo espaço em que a competição ou o jogo esportivo. São situações diferentes e o teórico alemão reconhece que certas tecnologias potencializam efeitos de presença. As te­las trazem a chance de suscitar um desejo pelo substancial da existência, segundo argumenta o autor: “Estou tentan­do não condenar nem dar uma aura misteriosa ao nosso ambiente mediático. Ele alienou de nós as coisas do mun­do e o presente — mas, ao mesmo tempo, tem o potencial de nos devolver algumas coisas do mundo” (Gumbrecht, 2010, p. 173).

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O “devolver coisas do mundo” não diz respeito somente a objetos distantes no espaço, mas também no tempo. Gumbre­cht (2010) argumenta que há um desejo de presença pelo passa­do, o que é perceptível na reconfiguração de museus e artefatos que cultuam a nostalgia: “Este desejo de presentificação pode estar associado à estrutura de um presente amplo, no qual já não sentimos que estamos ‘deixando o passado para trás’ e o futuro está bloqueado” (Gumbrecht, 2010, p. 152). Ou seja, o presente amplo acumula diversas experiências de passado em caráter si­multâneo. A presentificação (grifo nosso) do passado seria a “[...] possibilidade de ‘falar’ com os mortos ou de ‘tocar’ os objetos dos seus mundos” (Gumbrecht, 2010, p. 153).

O teórico das “Materialidades da Comunicação” não vê problemas no desejo de presentificação do passado, pois “já que não podemos sempre tocar, ouvir ou cheirar o passado, tratamos com carinho as ilusões de tais percepções” (Gum­brecht, 2010, p. 151). As imagens do passado e o modo como essas se apresentam podem ser consideradas como um sintoma desse desejo de presentificação na contemporaneidade:

O desejo de presença nos leva a imaginar como nos teríamos relacionado intelectualmente, e os nossos corpos, com deter­minados objetos (em vez de perguntar os que esses objetos “querem dizer”) se tivéssemos encontrado com eles nos seus mundos cotidianos históricos. Quando sentirmos que esse jogo da nossa imaginação histórica pode ser sedutor e con­tagioso, quando seduzirmos outras pessoas para o mesmo processo intelectual, teremos produzido a mesma situação a que nos referimos quando dizemos que alguém é capaz de “invocar o passado” (Gumbrecht, 2010, p. 155).

As materialidades comunicacionais são aparatos que po­dem estimular o desejo de contato com objetos e situações

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distantes no tempo e no espaço. Do mesmo modo em que os processos maquínicos alteram determinadas vivências, estabe­lecem outras. As imagens técnicas empreenderam mudanças profundas nas práticas esportivas, salienta Melo (2006), pois deram a ver detalhes de movimentos, exacerbaram perform an­ces■, estimularam ainda mais a busca por marcas e recordes. Os registros em imagem consolidaram as modalidades como eventos de espetáculo, expandindo de certa forma o diálogo dessas manifestações com o campo artístico.

O futebol é um ritual que se aproxima das manifesta­ções religiosas e artísticas, conforme salienta Roberto DaMatta (1982). Além de Hans Ulrich Gumbrecht, a relação das ativi­dades esportivas com outros campos e suas questões estéticas é abordada por diversos autores, como Bernard Jeu e Wolfgang Welsch (Melo, 2006). Hilário Franco Júnior compara a ex­periência dos estádios, ginásios e arenas com a vivenciada no contato com o cinema, a literatura e o teatro:

E verdade que o futebol não é realidade em si, mas fuga do real, representação imaginária. Ele, contudo, não se diferen­cia nisso do cinema, do teatro, da literatura e das artes em geral. [...] Por canalizar com eficácia as esperanças e frustra­ções da sociedade, ele desperta emoção tão envolvente e ade­são tão intensa que claramente se destaca de qualquer outra manifestação contemporânea (Franco Júnior, 2007, p. 394).

No texto citado de Franco Júnior, é importante pro- blematizar que a experiência com o futebol suscita emoções envolventes; no entanto, esse comportamento não necessaria­mente significa uma fuga do real. O futebol é uma realidade em meio a todas as outras e se relaciona com elas, proporcio­nando experiências difusas que, mesmo que estejam atreladas ao cotidiano, se afastam do fluxo contínuo de acontecimentos.

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Wolfgang Welsch cita que “o prazer no esporte é considera­do um prazer baixo de massas - um prazer que não é digno de consideração positiva pela estética, mas, ao negligenciar o caráter artístico do esporte, deixamos de compreender por que ele é tão fascinante para o grande público” (Welsch apud Melo, 2006, p. 13).

Já Wisnik acredita que o “futebol poder ser objeto si­multâneo de paixão e desafio intelectual. Essa disposição não é muito diferente daquela que é pedida pela arte - que supõe certa dose de aceitação da violência simbólica e da gratuidade” (Wisnik, 2008, p. 46). E importante perceber que pensar, cri­ticar o futebol não impede uma discussão sobre sua dimensão sensível. Nesse aspecto, a prática diferencia-se da maioria dos outros esportes:

[...] a sua estrutura coletiva, aberta e híbrida, incorporando originariamente elementos modernos e pré-modernos, ci­tadinos e “rurais”, estritamente concorrenciais e ao mesmo tempo livres, expõe essas variações num leque simultâneo e contrastivo, polifónico e paródico, que faz do futebol, mais do que nenhum outro esporte, uma movimentada batalha dos gêneros narrativos, e um teatro inédito para o desfile polêmico e não verbal das gestualidades, das dis­posições mentais, das potencialidades criativas (W isnik, 2008, p. 103).

A batalha de gêneros narrativos destacada por Wisnik diz respeito tanto às diversas interpretações que um jogo de futebol pode fomentar quanto às sensações que estimula. Es­ses comportamentos podem ser comparados à relação humana com as artes, pois “o futebol vem antes e depois das artes: participa da força que as gerou ao mesmo tempo em que é o último dos seus avatares. Não espanta que não poucos artis­

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tas vejam nele algo daquilo que desejam para a própria arte” (Wisnik, 2008, p. 398). É importante frisar, todavia, que re­ações, percepções parecidas com o que é proporcionado pelo artístico nao quer dizer que o futebol seja arte. Ele é um meio para se vivenciar sensações múltiplas, e esses fenômenos po­dem ser apontados como os principais responsáveis pela quan­tidade de adeptos e praticantes pelo mundo.

Assim, a capacidade do esporte em agregar pessoas, so­bretudo nos clubes e torcidas, merece ser investigada como fenômeno estético. As trocas que ocorrem em estádios e jogos são parte das experiências estéticas do meio. Gumbrecht afir­ma que a “universalidade subjetiva” mencionada por Imma- nuel Kant não significa que todos tenham o mesmo juízo de gosto, mas que há uma expectativa de que outros concordem:

Com a multiplicidade de eventos esportivos disponíveis hoje em dia, é impressionante ver o quanto e com quanta frequência os torcedores convergem no entusiasmo e na in­tensidade com que vivem e mais tarde relembram determi­nados momentos decisivos — e isso acontece independente de quem tenha ganhado ou perdido a competição. [...] Em qualquer dos casos, pelo critério da universalidade subjetiva, não há dúvida de que os esportes parecem se qualificar como experiências estéticas (Gumbrecht, 2007, p. 39).

O autor salienta que há um processo que une as atitudes em estádios. Porém esses fatos não se apresentam apenas como positivos, já que a vivência em grupos nos espaços esportivos também pode levar ao atrito com os torcedores rivais. Isso nos faz salientar que o efeito de presença não é somente algo li­gado ao belo - a violência apela para a sensibilidade e é parte inseparável da gênese do futebol. Os argumentos do autor ale­mão auxiliam no estudo da experiência estética do futebol no

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cinema, embora ele não tenha se dedicado especificamente a essa mídia em seus escritos.

Experiências estéticas do futebol nas telas

A experiência estética em um campo de futebol é uma, propõe um tipo de produção de presença, conforme já discu­tido a partir dos conceitos de Gumbrecht. A relação com ima­gens de jogos, competições, ou recriações destas leva a outro tipo de produção de presença, a outras oscilações com os sen­tidos que transitam. A partir do estudo dos filmes Boieiros — era uma vez o fu teb o l (1998) e Boieiros 2 — vencedores e vencidos (2006), ambos de Ugo Giorgetti; Garrincha — estrela solitária (2003), de Milton Alencar; Carandiru (2003), de Héctor Ba- benco; O ano em que meus pa is saíram d e fér ia s (2006), de Cao Hamburger; Linha d e passe (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas; e Heleno (2012), de José Henrique Fonseca, foi pos­sível observar algumas recorrências no modo como o cinema brasileiro aborda a modalidade.

A análise, focada em algumas sequências que remetem a momentos de intensidade, identificou temáticas recorren­tes: futebol do presente e do passado, memória da moda­lidade, futebol e exclusão social, relação entre jogadores e torcedores. Nos aspectos estéticos, percebeu-se que a mise- -en -scèn e, montagem e som são os elementos preponderantes na sugestão de experiências estéticas acerca do futebol.

Entre as recorrências, uma que surpreendeu foi a da me­mória, a materialização desta por meio de diversos artefatos midiáticos. Gumbrecht (2010) afirma que as tecnologias nos alienam do mundo, ao mesmo tempo em que podem trazer as coisas à nossa pele justamente pelas materialidades. O modo como essas memórias aparecem nas obras — fotos, imagens de arquivo, imagens que simulam ser de arquivo, jornais, televi-

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são, pôsteres, figurinhas etc. - constituem aquilo que o autor alemão denomina como desejo de presen tificação do passado.

Figura 1 — Fotos reforçam comparação entre atletas no passado e no presente.

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*■ »lif _____ ____________Fonte: DVD de Boieiros — era uma vez o fu tebol (1998).

Sem podermos alcançar o passado, tentamos chegar às sensações dele, em como teria sido ver os craques daquele tem­po em campo, como seria a emoção de assistir ao Brasil tri- campeão do mundo, ou Garrincha e Heleno driblando adver­sários e fazendo gois. Sem isso, resta a simulação do que não retorna, do que virou dado histórico, mas que pode se tornar tangível em imagens e efeitos de presença. O desejo depresen - tifica ção do passado é uma das percepções fundamentais deste estudo na observação das experiências estéticas propostas pelo cinema brasileiro contemporâneo.

A nostalgia é recorrente nas narrativas que envol­vem o futebol no país, e a tradição da crônica jornalística contribuiu para a firmação desse sentimento. Algumas das obras pesquisadas seguem nessa linha, como Boieiros e Bo­ieiros 2 , O ano em qu e m eus pa is saíram d e fé r ia s e G arrincha- estrela so litá ria , o que contribui para a consolidação de

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um tipo de memória do futebol. De acordo com Andreas Huyssen (2000, p. 69), “[...] o passado rememorado com vigor pode se transformar em memória mítica”, o que pode constituir um obstáculo aos desafios do presente. E arrisca­do afirmar se o modo como a memória do futebol aparece nos filmes pesquisados possa sugerir algum pensamento mítico em torno do que o jogo foi, porém essa indagação auxilia na compreensão de que as obras audiovisuais sobre esse esporte no Brasil não se distanciam muito das narra­tivas e dos discursos que permeiam outros meios em que o futebol circula.

Figura 2 - Arquivo reforça a memória na relação com as ima­gens ficcionais.

Fonte: DVD de O ano em que meus pais saíram de férias (2006).

As abordagens de alguns teóricos sobre futebol dialo­gam com as obras, principalmente os dois Boieiros, Linha de passe e Carandiru, em que questões como igualdade, exclusão social e identidade nacional aparecem. Embora não eliminem

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por completo a dimensão positiva, lúdica, essas produções criticam com contundência a modalidade. Tais críticas rela­cionam-se com a memória do esporte, já que o futebol do passado, na maioria das vezes, é apresentado como o bom, o verdadeiro, aquele que de fato estabelece a relação afetiva, que dimensiona efeitos de presença.

Figura 3 - Montagem pontua contrastes do futebol: exclusão versus sucesso.

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Fonte: DVD de Linha de p a sse (2008).

As discussões sobre as relações entre torcedores e futebol apresentam-se, sobretudo, nas cinebiografias Garrincha — es­trela solitária e Heleno-, e em O ano em que meus pa is saíram de férias. As vivências entre o esporte e os aficionados são difusas na tela, pois é possível perceber que a paixão oscila, diminui e pode se transformar em ódio dependendo da situação. Ou seja, pensar essa relação como alienante é no mínimo reduzi- -la, já salienta Gastaldo (2012), e os filmes estudados nesta proposta têm o cuidado em não empreender essa simplifica­ção do fenômeno.

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Experiências estéticas do futebol no cinema brasileiro contemporâneo 13 3

Figura 4 - Goleiras simbolizam relação do craque com a torcida.

Fonte: DVD de Heleno (2012).

Durante as análises, busquei observar essas recorrências temáticas e de que maneira experiências estéticas do futebol eram sugeridas a partir delas. A m ise-en-scène foi o ponto de partida da observação, que logo integrou outros elementos, com destaque para montagem e som. David Bordwell (2008) tende a contrapor a encenação ao ato do corte, destacando que no cinema contemporâneo a justaposição de planos se sobrepõe à potência expressiva na mise-en-scène. Conforme Aumont, no entanto, a “[...] encenação [...] pressupõe a mon­tagem (na sua função narrativa)” (2008, p. 110), o que leva ao entendimento de que ambas estão interligadas.

Choques de montagem para levar o espectador a sentir algo, em detrimento àquilo que seria a grande forma do cine­ma — nesse ponto os argumentos de Aumont e Bordwell con­vergem, entretanto durante o estudo dos filmes, constatei que pensar em conflito entre encenação em montagem é como so­brepor a imagem ao som nos filmes. Uma obra audiovisual se faz e se apresenta como possibilidade de produção de sentido e

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de presença por meio de todos os elementos que a constituem. Esses elementos são levados à tela na relação complexa entre o fazer humano e o processo maquínico que os engendra. Logo, a grande fo rm a de que fala Aumont não pode ser pensada so­mente pela mise-en-scène, pois a fruição ocorre no contato com o filme em um todo, com a plenitude de seus elementos. Desse modo, se Bordwell e Aumont compreendem que o cinema se transforma continuamente, encenação e montagem passam pela mesma mudança e, ao contrário de conflito, a relação entre ambos é dialética, o que propõe certas características pe­culiares para as possíveis experiências estéticas percebidas nos filmes do corpus.

Embora a maioria das sequências seja constituída por vários cortes — a exceção é a de Boieiros — era uma vez o fu teb o l- o ritmo dos excertos não é rápido, justamente pelo exercício da câmera lenta. Planos mais longos, em um ritmo vagaroso, arrastados, imprimem condições visuais distintas, geralmente em multiplicidade de detalhes. É como se a construção fílmica direcionasse o olhar, como se anunciasse: ‘veja, observe, sinta o que está na tela’. O som agrega nesse movimento e contribui para determinar a expressão de rostos que irrompem na tela em todas as obras estudadas.

Considerações

O cinema é, majoritariamente, antropomórfico, e tal con­dição colaborou para a ligação das imagens em movimento com as práticas esportivas desde o surgimento de ambas na Moderni­dade (Melo, 2006). O que analisei no caso dos filmes de ficção brasileiros contemporâneos é que o interesse dessas obras está, principalmente, no rosto dos personagens, seus olhares, expres­sões, sensações. Essa parte do corpo é que se sobressai: há pouco de dribles, gois nas sequências problematizadas e nos filmes como

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um todo. Tal constatação nos ajuda a inferir que as possibilida­des de experiência estética com o futebol no audiovisual brasileiro não estão no jogo, mas na memória deste, por meio de um desejo de presença de traços de um esporte que já passou.

Gumbrecht (2007) afirma que o fascínio do futebol se dá por meio das belas jogadas, instantes fundamentais para os momentos de intensidade da experiência estética, porém, nos filmes brasileiros sobre a modalidade, não é a bela jogada o ponto primordial na sugestão de tais fenômenos. De certa maneira, busquei expandir o conceito do autor para além do jogo, pois entendo o futebol como modalidade de experiên­cias múltiplas tão ou até mais intensas que as vivenciadas no entorno das quatro linhas.

Para produzir sentido e presença do futebol, os diretores brasileiros se valem daquilo que está disseminado na cultura nacional acerca desse esporte, tanto nos discursos de outros meios quanto no campo teórico. Além disso, observa-se que as produções que tratam desse esporte estão ligadas a algumas tradições do cinema brasileiro. Ou seja, questões como vio­lência e exclusão social, marcantes na produção nacional, são verificadas nos filmes de futebol.

De todo modo, é possível afirmar que os aspectos te­máticos apresentam-se de maneira mais diversificada do que os estéticos, porque as recorrências formais para proposição de experiências estéticas não variam tanto, quando observadas por meio da relação dialética entre mise-en-scène, som e mon­tagem. Nesse ponto, a preponderância é de primeiros planos e câmera lenta.

As tentativas de encenação do jogo propriamente dito são raras por diversos motivos. Só que mais do que pensar em dificuldades técnicas para a reprodução de partidas, é necessá­rio compreender que o cinema brasileiro tem, sim, certo pu­dor em tratar o futebol como espetáculo, algo recorrente em

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filmes norte-americanos sobre esportes. A disputa em campo dá lugar ao que acontece no lado de fora: torcedores, dramas de jogadores e ex-jogadores, exclusão, igualdade, discrimina­ção. Enfim, pensar e sentir o futebol no cinema está atrelado às questões de fundo, como se esses filmes quisessem de fato compreender as razões, as motivações da relação entre brasilei­ros e esse esporte, muito mais do que potencializar experiên­cias semelhantes com as que ocorrem nos gramados, campos de várzea ou ginásios.

Tudo o que foi escrito nessas páginas é pouco diante do que a experiência estética com imagens sobre futebol possa suscitar — a produção de sentido e a interpretação ainda se sobrepõem nos textos que abordam esses fenômenos. O de­safio é longo e a Comunicação tem nesse âmbito a chance de expandir suas problemáticas acerca da modalidade sem perder de vista as especificidades do campo. Os sentidos levantados por esta breve reflexão não suportam a dimensão de presen­ça das imagens. Mesmo assim, as tentativas de estudo nessa abordagem precisam ser aprofundadas, tendo em vista a diver­sidade de materialidades audiovisuais que registram, criam e recriam o futebol brasileiro na contemporaneidade.

Referências

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de Janeiro: Pinakotheke, 1982.FRANCO JÚNIOR, H. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São

Paulo: Companhia das Letras, 2007.GASTALDO, E. “Huizinga e o futebol”. In ROHDEN, L. et al. (org.).

Filosofia efu tebol: troca de passes. Porto Alegre: Sulina, 2012, pp. 134-48. GUMBRECHT, H. U. Corpo eforma: ensaios para uma crítica não-hermenêu-

tica. Org. João Cezar de Castro Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

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Experiências estéticas do futebol no cinema brasileiro contemporâneo 13 7

------ . “Experiência estética nos mundos cotidianos”. In GUIMARAES, C.etal. (orgs.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, pp. 50-63.

------ . Elogio da beleza atlética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.------ . Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de

Janeiro: Contraponto, PUC-Rio, 2010.HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia.

Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.MELO, V. A. Cinema e esporte: diálogos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006.ORICCHIO, L. Z. Fome de bola: cinema e fu teb o l no Brasil. São Paulo:

Imprensa Oficial, 2006.WISNIK, J. M. Veneno remédio·, o fu teb o l e o Brasil. São Paulo: Companhia

das Letras, 2008.

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Adorno, Benjamin e Gumbrecht: contribuições teóricas para a

relação futebol e comunicação

Anderson David Gomes dos Santos

Futebol como tema

Ano de Copa do Mundo FIFA e esta sendo realizada no Brasil. Transformações no jornalismo esportivo, com discus­sões sobre tratá-lo no formato jornalístico ou no do entrete­nimento. Espetáculos em torno dos esportes de modo geral e, em especial, com o futebol, com determinante presença midi- ática neste. Além do estímulo em se saber o porquê de tanta gente se encantar por este esporte em tantos lugares do mun­do. Nao faltam possibilidades de estudos sobre este objeto nas ciências humanas e sociais. Este tema apresenta-se cada vez mais atraente na agenda científica.

Mas foi só a partir da década de 1990 que se percebeu uma maior ascensão de estudos comunicacionais com o obje­to sendo o futebol, após um novo panorama de publicações da década anterior em estudos sociais, que demarcam novas visões para além da identificação com a identidade nacional. Ainda assim, chega a ser incrível que, apesar de toda sua re­percussão, seja midiática ou interpessoal, o futebol ainda possa ser visto de maneira preconceituosa por alguns acadêmicos.

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É importante afirmar, no entanto, que, mesmo em es­tudos descentralizados, nos últimos 15 anos surgiram alguns grupos de pesquisa em comunicação no Brasil sobre o assunto, com direito a Grupos de Trabalho em alguns eventos científi­cos, caso do Congresso Brasileiro das Ciências da Comunica­ção (Intercom). Este último se dedicou aos “esportes na Idade Mídia” na edição de 2012.

Entre os estudos, percebe-se desse os primórdios de publicações sobre o tema uma divisão entre os autores que identificam no futebol um momento de alienação, sob uma perspectiva frankfurtiana/marxista ortodoxa, e outros que veem nesses eventos apenas seu caráter lúdico e como possibi­lidade de ascensão social. Enfrentar esta dicotomia é um dos grandes desafios para quem pretende se especializar na área e é um processo que vem avançando na academia brasileira nos últimos anos. Assim, a análise das configurações sociais do futebol no novo e no velho milênio pode despertar uma crítica a essa dicotomia e resgatar os termos apocalípticos e integrados, de Umberto Eco. Como afirma Marques (2011, p. 95):

Por um lado, há os que veem o esporte como fator civilizató- rio, criador de identidades e de formas de socialização. Nessa visão mais “integrada”, a “criança difícil do século” é enten­dida por meio de tradição culturalista e por vezes romântica, que valoriza seu aspecto lúdico e sua secularização [ .. .] Por outro, há os que permanecem reticentes dentro do espaço desmesurado concedido ao fenômeno esportivo. Neste caso, mantém-se visão mais “apocalíptica” diante da mercantiliza- ção excessiva e da espetacularização que o esporte adquiriu, especialmente na segunda metade do século XX.

Para verificar como poderiam ocorrer as influências de alguns estudos das ciências humanas e sociais sobre o fute-

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boi, este trabalho pretende analisar possíveis contribuições de diferentes âmbitos de pesquisas para as análises comunica- cionais sobre este esporte. Assim, na parte inicial tratar-se- -á das análises sobre a indústria cultural na perspectiva dos trabalhos da Escola de Frankfurt, mais especificamente por meio de Theodor Adorno - inclusive com referências de O ilum inism o como m istificação das massas (1947), escrito em co- autoria com Max Horkheimer.

Em seguida, será abordado o futebol televisionado a partir dos estudos de Benjamín, e a perda da aura dos eventos ritualísticos pela ascensão dessa indústria. Benja­mín servirá como intermediário entre as posições frank- furtianas e as do também alemão Hans Ulrich Gumbre­cht, que estuda os esportes criticando, inclusive, os que se opõem a tal atividade, mas numa perspectiva de análise de âmbito tecnoestético no contexto das “Materialidades da Comunicação”. Esse autor apresenta-se como uma referên­cia necessária na atualidade para quem estuda o futebol, por identificar-se como um apaixonado pelo esporte e, es­pecialmente, arriscar-se a entender o que motiva a paixão por este bem cultural.

Nosso intuito é apresentar duas diferentes linhas te­óricas comunicacionais (três, se considerarmos Benjamín fora da Escola de Frankfurt), oriundas de autores com des­taque em outras áreas do conhecimento (Sociologia e Lite­ratura) e, nos casos de Adorno e Gumbrecht, que saíram da Alemanha e receberam decisivas influências do contex­to sócio-histórico estadunidense. Desse modo, é possível apresentar possibilidades de análises sobre o futebol numa perspectiva da Comunicação que possa ajudar a avançar em elaborações teóricas para futuros trabalhos com este objeto de estudo.

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O futebol midiatizado prolongaria as atividades do trabalho

A Escola de Frankfurt apresentou uma renovação na teoria marxista sobre as questões sociais ao acrescer a impor­tância da cultura e da ideologia no capitalismo, que seriam manipuladas para atender aos interesses das classes dominan­tes deste sistema social. O termo indústria cu ltu ra l reflete essa mudança de paradigmas, em que até mesmo os bens culturais perderiam sua aura ao se tornarem massificados, produzidos em série para serem vendidos.

A evolução tecnológica, presentificada nas possibilida­des de acesso às obras de arte, só faria instrumentalizar a vida das pessoas. Os meios de comunicação serviriam apenas, na opinião desses autores, para alienar os trabalhadores e os im­pedirem de raciocinar sobre a situação cotidiana de opressão em que vivem:

De acordo com a Escola de Frankfurt, a indústria cultural reflete a consolidação do fetiche da mercadoria, o predomí­nio do valor de troca e a supremacia do capitalismo mono­polista. A indústria cultural modela os gostos e as preferên­cias das massas, formando suas consciências ao introduzir o desejo das necessidades supérfluas. Portanto, pretende excluir necessidades concretas, atitudes e posições políticas de oposição. É tão eficaz nessa tarefa que as pessoas não per­cebem o que ocorre (Strinati, 1999, p. 70).

Com base na perspectiva de sociedade sob o capitalis­mo tardio, os autores demonstram uma visão apocalíptica, em especial por conta da atuação das indústrias culturais neste processo de “alienação [humana] de si mesmo”. Viven- ciar o nazismo na Alemanha e o consumismo dos Estados

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Unidos os ajudou a formatar tamanho pessimismo. Obser­vada a posição social em que os textos eram escritos e, conse­quentemente, as críticas feitas especialmente a Adorno sobre o seu elitismo, é possível perceber que, se este autor tratasse de esportes, mais especificamente do futebol, teríamos ainda mais críticas, principalmente por se juntar tais formas de di­versão numa Indústria Cultural.

Adorno e Horkheimer (1985) já afirmam que o mundo inteiro seria forçado a passar pela indústria cultural, portanto não deveria ser motivo de críticas o fato de o futebol, ou qual­quer evento cultural, ser adaptado de acordo com os meios de comunicação. Porém os autores contemporâneos que tratam desse esporte numa visão apocalíptica não levam em conside­ração o momento histórico e o fato de que, segundo as pers­pectivas frankfurtiana e marxista, tudo poder ser apropriado pelos meios de comunicação e pelo capital.

Numa interpretação sobre o futebol na mídia, podemos supor que os pensadores veriam nele, e até mesmo na ida ao estádio, uma maneira de ocupar os sentidos das pessoas em seus horários de folga do trabalho, com a reprodução mecani­zada do que deveriam fazer quando voltarem ao mesmo:

A diversão é o prolongamento do trabalho sobre o capi­talismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se por de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a meca­nização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisas senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 128).

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Um dos principais argumentos dos críticos do futebol- sua suposta superficialidade e o deslocamento das relações cotidianas - reafirmaria também o que Adorno e Horkhei- mer definem como produtos da Indústria Cultural, conceito assim descrito:

As necessidades supérfluas, portanto, trabalham para negar e suprimir as exigências concretas e podem, de fato, ser re­alizadas, como os desejos inspirados pelo consumismo, mas somente à custa das verdadeiras, que permanecem insatisfei­tas (Strinati, 1999, p. 69).

A perspectiva de participar da “gigantesca maquinaria econômica” apagaria os traços de prazer ligados a pratica e/ou ao acompanhamento de uma partida de futebol. Dessa linha de pensamento, comum também em pesquisadores não frank- furtianos, fixa-se a ideia de que o consumidor de tal esporte formaria a mesma “audiência regressiva” que Adorno cita em seus estudos para a música popular, “dependentes, passivos e servis” (Strinati, 1999, p. 73). Um grave problema para as pes­quisas sobre a música e que costumam ser repetidos quando o objeto empírico é o futebol.

Mas este trabalho não se limitará a apontar problemas e críticas aos frankfurtianos. Vale lembrar a grande contribuição do conceito “Indústria Cultural” para os estudos comunica- cionais, tradição que melhor representa a produção cultural por meio dos meios de comunicação massivos. E claro que, dependendo da utilização teórica, pode-se questionar a pre­ocupação com a produção em série e a falsa individualização dos produtos. Entretanto, o desenvolvimento desse conceito possibilitou, por exemplo, análises sobre as empresas de co­municação e sua posição e movimentação no mercado. Além do que elas produzem em termos de discurso, tem-se aqui a

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possibilidade de estabelecer relações que justifiquem a difusão de discursos e demais escolhas.

No caso do futebol, questões mercadológicas justificam que determinados times tenham mais partidas televisiona­das que outros e, consequentemente, recebem mais recursos oriundos do broadcasting. A transmissão de mais partidas dos times do eixo Rio-São Paulo acabou por formar as maiores torcidas do país por conta da difusão, por meio do rádio e da televisão, de suas partidas para outros estados do país. Assim, e acordo com Adorno e Horkheimer (1985, p. 115):

A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, mas não sua desculpa [ . . .] Acresce a isso o acordo, ou pelo menos a determinação comum dos poderosos executivos, de nada produzir ou deixar passar que não corresponda a suas tabe­las, a ideia que fazem dos consumidores e, sobretudo, que não se assemelha a eles próprios.

O fato de algumas partidas serem transmitidas às 21h50, no meio da semana, além de prejudicar o transporte de volta para casa do torcedor na medida em que no dia seguinte pre­cisa trabalhar normalmente, poderia confirmar tal afirmação de que “o logro, pois, não está em que a indústria cultural proponha diversões, mas no fato de que ela estraga o prazer com o envolvimento de seu tino comercial nos clichês ideoló­gicos da cultura em vias de se liquidar a si mesma” (Adorno e Horkheimer, pp. 133-4).

Outro ponto de tensão está relacionado com a análise da situação da estrela desenvolvida pela Indústria Cultural. Se o futebol já gerava seus mitos, os meios de comunicação os propagam com velocidade cada vez maior. Os jogadores de futebol, desde as categorias de base, anseiam reconhecimento,

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projeção e notabilidade para atuar na Europa, mesmo sendo o Brasil o “país do futebol”, pois seria a chance não só de ganharem mais dinheiro, mas a possibilidade de se tornarem famosos mundialmente. Porém:

Só uma [pessoa] pode tirar a sorte grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma probabilida­de, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é. Mesmo quando a in­dústria cultural ainda convida a uma identificação ingênua, esta se vê imediatamente desmentida (Adorno e Horkhei­mer, 1985, p. 136).

Estrelas mundiais como David Beckham, de grande sucesso no Japão mesmo sem nunca ter atuado lá e aposen­tado em 2013 após atuar pelo francês Paris Saint-Germain, já não dissociam o jogador de futebol da personalidade de sucesso. Mesmo jogadores novos já têm sua imagem ligada à fama e servem como modelos para milhões de crianças que começam no esporte, algo um tanto auxiliado pelas aparições destes em propagandas de tevê. Nestas, eles opinam sobre quase tudo. Neymar, atualmente no Barcelona, já era referên­cia desde os 18, 19 anos no Brasil e pode ser visto em muitas campanhas publicitárias.

Diriam Adorno e Horkheimer (1985) que quem não se conforma com o modelo da Indústria Cultural é punido e afastado do sistema. Quantos não são os jogadores que, até mesmo por falta de orientação sobre como aparecer na mídia, somem dos noticiários? Melhor jogador do mundo em 1999 e um dos grandes jogadores da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo FIFA de 2002, Rivaldo apo- sentou-se em 2014 por meio de um comunicado num site de

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rede social. Algo que reflete uma trajetória que culminou com passagens por Uzbequistão e Angola, além das últi­mas partidas pelo Mogi Mirim (SP), no qual é presidente/ dono da equipe. Ele não recebeu os mesmos louros de com­panheiros como Ronaldo Fenômeno e Ronaldinho Gaú­cho, mesmo cometendo menos erros em sua vida privada. Na única citação sobre o futebol, os frankfurtianos tratam da repetição de nomes como um processo de padronização, algo já abordado aqui, agora analisado por outro ponto in­teressante:

O ponta-esquerda no futebol, o camisa-negra, o membro da Juventude Hitlerista etc. nada mais são do que o nome que os designa. Se, antes de sua racionalização, a palavra per­mitira não só a nostalgia, mas também a mentira, a palavra racionalizada transformou-se em uma camisa de força para a nostalgia, muito mais do que para mentira.

[..·]A repetição universal dos termos designando as decisões to­madas torna-as por assim dizer familiares, do mesmo modo que, na época do mercado livre, a divulgação do nome de uma mercadoria fazia aumentar sua venda. A repetição cega e rapidamente difundida de palavras designadas liga a publi­cidade à palavra de ordem totalitária.[...]

Em compensação, a linguagem e os gestos dos ouvintes e es­pectadores, até mesmo naquelas nuanças que nenhum método experimental conseguiu captar até agora, estão impregnados mais fortemente do que nunca pelos esquemas da indústria cultural (Adorno e Horkheimer, 1985, pp. 154-6).

Gendron (apud Strinati, 1999, p. 78) afirma que a teoria de Adorno oferece o potencial de combinar política e

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economia e perspectivas semiológicas, assim como de fornecer uma crítica ao argumento de que os consumidores poderiam deduzir da cultura popular quaisquer significados e interpreta­ções. Porém o que ficou mais marcado para os estudos comu- nicacionais foi sua visão pessimista das mudanças sociais com a indústria cultural. Uma crítica consistente a este autor po­deria ser aplicada aos que resistem em acatar o futebol como objeto de pesquisa. O receio, ou até mesmo preconceito, que parece transparecer nos frankfurtianos mais destacados: “a mi­noria seleta e culta, ao ocupar-se com seus hábitos intelectuais e culturais, pode desligar-se das atividades mundanas das mas­sas e, assim, resistir ao poder da indústria cultural” (Strinati,1999, p. 82).

Após olhar pontos passíveis de análise para o futebol como bem cultural midiatizado, sob a teoria dos autores da Escola de Frankfurt, especialmente Adorno, passa-se a analisar as possíveis contribuições de outros autores, menos pessimis­tas em relação à indústria cultural e, provavelmente, o seriam e são com relação aos esportes.

A reprodução possibilita novas visualizações dos eventos

O também alemão Walter Benjamin é considerado o membro mais maleável dentre os pesquisadores da Escola de Frankfurt. Afinal, ele diverge do ponto nodal da teoria ador- niana: a capacidade alienante da Indústria Cultural que não deixaria vias a se percorrer. Este irá discordar da postura crítica à perda da aura das criações artísticas a partir da difusão em massa, e seu texto clássico A obra d e arte na era d e sua reprodu- tib ilidade técn ica (1994) expõe as divergências com seus con­temporâneos de Frankfurt, apontando novos caminhos para os estudos sobre a técnica:

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Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a exis­tência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nossos dias (Benjamin, 1994, pp. 168-9).

A partir do debate levantado por Benjamin, pode-se supor que suas considerações não chegariam a tratar o fute­bol como uma alienação das pessoas, menos ainda no que se refere ao esporte midiatizado. Ao contrário, poderíamos dizer que a tevê nos possibilita conhecer jogadores e campeonatos realizados em outros países, como a Europa, centro de destino de grandes craques. Ao mesmo tempo em que, vide parte da citação anterior, há o destaque para a “atualização do objeto reproduzido”, algo que deve ser considerado ao se perceber que o futebol mostrado num meio de comunicação e, con­sequentemente, a experiência estética que proporciona, será diferente do futebol praticado nos momentos de lazer ou pro­fissionalmente e daquele percebido nos estádios.

Há uma renovação do futebol com a televisão, já que a transmissão midiática não representa o futebol em si, no qual, por mais câmeras que se tenha a possibilidade de perder ima­gens de algumas jogadas ainda está presente. Da mesma manei­ra, duas transmissões sobre um mesmo jogo podem gerar duas formas de vê-lo, como no pênalti do zagueiro Júnior Baiano numa partida contra a Noruega pela primeira fase da Copa do Mundo de 1998, realizada na França. A época, apenas uma câ-

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mera sueca - cuja seleção não se qualificou para o Mundial atrás do gol, captou que o defensor brasileiro cometeu a falta dentro da área que gerou o gol decisivo da partida.

A aura de um evento ao vivo pode até permanecer como momento marcante para os que viram naquele instante, mas os replays possibilitam que tal cena seja repetida e possa ser vista por ainda mais pessoas. O valor ritual aqui também pode ser substituído pelo valor de exposição, ao qual se permitem os bens culturais por meio da Indústria Cultural.

A reprodução permite ainda novas visualizações, como no que se mostra com as imagens em super slowmotion. A pro­pósito: “Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único” (Benjamín, 1994, p. 170).

Além disso, Benjamin (1994, p. 85) afirma que a supe­restrutura, na qual se situam os elementos culturais, modifica- -se de modo mais lento que a base econômica, a infraestrutu- ra. As mudanças nas condições de produção precisariam de mais tempo para refletir-se em todos os setores da cultura. Entendendo o futebol como uma manifestação cultural, sua utilização como meio gerador de mercadorias só refletiria tal percepção, da mesma maneira que ocorreu com as obras de arte e demais elementos culturais.

Só discordamos deste autor quando ele acredita que a partir do valor de exposição, se “oferece o que temos di­reito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação de aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade” (Benjamin, 1994, p. 187). Mais parece que nossa percepção depende diretamente dos aparelhos, olhos sobre algo, que parte de uma escolha profissional sobre o

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que deve ser mostrado naquele instante. O próprio autor dirá que:

É evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmera não é a mesma que a que se dirige ao olhar. A diferença está principalmente no fato de que o espaço em que o homem age conscientemente é substituido por outro em que sua ação é inconsciente. [ . . .] Aqui intervém a câmera com seus inúmeros recursos auxiliares, suas imersões e suas acelera­ções, suas ampliações e suas miniaturizações (Benjamin, 1994, p. 189).

Além disso, a emancipação da obra de arte possibilita que esta seja reproduzida cada vez mais como uma obra criada para esse fim, dado o seu potencial (Benjamin, 1994, p. 173), o que pode ser identificado também como um problema. Bas­ta ver o novo ritual que se produz para as maiores competições de futebol. Todo o processo é ensaiado e ocorre com tempo marcado: entrada em campo, execução de hinos, cumprimen­to dos jogadores. Porém essa encenação termina com o rolar da bola, em que, até onde se saiba, a indústria cultural não tem ainda ação direta.

Benjamin, inclusive, chega a diferenciar, a partir do trabalho do ator de cinema para a máquina, as relações dos esportistas e dos operários perante suas ações cotidianas. E diz que o esportista só conheceria os testes naturais, tarefas impos­tas pela natureza, e não por um aparelho, como nas fábricas. Atletas e atores poderiam ser igualados num sentido:

Durante a filmagem, nenhum intérprete pode reivindicar o direito de perceber o contexto total no qual se insere sua própria ação. A exigência de um desempenho independente de qualquer contexto vivido, através de situações externas ao

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espetáculo, é comum a todos os testes, tanto os esportivos como os cinematográficos (Benjamin, 1994, pp. 181-2).

Apesar disso, não se pode dizer que a indústria cultu­ral não tenha modificado a percepção que se possui do jogo. Do rádio de pilha aos celulares que transmitem sinal de te­levisão, sempre há os indivíduos que vão a uma partida de futebol acompanhados de um meio de comunicação. Assim, queremos ver o time jogando como o Barcelona, mas também gostaríamos de ter o replay daquela jogada que nos deixou em dúvida. Afinal, “no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo em que seu modo de existência” (Benjamin, 1994, p. 169).

Mas não é apenas a elogios que Benjamin dedica o seu texto. Quando trata da indústria cultural utilizada para o na- zifascismo, o autor retoma a crítica quanto às estrelas criadas por meio das máquinas, já analisadas com Adorno sob a pers­pectiva do futebol:

Esse capital estimula o culto do estrelato, que não visa con­servar apenas a magia da personalidade, há muito reduzida ao clarão putrefato que emana do seu caráter de mercadoria, mas também o seu complemento, o culto do público, e es­timula, além disso, a consciência corrupta das massas, que o fascismo tenta pôr no lugar de sua consciência de classe (Benjamin, 1994, p. 180).

Ainda assim, prevalece em Benjamin a possibilidade de, pela distração, as pessoas avaliarem até que ponto a percepção estaria apta a responder a novas tarefas e que, com essas no­vas formas de arte, consigam responder às mais difíceis e im­portantes atividades, como os indivíduos se sentirem tentados

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em mobilizar as massas. A principal contribuição do autor é a percepção da mudança do valor de culto para o valor de expo­sição, destacando as possibilidades de atualização do objeto re­produzido. Aponta que estaríamos não só diante de novas for­mas artísticas e produtos, mas também de um novo conceito global, com novos modos de fruição e de relacionamento com os bens artísticos. O conceito reprodutibilidade técn ica como algo positivo acabou sendo precursor de teorias comunica- cionais futuramente elaboradas por autores como McLuhan, Flusser e Gumbrecht, este último analisado na seção seguinte.

“Assistir a esportes é um fascínio no sentido real da palavra”

Até aqui trouxemos análises sobre pensadores alemães que trataram dos novos vínculos sociais a partir do poderio da Indústria Cultural, base a partir da qual foram estabeleci­das relações com a midiatização do futebol. Também alemão e, assim como Adorno, com passagens pelos Estados Unidos, Hans Ulrich Gumbrecht tem um posicionamento não her­menêutico sobre os estudos comunicacionais e, além disso, estuda os esportes, sendo um crítico mordaz de quem trata tal objeto com o mesmo elitismo que se pode ver nos frankfurtia- nos quando o assunto é a produção cultural.

Segundo Felinto (2006), a trajetória intelectual de Gumbrecht pode ser tomada como parâmetro para se analisar a teoria das “Materialidades da Comunicação”. Busca-se com este eixo teórico-metodológico estudar como o não sentido pode constituir o sentido, e não o contrário, que pode ser en­contrado nos estudos hermenêuticos.

As materialidades seguem uma tradição de autores como Walter Benjamin e Marshall McLuhan. Segundo Sil­veira (2010, p. 184):

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Nesse contexto, trata-se de focalizar (ou de tentar focalizar, na medida do possível) o significante (“as coisas do mundo”) independentemente de seus significados. Há, em Gumbre­cht, uma certa fascinação com as formas (os materiais, os su­portes, a corporeidade bruta) da expressão. [ . . .] Para o autor, uma “presença” é algo tangível, com o qual mantenho uma relação no espaço e que tem algum tipo de impacto sobre o meu corpo e os meus sentidos.

Os atos comunicacionais teriam que ser estudados tam­bém quanto à sua forma, como esteticamente são apresenta­dos. Gumbrecht, em particular, vai se preocupar com o corpo como elemento de reflexão. Para Gumbrecht (2006), há uma exaustão de manifestações tradicionais que causariam experi­ências estéticas, as quais estariam sob moldes estreitos e con­dições inflexíveis. A experiência estética deve aparecer como interrupção do cotidiano, até mesmo para continuar a existir, surgindo da adaptação máxima de objetos à sua função, que resultam da mudança no seu quadro situacional.

Os esportes são grandes objetos para se perceber essas relações e o autor tenta, em especial em Elogio da beleza atléti­ca (2007), saber o que atrai tantas pessoas a assistirem fenôme­nos esportivos. Percebe-se nessa perspectiva a possibilidade de fugir das rotineiras críticas aos estudos com este objeto como um receio sobre o que dá prazer.

Afirma-se, na Academia, e mesmo na Alemanha, que o esporte é visto apenas como fenômeno social ou cultural. Assim, é difícil apontar um caminho que veja características para além do espetáculo criado pela mídia, como conspira­ção político-financeira, identificação dos oprimidos ou como dimensão do sagrado. Gumbrecht acredita, portanto, que o problema para esse tipo de visão — e para os obstáculos rela­tivos assunto sob outra perspectiva - residiriam na “tradição

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da metafísica ocidental, e com a obsessão da cultura ocidental em enxergar além dos aspectos que ele considera meramen­te materiais (ou meramente corpóreos) de nossa existência” (Gumbrecht, 2007, pp. 30-1).

A intenção, portanto, consiste em elaborar um discurso sobre o evento esportivo sob a perspectiva estética. O que im­portaria entender realmente seriam os movimentos corporais e a presença desses corpos submetidos a um conjunto de regra- mentos relativos à ocupação do espaço e do tempo, com vistas à obtenção da excelência da performance·.

Acima de tudo, na minha opinião, qualquer coisa que cha­memos de esporte é uma forma de perform ance, ou seja, qualquer tipo de movimento corporal visto da perspectiva da presença. Entre os muitos fenômenos que se encaixam a definição de performarice, as formas de perfo rm an ce esportiva são específicas porque são permeadas pelos valores de agon (competição) e arete (a busca pela excelência). E, por fim, aquilo a que chamo esporte sempre parecerá distante dos in­teresses e das estratégias que compõem nossa vida cotidiana (Gumbrecht, 2007, pp. 66-7).

Gumbrecht não fecha os olhos para a apropriação de ou­tras esferas no campo esportivo, ainda que esta não seja sua prio­ridade de investigação. Há uma clara tensão entre a autonomia dos eventos esportivos com relação a empreendimentos centra­dos na dimensão do significado “dos quais os times, os gover­nos locais, a imprensa esportiva, a indústria de equipamentos e vestuário esportivo e até o establishment médico/farmacêutico/ cirúrgico também dependem” (Gumbrecht, 2007, p. 68).

Com o aumento do processo de mercantilização sobre o esporte, os torcedores cada vez mais passam a ser entendidos pelos clubes como consumidores de produtos ligados ao fute-

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boi, entre os quais está a própria transmissão da partida, que é vendida em pacotes separados via tevê fechada. Gumbrecht (2007, p. 106) apresenta preocupações quanto a esta nova re­alidade, com o distanciamento entre os que praticam esporte por lazer ou para se manter saudável e os que fazem de for­ma profissional; além disso, haveria uma “possível indicação de que o esporte, disfarçado de cultura do lazer, possa estar fugindo a seus limites convencionais e invadindo o resto de nossa vida, obrigando-nos a assumir o papel de consumidores permanentes do esporte, em vez de fãs”.

Desde as Olimpíadas de Berlim, em 1936, com a cober­tura completa por rádio, mas também o primeiro evento a ser coberto pela tevê e com um filme produzido por Leni Riefens- tahl, Olympia, aos dias atuais de intensa globalização inclusive envolvendo clubes e jogadores, que passaram a ser ídolos em clubes estrangeiros. A prática esportiva mudou e a experiência estética proporcionada ainda mais. Gumbrecht (2007) aponta isto como algo inevitável, com o público passando para o ex­tremo mais analítico por conta dos comentários dos locutores, os quais buscam interpretar o jogo com conceitos e, especial­mente, por causa de dispositivos eletrônicos que gerariam uma impressão de análise.

O autor ainda destaca que, no caso do Brasil, utiliza- -se o mesmo verbo, assistir, tanto para o acompanhamento da partida pela tevê quanto para estar no estádio junto com a multidão, numa mistura entre as duas formas de usufruir deste evento esportivo, mesmo sendo verdade que, além da importância no aspecto econômico, “a tecnologia contempo­rânea e os hábitos que estão surgindo sob sua influência estão criando novas formas de assistir a esportes em tempo real” (Gumbrecht, 2007, p. 154). Ainda assim, mesmo quando fala no “lado ruim do esporte” — Gumbrecht (2007, p. 37) afirma também a possibilidade deste “alimentar o estresse, agressões,

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vícios e hábitos pouco saudáveis” —, ele destaca que estas per­turbações “não devem nos desviar da explicação central e con- ceitualmente mais óbvia para a popularidade disseminada no esporte - seu apelo estético”. Um exemplo de como a teoria das materialidades observa seus objetos de pesquisa, evitando interpretar fenômenos estéticos enquanto expressão ou função de outras coisas:

Mais que qualquer possibilidade de identificação com o time vitorioso (ou, em alguns casos, com o time underdog [que não é favorito]), é o fascínio por jogos bonitos que, acredito, leva bilhões de espectadores desde o final do século XIX a assistir aos eventos de esporte em equipe. No futebol, rúgbi, futebol americano, basketball, baseball e hockey, um jogo bonito pode ser descrito como epifania de uma for­ma complexa, corpórea e temporalizada. [ . . .] Mas ele ou ela também se relacionará com a jogada como forma corpórea que, enquanto emerge, se move próximo aos e longe dos corpos dos espectadores, transformando, assim, o especta­dor como conteúdo e uma experiência estética, o estádio, através do estabelecimento de uma distância entre o jogo e o mundo cotidiano externo, se transforma na materialização do “desinteresse” enquanto condição-chave para a experiên­cia estética (Gumbrecht, 2006, p. 60).

Seria esta distância entre ídolo e espectador/torcedor que criaria os ídolos do esporte, a ponto de serem objetos de admiração e desejo, inclusive, como já comentado em outro tópico, para jogadores em início de carreira: “Talvez não de­vamos descartar a possibilidade de que o fato de assistir a es­portes nos permita ser, subitamente de alguma maneira, um daqueles lindos e lindamente transfigurados corpos” (Gum­brecht, 2007, p. 32).

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A mídia auxilia nesta projeção de estrelas, porém, os eventos esportivos vão além de sua apresentação como es­petáculo midiático. Gumbrecht (2007, p. 38) toma como base o conceito de belo de Kant (satisfação pura e desinte­ressada), para negar que o assistir a esportes seja apenas para “dar urna nova aura a formas não canonizadas de prazer”. Ver esportes corresponderia às definições mais clássicas da experiência estética:

É um fascínio no sentido real da palavra - um fenômeno que paralisa os olhos, algo que atrai constantemente, sem indicar nenhuma explicação para a atração. Por essa capaci­dade de fascinar, o esporte exerce uma força transformadora, conduzindo seu olhar para coisas que normalmente ele não apreciaria (Gumbrecht, 2007, p. 20).

As epifanias que ocorrem no momento em que se aper­cebe uma forma ou um corpo em movimento seriam as causas do prazer experimentado ao ver atividades esportivas. Seriam os gestos dramáticos os responsáveis por deixar na memória aqueles momentos específicos, que não estão ligados somente à vitória ou à derrota. “São como significantes materiais que parecem estar permeados por significados específicos, e assim se transformam em significantes cuja materialidade extrapola a função de meramente carregar um significado” (Gumbre­cht, 2007, p. 62). Ao interpretar os atos corporais, correria o risco de até destruir o prazer de desfrutar tais eventos.

Mesmo quem insere seus corpos e atua neste ritual, que se chama jogo nas atividades esportivas, também se surpreen­de com os movimentos que desempenha. Dos sete fascínios— apelo do que é percebido na perform an ce atlética — desenvol­vidos por Gumbrecht (2007) em Elogio da beleza atlética , as jogadas aparecem para destacar os esportes com bola, cuja po-

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pularidade alcança multidões mais numerosas que quaisquer outras competições.

Gumbrecht (2007) cita as eras de ouro dos esportes com bola até chegar ao futebol e fundamentar o seu sexto fascínio apresentado. No caso deste esporte, apesar de identificar as dé­cadas de 1950 a 1980 como a era de ouro, com nomes como Pelé, Garrincha, Eusébio e Beckenbauer, e times como as seleções brasileiras de 1958 e 1970 e a Hungria de 1954, o autor alemão afirma que os atletas talentosos seguem sendo os que fazem jo­gadas surpreendentes e não necessariamente os decisivos para o jogo, os artilheiros. E a surpresa para todos (jogadores, técnicos e espectadores) de uma jogada bonita a epifania da forma.

Poderíamos citar como exemplo o gol de Maradona dri­blando meio time da Inglaterra pelas quartas de final da Copa do Mundo FIFA de 1986, realizada no México: “Nem os próprios participantes da jogada sabem explicar exatamente o que fizeram, como fizeram. Eles simplesmente fizeram. E nem mesmo conse­guirão repetir o que fizeram” (Gumbrecht, 2007, p. 14).

Há um deslocamento do cotidiano, algo que os apocalípti­cos poderiam indicar como alienação, tanto do lado dos especta­dores quanto de quem atua. Por mais que haja regras a se seguir, o grande atleta surge ao tentar mudá-las, ao chegar com o inespera­do e, em alguns casos, quebrando recordes. No caso dos esportes com bola, as jogadas bonitas são o diferencial numa partida, o que não se esperava que ocorresse nem mesmo por quem as exe­cutou. E isto é um dos elementos que explica a permanência do torcedor ainda que sob um futebol mercantilizado.

Essa desconexão em relação ao cotidiano é o que alguns fi­lósofos descrevem, desde o fim do século, como a autono­mia ou a insularidade da experiência estética. [ . . .] Emborao dinheiro possa ser uma motivação forte, durante um jogo tenso Ronaldinho Gaúcho não pensa em seu contrato mui-

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timilionário na hora de bater um pênalti. [ . . .] Muito pelo contrario, sabemos que o fato de ser capaz de deixar de lado tais preocupações objetivas durante o desempenho atlético é um componente importante da competencia dos esportis­tas e uma precondição básica para seu sucesso (Gumbrecht, 2007, p. 38).

Como se pôde perceber nesse trecho, além de se desta­car como um autor que trabalha com uma teoria comunica- cional que analisa o esporte pela perspectiva das materialida­des, Gumbrecht parte de uma posição diferente da maioria dos trabalhos encontrados sobre a área. Inclusive, dentre os poucos encontrados no Brasil - casos de O negro no fu teb o l brasileiro (1947), de Mário Filho, numa perspectiva de eman­cipação das classes subalternas, e Futebol: ideologia do p od er (1984), de Roberto Ramos, para uma visão apocalíptica.

Conclusões

Foram apresentadas aqui três possibilidades de análise sobre os esportes, e o futebol em especial, a partir de diferentes teorias estudadas na comunicação, em que os autores estão inseridos já dariam, ao menos, pistas de como cada um abor­daria tal objeto. A intenção foi mostrar caminhos, utilizados ou não, de pesquisas em comunicação sobre um assunto tão marginalizado.

A Escola de Frankfurt e as materialidades da comuni­cação apresentam como eixo comum o fato de serem trans- disciplinares, posição assumida por quem trabalha com esses estudos para elaborar pesquisas em Comunicação. Ambas vão analisar seu objeto entremeado a outros processos, sendo a es­colha dos objetivos do trabalho responsabilidade de cada gru­po de pesquisadores.

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De uma perspectiva adorniana, poderíamos ter uma análise do futebol como mais um bem cultural ressignificado na Indústria Cultural, levando-se em consideração as possíveis ingerências das empresas de comunicação sobre o evento. Tra­balhos que considerem a produção de Benjamín, autor utili­zado com frequência por diversas teorias da comunicação, já trariam análises quanto à importância da mídia para a difusão do esporte, da cena que não se pôde ver ao vivo, seja no está­dio ou pela transmissão, mas que pode ser resgatada.

Por fim, a análise de Gumbrecht e sua perspectiva de responder aos críticos e, em Elogio da beleza atlética , de assu­mir a posição do apaixonado por esportes, mostra a iniciativa da teoria das Materialidades de fugir não só das análises her­menêuticas, que sobrepõem o significado como dependente do significante, como também da perspectiva científica do pesquisador se descolar do objeto de estudo. Além disso, o au­tor reconhece os problemas no entorno do esporte, mas busca se preocupar na maneira em que se dá a experiência estética de práticas culturais cotidianas, com os esportes gerando grandes momentos para isso.

O futebol é uma paixão que transcende fronteiras e deveria gerar mais pesquisas, independentemente da postura teórica assumida. Ele é um objeto cujas investigações teriam objetos empíricos a perder de vista, mas que acaba relegado por certo elitismo por conta de sua popularidade e de supos­tamente poder deslocar as pessoas do cotidiano. Este trabalho tentou estabelecer alguns caminhos possíveis sob diferentes ênfases de análise comunicacional para tratar deste importante objeto, também quando se torna midiatizado.

A publicação deste livro, com pesquisadores de diferen­tes localidades e problemáticas teóricas, é uma grande con­tribuição para os estudos da área, que necessita estimular os trabalhos coletivos para um maior reconhecimento das várias

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pesquisas desenvolvidas sobre a relação futebol e comunica­ção. Autores de referência mundial na área, como Gumbrecht, só auxiliam a instigar novas dúvidas e futuras pesquisas em torno do assunto.

Referencias

ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. “A industria cultural: o escla­recimento como mistificação de massas”. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Magia e técnica, arte epolítica: ensaios sobre literatura e historia da cultura.7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FELINTO, E. “Materialidades da comunicação: por um novo lugar da matéria na teoria da comunicação”. Passeando no labirinto: ensaios sobre as tecnologias e as materialidades da comunicação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.

GUMBRECHT, H. U. “Pequenas crises: experiencia estética nos mundos cotidianos”. In GUIMARÃES, C. et al. (org). Comunicação e experiencia estética. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

------ . Elogio da beleza atlética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.MARQUES, J. C. “A criança difícil do século’: algumas configurações do

esporte no velho e no novo milenio”. Comunicação, mídia e consumo, São Paulo, mar. 2011, v. 8, n. 21.

SILVEIRA, F. “Além da atribuição de sentido”. Verso e Reverso, São Leopoldo, set.-dez. 2010, v. 14, n. 57.

STRINATI, D. “A Escola de Frankfurt e a industria cultural”. Cultura popular: uma introdução. São Paulo: Hedra, 1999.

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Victor Andrade de Melo

Palavras iniciais

Sinto-me honrado por ter sido convidado para integrar este livro que pretende abordar a contribuição de Hans Ulrich Gumbrecht para os estudos que tratam da interface mídia- -esporte. O pequeno número de vezes que citei alguma obra do professor não faz jus à influência que suas reflexões tiveram sobre uma parte de minhas investigações.

Suas posições sobre o fascínio ocasionado pela prática esportiva, quanto à pertinência de considerar a experiência es­portiva como uma importante experiência estética, a mobiliza­ção de sua vivência pessoal de amante do esporte no processo de construção de suas argumentações, bem como a provocação de que os intelectuais deveriam superar o “preconceito” com o fenômeno, para além das inegáveis contribuições teóricas, fo­ram posturas encorajadoras para um jovem pesquisador. Pes­quisador este que compartilhava situações semelhantes, tanto

1 Esta é uma versão atualizada de artigo publicado originalmente, com o títu­lo “Esporte, futurismo e modernidade”, na revista História (2007, v. 26, n. 2, pp. 201-25) e, posteriormente, em Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (Rio de Janeiro: Apicuri/Faperj, 2009).

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as emoções vividas em diversos momentos esportivos quanto às máculas de uma universidade que durante muitos anos insistiu (e ainda insiste) em fechar os olhos para as “coisas menores” da cultura popular.

Isto é, para além de suas reflexões terem me ajudado a tentar melhor olhar meu objeto de investigação (sem precisar negar a paixão que por ele sinto), a postura combativa do in­telectual foi inspiradora, impulsionando-me a percorrer uma trilha que me era cara por não se resumir a inquietações profis­sionais, por se relacionar com projetos intelectuais que, como se sabe, suplantam as questiúnculas acadêmicas. Em todos os estudos nos quais procurei discutir as relações entre esporte e arte (com o cinema, artes plásticas, dança, literatura, teatro e mesmo alguns produtos menos reconhecidos como estéti­cos, como os selos) esteve presente essa dupla inspiração da obra do professor Gumbrecht.

Tive a honra de dividir a programação de um evento cien­tífico com o professor Gumbrecht, no XXXV Congresso Brasi­leiro de Ciências da Comunicação, realizado em Fortaleza, em 2012. A mesa-redonda da qual participei ocorreu imediatamente antes da sua conferência. Tive vontade de cumprimentá-lo e agra­decer a ele. Minha timidez e minha vergonha me impediram.

Integrar esse livro, portanto, com um artigo escrito já há algum tempo, mas agora reformulado para essa ocasião, é, em grande medida, também uma forma de expressar minha gratidão.

Introdução

A arte e a literatura são para o esporte um a sociologia indi­reta, uma psicanálise, um testemunho [...]. A investigação da presença do esporte na arte nos interessa na medida em que nos esclarece sobre a identidade do esporte e sobre o papel do imaginário na constituição das relações esporti-

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vas [...]. O esporte não é simplesmente o indicio de urna sociedade lúdica (ignorada ou tolerada), mas a sociedade lúdica percebida e descrita pelos meios da arte, em um quadro de expressão de sua valorização pela sociedade glo­bal (Jeu, 1992, p. 21).

Muitos estudos já se debruçaram sobre os férteis diá­logos estabelecidos entre o esporte e a arte. No que tange aos encontros entre as linguagens, para citar somente alguns, há investigações sobre o teatro (Melo e Knijnik, 2010), o cinema (Marañón, 2005; Melo, 2006), a música (Branco, 2010), as artes plásticas (González, 2003; Huitorel, 2005; Melo, 2009), a dança (Melo e Lacerda, 2009), a literatura (Hollanda, 2004; Melo, 2012), entre tantos outros. As relações entre as duas práticas já foram, inclusive, tema de reflexão de importantes filósofos, como Gordon Graham (1997), Wolgang Welsch (2001) e Hans Gumbrecht (2006).

Tendo em vista uma pesquisa histórica, há duas po­tencialidades não excludentes para abordar os encontros entre esporte e arte. Uma delas é investigar os diálogos intersemióticos e possíveis “coincidências” entre os seus percursos. Na verdade, trata-se de indicadores de um rela­cionamento mais profundo no âmbito de um determinado contexto sociocultural. Nesse sentido, é possível identificar como estiveram imbricados na consolidação de um imagi­nário em comum.

A segunda potencialidade é, entendendo as obras de arte como possíveis fontes (ou “indícios”, como prefere Burke, 2004), discutir nelas as representações do esporte, buscando desvendar o papel que a prática esportiva desempenhou em determinado quadro social. No caso deste artigo, no qual va­mos trabalhar com um movimento de artes plásticas, vale dia­logar com as reflexões de Peter Burke (2004) sobre a possibili­

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dade de construir uma “história cultural da imagem” ou uma “antropologia histórica da imagem” que “pretende reconstruir as regras ou convenções, conscientes ou inconscientes, que re­gem a percepção e a interpretação de imagens numa determi­nada cultura” (p. 227).

Quanto à possibilidade de usar imagens como fontes/ indícios, afirma o autor:

Em outras palavras, os testemunhos sobre o passado ofe­recidos pelas imagens são de valor real, suplementando, bem como apoiando, as evidências dos documentos escri­tos. E verdade que, especialmente no caso da história dos acontecimentos, elas frequentemente dizem aos historia­dores que conhecem os documentos algo que essencial­mente eles já sabiam. Entretanto, mesmo nestes casos, as imagens têm algo a acrescentar. Elas oferecem acesso a aspectos do passado que outras fontes não alcançam (Burke, 2004, p. 233).

Não se trata de buscar obras que ilustrem o que os documentos informam sobre os temas, mas sim partir do que as imagens representam, considerando também aquilo que diz respeito à forma e ao contexto de representação, dialogando com outras fontes para escrutinar mais profun­damente os sentidos e significados do esporte no cenário da época. Isso , inclusive, pode ter se constituído enquanto motivação para que o artista o tivesse em conta em sua pro­dução. Comumente, adoto o seguinte modelo de análise/ intepretaçao:

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Obra

Realizador/artista Tema/Esporte Movimento artistístico

Contexto Histórico

Não devemos perder de vista que os encontros entre o esporte e a arte estão para além de uma inserção literal. Em estudo que desenvolvi sobre as relações entre esporte e cine­ma (Melo, 2006), procurei demonstrar o quanto as duas lin­guagens estiveram articuladas e imbricadas na construção do ideário e do imaginário da modernidade, dramatizando um novo modus vivend i que incluía o desafio, o movimento, a exposição corporal, a velocidade, a busca do prazer e da exci­tação, a crença na ciência e no progresso, a ideia de multidão e a formação de uma cultura urbana que também dialoga com o gosto das camadas médias e populares.

Nessa linha de raciocínio, no que tange às artes plásti­cas, vale a pena ter em conta o que sugere Briony Fer:

[...] a pintura moderna foi um produto de uma cultura mo­derna, mas não o único produto; foi uma forma de produ­ção entre muitas outras formas complexas de representação visual, incluindo a pintura acadêmica, a ilustração popular,

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a fotografia e assim por diante. Formas diferentes de re­presentação são produzidas na mesma cultura e é possível demonstrar que essas formas interagem, têm convenções e suposições em comum sobre o mundo e também contestam o que é significativo nessa cultura (1998, p. 13).

Tendo em vista essas reflexões iniciais, este artigo tem por objetivo discutir a presença do esporte no âmbito das iniciativas relacionadas com o futurismo, um dos mais ruidosos e polêmi­cos movimentos artísticos anteriores à Primeira Grande Guerra. Cremos que tal discussão pode nos possibilitar o lançamento de um novo olhar sobre os papéis ocupados pelas duas linguagens (esporte e arte) no cenário europeu das primeiras décadas do sé­culo XX. Trata-se de um esforço de promoção de uma “arqueo­logia social” do fenômeno esportivo, desvendando sua presença nas mais diferentes redes e teias sociais.

Vamos nos debruçar mais profundamente sobre a pri­meira fase do movimento, que vai de 1909 até a Primeira Grande Guerra, ainda que façamos referências a momentos posteriores. Fizemos essa opção na esteira do que consideram alguns autores como Micheli (2004): “de fato, com a eclosão da guerra, a aventura figurativa do futurismo podia ser consi­derada concluída. O que veio depois não teve nem a impor­tância, nem a força do primeiro futurismo” (p. 211). Gramsci também percebera tal mudança. Em carta enviada a Trotski, comenta: “O movimento futurista na Itália perdeu com­pletamente seus traços característicos depois da guerra [...]. Os principais porta-vozes do futurismo de antes da guerra tornaram-se fascistas” (Trotski, 2007, p. 131).2

2 O livro Literatura e revolução, no qual se encontra a carta de Gramsci da qual retiramos a citação, foi escrito por Trotski entre os anos de 1921 e 1922. A carta de Gramsci está datada de 8 de setembro de 1922.

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Nao queremos aqui debater a tese de que o futurismo foi o movimento “oficial” do fascismo, muito aceita a partir de certas posições de Walter Benjamín, mas já matizada por outros estudiosos (como Micheli, 2004; Tisdall e Bozzola, 2003), tampouco negar tal relacionamento. Apenas estamos afirmando que suas duas fases possuem diferenças marcantes. Assim, parece-nos mais interessante, para o intuito deste capí­tulo, o primeiro instante, por sua originalidade e influência.

O futurismo italiano e o esporte

O ano de 1909 é considerado o de fundação do futu­rismo. Na ocasião, Filippo Marinetti, líder e um dos nomes- -chave na condução do movimento, publicou, no jornal francés Le Fígaro, o primeiro manifesto futurista3, com uma série de provocações e propostas para a arte. Como comenta Umber- to Boccioni: “De un solo golpe, un grupo de artistas geniales, animosos, enérgicos, enemigos de los libros, ha situado a Italia en la vanguardia de las investigaciones plásticas” (2004, p. 11).

Um dos aspectos mais interessantes do movimento é o fato de não resumir suas propostas à arte, tampouco às ar­tes plásticas, englobando ainda a música, o cinema, a dança. O futurismo possuía um programa político explícito, es­praiando suas proposições por todos os campos da vida. Se­gundo Sylvia Martin:

Su objetivo común era la renovación de la vida social en todos sus ámbitos, tanto artísticos como sociales; los nue­vos logros técnicos y los últimos descubrimientos científicos

3 Urna das características do Futurismo é o grande número de manifestos que buscavam apresentar seus princípios e pressupostos, expressão de seu intuito de articular reflexões teóricas com a produção de obras. Os manifestos estão disponíveis em http://www.prof2000.pt/users/tomas/manifestos.htm.

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iban a representar el punto de partida y el módulo de sus ideas. De ahí que el futurismo no constituya una vanguardia que, como el cubismo por ejemplo, trabaja exclusivamente en innovaciones estéticas formales, sino que es más bien un movimiento vital (2005, p. 6).

Imerso no contexto social europeu, expressão de seu momento histórico, notadamente relacionado à situação pe­culiar da Itália:

O futurismo reflete na arte o período histórico que come­çou em meados dos anos 1890 e acabou na Primeira Guerra Mundial. A sociedade capitalista conheceu dois decênios de ascensão econômica sem precedente — que derrubou velhos conceitos de riqueza e poder, elaborou novos padrões, novos critérios do possível e do impossível, e impulsionou o povo a novos atos ousados (Trotski, 2007, p. 107).

Os futuristas foram muito influenciados pelas teorias filosóficas acerca das percepções sensorias diferenciadas esta­belecidas pelas novas organizações urbanas e do mundo do trabalho industrial. Posicionando-se de encontro à ideia de valorização da tradição, os artistas envolvidos celebravam en­faticamente algumas características dos “novos tempos”: a má­quina, a velocidade, o dinamismo, a agressividade, a violência. Articulavam uma postura de combate, com seus manifestos e ações, com a forma de construção estética de suas obras.

Ainda que explicitassem um discurso claro de ruptura, é importante registrar que houve diversas contestações e críticas às contradições do movimento:

Na exagerada recusa do passado pelos futuristas não se esconde um ponto de vista do operário, mas o niilismo do

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boêmio. Nós, marxistas, vivemos com as tradições [...]. Eis a fonte dos mal-entendidos que nos separam. O mal não reside na negação, pelo futurismo, das santas trad i­ções da in telligen tsia . Reside, ao contrário, no fato de que o futurismo não se sente integrado na tradição revolucio­nária (Trotski, 2007, p. 110).

De qualquer maneira, trata-se de um movimento de grande importância, impacto e que influenciou outras van­guardas artísticas, antecipando mesmo algumas dimensões que se tornariam mais correntes na arte dos anos seguintes. Como bem resume Micheli:

O futurismo foi um movimento polêmico, de batalha cultu­ral; foi o movimento de uma situação histórica; um amon­toado de ideias e de instintos, dentro do qual, ainda que não distintamente, exprimiam-se algumas exigências reais da nova época: a necessidade de ser moderno, de aprender a verdade de uma vida transformada pela era da técnica, a ne­cessidade de encontrar uma expressão adequada aos tempos da revolução industrial (2004, p. 212).

A prática esportiva foi uma temática constante na obra de muitos dos envolvidos, inclusive na produção do pintor e escultor Umberto Boccioni, um dos mais destacados artistas e autor de alguns dos manifestos do futurismo. Para Micheli, ele é: “o representante mais típico e mais dotado do movi­mento, a personalidade mais conspícua. Do emaranhado das contradições futuristas, ele conseguiu retirar um sentido, uma visão vital” (2004, p. 225).

Uma das marcas das obras de Boccioni (tanto das pin­turas quanto das esculturas) é a busca de expressar a sensação dinâmica, algo que se tornou ainda mais claro após seu en-

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contro com os cubistas, entre eles Pablo Picasso. Aliás, isso foi fundamental para todo o futurismo: percebe-se uma clara influência do movimento francês, ainda que também muitas divergências. Boccioni (2004) situa as propostas dos italianos, do ponto de vista estético, como avanços que partiram tanto do impressionismo quanto do cubismo.

Para alcançar seu objetivo, Boccioni trabalhava a ideia de movimento relativo por meio de uma tensão constante en­tre forma e espaço, com linhas de força que se aglutinam, no- tadamente no sentido diagonal, ainda que decomponham a figura. Garantia, assim, a sensação de uma energia constante que percorre a obra, impressão acentuada pelo uso de cores fortes. Dinamismo, decomposição, penetração e simultanei­dade podem bem resumir as características buscadas pelo ar­tista e pelos futuristas em geral:

Concebimos el objeto como un núcleo (construcción centrí­peta) del que parten las fuerzas (líneas-formas-fuerzas) que lo definen en el ambiente y determinan su carácter esencial.De esta manera creamos una nueva concepción del objeto: el objeto-ambiente, concebido como una nueva unidad in­divisible (Boccioni, 2004, p. 63).

A expressão da dinâmica do corpo humano foi urna de suas buscas constantes. Em suas obras, vemos tanto a repre­sentação de tarefas cotidianas quanto de atividades nas quais fosse denotado o movimento corporal. Nesse ponto, encon­tramos uma primeira e grande aproximação com o esporte enquanto tema de seus quadros e esculturas.

Há outra dimensão também muito relevante que o apro­xima da prática esportiva - o exaltar do controle humano so- < bre a natureza, da superação e submissão dos limites naturais:

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Creer que la naturaleza se encuentra donde existe el desor­den, la incomodidad, lo caótico (lo “natural” como dicen las almas agrestes) y sobre todo donde falta la mano del hombre, es un error lamentable. Los futuristas detestamos lo campes­tre, la paz del bosque, el murmullo del arroyo... Preferimos al hombre trastornado por la pasión o la locura del genio, las grandes barriadas populares, los ruidos metálicos, el rugido de la muchedumbre. Las pistas, las competiciones atléticas, las Carreras nos exaltan! La meta es para nosotros el mara­villoso símbolo de la modernidad! (Boccioni, 2004, p. 17).

As práticas esportivas sao citadas como expressão das preferências dos futuristas em seu afã de celebrar os novos tempos. Tal postura é oposta à vaga de saudosismo que aco­metera a Europa na transição dos séculos XIX e XX, propug­nando a volta ao campo, promovendo uma elegia da natureza e criticando as cidades modernas.

Seu interesse denotado pelo corpo em movimento o le­vou a compor, por exemplo, Músculos em velocidade (1913),4 Dinamismo muscular (1913)5 e Dinamismo muscular (1913),6 entre outras. Suas obras em que o esporte é diretamente repre­sentado serão comentadas mais à frente.

Ainda que seja relevante o interesse de um dos maio­res expoentes do futurismo pelo esporte, veremos que não se tratava de algo isolado, mas sim de urna clara indicação da articulação entre estética e política no ámbito do importante movimento de vanguarda. Aprofundemos tal discussão a par-

4 Tinta, carvão e guache sobre papel, 31,1 x 24,4 cm. Acervo de Cívico Gabi- netto dei Disegni/Milão.

5 Oleo sobre tela, 81 x 65,5 cm. Acervo de Cívico Museo D’Arte Contempo- ranea/Milão.

6 Pastel sobre papel, 86,3 x 59 cm. Acervo do Museum of Modern Art/ New York.

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tir de alguns dos princípios-chave que permeavam as propos­tas e ações dos futuristas.

M ovim ento e velocidade

Já no manifesto de fundação (1909), Marinetti afirmara: “Nós tencionamos exaltar a ação agressiva, uma insônia febril, o passo do atleta, o salto mortal, o soco e a bofetada”. A figura do esportista e as imagens comuns ao esporte são utilizadas para estabelecer um contraponto à imobilidade que, segundo o autor, caracterizaria a arte naquele instante.

Essa ideia é mais à frente reforçada:

Nós afirmamos que a m agnificência do mundo se enri­queceu de um a nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida cujo capô é adornado de grossos tubos, qual serpentes de hálito explosivo [...] é mais belo que aVitória d e Samotrácia.

Uma prática esportiva, o automobilismo, é apresentada como esteticamente superior a um monumento símbolo da tra­dição artística; no mínimo se a elencava como mais adequada a uma nova sensibilidade, típica de um novo momento que deveria ser celebrado. O esporte era o presente que apontava o futuro. A obra citada lembrava um passado que deveria ser abandonado para parar de obstruir o progresso.

Considerando as proposições e intencionalidades do movimento futurista, não surpreende a referência ao au­tomobilismo, que se tornara uma febre na Europa das pri­meiras décadas do século XX. Dividindo com o ciclismo a preferência esportiva popular em muitos países, este esporte era relacionado com as ideias de aventura, superação e pro-

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gresso; na ocasião, os automóveis já alcançavam a velocidade de 100 km/hora.7

De acordo com Micheli (2004, p. 214), o primeiro ma­nifesto, ao citar tão explicitamente as novas máquinas, esta­belece um “decreto de morte da mitologia passada, em favor de uma nova mitologia: o automóvel, ídolo luzidio, troante, utilitário. Como é possível, na era do automóvel, continuar a escrever, a pintar, a construir, a fazer música como na época das diligências e do artesanato?”. Esses “fascinantes inventos modernos”, na visão dos futuristas, eram a expressão de uma nova sensibilidade a qual os artistas não poderiam negar e dei­xar passar incólumes, eles deveriam incorporar e celebrar.

O próprio Marinetti constantemente exibia-se em seu automóvel e inseria imagens dessas máquinas em sua produ­ção. Um exemplo claro dessa forte relação com os sentidos do automobilismo pode ser visto em sua obra Velocidade elegante- palavras em liberdade (prim eiro recorde) (1918):8 carros de corrida desenhados por todo o quadro; no campo superior di­reito, automóveis seguem setas que, tendo a palavra “recorde” como pano de fundo, levam à palavra “p o le”; não com o mes­mo destaque, vemos ainda trens e aviões, reforçando o sentido de celebração da velocidade, a expressão da superação humana que deveria ser registrada (“to r e co rd ’).

Por seu caráter de comparação e por apresentar certas dimensões que já eram consideradas por alguns futuristas, mesmo antes do manifesto, destacamos a gravura A utomóvel e a caça da raposa (1904),9 de Boccioni. Na obra, os cavalos, símbolos de poder e da nova excitabilidade urbana no séculoXIX, tão bem representados no âmbito do impressionismo

7 Para mais informações sobre o automobilismo, ver Melo (2008, 2009).8 Colagem e tinta sobre papel.5 Gravura colorida. Acervo de Automobile Club dltalia.

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(notadamente na obra de Edgar Degas) (Melo, 2009), têm que sair da estrada para dar passagem a velozes carros. Dife­renciam-se claramente as roupas dos cavaleiros que praticam a tradicional caça às raposas (com seus cães que fogem as­sustados com a aproximação do carro) daquelas usadas pelos personagens que conduzem os veículos, uma forma mais leve de se vestir. As expressões são contrastantes: o olhar irônico dos “modernos”, a preocupação estampada na face dos que seguem a tradição.

As opções estéticas reforçam esses sentidos. O uso das linhas de força diagonais ajuda a enfatizar a ideia de movimento dos carros, criando um contraste com o imobilismo dos cavalos. A utilização de uma técnica de reprodução como a gravura, que avançara muito nas últimas décadas do século XIX, em decor­rência do avanço tecnológico, aproxima a obra de um pôster, já na ocasião comumente utilizado para a divulgação de produtos da modernidade (Verhagen, 2001). Perspectivas semelhantes são trabalhadas em outras sete obras, não surpreendentemente hoje pertencentes ao Automóvel Clube da Itália.10

Vale lembrar que essas obras são produzidas em um momento em que se observa um grande crescimento da po­pularidade das corridas de automóveis na Itália, cujas primei­ras edições foram realizadas em 1895. É também um instante importante no desenvolvimento da indústria automobilista, antecipando o “culto” à escuderia Ferrari, que futuramente extrapolaria as fronteiras italianas. Aliás, Boccioni inspirara-se nos modelos Fiat para a composição de suas gravuras.

As novas invenções, em geral, fascinaram e chamaram muito a atenção dos futuristas: além do automóvel, o trem, a bicicleta, o avião. A tecnologia e a velocidade os atraíam:

10 Disponível em http://www.aci.it/index.php?id=331. Acesso em 25 mai. 2008.

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Es decir, se trata de encontrar una forma que sea la ex­presión de este nuevo absoluto: la velocidad, insoslaya­ble para un auténtico temperamento moderno. Se trata de estud iar los aspectos que ha adoptado la vida en la velocidad y en la consiguiente sim ultaneidad (Boccioni, 2004 , p. 102).

Dado nosso interesse pela prática esportiva, vamos dedicar maior atenção ao ciclismo. Os velocípedes, pri­mordios de nossas bicicletas, foram inventados, em 1863, pelos irmãos Pierre e Ernest Michaud, logo se tornando urna forma de diversão apreciada pelas elites, um sinal de status e distinção. No fim do século XIX, as bicicletas co­meçam a ganhar a forma atual e são organizadas as primei­ras competições.

A bicicleta deve ser encarada como um invento-chave da modernidade, tanto por ampliar as possibilidades de la­zer (seja para passeio ou para a prática de um esporte de competição, seja por estar articulada com a ideia de con­templação) quanto porque foi útil para a produção e para o mundo do trabalho (Weber, 1988). No início do séculoXX, o ciclismo já gozava de grande popularidade em mui­tos países da Europa, notadamente na França e na Itália. A relação dos futuristas com este artefato era de tal natu­reza que muitos deles (inclusive Boccioni e Marinetti) se alistaram, durante a Primeira Grande Guerra, no Batalhão Ciclista de Voluntários Lombardos, chegando a entrar em combate, alguns até mesmo vindo a falecer durante o con­flito bélico (caso de Boccioni).

Como símbolo de modernidade, de velocidade, de pro­gresso, de ousadia, a bicicleta e o ciclismo estiveram bastante representados ñas obras dos futuristas, com destaque para as de Boccioni. A lista é grande, portanto citamos apenas alguns

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exemplos: Dinamismo d e um ciclista (1913),11 Dinamismo d e um ciclista (1913)12, Forças dinâm icas d e um ciclista (1914).13

O interesse do artista pelo corpo dos esportistas e pela captação da ideia de movimento das bicicletas o levou a ex­perimentar diferentes técnicas, algo típico em sua obra. Em geral, o ciclista é quase uma sombra, um espectro em velo­cidade. Não se pode ver sua face, mas sua posição corporal, as costas curvadas e o rosto vislumbrando o horizonte, típica dos praticantes deste esporte, o aproxima de um combaten­te em situação de ataque. A ausência de outras referências, é comum que sequer haja algo mais representado, faz parecer que os atletas estão voando, aproximando essas obras daquelas em que a aviação está presente, outra temática muito comum entre os futuristas.

O interesse se extrapolava para a motocicleta, pratica­mente uma bicicleta motorizada. Ela esteve representada, por exemplo, por Gerardo Dottori, em M otociclistas (1914)14 e por Giacomo Baila em Velocidade d e uma motocicleta (1913).15 Nessa última, o artista exercita seu intuito de expressar a si­multaneidade, exibindo uma série de planos que praticamente não possibilitam vislumbrar o condutor: ondas, no sentido da direita para esquerda, misturando-se a espirais que, em senti­do contrário, cercam as rodas do veículo, ajudam a criar a sen­sação de deslocamento, dando ao quadro um incrível aspecto de movimento e velocidade. Uma vez mais, o esporte era tido como boa expressão do combate ao imobilismo que marcava a ação dos futuristas

11 Têmpera e tinta sobre papel, 21,1 x 30,8 cm. Acervo de Civico Gabinetto dei Disegni/Milão.

12 Óleo sobre tela, 70 x 90 cm. Coleção particular.13 Litogravura, 29,5 x 38,4 cm. Acervo de University of Michigan Museum

of Art.14 Pastel e têmpera sobre papel, 25 x 36 cm. Coleção particular.15 Óleo sobre tela. Acervo de Hermitage Museum/São Petesburgo.

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Para concluir esse item, devemos ainda destacar a re­lação dos futuristas com a fotografia e com a recém-nascida arte cinematográfica. O futurismo também deve ser enten­dido no âmbito de uma série de iniciativas que buscavam captar adequadamente a nova movimentação da socieda­de, algo que se exponenciara no decorrer do século XIX.16 Ai está uma das razões do seu fascínio pelo cinema: a possibi­lidade de captura, manipulação e exibição de imagens em mo­vimento (como, aliás, sob outros parâmetros, o era o esporte, a projetar corpos dinâmicos nas quadras, estádios e piscinas).

Para expressar melhor a sensação de movimento, alguns artistas faziam uso de sequências dinâmicas e simultâneas, cla­ramente um diálogo com as cronofotografias de Etienne-Jules Marey e as propostas de Jacques Henri Lartigue. Um exemplo pioneiro de obra nesse sentido é Dinamismo d e um cao com coleira, de Giacomo Baila (1912).17 Carlos Carrá assim ten­tava traduzir essa perspectiva: “Un caballo corriendo no tiene cuatro patas, sino veinte, y sus movimientos son triangulares” (apud Martin, 2005, p. 15).

Os artistas ligados ao movimento produziram foto­grafías artísticas e filmes, sendo o mais conhecido Vida fu tu r is ta (1916), dirigido por Arnaldo Ginna. Nessa pelí­cula, simula-se, de modo desconexo e com tons surreais, o que deveria ser o cotidiano na compreensão do futurismo. Entre seus oito episodios, um deles era denominado “Gi­nástica matinal”, cuja descrição, de acordo com Marinetti (apud Tisdall e Bozzola, 2003, p. 147), é: “Ginástica ma­tinal - esgrima, boxe - luta de espada entre Marinetti e Remo Chiti - discussão sobre luvas de boxe entre Marinetti

16 Para mais informações, ver estudo de Mannoni (2003).17 Óleo sobre tela, 89,9 x 109,9 cm. Acervo de Albright-Knox Art Gallery/

New York.

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e Ungari. Café da manha futurista”. A prática esportiva era assim apresentada como um dos hábitos considerados ade­quados por aqueles que propunham a elegia de uma nova forma de vida em sociedade.

Luta e guerra

Voltemos ao primeiro manifesto (1909). Afirma Ma­rinetti: “Não há beleza senão na luta. Nenhum trabalho sem caráter agressivo pode ser uma obra-prima”. Ainda mais: “Glorificamos a guerra — a única higiene do mundo — o mili­tarismo, o patriotismo”. E por fim: “Nós cantaremos as gran­des multidões entusiasmadas pelo trabalho, pelo prazer e pela insurreição; cantaremos as ondas multicolores e polifónicas da revolução nas capitais modernas”.

Que relação poderíamos estabelecer entre tais afirma­ções de Marinetti e o esporte? Basta um olhar nas obras dos futuristas para identificarmos que a prática esportiva, muitas vezes, foi representada com sentidos semelhantes a essas pro­postas expressas no primeiro manifesto.

Não surpreende, aliás, que o futebol tenha merecido tanta atenção. Desde os momentos iniciais do futurismo, chamava a atenção dos artistas o caráter de disputa, o grande envolvimento popular, o mosaico de imagens e cores, a enor­me movimentação física, o sentido patriótico que marcavam a prática do velho esporte bretão.

Destacamos a obra Dimensões d e um jo ga d o r d e fu teb o l (1913),18 de Boccioni. Nesse quadro, a representação do jo­gador serve bem ao seu intuito de captar o movimento, mas

18 Óleo sobre tela, 193,2 x 201 cm. Acervo do Museum of Modem Art/New York.

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também para celebrar um novo herói, que encara o público em meio a um frenesi de cores e planos.

Esta é considerada uma das principais obras do artista, uma daquelas em que alcançou o mais alto grau de diálogo com as propostas do movimento.19 Ao redor do atleta, é cen­tral a construção de uma ideia de agressividade e arrogancia. Amplia-se significativamente o papel concebido para o espor­tista no contexto da sociedade daquele momento.

Na segunda fase do futurismo, será ainda maior a repre­sentação do futebol. E importante considerar o contexto da Itália da década de 1930 para entender essa preferencia. No ámbito dos projetos de Mussolini, como metáfora da guerra e ferramenta de construção identitária e patriótica, o futebol ocupou lugar de destaque. É já conhecido o grande investi­mento governamental (sempre cercado de grande pressão por resultados) realizado ñas equipes nacionais. Lembremos que a seleção italiana sagrou-se inclusive campeã das Copas do Mundo de 1934 (organizada pelo próprio país) e 1938.

A dimensão de luta fica clara em Partida d e fu teb o l (1928),20 de Gerardo Dottori, um dos principáis representan­tes do movimento em sua segunda fase. Os diversos planos e o uso de cores é típico das composições do movimento. As di­versas espirais garantem a sensação dinâmica, enquanto linhas diagonais simultaneamente parecem tanto iluminar os atletas, os eleitos, quanto situá-los quase como seres superiores que disputam a bola. Essas mesmas dimensões são também perce­bidas em Calciatore (Giulio D'Anna, 1930),21 que retrata um jogador de futebol como um herói, fazendo uma clara alusão e distendendo os formatos tradicionais de representação mítica;

19 Para mais informações, ver estudo de Martin (2005).20 Óleo sobre tela, 71 x 92,5 cm. Acervo de Galleria Arte Centro/Milão.21 Grafite sobre papel, 24,5 x 18 cm. Acervo de Collezione Francesco Rovella/

Catania.

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bem como em Futebolistas (1934),22 do mesmo D’Anna, em que se destaca o embate físico entre os atletas.

Após a Primeira Guerra, Marinetti, já próximo de Mus- solini, que fora expulso do Partido Socialista, esteve envolvido com a fundação do Partido Político Futurista. No programa partidário, denominado “Nacionalismo Revolucionário”, afirmava-se que “a ginástica, o esporte e a instrução militar” deveriam ser obrigatórios e praticados ao ar livre (Humphreys,2000, p. 70). Nesse momento posterior do movimento, per­manecerá forte a presença da prática esportiva nas obras. Mes­mo que com diferentes ênfases, com algumas dimensões até mais fortalecidas do que no instante anterior, ela seguirá sen­do importante referência.

O esporte e as atividades físicas, com sentido de luta, já tinham antes aparecido em outros manifestos do movimento. Em 1913, Marinetti lançou “Destruição da sintaxe - imagi­nação sem limites - palavras em liberdade”, no qual fala do aspecto visual de “atletas japoneses e boxeadores americanos” e apresenta como um dos parâmetros a serem seguidos pe­los futuristas “a paixão, arte e idealismo do esporte. A ideia e amor ao recorde”. Esse mesmo autor, ainda em 1913, em “Programa político do futurismo”, também previa a necessi­dade de “vitória da ginástica sobre os livros”.

Uma vez mais, vemos a prática esportiva sendo utilizada para contrapor a ideia de tradição, que, segundo os futuristas, deveria ser combatida para faz emergir uma nova arte sintoniza­da com a sensibilidade da modernidade, bem expressa, segundo a relação estabelecida, pelo espetáculo esportivo. Explicitamen­te, percebe-se essa celebração em três obras da segunda fase do movimento: Gare d'atlética (Vittorio Corona, 1926),23 um mo-

22 Óleo sobre tela, 98,5 x 75 cm. Acervo de Collezione Gattuso/Palermo.23 Óleo sobre tela, 167 x 137 cm. Coleção particular.

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saico da movimentação dos corpos nas diversas modalidades do atletismo; Atleta alia sbarra (Antonio Marasco, 1929),24 certa- mente urna das mais belas exaltações do significado do atleta no estilo dos futuristas; e Olimpiadi d i París (Arturo Ciacelli, 1924),25 que celebrava, por meio da representação dos arcos olímpicos, esse grande evento do esporte mundial. Aliás, vale destacar, esse artista foi convidado para confeccionar os cartazes dos Jogos Olímpicos de Berlim (1936).

Vale ainda comentar que esportes de luta, como o boxe, prática também popular na Itália,26 foram retratados por ar­tistas futuristas, como em Dinamismo d e um corpo humano: boxeador (1913),27 de Boccioni.

Urna obra-síntese

Para concluir este item, destacamos a obra de Cario Car- rá, Demonstração intervencionista (1914).28 Esse mesmo artis­ta, em seu manifesto “A pintura de sons, barulhos e cheiros” (1913), já sugerira que o esporte deveria ser predominantemente representado em vermelho. Carrá segue o próprio conselho em O cavaleiro vermelho (1913)29 e poucas não foram as vezes, na obra de outros futuristas, em que a cor foi utilizada para repre­sentar elementos da prática. A intenção era enfatizar o “calor” dos acontecimentos que cercavam o fenómeno.

24 Têmpera e aquarela sobre cartão, 23 x 28 cm. Acervo de Finarte Casa D’aste/ Roma.

25 Óleo sobre tela, 92 x 109 cm. Coleção particular.26 Para uma discussão sobre a grande presença do boxe em obras de arte, ver

estudo de Melo e Vaz (2006).27 Tinta sobre papel, 29 x 25 cm. Acervo de Museo Thyssen-Bornemisza.28 Têmpera e colagem sobre cartão, 38,5 x 30 cm. Acervo de Peggy Gugge­

nheim Collection/Veneza.29 Têmpera e tinta sobre papel, 26 x 36 cm. Acervo de Civico Museo D’Arte

Contemporanea/Milão.

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Curioso é também, do mesmo Carrá, M ulheres nada­doras (1910),30 um dos primeiros quadros futuristas. A obra era uma clara referência ao poeta futurista Libero Altomare, que fazia uma relação entre a natação e o estado da mente (Tisdall e Bozzola, 2003). Contudo, mais do que a referên­cia literal, é interessante destacar o sentido de excitabilidade proposto por Carrá, expressão de sua compreensão sobre a presença da prática na sociedade de seu tempo.

Ainda que Carrá já estivesse se afastando das ideias de Marinetti, algo que se tornaria mais claro nos anos seguintes, notadamente depois de seu encontro com De Chirico, no ano de 1914, deixa-se contagiar pelas ideias de patriotismo no ce­nário tenso da véspera do grande conflito bélico mundial. Esse sentido impregna Demonstração intervencionista·. “Fiel à sua ideia anterior de pintar ruídos, a ‘abstração plástica do tumul­to civil’ de Carrá, como ele mesmo definiu essa peça, celebra a Itália, seus aviadores, os ruídos da guerra, Marinetti e outros heróis do movimento moderno” (Humphreys, 2000, p. 67).

Demonstração intervencionista foi publicada na revista Lacerba, órgão de difusão do futurismo, com o título de “Festa patriótica”. Tratava-se de um claro diálogo com as propostas cubistas de Picasso, já adequado às características específicas do movimento. Desaparece qualquer figura e emerge a re­presentação abstrata do tumulto e do caos urbano. A obra é composta por palavras que fazem referência às novas dimen­sões da modernidade, apresentadas na forma de caleidoscó­pio, fazendo analogia ao turbilhão de novidades que assolava a sociedade. O termo sports, colocado ao centro, com destaque, nos relembra tanto o papel que tal manifestação já ocupava no

30 Óleo sobre tela, 105 x 156 cm. Acervo de Carnegie Museum of Art/ Pittsburgh.

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contexto social (sua adequação aos “novos tempos”) quanto sua ligação com as propostas do grupo.

Parece, enfim, que temos claros indícios para argu­mentar que houve um profundo diálogo entre o esporte e o futurismo italiano. Consideremos que este movimento, de diferentes formas e com diversas recepções, serviu de inspi­ração para artistas de outros países. De certa maneira, per­cebe-se essa influência no dadaísmo e em certos momentos da trajetória de Mareei Duchamp e Robert Delaunay. Na Rússia e na Inglaterra, a relação fica ainda mais clara. Nesses casos, seria possível identificar algum grau de presença da prática esportiva?

O futurismo em outros países: a presença do esporte

O fu tu rism o russo

Uma das mais fortes recepções das propostas dos italia­nos se deu na Rússia, onde inclusive o manifesto de 1909 foi publicado e se sistematizou um movimento denominado fu­turismo russo. Ao comentar as origens da perform an ce naquele país, afirma RoseLee Goldberg (2006): “o futurismo italiano, estrangeiro o bastante para ser suspeito, porém mais aceitável por fazer eco a esse abandono das velhas formas de arte, foi reinterpretado no contexto russo, proporcionando uma arma que podia ser usada contra toda arte do passado” (p. 24).

Em São Petersburgo e principalmente em Moscou, várias foram as iniciativas (exposições, perform ances, eventos diversos) relacionadas com o futurismo, destacando-se os no­mes de Vladimir Maiakovski, Natalia Goncharova e Kasimir Malevich. Majoritariamente, as aproximações com o espor­te são mais tênues do que no caso italiano, ainda que certas iniciativas, mais comuns já no âmbito do construtivismo, te-

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nham estabelecido algum grau de relação com a prática (por exemplo, as preocupações com o corpo no teatro e os estudos de Meyerhold sobre biomecânica).

De toda forma, o esporte esteve presente em algumas obras do movimento. Goncharova, por exemplo, produziu, em 1912, 0 ciclista,01 que parece dialogar tanto com o cubis­mo, com a concepção de colage, quanto com os futuristas, no que se refere à intenção de fracionar os movimentos para com­por a representação de dinâmica.

E mesmo na produção de Malevich, um dos pioneiros da arte abstrata, que encontramos o maior número de referên­cias à prática esportiva. O artista, em 1915, lançou as bases do suprematismo, propondo a quebra definitiva da ideia de figu­ração, de forma que a obra pudesse explicitar profundamente as sensações internas. Um dos primeiros quadros em que pro­curou aplicar suas propostas foi Suprematismo: realismo p ic tó ­rico d e um jogador de fu teb o l (1915).32 Sobre a obra, afirma Fer:

Em 1915, interpretar o seu Suprematismo: realismo p ictórico de um jogador de jh teb o l como arte significava reconhecer os interesses da arte moderna e o que estes vieram a acarretar - a saber, que uma pintura abstrata com o subtítulo de “jo­gador de futebol” não precisa retratar um futebolista, nem parecer uma figura humana, nem mesmo referir-se esque­maticamente a uma figura em movimento, como havia feito o quadro de Boccioni (1998, p. 31).

Malevich pretendia contestar o modelo de representa­ção dos futuristas, mas nessa obra de transição ainda nomeou

31 Óleo sobre tela, 78x105 cm. Acervo de The State Russian Museum/São Petersburgo.

32 Óleo sobre tela, 70 x 44 cm. Acervo de Amsterdam Stedelijk Museum/Ho- landa.

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o objeto, fez referência a uma forma definida, citou um es­porte. Por que logo o futebol? Talvez algum indício possa ser encontrado na fala de Fer:

O quadro de Malevich é feito de formas geométricas colori­das sobre um fundo branco e o espectador não é convidado a “preencher” as partes vazias para compensar as ausências imaginando uma espécie diferente de quadro, mas sim a re­conhecer a diferença entre este e outros tipos de representa­ção - a perceber a distância percorrida pelo artista, em vez de refazer seus passos do artista de volta ao motivo original. O significado do quadro de Malevich, como em seu Qua­drado p reto , não é garantido por retratar objetos no mun­do, ou por uma semelhança qualquer. Não há sentido em procurar um conteúdo figurativo nesta obra do mesmo modo como um connoisseur do século XVIII procura o conteúdo do vazio negro emoldurado que o intriga numa sátira ao gosto setecentista por turvas cenas noturnas (1998, p. 31).

Já que sua obra tinha mais informações sobre o que não deveria ser uma pintura, talvez Malevich desejasse criar um contraponto entre algo popular e suas provocações para o cam­po artístico, “confundindo” os que estavam acostumados ao formato tradicional. Ou talvez quisesse fazer chocar a ideia de algo bem movimentado com um quadro em que essa sensação não fica tão clara. Ou ainda trazer uma temática mais afeita ao homem comum para o ainda sacralizado mundo da arte (se­gundo ele pela própria ideia de figura). E possível que buscasse fazer conexões entre a expressão de sensações profundas com o que era ocasionado pelo espetáculo esportivo. Talvez estivesse interessado no aspecto plástico do futebol. Ou nenhuma das alternativas acima. Ou várias delas simultaneamente.

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Essas assertivas não passam de suposições. De todo modo, devemos considerar sua ligação com os futuristas, tan­to o compartilhar quanto o distanciamento de alguns de seus pressupostos e temáticas. O artista também se interessava pela noção de dinâmica, apenas não a representando com movi­mentos rápidos, mas fluxos de sensações que devem nascer do íntimo do pintor, ideia construída a partir de outra concepção de ritmo. É digna de nota, a partir de parâmetros diferentes dos italianos, a presença do esporte nessa importante obra.

Malevich esteve também envolvido com as iniciativas de desenvolvimento de uma arte adequada ao regime socia­lista, nos primeiros anos pós-Revolução Russa, no momento em que Lênin estava na direção. Com a ascensão de Stalin, em certa medida dialogando com o realismo socialista (ainda que dele discordasse), pode-se observar em sua produção um retor­no à ideia de representação. Nesse período, no que se refere ao esporte, pintou Suprematismo. Contorno d e sportsmen (1928)33 e Homem correndo (1932),34 obras que ainda demonstravam alguma influência de sua fase áurea, mas que já não expressa­vam os seus princípios fundamentais originais.

Como se pode ver, a trajetória de Malevich tem rela­ção com as mudanças de rumo na política soviética, algo que influenciou a arte em geral daquele país. A própria apreensão inicial do futurismo fora bastante alterada com os desdobra­mentos da Revolução Russa. Trotski contestava as proposi­ções futuristas:

Devemos rejeitar tais pretensões. Isso não sign ifica des­prezo pelas obras dos futuristas. Elas constituem marcos

33 Óleo sobre tela, 142 x 164 cm. Acervo de The State Russian Museum/São Petersburgo.

34 Óleo sobre tela, 79 x 65 cm. Acervo de Musee National d’Art Moderne/ Centre George Pompidou/Paris.

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necessários à formação de um a nova e grande literatura, em cuja evolução compõe apenas um episodio sign ifica­tivo. Basta, para se convencer disso, abordar a questão mais concretamente, no plano histórico [...]. A inda fal­tam às massas, evidentemente, cultura e formação estéti­ca às quais elas só lentamente se elevarão. Esta representa apenas um a das causas pelas quais o futurismo lhes per­manece inacessível (2007, p. 128).

Maiakovski esmerava-se em afirmar que as diferenças entre russos e italianos eram muitas, ainda que existissem pontos em comum. Todavia, o maior número de contestações partiu mesmo de outro movimento que também estabelecera muitos relacionamentos com os futuristas - o vorticismo: “A reação dos jovens artistas londrinos ao futurismo levou à cria­ção do movimento vorticista que, embora muito influenciado por diversos aspectos das ideias e das práticas dos grupos ita­lianos, manteve uma independência crítica e convicta” (Hum­phreys, 2000, p. 49).

O vorticismo

Há diferenças marcantes entre o futurismo e o vorticis­mo: os ingleses, embora buscassem também captar a ideia de dinamismo, opunham-se ao fascínio dos italianos pela veloci­dade. Ao contrário destes, que exaltavam e celebravam o es­pírito de seu tempo, aqueles, ainda que também engajados na contemporaneidade, preconizavam certo distanciamento, in­clusive no que se refere à postura política, levantando a neces­sidade de garantir autonomia para a arte. Enfim: “enquanto os futuristas italianos enxergavam na era da máquina augúrios de uma emancipação humana quase selvagem por meio da tecnologia, Hulme e diversos vorticistas viam na maquinaria

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[...] sinais de um modernismo extraordinariamente autoritá­rio” (Humphreys, 2000, p. 57).

No que se refere ao tema deste estudo, encontramos também claras diferenças. Em Blast, jornal ligado ao vor­ticismo, constantemente se proferiam ataques aos hábitos e valores da classe média inglesa, entre os quais o costume de fazer esportes. Obviamente, devemos considerar que a prá­tica exaltada pelos italianos era aquela de caráter popular, enquanto os ingleses atacavam o seu caráter elitista, muito forte no país que dera origem ao esporte em seu sentido mo­derno.35 Os vorticistas, inclusive, ironicamente chamavam o futurismo de “automobilismo”. Ainda os afastava do fenô­meno o seu repúdio à ideia de multidão.

Ainda assim, o esporte esteve também presente em al­gumas obras do movimento. David Bomberg, por exemplo, compõe, em 1913, Corridas d e cavalos,36 em que os persona­gens são cilindros, quase bonecos de cano em meio a um caos, uma representação muito próxima da ideia futurista de ex­pressar os elementos enquanto máquinas. No ano seguinte, o artista produziu Ju -jitsu ,07 um óleo sobre tela que, a título de trabalhar o tema “violência”, apresenta os lutadores como formas geométricas desordenadas em meio a um mosaico com certo padrão de regularidade.

Os esportes de combate também foram representados por dois outros vorticistas. Henri Gaudier-Brzeska produziu várias obras ligadas à luta livre. Em 1912, fora contratado para fazer um quadro sobre lutadores e, tendo ido a um ginásio, acabou se apaixonando pelas qualidades atléticas dos pratican­tes, o que o levou a compor desenhos, pinturas e mesmo es­

35 Para mais informações, ver estudo de Holt (1989).36 Giz de cera sobre papel, 42 x 67 cm. Acervo de The London Jewish Museum

of Art.37 Óleo sobre tela, 619 x 619 cm. Acervo de Tate Collection.

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culturas sobre o tema. Já Wyndham Lewis, um dos líderes do vorticismo, produziu Boxe em fuan-les-P ins (1929),38 um belo quadro de uma disputa pugilística.

Os ingleses não demonstraram com a prática esporti­va o mesmo grau de entusiasmo que os italianos. E no Bra­sil? Como chegaram as ideias de Marinetti e seus seguidores? Os artistas envolvidos com o modernismo, notadamente oriun­dos de São Paulo, em razão de suas ações e de seus intuitos de desenvolver uma arte de vanguarda no país, foram até mesmo chamados de “futuristas”. Devemos, contudo, olhar com cuida­do a recepção e o diálogo com o movimento italiano.

O fu tu rism o paulista

E verdade que o contexto de São Paulo das décadas de 1910 e 1920 apresentava algumas similaridades com o cenário italiano: rápida industrialização, crescente urbanização, confli­tos políticos. É fato que algumas propostas do grupo de artis­tas brasileiros envolvidos com o modernismo se aproximavam mesmo das do Futurismo e é inegável que houve contatos, que têm início com Oswald de Andrade, que trouxera da Europa a “novidade”, em 1912, e chega até a visita de Marinetti ao Brasil (Fabris, 1994; Brito, 1997). A exposição de Anita Mafaltti e mesmo a Semana de Arte Moderna de 1922 têm algum grau de relação com as ações futuristas. As polêmicas, como na Itália, foram muitas. Houve, contudo, várias divergências dos brasi­leiros com os projetos dos italianos, em certo sentido ligadas a efetivas reelaboraçÕes nacionais, ainda que não devamos deixar de considerar que: “A crítica que os modernistas fazem ao fu­turismo de Marinetti não prova apenas que sua modernidade

38 Grafite, tinta e guache sobre papel, 12,5 x 17,5 cm. Acervo de JHW Fine Art.

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era incipiente, mas demonstrasobretudo que nao existiam no Brasil as condições necessárias ao pleno desenvolvimento de um projeto moderno” (Fabris, 1994, p. 132).

O uso corrente do termo Futurismo, muito observado na ocasião para se referir aos paulistas, tanto com sentido de valorização quanto de detração, expressou mais o desejo de se sincronizar com a vanguarda europeia e a falta de uma com­preensão mais profunda acerca do movimento italiano do que exatamente o seguir das mesmas dimensões. Tratou-se de um uso mais instrumental.39

Na produção dos artistas ligados ao modernismo tam­bém o esporte esteve representado. Uma das primeiras artis­tas que lançou um olhar sobre a prática foi Anita Malfatti, em Torso/ritmo (1915/1916):40 o uso de cores e a construção geométrica exaltam as formas físicas e buscam captar os mo­vimentos de um ginasta. Podemos citar, ainda, entre outros: Combate (1927),41 Tênis (1928),42 Atletas (década de 1930)43 e Goleiro (década de 1930),44 de Vicente do Rego Montei­ro; Regata ’ (1928),45 Jo go d e fu teb o l em Brodowski (1933),46 Futebol (1935),47 Jogando fu teb o l (1939)48 e Futebol (1940),49

39 Mais informações sobre as polêmicas podem ser obtidas nos estudos de Fa­bris (1994) e Brito (1997), bem como no livro de Guastini (2006), cuja primeira edição é de 1926. Algumas interessantes ponderações sobre o Mo­dernismo podem ser obtidas no estudo de M iceli (1996).

10 Carvão e pastel sobre papel, 61 x 46,6 cm. Acervo do Museu de Arte Con­temporânea da USP/São Paulo.

41 Óleo sobre tela, 130 x 130 cm. Acervo de Museé de Grenoble/França.42 Óleo sobre tela. Acervo Artístico Cultural dos Palácios do Governo do Esta­

do de São Paulo/Palácio Boa Vista/Campos do Jordão.43 Óleo sobre eucatex, 122 x 91 cm. Acervo do Banco Central do Brasil.44 Óleo sobre painel, 120 x 90 cm. Acervo do Banco Central do Brasil.45 Óleo sobre tela, 45,5 x 55 cm. Coleção particular.46 Óleo sobre tela, 49,5 x 124 cm. Coleção do Banco Bradesco/Osasco.47 Óleo sobre tela, 97 x 130 cm. Coleção particular.48 Nanquim sobre papel, 15,5 x 16,5 cm. Coleção particular.49 Óleo sobre tela, 130 x 160 cm. Coleção particular.

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de Cândido Portinari; Futebol (1936),50 de Francisco Rebolo; M ulher nadando (1930)51 e Goleiro (1920),52 de Cícero Dias. Devemos destacar também os muitos quadros de regatas de Ernesto Di Fiori, como Represa (sem data).53

Se é interessante identificar que o esporte passou a ser mais representado nas artes plásticas brasileiras, algo ainda não observado até então, não devemos incorrer no equívoco de crer que os sentidos eram os mesmos que levavam a práti­ca esportiva a estar presente na produção dos futuristas. No cenário brasileiro, tal inserção tinha relação com uma maior presença de elementos do cotidiano e da cultura popular na produção artística. Não é de se estranhar as referências ao ob­jeto se tivermos em vista o contexto sociocultural. Como bem informa Nicolau Sevcenko:

Não causa surpresa, portanto, o fato de que no momento em que alcançou sua fase de crescimento urbano mais ace­lerado, logo depois da Ia Guerra Mundial, São Paulo tenha experimentado um espantoso boom dos esportes. A cidade toda se transformou num gigantesco estádio polivalente (1993, p. 83).

A presença do esporte no cotidiano de São Paulo pode ser sentida em dois filmes lançados na década de 1920. Um deles é Vício e beleza (1926), dirigido por Antônio Tibiriçá, com argumento de Menotti dei Picchia, artista ligado ao modernismo. A película narra a história de um estudante de medicina, praticante de natação e atletismo, que apregoa as

50 Óleo sobre tela, 86 x 36 cm. Coleção particular.51 Aquarela e nanquim sobre papel, 67,3 x 51 cm.52 Óleo sobre tela.53 Óleo sobre tela, sem data, 38 x 46 cm. Acervo de Museu de Arte de São

Paulo.

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benesses da atividade física para a saúde, em contraponto a outro jovem que frequenta cabarés e tem uma vida conturbada. No decorrer da trama, são apresentados os problemas ligados a doenças venéreas, ao uso de drogas e à vida desregrada. Com forte caráter moralizador, tal filme foi produzido em um contexto de busca de controle e organização da capital paulista, quando cresciam problemas típicos da rápida urbanização e do inchaço urbano.

Já São Paulo, sinfonia d e uma m etrópole (1929, Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny) foi inspirado em Berlim, sin fo­nia d e uma m etrópole (1927, Walter Ruttmann). Trata-se de um documentário sobre a cidade na transição das décadas de 1920-1930, um panorama do frenesi de uma metrópole e de seus personagens cotidianos. O filme busca capturar a excitabilidade da vida moderna e industrial, exibida de uma maneira esteticamente adequada às novas dimensões culturais em vigor. Nesse cenário, o esporte ocupa espaço relevante.

A presença da prática esportiva tanto em um filme que tenta traçar um panorama dos “novos tempos” quanto nas obras dos modernistas, que de algum modo estavam buscando captar e/ou antecipar os indícios de uma nova sensibilidade, demonstra o já alto grau de inserção da manifestação na dinâ­mica social do país, sua importância simbólica, sua articulação com as outras dimensões culturais. Vale lembrar que uma dos responsáveis pelo incentivo financeiro para muitas das ações dos modernistas foi a família Prado, notadamente Paulo Prado. Eles também estiveram envolvidos com as reformas urbanas da capital paulista, já que Antônio Prado, pai de Paulo, ocu­para durante muitos anos a função de intendente (prefeito). Outro de seus filhos, Prado Júnior, foi personagem de grande destaque na política e no esporte nacional, como atleta de ci­clismo, como presidente de Clube Atlético Paulistano, como presidente do Comitê Olímpico Brasileiro e membro do Co­

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mitê Olímpico Internacional. Foram também incentivadores do automobilismo e da aviação.

Coincidência? Não creio. Trata-se de mais um indício de que estamos falando de sensibilidades em comum em um determinado contexto, algo que envolvia esporte, arte e mo­dernidade.

Conclusão

Várias foram as dimensões que favoreceram a presen­ça do esporte nas ações do futurismo. Uma delas é o fato de o espetáculo esportivo se organizar de modo diferenciado da tradição acadêmica; era “o novo”, uma manifestação plena­mente integrada à cultura de massas que se estruturava nos anos iniciais do século XX. Se os futuristas contestavam as bi­bliotecas, galerias e museus, encontravam em outros espaços, como estádios e quadras, seus locus de celebração de uma nova arte. Adenda-se a isso o aspecto visual da prática esportiva: dinâmico, veloz, tumultuado, ótimo para ser representado a partir das proposições do grupo.

O movimento futurista era espetacular em seu modus operandis, em sua forma de comunicação: manifestos clara­mente iconoclastas, organização de perform ances públicas com o intuito de chocar, a própria natureza das obras. Os eventos esportivos, em certo sentido, se aproximam de suas “seratas”, o oposto das exposições de arte tradicionais:

Los artistas organizaban muchas veces con poco margen de tiempo en diversos lugares y cuyos programas incluían puntos variables. Integradas por recitaciones de poemas, manifiestos y números musicales, constituían el marco de una acción artística que buscaba la provocación y el alboroto (Martin, 2005, p. 9).

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Roselee Goldberg (2006) situa o futurismo entre os que pioneiramente deram origem à perform an ce como hoje a co­nhecemos. Ressaltamos tal dimensão na medida em que as proximidades dessa com o esporte são notáveis, até mesmo no âmbito do idioma, algo registrado em vários dicionários. Como observa Antonio Herculano Lopes:

O termo perfo rm an ce há algum tempo é moeda corrente no nosso idioma. Se em princípio era mais identificado com os esportes e as máquinas, com o sentido de “desempenho”, mais recentemente passou a circular na área artística, para indicar um ato mais ou menos teatral, com um certo grau de improvisação e de uso do acaso e altas doses do pós-mo- derno vale-tudo (2003, p. 5).

Esse mesmo autor demonstra como vários autores per­cebem proximidades significativas entre o esporte e a per fo r­mance, como é o caso de Schechner (2003). Lopes sugere que, historicamente, é possível argumentar que as fronteiras são mesmo tênues:

Além disso, mesmo quando a p erform an ce possui uma forte dimensão estética, ela não é, necessariamente, arte. Os mo­vimentos de jogadores de basquete são tão belos quanto os de bailarinos, mas o basquete é o esporte e o ballet - arte. Reflita agora sobre a patinação e a patinação artística, que existem em ambos os universos. Decidir o que é arte de­pende de contexto, circunstância histórica, uso e convenções locais (2003, p. 31).

Aproxima, então, esporte e futurismo o fascínio pela or­ganização espetacular da diversão moderna, a possibilidade de envolver multidões em torno de uma prática social, algo que

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por motivos diferenciados também tinha chamado a atenção de outros artistas, como Bertold Brecht (Teixeira, 2003; Melo e Vaz, 2006). Outra importante dimensão a ser considerada é a ideia de que os artistas deveriam se assumir enquanto sol­dados e trabalhadores, o que os aproximavam dos esportistas, eles também encarados como combatentes e operários de uma nova celebração moderna: o esporte entendido como um si­mulacro da guerra, urna forma de violencia controlada, algo eivado de agressividade, além de uma ode ao nacionalismo e ao patriotismo.

O esportista era o novo herói enquanto não vinha o con­flito bélico tão propalado, esperado e requisitado pelos futu­ristas. Era o misto de homem e máquina que poderia ajudar a construir para a civilização a ideia da necessidade de progresso. Devemos lembrar que as noções de desempenho, de recorde e de guerra foram constantes entre os adeptos do movimento: “Prácticamente todos los artistas futuristas, con la excepción del escritor Aldo Palazzeschi (1885-1974), ensalzaron la guer­ra y sus consecuencias” (Martin, 2005, p. 80).

O esporte, enfim, uma prática social já de destaque nos primeiros anos do século XX, encontraria eco nas propostas do Futurismo, que celebrava o “hábito da energia”, “o movimen­to agressivo”, a “velocidade”, o “salto mortal”, a “bofetada”, “o murro”, termos expressos no primeiro manifesto de 1909. Somente no Impressionismo, por motivos diferenciados, en­contramos tamanha relação com o esporte. Se naquele o olhar era desconfiado, entre os futuristas era de elegias e glorias, de entusiasmo e exaltação.

Por compartilharem sensibilidades, a construção de sen­tidos e significados culturais e a celebração de determinadas imagens em comum, o entendimento das relações entre es­porte e arte nos possibilita lançar mais um olhar sobre a con­formação do ideário e do imaginário da modernidade. Mais

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ainda, reforça a ideia de que é mesmo esteticamente que aprática esportiva exerce boa parte de sua influência.

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Fascínio nas arquibancadas:1 apontamentos metodológicos para

uma cartografia dos afetos, materialidades sonoras e produção de presença na prática esportiva

Pedro Silva M arra

O estádio de futebol configura-se como um lugar privi­legiado para assistir a uma partida. Se o rádio conta com uma grande carga emotiva - seja pelo tom de voz do narrador, que ao mesmo tempo conta os acontecimentos do jogo e torce para um dos times envolvidos na disputa, seja pela falta de imagens, que alimenta a sensação de suspense no ouvinte, estimulando sua imaginação para o que acontece e acontecerá nos instan­tes seguintes - e a tevê traz cada detalhe do jogo, reprisado a partir de vários ângulos, proporcionando uma visão distan­ciada e analítica (uma análise já pronta realizada pela figura do comentarista), é a partir das arquibancadas (sobretudo de seus melhores pontos de visibilidade, normalmente situados

1 Uma versão diferente do trabalho, sob o título “Mapas sonoros do futebol: apontamentos metodológicos para uma cartografia dos afetos e materiali­dades sonoras da prática esportiva”, foi apresentada no GT 5 Práticas de entretenimento e consumo do VI Congresso de Estudantes de Pós-gradua­ção em Comunicação, na categoria pós-graduação. UERJ, Rio de Janeiro, outubro de 2013.

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na proximidade do meio do gramado) que se acompanha a to­talidade dos acontecimentos em campo. Deste local, observa­r e o posicionamento e o esquema tático de ambas as equipes; sua movimentação com e sem a bola; percebe-se o atacante que passa por trás da defesa e o zagueiro que corre para cor­tar a bola que caminha lentamente em direção ao gol aberto; enfim, realiza-se uma visão de conjunto dos acontecimentos da partida, favorável ao trabalho de análise do jogo. Não é à toa que alguns técnicos gostam de contar com assistentes posicionados nas arquibancadas, que lhe repassam, via rádio transmissor, as melhores táticas para frear o avanço adversá­rio; e que as cabines de imprensa se situam aí. O estádio de futebol aparece, neste sentido, como um espaço que possibilita ao público assistir à partida como um objeto a ser dissecado, ora em suas partes, ora recompondo o todo, proporcionando o distanciamento necessário para a realização da análise dos acontecimentos da disputa.

Contudo, o estádio de futebol também se configura como um lugar privilegiado para assistir a uma partida. E nas arquibancadas que se gestam os gritos de guerra, tre- mulam-se as bandeiras; enfim, onde é possível estar mais próximo dos jogadores e dos acontecimentos da disputa, onde se vê o jogo de maneira mais imediata, devido à co- presença com os acontecimentos do jogo. O historiador Hilário Franco da Rocha aponta que, “impotente na arqui­bancada, o adepto de um clube crê que sua fé e seu estímulo possam colaborar para que seus ídolos levem a divindade comum à vitória” (Rocha, 2007, p. 292). Não é à toa que jogadores apreciam jogar frente à sua torcida e temem atuar frente à torcida adversária, e que treinadores em seu planeja­mento para os campeonatos contam com ganhar o máximo de partidas em suas cidades, para que vitórias em estádios adversários possam ser contabilizadas como pontos a mais

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na disputa pelo título do certame.2 O estádio de futebol aparece, neste sentido, como um espaço que possibilita ao público assistir à partida como participante do espetáculo, seja pelos cantos, imagens e cores que emprestam à festa do jogo, seja pela possibilidade real de influir no resultado do confronto, proporcionando a proximidade necessária para a vivência de um acontecimento sensível e estético.

A duplicidade de sentido do verbo assistir, proporcio­nada por suas duas transitividades nos parece bastante ade­quada para pensar dois poios de um espectro que abrange possibilidades infinitesimais — entre a análise do jogo e a entrega passional a um time — de se acompanhar uma parti­da de futebol de dentro do estádio, enfim, de se torcer, apro­ximando dois poios tidos como opostos pelo senso comum e até por certa tradição acadêmica: assistir a (transitivo indire­to), como observação distanciada e analítica, e assistir (tran­sitivo direto) como participação próxima e apaixonada.3 A arquibancada cheia abriga milhares de pessoas, que, mesmo se reunindo em torcidas organizadas, famílias torcedoras, grupos de percussão e outros formatos musicais, grupos de amigos, apresentam variadas práticas de torcer, manifestadas em “diferentes expressões, comportamentos e posturas que revelam um envolvimento emocional e uma preferência por um determinado clube de futebol” (Jahnecka et al., 2013, p. 196) e que vão além, sem negar a possibilidade, do que se costuma chamar de pertencimento clubístico, “modalidade de envolvimento propriamente intensa, ilusória, equivalente

2 O jornalista Rica Perrone explica o cálculo realizado pelos técnicos todo co­meço de temporada em artigo disponível em seu blog. Disponível em http:// www.ricaperrone.com.br/brasileirao-2013/classificacao-planejada/. Acesso em 7 mar. 2014.

3 Confira o verbete “assistir” no Dicionário Houaiss. Disponível em http:// houaiss.uol.com.br/busca?paIavra=assistir. Acesso em 01 ago. 2013.

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ao que os nativos caracterizam como ‘torcedor fanático’, ‘do­ente’, ‘cego’ etc.” (Damo, 2005, p. 66).

Neste sentido, percebemos que o comportamento da torcida durante o jogo de futebol oscila entre pelo menos três formas de se agrupar os torcedores. As torcidas organizadas, e outros grupos cujo laço baseia-se em questões identitárias, aparecem na arquibancada como um povo, articulação que “sintetiza ou reduz essas diferenças sociais [de classe, de cul­tura etc. dos indivíduos que a compõem] a uma identidade” (Hardt e Negri, 2005, p. 139). No caso de uma confusão ge­neralizada, quando os torcedores invadem o campo para agre­dir ou confrontar árbitros e jogadores, por exemplo, encontra­mos a massa, marcada por certa incoerência e dificuldade de identificação de elementos compartilhados em comum. “Os componentes das massas, do populacho e da turba não são singularidades - o que fica evidente pelo fato de que suas di­ferenças tão facilmente se esvaem nas indiferenças do todo” (Hardt e Negri, 2005, p. 140). Em outros momentos da par­tida, toda a arquibancada mostra-se de maneira extraordina­riamente articulada, entoando os mesmos gritos e cânticos, como na entrada dos jogadores em campo, quando se cantam músicas com seus nomes, ou no momento do gol, quando todo o estádio explode em urros de alegria. Aí encontramos multidão, pois, ainda que se compartilhe momentaneamente um mesmo grito, cada indivíduo que a compõe continua a expressar suas diferenças sociais no momento seguinte, sem ser, com isso, “apenas uma multiplicidade fragmentada e dis­persa.” (Hardt e Negri, 2005, p. 145).

Estas três figurações da torcida aparecem de acordo com os acontecimentos da partida e podem suceder-se em um áti­mo de segundo - do acontecimento de um gol a sua anulação pelo juiz, por exemplo — ou até mesmo coexistir, quando um certo setor vaia um jogador, por uma jogada errada, enquanto

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o resto da arquibancada o aplaude, em sinal de apoio, apesar do equívoco. Certos locais da arquibancada também privile­giam certas práticas de torcer, e, com isso, certas figurações da torcida, como buscamos explicitar no início deste artigo. As diferentes figurações da torcida, manifestadas em suas di­versas práticas torcedoras, configuram o espaço da arquiban­cada como uma topografia afetiva, cujo arranjo está em cons­tante mobilidade e transformação, no tempo e no espaço, de acordo com variáveis como os acontecimentos do jogo, a po­sição ocupada na arquibancada, a proximidade com determi­nados grupos torcedores, a forma individual de se relacionar com o clube e o esporte etc.

A arquibancada é, portanto, habitada por uma multi­plicidade, somatório que não é necessariamente igual à adição de suas partes. A torcida de uma determinada equipe se torna presente, “tangível por mãos humanas” (Gumbrecht, 2010, p. 13), na medida em que o jogo se desenrola e produz sua presença, enquanto “eventos e processos nos quais se inicia ou se intensifica o impacto dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos” (Gumbrecht, 2010, p. 13). Tal processo apresenta um caráter cíclico que se realimenta, por exemplo, da seguin­te maneira: a equipe desperta o amor pelo esporte nos torce­dores, que comparecem ao estádio e incentivam os jogadores a realizar com sucesso as jogadas, produzindo nos torcedores fascínio, que “se refere ao olhar que é atraído - e até paralisa­do - pelo apelo de algo que é percebido” (Gumbrecht, 2007, p. 109). Isso se manifesta por meio de gritos, cânticos e ima­gens; enfim, práticas torcedoras, que incentivam os jogadores e articulam/desarticulam a torcida como um todo, e assim por diante. Neste sentido, pensamos que a presença produzida pe­los jogadores, ao realizarem suas jogadas, e a da torcida, com seus gritos e cânticos, funcionam mutuamente e respectiva­mente como objetos de fascínio, produtores de intensidades

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focadas, para cada um dos lados desta equação, de tal modo que ambos “investimentos e seus resultados vão depender em parte dos objetos de fascínio que começaram por ativá-los e evocá-los” (Gumbrecht, 2010, p. 130).

Fazemos a aposta de que a sonoridade produzida na ar­quibancada apresenta importante papel nesta dinâmica, já que percebemos, a partir de Wisnik (1989), o som, como a comuni­cação de um sinal de movimento no espaço, movimento de um corpo que encontra ressonância em outro, encontra papel não só na realização dos acontecimentos da partida, mas também e sobretudo, nas dinâmicas de produção de presença da torcida, de seu agrupamento ou dispersão, por meio de contágio sonoro, enfim, em seu caráter mutante e móvel. Em meio ao ruído de apoio do estádio, que começa em um ponto da arquibancada e por ela se espalha, o jogador da equipe para a qual se torce deixa que sua razão se torne fraca e obscura. E, assim, surge a graça dos movimentos (Gumbrecht, 2007, pp. 119-23). O jogador adversário se vê capturado pelo insulto, sendo “trapaceado pela finta quando já se perdeu ou se turvou a capacidade de apreen­der o movimento em seu plano virtual” (Ferraz, 2011, p. 681). A presença sonora da torcida, neste sentido, tem a potência tan­to de intensificar quanto de minar o talento (ou a sua falta) de um jogador de futebol, operando como o que Gumbrecht chamou de misticismo: no caso do jogador que tem seu talento aumentado, “uma consciência absoluta” do jogo é conquistada; no caso do jogador ludibriado, realiza-se “o medo de perder para sempre o controle sobre si mesmo” (Gumbrecht, 2010, p. 116).

O presente trabalho pretende, assim, apresentar e discu­tir os procedimentos metodológicos que vem sendo utilizados e aperfeiçoados em pesquisa de doutorado, em desenvolvimento no PPPGCom-UFF. A iniciativa investiga relações entre torci­das de jogo de futebol e acontecimentos da partida por meio dos sons produzidos no estádio de futebol. Apropriando-nos da

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proposta de Damo (2012, p. 57), que “ao invés de pensar que o jogo cria um público, por que nao pensar que o público criao jogo”, perguntamo-nos sobre como público e jogo criam-se mutuamente, a partir das práticas do torcer. O texto discute a utilização de equipamentos digitais de gravação de som, por meio de suas potencialidades de incremento da escuta, regis­tro de acontecimentos e choque dos registros, além da edição, na constituição de metodologia de pesquisa. Isso possibilitaria perceber o papel das sonoridades nas dinâmicas de articulação/ desarticulação das torcidas de futebol durante a partida, ao sa­bor dos acontecimentos da disputa, encarando o desafio de cap­turar o movimento e a transformação da torcida, no tempo e no espaço, em suas diversas figurações. Neste sentido, uma de nossas intenções, neste artigo, é a de retribuir a contribuição de Gumbrecht ao nosso próprio trabalho, apontando um cami­nho metodológico para se lidar com algumas questões que o au­tor alemão coloca em seu trabalho. A gravação de som, de uma partida, realizada de seu início ao seu fim, torna possível captar a presença em sua “temporalidade extrema”, em sua dificuldade de ser agarrada. Se “não há fotografia que consiga captar uma bela jogada” (Gumbrecht, 2010, p. 143), um conjunto de grava­dores espalhados por diversas regiões da arquibancada permite registrar a expressão do fascínio coletivo produzido pela jogada em questão, em sua materialidade sonora - intensidade, ritmos, frequências e reverberação. A edição de tal material possibilita cruzar as singularidades com que tal fascínio se manifesta em cada região do estádio, permitindo produzir uma resultante ca­paz de tanger a presença que a torcida representa para o jogador. Para desenvolver estes argumentos, utilizamos como base de dados gravações realizadas em observações de campo teste rea­lizadas pelo pesquisador em partidas do Clube Atlético Mineiro em dois estádios de Belo Horizonte e região metropolitana, em 2011 e 2013.

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Paisagens sonoras: registrando sonoridades nos estádios

Registrar uma sonoridade tão complexa quanto a de um estádio de futebol se mostra uma tarefa complicada, que merece uma reflexão a respeito das técnicas e estratégias a serem utilizadas. Afinal, apenas ligar um microfone qualquer conectado a um gravador não nos parece uma abordagem apropriada para gravar ambiente povoado de sons que se sucedem e repetem de maneira aparentemente caótica. O engenheiro francês e um dos fundadores da música concreta Pierre Schaeffer situa-nos a questão, no campo do registro sonoro musical, no momento em que estas tecnologias surgiam e se estabeleciam, ao comentar alguns manuais e autores que se ocupavam com a questão. Estes escritos elencavam que instrumentos soavam melhor ao microfone e o que perdiam em suas qualidades sonoras ao ter uma execução registrada em disco. Também advogavam queo microfone parece obedecer a leis diferentes das do ouvido.4 Assim, o autor conclui: “Não vejo por que o rádio e o cinema escapariam a uma análise científica e à mais rigorosa critica estética” (Schaeffer, 2010, p. 48).

Schaeffer vê as técnicas de gravação de som, materiali­zadas no rádio, como uma arte relé, pois não lida diretamen­te com o som, mas com sinais codificados a partir do som. Neste sentido, a gravação sonora funciona como a caixa pre­ta de Flusser (2002), que, por meio da modulação do som (transformação da energia mecânica em energia elétrica) - um processo que o microfone acoplado ao gravador realiza e ao qual não podemos intervir, apenas escolher alguns valores de entrada dentro de variáveis pré-estabelecidas pela máquina - ,

4 A discussão é semelhante a que Walter Benjamin levanta no texto “O tele­fone”, presente em Infância em Berlim, p o r volta de 1900 (Benjamin, 1995, pp. 79-80).

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mutila o que se registra, reduzindo o som a uma dimensão. Se este processo por um lado envolve perdas, por outro traz potencialidades antes inimagináveis para a audição humana: o microfone interfere no timbre de um som, ao mesmo tempo em que hiperdimensiona sua intensidade,

pois é capaz, ele, em meio ao triplo forte da orquestra, de fazer sussurrar uma voz ao nosso ouvido. Ele pode, do centro mesmo desse arrebatamento orquestral, escolher determina­do instrumento e fazê-lo passar ao primeiro plano. Ele está apto, como já notamos, a garantir simultaneamente náo só a ubiquidade como a onipotência (Schaeffer, 2010, p. 60).

A gravação sonora possibilita, portanto, novos modos de escuta, que alteram o campo de audição humano, permi­tindo sua restrição ou ampliação (Obici, 2006). Assim, pode­mos não só construir gravadores que aumentem nosso campo de percepção, mas também utilizar as ferramentas já existentes para ampliar nossa constituição, alterando ritmos corporais e, assim, descobrindo algo a mais no mundo que antes não nos era ofertado (Lefebvre, 2004, p. 83). No campo do registro sonoro, apoiamo-nos na experiência da pesquisa “Cartografias de sentido”,5 da qual participamos, e que se apropriou da ideia de paisagem sonora (Schafer, 2001), a fim de constituir técnica de registro da sonoridade urbana denominada deriva sonora.

Paisagem sonora é um conceito bastante utilizado contem­poraneamente para o estudo das relações entre som e o espaço. Criado e difundido por um grupo de pesquisadores e musicólo­gos canadenses, envolvidos no projeto de pesquisa “World soun- dscape project”, que realizava gravações dos sons no espaço urba­no, a fim de conhecer suas dinâmicas e reconhecer suas marcas e

5 Sobre a pesquisa “Cartografias de sentido”, conferir Silva et al (2008).

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sons, o termo esteve bastante envolvido na discussão da poluição sonora em espaços urbanos. É conceituado por Murray Schafer, um dos principais pesquisadores do grupo citado, como “[...] qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos” (Schafer, 2001, p. 366). Pode designar, dessa maneira, uma grande variedade de sonoridades, desde a presente em luga­res reais, a construções sonoras abstratas, passando por gravações, sua edição e composições musicais tradicionais.

Contudo, a pesquisa buscou afastar-se dessa perspecti­va, em primeiro lugar devido à noção de escuta que a subjaz, calcada em um ouvido pensante, capaz de escutar com atenção as paisagens sonoras a fim de identificar seus sons desejados e indesejados e nela intervir, solucionando o problema da polui­ção sonora, sempre a partir de uma audição que as escute como uma composição de Mozart.6 No entanto, reteve a prática de registrar a sonoridade urbana como forma de construção de co­nhecimento acerca da participação dos habitantes da cidade na constituição dessa sonoridade. Nesse sentido, a paisagem sono­ra está para a sonoridade dos espaços, assim como a fotogra­fia ou o vídeo, para as imagens. Possibilita congelar, destacar e aumentar certas nuances da sonoridade de um espaço a partir de uma única gravação, mas também dar movimento, relacio­nar, aproximar ou fazer chocar diferentes sons a partir da edi­ção e montagem do material produzido, proporcionando que se “mantenha o registro de todos os nossos movimentos, inclusive aqueles que lidam com a confecção mesma do relato7” (Latour, 2005, p. 133). Tomada a partir de uma perspectiva que privile­gia a duração dos eventos sonoros, sua propriedade de fluxo de

6 Boas referências críticas ao trabalho do grupo de pesquisa “World soundsca- pe project” são os trabalhos de Giuliano Obici, “Condição de escuta - mí­dias e territórios sonoros” (2006) e o de Fátima Carneiro dos Santos, “Por uma escuta nômade: a música dos sons das ruas” (2004).

7 Todas as citações das referências em inglês são de tradução nossa.

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vibrações no tempo, torna-se possível registrar nao um evento sônico — uma única canção entoada por uma torcida — mas sua relação com aquilo que soa antes e depois - o grito de guerra antes da música em questão e o xingamento que a segue. Neste sentido, não só se captam as materialidades sonoras em questão (intensidade, frequência, ritmo, reverberação), mas as relações entre estes momentos e suas características. Escuta-se quando a torcida cantou mais alto, quando se presentificou coordenada como multidão, ou fragmentada em diferentes povos, o que nos possibilita narrar o espetáculo futebolístico como um todo — os acontecimentos da partida em seu diálogo com o torcer.

As derivas sonoras são uma adaptação das derivas carto­gráficas, a fim de voltar a atenção para as sonoridades urbanas: ambos procedimentos estabelecem um trajeto no espaço a ser percorrido e registrado, no caso daquela com gravadores digi­tais de som. Assim, faz-se necessário problematizar aqui não só as potencialidades destes aparatos técnicos, mas também as formas como podemos utilizá-los.

Entre a sonoridade do estádio e seu registro, diversos atores se interpõem. O primeiro e mais óbvio é o indivíduo que realiza a gravação sonora, com sua audição e intenciona­lidade. No entanto, não é de se dispensar a dimensão técnica: a escolha dos microfones e seu padrão de captação e de seu posicionamento, bem como a utilização de equipamentos de pré-amplificação entre estes e o gravador e a própria escolha do gravador, definirão questões ligadas não somente ao grau de definição ou “fidelidade” da gravação com relação à sua fonte. Estão ligadas diretamente ao que é permitido escutar e ao alcance da audição produzida tecnicamente. Há de se con­siderar ainda as formas de transmissão e de escuta do material registrado - se em fones de ouvido, caixas de alta-definição, ou autofalantes de baixo custo, se em meio analógico ou digi­tal, se por meio da internet ou do rádio.

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Ao realizar um registro sonoro, portanto, lidamos com um som transformado pela forma como a tecnologia os cap­ta. Como coloca Jonathan Sterne, em seu trabalho “Audible past”, o que está em jogo “[...] não é simplesmente o apa­rato, mas a técnica de percepção e sua codificação” (Ster­ne, 2003, p. 146), ou seja, em todo registro sonoro, deve- -se levar em conta não só as possibilidades de registro do equipamento, mas também a p er fo rm an ce de registro daquele que o manuseia. Sterne chama esse tipo de p er fo rm an ce de “técnicas de audição”, pois dizem respeito não só às formas de operar o aparelho, mas também à seleção daquilo que se quer registrar e daquilo que se deve escutar no registro, ou seja, que sons são significativos e que sons são considerados “externos” à gravação, e, portanto, ruídos introduzidos pelo próprio aparelho. Ao analisar as primeiras tecnologias de re­gistro sonoro, o autor nota que o registro sonoro, para além dos equipamentos utilizados, implica também o espaço do estúdio, onde as gravações podem ser controladas, por meio do isolamento das fontes sonoras de ruídos externos e da produção dos sons especialmente para as máquinas (Sterne, 2003, p. 235). Pensar o registro sonoro em estádios de fute­bol, ao contrário, implica pensar estratégias específicas para este espaço, onde os sons não estão sendo produzidos para os equipamentos de gravação e nem podem ser controlados e separados daquilo que lhes seria externo. O estúdio deve se tornar portátil e acompanhar o corpo do pesquisador, que deverá desenvolver técnicas e formas de utilizá-lo de modo a adequar o equipamento aos sons e não o contrário, a fim de “colocar-se como conexão do humano com o seu ambiente: as máquinas possibilitam a projeção das ações do homem na dimensão do ambiente, amplificando, estendendo, ou acele­rando essas ações” (Iazetta, 2009, p. 82). Tais questões nos fazem pensar na existência de uma p er fo rm an ce ao aparelho,

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realizada por quem o utiliza, já que “são necessárias formas de comportamento e de ação, mantidas ao longo do tem­po [...] capazes de moldar e de produzir diferentes formas e identidades corporais”8 (Gumbrecht, 2010, p. 86), as quais influem no som que é obtido a partir do registro.

Para o presente trabalho, realizamos duas observações experimentais, que envolveram a escolha de algumas técni­cas de gravação específicas. Na primeira saída a campo, re­alizada no jogo entre o Clube Atlético Mineiro e América de Teófilo Otoni, em 17 de abril de 2011,9 foram utilizados simultaneamente três gravadores digitais, por sua portabili­dade, equipados com dois arranjos diferentes de microfone para uma captação estéreo, o que possibilitou uma aproxi­mação mais fiel à escuta humana. Enquanto um par M/S (combinação de microfone bidirecional, que capta sons à sua frente e atrás, com microfone cardioide ou supercardioide, e por isso, bastante focado) e um par ORTF (dois microfo­nes cardioides posicionados a aproximadamente 21 cm de distância, formando um ângulo de 120°) foram posiciona­dos na parte inferior da arquibancada, entre a partida e a torcida, colocou-se um par binaural (dois microfones om- nidirecionais de lapela posicionados cada um em um ouvi­do) no meio da torcida. Esta técnica permitiu que captás­semos simultaneamente a torcida “de dentro” e “de fora”, possibilitando uma audição geral e outra particularizada. Os três gravadores permaneciam aproximadamente 15 minu­tos em uma região do estádio e posteriormente mudavam seu

8 Neste ponto de sua argumentação, Gumbrecht discute a utilização do con­ceito de performance por Judith Butler para pensar questões de Gênero. Pen­samos que aqui a discussão é pertinente, pois se trata da composição do corpo do pesquisador, no momento da realização da pesquisa em campo, o que afeta os resultados da pesquisa.

9 Partida disputada no estádio da Arena do Jacaré, em Sete Lagoas em disputa do Campeonato Mineiro do mesmo ano.

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posicionamento para outro setor, a fim de mapear um outro tipo de torcida. Eventualmente, os dois sistemas de gravação eram distanciados um do outro, de modo a captar, não só a simultaneidade de sonoridades diferentes dentro do estádio, mas também o contágio sonoro, as formas como determina­dos gritos e canções da torcida, sobretudo, se espalham nas arquibancadas. Dessa maneira, o experimento constituiu-se de cinco momentos, demonstrados na figura 1:

Figura 1 - Localização dos gravadores de áudio no momento1 da pesquisa de campo realizada em 17 de abril de 2011 na Arena do Jacaré10

Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emo­ção - as sonoridades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol”.

10 Essa e as demais imagens (até a 5) foram obtidas em http://valmerson.wor- dpress.com/2013/03/22/qual-sera-a-nossa-casa-qual-e-a-posicao-dos-pre- -candidatos/ e alteradas eletronicamente para fins da pesquisa. Acesso em 23 ago. 2010.

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Figura 2 - Localização dos gravadores de áudio no momento2 da pesquisa de campo realizada em 17 de abril de 2011 naArena do Jacaré

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Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção”- as sonoridades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

Figura 3 - Localização dos gravadores de áudio no momento3 da pesquisa de campo realizada em 17 de abril de 2011 na Arena do Jacaré

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Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção”— as sonoridades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

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Figura 4 - Localização dos gravadores de áudio no momento4 da pesquisa de campo realizada em 17 de abril de 2011 na Arena do Jacaré

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Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção”- as sonoridades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

Figura 5 — Localização dos gravadores de áudio no momento5 da pesquisa de campo realizada em 17 de abril de 2011 na Arena do Jacaré

Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção”- as sonoridades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

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Na segunda oportunidade, em partida entre o mesmo Atlético Mineiro e o Atlético Paranaense, em 31 de junho de 2013,11 foram utilizados apenas dois gravadores. O primeiro repetia a configuração ORTF da primeira observação, e o se­gundo, utilizava o par estéreo incluído no gravador, em confi­guração XY, em que duas cápsulas direcionais foram dispostas de maneira concorrente, em um ângulo de 120°. Os gravado­res novamente alternavam seu posicionamento dentro do es­tádio, desta vez no período de aproximadamente 10 minutos, com o gravador ORTF localizado no meio da torcida e o XY à sua frente. Passado o tempo, um dos gravadores locomovia-se para outra região da arquibancada. Um novo encontro de am­bos os aparelhos na mesma região da arquibancada realizava- -se no decorrer do mesmo período, de acordo com as imagens a seguir (figuras 6 a 12):

11 Partida válida peio Campeonato Brasileiro do mesmo ano, no estádio Arena Independência, em Belo Horizonte.

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Figura 6 — Localização dos gravadores de áudio no momento1 da pesquisa de campo realizada em 31 de junho de 2013 na Arena Independência12

Momento 1Setor Pitangui

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2 - gravador ORTF

Setor Ismênia

1o Nível Especial 2o Nível VIP 3o Nível Cadeira

Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” - as sonori­dades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

12 Essa e as demais imagens (até a 11) foram obtidas em http://www.galo- m ineiro.com .br/fotos__de_arena_independencia_do_atletico_m ineiro- -igfa-0-62286-l.htm e alteradas eletronicamente para fins da pesqui­sa. Acesso em 23 ago. 2010,

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Fascínio nas arquibancadas 2 1 9

Figura 7 - Localização dos gravadores de áudio no momento2 da pesquisa de campo realizada em 31 de junho de 2013 naArena Independência

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Momento 2Setor Pitangui

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Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” - as sonori­dades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

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Figura 8 - Localização dos gravadores de áudio no momento 3 da pesquisa de campo realizada em 31 de junho de 2013 na Arena Independência

Momento 3Setor Pítanguí

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Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” - as sonori­dades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

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Fascínio nas arquibancadas 22 1

Figura 9 - Localização dos gravadores de áudio no momento4 da pesquisa de campo realizada em 31 de junho de 2013 naArena Independência

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Setor Ismênia

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Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” - as sonori­dades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

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2 2 2 Esporte e mídia: novas perspectivas. A influência da obra de Hans Ulrich Gumbrecht

Figura 10 - Localização dos gravadores de áudio no momen­to 5 da pesquisa de campo realizada em 31 de junho de 2013 na Arena Independência

Momento 5Setor Pitangui

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vip1 - gravador XY

2 - gravador O RTF

Setor Ismênia

1o Nível Especial 2o Nível VIP [ ■ J 3o Nível Cadeira

Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” — as sonori­dades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

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Fascínio nas arquibancadas 223

Momento 6Setor Pitangui

Figura 11 - Localização dos gravadores de áudio no momen­to 6 da pesquisa de campo realizada em 31 de junho de 2013na Arena Independência

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2 - gravador ORTF

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1o Nível Especial 2o Nível VIP B i 3° Nível Cadeira

Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” - as sonori­dades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

As gravações das duas ocasiões foram posteriormente sincronizadas no computador em um software de edição. Isso possibilitou que se escutasse simultaneamente de diversas re­giões da arquibancada. Na barra de comentários, anotava-se o que se ouvia e os comentários eram coloridos de modo a identificar em qual gravador se escutava aquele som. No caso de sons escutados em dois gravadores diferentes, era utilizada

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uma cor resultante da combinação das cores associadas aos gravadores em questão.

O que se escuta da torcida em gravações no estádio

O primeiro fato a se notar a respeito dos experimen­tos realizados é que cada sistema de gravação utilizado produz uma sonoridade diferente, embora captem as mesmas fontes sonoras, com diferentes graus de definição, quando localiza­dos em pontos muito próximos. Arranjos m/s, conforme es­perado, apresentam um foco bastante presente no centro do panorama estéreo, mantendo, ainda assim, uma boa separação entre os lados direito e esquerdo da gravação. Enquanto isso, as gravações em ORTF e binaural aproximam-se mais da escu­ta humana natural (a gravação em binaural apresentou, contu­do, menor definição, soando um pouco saturada e com menos presença de graves que os outros dois arranjos). Outro ponto importante a notar é a correspondência existente entre certos acontecimentos da partida e sons emitidos pela torcida em ge­ral. Embora semelhantes em duração e intensidade, a vibração por um gol perdido ou evitado foram sonoramente diversas: a primeira surgiu como ansiedade com um grito de “Uhhh!” e a segunda como vibração por meio de aplausos. Na segunda gravação em campo, percebemos que, após algumas ocasiões de gois perdidos pelo Atlético Mineiro, a mesma canção de in­centivo, com os dizeres: “Oôô, ôôô, vai pra cima deles, Galô!”, é entoada. Os sons produzidos por gois marcados e sofridos foram diversos em todos os parâmetros: gois marcados foram precedidos por vibrações de ansiedade e produziam uma in­tensa e duradoura massa sonora - era necessário diminuir o ganho dos pré-amplificadores dos gravadores para que o re­gistro não saturasse e distorcesse - seguida, de maneira geral pelo hino do clube, ou canções da organizada. Gois sofridos

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Fascínio nas arquibancadas 225

eram precedidos por ordens de ação aos jogadores e segui­dos por sons menos intensos do que os anteriores, sobretudo xingamentos e vaias. Canções de incentivo à equipe, como o “Oôô, ôôô, vai pra cima deles, Galô13” (Galo é a mascote do Clube Atlético Mineiro) eram entoados ao final das reclama­ções. Certos anúncios no autofalante são comemorados, no caso de um gol sofrido por um rival direto, ou acompanhados por gritos de exaltação do jogador, repetindo o seu nome, no caso de substituição de alguém que atuou na partida de modo satisfatório.

Aqui, notamos algo importante, que diz respeito a uma relação entre o jogo do momento e os jogos anteriores do cam­peonato corrente ou de outros que acabaram de se encerrar, apontando para como o momento do time influi no estado de espírito da torcida. A primeira gravação de campo aconte­ceu em momento desfavorável ao time do Atlético Mineiro. Embora a equipe viesse de vitórias no Campeonato Minei­ro, o futebol apresentado não estava ao gosto da torcida: uma importante vitória contra seu principal rival, o Cruzeiro, no início do torneio regional, havia animado os torcedores, mas a euforia inicial foi frustrada por uma derrota para outro rival importante na cidade, o América de Belo Horizonte e pela eliminação precoce na Copa do Brasil, pelo inexpressivo Grê­mio Prudente. Dessa maneira, antes do primeiro gol, a torcida manifestou-se de modo raivoso, para qualquer pequeno erro ou jogada malsucedida do Galo. Com o placar inaugurado, as reações tornaram-se mais amenas; e, à medida que o elástico placar de 7 a 1 era construído a favor da equipe atleticana, a reação que se afirmava na torcida era de crescente alegria.

13 Inserimos aqui o acento circunflexo no “o”, contrariando as regras ortográfi­cas do português, para ressaltar a forma como a torcida pronuncia o apelido do time, ressaltando o fonema “o”, em sua pronúncia fechada, o que por outro lado também a prolonga na duração da melodia que a acompanha.

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Na segunda ocasião, presenciamos uma situação com­pletamente diferente. A equipe do Atlético conquistara a Copa Libertadores da América havia urna semana, e urna der­rota da equipe reserva por 4 a 1 para o arquirrival Cruzeiro não desanimara os torcedores. O futebol burocrático apresen­tado, embora tenha ocasionado alguns momentos de manifes­tação de insatisfação, não impediu a comemoração do gol, aos 30 minutos do segundo tempo. Nem a expulsão do atacante Bernard, em decorrência da comemoração exagerada do ten­to marcado, produziu grande comoção negativa da torcida, que só passou a xingar o jovem talento, após o sufoco sofrido pela equipe em decorrência do número reduzido de jogadores, e dos dois gois sofridos num período de 10 minutos. Ainda assim, a torcida entoou o grito cunhado durante a disputa da Libertadores “Eu acredito!”, quando uma falta próxima à área foi marcada nos acréscimos da partida, e ao termino da disputa, cantou “E campeão!”. Estas observações confirmam o caráter ciclotímico do torcedor brasileiro, conforme expresso por José Miguel Wisnik. Ele afirma que “A excitação propor­cionada pelos esportes decorre, fundamentalmente, da expe­rimentação das ambiguidades proporcionadas pelo desenrolar dos eventos próprios à sua dinâmica” (Wisnik, 2008, p. 337).

No que diz respeito às distintas sonoridades presentes no estádio, o primeiro ponto, e mais claro a se notar, é a diferente ocupação da arquibancada. Nos dois estadios observados, a torcida organizada ocupa espaço atrás de um dos gois; e outros tipos de torcedores, o restante da arquibancada, conforme a figura 12. Mas há diferenças ainda nos sons produzidos em diferentes fileiras destas regiões. Próximo ao campo, os torcedores dirigem-se diretamente a certos jogadores que estão próximos. Na torcida organizada, durante todo o primeiro tempo, o goleiro do América de Teófilo Otoni, que defendia o gol próximo, ouviu xingamentos que atacavam sua

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Fascínio nas arquibancadas 22 7

masculinidade, proferidos por um mesmo torcedor, durante todo o período - perguntamo-nos se seu desempenho foi afetado por este fato, já que se não falhou em nenhum dos gois, também nao “operou nenhum milagre” em tentativas de evitá-los. Um zagueiro da mesma equipe também ouviu xingamentos semelhantes aos remetidos ao goleiro e à sua forma física, depois de contundir-se ao sofrer um drible desconcertante. Na “torcida comum”, eram dadas ordens e elogios a jogadores do Atlético que ali se posicionavam. Tal situação também se observou no jogo contra o Atlético Paranaense, quando no primeiro e no segundo momentos da gravação, registrou-se no gravador posicionado a frente do Setor Especial Pitangui, diversos torcedores, entre eles crianças, xingando. Já no meio da arquibancada, comenta- se o jogo mais constantemente, gritando-se para todos os jogadores, de acordo com os acontecimentos da partida. Chamou-nos especial atenção, na segunda gravação, a presença de dois torcedores, nas cadeiras Pitangui, situados próximos ao meio de campo, que comentavam como as alterações realizadas no intervalo da partida mudavam o esquema tático do time. Um deles chegou a falar com outra pessoa localizada em outro local, provavelmente em casa, pelo telefone celular, comentando tais alterações. Estes torcedores também preveem a jogada ensaiada que será realizada na saída de bola. Tal análise se mostrou muito mais próxima da análise realizada pelos comentaristas das redes de tevê, do que os comentários de eventos isolados, registrados nas laterais no mesmo setor, ou mesmo próximo à torcida organizada. É nas regiões centrais da arquibancada que também se concentram os vendedores de bebida e alimentos, com seus pregões, e os melhores pontos, dentro da torcida organizada, para registrarem-se as letras das canções entoadas.

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Figura 12 - Dispersão da torcida na Arena Independência.

Disposição da torcida Setor Pitangui

Torcida Vip v ip

sócio torcedor especial

Fonte: Pesquisa “Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção” - As sonori­dades nas dinâmicas de produção da torcida de futebol.

Outro ponto a se destacar é a difusão de certos sons na arquibancada. O hino do Atlético e a canção Vou festejar, de Jorge Aragão, sucesso na voz de Beth Carvalho, iniciam-se na torcida organizada e se espalham pelo estádio. Algumas can­ções compostas pela torcida organizada seguem a mesma di­nâmica a depender dos acontecimentos do jogo. Na primeira gravação de campo, registramos o grito de “olé”, enquanto o time atleticano toca a bola, já com o placar mostrando seis a um, e o canto “Galo, Galo”, em referência à mascote da equi­pe. Em ambos os casos, o estádio inteiro ecoa o grito iniciado

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Fascínio nas arquibancadas 22 9

pela torcida organizada, cinco segundos antes. Verifica-se uma rápida e eficiente forma de contágio sonoro, equivalente ao que Gabriel Tarde descreve em A opinião e as massas (Tar­de, 1992, pp. 184-5). Na segunda gravação, pode-se notar também o papel disruptivo do eco nestas dinâmicas. O está­dio Independência possui arquibancadas muito altas, que o transformam em uma grande e eficiente caixa de ressonância. A reverberação resultante faz com que a torcida soe mais in­tensa do que realmente se apresenta. Contudo, confunde os diversos setores da arquibancada, o que não impede o contá­gio sonoro, mas faz com que diferentes setores da arquibanca­da entoem o mesmo canto de forma defasada.

Considerações finais

A partir dos experimentos explicitados, vislumbramos algumas possibilidades de utilizar equipamentos de gravação de som e técnicas de registro sonoro para observar a relação entre a torcida na arquibancada e os acontecimentos em cam­po em uma partida de futebol. Verificamos que tais equipa­mentos tornam-se importantes ferramentas para o registro de prática social que varia de acordo com o espaço e o tempo, so­bretudo quando os gravadores registram uma larga duração e também se movem dentro do espaço. A partir dos experimen­tos, percebemos também que não há necessidade de utilizar dois gravadores em um mesmo setor da arquibancada, já que os sons que se apresentam ao fundo da paisagem sonora pro­duzida, e que representam uma resultante sonora da torcida, são constantes em ambos os gravadores.

Uma abordagem que prevemos ser mais eficiente para observações de campo futuras no estádio Arena Independên­cia, onde o Atlético Mineiro manda a maioria de suas partidas, será a de empregar três gravadores, situados, cada um, em um

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setor da arquibancada, como as laterais do campo e atrás de um dos gois, onde se situa a torcida organizada. Os gravado­res das laterais podem ainda se movimentar, acompanhando um tempo nas Cadeiras e outro no Setor Especial. Os três gravadores podem ainda locomover-se dentro de cada área, fixando-se por dez minutos em um dos cantos, dez minutos na região central e dez minutos no outro canto. Os setores vip podem ser ignorados, pois houve menor ocorrência de sons neles, apresentando, por quase todo o tempo, o som resultante da torcida. Estes procedimentos serão testados em observações posteriores. Por meio de tais procedimentos, acreditamos de­senvolver uma útil ferramenta que possibilita registrar o fascí­nio da torcida frente aos acontecimentos do esporte manifesto na presença sonora por ela produzida.

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Uma partida em imagens: Instagram, futebol e Materialidades

da Comunicação1

Débora Gauziski Fausto Amaro

Introdução

No cerne das ciências sociais e humanas, estaria em curso uma mudança no paradigma epistemológico e meto­dológico. Enquanto a sociologia clássica, herdeira do pensa­mento e do método de Émile Durkheim, foca-se no sujeito- no homem como o grande eixo sob o qual o mundo gira e enquanto único produtor de sentido - , a “nova” sociolo­gia, vinda do resgate dos ideais de Gabriel Tarde por Latour e outros autores, pleiteia um olhar mais detido para os objetos (os não humanos ou inumanos), uma vez dotados de agência e em constantes associações com os entes humanos, nas cha­madas redes sociotécnicas (Latour, 2012). A própria noção de modernidade e pós-modernidade é posta em xeque por esses autores,2 vide o livro Jam ais fom os modernos (Latour, 1994).

1 Esta é uma versão atualizada do artigo publicado na Revista Logos (UERJ), v. 37, pp. 82-95, 2013”.

2 Para uma discussão sobre conceito de moderno ao longo da história, com base na reflexão de Gumbrecht, ver o artigo de Araújo (2006).

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2 3 4 Esporte e mídia: novas perspectivas. A influência da obra de Hans Ulrich Gumbrecht

Outro deslocamento presente nessa sociologia das asso­ciações (Latour, 2012) ou sociologia das ciências e das técnicas (Callón, 1997) está na abordagem metodológica. Ressalta-se que a tradição moderna ocidental adota a hermenêutica, na interpre­tação3 de textos e imagens, como fonte primordial de obtenção do conhecimento e método legítimo de seu fazer científico. Bru­no Latour, Steven Shaviro, Michel Callón, Hans Gumbrecht e outros teóricos, por sua vez, mudam a perspectiva na descrição dos objetos pesquisados. Para esses autores, devemos esgotar um objeto por meio justamente de sua descrição. No decorrer desse processo descritivo, encontraríamos as respostas e os achados que procurávamos inicialmente, ou não, mas apostas erradas também fazem parte da ciência.

Um dos principais autores a documentar esse processo de “virada” epistemológica e empírica foi Hans Ulrich Gumbrecht. Em seu livro Produção de presença (2010),4 logo nos dois primei­ros capítulos, fornece aos leitores um elucidativo panorama dessa dicotomia entre modos de fazer ciência, com a reunião de um cor­po de pesquisadores que refletiam sobre a dimensão material dos objetos. Gumbrecht é adepto da Teoria das Materialidades, que, apesar das proximidades com a Teoria Ator-Rede de Latour, não é a mesma coisa que ela. Ambas se assemelham primordialmente na atenção aos suportes e no reconhecimento de sua importância.

3 Esclarecemos o sentido em que utilizamos essa palavra ao longo do texto: “Interpretar o mundo quer dizer ir além da superfície material ou pene­trar nessa superfície para identificar um sentido (isto é, algo espiritual) que deve estar atrás ou por baixo dela” (Gumbrecht, 2010, p. 48).

4 Para uma crítica dessa obra, sugerimos a leitura da resenha de Daher e de sua tréplica (2011a, 2011b), bem como da resposta de Gumbrecht à resenha e à tréplica (2011a, 2011b). Nesse debate, de argumentos apaixo­nados de ambos os lados, destacamos a diferenciação que Daher (2011b) expõe entre sentido e significado e a explicação de Gumbrecht para como essa dicotomia epistemológica aparece em sua obra. Disponível em http:// observatoriodacritica.com.br/polemicas/polemica-entre-andrea-daher-e- -hans-ulrich-gumbrecht/. Acesso em 09 jul. 2012.

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Uma partida em imagens: Instagram, futebol e materialidades da Comunicação 23 5

No campo da Comunicação e Esporte, no qual este ca­pítulo se encaixa, os trabalhos utilizam-se majoritariamente de uma perspectiva clássica, como demonstraremos à frente, seja em abordagens históricas ou sociológicas. Tentamos aqui propor um novo olhar para essa interface, seguindo a linha dos autores das materialidades.

Desse modo, neste trabalho, propomo-nos a analisar as formas de apropriação do Instagram, aplicativo de compartilha­mento de imagens, por torcedores de futebol. A partir de algumas tags referentes à final da Libertadores de 2012, efetuaremos uma investigação acerca do conteúdo e da materialidade das fotos pos­tadas. Como principal referencial teórico, utilizaremos as contri­buições do alemão Hans Gumbrecht nos livros Elogio da beleza atlética e Corpo e form a, nos quais ele propõe um novo caminho para estudar o esporte.

Na primeira parte do artigo, abordaremos mais detida­mente essa virada epistemológica em direção a uma nova sociolo­gia, documentando sucintamente o que alguns autores das Ma­terialidades propuseram sobre ela. Em seguida, traçaremos um panorama dos estudos no campo da Comunicação e Esporte, atentando para os autores citados e perspectivas teóricas traba­lhadas nessa interface. Aqui, traremos ainda a contribuição de Gumbrecht para pensarmos o esporte por outro viés. Na terceira seçao, abordaremos a questão da produção de presença por meio das fotos postadas pelos usuários do Instagram. Por fim, virá a pesquisa empírica, propósito primeiro desse artigo.

Cultura de presença: prestando atenção no mundo material

Nesse primeiro tópico, desejamos elaborar um breve pa­norama das materialidades e do crescimento da importância dos não humanos nas teorias sociais, focalizando principal­

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23 6 Esporte e mídia: novas perspectivas. A influência da obra de Hans Ulrich Gumbrecht

mente nas proposições de Hans Ulrich Gumbrecht. E, se ain­da há dúvidas sobre a real necessidade de tratar dessas teorias para falar do esporte, indagamos o que seriam a bola, as luvas, as chuteiras, os carros, os cavalos, as lanças, as armas, os ócu­los, os tacos, as raquetes, as traves, senão inumanos dotados de tal agência que os torna essenciais para o desempenho de todas as modalidades esportivas. A importância das materialidades pode ser resumida assim: “As condições concretas de articula­ção e de transmissão de uma mensagem influem no caráter de sua produção e recepção” (Rocha, 1998, p. 18). “O conceito quer repensar a hermenêutica, pressupondo uma dicotomia entre materialidade, uma presença das coisas e situações num nível de ‘realidade’ fora da interpretação, e, de outro lado, as respectivas interpretações” (Hanke, 2006, p. 2).

O pensamento sobre as materialidades começou a “ga­nhar corpo” com os coloquios organizados na década de 1980 por Gumbrecht em Dubrovinik (cidade da então Iugoslávia). Pode-se dizer que uma proposta de superação da hermenêuti­ca como metodologia hegemônica saiu das cinco edições desse evento, reunidas no livro M aterialities o f com munication, or­ganizado por Gumbrecht e Karl Pfeiffer (1994). Atualmente, essa corrente teórica está sendo desenvolvida por “pesquisado­res do Departamento de Literatura Comparada da Stanford University” (Felinto, 2001, p. 1). A despeito da importância desses pesquisadores da literatura, Simone de Sá reforça uma genealogia da materialidade dentro dos estudos comunicacio- nais; não nega a contribuição da Literatura, mas antes “con- textualiza sua reflexão” (2004, p. 3).

Essa mudança foi denominada por David Wellbery de “crítica pós-hermenêutica” e tinha alguns pontos-chave de re­flexão, quais sejam: “exterioridade, m edialidade e corporalida- de” (Rocha, 1998, p. 20, grifos do autor). Em poucas palavras, um campo não hermenêutico se funda no seguinte pressu­

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Uma partida em imagens: Instagram, futebol e materialidades da Comunicação 23 7

posto: “a possibilidade d e tematizar o sign ificante sem necessa­riam ente associá-lo ao sign ificado” (Gumbrecht, 1998, p. 145, grifos do autor). A materialidade dos significantes, mais explo­rada aqui teoricamente, é, para Gumbrecht, apenas um dos quatro campos em um “mapa não hermenêutico” e é nela que se inclui a materialidade da comunicação (pp. 146-7).

Trabalhar com a materialidade dos suportes implica conceder importância aos objetos e pensá-los enquanto parte de uma rede, que engloba todos os atores responsáveis por uma ação. Na perspectiva hermenêutica, essa concessão não seria possível, uma vez que é o homem o senhor de todos os objetos e quem lhes atribui sentido. Assim, por exemplo, o ato de apreciar uma imagem no Instagram implica uma conjun­ção entre fotógrafo, fotografado, câmera (celular ou tablet), filtros utilizados, ambiente de captura da imagem (ao ar livre, em casa, em uma festa, em um estádio etc.), espectador, su­porte de visualização, formando uma verdadeira rede sociotéc- nica, nos termos latourianos.5 Esse desvio no foco de análise para fatores externos ao produto comunicacional é um ponto que deve ser enfatizado. Pensar o jornal, a fotografia, a tevê e a internet não somente pelos seus conteúdos, mas, sim, em sua materialidade e nos efeitos que essa experiência de recep­ção diferenciada causa no público. Reiteramos que, ainda que próximas e em diálogo, a Teoria das Materialidades não deve ser confundida com a Teoria Ator-Rede de Bruno Latour.

5 Exemplificando essas redes sociotécnicas ou coletivos híbridos, Bruno La­tour cita a “rede Pasteur”. “O argumento [de Latour] é que Pasteur não era uma única entidade, não somente um corpo e uma alma [...] Ele, ao invés disso, era a combinação de um grande número de diferentes elementos que produziram o grande-pesquisador-Pasteur” (Callon e Law, 1997, p. 3, tra­dução nossa). Esses dois autores, Callon e Law, são contundentes ao afirmar que “Pessoas são redes. Dispositivos são redes.” (1997, p. 3, tradução nossa). Nesse exemplo, vemos os objetos dotados de agência e em constantes asso­ciações aos entes humanos.

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Breve estado da arte dos estudos sobre esporte/futebol e a contribuição de Gumbrecht para o campo

Inicialmente, na década de 1970, durante o regime militar no Brasil, o futebol era trabalhado por poucos au­tores das Ciências Sociais no país e sempre com um viés apocalíptico. Era uma situação de descaso mesclado com críticas — uma consequência direta da influência marxis­ta no período, sintetizada pela frase: “o futebol é o ópio do povo”. Podemos citar o livro Futebol: id eo log ia do p o ­der, de Roberto Ramos, como exemplar do cunho marxista predominante. Ramos (1984) trabalha o futebol enquanto aparelho ideológico do estado, apropriando-se do conceito original de Althusser. Posição mais branda, mas igualmente crítica, tem José Carlos Rodrigues. Em seu artigo “O rei e o rito” (1982), o antropólogo brasileiro adota uma pers­pectiva crítica em relação à construção da figura mítica de Pelé, que, segundo ele, esconde uma tentativa de imposição de uma “reverência a uma imagem politicamente forjada da sociedade” (1982, p. 18). O objetivo central de Rodrigues é interpretar a festa de despedida de Pelé como um rito.

Ainda que o vissem como “perverso”, esses autores apo­calípticos do futebol defendiam mais estudos sobre o tema, como Joel Rufino dos Santos, no artigo “Na CBD até o pa­pagaio bate continência” (1978). A evocação desse descaso ao futebol como objeto de análise sociológica era lugar-comum no início de toda obra que trabalhasse com o tema.

O primeiro trabalho a romper com essa lógica apoca­líptica foi Universo do fu teb o l: esporte e sociedade brasileira, organizado pelo antropólogo Roberto DaMatta. Sua impor­tância não se esgota no ineditismo do livro, mas no que ele representou para todo um campo de estudos ainda recente. O nome de DaMatta, já reconhecido nacionalmente, agregou

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prestígio e relevância aos estudos sobre esporte. Além disso, ele trouxe uma nova perspectiva teórica, que lidava com o es­porte enquanto “drama da vida social”, e não mais como mero instrumento político a serviço das elites políticas e da classe dominante. O futebol, para o antropólogo brasileiro, era vis­to como um instrumento válido para se entender a sociedade brasileira (um meio para se alcançar determinado objetivo).

Antes dessa obra emblemática de DaMatta, Muniz So- dré, no último capítulo de O monopólio da fa la (1977), apesar de seu tom marcadamente pessimista, já apresentava sinais de um olhar mais benevolente com relação ao esporte, como no excerto: “a torcida [...] faz parte necessária do show” (Sodré, 1977, p. 141). Helal salienta que “o texto de Sodré [...] talvez tenha sido a primeira análise acadêmica sobre futebol inserida mais clara e assumidamente dentro da área da ‘Teoria da Co­municação’” (2011, p. 17).

O debate entre Soares (2001a, 2001b), Helal e Gordon (2001), reunido no livro A invenção do pa ís do fu teb o l, foi pe­remptório para dotar de maior seriedade e apuro científico as investigações sociais em torno do futebol. O primeiro critica­va a postura de alguns intelectuais e jornalistas que utilizavam o livro O negro no fu teb o l brasileiro como fonte histórica única e inquestionável para seus escritos. Enquanto os outros dois defendiam uma relativização dessa perspectiva: não citar de modo acrítico, mas continuar utilizando a obra de Mário Fi­lho com ressalvas, contextualização do período em que o livro foi escrito e maior apuro teórico.

Um ponto recorrente dos estudos está no diálogo entre futebol e identidade nacional. Inúmeros artigos e livros em Ciências Sociais foram produzidos sobre o tema. Inicialmente, destacava-se a importância daquele esporte para a construção de um ethos nacional, enquanto atualmente estaríamos viven- ciando uma diminuição nessa associação. A fonte básica para

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essas análises era o discurso midiático, principalmente por meio dos jornais impressos, em época de Copa do Mundo.

Assim, vemos como o futebol segue uma trajetória que vai do ocaso até o destaque como temática válida dentro das ciências sociais, passando de ópio do povo a drama social e, finalmente, um meio para entender a cultura e a sociedade. Todas as perspectivas e abordagens, por mais diversas e con­traditórias, tiveram sua importância para o desenvolvimento do campo. E válido destacar que, em 2010 e 2011, várias re­vistas na área de Comunicação dedicaram dossiês à temática do esporte, como a Organicom (USP), a Logos (UERJ) e a Co­municação, M ídia e Consumo (ESPM). Além disso, o Inter­com 2012 também deu destaque às pesquisas sobre esporte, adotando como tema geral “Esportes na Idade Mídia: Diver­são, Informação, Educação”.

De modo geral, as obras utilizadas como referência pe­los autores brasileiros nessa breve história dos estudos acadê­micos sobre Esporte focam-se no paradigma hermenêutico e em uma cultura de sentido. Para explicitar esse pouco uso de autores da Materialidade e o predomínio da hermenêutica, efetuamos uma análise das bibliografias utilizadas em todos os artigos apresentados no GP Comunicação e Esporte (den­tro do DT 6 — Interfaces Comunicacionais) do Intercom Na­cional 2011, realizado em Recife. No total, foram coletados 24 artigos, que juntos somaram 346 entradas bibliográficas. Desse total, apenas um fazia menção à obra de um autor das Materialidades — Gumbrecht: “O espetáculo do futebol” de Márcio Telles da Silveira e Fabrício Silveira. Se considerarmos McLuhan como um autor antecipador de alguns pressupostos da Teoria das Materialidades, teríamos mais um artigo: “A in­ternet como meio de protesto”, de Andréia Gorito. Por outro lado, os autores da sociologia clássica são mais lembrados. Por exemplo, Eric Hobsbawm tem suas obras citadas em quatro

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ocasiões; Pierre Bourdieu, em três; Stuart Hall, em duas; Guy Debord, em quatro.

Neste momento, faz-se necessário expormos rapida­mente qual seria a contribuição da obra de Gumbrecht aos estudos sobre esporte. Antes, porém, falaremos rapidamente quem é esse teórico alemão.

Quem é Gumbrecht?

Discípulo de Hans Robert Jauss, na Universidade de Bo- chum, Gumbrecht fez parte da segunda geração da Escola de Constança, que defendia uma estética da recepção6 como teoria e método literários. Desde 1989, é professor de literatura compa­rada da Universidade de Stanford, nos EUA, e conta com uma formação acadêmica globalizada, tendo estudado em Paris, Mu­nique, Salamanca e Constança. Além disso, periodicamente, desde a década de 1970, vem ao Brasil para ministrar cursos e palestras.7 Com 26 anos, já havia obtido a certificação acadêmica alemã (Habilitatiomschrifit), o que lhe permitia orientar doutores- válido enfatizar o quão difícil é obtê-la; Walter Benjamín, por exemplo, não a conseguiu (Rocha, 1998, p. 7). Seus interesses são tão plurais quanto sua formação, passando dos esportes à política, tendo como suporte teórico tanto a filosofia quanto a história e a literatura. Seus trabalhos convergem “em torno da rubrica das ‘materialidades da comunicação’” (Silveira, 2010, p. 184). Sua busca é por uma maior igualdade, de atenção e de quantidade de trabalhos, entre os paradigmas hermenêuticos (ou clássico) e não hermenêuticos. Em uma linha evolutiva dos estudos de mídia,

6 Em poucas palavras, essa corrente acadêmica, inaugurada por Jauss em opo­sição ao estruturalismo então em voga, foca no leitor e nas condições sócio- -históricas em que sua leitura se processa.

7 Para entender um pouco da influência brasileira em Gumbrecht e de seu afeto pelo nosso país, ver Antoniolli e Batalhone (2009).

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podemos dizer que Gumbrecht resgata o ideário mcluhaniano, que aproxima os meios de comunicação da experiência sensível.

Gumbrecht e o esporte

A influência da teoria das materialidades perpassa todos os textos de Gumbrecht utilizados como base para o presente artigo. Ele reitera, sempre que possível, que “[...] é um equívoco crer que as humanidades e as artes devam lidar exclusivamente com fenô­menos constituídos de significação e não com fenômenos basea­dos na substância” (2011a, p. 3). Destaca também a importância do fascínio exercido pelo esporte sobre as pessoas para a continui­dade e o sucesso do mesmo. Sem essa vontade e prazer dos tor­cedores em estarem presentes nos eventos esportivos, estes, com certeza, não ocupariam o lugar de destaque que hoje possuem em nossa sociedade. Não podemos esquecer de mencionar o caráter crítico relacionado ao esporte que permeia alguns trechos de sua obra, afastando-se do tom almejado por sua história descritiva.8

Ressaltamos, ainda, a visão diferenciada do esporte efe­tuada por Gumbrecht, por meio das noções de materialidade e presença, buscando nele um signo para experiências estéticas, e não apenas um meio para a produção de sentidos. Daí, a ênfase na observação dos corpos e de sua perfeição atlética, que nos proporcionariam prazeres efêmeros, inexplicáveis hermeneuti- camente e extracotidianos. A dimensão da presença se concreti­

8 Sobre isso, é interessante notar que o próprio Gumbrecht é reticente quanto às suas reais condições de fazê-lo. Vejamos: “No que segue, eu gostaria de me abster de julgamentos de valor. No entanto, como minha ‘socialização intelectual’ teve lugar na tradição alemã, sou levado a considerar qualquer esperança de realizar este desejo como ingênuo” (1998, p. 118). No livro Em 1926: vivendo no limite do tempo, logo nas primeiras linhas, ele escla­rece seu modus operandi, que se assemelha muito à sua proposta de história descritiva e a uma ética não hermenêutica: “Cada verbete abstém-se tanto quanto possível de ‘expressar’ a voz individual do autor, de interpretações profundas e de contextualizações” (Gumbrecht, 1999, p. 9).

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zaria na assistência ao vivo de um espetáculo esportivo, dotado de beleza artística singular, distinta de outras esferas da arte e da cultura. Pensar o esporte, pelo viés da teoria das materialidades, implica considerar as condições sócio-históricas e materiais da recepção (no estádio, em casa, no bar, pela tevê, pelo rádio), e a produção de presença que lhe é inerente.

Destacamos, porém, que Gumbrecht não exclui essa di­mensão interpretativa. Ele apenas postula que algumas experiên­cias prescindem dessa interpretação - assim, seriam mais sensação do que sentido. No caso do esporte, ele tende a crer que dimensão de presença seria maior que a de significado. Mas ele não opta pelo caminho mais fácil teoricamente de substituir, de modo ex- cludente, uma pela outra. Antes, tenta conciliar as duas perspec­tivas, destacando mais, é claro, aquela que diz respeito a seu cor- pus teórico de referência — a presença. Ressaltamos, também, que Gumbrecht sempre procura relativizar suas afirmações, evitando cair em determinismos, justamente um dos fatores que critica na hermenêutica. Ele não afirma que as ciências sociais devam li­dar somente com objetos que sejam essencialmente permeados de presença. Pelo contrário, ao longo de todo o livro Produção de presença (2010), ele afirma que alguns objetos e culturas parecem ser mais propícios a uma análise pelo viés da presença, enquanto outros, realmente, devem ser lidos pela hermenêutica.

As imagens do esporte também produzem presença, como ficará mais bem demonstrado nos tópicos seguintes.

Produzindo presença no Instagram

O Instagram9 é uma ferramenta gratuita de compar­tilhamento de imagens para celulares e tablets com sistema

9 O nome é uma junção dos termos da língua inglesa “instant" e '‘telegram’, referência às imagens como forma de enviar mensagens a outras pessoas. Endereço oficial disponível em http://www.instagram.com.

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operacional iOS (gadgets da Apple) e Android.10 Por meio des­sa aplicação, é possível adicionar filtros às fotos tiradas, que remetem à estética da fotografia analógica (cores esmaecidas ou que remetem ao processo cruzado de revelação11 são alguns deles). O formato quadrado (proporção 3:2) das fotos produ­zidas também é característico das antigas câmeras instantâne­as Polaroid (convém observar que o ícone do aplicativo é uma dessas máquinas fotográficas em miniatura, uma referência explícita a elas por parte dos desenvolvedores).

Lançado em 2010, o Instagram tinha uso limitado aos celulares iPhone. Pouco tempo depois de ser comprado pelo Facebook - em abril de 2012, em uma transação histórica na internet, no valor de 1 bilhão de dólares - , foi liberado para usuários do sistema Android,12 tornando-se mais popular. Hoje há mais de 50 milhões de usuários ao redor do mundo.

Além da questão estética das fotos, o aplicativo é uma rede social, sendo possível comentar e “curtir” as fotos - embora tam­bém possua integração com Facebook, Twitter, Foursquare e Fli- ckr, permitindo a divulgação das imagens em redes exteriores ao Instagram. O texto divulgado por seus criadores no site oficial atribui à ferramenta uma característica de comunhão por meio de imagens: “Estamos construindo o Instagram para que você possa experimentar momentos da vida de seus amigos através de suas imagens. Imaginamos um mundo mais conectado através

10 Apesar de ter sido desenvolvido originalmente para uso exclusivo em dis­positivos móveis, o aplicativo foi apropriado não oficialmente por alguns sites para utilização em desktops e notebooks, como é o caso do Webstagram e também do plug-in Instagram for Chrome, que possibilita a visualização da timeline no próprio navegador.

11 Essa prática consiste na revelação de um filme cromo utilizando a química própria para filmes negativos (C-41). Esse “erro proposital” torna as cores das fotos mais vivas, com fortes tons amarelados e esverdeados.

12 Inicialmente, os usuários da versão para iPhone não gostaram da notícia, pois não queriam a popularização do aplicativo (já que gostavam de ter ex­clusividade), o que causou uma rixa com os novos usuários.

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de fotos”.13 Também há um sistema de tagging, semelhante ao do Twitter, por meio do qual é possível buscar fotos que foram marcadas por determinadas hashtags (como #fmallibertadores, que analisamos nesse trabalho).

Neste capítulo, relacionamos o Instagram com a perspecti­va gumbrechtiana, considerando o aplicativo como um “produtor de presença”: “ [...] é verdade que alguns efeitos especiais’ produzi­dos hoje pelas tecnologias de comunicação mais avançadas podem revelar-se úteis no re-despertar do desejo de presença” (Gumbre- cht, 2010, p. 15). A “intensidade da concentração” (Gumbrecht, 2007, p. 45) no esporte poderia ser registrada por uma foto, que congelaria esse momento único de êxtase, sem, contudo, ser capaz de voltar a reproduzi-lo em toda sua intensidade. A materialidade da experiência se faz aqui presente. A presença produzida pela as­sistência do espetáculo esportivo ao vivo é, para Gumbrecht, espe­cial e incomparável. Ao transpormos para outro suporte, como a tevê, o papel, o celular ou o tablet, ela transmitiria uma experiência distinta daquela originalmente vivida pelos presentes no estádio.

A narrativa da final da Libertadores 2012 por torcedores no Instagram

Notas sobre a pesquisa

Nesta etapa do trabalho, inspirados pelas reflexões gumbrechtianas, conduzimos uma análise a partir das ima­gens publicadas no Instagram sobre a final da Taça Libertado­res da América de 2012, disputada entre Corinthians e Boca Juniors. Para tal, selecionamos quatro tags: #finallibertadores (75 fotos), #fmallibertadores2012 (três fotos), #corinthiansx-

13 Tradução nossa. Texto original disponível em http://instagram.com/about/ faq/. Acesso em 25 jul. 2012.

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boca'4 (82 fotos) e #corinthiansxbocajrslc> (oito fotos). No total, até o dia 28 de julho de 2012, as quatro tags totalizavam 168 fotos.16,17 Inicialmente, atuando como um filtro preliminar para a análise principal, efetuamos uma análise de conteúdo, estabelecendo categorias para as imagens. Essa tipologia será peremptória para a exposição subsequente, partindo do prin­cípio que as imagens são capazes de nos contar uma história- no caso, o relato da final do torneio.

Digno de menção é a busca por visibilidade utilizando hashtags que estão em voga, a fim de divulgar sua imagem entre outras mais vistas da rede, assim como já ocorre no Twitter. Nesses casos, fica evidente a ordenação das tags priorizando outras que não aquelas referentes ao jogo em si. Por exemplo, estava em nosso corpus de análise a foto de quatro amigos em roupas triviais, sem nenhuma referência clubística. As tags uti­lizadas para marcar a foto foram ordenadas da seguinte forma: #amigos, tiirmãos, #companheiros, #prasempre, #finallibertadores e #prime. Isso revela, de certa maneira, o desejo de promover a amizade do quarteto por meio de um evento em destaque na rede mais do que demonstrar amor e apoio ao clube.

Percebemos, de modo marcante, como as fotos do Ins­tagram captam sentimentos comuns à assistência ao vivo do

14 Não analisamos uma foto, postada pela usuária shirleyfarias, por estar pre­sente também na tag #finallibertadores.

15 Não analisamos uma foto, postada pelo usuixio felipehenrique, por estar pre­sente também na tag #finallibertadores.

16 Esse número refere-se às fotos abertas ao público, já que há perfis privados que só podem ser visualizados por usuários autorizados. Assim, o número de fotos informadas pelo Instagram em uma tag nem sempre é o número real, ou seja, o número de fotos abertas à visualização de todos.

17 Ao pesquisar novamente as mesmas hashtags no Instagram em 11 de junho de 2014, pudemos perceber que o número de imagens aumentou em cada uma delas. Não conseguimos também rastrear algumas das fotos que selecio­namos naquele primeiro momento (em 2012) e, por essa razão, suspeitamos que elas tenham sido excluídas ou que os perfis que as postaram original­mente tenham se tornado privados.

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futebol e foram eles que nós utilizamos para descrever o que foi o jogo. Na narrativa dos jornais, o Corinthians empatou o primeiro jogo da final ( l x l ) e ganhou o segundo jogo por 2x0, conquistando sua primeira Taça Libertadores. Na narrativa imagética, os protagonistas são os torcedores que experimen­taram a vitória com um misto de sensações e sentimentos.

Estabelecendo categorias

Nessa análise de conteúdo, elaboramos quatro catego­rias, que nos possibilitam ter uma visão panorâmica do uni­verso de imagens trabalhado. Importante destacar que aqui se evidencia o caráter mais estético do Instagram, ou seja, a multiplicidade de formas de imagem possíveis de ser encon­tradas e os diversos filtros, enquadramentos e formas presen­tes. Assim, propomos a seguinte tipologia: 1) torcida (fotos da torcida no estádio ou de pessoas em ambientes públicos, como bares, ou em seus lares com vestimentas alusivas aos clubes fi­nalistas ou a rivais); 2) exibicionismo (fotos de si, sem ou com ínfima referência ao clube); 3) hibridismo (fotos tiradas da tela da tevê, do computador ou celular); e 4) avulsas (escudos de clube, memes, pôsteres, provocações).18

Dito isso, expomos a seguir os resultados obtidos. Tam­bém se encontra disponível on -lin e um quadro com exemplos emblemáticos das quatro categorias.19

18 Algumas fotos podem pertencer a mais de uma das categorias definidas neste trabalho. Por exemplo, algumas fotos de “torcida” apresentavam também traços característicos de “exibicionismo”.

19 Disponível em https://www.dropbox.com/sh/yvzj8qmdj4b70t5/AADivJn- Fa40kJUaIfhbk781sa e http://ldrv.ms/llfJVSh. Optamos por disponibili­zar as fotos on-line, e não no corpo do artigo, a fim de evitar problemas de uso de imagem.

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Figura 1 - Gráfico de distribuição percentual das categorias criadas

Tipologia

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■ Torcida

■ Exibicionismo

Hibridismo■ Avulsas

Fonte: Dados próprios obtidos na realização da pesquisa.

O jo g o pelas imagens dos torcedores

Feita essa breve distinção tipológica, pensemos agora o potencial do Instagram enquanto suporte de memória. Acreditamos ser possível recontar um episódio a partir das imagens que foram produzidas sobre ele e “subidas” ao apli­cativo. Gumbrecht, em seu livro Elogio da beleza a tlética (2007), critica a falta de obras sobre história do esporte que enfocassem a “presença” nesses espetáculos: “A maioria dos livros e ensaios sobre a história do esporte está cheia de relatos biográficos ou dados cronológicos, mas raramente oferece materiais ou até sugestões para nossa imaginação visual” (2007, p. 69). Desse questionamento, propusemos- -nos outro: Por que não pensar um acontecimento histórico

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do futebol sob a perspectiva de imagens e dos sentimentos ali expostos? E, indo além, uma história produzida pelos torcedores, o polo receptor do espetáculo esportivo, já que são eles que “alimentam” o Instagram com imagens. Con­templamos, assim, a dimensão do esporte assistido, e não apenas do esporte praticado (Gastaldo, 2004, 2006 apud Telles e Silveira, 2011, p. 8).

As categorias expostas anteriormente nos ajudaram a entender quais momentos e propósitos são mais prezados pelos torcedores. A partir delas, traçamos uma linha não se­quencial dos sentimentos presentes nessas imagens.20 Longe de ser fruto de uma interpretação profunda das fotos, esses sentimentos estão na dimensão da presença. São expressões que saltam aos nossos olhos assim que nos atemos à imagem no visor de nosso sm artphone ou tablet. Buscamos aqui pro­duzir presença por meio das imagens (materialidade imagé- tica) e propiciar um reviver da partida. Assim, identificamos alguns sentimentos suscitados pelas fotos: “Amizade”, “In­diferença”, “Paixão em família”, “Alegria”, “Concentração”,í£D * 1* J J ” ccr» · « r 1 ^ ”Rivalidade , raixao , re e Comunhão .

Um passado-presente: novas observações sobre o corpus do artigo

Revisando este artigo para a publicação no livro, per­cebemos algumas mudanças com relação ao corpus analisado previamente, no ano de 2012. Algumas evidências apresenta­ram-se quanto à dinâmica do tempo histórico no Instagram e da materialidade deste enquanto fonte de pesquisa. Esperáva-

20 A narrativa imagética encontra-se disponível on-line nos seguintes endereços: https://www.dropbox.com/sh/yvzj8qmdj4b70t5/AADivJnFa40kJUaIfiib k78lsa e http://ldrv.ms/llfJVSh. Optamos por disponibilizar as fotos on- -line, e não no corpo do artigo, a fim de evitar problemas de uso de imagem.

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mos poder acessar facilmente as fotos selecionadas na análise, já que tínhamos os nomes dos usuários que as postaram.21 En­tretanto, percebemos que a quantidade de fotos nas tags ha­via aumentado, dificultando o processo de localização destas. Curiosamente, mesmo a tag #finallibertadores2012, relativa ao ano específico de 2012, sofreu esse aumento. Ou seja, mesmo após a ocorrência do evento, o jogo final da Copa Libertado­res em 2012, os usuários continuaram postando novas fotos. Podemos perceber aqui, então, que o tempo do Instagram não é linear. Mesmo as fotos antigas postadas na plataforma po­dem ser “marcadas” utilizando-se novas hashtags (no campo dos comentários, por exemplo), sendo atualizadas dentro de um novo fluxo temporal. Contudo, também pode ocorrer o inverso, uma foto recente ser “marcada” com uma tag antiga, atualizando os registros relativos ao tempo passado. Esse jogo entre presente e passado nos revela que o arquivo de imagens do Instagram não é hermético e está em constante construção.

Dependendo da intenção de quem pesquisa o Insta­gram, essa característica da plataforma pode ser um “proble­ma”, já que não é possível precisar categoricamente o tempo das imagens postadas. Assim, destacamos que a pesquisa no Instagram não pode ser conduzida da mesma forma que a rea­lizada por meio de mídias “estáticas”, como jornais impressos e acervos iconográficos tradicionais, pois ele está em constante atualização e reapropriaçao, no que concerne tanto à materia­lidade (imagens podem ser apagadas, por exemplo) quanto ao fluxo simbólico (novos comentários, hashtags etc.).

Por meio dessa dificuldade de localizar imagens antigas no Instagram, percebemos ainda mais os elementos presentes na

21 Cabe salientar que utilizamos o site Webstagram para realizar essa pesquisa de hashtags, pois a versão do Instagram para brotvsers até o momento não apresenta essa opção. Temos aqui outra característica material da plataforma que impactou na produção do artigo.

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rede que permeia a plataforma. Em acordo com o pensamento de Latour (2012), destacamos que é também nesses momentos de ruído ou defeito na funcionalidade dos objetos que nota­mos os intermediários que nos pareciam “invisíveis, não sociais” tornando-se “mediadores visíveis, disseminados e reconhecidos” (Latour, 2012, p. 120). Ou seja, o que poderia ser um problema no caminhar da pesquisa trouxe à tona uma nova percepção acerca da dinâmica e da materialidade do Instagram.

Considerações finais

Neste artigo, conseguimos entrar em contato com um corpo teórico relativamente novo e pouco utilizado nos trabalhos em Comunicação que enfocam o esporte como tema. Utilizar o Instagram como objeto e fonte de dados foi outra, digamos, “novidade”, tanto para-nós quanto para o campo de Comunicação e Esporte. A Teoria das Ma­terialidades e o objeto pesquisado (tags de um evento es­portivo no Instagram) mostraram-se profícuos para outras futuras incursões.

Após a realização da pesquisa empírica, algumas obser­vações sobre as formas de apropriação do aplicativo de ima­gens pelos torcedores vieram à tona: 1) os usuários postam mais fotos da tela da tevê do que do campo de jogo, o que nos possibilita afirmar que assistem ao jogo principalmente de casa e que não se preocupam muito com uma pretensa beleza artística das imagens capturadas; 2) há um alto grau de exibi­cionismo entre os usuários, que optam por tirar fotos que en­fatizam mais seus corpos e rostos do que o emblema e as cores do seu time do coração; 3) são retratadas diversas formas de torcer que reproduzem em imagens estáticas os sentimentos envolvidos na experiência estética “real” (no estádio) e ao vivo (mediada pelo suporte televisivo em lares ou espaços públicos);

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4) a partir do Instagram, é possível reviver, por meio das emo­ções presentes nas fotos dos usuários, o que foi o evento es­portivo; 5) há um número considerável de memes, pôsteres e imagens não produzidas pelos próprios usuários do aplicativo, mas apenas compartilhadas por eles, o que desvirtua, de certo modo, o objetivo inicial do Instagram.

Poderíamos continuar indefinidamente traçando con­jecturas sobre a apropriação do Instagram pelos torcedores, mas cremos que aquelas aqui avultadas já nos permitem per­ceber como a interface Instagram e esporte pode ser afetada positivamente pela Teoria das Materialidades da Comunica­ção e, a partir de suas proposições, construir novos corpus de pesquisa, enfoques temáticos e investigações epistemológicas. Terminamos por concluir que o esporte, sendo fundado no corpo, e o Instagram, pela materialidade dos suportes e das imagens, são exemplares de uma cultura de presença na con- temporaneidade. Mesmo sem nos preocuparmos tanto com as motivações “profundas” dos usuários, o que seria hermenêuti­co demais, foi possível extrair uma instigante análise das ima­gens a partir dos sentimentos “presentes” em sua camada mais superficial, acessível a um olhar interessado não em sentidos, mas, sim, em presença.

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O esporte como a mais bela marginalidade da vida: articulando estética, comunicação e cultura1

Allyson Carvalho de Araújo

Espaços de afirmação do esporte: possibilidades de afirmação do esporte

Ao tentar mapear os investimentos em estudos sobre esporte, seja na área de comunicação ou mesmo nas ciências sociais, é perceptível uma recente emergência do debate sobre essa manifestação. Ao que parece, a manifestação esportiva careceu por muito tempo do prestígio social que outras ma­nifestações sociais já detinham. Este tipo de inferência já foi colocado há décadas por Dunning e Maguire (1997, p. 322) ao destacarem que “aos olhos da maioria dos defensores das te­orias sociológicas que predominam atualmente, o esporte não levanta nenhum problema significativo”.

Também na estética o esporte permaneceu silenciado, em sua vivacidade ordinária e marginal, por muito tempo. Enquanto matéria filosófica que inicialmente foi entendida como “disciplina que tenta sistematizar racionalmente a di­

1 Este texto é uma versão revisada e ampliada do artigo “Transformações do esporte: estética e regime de visibilidade (pós) moderno”, publicado na pela revista Pensar a prática — UFG.

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versidade de experiências da beleza na arte” (Feitosa, 2004, p. 110), a estética tem atualmente buscado abrir seu olhar para diversas formas de experiências que não se restringem ao artístico. Na negociação para assumir-se enquanto objeto es­tético, várias manifestações sociais, entre elas o esporte, vêm adquirindo defensores dentro do próprio campo artístico-in- telectual. Autores como Gordon Graham (1997), Wolgang Welsch (2001) Bertold Brecht (Bornheim, 1992) e Maurice Nédoncelle (Suassuna, 2008) têm apontado um movimento concêntrico para debater o esporte pelo viés estético, como já apontamos anteriormente (Araújo, 2009, 2012).

Contudo, pensamos que foi na fala do pensador alemão radicado nos Estados Unidos, Hans Ulrich Gumbrecht, que este apontamento do modelo de distinção e segregação sobre manifestação esportiva perante o prestígio social e intelectual apareceu de forma mais contundente. Na fala do referido au­tor, os intelectuais, ao aplicarem ao esporte as suas ferramentas de análise, têm insistido na consideração da marcação ideoló­gica e mercadológica do esporte, considerando-o até mesmo como uma “conspiração biopolítica” e interpretar tal prática social com “um sintoma de tendências altamente indesejá­veis”. Gumbrecht, em uma de suas obras mais difundidas no Brasil, coloca que:

E bem provável que a referência ao esporte como a “mais bela marginalidade a vida”, que há tempos ganhou popularidade na Alemanha (d ie schõnste nebensanche d er Welt), seja a carac­terização mais positiva e solidária que possamos encontrar en­tre os representantes da alta cultura. “Marginalidade”, aqui, não se refere exclusivamente à ausência de funções práticas do esporte em nosso cotidiano. A literatura, a música clássica e as artes visuais têm a mesma ausência, mas ninguém se atreveria a chamar as sinfonias de Beethoven, as odes de Keats ou os

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afrescos de Giotto de marginais. Na realidade, a referência à marginalidade do esporte funciona como advertência bem- -humorada sobre o risco de levar os prazeres que ele oferece a sério demais (Gumbrecht, 2007, p. 27).

Após defender a inserção do tema esportivo para o cerne do debate acadêmico, o professor de literatura, que se dá o luxo de transitar por tantos temas e abordagem, traz em Elogio da beleza a tlética uma abordagem pouco comum de tratar o esporte, inclusive no próprio campo da Educa­ção Física. Com o foco no fascínio provocado pelo esporte, preocupa-se muito mais em problematizar a manifestação esportiva como uma experiência estética do que sua nature­za unicamente agonística. Gumbrecht, que inicia seu livro a partir de memórias de torcedor, traz argumentos a par­tir da intensidade do esporte, da comoção provocada pela manifestação, para enfatizar a necessidade de pensarmos os fenômenos esportivos e sua centralidade crescente em nossas vidas.

Do ponto de vista estético, Porpino (2003, p. 148) também fomenta a noção de que “a visão do esporte como espetáculo também reflete significativamente essa presença dos elementos estéticos atrelados à prática esportiva e aponta para a questão da apreciação do esporte como possibilidade de vivência estética”. Assim, a associação entre esporte e estética pode também, além da intenção de legitimação social da prá­tica esportiva, ser relacionada com uma leitura mais profunda da própria compreensão do fenômeno esportivo.

Em outra publicação, Gumbrecht (2009) trabalha com a ideia do reencantamento dos espectadores a partir da apre­ciação esportiva, como forma de arrebatamento possível no esporte e que propõem uma busca não utilitarista de um ele­mento social perdido historicamente. Nas palavras do autor:

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[ . . .] parece evidente que podemos nos referir à prática de esportes e ao fato de assisti-los como “estratégias” sociais. Por enquanto ainda não é claro o que exatamente essas práticas podem substituir na cultura contemporânea, e enquanto nós não as associamos a um único propósito ou a uma função mais ampla, há uma impressão de que a crescente presença e importância dos esportes hoje substituíram algo - e devem de fato estar substituindo algo - que nós perdemos (Gum­brecht, 2009, pp. 2-3).

E nessa interrogação, neste investimento do que em que o esporte pode nos suprir, enquanto experiência ordinária e ao mesmo tempo singular em nosso cotidiano, que se coloca no conjunto da obra de Gumbrecht, ao se dedicar à reflexão do esporte. Em paralelo, outros autores como Maffesoli (1996) apontam que é o enlace sensível, portanto estético, que pro­duz o amálgama social. Assim, seja pelo ritual sagrado, pelo culto ao corpo ou pelo prazer, todas as estruturas culturais que delineiam as práticas competitivas ou protoesportivas nos di­versos espaços históricos transcorrem da abordagem estética.

Tentando superar a negligência do debate estético para o esporte (Welsh, 2001; Gumbrecht, 2007), sobretudo no que diz respeito a uma melhor compreensão desta manifes­tação cultural, gostaríamos de observar os enredos sociais que configuram o esporte. Estes, acreditamos nós, apresentam significações estéticas peculiares que extravasam a instituição esportiva para difratar-se no conjunto cultural.

A partir das ideias de Olalquiaga (1998), pensamos na ideia de sensibilidade cultural para fundamentar a noção de estética que transversaliza este estudo. Desse modo, corrobo­ramos com a compreensão de que as experiências e propensoes sociais são frutos de uma vivência indireta, mediada por um terceiro elemento que, em grande medida, são representados

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por imagens que dão relevo a uma “predisposição coletiva para certas práticas culturais” (Olalquiaga, 1998, p. 16).

E neste intuito que neste texto buscaremos indicios na formação social e estética do esporte. Para tanto, procurare­mos delinear indicativos estéticos da era moderna e também da contemporânea, problematizando suas implicações para a constituição do esporte. O investimento não pretende acionar debates entre modernismo e modernidade ou pós-modernis- mo e pós-modernidade, mas sim elencar as conjecturas sociais que fazem emergir a estética de um período e como esta se infiltra nos objetos culturais, tais como o esporte.

O debate teórico entrelaça autores, sobretudo da área das ciências dos esportes/Educação Física e da comunicação, e organiza argumentos de convergência em prol de urna esté­tica do esporte, termo utilizado por Bernard Jeu em sua obra Analyse du sport.

O esporte nao se sentirá estranho, ele que é frequentemente perseguido, vivido, representado como urna fabulosa his­toria, com seus heróis mitológicos, os campeões [...] Daí a necessidade de uma estética do esporte. Ele é comunicação e criação (Jeu apud Meló, 2006).

Também se utilizam produções cinematográficas como indicadores do debate, pela crença de que estas formulam a representação do imaginário social de um tempo, mesmo que sua produção recaia sobre tempos distintos de sua produção. Neste sentido:

Ambos, cinema e o esporte, ainda que também sejam capa­zes de nos alienar e nos fazer voltarmos contra nós mesmos, como toda atividade desnaturalizada, são os melhores exer­cícios, imaginários e reais, respectivamente, que inventamos

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para ampliar nossa própria medida humana” (Ruiz apud Melo, 2006, p. 71, tradução nossa).

Os apontamentos remontam ao pensamento da moder­nidade no século XIX e início do século XX, bem como refle­xões do contemporâneo. O resgate histórico almejado nesse texto incorre no risco natural de invenção do passado (Hobs- bawn, 1998). Neste sentido, buscaremos não uma cronolo­gia linear ou sequencial de fatos, mas a formulação de ideias fundamentais de momentos históricos na intenção de perce­ber mudanças sociais. Adotaremos, tal como Bracht (2002), a perspectiva de que o esporte constitui-se de um espelho da estrutura social mais ampla e a que considera que o esporte se configura dentro de si como dispositivo de regulação do ritmo cultural para sua significação e ressignificação.

A estética esportiva na modernidade

Mesmo considerando os apontamentos esportivos pos­teriores, é na Idade Moderna que se constrói a sistematização de práticas distintas que se aglutinam sob a rubrica de esporte. O que chamamos de esporte moderno é resultado de um proces­so de racionalização do sistema social e produtivo na emergência de uma sociedade capitalista industrial. Podemos dizer que:

a racionalidade científica, característica da modernidade, cujo paradigma hegemônico estava voltado para a identifi­cação das leis inerentes às coisas ou fenômenos, com o obje­tivo de aumentar nosso poder/controle sobre esses [...], foi coprodutora do esporte moderno; ou então, que o desenvol­vimento do esporte moderno se dá no mesmo caldo socio- cultural em que se desenvolveu a ciência moderna (Bracht,1995, p. 38).

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Sob a marcada sistematização, a cultura moderna inaugu­ra um escopo social definido em grande proporção por questões tecnológicas, demográficas e capitalistas que apontavam para uma experiencia de vida urbana atrelada à rapidez, ao caótico, à fragmentação e à intensidade de estimulação sensorial (Sin- ger, 2004). Giddens (1991) aponta que a modernidade produziu uma série de descontinuidades, primeiramente rompendo com os modelos de ordem social que os precedeu, que impossibi­litam a aplicação de uma teoria evolucionista para justificar a transformação social. Segundo este autor, as instituições sociais desta época diferem-se de maneira drástica de suas antecessoras por características gestadas no período moderno, como: o ritmo de mudança (que se liga diretamente à dimensão tecnológica), o escopo da mudança (ampla possibilidade de interconexão glo­bal) e a natureza inerente às instituições modernas (transforma­ção em mercadoria de produto e trabalho assalariado).

Não sem razão, também na história do esporte identi­ficam-se descontinuidades, sobretudo na construção de um modelo compatível com a ordem social da modernidade, ca­pitalista e industrial.

Quando o barão de Coubertin lançou a ideia de revitalizar os jogos Olímpicos, ele o fez porque também acreditava no continuum entre os esportes da Antiguidade e os da Moder­nidade - ilusão muito cara aos europeus do final do século XIX. Embora hoje ainda seja possível observar vestígios des­sa visão romântica, na verdade como tentarei demonstrar, a história do esporte é marcada por descontinuidades signifi­cativas (Gumbrecht, 2007, p. 66).

As características das sociedades modernas influen­ciam diretamente as peculiaridades do esporte para atualizar seus valores e legitimar esta manifestação no cenário social.

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Dois desdobramentos emblemáticos podem ser destacados deste momento de formação histórica do esporte. Primei­ramente, é necessário dar destaque à institucionalização do esporte como prática corporal relativamente autônoma que detém função social e propõe uma forma específica de ação corporal que caminha para o alto desempenho. Em paralelo, é possível realçar a mercadorização desta prática esportiva, a ges­tação de uma perspectiva que prima pela espetacularizaçao da perform an ce corporal como uma possibilidade de valorização comercial atrelada ao jogo esportivo.

É nesse cenário que a estética do esporte moderno ten­ciona valores morais da Antiguidade com um projeto de socie­dade moderna. A força dessa intenção pode ser observada na obra de Hugh Hudson (1981), que remonta a cena do esporte com a retomada dos Jogos Olímpicos, já impregnado por valo­res modernos, no contexto da Inglaterra, país visto por muitos como berço do esporte moderno.

Em preparação para os Jogos Olímpicos de Paris, em 1924, dois dos maiores atletas da Inglaterra envolvem-se com dilemas morais na preparação para a competição. Embates entre profissionalismo e amadorismo, bem como relações re­ligiosas ainda permeando a prática esportiva, são questões revisitadas na produção que considera a progressiva infiltra­ção da lógica competitiva e de rendimento herdada pela con­juntura moderna.

A competição evidente que já permeava o esporte, res­peitando a lógica da igualdade de oportunidades, da especia­lização de papéis, da organização burocrática e da quantifica­ção, fornecia elementos que impregnação das características modernas ao esporte sem, no entanto, resistências diversas de um formato anterior de esporte. No filme, o embate da crença religiosa dialogada com a busca pela vitória demonstra uma face desta resistência.

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Em Carruagens d e fo g o ,2 o dilema entre o amadoris­mo e o profissionalismo reproduz a estrutura capitalista de emergência produtivista na especialização de papéis que, no esporte, é reconhecido na racionalização e na cientificização do treinamento. Neste sentido

O esporte é um dos principais vetores da ideia de um progres­so linear e infinito, cuja concepção de natureza é fortemen­te vinculada à produtividade e à tecnificação. As metáforas maquinais em relação ao corpo, tão típicas da modernidade, não são figuras de linguagem inocentes (Vaz, 2000, p. 75).

A busca pela sistematização de treinamento (racionali­zação e cientificização) caminhava atrelada ao projeto de es- quadrinhamento do rendimento corporal, potencializando o espelhamento e adequando-se à produção capitalista enquan­to ordem social vigente.

Na base da questão profissionalismo/amadorismo está pre­sente o conflito social básico da sociedade capitalista: capital x trabalho. As classes dominantes (burguesia e aristocracia) fizeram da apologia ao amadorismo uma estratégia de dis­tinção social; nele, no amadorismo, estava presente o ethos aristocrático — atividade realizada pelo simples prazer de rea­lizá-la, sem fins úteis, desinteressada, a arte pela arte (Bracht,2003, p. 100).

Se a apropriação pelo esporte de valores modernos mo­dificou seus sentidos sociais, esteticamente o esporte demons­trou sua negação ao passado romântico para exaltar o tecnicis­

2 Longa-metragem produzida nos Estados Unidos, em 1981, sob a direção de Hugh Hudson.

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mo. A representatividade do fenômeno esportivo e sua ligação com a estética moderna é evidenciada em Walter Benjamin. Vaz (2000) localiza em notas preparatórias para o ensaio sobre a reprodutibilidade técnica de Benjamin temas ligados ao es­porte e aos Jogos Olímpicos, em suas palavras.

Em suas anotações, Benjamin compara o esporte e os Jo­gos Olímpicos com a estrutura científica do taylorismo, antecipando em vinte anos as considerações que, nos anos cinquenta, a então incipiente sociologia do esporte faria a respeito da relação entre esporte e lógica industrial. Aos mo­vimentos do trabalho e da produção automatizada corres­ponderiam, até certo ponto, os do esporte, passíveis de por­menorizada análise. Fundamental para o esporte, segundo Benjamin, é seu caráter prescritivo, que subjugaria o com­portamento humano a uma severa medição em segundos e centímetros, colocando-o ao nível de uma elem entaridade física . As “Olimpíadas são reacionárias”, escreve Benjamin nas notas, sem levar, no entanto, essa ideia adiante no ensaio propriamente dito (Vaz, 2000, p. 69).

Outro indicativo das relações entre estética moderna e esporte é o levantamento detalhado que Melo (2007) faz das obras do movimento futurista. Em seu artigo, levanta elemen­tos da estética moderna, sobretudo a velocidade e a ideia de movimento, a partir de obras de Umberto Boccioni, Henri Gaudier-Brzeska, Wyndham Lewis e Vittorio Corona. Já no Brasil, artistas como Vicente do Rego Monteiro, Francisco Rebolo e Cícero Dias também retravaram esse movimento, destacando sua proximidade como o tema esportivo como forma de contraponto com a tradição e de representar urna sensibilidade estética que tivesse relação com a celeridade dos tempos modernos.

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Os futuristas detestam o que é rural, a paz da floresta, o mur­murio do riacho... Nós preferimos o homem enlouquecido pela paixão ou a loucura do gênio, os grandes municipios, o ruido metálico, o barulho da multidão. As pistas, as compe­tições esportivas, as corridas nos exaltam! O objetivo é para nós o maravilhoso símbolo da modernidade! (Bocciioni apud Meló, 2007, p. 206, tradução nossa).

O esporte apresenta-se como mais um elemento da cul­tura moderna que, ao que parece, tem duas possibilidades de abordagem para sua leitura estética. A primeira se dá na repre­sentação deste ñas obras de arte das vanguardas modernistas como elemento de cultura que representa bem as aspirações mo­dernas. A segunda repousa sobre o próprio rearranjo pelo qual passou o esporte a partir das influências do projeto moderno. Em ambos os casos, não é possível fugir à constatação de que

A dimensão estética da modernidade revitaliza o foco na racionalidade através da primazia das formas sobre os con­teúdos, e essa seria uma das principais maneiras de se des­vencilhar do caos moderno, ou de, pelo menos, tê-lo sobre o controle da racionalização. A criação de novos códigos, de diferentes modos de se construir as linguagens artísticas foi uma das principais preocupações do artista moderno/ modernista. A ênfase nos códigos (e na rigidez e seriedade destes códigos) resultou, portanto, na cada vez maior espe­cialização e fechamento das linguagens artísticas. A moder­nidade, através do(s) modernismo(s), tornou-se sistemáti­ca, institucionalizada e extremamente formalizante. O(s) modernismo(s) respondeu (responderam) primordialmente ao caos da vida moderna com a ordem do significante, com formas herméticas, com o ciframento das linguagens (Prys- thon, 2002, pp. 67-8).

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Para o esporte, como dito anteriormente, as repercussões sofridas foram no sentido da coisificaçao do corpo produtivo e a institucionalização de uma perform an ce como indicador da racionalização de rendimento corpóreo. A sistematização das regras, a cientificização do treinamento e o processo paulati­no de exibição esportiva e dos corpos atléticos gestando uma espetacularização do mesmo, todos esses elementos configura­vam uma estética tecnicista, repetitiva, calistênica e produti- vista do esporte moderno.

Atrelados a estas ultimas considerações do cenário mo­derno, é necessário dar destaque ao que Bergman (1990) nos fala sobre a Modernidade no século XX. Em suas palavras:

No século XX, nossa terceira e última fase, o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e acultura mundial do modernismo em desenvol­vimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento [...] A ideia de modernidade, concebida por inúmeros e frag­mentários caminhos, perde muito de sua nitidez, ressonância e profundidade e perde sua capacidade de organizar e dar senti­do à vida das pessoas. Em consequência disso, encontramo-nos hoje em meio a uma era moderna que perdeu contato com as raízes de sua própria modernidade (Bergman, 1990, p. 17).

Segundo os apontamentos, é no século XX que se abrem a possibilidade de representação e a percepção do mundo e se criam instâncias confusas e divergentes de conceber a vida. A desreferencialização apontada por Gumbrecht (1998) ganha sentido no momento de exacerbação do cenário moderno des­te período, tornando possíveis novos arranjos morais, éticos e estéticos ao tecido social. As consequências deste movimento a compreensão do esporte é o que nos mobiliza a continuidade do debate.

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O esporte contemporâneo e a estética: indicadores de multiplicidade

A multiplicidade de referências esportivas que atualmente agenciam corpos na contemporaneidade, bem como os formatos de disseminação destas práticas, propicia a polissemia de signifi­cados que permeiam o esporte atual. A imprecisão de conceitos e valores talvez se ancore na própria na pluralidade de referências que permeiam o contemporâneo. A chamada crise da moderni­dade e a posterior anunciação de uma pós-modernidade, indicada por Jean-François Lyotard ao apontar o deslocamento da cen- tralidade científica e a descrença no progresso via racionalidade (Fensterseifer, 2001; Giddens, 1991), promovem rupturas no contexto social e na produção cultural do contemporâneo. Nas palavras de Eagleton,

Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questio­na as noções clássicas de verdade, razão, identidade e ob­jetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas e os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do ilu- minismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpre­tações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas em relação às idiossincrasias e a coerência das identidades (Eagreton apud Prysthon, 2002, p. 66).

O que marca, portanto, a conjuntura do pós-moderno é a visibilidade do heterogêneo, a consideração da multiplici­dade e a atenção dada às especificidades de contextos parti­culares. Na visão do Maffesoli (1996), a pós-modernidade é uma colcha de retalhos constituída de elementos diversos que

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estabelecem conexões constantes. Na concepção deste autor, a abordagem estética é privilegiada para justificar e compre­ender o espírito pós-moderno. Maffesoli afirma, ainda, que o homem talvez seja produto da estética.

Na busca por uma compreensão mais específica para pensar a pós-modernidade no campo da representação, Gum­brecht (1998) nos diz que:

A versão filosoficamente mais interessante do conceito de Pós-modernidade, no entanto — e, penso eu, bem plausível —, consiste em conceber nosso presente como uma situação que se desfaz, neutraliza e transforma os efeitos acumulados dessas modernidades que têm se seguido uma à outra desdeo século XV. Essa Pós-modernidade problematiza a subjetivi­dade e o campo hermenêutico, o tempo histórico e mesmo, de um certo ângulo (talvez pela sua radicalização), a crise da representação (Gumbrecht, 1998, p. 21).

Contudo, a noção de pós-modernidade da sociedade contemporânea não é homogênea, sendo, por vezes renuncia­da por alguns pensadores que alegam que, não estamos em uma fase posterior à modernidade, mas antes em uma fase de radicalização de seu projeto (Giddens, 1991). Contudo, cabe ainda ponderar que, mesmo os que rejeitam a noção de pós- -moderno, admitem a “emergência de modos de vida e formas de organização social que divergem daquelas criadas pelas ins­tituições modernas” (Giddens, 1991, p. 58).

No território do debate estético desta condição pós- -moderna, o conceito de pós-modernismo aparece como crí­tica aos movimentos de vanguarda artística da modernidade, bem como de reflexão interna das produções anteriores e suas possibilidades combinatórias (Prysthon, 2002). Este tipo de reflexão transportada para o cenário esportivo aponta para as

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mudanças nos enfoques de apreciação e valoração dos espeta- culos esportivos contemporáneos. Se em contextos anteriores a valoração do esporte recaía unicamente no desempenho tec- nicista, cabe questionar o que hodiernamente fascina os espec­tadores do esporte.

Outras possibilidades de fascínios pelo esporte também são levantadas por Gumbrecht (2007). Este autor considera a leveza e a graça dos movimentos; os instrumentos de jogo como extensões do corpo do atleta que potencializam o de­sempenho; as formas e combinações dos esportes ditos “artís­ticos” (ginástica rítmica, nado sincronizado, ginástica artísti­ca), que até em suas metrificaçÕes de desempenho atribuem notas artísticas e/ de criação em seus códigos de pontuação; e também a jogadas esportivas como recombinações de técnicas que promovem o ato criativo no jogo esportivo.

A abertura a multiplicidades valorativas creditadas ao esporte também pode ser verificada nas produções cinema­tográficas que também têm dado visibilidade à descentrali­zação do viés performático do esporte, promovendo diálogo interessante sobre o que está contemporaneamente em jogo na valoração estética do esporte. Tomemos como exemplos três produções deste nosso século que tematizam um mesmo esporte. Os filmes Beautifu l boxer,3 M enina d e ou ro4 e Billy Elliot,5 a nosso ver, descentralizam o protótipo rude e viril do boxe, normalmente associado à masculinidade e ao vigor da força corporal.

3 Longa-metragem produzida na Tailândia, em 2003, sob a direção de Eka- chai Uekrongtham.

4 Longa-metragem produzido nos Estados Unidos em 2004, sob a direção de Clint Eastwood.

5 Longa-metragem produzido na Inglaterra, em 2000, sob a direção de Ste- phen Daldry.

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De maneiras distintas, cada produção produz um deba­te intrigante sobre a relação entre a delicadeza e a robustez sem deslocar a busca pela vitória própria do esporte. O primeiro, ao dar visibilidade à biografia de um dos principais campe­ões de boxe tailandês, Parinya Charoenphol, oferece a história de um sujeito que confunde a identidade máscula do homem bruto com um transexual vitorioso. A segunda obra proble- matiza o descrédito da figura feminina em atividade de vigor corporal, tal como o boxe, e, sobretudo, sua aptidão para o treinamento. Já a ultima produção apropria-se de um impasse moral de um garoto, localizado no seio da era industrial, ao seduzir-se por atividades corporais graciosas e de delicadeza creditadas às mulheres, tal como o balé, em detrimento de atividades vigorosas e másculas, tal como o boxe.

Três produções aclamadas e resultantes de processos de criação distintos, em realidades singulares de suas culturas. Não por acaso as representações nos três longas-metragens apresentados procedem de modo questionador à temática da força viril agressiva que foi forjada para o boxe no seio da mo­dernidade e que ainda tem repercussões na atualidade (Gum­brecht, 2007).

E a consideração dos sujeitos margeados pelo virtuosis­mo atlético que também vêm permeando a multiplicidade de esportes presentes no nosso contemporâneo. A máxima olím­pica do “mais alto, mas forte e mais veloz” atualmente deve ser acrescida de valores, como desejo, impulso, sonho e prazer.

A partir dos diversos fragmentos do cotidiano esportivo atual, seja no cinema, na tevê, nas ruas, nos centros de treinamen­to ou nas montanhas de escalada, fica clara a abertura da mul­tiplicidade estética, ou de sua abordagem, no esporte contempo­râneo que abriu seu leque de significação, de definição. De todo modo, mesmo resgatando outras dimensões estéticas, o esporte contemporâneo não perde sua identidade. A busca pelo resultado

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ainda é seu objetivo e disso não se furta. A valoração do que se entenda como belo ou inusitado no esporte tem mudado, mas a roda-viva deste gira em torno da vitória, é seu enredo e sua ordem, mesmo que esta história tenha um sentido plural.

A perfeição estética não é incidental para o sucesso esportivo, mas intrínseca. O que é decisivo para o sucesso esportivo é a perfeita performance. E esse fator, sobre todos os outros, que é esteticamente apreciado no esporte. Admiramos a elegância de uma esguia saltadora em altura quando, subindo e descendo, desliza seu corpo suavemente sobre a barra; ou a potência da cé­lere corredora cujas pernas espantosas explodem quando sentem se aproximar a linha de chegada — e essa é a razão de todo esse gosto em observar, inspecionar, mirar seus belos corpos durante e depois do evento, de modo que assim se possa melhor compre­ender suas realizações e melhor se surpreender ao vê-los cruzar tão inteiros e infatigáveis a linha de chegada. Nesse sentido, nós, como espectadores, temos razão em concentrar-nos na realidade dos corpos. E os atletas têm razão em buscar a perfeição de seus corpos e mesmo de exibi-los. No esporte, o estético e funcional andam de mãos dadas (Welsch, 2001, pp. 144-5).

Entre as visíveis modificações e a essência latente do es­porte, resta-nos a inquietante interrogação: em que medida o esporte atual se afasta de sua definição original de esporte mo­derno? Ou antes, é possível a partir das transformações atuais identificadas reconceituar esporte com o mesmo rigor?

O esporte e (pós) modernidade

As mutações próprias dos elementos da cultura ofere­cem significações distintas nos diferentes momentos históri­cos. A dessacralização das práticas corporais e a racionalização

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das mesmas para sistematizar o esporte são exemplos deste movimento. As transformações do contemporâneo têm apon­tado para outras modificações no esporte, fenômeno multirre- ferencial que agrega significação de que versam sobre a insta­bilidade, o virtuosismo e o prazer.

Neste cenário, é necessário refletir, e aplicar ao esporte, juntamente com Giddens (1991), se estamos em um período de radicalização do moderno ou se estamos em uma fase pós- -moderna. Já assumindo sua postura, este autor nos esclarece que “em vez de estarmos entrando num período de pós-mo- dernidade, estamos alcançando um período em que as conse­quências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas” (Giddens, 1991).

Indagamos se temos hoje um esporte hipermoderno ou pós-moderno. As peculiaridades polissêmicas apontam para características pós-modernas, mas a fixidez na competição ainda caracteriza o evento esportivo. Basta-nos refletir se esta questão é central.

Muito se tem falado da comercialização do esporte, ad­mitindo o consumo dos elementos da cultura como massifi­cação dos mesmos. Mas seria prioritariamente este o elemento que caracteriza o esporte contemporâneo? Essa massificação por si só nao pulveriza sua significação, não gera expectativas diferenciadas. Em verdade, pensamos que

Se por um lado, a expansão, divulgação e heterogeneização ampliam as fronteiras do esporte, tornando-o mais acessí­vel, por outro, esse crescimento também amplia a esfera de possíveis consumidores desse fenômeno. Essa diversidade de manifestações pode tanto oferecer oportunidades de melho­rias sociais, como também auxilia na divulgação e comercia­lização do espetáculo e de produtos ligados a ele (Marques et al., 2007, p. 1).

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Gera-se, sim, uma nova sensibilidade frente ao esporte contemporâneo, fruto de um novo regime de visibilidade e, paralelamente a este, uma nova significação (Valverde, 2007). Vê-lo, compreendê-lo ou identificá-lo não é tão simples como em outros momentos. Não obstante, este fenômeno mostra-se diferente em sua manifestação (modificações de técnica, regras etc.) e as formas de visibilidade dele também se modificaram. Sendo fiel ao conceito, não é possível falar de uma ideia de esporte puro (ou seria moderno?) justamente porque se faz necessário considerar sua espetacularização, sua virtualização (Betti, 1998) e suas diferentes entradas sociais, sejam elas em manifestação do esporte educacional, participação ou rendi­mento (Tubino, 1992).

Segundo os argumentos que buscamos elencar neste es­paço de reflexão, identificam-se modificações que questionam a ideia do esporte moderno, mas que ao mesmo tempo não negam os preceitos que o constituiu (competição, sistemati­zação do treinamento — racionalização). Admitindo que ne­nhuma destas considerações anula a outra, aponta-se como agenda de pesquisa a identificação dos elementos estéticos que permeiam esta multiplicidade de significações esportivas de modo a abarcar a uma síntese atual que possibilite pensar es­porte se não pós-moderno, mas neomoderno, como já apon­tava Fensterseifer (2001) sobre a educação física na crise da modernidade.

A busca por outros elementos no esporte que não vise somente ao rendimento e/ou vitória está inflacionando os va­lores a eles atrelados e isso desenvolve demandas de ordem estrutural nessa prática, tal como reivindicação de novas for­mas de visibilidade (mídias em geral), de acesso (cenários diversificados) e de experiências (Exergames, por exemplo). Faz parte dessas demandas o regresso ao sentido original do esporte, ligado a prazer, descanso, espairecimento, recreio e

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passatempo (Marchi Jr., 2008), não pelo regresso às demandas históricas, mas pela atualização das necessidades humanas, em que a vivência corporal nao se apresenta como meio de ação, mas como fim em si mesmo, por ser a portadora de emoções e sensações experimentadas. É nesse sentido que as conside­rações de Gumbrecht ao valorizar a intensidade, a comoção provocada pela manifestação e o reencantamento do sujeito pelo viés estético esporte, nos dão suporte para pensar essa manifestação tão ordinária, visceral e significativa para a socie­dade contemporânea.

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Seleção brasileira» futebol-arte e Gumbrecht: o fascínio pela

“amarelinha”

Filipe Mostaro

Introdução

Tentar entender o fascínio do ser humano pelo espor­te. Este desafio foi o que me motivou a ingressar no meio acadêmico. As lembranças de quando era criança e praticava o futebol e sentia um êxtase profundo ao marcar um gol em uma “simples” competição colegial marcaram minha infância. Assistir a uma partida de futebol no estádio aos 8 anos de idade e presenciar Zico marcar seu último gol com a camisa do Flamengo também é um momento inesquecível em minha memória. Por que toda aquela atmosfera criada quando eu estava dentro da quadra ou quando estava na arquibancada fascina tanto? Por que as pessoas idolatravam e elogiavam em demasia aquele camisa 10?

Eu cresci, e os questionamentos não mudaram. Acom­panhei, sem concordar, ponderações marxistas que enxerga­vam o esporte como objeto de manipulação e alienação do povo, como um aparelho ideológico do Estado, conforme Althusser (2012) o definiu. Não compreendi, já que em ne­nhum momento me senti manipulado ou um cidadão menos

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consciente ao acompanhar e me fascinar pelo esporte. Até por­que, qualquer governo pode tentar incorporar uma vitória à sua gestão; todavia, o inevitável e o imponderável, presenças incisivas e básicas do esporte, elucidadas por Gumbrecht, não permitem definições prévias de quem será o vencedor.

Em minha dissertação monográfica de graduação, estu­dei a influência dos meios de comunicação na carreira dos dois maiores jogadores de futebol que o Brasil já conheceu: Pelé e Garrincha1 e atualmente investigo como a imprensa nacional aborda o futebol-arte em copas do mundo.2 Em ambos os ca­sos, as reflexões pontuais de Gumbrecht abriram-me campos de pesquisas e investigações admiráveis com os quais compac­tuo e, de maneira aguda, influenciam as abordagens de tais objetos de pesquisa.

Neste capítulo, apontarei algumas observações sobre minhas pesquisas relacionando-as com as considerações de Gumbrecht e enfatizando a beleza estética indicada pelos meios de comunicação sobre o futebol-arte e as características peculiares que nos permitem elogiar e idolatrar atletas como Garrincha e Pelé.

Gumbrecht e a pesquisa nos esportes

Pesquisar coisas que nao sao palpáveis é complicado. Como dimensionar a intensidade das emoções que atletas des­pertam em seus fãs, seja os que presenciam, em todo o sentido que Gumbrecht dá a esta palavra, ou os que acompanham pelos meios de comunicação de suas casas? Esta é uma das grandes contribuições de Gumbrecht para a pesquisa em es­

1 O trabalho foi publicado em 2012 pela editora Juizforana com o título: Garrincha x Pelé: a influência da mídia na carreira de um jogador (96p.).

2 Pesquisa desenvolvida no programa de Pós-graduação em Comunicação da UERJ, orientada pelo professor Ronaldo Helal.

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porte em todo o mundo. Ao inserir o fascínio como algo a ser estudado na academia, ele propicia novos entendimento e rumo para as investigações esportivas.

Inicialmente, aponto que Gumbrecht esclarece a inter­pretação pessimista de alguns autores, como Norbert Elias, ao indicar o esporte moderno como um estágio da civilização oci­dental para controlar e subjugar corpos humanos. O pensador alemão também compreende o furor provocado pelas análises dos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, quando o uso do es­porte por Adolf Hitler, para mostrar a Nova Alemanha, prati­camente decretou - segundo alguns autores - o esporte como aparelho ideológico do Estado. Importante destacar que o con­texto da época instigava essas definições. Os Estados totalitá­rios e o agudo nacionalismo que aparecia de modo intenso na Europa fazia com que os governantes se utilizassem de todos os sistemas disponíveis para ampliar o poder e unificar o discurso nacionalista. Como Gumbrecht afirma: “Todas as instituições históricas foram ‘usadas’ por outras instituições e deixaram seus rastros nelas” (2007, p. 69). O início do século XX foi um mo­mento em que esses rastros apareceram no esporte.

Ademais, o estudioso aborda a necessidade de intelectuais de criticar e apenas criticar, como se fosse uma obsessão da cul­tura ocidental moderna em enxergar coisas obscuras e por de­trás de toda e qualquer atividade cultural exercida pelas classes ditas populares. Ainda para Gumbrecht, para a maioria das pes­soas que se consideram cultas, é difícil acreditar em experiências estéticas auspiciosas que acontecem em lugares nao demarcados previamente como espaços de arte. Os locais “próprios” para tais experiências seriam salas de espetáculo, museus, e nunca uma praça esportiva. Outro aspecto interessante de sua argu­mentação é a crítica a quem ainda considera o esporte o ópio do povo. Para Gumbrecht, por maior que seja a intensidade da vitória do time de coração e que esta dure longos dias, em ne­

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nhum momento a pessoa terá a ilusão de que aquela partida influenciará positivamente em sua vida econômica, profissional e pessoal, quanto mais na escolha dos governantes de um país, como muito procuram sugerir no Brasil. Relacionar um mo­mento esportivo vivido por um cidadão com sua escolha políti­ca é subjugar demais a inteligência dos eleitores.

Feitas tais ponderações, entendo a visão da pesquisa do esporte muito mais para seu entendimento do que para crítica feroz. Indicarei a seguir as relações do pensamento de Gum­brecht com o futebol-arte e com os jogadores Garrincha e Pelé e como, a partir destes elementos, se construiu um fascínio mundial sobre a seleção brasileira.

O futebol-arte com«} elemento da cultura nacional

O futebol foi um dos grandes pilares na edificação de uma identidade nacional brasileira. Iniciado de maneira mais inci­siva a partir da Semana de Arte de Moderna e das comemora­ções do Centenário da Independência, ambos em 1922, o pen­samento do que era ser brasileiro eclodiu mais definitivamente com a Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas. A ideia de unificar o país em torno de uma identidade nacio­nal encontrou várias interpretações e ideologias. Livros funda­mentais para o pensamento social brasileiro foram publicados na década de 1930. Dentre tais obras, destacamos Casa-gran- de e senzala, de Gilberto Freyre, a qual foi lançada em 1933. O livro difundia a ideia de mestiçagem, ou seja, a união das três etnias formadoras de nosso país - branca, negra e indígena —, como nosso diferencial entre outros povos, o que fez surgir o conceito de democracia racial. Assim, Casa-grande e senzala rompe com o pensamento racista que atribuía à miscigenação o motivo maior do atraso vivido pelo país. Intelectuais como Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha acredi­

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tavam que o “embranquecimento” de nossa população seria nossa salvação para o “atraso” (Ortiz, 2012).

Os pensamentos de Freyre encontraram terreno fértil durante o período Varguista do Estado Novo, no qual se pre­gava uma nova visão do povo brasileiro. Após intensas dispu­tas, a ideologia do governo, focalizada na presença positiva das três raças como formadoras de nossa sociedade, prevaleceu. Ao mesmo tempo em que a população foi deixando o campo para trabalhar nas indústrias recém-instaladas, um esporte inventa­do pelos britânicos foi conquistando mais adeptos. Antes tido como algo de elite, o futebol começou a ser praticado também pelos empregados das fábricas e foi-se espalhando pelo Brasil. Ao se tornar popular, tal esporte despontou como um exem­plo para a mestiçagem defendida por Freyre e pelo governo. Souza (2008) aponta a importância da obra de Freyre no con­texto histórico e político da época:

Os trabalhos de Gilberto Freyre possibilitaram uma visão original dos fundamentos do povo brasileiro. Neles, o negro, o índio e o colonizador português sempre tiveram funda­mental importância numa sociedade ajustada às condições do meio tropical e da economia latifundiária. A sua mensa­gem, de um Brasil antirracista e democrático, representou um divisor de águas no processo cultural brasileiro, influen­ciando a ideologia oficial do Estado Novo ao compor a figu­ra da democracia racial (p. 187).

Mais do que um elemento de nossa identidade, duran­te a década de 1930, a Seleção nacional de futebol tornou-se um dos símbolos da nação. Surgia, neste período, a intensa ligação do brasileiro com a equipe nacional e a crença no discurso que associava os 11 jogadores em campo à nação que representavam. Destacamos a participação brasileira

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na Copa do Mundo de 1938, disputada na França, onde o Brasil terminou na terceira colocação e Leônidas, artilheiro da competição com oito gois, foi exaltado pelos jornais eu­ropeus como o “Diamante negro” e o “Homem-borracha”. Pereira e Lovisolo (2014, p. 44) afirmam no artigo “1938: o nascimento mítico do futebol-arte brasileiro” que Leônidas “ganhou notoriedade mundial durante a Copa da França por causa de seu poder de improvisação, que passaria a caracte­rizar o futebol brasileiro”. Já os jornais franceses abordaram da seguinte maneira o estilo de jogo de nossos atletas: “Os brasileiros são perfeitos artistas com a bola nos pés. Dribles não são segredos para eles. Seus movimentos são ágeis e sua sutileza é notável. Um time formidável” (Almanaque das Copas: de 1930 a 2006. Lance Publicações, 2010, p. 33).

Além disso, nossa equipe foi enaltecida pelos jornais como uma autêntica representante nacional, conforme afir­mou Freyre em seu artigo “Foot-ball mulato”, publicado no Diário d e Pernambuco·.

[...] uma das condições de nosso triunfo, este ano, me pare­cia a coragem, que afinal tivéramos completa, de mandar à Europa um time fortemente afro-brasileiro. Brancos, alguns, é certo; mas grande número, pretalhões bem brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros (Freyre, 1938).

Ao falar sobre o estilo de jogo brasileiro na Copa de 1938 e a visão de Freyre, Bernardo Buarque de Hollanda (2004, p. 62) indica que:

ao moldar o esporte bretão ao jeito típico de jogar do mu­lato, o brasileiro privilegiou a qualidade individual em de­trimento da organização coletiva. A diferença baseada na

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habilidade e na surpresa seria a chave decifradora do sucesso brasileiro em partidas internacionais.

Marcos Guterman, em seu livro O fu teb o l explica o Bra­sil, também indica que a Copa do Mundo de 1938 é um mar­co para o futebol como identidade nacional:

O ano de 1938 é assim o marco histórico, se precisamos de um, da descoberta do Brasil como o “país do futebol”, unido de modo nacional à noção de brasilidade emanada de sua seleção em campos estrangeiros, jogando com características próprias e que, com o tempo, se tornariam indissociáveis da própria definição que o brasileiro faria de si mesmo (Guter­man, 2009, p. 84).

Segundo Soares, Bartholo e Salvador, no artigo “A imprensa e a memória do futebol brasileiro” surgia naquele momento o embrião do futebol-arte como algo tipicamente nacional:

No futebol brasileiro, a idealização do estilo de jogo do futebol-arte, representação que permanece muito forte até os dias atuais quando se refere à seleção brasileira, tem seu embrião em um artigo do intelectual Gilberto Freyre, escri­to para o Jornal Diário Associados de Pernambuco durante a Copa do Mundo de 1938 na França. “Foot-ball mulato” atribui características dionisíacas ao estilo de jogo brasileiro que estariam diretamente relacionadas aos elementos cultu­rais de um povo miscigenado. Criatividade, espontaneidade, malemolência seriam atributos do futebol brasileiro, oriun­dos da mistura das raças que formariam a Nação (Soares et al„ 2007, p. 5).

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Dessa maneira, o futebol se tornou um terreno fértil para a produção de significados, símbolos e representações do que é “ser brasileiro” (Hall, 2011, p. 51). Ao produzir sentidos sobre o brasileiro, o futebol teve um papel-chave na constru­ção de elementos relacionados com o jogo, que ultrapassavam a esfera esportiva e impactavam o imaginário social brasileiro (Soares et al., 2007). Franzini resume bem o momento vivido pelo Brasil naquela época, principalmente ao pontuar o rádio como outro pilar da identidade nacional:

Os anos 30 são um momento decisivo na relação entre o futebol e a sociedade brasileira. Enquanto o meio político- -cultural começa a redefinir as concepções acerca do “na­cional”, a popularidade do futebol é impulsionada tanto pelo desenvolvimento do rádio como meio de comunica­ção de massa quanto pela oficialização do profissionalismo dos jogadores, fato este que transforma o jogo em trabalho. O futebol, assim, estabelece-se como um meio de integra­ção e ascensão socioeconómica para as camadas populares — historicamente excluídas —, bem como se torna um dos elementos que viriam a caracterizar a identidade nacional brasileira (Franzini, 1997).

Outro fator é que, como aponta Gumbrecht, a forma e o ritmo dos movimentos encontrados nos jogadores vão ajudar a definir algumas tipologias de jogo. Em algumas jogadas, por serem compostas de movimentos singulares, encontraremos um determinado estilo - no nosso caso, o tipicamente nacional de praticar futebol, conhecido como futebol-arte. Tais “tipos” trazem, de forma generalista, alguns movimentos como genui­namente de tais atletas ou de tais países, o que nos ajuda a entender a formação de identidades esportivas e a criação de estilos nacionais. Para Soares e Lovisolo (2003), a imagem do

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que se determinou chamar de “estilo brasileiro de futebol” é a da alegria, do improviso, dos dribles, e serviu para a construção dos sentimentos de pertencimento a uma nação miscigenada. Ainda para Soares e Lovisolo (2011, p. 41), o modo singular de jogar dos brasileiros foi elaborado “em densas narrativas até se tornarem marcas de autenticidade, de diferença, de distinção, em resumo, de identidade”. Nota-se que as identidades foram traçadas, neste caso, como forma de distinção do chamado “es­tilo europeu de futebol”, supostamente fundamentado na for­ça e no desenvolvimento físico dos jogadores. Assim, ao longo dos anos, uma tradição de que o futebol brasileiro era o úni­co praticante do futebol-arte foi construída, muito por conta dos jogadores que o Brasil produziu nos anos que sucederam a Copa de 1938 e do destaque esportivo desses atletas nas de­mais Copas do Mundo. Podemos afirmar que tal alcunha tra­tou-se de uma tradição inventada,3 nos termos definidos pelos historiadores Hobsbawm e Ranger (2012, p. 9), por, principal­mente, ter sido formalmente institucionalizada.

Assim, as narrativas sobre o futebol-arte foram ganhan­do ecos com o passar do tempo, ao caminharem para a cons­trução do mito: apenas o brasileiro pratica o futebol-arte. Na Copa de 1950, por exemplo, após as vitórias no quadrangular final contra a Suécia (7 a 1) e a Espanha (6 a 1), é possível perceber os elogios exacerbados ao nosso estilo de jogo e, prin­cipalmente, a voz dos outros sobre nosso futebol, um dos fa­tores de consolidação e construção de uma identidade: o olhar do outro sobre nós (Hall, 2011). O jo rn a is Noite estampou

3 Segundo Hobsbawn, tais tradições teriam sido inventadas no contexto da Revolução Industrial com o objetivo de manter a identidade social de gru­pos que encontravam uma grande ruptura nos antigos costumes que antes costuravam as identidades sociais. A introdução de novas práticas ritualísti- cas, inspirada, algumas vezes, em um passado histórico e em mitos de fun­dação do grupo em questão, foi institucionalizada para a ressignificação das antigas identidades.

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como manchete de capa a opinião dos italianos, na ocasião, bicampeões mundiais (1934-1938), sobre o nosso futebol: “Esplêndida! Irresistível! Ultrapoderosa - assim a imprensa italiana classifica a equipe brasileira” (A Noite, 14/07/1950, p. 1). E completa com outro comentário dos jornalistas ita­lianos: “Jamais testemunhamos, em nossa carreira jornalística nos sports, fenômeno como o do Brasil”. Depois da vitória sobre a Suécia, o jornal A Noite publicou uma entrevista com o técnico do país nórdico, que declarou:

Perdemos para uma equipe que representa uma das forças máximas do fo o tb a ll mundial. O English team nem nenhum outro quadro teria chance frente ao jogo praticado, hoje, pelos brasileiros. [...] O team brasileiro apresentou-se em campo fazendo lembrar uma orquestra bem regida (A Noite, 10/07/1950, p. 12).

Já no periódico O Globo Sportivo, afirma-se que, mesmo depois da derrota para o Uruguai, o melhor time da compe­tição foi o brasileiro: “A qualidade do jogo foi extraordinária e todos os peritos europeus concordaram nesta afirmação que nunca tinham visto um fo o tb a ll de tão alto nível técnico e ar­tístico como o selecionado brasileiro frente à Suécia e sobretu­do à Espanha” (O Globo Sportivo, 21/07/1950, p. 13).

Quatro anos mais tarde, durante a Copa do Mundo de 1954, foi interessante observar que a Hungria, time que prati­cava o futebol dito pela imprensa mundial como o mais boni­to e envolvente, em nenhum momento recebeu a alcunha de futebol-arte pelos jornais brasileiros, como se esta designação fosse exclusiva e registrada como uma propriedade nacional. Em 1958, com o primeiro título nacional e a presença decisiva de Garrincha e Pelé, já encontramos a definição de um estilo de jogo nacional, muito influenciado pelo talento desses dois

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atletas. O Jo rn a l do Brasil, em sua edição do dia l fl de julho daquele ano, dedicou uma página inteira ao olhar estrangeiro sobre o nosso futebol. Os argentinos, por exemplo, assim de­finiram nosso estilo:

Triunfou o futebol nativo, contra o sistema europeu, porque o Brasil representa esse futebol. E mentira que seus homens tenham assimilado as características europeias. Muito pelo contrário, os seus retumbantes triunfos alicerçaram-se na incomparável habilidade dos seus jogadores no domínio da bola [Jorna ldo Brasil, 01/07/1958, p. 21).

Já o britânico Daily Press afirmou: “Creio que essa final da Copa do Mundo viu no futebol do Brasil o mais próximo da perfeição que onze homens podem alcançar.” Por sua vez, estampou o Daily M irror. “O brilhante e mágico futebol dos mestres do Brasil hipnotizou os suecos.” E o austríaco Express fez uma distinção aguda entre o estilo de jogo: “Vitória da técnica. O futebol força foi a K.O.”.

Em 1962, o Brasil consolida sua fama de estilo de jogo fundamentado na técnica de seus jogadores. Com a lesão de Pelé no músculo adutor, Garrincha assumiu o posto de princi­pal nome da equipe. Mais do que isso, ele se tornaria símbolo do futebol-arte, sendo a síntese do futebol nacional. Bartholo e Soares (2011) descrevem, em Garrincha como síntese do f u ­tebol brasileiro, como a biografia do jogador escrita por Ruy Castro (Uma estrela solitária: um brasileiro chamado Garrin­cha) vai revalidar a história do atleta, encarnando significados coletivos sobre o futebol nacional e sobre o “ser brasileiro”. “Garrincha seria a tradução e a encarnação do jogo bonito {beautiful gam e)” (Bartholo e Soares, 2011, p. 55). A imagem de Mané consolida-se após esta Copa do Mundo e ajuda mui­to na edificação do discurso de sermos realmente o país do

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futebol. Outros elementos de Garrincha ajudam na constru­ção do jeito brasileiro de jogar futebol. “A estética do estilo de jogo de Garrincha pode ser lida como um alento a toda a nação brasileira. Nelson Rodrigues exalta a mestiçagem e o futebol-arte como elementos centrais da brasilidade, meto- nimizados em Garrincha” (Bartholo e Soares, 2011, p. 71). A imprensa internacional exalta o futebol-arte praticado por Garrincha, reafirmando o discurso:

O futebol brasileiro — conclui M anning (jornalista do Daily M irror) — tem muitos reis para um só trono. M anning mostrou-se surpreso, pois lhe disseram que Garrincha era meio burro e que agora ele não pode fazer um a ideia do que é ser inteligente pra os brasileiros. Todos os comenta­ristas ingleses presentes a Sausalito foram unânimes em considerar o futebol de Garrincha “pura arte” (Jo rn a l do Brasil, 12/06/1962, p. 12).

Em 1970, a Seleção Brasileira desponta, para todo o mun­do, via satélite,4 como o ideal do futebol-arte, o símbolo maior do que o jogo bonito pode fazer. Interessante notar que não apenas no Brasil esse epíteto aparece, mas também em países que rivalizam conosco no campo esportivo, como na Argentina, conforme as pesquisas de Helal e Lovisolo (2007) revelam.

Fica notório com a apresentação das citadas notícias que o futebol-arte é tratado constantemente nos periódicos como a prática de um futebol intenso, elogiado e carregado de

4 A Copa realizada no México contou com um grande aparato tecnológico, graças aos investimentos do magnata das comunicações Emilio Azcárraga, dono da Televisa. A competição pode ser considerada um marco na era do esporte moderno, principalmente pelo alcance mundial nunca antes visto na história das copas, por conta da cobertura via satélite para mais de cinquenta países.

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hipérboles jornalísticas, com ênfase nos jogadores que praticam o chamado futebol tipicamente nacional. São vários pontos do pensamento de Gumbrecht que se coadunam com minha pes­quisa sobre o futebol-arte, e os indicarei a seguir. Esta intensida­de na prática do chamado futebol-arte será o primeiro.

Intensidade e “futebol-arte”

A intensidade está presente não apenas no futebol-arte, mas também em qualquer evento esportivo em que os atletas e público se envolvem de maneira vigorosa. O jogador que não participa do jogo com esta energia certamente será cobrado de maneira mais incisiva pelo torcedor. Para Gumbrecht, o fã de esporte participa e assume o risco desta intensidade. Ele pode se decepcionar e até mesmo se deprimir, para obter um ins­tante de êxtase ao comemorar a vitória de seu time. Conforme Gumbrecht afirma, é um investimento emocional “com paga­mento na forma de intensidade” (2007, p. 146).

O esporte proporciona instantes únicos. O fato de que a qualquer momento algo pode acontecer exige que o torce­dor presencie este instante para realizar a experiência estética de modo completo. Quanto maior a veemência na ação e na observação, maior será a intensidade do lance que o torcedor acompanhou. Os grandes jogadores prendem a atenção do pú­blico, pois é esperado deles algo surpreendente e repentino que faça valer toda a intensidade depositada. E, quando a jogada acontece, o sentimento é de que se presenciou algo único.

Vimos anteriormente que o improviso, ou seja, fazer algo que não é previsto, aparece como característica do fu­tebol-arte. Assim, insinuo que o estilo de jogo apresentado como tipicamente nacional se entrelaça com a intensidade proposta por Gumbrecht. A maneira de jogar fundamentada em floreios, gestos rápidos e súbitos, com base no improviso,

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provoca lances cujo desejo depositado pelo torcedor em algo inesperado é atendido. Dessa maneira, o investimento emo­cional recebe a intensidade como principal pagamento. Ao pensar na intensidade proposta por Gumbrecht, encontramos alguns elementos bem próximos do argumento do excesso, que pode ser observado não só nos atletas, mas também nos torcedores. A derrota ou a vitória carregada de intensidade podem levar o atleta e/ou o torcedor a extremos.

Essa dualidade traz um ar épico às conquistas dos atle­tas: ou tudo ou nada. Assim, esse pensamento faz do esporte um terreno fértil para a criação de mitos e heróis, conforme Ronaldo Helal já descreveu de modo pertinente. O jornalista esportivo Mário Filho percebeu esta força ainda nos anos 1920 e criou uma nova forma de se contar as partidas de futebol nos jornais da época. Por conta disso, foi um homem genial, por perceber a intensidade com que o esporte pode ser vivido e como isso o carrega de drama. É o que Gumbrecht aponta como o papel da imprensa nos eventos esportivos: “tornar o presente mais complexo e retomar o passado com uma aura que lhe confira mais glória e às vezes mais sobriedade — esses são os dois aspectos de uma transfiguração que só o esporte é capaz de produzir” (Gumbrecht, 2007, p. 20).

Ao indicar o papel dos jornais como aqueles que bus­cam um passado mítico em suas narrativas, Gumbrecht abor­da exatamente uma das justificativas para a minha pesquisa: como a imprensa recupera e aborda essas identidades constru­ídas por meio do esporte?

A aura gloriosa com que o passado esportivo é apresen­tado pelos meios de comunicação é outro ponto importante indicado por Gumbrecht: apesar da preparação intensa e a evolução dos esportes, “é provável que bem poucos torcedores de hoje em dia digam que o esporte com bola de que eles mais gostam está em seu auge” (2007, p. 131). Uma espécie de

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saudosismo indica, com frequência, gerações anteriores como praticantes de um futebol melhor do que o atual. Isso fica bem emblemático nas pesquisas após a Copa de 1970. Nota­mos uma tímida equivalência na narrativa sobre a geração de 1982, indicada frequentemente como a última praticante do futebol-arte. Nas outras Copas, é peremptória a compara­ção com a equipe de 1970, que deve ser seguida como modelo de futebol ideal a ser jogado pela Seleção Brasileira.5

O próprio Gumbrecht indica este pensamento ao de­limitar os anos 1950 e o início dos anos 1980 como a era de ouro do futebol, que coincide com o auge da carreira de grandes jogadores, entre eles Pelé. Gumbrecht também elenca a formação de grandes times que marcaram a história do fu­tebol, como a Hungria de 1954, o Brasil bicampeão de 1958- 1962 e o Real Madrid multicampeão europeu. Interessante observar que, dos exemplos citados, apenas a nossa Seleção recebeu a alcunha de futebol-arte.

Essa herança da chamada era de ouro, praticamente instituiu um marco no qual os atletas que desempenham o futebol mais parecido com o dos jogadores considerados craques daquela geração serão sempre mais lembrados e no­ticiados na imprensa e pelos torcedores como praticantes do futebol em sua “essência”. Logo, como o Brasil foi um grande expoente neste período delimitado por Gumbre­cht, vencendo três Copas do Mundo, podemos relacionar a grande procura por atletas brasileiros e sua “exportação” para o mundo, como a busca por de um futebol vistoso,

5 Um bom exemplo da intensa disputa travada por jornalistas esportivos que defendem a prática do futebol-arte e dos que desaprovam esta obrigação histórica é a Copa de 2002. Com o passar dos anos da conquista do penta- campeonato, alguns cronistas, que em m inha pesquisa entendo como “guar­diões” desta memória esportiva, apontam o time de Felipão como um bom equilíbrio entre o futebol bonito e o futebol de resultados. Isso indica que o processo de construção do futebol-arte está repleto de ressignificações.

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alegre, e de arte, embora na maioria das vezes o jogador nao corresponda a esta expectativa depositada sobre eles, deixando claro que o simples fato de serem brasileiros não é os credencia a serem jogadores excepcionais. Proponho que tal fato mostra a força das representações de nossos atletas (principalmente os que são convocados pela Seleção Brasi­leira) na mídia mundial, enraizada nos anos 1950 e 1960 e concretizada na Copa de 1970.

Esta argumentação é um dos pontos de partida de mi­nha pesquisa: o futebol-arte é tratado com algo tipicamente nacional pela imprensa e, ao praticarmos, exercemos nossa brasilidade. Dessa maneira, procuro analisar como foi o tra­tamento dado pela imprensa ao nosso time quando, reconhe­cidamente pelos próprios meios de comunicação, jogou de acordo com nosso estilo e perdeu, como em 1982 e, quando ganhou, como em 1970. Também se enquadram na minha pesquisa os momentos em que não praticamos o nosso fute­bol e fomos derrotados (1990) e vencedores (1994). Teria a imprensa nacional uma “aceitação” maior quando a Seleção perde jogando um futebol de acordo com nossas supostas ca­racterísticas, ou a intensidade no discurso após uma derrota ou conquista é sempre o mesmo?

Continuando a descrever a importância do pensamento de Gumbrecht nas minhas investigações, abordarei agora as jogadas de uma partida de futebol como elementos da intensi­dade vivida pelo apreciador do esporte.

Os lances inesperados marcam de maneira importante o fascínio dos torcedores. A intensidade da atenção de todos aumenta, por exemplo, em uma partida de futebol quando um goleiro, como o brasileiro Rogério Ceni, sai de seu lugar-co- mum e tenta marcar um gol de falta, ou então quando algum companheiro de posição de Ceni corre desesperadamente para a área adversária no último lance do jogo para tentar o gol.

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Sabemos que, quando ele consegue, o momento fica marcado para os torcedores que vibraram e pelos que lamentaram o gol.

Podemos também elencar os lances inesperados de Pelé na Copa do Mundo de 1970, no México, que ficaram conhe­cidos como “gois que Pelé não fez”: o chute do meio-campo contra a Tchecoslováquia, que passou perto do gol; o drible de corpo no goleiro uruguaio na semifinal da mesma compe­tição, no qual o mais esperado era chutar de primeira e Pelé deixou a bola passar, apanhando-a mais à frente para chutá- -la rente à trave. Ainda na Copa de 1970, citamos a defesa de Gordon Banks na cabeçada de Pelé que é frequentemente descrita pelos jornalistas como “a maior defesa de todos os tempos”. Em todos os exemplos citados, a intensidade de se aguardar algo inesperado na partida e ele acontecer, mesmo que não resulte em gol, nos casos de Pelé, torna a experiência estética mais aguda.

As partidas mais marcantes para o torcedor são aquelas disputadas com intensidade até o fim. O gol no último mi­nuto, a virada que ninguém esperava ou até mesmo a derrota que ninguém previa, como a da Seleção Brasileira em 1982 para a Itália, carregam esses jogos de uma dramaticidade épica que é aproveitada e explorada pelos meios de comunicação. O torcedor guardará aquele jogo e aquela experiência como algo inesquecível e marcante em sua vida. Gumbrecht afirma que “em sua memória, você consegue recriar uma linda jogada e, conforme você se concentra nesta lembrança, sente um im­pulso percorrer seus músculos” (2007, p. 23). Quem já viveu uma experiência assim concordará com esse pensamento.

Segundo Gumbrecht, o torcedor gosta não só do jogo, mas também dos lances memoráveis e inusitados, praticados por esses atletas acima da média que frequentemente são de­signados como os detentores do futebol-arte de outrora. São a bela jogada, o drible, a bela troca de passes, o belo chute, a

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bela defesa que adornam a relação do torcedor com o esporte. O quarto gol brasileiro na final da Copa do Mundo de 1970 contra a Itália pode ser entendido como este tipo de jogada definida como encantadora. Toda a construção da jogada, no termo de Gumbrecht, traz uma plasticidade que serviu para a narrativa midiática consolidar aquela equipe como a represen­tante do futebol-arte.

O fascínio por essas jogadas é interessante, pois, inde­pendentemente do time por que se torça, ver uma bela joga­da é agradável e cativante. Além disso, para Gumbrecht, o esporte propicia-nos momentos que guardamos na memória e de alguma forma achamos que jamais serão igualados. Sigo este pensamento e insinuo que, por conta da Copa de 1970 ser a primeira de grande alcance mundial e o Brasil ter venci­do todas as partidas, apresentando um futebol definido como “dos sonhos”, tornou a equipe a maior referência do futebol- -arte. A conquista foi impactante para toda uma geração e isso se perpetuou nos jornais, sempre a buscar a seleção de 1970 quando o assunto é definir o que se convencionou a chamar de futebol-arte. Por conta dos aspectos elencados, criou-se um pensamento de acharmos que o feito desta equipe jamais seria igualado, principalmente pela intensidade que a Seleção e a novidade da experiência estética por meio da televisão tam­bém proporcionou, creditando-se àquela equipe o status de incomparável.

Arrisco-me a dizer que essas jogadas colocam o atleta que executa tal proeza em uma relação de maior intensidade com o torcedor, o qual, segundo Gumbrecht, só pode retri­buir aquele momento elogiando-o. O “melhor modo de elo­giar o que amamos é usar palavras e variações de determinadas descrições” (2007, p. 34).

Aqui chegamos a um dos grandes pontos do pensamen­to de Gumbrecht: o desejo de elogio vem do simples senti-

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mento de gratidão do público para com o atleta. Elogiar o ídolo e o esporte é expressar esta gratidão. Parto da hipótese de que, por conta disso, o dito futebol-arte recebe elogios dos torcedores e da imprensa. São jogadas não esperadas pelo pú­blico que intensificam a relação deles com o esporte, e conse­quentemente com os jogadores, criando ídolos. Também por isso, suspeito de que encontramos uma quantidade maior de hipérboles nas manchetes e nos elogios nos jornais e cadernos esportivos frente a outras editorias. Em razão desses aspectos históricos, saudosistas e esportivos, sugiro que haja um fascí­nio mundial sobre nossos jogadores e nossa Seleção.

Garrincha e Pelé como símbolos do futebol-arte

Toda essa consolidação do fascínio que a Seleção Bra­sileira exerce no mundo desde a segunda metade do século XX teve dois grandes fios condutores do mito “futebol-arte” como algo inerente ao futebol brasileiro: Garrincha e Pelé. Logicamente, definir quem foi o melhor não cabe às pesquisas acadêmicas. O que podemos identificar é que foram maneiras distintas de praticar o futebol, mas com intensidades iguais. Os dois podem definir dois extremos de atuações e, por con­ta disso, contemplar o desejo de torcedores diferentes, como define Gumbrecht: os dionisíacos e os apolíneos.6 Em minhas pesquisas sobre a carreira dos dois atletas, fica clara esta distin-

6 Gumbrecht define o torcedor apolíneo e o torcedor dionisíaco da seguin­te maneira: “O espectador apolíneo é um tipo que, à distância, percebe e aprecia a beleza das formas individuais. Ele não é necessariamente analítico no sentido do espectador ideal de Brecht ou dos jogadores de hóquei que observam seus companheiros de time do banco, mas o espectador apolíneo claramente tem uma afinidade maior com o conceito de comunhão. Os espectadores dionisíacos, por outro lado, tendem a abandonar totalmente a individualidade e o distanciamento e a entrar em comunhão tanto com os outros espectadores como com a energia que emerge da ação que estão acompanhando” (2007, p. 149).

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çao entre os dois. Garrincha seria o representante dionisíaco e Pelé, o apolíneo - no sentido mitológico grego.

O intenso debate travado no meio esportivo nos anos 1950 e 1960, para a definição de quem seria o maior ídolo nacional, sempre tendeu a indicar Garrincha como tal. Este representava o futebol de improvisos, com base no drible, sem nenhum esforço, fundamentado no dom natural do brasileiro em praticar o futebol desta maneira distinta. No entanto, com o fim de carreira melancólico do ponta-direita brasileiro e a conquista da Copa de 1970 com a presença decisiva de Pelé, foi construída uma memória coletiva que se reflete na narrati­va dos meios de comunicação atuais, indicando o “rei” como maior ídolo do futebol nacional. As representações sugeridas hoje na imprensa nacional deixam clara essa “vitória” do dis­curso que colocava Pelé como nosso maior ídolo.

Relacionarei agora algumas características apontadas por Gumbrecht como geradoras do fascínio que os atletas e o esporte proporcionam, com elementos presentes nos jogado­res Pelé e Garrincha.

Vários tipos de fascínios são enumerados por Gum­brecht em seu livro Elogio da beleza atlética (2007). São eles: corpos esculpidos, sofrimento diante da morte, graça, instru­mentos que aumentam o potencial do corpo, formas personi­ficadas, jogos como epifanias e tim ing. As várias características citadas podem se juntar ou ser admiradas de modo singular pelos torcedores. É o caso dos atletas que pesquisei e do fute­bol-arte brasileiro. Como o próprio Gumbrecht destaca, sua tipologia vem para ajudar a captar a complexidade dos movi­mentos quando assistimos ao esporte e não unificar todos os atributos em um único jogador, como tentou ser feito com Pelé ao mitificá-lo como o atleta do século.

Os corpos vão atrair a atenção não pela força física, e sim pela total harmonia entre as partes que juntas vão se co­

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nectar e tornar possível seu desempenho atlético satisfatório e esteticamente aprazível. Essa harmonia entre várias partes significando o todo nos remete ao pensamento de Bateson, no livro M ente e natureza (1986). O corpo de Pelé é descrito como um exemplo desta harmonia, o que indica um dom na­tural do atleta para se tornar um esportista de ponta, confor­me afirma Castello:

Não custa recordar que, como atleta de muitos dotes, ele chegou a fazer 100 metros em 11 segundos, a saltar 1,90 metro de altura e também 6,50 metros de distancia. Foi, antes de tudo, um atleta excepcional, com plenas condições de se destacar em outras modalidades de esporte (Castello,2004, p. 219).

Já Garrincha era o oposto. Suas pernas, por serem ar­queadas e a esquerda ser 6 cm menor que a direita, não indi­cavam uma precondição para a prática esportiva. Entretanto, a harmonia de seu corpo fazia o defeito sumir frente a seu desempenho atlético admirável.

Outro ponto importante é a intensidade com que se espera algum improviso destes atletas, como já descrevemos anteriormente. Isso se deve, segundo o pensamento de Gum­brecht, ao nível de controle com a bola que esses jogadores possuem, acarretando a possibilidade de várias opções para um lance, tornando-o cada vez mais improvável. Desse modo, sugiro que o atleta adquire uma admiração maior por conta desses fatores. As jogadas improváveis de Garrincha e Pelé, por exemplo, já desaparecem no momento em que começam a nascer. Assim, este fato também intensifica a jogada.

O tim ing, descrito por Gumbrecht como um dos ele­mentos que torna o esporte algo fascinante, pode ser entendi­do como a capacidade de o jogador fazer o movimento certo

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na hora certa. Os grandes atletas têm um sentido mais atento ao que acontece à sua volta; portanto, estão mais propícios a executar e pensar saídas rápidas para possíveis ataques e ten­tativas de desarmes do adversário. Fazer o movimento torna- -se fácil para eles. Garrincha e Pelé, por exemplo, localizavam espaços nas defesas adversárias antes mesmo de os adversários perceberem e corrigirem essas falhas. O pensamento deles era mais veloz do que o dos outros, pois a percepção de jogadores de ponta é mais apurada.

Outro quesito é a graça de um atleta, apontada por Gumbrecth como a incapacidade de articular e pensar em seus movimentos. O atleta executa sem pensar, de forma simples e fácil - argumento que corrobora as características do futebol- -arte. A execução dos movimentos de Garrincha e Pelé, que para muitos parece tão complicada, flui de modo natural para nossos atletas. Esses atos, o tim in g e a graça, praticados com facilidade, são alguns dos fatores importantes do fascínio e que foram muito úteis em minha pesquisa para investigar as jo­gadas executadas pelos atletas que representam o futebol-arte como Garrincha e Pelé.

O item sofrimento também é congruente com minhas investigações. Podemos entendê-lo pelo padecimento do atleta de boxe que apanha até o último round para acertar o golpe de­finitivo e decisivo em seu oponente, ou pela dor causada após algumas derrotas de atletas e de grandes seleções. Por esse pris­ma, é oportuno trazermos a derrota de 1950 e a de 1982 para discussão. Ambas foram tratadas como tragédias nos jornais. A de 1950 recebeu vários adjetivos: derrota da nação, a “der­rota das derrotas”, “maior tragédia nacional” e Maracanazo. Não cabe aqui detalharmos essas definições neste texto, sen­do significativo, por ora, considerarmos que a derrota para o Uruguai marcou o futebol como um dos pilares da identidade nacional. Já a “tragédia do Sarriá” (alusão ao estádio em que

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o Brasil perdeu para a Itália em 1982) é apontada nao como uma derrota de uma nação, e sim como fracasso do estilo de jogo indicado como nacional. Gumbrecht elucida de maneira apropriada estas derrotas “traumáticas”: “sofrer uma derrota dramática parece ser uma precondição necessária para entrar no panteão da modalidade” (2007, p. 116). Assim, tais derro­tas foram marcantes para o futebol brasileiro e constantemen­te são lembradas pelos meios de comunicação.

Por outro lado, os atletas alcançam o máximo de sua preparação física com a vitória e, ao final do jogo ou, até mes­mo antes do fim, demonstram-se extenuados com o intenso esforço, o que torna o feito heroico. O sofrimento dos joga­dores, seja ele físico ou mental, também é objeto de fascínio. Quem não se lembra de um jogo em que seu time venceu com um jogador a menos, ou daquele jogador que mesmo machucado faz o gol da vitória? Ou, no caso de outros espor­tes, aqueles atletas que se aproximam da morte para conseguir seu feito, chegando à estafa física, à beira das últimas conse­quências, indicando que seu sofrimento pode levá-lo à morte?

Neste ponto, podemos indicar o fascínio sobre um mito como Garrincha e seu sofrimento no fim da carreira e de sua vida, período em que suas condições físicas o impossibilitavam de ser o mesmo atleta que encantou o mundo. Gumbrecht re­corre à retórica de Aristóteles, ao afirmar que se elogiam não só as atitudes, mas também as conquistas de quem admiramos. O herói se faz e se sustenta em suas conquistas. Partindo desse pensamento, podemos compreender por que Pelé “venceu” o “duelo” com Garrincha. Enquanto um continuou conquistan­do, o outro não conseguia vencer nem seus dramas pessoais.

Porém o sofrimento de Garrincha ao final da vida in­tensifica, para alguns torcedores, a admiração e o fascínio pelo atleta. Como pode aquele jogador sensacional, que proporcio­nou tantos momentos intensos e fascinantes para tanta gente,

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ficar em uma situação tão deplorável? O próprio Gumbre­cht afirma, em Elogio da beleza atlética , seu favoritismo por Garrincha. E sentir-se ligado ao atleta e ao seu drama. Por mais que se elogie, como forma de gratidão, os esforços serão pequenos perto do que o ídolo nos proporciona. Concordo plenamente com Gumbrecht.

Considerações finais

No presente capítulo, tracei algumas relações entre mi­nhas pesquisas e as considerações de Gumbrecht sobre o esporte. O principal ponto de partida é que a visão da investigação es­portiva defendida pelo autor é mais próxima do entendimento do que sua rejeição por conta de, supostamente, se tratar de algo menor e não legítimo. As pessoas gostam e se fascinam pelo esporte não por alienação, e sim pelo simples fato de sen­tirem prazer na experiência estética que é assistir a um jogo de maneira intensa.

A intensidade na atenção do torcedor está intimamente ligada à dimensão que aquela partida vai causar em sua me­mória. Quanto mais intenso, mais marcante. Mas por que o torcedor assistiria a um jogo com intensidade em um nível tão elevado? Pelo simples fato de que, no esporte, o inesperado pode acontecer a qualquer momento e, quando isso ocorre, é preciso que se esteja atento, vivendo o lance, para que a expe­riência se torne completa. Quando o inesperado acontece, o sentimento de satisfação é intenso e, por gratidão ao atleta, ou ao time que proporcionou tal momento, se elogia.

Gumbrecht cita Kant, ao definir que a “arte bela é arte desde que parece, ao mesmo tempo, ser natureza”. Vimos, ao longo das ponderações apresentadas, como a prática do fute­bol-arte tem como base o improviso e a jogada inesperada. Também abordei como este estilo de jogo é apresentado como

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algo natural do brasileiro. Pressuponho que nosso suposto tipo de jogo é abordado como arte por ser entendido como genuinamente nacional. Além disso, também apresentei uma hipótese de que, ao realizar jogadas improvisadas e inespera­das, o futebol-arte atende ao desejo do torcedor, que acompa­nha de forma intensa, de se surpreender.

Os jogadores Garrincha e Pelé são os grandes expoentes deste estilo de jogo e, ao atuarem de modo decisivo nas copas do mundo em que o Brasil se sagrou campeão na chamada por Gumbrecht, era de ouro do futebol, originaram um fascínio por eles e consequentemente pela Seleção nacional.

A “Amarelinha”, apelido da equipe brasileira de futebol, recebeu ao longo dos anos elogios intensos. O mais correto seria a narrativa midiática relacionar este estilo de jogo apenas a esses jogadores excepcionais e não ao futebol brasileiro como um todo, porém, se assim o fizesse, não teríamos o futebol como aglutinador de sentidos do que é ser brasileiro. A condi­ção de um descendente de índios e de um negro serem nossos maiores expoentes corrobora a ideia de miscigenação e demo­cracia racial de Freyre, e este talento dos dois ficou imbricado como algo típico da nação.

Tais representações são tão fortes que, até hoje, o joga­dor que veste a camisa da seleção brasileira de futebol tem a “obrigação” de praticar o futebol-arte, principalmente em pe­ríodos de Copa de Mundo, para, segundo a imprensa, não se fugir de nossa identidade e de nosso “DNA”. Obviamente, os jogadores que seguiram este “estilo” foram enaltecidos como guardiões de nossa autenticidade futebolística e, ao alcança­rem o sucesso mundial na Seleção e em seus clubes, reatuali- zam o mito do futebol-arte como algo nacional. Dessa manei­ra, entendo que o fascínio que nossa Seleção ainda exerce no mundo, e que é constantemente explorado pelas campanhas publicitárias, deve-se à intensidade de nosso suposto estilo e

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ao improviso de nossos jogadores acima da média que, por mais que surjam em menor número, ainda representam, no discurso midiático, a brasilidade.

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Sobre os organizadores

Fausto AmaroDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Co­

municação (PPGCom) da UERJ, com bolsa Faperj; mestre pela mesma instituição, com bolsa Capes. Membro do gru­po de pesquisa “Esporte e Cultura”, cadastrado no CNPq, e pesquisador associado ao Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME/UERJ). É autor de diversos artigos e capí­tulos de livro enfocando a interface mídia e esporte. E-mail: [email protected]. Endereço eletrônico: www.comuni- cacaoeesporte.com.

Ronaldo HelalE professor da Faculdade de Comunicação Social e do

Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universi­dade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e Doutor em Sociologia pela New York University. Realizou estudos de pós-doutorado em Ciências Sociais na Universidad d e Buenos Aires. É Pesquisador do CNPq e do Prociência/UERJ. Co- lidera o grupo de pesquisa “Esporte e Cultura” e coordena o Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME), am­bos na FCS/UERJ. É autor de vários trabalhos no campo da comunicação e esporte, entre os quais se destacam: Copas do mundo: com unicação e identidade cu ltu ra l no pa ís do fu teb o l, publicado pela EdUERJ, em coautoria com Álvaro do Cabo; Futebol, jorna lism o e ciências sociais: interações, publicado tam-

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bém pela EdUERJ, em coautoria com Hugo Lovisolo e Antô­nio Jorge G. Soares; A invenção do pa ís do fu teb o l: mídia, raça e idolatria, pela Mauad, em 2001 e 2007, em coautoria com Antônio Jorge G. Soares e Hugo Lovisolo; Passes e impasses: fu teb o l e cu ltura d e massa no Brasil, pela Vozes em 1997; O que é sociologia do esporte?, pela Brasiliense em 1990; além de vários artigos em livros e em periódicos científicos no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

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Sobre os autores

Allyson Carvalho de AraújoProfessor do Departamento de Educação Física da Uni­

versidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Nessa mesma instituição, também atua no Programa de Pós-Gra- duação em Educação Física (PPGEF/UFRN) e no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN). É membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movi­mento (GEPEC) e do Grupo de Estudos Transdisciplinares em Comunicação e Cultura (Marginália). E-mail: allyssoncar- [email protected].

Ana Maria AckerProfessora no curso de Jornalismo da Universidade de

Caxias do Sul (UCS). Realiza doutorado em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também cursou o mestrado. E jornalista e especialista em Cinema pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: [email protected].

Anderson David Gomes dos SantosProfessor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL),

Unidade Santana do Ipanema/Campus Sertão. Jornalista, gra­duado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Membro

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do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e So­ciedade (CEPOS). E-mail: [email protected].

Arlei Sander Dam oDoutor em Antropologia Social pela Universidade fede­

ral do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio de pesquisa junto ao Institut d’Ethnologie Méditerranéenne et Compara- tive (Université dAix-Marseille I & III). É professor do Pro­grama de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, no qual ministra disciplinas e orienta pesquisas nas áreas de Antropologia Econômica, Antropologia do Esporte e Antro­pologia das Emoções. Tem várias publicações na área de An­tropologia do Esporte, entre as quais os livros Futebol e iden ti­dade socia l (2002), Do dom àprofissão (2007), F útbo ly cultura (2001) e M egaeventos esportivos no Brasil (os dois últimos em coautoria com Ruben George Oliven). Atualmente, coorde­na o projeto de pesquisa “Megaeventos Esportivos no Brasil - uma perspectiva etnográfica” e o Grupo de Antropologia da Economia e da Política (GAEP). E-mail: arIeidamo@uol. com.br.

Débora GauziskiDoutoranda em Comunicação pelo PPGCom/UERJ.

Mestre em Comunicação pela mesma instituição, com bolsa Capes. Membro do grupo de pesquisa “Regimes de visibili­dade: a construção da visualidade da fotografia contempo­rânea”, coordenado pelo professor Fernando do Nascimento Gonçalves. Especialista em Jornalismo Cultural pela UERJ e graduada em Comunicação Social (habilitação Jornalismo) pela Universidade Estácio de Sá. E-mail: deboragauziski@ gmail.com.

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Sobre os autores 309

Filipe MostaroMestrando no Programa de Pós-Graduação em Co­

municação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCom/UERJ). E graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2006) e possui Especia­lização em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte pela Facha-IGEC (2012). É membro do grupo de pesquisa “Es­porte e Cultura”, cadastrado no CNPq, e pesquisador asso­ciado ao Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME/ UERJ). E-mail: [email protected].

Márcio Telles da SilveiraMestre em Comunicação e Informação pela Universida­

de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)com o trabalho “A recriação dos tempos mortos do futebol pela televisão: mol­duras, molduraçÕes e figuras televisivas”, escolhido Melhor Dissertação 2014 pelo Prêmio Compós. Também é jornalis­ta graduado pela mesma instituição. Integrante do GPESC (Grupo de Pesquisa Semiótica e Comunicação) e colaborador do TCAV (Audiovisualidade e Tecnocultura: Comunicação, Memória e Design). E-mail: [email protected].

Pedro Silva MarraFormado em Comunicação Social, com habilitação

em Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Comunicação Social pela mesma ins­tituição e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). É bolsista Demanda Social Capes. Trabalha com áu­dio desde 2001, atuando nas áreas de produção para rádio, produção musical, som para audiovisual e paisagens sonoras. Foi coordenador e avaliador do Programa Cultura Viva em Minas Gerais nos anos de 2009 e 2010. Desde 2008, realiza

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pesquisa sobre as sonoridades dos estádios de futebol durante partidas do Clube Atlético Mineiro, que visa a compreender como os sons são utilizados pelos torcedores nos processos de articulação/desarticulação da torcida e no intuito de incenti­var/atrapalhar os jogadores em campo na realização de suas jogadas. E professor do curso de Comunicação Social - Jorna­lismo e Publicidade — no Centro Universitário Newton Paiva e no mesmo curso no Instituto Metodista de Minas em Belo Horizonte. E-mail: [email protected].

Victor Andrade de MeloProfessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

atua na Faculdade de Educação (Departamento de Didática e Programa de Pós-Graduação em Educação) e no Instituto de História (Programa de Pós-Graduação em História Compa­rada). E coordenador do “Sport”: Laboratório de História do Esporte e do Lazer. E bolsista de produtividade de pesquisa/ CNPq. E-mail: [email protected].

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