a simultaneidade histórica em gumbrecht

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Luciana Barroso Gattass

Passados, Presentes e Presenas: A Simultaneidade Histrica em Hans Ulrich GumbrechtPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

Dissertao de MestradoDissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa Dra Heidrun Krieger Olinto

Rio de Janeiro Abril de 2007

Luciana Barroso Gattass

Passados, Presentes e Presenas:A Simultaneidade Histrica em Hans Ulrich Gumbrecht

PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo programa de Ps-Graduao em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

_______________________________________________ Profa. Heidrun Friedel Krieger Olinto de Oliveira Orientadora Departamento de Letras PUC-Rio

________________________________________________ Profa. Eliana Lcia Madureira Yunes Garcia Departamento de Letras PUC-Rio

________________________________________________ Profa. Valria da Silva Medeiros Universidade Federal de Tocantins UFT

________________________________________________ Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio

Rio de Janeiro, ______ de ___________________ de ________.

Todos os Direitos Reservados. Proibida reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, da autora, e da orientadora.

Luciana Barroso Gattass Graduou-se magna cum laude em Artes na Universidade de Columbia (Columbia University of New York) em 1999.

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Ficha Catalogrfica Gattass, Luciana Passados, Presentes e Presenas : a simultaneidade histrica em Hans Ulrich Gumbrecht / Luciana Barroso Gattass ; orientadora: Heidrun Krieger Olinto. 2007. 109 f. : il. ; 30 cm Dissertao (Mestrado em Letras)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Inclui bibliografia 1. Letras Teses. 2. Histria e memria. 3. temporalidade. 4. Narrativa. 5. Mmese. 6. Historiografia. 7. Passado. 8. produo de presena. I. Olinto, Heidrun Krieger. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Ttulo.

CDD: 800

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Para o meu irmo Bernardo, pelo amor incondicional e inabalvel crena no risco. Para minha orientadora Heidrun, pelo afeto, integridade e delicadeza com que conduz e ilumina meus caminhos.

AgradecimentosA minha me, Mrcia, por me ofertar o colo forte e seguro, sempre e por onde quer que eu v. Ao meu pai, Sergio, por ter contradito o poeta e me ensinado que o verdadeiro amor eterno e para sempre dura. Roberta, ao lvaro e ao Antonio Pedro Borgerth, pelo mais puro amor. Flvia Nogueira, Carmem e ao Carlos Alberto Vieira, por me provarem que famlia transcende os laos de sangue. Ao meu tio, Marcelo Gattass, pelo acolhimento, carinho e generosidade. Ao Professor Jlio Csar Diniz, pela amizade, inspirao e pela aposta incondicional em mim.PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

Professora Eliana Yunes, por aceitar fazer parte desta banca e por todas as palavras, Ecos e Calvinos que trouxe minha vida. Professora Valria S. Medeiro por atravessar o Brasil para estar nesta banca examinadora. Professora Marlia Rothier Cardoso por me ensinar sobre arquivos, espectros e bondade. Francisca Ferreira de Oliveira, pela imensa doura, competncia e pacincia. Ao Sergio Marchado pelo melhor e maior colo deste universo em eterna expanso. Stella Caymmi pela extraordinria amizade e genuna alegria que traz minha vida. Mariana Maia Simoni pela amizade to generosa e por todas as trocas que vieram e viro. Ao miglior fabbro Mariano Marovatto, por todas as palavras e por todos os silncios tambm. Mariana Newlands, por me convidar a passear em seu mundo encantado. Ctia Assumo pelo afeto rizomtico.

Resumo Gattass, Luciana Barroso. Olinto, Heidrun Krieger. Passados, Presentes e Presenas: A Simultaneidade Histrica em Hans Ulrich Gumbrecht. Rio de Janeiro, 2007. 109p. Dissertao de Mestrado Departamento de Letras, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Passados, Presentes e Presenas: A Simultaneidade Histrica em Hans Ulrich Gumbrecht. Tomando o experimento historiogrfico, Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo de Hans U. Gumbrecht como ponto de partida, visa-se aqui investigar certos aspectos centrais nos estudos tericos de literatura atuais. com um inusitado Manual do Usurio que Gumbrecht inaugura sua indagao acerca das possibilidades de um texto (vs. uma mirade de recursos miditicos disponveis) simular no leitor o efeito de imediao completa. Compartilhando deste desejo de formulao de uma histria sensvel onde presena est comoPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

outro do sentido pretende-se encaminhar uma discusso acerca da proposta de produo de presena vinculada a seu projeto de materialidade nos processos comunicativos, artsticos e literrios. Prope-se discutir implicaes tericas do experimento de Gumbrecht contrapostas a outros modelos inovadores de representao do passado, tais como os discutidos por expoentes da escola dos Annales em particular, Michel de Certeau, Franois Furet e Paul Veyne. Segundo Gumbrecht, a simulao de imediao reduziria a nfase sobre a prtica hermenutica do conhecimento do passado. Portanto, neste palco sem atores parece imperar a materialidade dos elementos envolvidos nos processos comunicativos. Neste mbito cabe perguntar: seria plausvel a teorizao acerca destas novas formas comunicativo-literrias que em toda a sua inegvel virtualidade no deixam de acentuar afetos e sensibilidades, minimizando (sem exclu-las) formas de racionalizao?

Palavras-chave Histria e memria; temporalidade; narrativa; mmese; historiografia; passado; produo de presena.

Abstract Gattass, Luciana Barroso. Olinto, Heidrun Krieger. Pasts, Presents and Presences: Historical Simultaneity in Hans Ulrich Gumbrecht. Rio de Janeiro, 2007. 109p. M.A. Dissertation Letters Department. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Pasts, Presents and Presences: Historical Simultaneity in Hans Ulrich Gumbrecht. Taking Hans U. Gumbrechts In 1926: Living on the Edge of Time as a starting point, it is the purpose of this study to explore and scrutinize certain specific aspects and unresolved questions present in current Literary Studies. The somewhat whimsical Users Manual is indicative of the experimental nature of his project. The central question will fall upon the capabilities of a written book (as opposed to other media) to produce or, rather, to re-produce past experiencesyou should feel in 1926. Seeking, then, the effect of (almost) perfect immediacy, Gumbrecht hopes to help formulate or contribute to whatPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

could be classified as Sensorial Historiography wherein the act of generating presence is to be understood as opposed to Hermeneutics. Sharing his impulse to evoke past worlds, this paper intends to develop a thorough discussion centered upon Gumbrechts own notion of production of presence. Inevitably, this

includes a short analysis of his theories on the materialities of communication. In addition, the essay will also attempt to draw connections and parallels between his notions of historiography and those of the Annales school in France i.e. Michel de Certeau, Franois Furet and Paul Veyne who, in their new proposals of historiography, offer interesting counterpoints to the non-hermeneutical model. Therefore, the question which will guide and orient the course of this study will be: would it be plausible and relevant to theorize about these new (and very experimental) forms of representation, which seem to privilege affections and sensibilities over more rational approaches albeit without excluding them entirely? Key-Words Historigraphy; memory; time; narrative; production of presence; representation.

Sumrio 1. Introduo: Esboando Recomeos 1.1 Passagens 2. 1926: Um ano bastante comum 2.1 Espao-Tempo 2.2 Dictionnaire des ides Reues 2.3 Leia as Instrues! 2.4 Tutmania 2.6 Autopoiesis 3. Um Breve Hiato: 1925 e Mrs. Dalloway 3.1 Que Caiam as Mscaras da Mimesis 4. Histria, Memria e Esquecimento 4.1 Lupus in Fabula 4.2 Saltando da Torre Eiffel 4.3 Um Conto de Joge Luis Borges 4.4 A ContrapeloPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

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5. Concluso: (Des) aprender com a Histria? 5.1 Falar aos Mortos 5.2 O Impossvel Local da Fala: Fluidez e a Terceira Margem 5.3 O Intelectual e o Risco 5.4 Centro Versus Periferia / Centro = Periferia (infinitude)

86 92 96 99

Referncias Bibliogrficas

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Lista de Quadros e Figuras

Quadro 1: Futuro em Luhmann Figura 1: Escher: Autopoiesis Figura 2.1 Rizoma Figura 2.2 Rizoma por Sylvano Bussoti Figura 3 Eixos

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Physik und Philosophie Die Elementarteilchen in Platos Dialog Timaios sind ja letzten Endes nicht Stoff, sondern mathematische Form. Alle Dinge sind Zahlen' ist ein Satz, der dem Pythagoras zugeschrieben wird. Die einzigen mathematischen Formen, die man in jener Zeit kannte, waren solche geometrischen oder stereometrischen Formen wie eben die regulren Krper und die Dreiecke, aus denen ihre Oberflche gebildet ist. In der heutigen Quantentheorie knnen wir kaum daran zweifeln, da die Elementarteilchen letzten Endes auch mathematische Formen sind, aber solche einer sehr viel komplizierteren und abstrakteren Art. Die griechischen Philosophen dachten an statische, geometrische Formen und fanden sie in den regulren Krpern. Die moderne Naturwissenschaft aber hat seit ihren Anfngen im 16. und 17. Jahrhundert das Bewegungsproblem in den Mittelpunkt gestellt, also den Zeitbegriff in die Grundlagen eingeschlossen. Unvernderlich in der Physik seit Newton sind nicht Konfigurationen oder geometrische Formen, sondern dynamische Gesetze. Die Bewegungsgleichung' gilt zu allen Zeiten, sie ist in diesem Sinne ewig, whrend die geometrischen Formen, wie z. B. die Bahnen der Planeten, sich ndern. Daher mssen die mathematischen Formen, die die Elementarteilchen darstellen, letzten Endes Lsungen eines unvernderlichen Bewegungsgesetzes fr die Materie sein. 1

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W. Heisenberg

Heisenberg, Physics and Philosophy: The Revolution in Modern Science (New York: Harper and Row, 1958). Lectures delivered at University of St. Andrews, Scotland, Winter 195556. Verso em ingls da passagem: The elementary particles in Plato's Timaeus are finally not substance but mathematical forms. "All things are numbers" is a sentence attributed to Pythagoras. The only mathematical forms available at that time were such geometric forms as the regular solids or the triangles which form their surface. In modern quantum theory there can be no doubt that the elementary particles will finally also be mathematical forms but of a much more complicated nature. The Greek philosophers thought of static forms and found them in the regular solids. Modern science, however, has from its beginning in the sixteenth and seventeenth centuries started from the dynamic problem. The constant element in physics since Newton is not a configuration or a geometrical form, but a dynamic law. The equation of motion holds at all times, it is in this sense eternal, whereas the geometrical forms, like the orbits, are changing. Therefore, the mathematical forms that represent the elementary particles will be solutions of some eternal law of motion for matter. This is a problem which has not yet been solved.

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1 Esboando Recomeos

Chego assim ao fim desta minha apologia do romance como grande rede. Algum poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possveis mais se distancia daquele unicum que o self de quem escreve, a sinceridade interior descoberta de sua prpria vontade. Ao contrrio, respondo quem somos ns, quem cada um de ns seno uma combinatria de experincias, de informaes, de leituras, de imaginaes? Cada vida uma enciclopdia, uma biblioteca, um inventrio de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possveis.PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

Mas a resposta que mais me agradaria dar outra: quem nos dera fosse possvel uma obra concedida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu individual, no s para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que no tem palavra, o pssaro que pousa no beiral, a rvore na primavera e a rvore no outono, a pedra, o cimento, o plstico... talo Calvino

1.1 PassagensQuem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem no consegue firmar p em um ponto como uma divindade da vitria sem vertigem e sem medo, nunca saber o que felicidade, e pior: nunca far algo que torne os outros felizes. Friedrich Nietzsche

Encaminhar uma discusso mais abrangente acerca da proposta de produo de presena do terico da literatura Hans Ulrich Gumbrecht proposta esta, intimamente vinculada a seu projeto de materialidade nos processos comunicativos, artsticos e literrios. Eis o ponto de partida. Com isto busco insero em um debate extremamente atual ainda que incipiente: a elaborao de uma linguagem terica adequada a novos formatos literrios multimiditicos, provisoriamente denominados

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por um de seus expoentes, o professor da universidade de Brown, Roberto Simanowski, de interfictions, ou interfices sendo o prefixo inter denotativo do carter hbrido destes experimentos: imagem, texto, movimento, interatividade, sendo todos pressupostos para este formato esttico. Simanowski vem a ser um dos

pioneiros nos campos tericos da escrita em rede e, na funo de editor da revista Dichtung-Digital, capaz de reunir pensadores de todo o mundo em torno do debate acerca das novas maneiras de se compreender o processo literrio. Primeiramente, nada muito original, adentrar as discusses tericas acerca das novas funes da histria e da escrita historiogrfica, uma vez destituda de suas tradicionais funes pragmtica e pedaggica. Hans Ulrich Gumbrecht inicia seu experimento historiogrfico, Em 1926: VivendoPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

no Limite do Tempo com uma advertncia: seu livro no possui incio nem fim definidos:

Simplesmente comece por um verbete que lhe interesse em particular. De cada verbete, uma rede de referncias cruzadas o levar a outros verbetes relacionados. Leia no ritmo que seu interesse determinar (e na medida em que sua agenda permitir). Voc estabelecer, ento, a sua prpria trilha de leitura. Da mesma forma que no existe um comeo obrigatrio, tampouco existe um final obrigatrio ou definitivo para o processo de leitura. (Gumbrecht, 1999, 2).

Independentemente da durao ou do percurso tomado, o efeito deve ser o mesmo ao que alude o ttulo: Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo i.e. o leitor deve sentir-se em 1926. Quanto mais imediata e sensual esta iluso se tornar, mais sua leitura atender meta do livro. (2). A meu ver, o grande salto do projeto terico de Gumbrecht consiste em propor uma alternativa explicao (relativamente lugarcomum) de que o boom do arquivamento e a invaso de passados no presente i.e. simultaneidade teriam sido ocasionados por uma suposta acelerao do tempo. Calcado nas noes sistmicas do socilogo alemo Niklas Luhmann, o autor aventar que o surgimento da simultaneidade estaria relacionado no acelerao do tempo, mas ao desaparecimento do sujeito. Mas como explicar esta necessidade de olhar constantemente para trs se sabemos (Gumbrecht o sabe) que no mais se pode derivar da Histria lies prticas para a vida cotidiana?

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Em um grupo de ensaios publicados pela Stanford University Press em 2004, sob o ttulo Production of Presence: What Meaning Cannot Convey, Gumbrecht declara explicitamente que seu interesse em mundos passados responde, em muito, a um fascnio e a um desejo especfico de re-presentific-los. Se isso o aproxima da experincia esttica, ora, tanto melhor:What most interests me today in the field of history, the presentification of past worlds that is, techniques that produce the impression (or, rather, the illusion) that worlds of the past can become tangible again is an activity without any explanatory power in relation to the relative values of different forms of aesthetic experience. (2004, 94-95).

Previsivelmente, a primeira acusao feita proposta de Gumbrecht no livro Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, que sua proposta geraria uma espcie dePUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

despolitizao da Histria e sua conseqente estetizao. Certamente uma questo que, a mim, inquietou e inquieta ao escrever estas linhas aps dois anos de vasta leitura tanto do prprio Gumbrecht quanto daqueles que o sustentam em suas teorias. No haveria uma obrigatoriedade de pensar novas funes para o passado que transcendessem de fascnios ou interesses? Inicialmente, parecem-me bastante ilustrativas as pesquisas cognitivas executadas no campo da inteligncia artificial. Simular o olhar humano tarefa bem mais complexa do que a mera captao de imagens i.e. o olhar da cmera olhar, ou perceber , acima de tudo, selecionar e priorizar. precisamente esta dificuldade que o cientista Douglas R. Hofstader explora em seu artigo On Seeing As and Seeing As. (Hofstader, 1995). Citando o eminente matemtico Stanislaw Ulam em um dilogo com seu colega Gian-Carlo Rota, Hofstader cita a seguinte provocao de Ulam feita a Rota a respeito dos caminhos do campo da Inteligncia Artificial (AI):

What makes you so sure that mathematical logic corresponds to the way we think? Logic formalizes only a very few of the processes by which we actually think. The time has come to enrich formal logic by adding to it some other fundamental notions. What is it that you see when you see? You see an object as a key, a man in a car as a passenger, some sheets of paper as a book. It is the word as that must be mathematically formalized.... Until you do that, you will not get very far with your AI problem. (Ulam, SEHR, volume 4, issue 2: Constructions of the Mind, 1995).

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A capacidade de perceber funes e contextos remete exatamente s delicadas articulaes entre aspecto associativo e o carter narrativo da construo de conhecimento: questes indispensveis tanto ao modelo de Gumbrecht quanto elaborao de uma esttica intermiditica que se possa classificar de literria. Uma nica certeza nos resta: hoje, em abril de 2007, efetuadas as muitas travessias no campo das cincias humanas e sociais, nossa concepo tradicional de histria (como texto verbal caracterizado por uma configurao especfica) encontra-se, no mnimo, afetada. Certamente que uma dissertao sobre o tema no poder, ou melhor, no desejar esquivar-se de tais provocaes. H exatos 28 anos, um dos padrinhos tericos do Ps-Modernismo, Jean Franois Lyotard, publica seu A Condio Ps Moderna,PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

prenunciando ou anunciando o esgotamento das metanarrativas como estratgias de legitimao. Se anteriormente (antes de 1979), a formao do indivduo (Bildung) caracterizava-se pela interiorizao de conhecimentos, a condio psmoderna reverte este percurso (Lyotard, 2002). A proliferao de bibliotecas e museus, a epidemia do arquivamento, e principalmente a Internet, consolidam a explosiva exteriorizao do saber, como coloca o crtico Silviano Santiago em seu posfcio 9 edio da obra de Lyotard no Brasil. (Santiago, 1990). Atirado num oceano de informaes, novos problemas emergem: que memria acessar? Tomando as palavras recentes do crtico alemo radicado nos Estados Unidos, Andreas Huyssen, acerca de um notrio boom mnemnico:() it seems fair to ask: once the memory boom is history, as no doubt it will be, will anyone have remembered anything at all? If all our past can be made over, arent we just creating our own illusions of the past while getting stuck in an ever shrinking present the present of short term recycling for profit, the present of in-time production, instant entertainment, and placebos for out sense of dread and insecurity that lies barely underneath the surface of this new gilded age at another fin de sicle? Computers, we were told, would not know the difference between the year 2000 and 1900 but do we? (Huyssen, 2003, p. 21).

O Y2K, ou o bug do milnio, prometia fazer com que sistemas confundissem 2000 com o ano 1900 gerando, pois, um apocalipse de propores impensveis. Tal, bug, ou inseto, resultante de nosso prprio erro de clculo, deglutir-nos-ia de forma to

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inexorvel quanto a prpria morte. O jornalista da revista Isto , Norton Godoy, escreveria em 1999:Esse um problema absolutamente peculiar. Sua causa banal, para no dizer ridcula. Quando o computador passou a ser uma ferramenta comercial nos anos 50, sua memria ainda era muito cara. Para se ter uma idia, em 1965 um megabyte de espao de memria magntica (suficiente para gravar um texto de 300 pginas) custava US$ 761. Hoje [em 1999], o mesmo espao no chamado disco rgido de qualquer PC custa a pechincha de US$ 0,75. Ento, para economizar o espao que era muito caro, os engenheiros da poca adotaram a prtica de cortar e abreviar tudo o que fosse possvel, inclusive os dois primeiros dgitos comuns a todos os anos do sculo XX - 1958 era registrado apenas como 58 para efeito de processamento. Ningum se deu conta que, quando houvesse a passagem de 1999 para 2000, o computador no entenderia porque 00 tem que ser maior que 99. Como todos os computadores e os chips embutidos neles funcionam amparados em datas, a concluso do raciocnio absolutamente lgico das mquinas ser a de que 00 significa 1900 e no 2000. Resultado: ou ele trava ou remete o trabalho para o incio do sculo XX, com conseqncias desastrosas como, por exemplo, uma conta de carto de crdito computar 99 anos de juros. (Godoy, 1999).

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Assim como Godoy, Huyssen digitava seus anseios e receios sem qualquer indcio de que o Y2K entraria para os anais dos grandes fiascos que costumam irromper em momentos de grandes transies. Contudo, cabe perguntar o que teria ocorrido caso contrrio, ou seja se as previses apocalpticas houvessem se concretizado. Bem, de incio, estaria a frgil raa humana atirada de volta a mil e novecentos e um. Dada a importncia das temtica da temporalidade neste estudo, a ironia beiraria o catastrfico, sem dvida. Contudo, Thomas Edison no retornou da tumba, e a virada ocorreu, para desapontamento geral, como outra qualquer: tmida, regada a champanhe, e transmitida ao vivo pela rede americana CNN para um planeta aptico. This is the way the world ends. / Not with bang, but with a whimper. - escrevera T.S. Eliot no ano de 1925. Teramos sado impunes? Creio que no. Outros eventos inesperados no

tardariam a abalar estruturas regentes e, logo transformados em extensos programas televisivos com sbrios ares de notcia, inundaram nossas mentes e telas. Reafirmada, portanto, a sociologia do saudoso socilogo alemo, Niklas Luhmann, que definia a contingncia como palavra de ordem da era contempornea. Disso

restou uma certeza: o presente seja o nfimo milionesimal de Huyssen, ou expansivo como o quer Gumbrecht encontra-se invadido como nunca de objetos

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do passado: modas retr, revivals de toda a sorte: Como tudo indica, o nosso olhar para o futuro h algum tempo devolvido por um vidro branco fosco, intransponvel. (2002: 60). Temor do que h por vir? Retornemos ao ano de 1926. No livro Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, Gumbrecht anetecipa-se crticas prematuras e, j no manual do usurio, explicita a Questo que o leva escrever um ensaio sobre simultaneidades: O que fazer com o conhecimento do passado agora que perdeu sua funo didtica? (11). Em Narrating the Past as if it Were Our Own Time, Gumbrecht j intura que uma proposta sria para novas historiografias deveria ter como ponto de partida uma investigao que levasse em conta aquilo que nos impulsiona a buscar realidades histricas: nosso fascnio com o passado. Partindo da hiptese de que o desejo de olhar para trs encaixa-se naPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

categoria

de

constante

antropolgica,

Gumbrecht

recorre

interpretao

fenomenolgica de Edmund Husserl a respeito do conceito de mundos-da-vida (Lebenswelt). O Lebenswelt, segundo Husserl, compreenderia uma totalidade das formas culturais do comportamento humano 1 . Apontando a necessidade de diferir tal conceito de um outro mais restrito, Mundos-Cotidianos uma espcie de reduo prtica dos mundos-da-vida Gumbrecht aventa a hiptese de que certas invenes concretas existentes no mundo cotidiano atenderiam a desejos mais profundos, paradoxalmente excludos do leque das possibilidades humanas, embora pressupostos ou implcitos nos mundos-da-vida. (Gumbrecht, 1998 (I) 159). Telefones, por exemplo, atenderiam, em ltima anlise, a um desejo de onipresena, a vasta memria dos computadores um anseio por oniscincia e a Histria atenderia, assim, a um desejo de eternidade. (1999: 467). Admitindo que sua busca motivada por um desejo de representao natural, o que talvez pudesse ser compreendido como histria sensvel. Em artigo intitulado

Para uma viso mais aprofundada recomenda-se dois textos do prprio Gumbrecht, o primeiro j citado Narrating the Past as If it Were our own Time contido na coletnea Making Sense in Life and Literature, e o segundo intitulado Mundo Cotidianoe Mundo da VidaComo Conceitos Filosficos: Uma Abordagem Genealgica. In Castro Rocha, J. (org.) (1998).

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Produo de Presena Perpassada de Ausncia: Sobre Msica, Libreto e Encenao, Gumbrecht comenta:O que realmente me fascina (...) o que permanece excludo, mais implicitamente postulado, na produo e identificao de sentido. Interessa-me aquilo que chamarei de produo de presena, em que o aspecto da espacialidade acentuado no conceito de presena, em detrimento do aspecto da temporalidade. (Gumbrecht, 2001: 10).

Claro est que sua busca um modelo representativo para o passado que privilegie tambm o aspecto sensrio da experincia e das vivncias no poder esquivar-se de certo grau de construtivismo: sim, o mundo s nos acessvel via cognio (e isto no implica na negao da existncia de realidades materiais) e ainda que uma aproximao total isto , no mediada de uma realidade passada seja impossvel, aPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

investigao do prprio fascnio produzido pela histria contm potenciais imensos. A aposta bsica de Gumbrecht, em seu ensaio de simultaneidade histrica, localiza-se na crena de que a simulao de imediao reduzir a obrigatoriedade de uma aproximao hermenutica para com o conhecimento do passado. Evidentemente que no se trata de um devaneio acadmico. Aquilo que se faz presente, j no sentido etimolgico da raiz latina prae-esse, coloca-se diante de ns e passvel de toque. Num primeiro contato, o raciocnio por trs de Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, poder soar incrivelmente ingnuo: j que no sabemos o que fazer com nosso vasto conhecimento do passado, devemos examinar os impulsos que motivam nosso interesse. O primeiro passo mostrar-se- no to

elementar: de antemo, exige-se a renncia aos preceitos da hermenutica clssica, que distingue no sujeito a capacidade de interpretar objetos (significantes) de forma a encontrar neles sentido (significados). Como desatar amarras to profundas? Uma pista seria, para Gumbrecht, a troca de modelos clssicos de representao historiogrfica (narrativos e teleolgicos) i.e. redutores de complexidade em favor de quadros sistmicos que privilegiem a contingncia e a simultaneidade (2004: 122-123). Neste sentido, a crtica de Gumbrecht ao Novo Historicismo no deixa de ser relevante, pois elucida (ainda que por negao) alguns dos aspectos mais complexos

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do modelo por ele proposto. Em primeiro lugar, Gumbrecht discorda veementemente da idia de que escrever Histria pudesse significar fazer Histria:Num primeiro (e comparativamente inofensivo) nvel, frases como a inveno de classes parecem ter estimulado a crena que estas realidades so de fato produtos da intencionalidade humana e das invenes humanas. (1999, p.464).

O que fazer com o conhecimento histrico agora que no mais se poder aprender com ele? indagar o autor em uma das janelas que se pode abrir pressionando a tecla Help localizada no Manual do Usurio. Antes de tudo, h que reformular a pergunta. Sem temer as conseqncias (imprevisveis) de tentar tornar o passado novamente disponvel i.e. pronto para pegar (Zuhandenheit), Gumbrecht abre caminhos inditos para formulaes afirmativas (em um mundo toPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

abarrotado de negativas) acerca do que ns, hoje, acreditamos que a histria realmente seja. Atualizando ainda mais a discusso, percebemos considervel congruncia entre as buscas de Gumbrecht e as investigaes do crtico alemo Roberto Simanowski acerca de critrios estticos adequados s formas literrias digitais. Tais empreitadas aludem polmica demarcao dos limites do campo estritamente literrio face s novas exigncias impostas pelo cybernetic turn. Evidentemente, a noo de que certos textos simplesmente extrapolariam o formato linear do escrito impresso, habita o centro de uma mirade de argumentaes fomentadas pela virada ciberntica. Como aponta Heidrun Krieger Olinto em seu ensaio intitulado Fogos de Artifcios Verbais:Escrever na rede no se refere adaptao do processo produtivo usual para uma nova mdia de representao, mas caracteriza antes, um procedimento que se funda nas possibilidades estticas especficas da mdia digital, acentuando, portanto, a diferena. Esta literatura no ter o livro como estgio final, e consiste de textos impossveis de serem lidos da esquerda para direita e do incio ao fim, porque o leitor precisa, primeiro configur-las e s vezes at escrev-las. (Olinto, 2005:42).

Reduzir a literatura digital a um mero processo de re-mediao seria destitu-la de sua riqueza e complexidade. Precisamente por recusarem fixao dentro de

categorias pr-estabelecidas, esses novos objetos reconduzem o debate acadmico para as maneiras inditas de teorizao. E neste ponto que tais teorias se aproximam

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do projeto historiogrfico de Hans Gumbrecht. Ambas provocam a necessidade de um olhar acrescido de complexidade. Assumir e privilegiar a dimenso

multimiditica de obras estticas criadas na rede exige no menos esforo cognitivo do que a proposta de re-presentao do passado, que implica em produzir, de fato, sua presena no presente. Como uma hiptese parcial deste encaminhamento, cabe introduzir uma terceira categoria de subjetividade: a transubjetividade, baseada no conceito de

transculturao (transculturality), desenvolvido pelo critico da cultura alemo Wolfgang Welsch.

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The transcultural webs are, in short, woven with different threads, and in a different manner. Therefore, on the level of transculturality, a high degree of manifoldness results again it is certainly no smaller than that which is was found between traditional single cultures. Its just that now the differences no longer come about through juxtaposition of clearly delineated cultures (like in a mosaic), but result between transcultural networks, which have some things in common while differing in others, showing overlaps and distinctions at the same time. The mechanics of differentiation has become more complex but it has also become genuinely cultural for the very first time, no longer complying with geographical or national stipulations, but following cultural interchange processes. (Welsch, 1999: 8).

Em lugar da oposio eu e o outro, o que podemos da inferir uma nova categoria: o transujeito uma espcie de leitor-feito-autor-feito-ator-feito-(com) texto. Acentuando um verdadeiro enlace funcional entre autor e receptor, o crtico das novas mdias norte-americano, George Landow, sugere uma reformulao da concepo de sujeito. A leitura de Landow, acoplada a uma anlise das teorias de presena de Gumbrecht e, especialmente, ao estudo do experimento Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, sugere o abandono do conceito de sujeito centralizado, e a configurao deste nico-mltiplo como ponto nodal inserido em uma rede. Curiosamente, este sujeito-mltiplo-online interage com seu ambiente de forma predominantemente associativa, sempre visando extrair desses objetos estticos em emergncia experincias sensveis. Bem entendido, tal abertura aos afetos no , de forma alguma, algo novo. Essas propostas radicais encontrariam mais tarde

ressonncias mais tnues em modelos como o de produes de presena, em

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Gumbrecht.

No ensaio Depois de Aprender com a Histria, adendo contido em

seu livro-experimento Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, o autor lana a problemtica pergunta: como podemos ser responsveis pela impresso de que interpretamos e compreendemos o outro se optamos por uma teoria do discurso que nega o sujeito? A resposta s se torna possvel atravs de uma reformulao do conceito de sociedade nos moldes de sistemas autopoiticos, por exemplo. Segundo Niklas Luhmann, sistemas funcionam de maneira cega: they do what they do. They reproduce the system, diz Luhmann (Luhmann, 1998). Logo, noes de compreenso ou interpretao seriam necessariamente elaboradas internamente i.e. resultado de uma mera oscilao entre a auto-referncia do prprio sistema (A) e aPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

referencia interna que este (A) atribui ao outro (B).

Para Luhmann, torna-se

problemtica uma teoria fundamentada na correspondncia entre modelos interpretativos e uma realidade exterior e anterior. Conseqentemente, tambm as teorias hermenuticas que se orientam neste mesmo princpio. Nesta situao, creio ser a tarefa de estudiosos da literatura no simplesmente ignorar as transformaes em curso que afetam diretamente o sistema literrio mas investigar seus possveis novos lugares, funes e contextos. Algumas conseqncias se tornam evidentes no contexto do debate acerca das literaturas digitais emergentes. Face inexistncia de formas de teorizao integradas, minha proposta se entende como uma tentativa de elaborao de elementos tericos a partir de um estudo da proposta historiogrfica de Hans Gumbrecht Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo. Com isso pretendo iniciar abordagens a novas condies de superposio do fenmeno literrio interficcional. Fenmeno este que acrescenta compreenso baseada na seqencialidade verbal uma percepo visual instantnea e uma nova concepo de temporalidade. Em seu

conjunto, tais propostas demandam desenvolvimento de novas competncias de compreenso e descrio. Em tempos de hyperlinks e super-highways, evocamos o profeta Lyotard. Diria ele que o si mesmo, ou self, embora por si fraco, no est s, tampouco est preso a um local ou ponto. (Lyotard, 2002:28). Ao contrrio, mvel,

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fludo, leve, rpido assim como previu talo Calvino em suas propostas para este milnio que hoje nosso. A priori, trata-se de um deslocamento do campo da construo da subjetividade para um mergulho mais aprofundado na esfera da inter-subjetividade e, mais ainda, no campo da transubjetividade descrita pelo socilogo alemo Wolfgang Welsch. Aqum mesmo do observador de segunda ordem proposto por Luhmann, este novo sujeito auto-reflexivo-observador-e-observado lanado em um jogo de espelhos de bibliotecas infinitas e runas circulares que finalmente o conduzem era de incertezas que hoje experimentamos. No tocante ao papel institucionalizado do sujeito i.e. o sujeito intelectual a situao se torna opaca, uma vez que as prprias fronteiras se tornam flutuantes: talPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

qual o estrangeiro descrito pela terica da literatura, Julia Kristeva, este trans-sujeito formado de multiplicidades, inescapvel observador de terceira ordem, jamais percorre um solo firme, pois todos os objetivos deveriam se consumir e se destruir no louco impulso do errante em direo a um alhures sempre recuado, insaciado, inacessvel. (Kristeva, 1994). No h trguas ou domiclios possveis; no h terra prometida. H apenas travessias mltiplas em terrenos gradativamente aumentados em complexidade. Neste sentido, essas obras de arte em constante estgio de

emergncia habitam eternamente a terceira margem do rio de Guimares Rosa. Relembrando as belssimas palavras de Tzvetan Todorov em seu Aller Retour: aps visita sua terra natal, Sofia, declara o autor que je vis dsormais dans un espace singulier, la fois dehors et dedans: tranger chez moi ( Sofia), chez moi ltranger (Paris). (Todorov, 1996). Sendo o sistema literrio interligado ao social e cultural (Schmidt) entende-se que ao tratar de literatura digital em um mundo de fronteiras mutantes, torna-se necessrio abolir certas distines binrias tpicas, tais como centro e margem, fora e dentro, local e global, como o faz Gumbrecht em seu modelo de cdigos e seus corolrios cdigo em colapso, que descrevem vises da cultura do interior do ano de 1926. Esquivando-nos de qualquer conjectura vazia a respeito dos futuros da humanidade, cabe-nos sugerir que, ao menos culturalmente, o Google assumiria a funo da

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terceira margem onde todos navegamos. Simanowski destaca em seu Interfictions. Vom Schreiben im Netz (Interfictions. Writing in the Net), o aspecto intermiditico dessas novas produes. precisamente por verificar que neste cenrio que se reacende a prenunciada e anunciada morte do livro, parece-me particularmente oportuna uma anlise de um formato comunicativo literrio onde figure, de forma central, o atualssimo de historiografia de presenas de Hans Ulrich Gumbrecht. Revisitados os bosques de teorias comunicativas, percorridas as inter-relaes entre texto-leitor via herana da esttica de recepo e do efeito, aparece como sada plausvel modelos descritivos construtivistas. Desse modo, parece-me oportuno

recorrer s teorias do alemo Sigfried Schmidt, que me seu modelo, prioriza a descrio e explicao do sistema social da literatura, ao invs de enfatizar aPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

interpretao de textos particulares. Que tal se ocupssemos nossas mentes com questes mais modestas?. Ou, como sugere Heidrun K. Olinto, e se alterssemos a pergunta: o que podemos observar por meio de conceitos construtivistas em relao cognio, comunicao, mdia, compreenso e cultura? (Olinto, 2006). A necessidade de um olhar mais cuidadoso sobre modelos interficcionais fundamenta-se exatamente em novas demandas por gestos associativos

(performticos), que influem diretamente nos mecanismos de construo social e individual da realidade. Landow explicita tal condio quando aponta para o

remanejamento de poderes entre autores e leitores, atentando para a necessidade de criao de um intrusive reader (Landow, 1997). Este tipo de leitor que sem dvida tambm o leitor-ideal para o experimento Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo individualizar sua experincia de leitura a ponto de torn-la absolutamente singular, ainda que vinculada a certas noes de mundo que sabemos ter ocorrido apenas no interior do ano de 1926. Esta nfase na materialidade, bem como o contnuo esforo pela recuperao do sensvel no mbito das artes e cultura emergem em um momento de virtualidade quase absoluta. Mas quem pode hoje, honestamente, surpreender-se por paradoxos? Andreas Huyssen, em sua famosa anlise da febre do arquivamento, cita um supervisor de arquivos canadense acerca da fragilidade do neo-arquivo:

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Reflecting on such phenomena, a senior manager charged with information technology at the Canadian archives was recently quoted as saying It is one of the great ironies of the information age. If we dont find methods for enduring preservation of electronic records, this may be an era without memory. The threat of oblivion thus emerges from the very technology to which we entrust the vast body of contemporary records and data, that most significant part of the cultural memory of our time. (Huyssen, 2003, 26).

Ironias parte, trgicas ou no, Huyssen e Gumbrecht esto em pleno acordo quando detectam algo de estranho ocorrendo com os relgios da atualidade.

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O tempo enlouqueceu teriam dito certamente nossos antepassados ( e ainda nossos avs), reagindo a estas impresses de tempo e ao peso da conscincia delas decorrentes, que ameaam hoje acabar em crises-coletivas de auto-confiana. Jean Franois Lyotard, h mais de uma dcada, falou em mobilization gnerale (mas tambm poderamos falar em nervosidade), que permanece em sua prpria condio de presente, por que no se desenvolve em direo alguma em que modificaes decorrentes pudessem ser adicionadas numa transformao histrica. (Gumbrecht, 2002, 56).

Ao leitor de Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo imposta a tarefa no menos impossvel que o desejo do autor de ouvir as vozes dos mortos de conjurar mundos ausentes e senti-los (mais) prximos ainda que tanto ele leitor, quanto, naturalmente, o produtor saibam ser impossvel a vivncia direta, isto , no mediada, de mundos que existiram apenas no passado. Mas o que significaria

vivncia direta? Seria ela possvel em nosso prprio presente?Independentemente por onde voc entrar ou sair, qualquer seqncia de leitura com uma certa extenso deve produzir o efeito ao qual alude o ttulo deste livro: voc deve se sentir em 1926. (1999: 11).

O leitor tem, assim, uma espcie de leitura customizada antecipando experimentos bastante interessantes, como o ousado projeto The Impermanence Agent, proposto pelo terico de mdia Noah Wardruip-Fruin, autor de The New Media Reader (MIT Press, 2003), pea chave na exibio Brave New World, organizada pelo museu Guggenheim em Nova York no ano de 2001. (Wardruip-Fruin, 2004). Ali, atravs das preferncias do usurio, o agente gerava histrias que, por sua vez, relacionavam eventos do mundo real s escolhas individuais. O resultado do

experimento artstico virtual to inusitado quanto convidativo a novas formulaes

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tericas acerca de modelos de redes. E por que isso nos importa? Por ser o modelo de redes o paradigma no qual se insere o ensaio em simultaneidade histrica de Gumbrecht. Ao refletir sobre seu mtodo de seleo e anlise de fontes no ensaio Depois de Aprender com a Histria, ele coloca:A anlise das fontes foi dirigida no para uma frmula totalizante ou para uma espcie de denominador comum do ano em questo, mas para a identificao de uma multiplicidade de tpicos que tenham prendido a ateno em 1926. (22).

A traduo da obra do terico alemo Friedrich Kittler, Discourse Networks: 1800-1900, publicado pela Stanford University Press, para Gumbrecht, uma evidncia da predominncia do modelo das redes:PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

(...) no se trata de uma coincidncia se a metfora tecnolgica da rede [tenha] gozado de crescente popularidade nas nossas disciplinas, pois ela sugere com otimismo uma analogia entre aquelas tcnicas de simultaneidade que os cientistas e os engenheiros parecem controlar e a simultaneidade como dimenso histrica e sociolgica que s agora comeamos a tematizar. (22).

No surpreende que tal multiplicidade gere questionamentos: que tipo de realidade se constri com este acmulo de verbetes? Como qualificar tais inter-relaes?Mas se hoje questionamos a funo pedaggica da histria uma funo que parece visvel tambm no prprio hbito de pensar e representar a histria como encadeamento de eventos numa seqncia narrativa seria necessrio elaborar simultaneamente novas funes e novas formas de escrita para uma historiografia que se quer no-narrativa. (Olinto, 2001, 121).

Se no so causais, ento h que se investigar as novas formas de associao que ocorrem entre os pontos nodais da rede de Gumbrecht. Feito isto, talvez pudssemos nos aproximar de uma concepo mais precisa daquilo que ele aqui representando pessoas educadas dentro da cultura ocidental (Gumbrecht, 199:11), e com a autoridade que apenas o saber atualizado com a rapidez de um processador de ltima gerao lhe poderia conferir acredita que a Histria seja. Este me parece um caminho rico em possibilidades tanto de prtica como de teorizao. Sigamos por ele.

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2 1926: Um Ano Bastante Comum

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2.1 Espao-Tempo

Equao da Relatividade Geral de Albert Einstein (1926)

1926 - RELGIOSTodos os relgios esto invadindo o mundo da fico. Na abertura do romance The Sun Also Rises, de Hemingway, uma jovem francesa com um wonderful smile (mas dentes ruins) convidada para tomar um drinque e mais tarde jantar por Jake Barnes, o narrador. [ver Americanos em Paris]. Entre o drinque e o jantar, Jack e Georgette passeiam pelas ruas de Paris num txi: Settled back in the slow, smoothly rolling fiacre we moved up the Avenue de lOpera, passed the locked doors of the shops, their windows lighted, the Avenue broad and shiny almost deserted. The cab

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passed The New York Herald bureau with the window full of clocks. What are all the clocks for? she asked. They show the hour all over America. Dont kid me. (Hemingway, 15). No fica claro se Georgette entendeu a explicao de Jake sobre os relgios na vitrine do New York Herald. Ser que ela sabe que o globo dividido em 24 fusos horrios? Ela sabe que, no momento em que conversa com Jake, a hora em Paris diferente da hora em cada um dos 23 fusos? [ver Polaridades] Em todo caso, a simultaneidade temporal no uma forma de experincia que interesse a Georgette. A sua vida depende de encontros casuais nas ruas e cafs de Paris, e ela no precisa de outro horizonte alm deste mundo limitado. Existem poucos protagonistas literrios que pensam sobre os fusos ou a relatividade do tempo, e so menos aqueles que conseguem voltar da esfera da relatividade para parmetros cronolgicos individuais e fechados. O banqueiro John S.S., no conto Curiosa metamorfose de John publicado na Revista do Ocidente, um desses heris cosmopolitas. Depois de comer, John saiu sem chapu (...) para passear pelos Jardins de Luxemburgo. Era a hora do dia em que (...) os balconistas faziam os cilindros de suas mquinas registradoras girar como mquinas de jogo, e tambm a hora em que a taxa de cmbio do franco suo em Constantinopla subia. Pensando nisso, John comeou a rir. Porque esta hora do dia quando a correspondncia j tinha sido despachada e a Bolsa de Nova York j estava fechada, tambm era a hora do lanche das crianas, hora do ch com bolo. (Revista de Ocidente, 10-11). Provavelmente por uma falta de experincia cotidiana adequada, o autor da histria confunde a relao entre o horrio padro da Europa Oriental com o da Europa Central. O comeo da tarde em Nova York corresponde meia noite em Paris, e no ao comeo da tarde. Mesmo que John precise levar em conta a pluralidade e a relatividade do fuso horrio quando estiver tomando decises para o seu banco, ele precisa esquec-las aboli-las de sua realidade se quiser apreciar a beleza de uma tarde em Paris. [Ver Incerteza versus Realidade]. (Gumbrecht, 1999, 233-234).

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1926 - INCERTEZA VERSUS REALIDADEExiste o medo de que a verdade no possa ser (e nunca tenha sido) acessvel. Como um ideal reverenciado, a verdade est fortemente presente. Mas, alm disso, as pessoas querem perceber o mundo e os fenmenos como eles so isto , sem distores de perspectiva. Eles no querem um saber e uma compreenso que estejam sujeitos reviso e mudana histrica. Eles ainda acreditam que a posse da verdade ser um fator de aprimoramento e das condies da experincia humana. Mas quanto mais forte este desejo e esta esperana, menos realistas eles parecem. Tal situao afeta diretamente o trabalho da maioria dos intelectuais, e parece tambm ter impacto sobre o comportamento daqueles que no se preocupam com questes filosficas. Como reao a esta desintegrao da verdade como critrio ltimo para o saber, surgem duas atitudes diferentes. Por um lado os intelectuais se queixam de que um mundo sem verdade um mundo catico. Eles buscam as causas dessa crise e as formas de resolv-la. Por outro lado pensadores, sem reprimir a conscincia da inevitvel Incerteza, tentam chegar a um acordo com ela. Eles puseram de lado, adiaram ou

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rejeitaram deliberadamente a questo de saber se o conhecimento humano pode atingir o nvel definitivo da verdade, e tentam estabelecer o valor de qualquer tpico do conhecimento exclusivamente segundo as funes que ele pode executar para a vida humana. No lugar do clssico binarismo verdadeiro versus falso (Luhmann, 167ss.). (Gumbrecht, 1999: 333).

1998 O TERMINAL Aeroportos so emblemas das relaes espao / tempo ps-modernas. Pois uma frase como eu estou em Nova York, se for pronunciada no saguo do aeroporto Kennedy de Nova York por um passageiro sem cidadania americana e sem o visto americano, tem uma pragmtica que, h algumas dcadas, s era imaginvel em casos extremos de exceo. Esse passageiro pode ter visto, na aterrisagem, o Empire State a uma distncia que a fenomenologia do espao parece caracterizar como alcance potencial, no qual o pblico da virada do sculo acreditava que os objetos da tela eram dados sua experincia e ao. Na verdade, para um tal passageiro, o Empire State est fora do alcance potencial. O mundo do saguo do aeroporto, ao contrrio, parte do alcance real, mas esse alcance no Nova York, mas uma esfera sem nome que na experincia se unia aos sagues de trnsito de todos os outros aeroportos. Talvez mesmo hoje proceda a tese de Michel Serres, de que esses espaos de trnsito ou de distribuio (changeurs) estejam no centro da nossa maneira de viver (1987, p. 60). Pois diferentemente de Nova York, visvel agora mesmo para o nosso passageiro, Montreal ou Cidade do Mxico, que ele (ainda) no pode ver, podem estar ao seu alcance potencial seja como for, ele poder encontrar e comprar inmeros vos de conexo para l, se dispuser do visto necessrio. (1998 (I), 279).

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Ignoremos a nfase na obteno de vistos compreensvel a qualquer cidado no ingls que j tenha tentado imigrar, ou mesmo passar inocentes frias em territrios norte-americanos. Claramente, a inquietao de Gumbrecht est diretamente relacionada a uma mudana nas concepes usuais de tempo e espao. O interessante na justaposio dos textos dois deles verbetes constituintes da rede de Em 1926: Vivendo no limite do tempo, e o terceiro proveniente de um ensaio terico intitulado Tempos e Espaos Ps Modernos no apenas a congruncia temtica (sugerindo que linhas convergentes atuam em diferentes pontos cronolgicos), mas a maneira com que o autor tangncia, de forma delicada, uma materialidade nunca atingida. O acaso da escolha do ano de 1926 precisamente o ano em que Martin Heidegger escrevia seu O ser e o tempo denota a confluncia terica de certos

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aspectos bsicos para a compreenso do modelo de simultaneidade histrica de Gumbrecht: especialmente naquilo que concerne sua noo de produo de presenas.

Martin Heidegger estabelece, em Sein und Zeit (ser e tempo) uma relao explcita entre as novas possibilidades tecnolgicas de atravessar distncias e suas prprias anlises do espao como uma condio estrutural para a existncia humana (Heidegger 102 ss.) Atravs de uma daquelas hifenaes que so caractersticas de seu estilo, como um filsofo e escritor, Heidegger transforma Entfernung (distncia) em seu oposto Entfernung (encurtamento da distncia). Este jogo de palavras leva Heidegger tese anloga e derivada da prioridade que ele d Zuhandenheit (pronta para o manuseio) sobre o Vorhandenheit (presente s mos) de que, de um ponto de vista existencial, a proximidade (o resultado do encurtamento da distncia) tem prioridade sobre a distncia (411).

Esta oposio Zuhandenheit vs. Vorhandenheit conduz a uma idia do modeloPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

representativo selecionado pelo autor. O caleidoscpio de sons, imagens e sensaes pertinentes a este perodo de 365 dias entrecruzam-se com cdigos culturais bastante especficos. claro que Gumbrecht tratar de algumas dessas questes baseando-se firmemente nas teorias sistmicas de um de seus padrinhos intelectuais, o socilogo Niklas Luhmann. Este interpreta a sociedade como um sistema, isto , observando-a atravs da distino entre sistema e meio. Diz Armin Mathis, um estudioso de Luhmann, que se deve recorrer aos instrumentos da teoria geral dos sistemas, sobretudo s mudanas paradigmticas que ocorreram nos anos 70 e 80, em funo de novas descobertas nas cincias exatas e biolgicas. Feito isto, h que se manter em mente que a teoria de sistemas autopoiticos trata de entidades auto-referenciais e operacionalmente fechadas. (vide item 2.7). A sugesto de Gumbrecht de pensar histria como simultaneidade reflete um momento acadmico que ele classifica como comparativamente fraco (1999:12). Escorando-se na reformulao sistmica de Luhmann, Gumbrecht chega importante concluso de que a nfase na espacialidade sintomtica da crise da subjetividade e enfraquecimento do paradigma hermenutico est relacionada a mudanas epistemolgicas que ocorrem no prprio momento de produo do livro (1997). Dada a universalidade atribuda e j incutida no campo hermenutico v-se que a proposta de Gumbrecht, ainda que assuma uma posio de ponta nos contextos

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acadmicos, enfrenta dificuldades parte.

Valendo-nos das palavras de David

Wellbery no prefcio ao livro de Friedrich Kittler:

[The] breadth of appeal is built into hermeneutic theory itself, which conceives of interpretation as our stance in being: we cannot but interpret, we are what we are by virtue of acts of interpretation. Hence the universality claim (Universalitaetsanspruch). (Wellbery, 1990: 2).

Por um lado, trata-se de um ambiente vido por rejeitar paradigmas e decretar a morte de uma mirade de certezas, por outro, recusa-se a oferecer alternativas s lacunas que insiste em denunciar. Ao traar uma breve genealogia da relutncia em abandonar o passado como fonte de conhecimento, Gumbrecht situar seu projeto de forma bastante precisa dentro de um quadro complexo que se poderia conceber comoPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

uma espcie de prembulo to necessria teoria do presente (1994:26). Em sntese, pode-se dizer que a operao de contextualizao genealgica de Gumbrecht foca-se em trs eixos bsicos: a perda da conscincia histrica, a historicizao do tempo histrico derivada da percepo de que a prpria construo do tempo histrico dominante desde o sculo XVII at o XX culturalmente especfica e, por fim, a crise da subjetividade. Um caminho vivel consistiria, para Gumbrecht, na troca de modelos clssicos de representao (narrativos e teleolgicos) em favor de quadros sistmicos que privilegiem a contingncia e a simultaneidade:Uma crtica sistmica da hermenutica teria que comear com a reformulao da psique humana (sistemas psquicos) e das sociedades humanas (sistemas sociais) intrnsecas aos sistemas autopoiticos. (Gumbrecht, 1999:471).

Para esclarecer e pontuar ainda mais o elo entre a historiografia proposta por Gumbrecht e as teorias de Luhmann, tomo as palavras de Heidrun Olinto em seu ensaio, Voracidade e velocidade: Historiografia literria sob o signo da contingncia:Teorias que adotam a contingncia como objeto de sistematizao precisam lidar com de transio sem permanncia, com disparidades, fenmenos regionais e locais no universalizveis. Essa contingncia confere aos fenmenos um estatuto particular fundado sobre incertezas e constantes processos de redefinio. Nesta situao, emergem as teorias sistmicas de Luhmann como promissoras e vantajosas, uma vez que abandonam hipteses de identidade e favorecem suposies de diferena. O seu modelo, baseado na

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hiptese de diferenciao entre sistema e entorno, permite uma anlise da sociedade como funcionalmente diferenciada que insere, entre outros sistemas sociais parciais, o sistema artstico. Um olhar sobre o conjunto de suas propostas evidencia uma impressionante dimenso multi-estrutural e policontextual, correspondendo despedida enftica de quaisquer fundamentos ontolgicos estveis. (Olinto, 2001: 1).

Gumbrecht aposta na premissa de que seria possvel reunir num s quadro terico duas correntes distintas: de um lado, a destemporalizao do cronpio do tempo histrico e, de outro, a crise da representabilidade, apontada e divulgada por Michel Foucault.

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O que talvez nos separe mais claramente do incio da modernidade a sua confiana confiana cega, como muitas vezes constatamos no conhecimento do observador de primeira ordem. Entre o incio da modernidade e nosso presente epistemolgico h um processo de modernizao, abrangendo as dcadas em volta do ano de 1800, que gerou um observador que incapaz de deixar de se observar ao mesmo tempo em que observa o mundo. (Gumbrecht, 1998, 13).

Na

genealogia

da

episteme

foucaultinana

tal

ordem

transforma-se

completamente j no momento em que Descartes separa cogito da res cogitans, estabelecendo, pois, a dicotomia sujeito / objeto. O cogito traz em si uma espcie de bomba-relgio que hoje vemos explodir. De acordo com esta viso, tanto para

Gumbrecht, Luhmann e Foucault, esto estabelecidas as pr-condies para o nascimento da modernidade. No mais parte integrante e indissocivel do universo, o homem passa a ver-se a si mesmo como excntrico ao mundo que o circunda. Como tal, torna-se capaz de conhecer este mundo transforma-se no produtor de saberes. (13). Gumbrecht atribui esta separao sujeito / objeto a um eixo horizontal das

mudanas epistemolgicas que culminam no perodo que hoje classificamos de psmoderno. O eixo vertical conteria o surgimento do campo hermenutico

precedendo em sculos a instituio disciplinar da Hermenutica propriamente dita.

Penetrando o mundo dos objetos como uma superfcie, decifrando seus elementos como significantes e dispensando-os como pura materialidade assim que lhes atribudo um sentido, o sujeito cr atingir a profundidade, i.e. a verdade ltima do mundo. A interseo dessas duas polaridades entre sujeito e objeto, entre superfcie e profundidade constitui, sculos antes da institucionalizao da Hermenutica

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como subdisciplina filosfica, aquilo que podemos chamar de campo Hermenutico. (1998 (I), 12).

Acontece que o campo hermenutico presume que a materialidade do mundo concreto oculta verdades mais profundas. Apenas o homem, dotado da capacidade e interpretar, poder ento extrair das superfcies descontnuas e deficientes, significados ordenaes e, portanto, conhecimento.

2.2PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

Dictionnaire des Ides ReuesTEMPS : Eternel sujet de conversation. Cause universelle des maladies. Toujours sen plaindre. TERRE : Dire les quatre coins de la terre, puisquelle est ronde. THME : Au collge, prouve lapplication, comme la version prouve lintelligence. Mais dans le monde il faut rire des forts en thme. TOILETTE (des dames) : Trouble limagination. Gustave Flaubert

Ao apontar o Dictionnaire des Ides Reues de Gustave Flaubert como fonte inspiradora ao menos do modelo rizomtico que jamais se quer fechado ou totalizante Gumbrecht admite que embora no seja o Dictionnaire um modelo vivel de historiografia justamente por no se propor a conjurar mundos passados:

(...) No conheo qualquer outro texto que proporcione aos leitores de hoje uma iluso to poderosa de experimentar por dentro de um mundo cotidiano passado. Alm da arbitrariedade descentralizadora da ordem alfabtica, dois aspectos contribuem para este efeito. Flaubert trata como citaes os lugares-comuns que compilou, como fragmentos de uma realidade histrica e no como descrio desta realidade. Eles aprecem como citaes (embora no estejam cerradas entre aspas) porque no existe voz ou discurso autoral que os comente ou que os coloque numa perspectiva histrica. (Gumbrecht, 1999, 485).

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Certamente no se pode dizer o mesmo de Gumbrecht: Nas sees Dispositvos, Cdigos e Cdigos em Colapso, o texto pretende ser no estritamente descritivo, o que por si j gera questionamentos entre as tnues

fronteiras entre os atos de narrar e descrever. E decerto que um olhar cuidadoso sobre o texto de Gumbrecht apontar no apenas uma, mas uma srie de instncias onde se pode argir que o texto extrapola seu comprometimento com a descrio pura (de concretudes e superfcies dominantes) para recair na narrativa pura e simples. Afirmo isso no apenas calcada nos inmeros exemplos das vrias citaes includas nos seus 51 verbetes, mas em exemplos de prosa descritiva tais como, por exemplo, a passagem que se encontra dispositivo intitulado Artistas da Fome, onde se um certo encadeamento narrativo no fica evidente (no, ao menos, um que se possa chamar dePUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

aristotlico clssico, calcado exclusivamente na causalidade), o carter descritivo dos verbetes encontra-se constantemente invadido por observaes autorais altamente interpretativas:

ARTISTAS DA FOME (...) Uma dinmica sadomasoquista semelhante atrai milhares de espectadores pagantes para as jaulas dos artistas da fome embora isto seja freqentemente camuflado sob vrios discursos filosficos e at teolgicos. As massas que ficam diante das jaulas admiram o paradoxo de uma existncia humana que, isolada de seu alimento terreno, adquire uma forma quase transcendental: Ns bebemos o vento, provamos os gases / fumamos gordura com leo vermelho-flamejante / ns saboreamos, e quando neva revolvemos o solo. A boca apaziguada (Becher, 134). [Ver Imanncia versus Transcendncia] (1999:30). Vejamos ento:

IMANNCIA VERSUS TRANSCENDNCIA Freqentemente, um escritor usar conceitos e metforas de natureza tradicionalmente religiosa apenas para mostrar que os homens podem passar sem eles. Uma das maiores preocupaes do momento entre os intelectuais transformar elementos de Transcendncia em elementos de Imanncia. Parece que as idias e imagens da Transcendncia so evocadas apenas para serem imediatamente rejeitadas, quase com desprezo. A distino entre os mundos cotidianos e os mundos transcendentes raramente mantida. Os discursos de ideologia poltica so as excees mais bvias

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nesta tendncia, mas nem sempre fica claro se os espaos transcendentes que eles denotam devem ser levados a srio ou se so puramente ornamentais (321).

Gumbrecht pretende aferir a cada um dos verbetes um certo clima, ou atmosfera especfica (Stimmung) daquilo que representam, atribuindo este fato a um certo tom heideggeriano presente no livro. Isso de fato ocorre, mas uma observao no pode deixar de ser re-enfatizada. A combinao teoria / descrio (implicando em interpretao) inegvel na obra de Gumbrecht. Como um ltimo exemplo, tomemos o verbete Reprteres: O verbete Reprteres contido em Em 1926, ilustra exatamente as nuances e congruncias no apenas semnticas, mas tambm tericas, entre os conceitos que caracterizam as discusses tericas acerca dos novos rumos da historiografia e aquilo que, entendemos, eram vises de mundo experimentadas doPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

interior do ano de 1926.

REPRTERES: Em sua edio de 26 de junho, a revista Die literarische Welt (O Mundo Literrio) traz um debate sobre reportagens e literatura. Ao lado de importantes autores nacionais como Max Brod, Alfred Dblin, Leohnard Frank e Heirich Mann, o jornalista Leo Lania analisa o impacto do jornalismo nos estilos da literatura contempornea. Lania se concentra na relao entre o que chama de voz penetrante do presente e um estilo particular de pensamento: A penetrante voz do presente no pode ser ignorada. Ela arrasta os mais romnticos de seus cantos reclusos para a impiedosa luz do dia. L todas as coisas ganham novas formas e cores, e seu significado e existncia se revelam para aqueles que tm coragem de medir seus contornos sem pretenso. Olhar para elas, ouvi-las, experiment-las novamente as aproxima da experincia vivida (Lania, 322). Vindo no final de uma seqncia de verbos medir, olhar, ouvir que devem caracterizar a relao do reprter com o mundo o conceito de Erleben recebe uma nfase especfica no texto de Lania. Ele volta na forma do incomum substantivo der Erleber (o experimentador) numa srie de citaes, artigos e resenhas recentes, com os quais o editor de Berlim Eirich Veiss Verlag anuncia a dcima quinta edio do livro Der rasende Reporter (O Reporter Furioso), de Ergon. (1999, 241).

Exercendo a funo de re-produzir, com o maior grau possvel de materialidade, percepes de superfcies dominantes e vises de mundo, tais como elas eram produzidas por determinados conceitos, durante o ano de 1926, os 51 dispositivos que compem Em 1926 possuem uma caracterstica bastante peculiar. Por terem estilos e estruturas determinados por seus temas, os dispositivos tentam aproximar-se

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de Erleben i.e. experincia vivida, em contraposio Erfahrung, ou experincia que pressupe interpretao. Como j previamente explicado, o termo Erleben serve como uma espcie de intermedirio entre percepo e experincia. Ao

produtor coube buscar pontos nodais especficos e pertinentes. Gumbrecht bastante enftico ao declarar que o sucesso de seu experimento est intimamente relacionado com o fato de os verbetes no terem sido inventados. (10). Dito de outro modo, o sucesso do livro depende da inequvoca referencialidade de seu contedo. A representificao de mundos passados , para Gumbrecht, compreensvel se pensada em termos teatrais: uma re-encenao de um quadro complexo. Todavia, a

comparao com o teatro e a fico serve a um propsito bastante preciso a um terico com a vasta experincia que possuiu Hans Gumbrecht. No se trata de umPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

romance histrico, e os cdigos da fico, embora aplicveis criticamente, no so suficientes para avaliar a obra.

A minha metfora predileta para uma caracterizao desta perspectiva [de simultaneidade de posies, fenmenos e gostos freqentemente contraditrios] , portanto, a de encenar um quadro complexo que, na sua simultaneidade reuna a exterioridade dos objetos mltiplos e oferea espao para uma pluralidade de espectadores e observadores. (Gumbrecht, 1994, p. 18).

Evidentemente que toque um conceito bastante escorregadio quando empregado neste contexto de re-presentificao de mundos: olhar, cheirar, ouvir. Embora a argumentao de Gumbrecht seja calcada na hiptese de que o conhecimento do passado perde sua funo pedaggica, ainda assim nos imperativo examinar os impulsos que motivam nosso fascnio. O quadro sincrnico de Em 1926 formado por 51 pontos nodais (dispositivos 1 ). Esses dispositivos, por sua vez, dividem-se em trs categorias distintas e interligadas: dispositivos, cdigos e cdigos em colapso, que representam respectivamente trs categorias predominantes. Os dispositivos, termo foucaultiano apropriado por Gumbrecht, consistem em artefatos, papis e atividades, cuja relao com corpos humanos so pertinentes a determinadas e

Cf. Termo que toma da historiografia de Michel Foucault precisamente por constatar o carter antiparadoxal da tendncia de dispositivos serem transformados em distines binrias. Ver. Gumbrecht (1999) p. 483.

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especificas vises de mundo observadas apenas no interior do ano de 1926. Por exemplo, transatlnticos, boxe e engenheiros:

(...) eu chamo estas relaes os modos pelos quais artefatos, papis e atividades influenciam os corpos dispositifs ou dispositivos. Coexistindo e se sobrepondo no espao de simultaneidade, grupos de dispositivos so frequentemente zonas confusas de convergncia e tendem, portanto, a gerar discursos que transformam esta confuso na antiparadoxal forma de opes alternativas (digamos, Centro vs. Periferia, ou Individualidade vs. Coletividade, ou Autenticidade vs. Artificialidade) (1999, 483).

Superpostos a esses dispositivos esto os cdigos e seus corolrios, os cdigos em colapso, que seriam equivalentes a mudanas em um modelo de historiografia teleolgico. A nfase num aspecto sensorial do passado, contudo, no deve induzir PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

ao menos, Gumbrecht assim o deseja ao que usualmente denominada de estetizao do passado. (1999, 467). Este depois, utilizado no ttulo do ensaio Depois de aprender com a histria causa mais impacto por desafiar frontalmente atitudes Neo-Historicistas ou saudosistas. Transforma-se em provocao que, ao contrrio de negar as funes da histria, ou mesmo de reduzi-la a meros discursos (aproximando-a da fico), reformula a questo: agora que sabemos que no mais podemos derivar lies do passado, o que fazer sem renunci-lo? Ao construir seu quadro sincrnico, Gumbrecht aproxima-se daquilo que um dos expoentes da Escola dos Annales francesa, Franois Furet, denominaria histriaproblema, apontando, de forma inequvoca, as falhas do modelo tradicional historiogrfico e inevitavelmente narrativo:Ora o que me parece caracterizar a evoluo recente da historiografia o recuo talvez definitivo [da histria vivida no eixo do tempo ou narrativa], sempre florescente ao nvel das produes de grande consumo, mas cada vez mais abandonada pelos profissionais da disciplina. (Furet,1975, 84).

Este abandono dos profissionais da disciplina sintomtico da mudana paradigmtica da qual se ocupa Gumbrecht. Evidente no modelo de Furet est o reposicionamento da figura do historiador contemporneo. Outro notvel da Escola dos Annales francesa, o historiador Paul Veyne, chega a indagar em seu artigo Tudo

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histria logo a histria no existe: Mas o que importante? No se trata antes do que interessante? (Veyne, 1983: 29). Isso nos leva a crer que, se a disposio

maior de Em 1926: Vivendo no limite do tempo tentar atender ao desejo (em ltima instncia impossvel) de falar aos mortos, a aposta bsica localiza-se na crena de que a simulao de imediao trar alternativas a tentativas de compreender o passado como encadeamento de eventos causais, dele derivar leis de mudana, ou simplesmente extrair lies que se possam utilizar no futuro.

2.3 Leia as Instrues!

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No Dasein existe uma tendncia essencial em direo proximidade. Todos os meios pelos quais ns aceleramos as coisas, mais ou menos como somos compelidos a fazer hoje, nos empurram rumo conquista do que remoto [Entferntheit]. Com o rdio, por exemplo, o Dasein estendeu o ambiente cotidiano que ele tinha alcanado atravs de um des-distanciamento [Ent-fernung] do mundo um des-distanciamento cujas implicaes para o sentido do Dasein ainda no podem ser visualizadas. (Heidegger, 1926).

Gumbrecht inicia seu experimento historiogrfico, Em 1926: Vivendo no limite do tempo com um inusitado Manual do usurio, objeto mais tipicamente encontrado em pacotes de software ou acompanhando aparelhos de DVD, televisores de plasma ou geladeiras de ltima gerao. Raramente lidos na ntegra, esses panfletos

costumam acabar no fundo de uma gaveta qualquer ou na mesa de cabeceira do tpico apreciador de guias, almanaques e manuais de toda a sorte. J no leitor de Gumbrecht supostamente no apenas leitor especializado, mas tambm o leitor comum 2 o formato desperta interesse e curiosidade. proposto a ele a experincia de simulao completa: ter vises do mundo de dentro de 1926. Subjacente a isto, est o desafio

Evidentemente que o livro est voltado para a comunidade acadmica. Gumbrecht deixa este fato claro ao falar de seu compromisso com aqueles que o antecederam: o autor sente que uma forte presso est sendo feita sobre sua gerao para que ela apresente algo novo. (GUMBRECHT, 1999. P. 12). Por outro lado, Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo tornou-se um best-seller nos Estados Unidos na ocasio de seu lanamento. (OLINTO, p??).

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terico do autor: indagar-se sobre as possibilidades de um texto afetar sensorialmente seus receptores (vs. outros recursos miditicos literalmente mais imediatos).Sei obviamente que um livro nunca chegar to perto da iluso de tocar, cheirar ou saborear mundos passados como um filme ou museu. Isso explica as duas questes que mais me dominaram ao escrever este livro: at onde se pode ir num discurso historiogrfico para satisfazer o desejo de tornar presentes mundos passados? H funes especficas nesta abordagem que um texto possa cobrir com maior eficcia que outro meio? (1994. p. 18).

Que vem a ser imediao completa? Como sentir-se em 1926 quando lhes so negados imagens, sons, cheiros e rastros deste ano comum, a princpio selecionado aleatoriamente? A propsito, no obstante a ressalva contida curiosamente na seo onde enumera certas regras de bolso para a escrita da Histria, Gumbrecht admitePUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

um possvel interesse familiar que o poderia t-lo influenciado na escolha do ano (a crena de que um de seus avs teria morrido em 1926). Isso me leva a concluir que a inteno do terico-autor, embora ele negue, atende ao comum desejo intelectual de escovar seus materiais a contrapelo, como colocaria Walter Benjamin 3 que, incidentemente, participa como figurante no quadro mltiplo de Gumbrecht. interessante notar as palavras do prprio autor acerca da escolha aleatria de um ano no limiar:

Em relao ao ano de 1926, quero enfatizar que ele no atende ao requisito clssico de ser ano limiar nem antecipa qualquer aniversrio pblico. Inicialmente, eu o escolhi como um emblema do acaso, porque ele parece ser um dos poucos anos do sculo XX para os quais nenhum historiador jamais atribuiu uma relevncia hermenutica especfica. (1999: 475).

Posteriormente, Gumbrecht admite a possibilidade de ter sido influenciado pelo desejo impossvel de ouvir as vozes dos [seus] avs. (475). Seja como for, a importncia no reside propriamente na aleatoriedade da escolha, mas sim nos questionamentos implcitos na tarefa de hoje re-presentificar mundos que j no

Cf. Benjamin, Walter. Sobre o Conceito de Histria. In: Obras Escolhidas: Magia e Tcnica, Arte e Poltica. (Trad. Sergio Paulo Rouanet). Editora Brasiliense: So Paulo, 1996. Evidentemente que aqui adapto o termo a meus propsitos. Qualquer comparao estrita com o sentido que lhe atribui Benjamin recairia assim espero fora do escopo deste trabalho.

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existem mais. A crtica do autor ao Novo Historicismo bastante contumaz 4 . Em prosa acadmica, porm, imbudo da simptica ironia que lhe habitual, afirma categoricamente que embora o Novo Historicismo mantenha ainda a habilidade de impressionar historiadores convencionais (464) clube este, que ele deixa claro que no pretende tornar-se membro ou freqentar h muito perdeu o poder polmico que uma vez o caracterizou. E pior, o movimento sequer obteve foras para substituir o modelo clssico teleolgico de historiografia indubitavelmente obsoleto por uma alternativa vivel de representao do passado.

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2.4 Tutmania

Como pode a tumba de um rei menino se tornar o centro de uma preocupao de mbito mundial? Os objetos que ela contm no so mais belos que aqueles encontrados na maioria de outros sarcfagos reais no Egito; e os historiadores tm pouco a dizer sobre Tutancmon, alm do fato de que ele foi uma figura poltica e culturalmente sem importncia durante seu breve reinado. Em novembro, como escreve Howard Carter no segundo volume de seu estudo sobre a tumba, ele luta para entender a intensidade desta fascinao. Certamente ele no acredita nos poderes mgicos de outro mundo que a imaginao europia associou durante muito tempo a essas tumbas: No minha inteno repetir as histrias ridculas que foram inventadas sobre os riscos de cair numa armadilha que existiria na tumba para destruir o intruso. Histrias parecidas tm sido comuns na fico por muitos anos; so em geral variaes das histrias de fantasmas e podem ser aceitas como uma forma legtima de entretenimento literrio (xxv). Carter se aproxima da fonte de sua estupefao e de sua emoo extraordinria e confusa (vii) quando ele lembra que os objetos preciosos descobertos na antecmara da tumba, mais que impression-lo por seu valor ou sua possvel significao histrica, evocaram uma atmosfera de uma forma de privacidade h muito tempo perdida: Uma miscelnea quase incongruente de objetos e mveis, porta-jias e camas, cadeiras, banquinhos, carruagens e esttuas, entulhava a antecmara. Eram elementos bastante heterogneos mas mostravam, em muitos aspectos, uma arte suave, cheia de afeto domstico, fazendo-nos imaginar se ao procurarmos a tumba de um fara, no teramos encontrado a tumba de um menino (ix). Mas a mediao com o mundo remoto atravs de seus artefatos se faz de formaO que no impede Gumbrecht de prestar homenagem a um dos expoentes do movimento, Stephen Greenblatt, tampouco de ironicamente adicionar o nome de seu colega Hayden White nos agradecimentos: por imaginar Viena durante aquele ano (550).4

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misteriosamente instantnea, quando o arquelogo finalmente olha o rosto de Tutancmon e v o passado se tornar presente:

As experincias arrebatadoras (...) foram muitas, mas agora, olhando para trs, acho que foi quando a ltima das ataduras deterioradas foi removida e os traos do jovem rei foram finalmente revelados, que foi alcanado o auge das minhas emocionantes impresses. Finalmente o Jovem Fara estava diante de ns: um soberano obscuro e efmero, deixando de ser mera sombra de um nome, havia reingressado depois de trs mil anos, no mundo da realidade da Histria! Ali estava o pice das nossas longas pesquisas! A tumba tinha nos entregue seu segredo; a mensagem do passado tinha atingido o presente, apesar do peso do tempo e da eroso de tantos anos. (xxxiii). A emoo de Carter no decorre da beleza ou do conhecimento histrico. O que direciona suas pesquisas um desejo paralelo e complementar s aspiraes daqueles que buscam ativamente o perigo mortal, para tornar a morte uma parte de suas vidas. (1999:220-221). 5PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

Antes de um aprofundamento no tipo de realidade histrica produzida por Em 1926: Vivendo no limite do tempo, oportuno esclarecer os significados de dois termos que aqui sero utilizados e que so intimamente relacionados noo de produo de presenas. O primeiro deles vem a ser a noo de experincia (Erfahrung), que engloba tanto o ato quanto o resultado da interpretao do mundo atravs de conhecimentos previamente adquiridos. O segundo traduzido em

portugus por percepo (Walhrnehmung) e pressupe uma apreenso no mediada do mundo atravs dos sentidos. Entre os dois situa-se um termo intermedirio, normalmente traduzido por experincia vivida ou em alemo Erleben que de suma importncia pois define-se como algo alm da mera absoro do mundo via sentidos, entretanto, exclui interpretao. Quando o antroplogo Carter enuncia sua estupefao diante do desvelamento do rosto do rei menino, Gumbrecht nega que sua reao seja decorrente da beleza ou do conhecimento histrico. No. Trata-se

explicitamente do fascnio do retorno do passado ao presente: a mensagem do passado [que havia] atingido o presente. (220).

***5

Grifo meu.

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Se as filosofias polticas que advogam a Ao direta cobrem um espectro to amplo que inclui do fascismo ao anarquismo, todos os seus defensores compartilham a tripla convico de que o mundo de hoje permeado por uma confuso medrosa, que ele precisa, portanto, retornar urgentemente ao estado de ordem, e que esta s pode surgir da certeza especfica de intuies individuais. Dentro desta viso de mundo carregada de emoo, o medo de perder o controle ainda maior que o desejo de clareza. (1999: 296).

A queda do muro de Berlim para Gumbrecht: O Fracasso mais dispendioso de todas as experincias intelectuais jamais empreendidas marca tambm o fim da filosofia da histria. Assim, se o tempo no pode mais ser visto como agente de mudana, a histria destituda de sua funo pedaggica. Dela no mais se extrair leis de mudana a partir do estudo e observao sistemtica de eventos passados. Com isso, o futuro perde seu estatuto de horizonte aberto de expectativas termoPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

adotado do historiador Reinhardt Koselleck. Ao contrrio, a prxis presente no mais determina ou sequer capaz de prever eventos futuros. No momento atual (marcado por dissensos), o autor detecta a existncia de um consenso restante: de lugar utpico, o futuro transforma-se em um espao de imprevisibilidade. Vive-se na era das incertezas profundas, como eloqentemente coloca Luhmann:The public description of time conceives of the present as the differential of the past and the future, that is, as the time for decision, and this leads to new, highly organized forms of recursivity. Memory and oscillation, selectivity of reconfirmations and uncertainty of the future, are now unavoidable facts of social life. 6

A realizao de prognsticos, que antes se fazia atravs da induo histrica, passa a ser feita atravs do clculo de riscos que como observa Gumbrecht, constitui uma atividade cujo primeiro princpio a imprevisibilidade do futuro. (1999:463). Evidentemente, implcita na noo de risco est uma modificao na acepo do tempo. Aquilo que se modifica da dcada de 1970 para o perodo atual teria relao imediata com a alterao na idia de futuro. Se a modernidade era marcada por uma crena no progresso e conseqentemente no futuro a psmodernidade, como a definem Gumbrecht e Luhmann, vive uma espcie de presente

6

International Review of Sociology Mar97, Vol. 7 Issue 1, p67, 13p.

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alargado 7 .

Em um ensaio intitulado O Presente em (crescente) expanso,

Gumbrecht esclarece:Caso no tenha ficado claro o que [o autor] pretendia dizer com presente em expanso acrescentamos alguns comentrios esclarecedores. Ele no est pensando no nvel de descrio fenomenolgica que, segundo Husserl, define o tempo como forma de vivncia, porque intuitivamente fica claro que o momento do presente no fluxo (fenomenolgico) da conscincia, o momento de transio entre o eco do que acabou de passar e a antecipao do prximo momento, que este momento vivencial do presente entre uma percepo apenas fsica e a sua interpretao semntica resiste, em grande parte, mudana histrica. (2002, 55).

Em um ensaio intitulado Describing the Future, quarta parte de sua coletnea Observations on Modernity, de 1998, Luhmann chama a ateno do leitor para a estranheza da formulao do prprio ttulo impossvel descrever aquilo que aindaPUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

no pode ser visto:Why should we describe the future? And how can we do so when what is described is not yet visible in the present? This is precisely the point to be examined here. At the same time there is an intentional distance to perspectives of knowing and wanting. (1998: 63).

Antes ento de esboar prognsticos afinal como saber qual ser o futuro se este ainda no est visvel no presente? Por que desenvolver projetos ou criar Luhmann decide

expectativas a respeito de um tempo ainda inexistente? investigar as manifestaes do futuro no presente.

My point of departure is that there is no right answer to any of these questions. All statements about the future depend upon the society in which they are formulated. Concepts of time and concepts of history. (1998: 63).

Dito isto: sociedades contemporneas ainda tm necessidade de descrever o futuro o que no se pode mais fazer atravs de induo histrica e, portanto, passa a ser feito atravs do clculo de riscos, como j referido. De acordo com este modelo (vide grfico abaixo) sociedades modernas experimentam o futuro como pura contingncia.

Cf. O ensaio de Gumbrecht O Presente em (Crescente) Expanso IN: OLINTO, H.K & SCHLLHAMMER, K. E. (Orgs.). Revista PALAVRA No. 9: Volume Temtico: Em Torno dos Estudos de Literatura. Rio de Janeiro: Editora Trarepa Ltda., 2002. pp.53-69.

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Futuro

Provvel

Improvvel

+ Provvel

- Provvel

+ Improvvel

- Improvvel

Quadro 1. Novas Temporalidades: O Futuro como Risco: a concepo de Futuro de acordo com as teorias sistmicas de Niklas Luhmann.PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

2.5 Autopoiesis

Eu queria estar s de um modo inusitado, totalmente novo. O oposto do que vocs pensam: isto , sem mim e, portanto, com um estranho por perto. Isto j lhes parece um primeiro sinal de loucura? Talvez porque no tenham refletido bem. Pode ser que a loucura j estivesse em mim, no nego, mas peo que acreditem que o nico modo de estar realmente s este que lhes digo. A solido nunca est com voc, ela est sempre sem voc e, portanto, ela s possvel na presena de algo estranho, lugar ou pessoa que seja, que o ignore completamente (...) (Pirandello, 1926, p. 32).

Derivados da biologia cognitiva de Francisco Varella e Humberto Maturana, sistemas autopoiticos so sistemas funcionalmente diferenciados, auto-reprodutivos e operacionalmente fechados. Por orientarem sua auto-reproduo atravs de

operaes de distines e observaes entre sua prpria estrutura e o ambiente que os cerca, sistemas no-triviais sistemas psquicos (conscincia) e sistemas sociais

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(sociedades humanas) so capazes de observao de 2 ordem. Isto , atravs de uma operao de distino (utilizando cdigos binrios), so capazes de elaborar internamente um modelo de seu meio e sua prpria identidade. Contudo, por reagirem apenas intrinsecamente s perturbaes do meio-ambiente, esses sistemas so efetivamente cegos:

Systems that operate at the level of a re-entry of their form into their form are non-trivial machines in the sense of von Foerster (1984). They cannot compute their own states. They use their own output as input. They are autopoietic systems, and that means that they are their own product. In contradistinction to all traditions that teach that one can only understand what one has made oneself (Bacon, Hobbes, Vico etc.), a re-entry leads to an unresolvable indeterminacy. The system cannot match its internal observations with its reality, nor can external observers compute the system. (1997: 13).PUC-Rio - Certificao Digital N 0510591/CA

Sistemas autopoiticos que se auto-denominam modernos funcionariam, portanto, como geradores constantes de alteridade em relao a seus prprios passados. Posto que Luhmann prope a reformulao de sociedades (sistemas

sociais) em termos de sistemas autopoiticos, conclumos que as sociedades esto sujeitas s mesmas regras que determinam o funcionamento de tais sistemas. Por orientarem sua auto-reproduo atravs de operaes de distino entre sua prpria estrutura e o ambiente, as sociedades tambm podem definir-se como cegas no sentido de serem capazes apenas de elaborar referncias externas internamente. Logo, sendo as sociedades so sistemas no-triviais, elas so tambm capazes de observao de 2 ordem. Voltando ao ano de 1926 e a seu autor, evidente que seres humanos razoavelmente inteligentes e normais no experimentam o mundo em que vivem como sistema. (1999, 484). Aplicando o modelo de Luhmann, Gumbrecht chamar cultura de 1926 o conjunto dos cdigos binrios que exercem a funo antiparadoxal i.e.de ordenao dentro da simultaneidade em que interagem os dispositivos. Na medida em que os cdigos em colapso representam zonas de alta visibilidade, por atrarem funes discursivas especficas alm de sobrecarga emocional localizam-se em uma zona fronteiria ainda que dentro dos mundos cotidianos (afinal baseiam-se nos cdigos binrios que organizam o sistema). Por haverem perdido sua funo antiparadoxal, esses cdigos em colapso equivalem no contexto de um quadro sincrnico a um conceito de

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acontecimento, isto , a interferncia da contingncia indicando um potencial de zonas de atrito. Selecionados os pontos nodais e retirando a obrigatoriedade de relaes causais de retroao e acoplamento entre eles, Gumbrecht cria, portanto, uma rede referencial especfica ao ano de 1926. Entretanto, no se trata da reduo de complexidade e, sim, do aumento desta, uma vez que permanecem em aberto as relaes entre os dispositivos e estes cdigos. Contornado o ato de totalizao, podese ao menos potencialmente, e atravs de um livro recriar a complexidade do conhecimento social que caracterizou a cultura ocidental em 1926. (Gumbrecht, 1999).

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Fig. 1 Dawing Hands de M.C. Escher utilizada como exemplo visual de autopoiesis.

Ocorre que ao lanar mo dos modelos sistmicos de Luhmann, Gumbrecht encontra uma alternativa menos ampla do que a noo de mundos cotidianos da tradio da sociologia fenomenolgica. O que ento vem a ser o ambiente histrico

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de 1926, ou seja, que tipo de realidade o livro de fato reconstri? Gumbrecht imputar a escolha da preposio em no ttulo do livro sua proximidade ao menos metonmica ao conceito heideggeriano de estar-no-mundo (Dasein). Este se

caracteriza por um engajamento pr-reflexivo e no-metafsico com o mundo i.e. senti-lo facticamente, isto , materialmente. Aonde ento quer Gumbrecht chegar com seu raciocnio sobre o cotidiano mdio que no redutor como um Zeitgeist, e que se permite permanecer aberto desde que certos pontos fixos (verbetes) faam parte da rede? Entende-se que o cotidiano mdio precisa ser um espao de simultaneidade (Gumbrecht, 1994) e o lugar da experincia quase imediata (Erleben)