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  • Stphane BeaudFlorence Weber

    Guia para a pesquisa de campoProduzir e analisar dados etnogrficos

    Traduo de Srgio Joaquim de AlmeidaReviso da traduo de Henrique Caetano Nardi

    Ib EDITORAY VOZES

    Petrpolis

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Beaud, StphaneGuia para a pesquisa de campo: produzir e

    analisar dados etnogrficos / Stphane Beaud,Florence Weber; traduo de Srgio Joaquim deAlmeida ; reviso da traduo de HenriqueCaetano Nardi. - Petrpolis, RJ: Vozes, 2007.

    Ttulo original: Guide de l' enqute de terrain :produire et analyser des donnes ethnographiques

    BibliografiaISBN 978-85-326-3573-01. Cincias sociais - Pesquisa 2. Cincias

    sociais - Pesquisa de campo 3. Pesquisa -Metodologia I. Weber, Florence 11. Ttulo.

    07-6667 CDD-300.72

    ndices para catlogo sistemtico:1. Dados etnogrficos : Pesquisa social:

    Cincias sociais 300.72

  • 5Preparar e negociar uma entrevistaetnogrfica '

    u\1esmo sendo to difcil na realidade, a observao continua sendo a principalferramenta da etnografia, sua melhor arma. A entrevista seu complemento mais oumenos indispensvel. Conforme as pesquisas nos apoiamos mais em uma que na outra.Por exemplo, os trabalhos sobre as instituies onde difcil instalar-se como pesquisa-dor (prises, fbricas), utilizam entrevistas longas e repetidas com pessoas que traba-lham nestes locais, como forma de substituio; se o pesquisador no pode observar insitu, pede aos pesquisados que lhe relatem suas prprias observaes.

    Ao contrrio, as atividades cotidianas prestam-se dificilmente entrevista, pois ospesquisados, literalmente, no "vem" o que fazem; por isso, o trabalho repousar prin-cipalmente na observao. Nos dois casos ser preciso sempre relacionar as descries(as do pesquisador, no caso da observao; as dos pesquisados, no caso da entrevista)com os pontos de vista dos quais elas dependem.

    As entrevistas que ir realizar no campo so longas e gravadas em gravador; os en-trevistados falam na primeira pessoa, e se dirigem a voc pessoalmente. Chamam-seentrevistas etnogrficas porque no so "isoladas", nem independentes da situao depesquisa. Os entrevistados so re-situados em seus meios de interconhecimento (queso tambm seus meios de pesquisa). Tomam lugar e sentido num contexto cuja dimen-so histrica e local (histria longa da regio, histria dos lugares e das pessoas) vocno negligenciar. Apiam-se em observaes prvias, as quais, por sua vez, guiam asobservaes por vir. Entrevistas e observaes fazem progredir a pesquisa como umconcerto. No h corte entre ambas. O campo no compartimentado e voc passa in-diferentemente de uma para outra e no precisa especializar-se em uma tcnica ou ou-tra. o campo que lhe ditar a respectiva parte que lhes dever atribuir. Inmeras re-gras ou conselhos j indicados neste guia valem tambm para a entrevista.

    Julgamos, todavia, necessrio distinguir bem na aprendizagem desta tcnica depesquisa o momento de sua preparao e de sua negociao (proposta deste captulo) ede sua conduo (captulo 6).

    Os princpios da entrevista etnogrfica

    Como trabalhar com as entrevistas. Quantas fazer? Por que fazer? Com quem? Quetipo de relao voc deve criar com os pesquisados?

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 119Quantas entrevistas?Se voc trabalha sobretudo com entrevistas, far-se- a pergunta: quantas? Ora,

    uma falsa questo. A princpio, porque coloca num mesmo nvel entrevistas que tmsiaius bem diferentes. Uma entrevista aprofundada (gravada) de um entrevistado quefala bastante, durante duas ou trs horas, e se questiona a si mesmo com voc sobre elemesmo e sobre seu universo, nos permite avanos e descobertas que no so compar-veis a uma entrevista (no gravada) com um representante de um grupo qualquer quefala com voc de forma impessoal.

    As entrevistas aprofundadas no visam produzir dados quantificados e, portanto,no precisam ser numerosas.

    No tm por vocao ser" representativas". Se voc quer atingir a "representativi-da de" vai querer fazer entrevistas que cobrem o espectro inteiro do meio pesquisado.Ora, a lgica da pesquisa etnogrfica o leva a fazer escolhas, a travar alianas que oaproximaro de alguns e o desligaro de outros.

    Alm disso, cada entrevista aprofundada um fato que preciso analisar por simesmo; uma interao pessoal em que cada um se empenha fortemente e , tambm,uma interao solene com um mnimo de encenao e de cerimonial (o gravador serveaqui de "espectador" indispensvel). Distingue-se da "distribuio de um question-rio", uma relao annima e sem futuro; difere tambm das interaes pessoais habitu-ais e constitui uma espcie de misto entre interao pessoal e cerimnia (d. captulo 4).

    Suas entrevistas inscrevem-se e ganham sentido no contexto de sua pesquisa de cam-po. So entrevistas etnogrficas que se relacionam umas s outras, que liberam pontos devista dos quais voc tem as chaves. Cada um de seus" entrevistados" 2 expressa, no con-texto dessa interao particular, um ponto de vista singular. Quanto mais fizer aparecer asingularidade desse ponto de vista, mais interessante ser a entrevista ("o universal estno particular", como gostava de dizer Goffman). Tal singularidade deve Iev-lo a anali-sar o entrevistado como um caso, a restituir a coerncia desse caso, a refletir sobre suapertinncia: caso-limite, caso ideal tpico, pertencimento a uma famlia de casos. O crit-rio do nmero de entrevistas importa, portanto, menos que aquele que consiste em asso-ciar as entrevistas pesquisa de campo propriamente dita. No separe as duas operaes,faa dialogarem entrevistas e observaes, documentao escrita e entrevistas.

    Apesar de nossos conselhos, uma vez em campo, estar sempre tentado a acumularum mximo de entrevistas.

    Cada uma delas funcionar, a seus olhos, como prova de avano de sua pesquisa euma justificativa de sua presena em campo. Quanto mais fizer mais ter a impresso deestar avanando. Sempre com medo de no estar fazendo o bastante, ser conduzido,sem perceber, a fazer mais ainda. Reunir, de maneira desorganizada, entrevistas quepenar para, depois, transcrever sem ter utilizado o tempo para analis-Ias com profundi-dade, para refletir sobre a construo de seu objeto e na elaborao progressiva de suaproblemtica inicial. A realizao das entrevistas parece-se, ento, com o que Y.Winkin

    2. Alguns preferem o termo "interrogado", ns preferimos" entrevistado" porque o primeiro termo pare-ce-nos muito estreitamente ligado a idia de "interrogatrio".

  • 120 I Segunda parte: O trabalho de pesquisachama de "aspiradores de dados". Essa busca, por vezes desenfreada, de entrevistas cor-responde a um fantasma de pesquisador iniciante: ver tudo, ouvir tudo, tudo registrar.

    ConselhosNo acumule um grande nmero de entrevistas realizadas s pressas, de curta du-

    rao, muitas vezes no gravadas e parcialmente transcritas. Dedicar tempo demaisem detrimento da confeco de seu dirio de campo e da reflexo sobre sua pesquisaTrat-la-, ento, s pressas, para, a seguir, realizar uma colagem de pedaos de entre-vistas que viro a ilustrar um propsito" terico" prvio. Autorize-se a realizar um n-mero limitado de entrevistas sob a condio de que tenham certa durao (uma hora emeia, duas horas); que tenham sido gravadas por inteiro e que descrevam com precisoa situao de entrevistas e que conheam um grande nmero de dados objetivos sobreos entrevistados (origem social dos pesquisados e de seus pais, trajetrias escolares,profissionais, residenciais, estado matrimonial). Assim, ter tempo para trabalh-losde maneira aprofundada, de transcrev-los com preciso, de constru-los como casos.Por certo, algumas entrevistas aprofundadas, isoladas, no bastam para uma disserta-o de mestrado ou monografia de concluso, muito menos para uma tese. Devem in-serir-se num conjunto pertinente de dados etnogrficos (dados de contextualizao his-trica e geogrfica, dados estatsticos ligados a seu tema, observaes diversas). entoque poder selecionar entrevistas mais interessantes para sua pesquisa, sobre as quaisconcentrar seu trabalho de interpretao.

    As virtudes da entrevista aprofundadaPor que um pesquisado aceita passar duas ou trs horas falando (por vezes com pai-

    xo) com um pesquisador? Por que essa relao de duas pessoas de incio estranhasuma para a outra , muitas vezes, marcante, s vezes intensa (risos de bom humor ou deraiva, emoo contida, lgrimas no so raras)? Ao contrrio do questionrio - que pa-droniza as respostas e neutraliza a relao de pesquisa e os "rudos" da comunicaoentre indivduos, por causa da lei dos grandes nmeros - a entrevista etnogrfica temcomo motor essa relao social particular que a relao pesquisadorjpesquisado.

    preciso, pois, que lhe preste grande ateno. A" alquimia" da entrevista etnogr-fica depende tanto da relao entrevistado r j entrevistado quanto do saber fazer (habili-dade) do entrevistador.

    A entrevista etnogrfica diferentemente de outras entrevistas mais institucionali-zadas (cf. Encarte 35) uma situao, somando tudo, indita da vida social, pois desco-nhecidos (ou quase) se encontram, falam-se (por longo tempo), depois separam-se sem,na maior parte das vezes, se rever. Por ser nico esse encontro, os pesquisados tendema querer lhe dizer muito no tempo que lhe dado. O pesquisador fundamentalmenteestranho ao meio pesquisado (mesmo que voc fique por muito tempo no lugar, um diair embora), mas essa estranheza que pode ser destacadamente produtiva na relaode entrevista. De fato, voc est fora da vida social do pesquisado, no est metido emsuas questes familiares, de trabalho, de vizinhana, de poltica e, por isso, portantoest em uma posio objetiva favorvel para receber suas" confidncias". No se es-pante, pois, se o entrevistado lhe revelar aspectos de sua prpria existncia que podem,por vezes, ser desconhecidos dos prximos dele. Quantas vezes o pesquisador escuta

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 121ca parte do entrevistado, aps uma entrevista: "Jamais imaginei dizer tanto" ou " issos falei a voc". um efeito de posio que tem que aproveitar.

    Voc pode fazer uma verificao experimental "ao contrrio" das virtudes da estra-:::heza na entrevista aprofundada, fazendo entrevista com seus prximos, membros desua famlia ou amigos. a situao que parece ideal para os estudantes do Deug, pois

    contatos so fceis de se estabelecerem, as pessoas fazem isso "para ajud-lo". Ora,:ruando voc comea a entrevista, voc v surgir um mal-estar que tem poucas chancese se dissipar a seguir. De fato, voc sabe coisas demais sobre seu interlocutor. Este no

    se dar ao trabalho de desenvolver pontos que voc j conhece. Voc nunca ser surpre-endido nem ficar espantado durante a entrevista. Mais grave ainda, nunca se obrigara exigir mais precises a seu entrevistado, a lhe jazer explicitar seus propsitos. Esse tipode entrevista que contm implcitos demais est largamente votado ao fracasso. O mes-mo processo produz-se no caso de uma entrevista com um "informante".

    A entrevista como forma de "institucionalizao do Eu"Encarte 34

    A entrevista, hoje em dia, faz parte de um conjunto de dispositivos mais ou menos psicologiza-dos postos em prtica em diferentes tipos de instituio (hospitais, prises, escolas, recolocao deemprego) para "escutar" e "fazer as pessoas falarem". "Pelo vis de estruturas de ofertas variadas,os agentes sociais so progressivamente convidados a elaborar narrativas autobiogrficas psicologi-zadas, sociologizadas ou historicizadas" (Pudal [75]). Hoje so numerosas as instncias de "res-taurao" ou de "reparao" do Eu, notadamente no universo da televiso comercial e do rdio (co-mo, por exemplo, as clebres emisses de Mnie Grgoire e Franoise Dolto), mas tambm cadavez mais no contexto de falta de empregos em que os pretendentes a um emprego so obrigados a"se venderem"; por exemplo, fazer currculos vitae dar uma imagem de si apresentvel, construiruma identidade aceitvel. Essas diferentes formas doravante institucionalizadas de apresentao doEu tm efeitos (diretos ou indiretos) sobre a maneira como os pesquisados vo se apresentar a voc ecomo voc ir perceb-los. Como para a observao, as categorias de percepo do pesquisador noso magicamente anuladas pela tcnica da entrevista. O instrumento no neutro, a maneira comovoc v, num primeiro instante, as pessoas que se lhe apresentam, importante.

    Encarte 35Do informante ao entrevistado: riscos da entrevista com um "aliado".

    Como gerir a relao j instituda com um de seus aliados ou informantes? Regra geral, a re-lao foi constituda mas no deu lugar a entrevistas formais, oficiais. Ele lhe deu nomes, conse-lhos, ajudou-o a fazer sua pesquisa. No mais das vezes intil passar ao estgio da entrevista comele porque isso pode" quebrar" sua relao de trabalho. Pode ser que ele no compreenda e geral-mente a entrevista suscite mal-estar para os dois lados, mas sobretudo para o informante. Quandotudo ia bem, as coisas param. Por qu? Porque voc se tomou muito prximo e a entrevista supeuma relao distncia. Soluo: intil fazer entrevista quando basta ter s mos seu dirio decampo para objetivar a relao socilogo-etnlogo/informante.

  • 122 I Segunda parte: O trabalho de pesquisaConselhosPreste muita ateno maneira como se constituiu a relao pesquisadorjpesqui-

    sado; anote escrupulosamente em seu dirio: as primeiras trocas essenciais; o modo de apresentao do objetivo da pesquisa, to importante ou mais quantoo modo de auto-apresentao do pesquisador; a maneira como se definiu a situao de entrevista e sua evoluo ("dinmica deentrevista"); a maneira como a relao evoluiu ao longo do tempo; o lugar e o momento da pesquisa.So esses elementos que lhe permitiro, mais tarde, analisar a relao de pesquisa.

    A situao de entrevista como contexto de observaoA entrevista etnogrfica oferece uma rica matria observao. Suas notas de ob-

    servao, que deve escrever com calma logo aps a entrevista, so to importantesquanto a fita gravada. Anote o que o impressionou na sua apresentao ao entrevista-do, a "decorao" (salo, cozinha, escritrio, outro lugar de trabalho), as relaes cria-das nessa ocasio, com outras pessoas presentes no lugar (membros da famlia, amigos,colegas de trabalho). Com isso evitar fundamentar a interpretao da entrevista s so-bre a sua transcrio. As observaes dos lugares e das pessoas feitas em situao de en-trevista propem elementos preciosos de anlise.

    Exemplo 1Quando das entrevistas com pais trabalhadores realizadas em seu domiclio (apar-

    tamentos populares num bairro classificado como zona sensvel) sobre a escolaridadede seus filhos, a observao dos lugares mostrava bem como os habitantes desses im-veis deteriorados, eternamente prometidos reabilitao, tentavam, por meio de modi-ficaes no interior dos apartamentos, mant-los distncia das condies exterioresdo" conjunto habitacional" ("a podrido" do mundo exterior); a limpeza dos aparta-mentos contrastava com a sujeira do vo da escada; o aspecto novo dos papis de pare-de, com a pintura descascada e os revestimentos da parede caindo no corredor, o baru-lhinho do filete de gua correndo da fonte em miniatura instalada na entrada do salocom a estridncia dos gritos das crianas no exterior. Tudo feito para recriar, no interi-or, a partir da passagem pelo vo da porta, um mundo silencioso, calmo, pacfico. Asentrevistas confirmavam esses dados da observao, impresso sentida pelos pais (fran-ceses e imigrantes) de serem prisioneiros do bairro e de sua preocupao constante emproteger seus filhos da influncia deletria que (o bairro) pode ter sobre eles.

    Exemplo 2

    do de uma pesquisa sobre o mesmo tema num vilarejo da Borgonha, houve';"'~~L...l.V, intermediado por uma funcionria dos correios do bairro, com um casal

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 123ocupando um apartamento em um conjunto habitacional popular (o pai de 35 anos

    errio de manuteno; a me trabalha no lar; eles tm cinco filhos entre um e 123110S). Quando nos dirigimos a seu domiclio um sbado de manh, uma criana de dezanos responde-nos pela porta fechada que seus pais esto fora e que devemos vir logoaps o meio-dia. Ao voltarmos s 14 horas, a criana que nos observou pela fresta gritacom alegria para seus pais: "So os estudantes! So os estudantes!" O momento im-nortante. Estvamos sendo esperados e o caf nos foi servido de imediato. A famlia:oda estava reunida em torno dos dois estudantes. Como a entrevista se prolonga, a idaao supermercado) do sbado aps o meio-dia vai ser retardada em duas horas. A en-:revista acontece na sala de jantar, em torno da mesa, com o pai e a me frente a frente,as quatro crianas em torno dos pais (sobre seus joelhos ou em p) participando por ve-zes da conversa e trazendo, cada qual sua vez, seus cadernos ou livros quando seus~ais lhes pediam. A entrevista encerra-se com a visita guiada ao apartamento, apresen-tando-nos o quarto dos brinquedos das crianas, de um lado, e o das camas de dormir,dois beliches no mesmo quarto. A situao de entrevista resume em si a intensidade dainquietao escolar desses pais (cf. captulo 1)

    ConselhoObserve sempre os diferentes fatos que acontecem no local da entrevista. A anlise

    detalhada de contexto de uma entrevista - das dificuldades do contato inicial por tele-fone, o relato das diferentes fases do desenrolar da entrevista, passando pela observa-o das atitudes, mmicas, barulhos tanto no intercmbio face a face quanto fora dacena mesma da entrevista - d todo seu sentido aos propsitos mantidos pelos pesqui-sados (Pialoux [78b]).

    Solicitar uma entrevista

    Inicialmente, a quem pedir entrevistas? Como lhes pedir?

    De acordo com os momentos da pesquisaNo se deve pedir uma entrevista ao acaso e a qualquer um. No campo, sem ces-

    sar e muitas vezes sem saber, fazem-se" escolhas". Voc est submetido a um limitede tempo. No procure entrevistar todo mundo, aprenda a escolher pessoas que lhepaream interessantes para sua pesquisa e a fazer entrevistas no tempo adequado(cf. Encarte 36).

    No incio de sua pesquisa, voc no tem muita escolha, comece, ao sabor das cir-cunstncias, com as entrevistas "institucionais", porta-vozes, pessoas habilitadas pararesponder a jornalistas ou socilogos. Sua margem de ao limitada; pergunte-se sim-plesmente se esses entrevistados mostraram-se "bons informantes" sobre seu tema depesquisa. Se so, no hesite em fazer novas entrevistas com eles e em travar urna rela-o privilegiada de pesquisa (dar-lhe-o nomes, contatos, pessoas a procurar). Se noforem bons informantes, no insista; continue todavia a manter relaes de cortesia epolidez com eles.

  • 124 I Segunda parte: O trabalho de pesquisaConselhosFaa funcionar o princpio de arborescncia como no caso dos primeiros contatos.

    Ao final de cada entrevista, uma vez desligado o gravador, no momento de se separardo entrevistado, pergunte-lhe se no conheceria algum que pudesse entrevistar. Apessoa viu que a entrevista foi boa e quer ajud-Io, vai querer fazer o papel de interme-dirio. Aps algumas semanas de pesquisa intensiva, ter muitas pessoas a ver.

    Ser-lhe- preciso, talvez, renunciar a certas entrevistas, cortar alguns" galhos" me-nos "interessantes" de sua rvore de entrevistas (cf. Encarte 36).

    Faa suas entrevistas no momento chegado da pesquisa

    Encarte 36

    Voc far entrevistas de durao e natureza diferentes conforme as fases da pesquisa. Jamaisfar uma entrevista muito boa logo da primeira vez. Aprender fazendo. As primeiras entrevistasso exploratrias: voc tentar destacar temas, pontos de ligao para as entrevistas. T atear ocampo. Aprender a situar-se no meio pesquisado. Lanar bales de ensaio. Identificar os tra-os pertinentes de uma questo. Anotar os temas recorrentes na fala dos pesquisados, aquelesque os levam a falar, que despertam o desejo de discutir por mais tempo (e com prazer) com voc.Aprende um certo nmero de dados estreitamente ligados a seu campo que utilizar posterior-mente. Uma vez realizadas essas entrevistas, tome tempo para analis-Ias, tome notas, escrevaseus primeiros resultados em seu dirio de pesquisa. Em seguida, pode afinar seu questionamen-to, utilizar temas de entrevista que falam a seus pesquisados porque os remetem as suas experin-cias de vida. Nesse ponto, ser levado a realizar entrevistas mais longas, mais densas porque maisamadurecidas. a fase da elaborao de sua problemtica. Enfim, voc procede, ao final de suapesquisa, a entrevistas de verificao no decorrer das quais ser levado, quase sistematicamente, atestar suas hipteses de pesquisa com seus diferentes entrevistados.

    Aps haver efetuado suas primeiras entrevistas, d uma pausa, reflita sobre aquiloque conseguiu. Ter interesse, ento, em definir com mais preciso as pessoas que gos-tar de entrevistar. Corre o risco de perceber que entrevistou pessoas pertencentes aomesmo grupo (associao, sindicato, cl familiar, unidade de residncia, campo polti-co, setor de trabalho). Tente, ento, diversificar suas fontes, ampliar a paleta de seuspesquisados. Pode passar pelos primeiros, explicando-Ihes que, por necessidades dapesquisa, gostaria de encontrar-se com beltrano ou sicrano (que talvez no esteja domesmo lado que elas). , como sempre, apoiando-se sobre seus contatos, seus aliados,que conseguir ultrapassar seu primeiro ciclo de pesquisados. Saiba, entretanto, queessa diversificao nem sempre possvel. As clivagens, os conflitos, os antagonismosno meio pesquisado fazem com que voc mesmo, enquanto pesquisador, seja pego poressas lutas. Dificilmente poder penetrar nos outros grupos rivais de seu grupo" alia-do". Evite usar a fora pedindo, por todos os meios, entrevistas a indivduos que ovem como pertencente ao outro lado. Faa suas entrevistas no meio em que est im-plantado e aceito.

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 125ExemploMichel Pialoux e Stphane Beaud trabalham h vrios anos com os "trabalhadores

    Peugeot" da regio de Sochaux-Montbliard. As relaes de pesquisa foram estabeleci-das, de incio (pelo primeiro), com um OS (operrio) da fbrica de Sochaux, militanteCGT, e, a seguir, ampliaram-se, notadamente graas a ele e ao conjunto de rede militan-te (principalmente CGT). Essa inscrio numa parte do meio operrio local (os oper-rios" antipeugeotistas") por um lado fez avanar com velocidade e de forma duradou-ra a pesquisa e, por outro, nos separou de outros operrios, notadamente os "peugeo-tistas" . Tais cises no so irremediveis. Estando presentes h muito no campo fomoslevados, ao acaso das circunstncias, a encontrar operrios do segundo tipo e a fazerentrevistas com eles; por exemplo, no momento da greve dos OS (operrios) da carroce-ria, encontramos um trabalhador seduzido pelos crculos de qualidade ou, na agncialocal do emprego, com jovens temporrios hostis aos "velhos" OS (operrios) locais e sua maneira" peugeotistas". Essas entrevistas diferentes fazem ver um outro ponto devista que o pesquisador tende a esquecer por estar preso na rede, em suas alianas.Nada rgido numa pesquisa. sobretudo multiplicando os ngulos de observao, oslugares de pesquisa, que se pode diversificar sua gama de entrevista.

    Quem interrogar?Como escolher entrevistados cujo testemunho lhe seja mais til? Claro que isso no

    est escrito na testa, mas ao avanar na pesquisa pode conduzir um "trabalho" de bali-zamento dos pesquisados a entrevistar notadamente a partir das informaes recolhi-das junto a seus informantes ou quando de discusses informais. Para que essa seleode entrevistados possa ser feita preciso que j tenha progredido um pouco em suapesquisa e que tenha "fixado" sua perspectiva de busca. Ao contrrio, pode tambmacontecer de ser" escolhido" pelos entrevistados, alguns fazendo de tudo para ser en-trevistados. Tente, todavia, evitar os importunos (o que nem sempre fcil, mas saibaque existem), isto , aqueles que voc pressente que sero "tagarelas", mas no faroavanar a pesquisa e, sim, a travaro.

    ConselhosPara localizar possveis "bons informantes" leve em conta sua posio no meio. Se,

    por exemplo, quer trabalhar com o estresse nas novas empresas competitivas que ado-taram o modelo americano de gesto, no v procurar pela diretora de recursos huma-nos (a DRH). H fortes chances de ela lhe contar o que achar nos jornais de empresa,nos manuais de "gesto de recursos humanos" ou em Le Monde-Iniciatives. melhor irentrevistar a enfermeira da empresa que est bem posicionada para medir o estressedos empregados. Da mesma forma, para falar de violncia na escola melhor ir ver di-reto com o CPE (Conselheiro Principal de Educao) que lhe contar histrias bem es-colhidas, melhor que o diretor. Por conta de sua posio, este tender a suavizar e mini-mizar os problemas. Privilegie as entrevistas com pessoas bem colocadas para lhe fazerver o outro lado do cenrio e/ou que so observadores "profissionais".

    Sempre nos bastidores ou distncia eles vem melhor que os que esto no meio dacena.

  • 126 I Segunda parte: O trabalho de pesquisaEstabelecer um pacto de entrevistaAo solicitar uma "entrevista" junto a seus pesquisados voc lhes faz uma proposta

    pouco habitual para a maioria deles. A viso que eles tm a priori da entrevista nemsempre clara. Eles tendem a compar-Ia a prticas que lhes so mais familiares comosondagem, questionrio, entrevista de emprego, entrevista de avaliao, "testemunha"de polcia ou judicial.

    bem uma das particularidades da maioria das tcnicas sociolgicas ser, como odiz Jean Peneff, "prolongamentos ou modelos emprestados das atividades ordinriasda vida social (entrevistas jornalsticas, questionrios administrativos). S sua adapta-o a novos interesses intelectuais original" [74]. "Fazer uma entrevista", isso equiva-le muitas vezes para os pesquisados a responder a um "pequeno questionrio" de for-ma breve e superficiaL O essencial, num primeiro momento, que isso no exige muitotempo ("quanto tempo voc tem?" Um quarto de hora, isso d?") de implicao. Seuprimeiro trabalho, pode-se dizer, convenc-los do contrrio, deixe-lhes claro que nofar uma sondagem nem os far preencher questionrio: voc quer "conversar" comeles e tambm abordar questes que os tocam de perto (o trabalho, o alojamento, seusfilhos, seus lazeres). Especialmente, apresente-lhes sua pesquisa como algo muito s-rio. Mostre-lhes que faz um [verdadeiro] "trabalho", que no uma atividade ldica ougratuita (h conseqncias, uma avaliao, relatrios de pesquisa).

    Ser-Ihe- sempre til diferenciar-se do trabalho dos jornalistas, no para os criticar,mas para mostrar bem a seus futuros entrevistados que faz um trabalho diferente, maislongo, mais aprofundado, "cientfico".

    As respostas sua demanda de entrevista variam segundo as posies dos pesqui-sados. Solicitar uma entrevista com algum da direo (chefe de empresa, "diretor" dealgo, um delegado sindical presidente de associao) um passo com boas chances deacontecer num prazo mais ou menos longo, pois faz parte de sua posio conceder en-trevistas. Mas tais aceitaes fceis no presumem interesse da entrevista obtida. Emcompensao, pedir uma entrevista no quer dizer nada nos meios populares ou, en-to, alguma coisa que aparece como solene e quase como o exame escolar.

    ConselhosApie-se sobre as diferentes formas de sua presena no campo para solicitar e nego-

    ciar uma entrevista. Por exemplo, na ocasio de um encontro fortuito com um pesquisa-do (no caf, num local de associao, na quadra de esporte, na casa de algum, em casa deum de seus aliados de pesquisa) este se pe a falar de coisas que interessam diretamente aseu tema de pesquisa. Num primeiro momento, uma situao de observao banal; voco escuta, continua o intercmbio, enceta uma "discusso" e, agindo assim, mostra-lhe,com pequenas intervenes, que conhece muito bem o assunto. No tem interesse em le-var adiante a troca para no perder informaes no registradas; diga-lhe que "tudo lheinteressa muito", que "isso corresponde totalmente a seu trabalho em andamento", etc.No hesite em valorizar os propsitos de seu interlocutor, em acentuar o interesse queeles suscitam para voc. Pode, ento, solicitar mais facilmente dessa pessoa uma longaentrevista. Na formulao do pedido no preciso falar em "entrevista"; pode dizer sim-plesmente "Eu gostaria de falar de novo com o(a) senhor(a) longamente. Ser que no te-

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 127ria um pouco de tempo para falarmos mais calmamente em outro lugar, em sua casa? Emgeral, se preparou bem seu pedido, "isso funciona", notadamente porque houve umaisca de sua parte, soube mostrar seu interesse pelos propsitos ouvidos ej ou seu relativoconhecimento do assunto. claro que essa regra tem excees; por exemplo, se voc sabeque no pode esperar para solicitar a entrevista, que amanh ser tarde demais, vocdeve aproveitar a ocasio e fazer uma entrevista de imediato (se, como lhe aconselhamos,tiver seu gravador a tira-colo em sua mochila).

    Por vezes levado a explicitar as condies materiais da entrevista. Mas nesse est-gio do processo, no diga de antemo que vai gravar, pois isso pode espantar sem ne-cessidade. Nessa fase preparatria para a entrevista gravada deve propor, segundo seuestilo, o que se chama de pacto de entrevista, aos pesquisados: um tipo de contrato emque os objetivos da entrevista so mais ou menos claramente definidos e os papis dasduas partes relativamente fixados.

    Resumamos: no seja brusco com as coisas, prepare a entrevista. O ideal que o pe-dido de entrevista se faa na continuidade de uma troca porque, assim, a entrevista sefar como uma espcie de prolongamento da discusso iniciada.

    Mais uma vez, tudo questo de contexto; nenhuma regra imperativo em si. Semcessar, deve adaptar os conselhos que lhe do na situao particular de seu prprio campo.

    As recusas de entrevistaOs conselhos precedentes visam simplesmente aumentar suas chances de conse-

    guir entrevistas ou de minimizar suas" gafes" (de qualquer jeito as cometer). O essen-cial se d todavia no momento da demanda da entrevista. Ter tanto mais chances deobter entrevistas quanto melhor tiver preparado sua pesquisa e criado uma rede de"aliados". As entrevistas que lhe so negadas so, antes de tudo, por razes objetivas:

    a posio social dos pesquisa dos; sentimento muito forte de desvalorizao social(para desempregados ou RMlstes - aqueles que recebem a renda mnima de inser-o), uma conjuntura difcil (para um patro, um homem poltico) ou uma posioinstitucional crtica ou muito exposta; a percepo de sua pesquisa, os efeitos que pode ter na vida profissional, doms-tica do pesquisado; a percepo de sua inscrio no meio pesquisado.Todos os pesquisados no so entrevistveis. H condies sociais para essa toma-

    da de palavra particular que a entrevista aprofundada. Pode-se diferenciar dois casosde figura:

    pesquisados que tm" algo a ocultar", que desconfiam de todo olhar exterior, oumais exatamente de toda forma de pesquisa; temem sempre que seus propsitos se-jam gravados e utilizados contra eles para provar, entre outros exemplos, que tra-balham "no mercado negro", que recebem indevidamente aluguis, que no decla-ram todos os seus rendimentos para o fisco ou que tm as mos molhadas por "pro-pinas"; a recusa de entrevista quase no surpreende nesse caso. A soluo consiste,ento, em conduzir um trabalho de observao participante;

  • 128 I Segunda parte: O trabalho de pesquisa pesquisados que no se sentem "legtimos" o bastante para enfrentar um grava-dor, que no se sentem altura para discutir com voc. Mesmo que voc pense noser algum importante, voc se impe forosamente a pessoas" em dificuldade"como se diz pudicamente. A recusa de entrevista, muitas vezes para evitar o pes-quisador pode ser simplesmente uma maneira de proteger-se de um olhar percebi-do como de desprezo ou complacente. O silncio pode ser tambm um jeito de rei-vindicar sua dignidade social, de resistir pesquisa e tambm uma das ltimasmaneiras de "defender-se". No insista demais para ter sua entrevista (de SDF-semteto, de RMIste), isso seria fora de propsito ...

    Entrevistas que se encadeiamEncarte 37

    Daremos aqui um exemplo de uma pesquisa utilizando entrevista que avanou rpido e bem.Tinha como objeto o estudo da mobilizao escolar dos pais de alunos de um escola de ensinofundamental e mdio privada situada no centro histrico de uma cidade mdia da regio parisien-se. O primeiro passo foi consultar a lista das associaes do municpio disponvel na prefeitura.Ali figurava o nome da associao de pais de alunos e os nomes e nmeros de telefone de seus doisresponsveis. Uma delas contatada e aceita sem hesitar o princpio da pesquisa. A seguir apon-ta-nos para outras pessoas que poderiam estar interessadas. A cada entrevistado pergunta-se seno conhece outra pessoa disposta a receber-nos e a prestar-se ao jogo da entrevista. Nesse nte-rim as pessoas solicitadas telefonam para os primeiros entrevistados; a informao circula rpidono grupo de interconhecimento. E uma vez a mecnica engatada, a confiana conquistada, cria-sea cadeia dos entrevistados e tudo se passa como se todo mundo quisesse ser interrogado. Se oprincpio da arborescncia funcionou to bem porque estamos evoluindo num meio de forte in-terconhecimento (famlias mobilizadas, numerosas ocasies de encontros no ano). A pesquisa interessante, as entrevistas no so idnticas, pois entrevistamos pessoas de status social diferenteque fizeram aparecer as diferentes razes da escolha da escola particular.

    ConselhosNo interprete s como" fracassos" essas recusas de entrevistas. Por um lado po-

    dem ser provisrias, pois, se souber ser paciente, uma outra conjuntura de pesquisapode apresentar-se como favorvel. Por outro lado, tais recusas so sempre instrutivassob a condio de que reserve tempo para analisar as razes. No calor da recusa, vocno tem de imediato a chave da interpretao, mas progredindo em sua pesquisa t-la-. Poder, tambm, ter a ajuda de seus aliados para compreender o porqu de fulano,sicrano ter-se recusado a falar com voc em dado momento.

    Poder tambm decidir-se, graas a essas recusas, a trabalhar por observao (cf.Encarte 38).

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 129_ egociar as condies de realizao de uma entrevista

    Uma vez obtido o acordo de princpio, deve negociar as condies da entrevistacomo um encontro, um lugar apropriado e um horrio compatvel com as limitaesdas duas partes. No despreze essas questes materiais, pois condicionam a possibili-dade de realizar uma entrevista aprofundada e so, tambm, elementos constitutivosda relao de pesquisa. Precisa aprender a negociar os termos dela com os pesquisados.Quando se iniciante no ofcio, no se ousa faz-I o, deixa-se muitas vezes que as condi-es sejam impostas de fora.

    De recusa em recusa de entrevista

    Encarle 38

    Instalado durante um ms de vero num bairro de habitaes populares de Sochaux-Mont-bliard, Stphane Beaud desejava entrevistar jovens desempregados no vilarejo em que residia.I Percebeu logo que tal entrevista estava destinada ao fracasso. Os contatos travados no chegavama termo, as promessas de entrevistas no se mantinham. Trs semanas aps o incio da instalaono campo no havia nunca nenhum resultado concreto, nenhuma "boa" entrevista gravada. Aomesmo tempo, o grupo era fechado, no havia lugar aberto, o trabalho por observao era dificil-mente realizvel nesse perodo do ano e no prazo combinado. O que era chocante era a freqnciade encontros marcados e no realizados (os "bolos" dados ao pesquisador). No cara a cara, comos amigos de lado, o princpio da entrevista facilmente aceito ("Uau, uau, no h problema""Quando quiser!"). Mas quando as situaes permitem escapar da entrevista, os entrevistadoso fazem, no vm ao encontro e se voc cruza os caminhos com eles no dia ou no dia seguinte in-ventam uma "desculpa" que voc tem que aceitar de bom grado.

    Lies Esses jovens desempregados se esquivam da entrevista porque preciso sentir-se forte o

    bastante, ter segurana (reconhecimento, legitimidade) para aceitar uma entrevista. Para evitar essas "rateadas" de pesquisa (que devem ser integradas pesquisa) habitue-se

    a fazer entrevistas na hora em que haja a possibilidade. Ou, ento, contorne a dificuldade procu-rando um outro ngulo de ataque, por exemplo, trabalhando por observao participante. oque S.B. acabou fazendo ao colaborar com conselheiros da agncia local do emprego e conduzin-do principalmente um trabalho de observao (BEAUD [67]).

    Negociar o horrio e a durao da entrevistaEvite assumir encontros muito distantes no tempo. Proponha data bem prxima do

    momento em que a fixar. Se as duas datas forem espaadas demais, combine que darum telefonema na vspera do encontro. Isso lhe evitar o contratempo de estar sozinhono encontro.

    A questo da durao da entrevista a mais importante. Disponha, a priori, de umajanela suficientemente longa (uma hora, uma hora e meia). De um lado, uma condi-

  • 130 I Segunda parte: O trabalho de pesquisao indispensvel para conduzir a entrevista com quietude de esprito sem ter que pre-cipitar as coisas ou atropelar seu interlocutor. De outro lado, a inscrio da entrevistanum tempo longo permite-lhe assumir um ritmo de cruzeiro, conhecer correntes.

    Graas a essa durao, poder explorar diversas pistas e diminuir progressivamen-te o nvel de "censura" do entrevistado. Em um clima de confiana este tem chances deprecaver-se menos e de "baixar sua guarda".

    Um dos atributos essenciais do poder social o poder sobre o tempo, isto , o poderde dispor de seu tempo e do tempo dos outros, notadamente o de fazer esperar. As en-trevistas com os dominantes (patres, direo, homens polticos, eleitos locais, respon-sveis por associaes) so mais difceis de negociar especialmente se no puder exibiruma legitimidade de socilogo diplomado. Essas pessoas reservar-lhe-o um espaopequeno em seu uso do tempo to carregado que voc ter que encaixar uma entrevistaentre dois encontros em pouco tempo Cuma meia hora, isso lhe basta?"). Ser muitasvezes interrompido pelo telefone, pelos colaboradores dele. A entrevista lhe servirmelhor como ocasio de observao.

    Para realizar uma boa entrevista melhor poder discutir com calma e dispor de tem-po (cf. Encarte 39). O mais frustrante quando sabe que a entrevista deve terminar emhora fixa, por exemplo uma hora aps o incio por causa de um encontro de seu interlocu-tor ou porque voc mesmo fixou outro compromisso. claro que no pode impor hor-rio e durao a seus pesquisados. preciso que encare com eles outras possibilidades.

    ConselhosNo pea, logo de cara, uma entrevista de duas horas, nem de meia hora. demais

    ou de menos. Saiba que a entrevista prevista para durar uma hora pode prolongar-sealm do previsto. O pesquisado presta-se ao jogo e prolonga-se naturalmente. No faaentrevistas na correria ou como quem vai tirar o pai da forca (meia hora) sob pretextode que eles no tm tempo. Recuse a soluo de entrevistas expressas. Tente conven-c-los a dedicarem mais tempo, discutam juntos as solues alternativas. Evite dois en-contros seguidos pela manh ou tarde. Preveja um "tempo livre" aps a entrevista(por exemplo, a manh toda ou a tarde toda).

    Escolher o lugar da entrevistaNisso tambm voc no totalmente dono da situao. Muitas vezes constran-

    gido a "aceitar o possvel". Nada, no entanto, lhe impede que tente uma melhor so-luo. Os objetivos so simples mesmo que nem sempre seja fcil cumpri-los. pre-ciso um lugar:

    sem barulho demais para gravar de forma que fique audvel; sem olhares exteriores e curiosos demais (o gravador sempre desperta certa curi-osidade); onde se possa falar sem medo de ser ouvido por ouvidos indiscretos.

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 131

    Prever tempo para uma entrevista ...

    Encarte 39

    Tomemos o exemplo de uma entrevista realizada com um professor numa escola de ensinomdio na periferia parisiense por uma estudante e Stphane Beaud. A entrevista acontece numasala de reunio da escola e tem incio s 8:30h. Em meio entrevista sabemos que temos que pa-rar s 10: 15h (hora do incio do curso de nosso interlocutor), A entrevista comea lentamente,bem mal, pois o professor no se sente vontade, olhando toda hora para o gravador. H algumadificuldade em deix-lo vontade num clima de confiana. Pouco a pouco ela se instala, as resis-tncias cedem e aceita falar de diferentes histrias que lhe parecem ilustrar a degradao do esta-belecimento no qual leciona h quinze anos. O fato de os alunos serem maiores e virem de carro escola (repetentes ou "maus" alunos a seus olhos) podem ter acesso ao estabelecimento interno docolgio com o mesmo direito que os professores deixa-o escandalizado. o sinal de incapacidadedo sistema escolar atual de fazer respeitarem-se as regras elementares e de, tempos em tempos, co-locar em seus devidos lugares alunos que se vem como titulares de direitos e pouco responsveispor deveres. Ora, neste momento que a entrevista "deslancha" - a primeira vez que ele se pea falar de si mesmo no mais como simples professor, mas, tambm, de sua famlia (seus paren-tes) , de seus estudos passados; bem nessa hora obrigado pelo horrio a interromper a entrevista.Ele, alis, gostaria de continuar, pois j aceitara o jogo e havia at "engolido" uns dez minutos deseu curso para falar-nos. Se tivssemos disponveis de duas ou trs horas, a entrevista teria sidoum grande sucesso ... Aquilo no passou de uma amostra e era difcil pedir-lhe outra entrevista.

    LioSempre reservar-se tempo, pois nunca se sabe de antemo como vai se desenrolar uma entre-

    vista.

    ConselhosSe fizer, em paralelo, um trabalho de observao participante numa instituio ser

    mais simples fazer suas entrevistas no prprio local de sua pesquisa. Esforce-se ao m-ximo, porm, para encontrar um local tranqilo, onde no ser atrapalhado, para fazersuas entrevistas. Se no for possvel, pea sempre a seus pesquisados, na medida dopossvel, para entrevist-Ios em suas casas, onde poder associar o trabalho de entre-vista e de observao (da decorao, dos objetos, das fotos). Isso lhe possibilita incluiroutros assuntos de discusso e permite tambm ao pesquisado falar mais livremente,sem controle. Fala-se diferente no trabalho ou em casa.

    Entrevistas etnogrficas e meios sociaisCertos pesquisados (de meios populares) no se sentem altura do exerccio pro-

    posto; outros (de classes superiores) desconfiam do processo de objetivao sociolgicavista como redutora e por vezes indiscreta.

    Pesquisar em meio burgus lembra ao socilogo, muitas vezes, visto como inte-lectual de nvel social inferior, submeter-se a um exame de passagem. Percepo maisacentuada ainda se for um jovem estudante de "sociologia".

  • 132 I Segunda parte: O trabalho de pesquisaVoc ter que fazer suas provas de correo e de postura (Pinon [46]). Em certos

    meios profissionais (alta administrao, patronato) preciso poder "impor-se aos quese impem" (H. Chamboredon et al. [72]). Quando estes ltimos se impem demaismormente quando lidam com estudantes iniciantes no ofcio e no deixam de mostrarsua posio dominante, o poder de objetivao da entrevista menor, um trabalho porobservao participante pode ser mais rentvel.

    Se fizer entrevistas com pessoas das classes populares o obstculo mais comum deencontrar o mal-estar ligado a certa distncia cultural e social. O que diz [ean Peneff apropsito de entrevista biogrfica vale, tambm, ao que nos parece, para os outros tiposde entrevista: "As condies ordinrias da entrevista biogrfica manifestam a diferenade classe e carregam a marca do etnocentrismo; prope-se aos operrios, aos campone-ses, um estilo de conversa prximo da troca intelectual, mas distante de suas prticas(sentados no salo cara a cara com o gravador). O contedo da demanda de falar sobre"sua vida" em troca de um pouco de considerao simblica por parte do intelectualtorna a entrevista ainda mais sensvel aos artifcios de uma relao superficial entredesconhecidos. O desconforto moral em que se encontra o socilogo inclina-o a endos-sar uma atitude passiva, complacente ou falsamente cmplice.

    Uma soluo (que resolve alguns, mas no todos os problemas) conduzir a entre-vista biogrfica o mais prximo das situaes naturais de conversa no meio estudado.Realize entrevistas nos lugares em que os pesquisados se sintam como em casa. Para omilitante operrio, uma sala do espao sindical (longe dos outros) ou um bar prximoda fbrica. Pode ser participando da vida da famlia, na cozinha, no jardim. [ean Peneffconta que numa pesquisa com operrios da regio de Nantes teve o cuidado de encon-trar-se com seus interlocutores no "conjunto habitacional operrio ou na sada dos can-teiros navais, de bicicleta e limitando o uso ou a exibio de smbolos do trabalho inte-lectual como o gravador".

    ConselhosEm entrevistas com responsveis (altos funcionrios, chefes de empresa) no v

    para elas" derrotado". Arme-se mentalmente: vista-se para a ocasio; prepare seu dos-si: venha entrevista com seus documentos e no tenha dvidas de exibi-los. Mostreem momentos da entrevista que sabe bem sua parte. D exemplos precisos, ilustre seuspropsitos com fatos tcnicos que mostram bem a seus interlocutores que voc com-petente. Enfrente-os, em seu prprio campo, com sua legitimidade e experincia, sem-pre mostrando uma cortesia firme.

    Em entrevistas com dominados tente, com os meios que tem, lutar contra a imagemnegativa que certos pesquisados podem ter de si mesmos e que os impede de se consi-derarem, num primeiro momento, como possveis "bons" interlocutores''.

    3. Eles lhe diro: "Sabe, eu no tenho nada a dizer". "V ver Fulano. Ele lhe informar melhor do que eu" ou"Falar assim, no meu forte", "Vamos tentar e ver no que vai dar e o que vai conseguir tirar", e desde os pri-meiros momentos da entrevista o aviso" sou de meio modesto" etc. Essa auto-representao est ligada diretocom sua experincia escolar ("No estudei muito", "Nunca fui muito bom na escola") e disso s se livraramos porta-vozes das classes populares (eleitos polticos, delegados sindicais, militantes de associao).

  • 5. Preparar e negociar uma entrevista etnogrfica I 133Mostre-lhes que, se eles conhecem seu ofcio, diro coisas que nunca so ditas. Tran-

    qilize-os, tambm, sobre o sentido de seu trabalho. Ache palavras que lhes digam quevoc no juiz nem examinador.

    Os imprevistos da entrevistaNem tudo em entrevista se passa como foi previsto, e os "imprevistos" merecem ser

    analisados. Por exemplo, acontece muitas vezes que uma entrevista que devia ser cara acara se transforme, no dia, em entrevista coletiva. O pesquisa do faz-se acompanhar poramigos ou colegas. Claro que "voc a far" e a realiza como se nada estivesse acontecen-do. Em compensao importante que reflita a seguir na situao da entrevista: por queesse nmero maior? Em geral um indcio de falta de segurana do pesquisado. Porexemplo, os jovens s aceitam a entrevista sob condio de ser" em bando".

    ExemploUm estudante prope-se, no quadro de um estgio de pesquisa de campo, estudar a

    sociabilidade da burguesia local de uma cidade mdia. Restringindo seu tema, iniciauma monografia do Lions Club e comea, sem muita dificuldade, uma srie de entrevis-tas com os membros desse clube (essencialmente patres, comerciantes, profissionais li-berais, mdicos, corretores, advogados). Procura contatar um "antigo" que ser capaz decontar-lhe a histria do clube. Um pesquisado lhe dar o nome e o nmero de telefone domembro mais antigo do clube, senhor G. ("em breve, quarenta anos de lionismo", decla-ra ele com orgulho). Ao telefone, este ltimo parece envaidecido por ser considerado omais antigo do clube. Dois dias mais tarde mostra-se menos favorvel entrevista apster-se informado com seus amigos "Lions" sobre a natureza dela. No dia do encontro emsua casa, manso no centro da cidade, h trs pessoas presentes: M.G., sua esposa e umoutro membro do clube dez anos mais novo que ele. De fato, bem depressa, na entrevista o mais jovem que monopolizar a palavra para grande satisfao do primeiro (noenunciada, mas bem percebida). A razo dessa retirada de M.G. ns a saberemos, no finalda entrevista, relembrando sua histria familiar. Ele um homem bem-sucedido, filho deimigrantes italianos (seu pai tomara-se produtor de cogumelos na periferia prxima deParis). Ele, mesmo aps curtos estudos perturbados pela guerra, tomara-se recauchuta-dor de pneus por ocasio da Liberao e, depois, um grande negociante. Mesmo tendosubido na escala social, nunca se sente vontade quando se trata de falar em pblico("no gostei nunca de falar muito", dir-nos- confidencialmente ao final da entrevista).Para ele era vital no fazer a entrevista" sozinho" com os estudantes. Naquele nterim,pedira reforo a seu" amigo", tambm antigo diretor de sociedade e tambm de origempopular, mas bem mais falante e que gostava de "falar com os jovens".

    ***

    Este ltimo exemplo mostra bem o que toma singular a entrevista etnogrfica, suainscrio num conjunto de relaes sociais "j presentes", cujas condies de sua orga-nizao vm revelar, se voc prestar ateno a esse aspecto das coisas. Resta examinar amaneira pela qual a entrevista etnogrfica deve ser conduzida para melhor ajustar-ses suas preocupaes de pesquisa.

  • 6Conduzir uma entrevista

    ko cremos haver receitas simples para conduzir uma entrevista. O problemano tambm saber se deve propor boas questes para ter boas respostas. O essencial ganhar a confiana do pesquisado, conseguir rapidamente compreender o que estsendo dito (a meia-palavra) e entrar (temporariamente) em seu universo (mental).Estes so os ingredientes que alimentaro mais seguramente a entrevista e que, ideal-mente, podero ento transformar-se em uma "discusso" instrutiva para ambas aspartes. Para fazer bem esse exerccio ser-lhe-a preciso livrar-se dos modelos de entre-vista mais correntes (a interview jornalstica ou a entrevista diretiva) que pode ter emmente. Corre o risco, de outra forma, de adotar a postura de questionador ou de utilizarinconscientemente "manhas" do ofcio aprendidas com a escuta de entrevistas pelo r-dio ou televiso. Contra seus hbitos de ouvintes ou de telespectador voc aprender aconverter-se progressivamente para outras maneiras de fazer mais atentas aos propsi-tos dos entrevistados. Ter que persuadir seus pesquisados que no tm que respondera questes (voc os ouve, muitas vezes, dizerem quando comea a entrevista: "Devoresponder s suas questes, no ?"). Com sua experincia, voc tentar sugerir-Ihesque se trata de trocar pontos de vista.

    Ao realizar uma entrevista aprofundada, est fazendo um verdadeiro trabalho socio-lgico. Certas questes so hipteses de pesquisa; outras, pequenos testes que voc co-locar para funcionar durante a pesquisa, isto , pequenos raciocnios experimentais.

    medida que sua pesquisa for avanando, voc progredir na maneira de condu-zir suas entrevistas e na elaborao de sua "problemtica". Acabar por construir umquestionamento de entrevista diretamente ajustado a seu objeto. A entrevista se apren-de essencialmente pela prtica. Mais voc faz, mais discutir com seu orientador, maisestar armado, sob condio, claro, de respeitar alguns princpios bsicos. Cometer"erros" e at gafes que sero teis se aprender a no dissimul-los e a analis-los.

    Aqui, tambm, no lhe aconselhamos utilizar protocolos que restrinjam a entrevistae que so tambm meios de lutar contra sua angstia. Apie-se sobre fatos objetivos ex-trados de sua pesquisa e de suas leituras; confie em sua capacidade de fazer a pesquisa.

    Desconfiar dos "roteiros de entrevistas"

    Ser necessrio, como o aconselham os "manuais de metodologia", ter um roteirode entrevista para conduzir as suas? Dever elaborar uma lista completa de questes a

  • 6. Conduzir uma entrevista I 135"propor" de forma imperativa a seus interlocutores? Examinemos, antes de responder,as vantagens e os inconvenientes do guia de entrevista.

    VantagensPrimo, d segurana a certos pesquisados (cf. Encarte 40) e a voc tambm; t-lo-

    sob os olhos em caso de "pnico"; sempre ter uma questo a propor; nunca estar"nu" diante do entrevistado. Permitir-Ihe- enfrentar de cara. um remdio contra aangstia como muitos outros instrumentos de pesquisa. Secundo, ter a impresso dehaver recolhido material conforme sua problemtica. Tertio, autoriza comparaessistemticas entre entrevistas e legitima a concepo e valorizao quantitativa das en-trevistas.

    Guia de entrevista segundo os meios sociaisEncarte 40

    A utilidade do roteiro de entrevista varia segundo o tipo de relao pesquisador/pesquisado. Com pessoas possuidoras de capital social e cultural o roteiro pode servir de cauo cientfi-

    ca. Dar-lhe- legitimidade e segurana. Seu trabalho parecer srio, bem preparado; suas ques-tes preparadas com antecedncia daro peso a seu empreendimento. O status da entrevista ficaenobrecido e tende a assemelhar-se com uma entrevista jornalstica.

    Com pesquisados em meios populares, o roteiro tende a oficializar ainda mais a situao depesquisa, acentuando seu estilo de exame escolar. A relao de entrevista coloca-o no papel demestre que coloca "suas" questes.

    Por isso contribui para ressaltar sua posio social de pesquisador e para tornar mais difcil otrabalho de criar confiana no curso da entrevista. Para fazer "bem feito", o entrevistado vai pro-curar ajustar-se, dando uma srie de respostas breves e superficiais, esperando pelas futuras ques-tes como preso pelas rdeas do "questionrio".

    InconvenientesVoc se julga obrigado a seguir e respeitar (mesmo de forma frouxa) uma ordem de

    questes. No est inteiramente atento aos propsitos do pesquisado, no pode seguirde perto seu olhar, sua atitude, seus gestos. Ao invs de estar de verdade escuta deseu interlocutor, est sempre preocupado com seu roteiro, inquieto por ver a ordem dasquestes perturbada pelas digresses do entrevistado que infringem o protocolo a se-guir. Prisioneiro do seu roteiro, a todo o instante tenta enquadrar de novo sua entrevis-ta para ajust-Ia a seu questionamento pr-construdo. Nessas condies, nenhuma hi-ptese nova sair de suas entrevistas. Ter esterilizado por antecipao a fecundidadedo instrumento de pesquisa.

    Voc refora em seus interlocutores a idia de que devem responder a um questio-nrio pois coloca-os objetivamente na posio de "respondentes" a uma srie de ques-

  • 136 I Segunda parte: O trabalho de pesquisates. Essa posio logo lhes parece enfadonha, como a mostram seus olhares furtivos einquietos em direo ao roteiro (como querendo dizer faltam muitas questes ainda).Voc tolhe toda possibilidade de o entrevistado encadear suas idias e o impede tam-bm de /J fluir segundo sua inclinao". Seu entrevistado, sabendo-se ouvido pela meta-de, se controlar mais e procurar sempre saber se est no assunto, se responde "bem".Ora, no existem boas respostas em entrevista aprofundada. O mais interessante aforma do desenrolar-se da entrevista. A sucesso regulada de questes impede todoimprevisto, todo desencadeamento de uma dinmica da entrevista.

    O roteiro de entrevista o prende em seu tema. Diga a voc mesmo que, propriamen-te falando, no h respostas fora do tema numa entrevista etnogrfica. Deixe sempre apossibilidade ao entrevistado de ficar deriva, de fazer digresses ou incurses em ou-tros domnios que aquele que est sendo abordado como principaL Se o pesquisado lhediz: "A me afastei", acalme-o e incentive-o a seguir nessa direo (se, claro, julgar quevale a pena). Ver que tais digresses o levaro a compreender a maneira como esta-vam ligados os dois tipos de propsitos. As associaes de idias tm necessariamentesentido para o pesquisado e um sentido social a descobrir pelo pesquisador.

    No se agarre ao seu assunto ou tema de pesquisa. Se tiver a impresso de que o en-trevistado se distancia espere um pouco para ver se no interessante, no o chamelogo ordem (com frmulas do tipo: /J agora, retomemos ao assunto"). Se for muito res-tritivo no seu modo de conduzir a entrevista est limitando consideravelmente seu do-mnio de investigao, priva-se do recurso (vital no trabalho de interpretao) de fazeremergir questes conexas e relacion-Ias. Como, por exemplo, trabalho e fora do traba-lho; trabalho e poltica, consumao e "ethos" de classe etc.

    Intil, pois, deixar-se soterrar por um roteiro de entrevista detalhado (salvo se for preci-so aparecer como srio), pois seu uso no corresponde ao esprito do trabalho etnogrfi-co. Em compensao, pode anotar numa folha ou num caderninho os temas ou algumasquestes precisas que quer abordar. Prepare-se mentalmente antes de fazer uma entre-vista. De fato, realizar uma entrevista etnogrfica nunca um gesto qualquer. No mo-mento de ir ao encontro, sempre sente-se um pouco de tenso porque no se sabe nuncacomo exatamente o encontro vai-se desenvolver. Pode haver imprevistos, mal-entendi-dos, problemas. Vo aqui breves sugestes para se preparar para o momento:

    Recapitule o que sabe de antemo sobre a pessoa que ir entrevistar, seu meioprofissional, histria e composio da famlia, modo de insero na sociedade local;contatos estabelecidos com ela (por quem?) etc.

    Para preparar a entrevista propriamente dita leve um bloco de anotaes. Farsuas primeiras entrevistas (aprofundadas) com esse caderninho sua frente, no qualescreveu um pequeno nmero de temas a tratar. medida que estes forem sendo abor-dados risque-os de sua lista. Quando j tiver efetuado algumas entrevistas, anote rapi-damente os temas que sabe que" avanam" e risque os que no rendem nada. Adapteestes conselhos ao seu jeito de ser e ao grau de avano em sua pesquisa. Alguns entrevocs sero tranqilizados por terem diante de si questes a propor e por poderem tra-balhar temas j abordados e por ter a impresso de nada ter esquecido.

    Verifique se seu gravador funciona e se h fitas suficientes.

  • 6. Conduzir uma entrevista I 137De qualquer jeito, no creia que existe um modelo nico de entrevista. Os critrios

    de qualidade das entrevistas so variveis. Pode fazer uma longa entrevista com umentrevistado muito afvel, sorridente; volta muito feliz da entrevista e diz /I essa foimuito boa". De fato, o entrevistado mostrou-se tagarela; mas no deixou, ao longo daentrevista, de representar um personagem sua frente e no se abriu. No lado oposto,entrevistas que vo mal e das quais sai insatisfeito podem ser vistas como muito boas.Mesmo que se tenha atrapalhado, tenha cometido /I gafes", tenha se mostrado interven-cionista demais. As boas entrevistas esto menos ligadas a qualidades tcnicas do que sua prpria capacidade de despertar - mesmo de forma desajeitada - a confiana deseus pesquisados. essa relao de confiana que ter estabelecido que levar coletade um material suficientemente rico para ser interpretado.

    ConselhoNo multiplique as entrevistas num dia. Realizar uma entrevista aprofundada

    cansativo porque voc ter que garantir a troca, estabelecer novas associaes; estaratento aos propsitos de seu interlocutor. Tudo isso exige concentrao. Ver que sairesgotado aps uma longa entrevista.

    Registrar no gravador as entrevistas aprofundadas

    uma senha obrigatria. No h boa entrevista aprofundada sem gravao. condioessencial. No h o que questionar. Cada vez que realizar uma entrevista aprofundadadeve fazer de tudo para registrar, pronto a negociar ao mximo com seus entrevistados.Pea sempre autorizao para gravar. A proibio de gravaes clandestinas faz parte dadeontologia da pesquisa etnogrfica (cf. captulo 1). Voc no detetive particular; noavana, mascarado, em sua pesquisa mesmo que possa acontecer de /I ocultar seu jogo"em certas condies. Gravar s claras faz parte integrante do pacto de entrevista.

    As razes para gravarO gravador (Encarte 41) evita a tomada de notas febril quando tenta desesperada-

    mente seguir todos os propsitos de seu interlocutor. Monopolizando sua ateno, essatomada de notas o impedir de estar livre na conduo da entrevista. Voc no estar to-talmente presente na interao; no poder dar os sinais no-verbais que facilitam a tro-ca. A gravao , ento, mais que uma simples razo de conforto, pois condiciona a quali-dade de sua escuta. S a gravao permitir-lhe- captar na ntegra e em todas as suas di-menses a palavra do entrevistado; ser-Ihe- possvel, na seqncia, trabalhar em pro-fundidade sua entrevista especialmente escutando vrias vezes as fitas. Conserve-as porbom tempo, pois um precioso material de trabalho. No as apague para economizar.

    A ttulo de exerccio, compare duas entrevistas, uma gravada e outra no, constata-r a diferena de volume, pois duas horas de gravao correspondem a mais ou menos30-35 pginas de texto enquanto suas anotaes raramente passaro de 15 pginas.

    Diferena de retorno imediato. A leitura das notas de entrevista, mesmo as maisbem tomadas, do a impresso de uma entrevista pontual desencarnada, na qual falta o

  • Usar um gravador

    138 I Segunda parte: O trabalho de pesquisatempero de uma entrevista: o tom, os silncios, as hesitaes, os risos; breve, a expres-so dos sentimentos, enfim, os elementos essenciais para interpretar a entrevista.

    Pea para gravarEsta fase em que voc pede a seu interlocutor para poder gravar vista como deli-

    cada pelos pesquisadores iniciantes. Pode experimentar recusas de gravao. Gravan-do, voc altera o estatuto da palavra do pesquisado; transforma uma palavra particularem pblica (do entrevistado para voc) potencialmente audvel por outro; portanto ex-plorvel e citvel (cf. o uso das fitas como "provas" em certos processos).

    Encarte 41

    Tratemos inicialmente da questo do equipamento. imperativo que compre um gravador., como seus cadernos e blocos de notas de campo, seu principal instrumento de trabalho. "seu" gravador; deve conhecer bem seu funcionamento para evitar maus usos. Evite parafernliaseletrnicas. Compre aparelhos simples e robustos. Como o mercado de gravadores pouco pro-missor, o material tende a ser cada vez menos confivel e cada vez mais frgil. De nada lhe adiantadeixar-se levar pela ltima moda tecnolgica, os de "sistema ativado por voz" que permitem sgravar a voz e cortar os silncios, nem ter gravadores em miniatura pouco prticos para uso.

    No precisa disfar-Ia para o entrevistado e, por isso, seu tamanho pouco importa. Ao con-trrio, escolha aparelhos simples de usar e de manusear. Pegue um com visor de bateria que lheindicar a carga das pilhas. Veja que ir manusear muito as fitas; escolha, pois, as de boa qualida-de (as de uma hora e meia so melhores que as de duas horas). Durante a entrevista verifique comuma olhadela se a fita est girando, que a bateria est carregada. Em caso de falha, no titubeie epea pausa para pr pilhas novas (que ter trazido por precauo); se detectar outra falha, se nofunciona, pea que algum lhe empreste outro aparelho para terminar a entrevista.

    No exagere, no entanto, a dificuldade do exerccio, pois nem todos os pesquisadostm medo de ser entrevistados; muitos no lhe do a mnima importncia. Alguns lhediro: "vamos em frente, no tenho nada a esconder". Outros tero reaes divertidas(um casal de operrios nos diz, rindo: "Vocs vo colocar-nos dentro da caixa", olhan-do para o gravador). Outros simplesmente perguntam o que ir fazer com a fita e a gra-vao. So, sobretudo, as pessoas que exercem posio de poder ou de responsabilida-de que mostram-se reticentes ou hostis.

    ConselhosPara tranqilizar os entrevistados, lembre-lhes que garante o respeito ao anonima-

    to dos nomes, de lugares e de pessoas (o que far por ocasio da publicao). O melhora fazer no dramatizar a tarefa. No anuncie solenemente, mal se sentaram em torno mesa, que ir gravar. Nem faa tambm como se isso no merea discusso; no force apassagem, pois reforaria a desconfiana prvia de certos entrevistados ou despertaria

  • 6. Conduzir uma entrevista I 139temores inexistentes no ircio. Faa de modo que tudo se passe da forma mais naturalpossvel. Uma vez em tomo da mesa, espere um pouco antes de mostrar os equipamen-tos (o gravador, as fitas), converse um pouco, detalhe sua pesquisa, seus objetivos (aque isso vai servir?); lembre a importncia para seus estudos. Assim, vocs vo se co-nhecendo, como num primeiro encontro e, sem perceber, comeou a entrevista propria-mente dita.

    O entrevistado est em seu papel. Pea-lhe, ento, em tom desprendido, para gra-var, como se fosse algo j dado, uma simples formalidade a preencher ("Gravar lhe in-comoda ?"). Pode justificar tambm de um ponto de vista prtico ("isso evita ter que to-mar muitas notas e poderei escut-lo melhor"). A experincia mostra que existe resis-tncia quando voc faz o pedido de gravar de forma muito solene, ou que dramatiza oprocedimento. V com calma, suavemente (cf. Encarte 42), sem ser brusco com os entre-vistados e sem fazer disso uma questo vital. Em caso de resistncias ou de recusas degravao, no inicie de imediato. Tome o tempo necessrio para explicar a importncia(para voc, para seu trabalho) da gravao. Lembre uma vez mais a regra do anonimatoetc. Se isso no bastar, insista mais um pouco, prestes a se colocar na situao de umaluno que faz o que lhe dizem que faa ("meu professor quer que isso seja gravado").Pode, at, propor que guardem a fita que transcrever de imediato, no local. Aps ter"sido" "vencido", resigne-se, com dor no corao, a no gravar, sabendo que sua entre-vista sair empobrecida por isso.

    Histria de uma "gafe" de gravaoEncarte 42

    Realizamos a dois uma entrevista com um conselheiro de orientao em seu lugar de trabalhona grande sala de recepo do CIO (Centro de Informao e de Orientao). Os conselheirostm por hbito receber ali os alunos que vm seguidamente acompanhados por seus pais, seus ir-mos e suas irms ou amigos. Nossa mesa est um pouco afastada, longe dos olhares. A entrevistacomea rpido. Quando nosso colega inicia a discusso, colocamos o gravador diante de nosso in-terlocutor. Para no interromper a discusso fazemos sinal de que vamos gravar. Nosso pedidoparece ter sido aceito. Mas ao cabo de trs quartos de hora de entrevista ele percebe, pela luz ver-melha do gravador que ns gravamos seus propsitos. Pede que interrompamos a gravao e nosreprova por termos tentado grav-Io sem que o soubesse. Ofendido, contesta nossa maneira defaz-lo. Confusos, afirmamos nossa boa-f, tentamos desfazer o mal-entendido, discutimos passoa passo para convenc-lo de nossas boas intenes. Claro que a entrevista foi posta entre parnte-sisoNossos argumentos no o convenceram. Ele suspeita que tenhamos o tempo todo tentado ar-mar uma emboscada. Explicamos nosso mtodo de trabalho. Lembramos-lhe que sempre avisa-mos que "vamos gravar". Nada adianta. Ele pega a fita do "delito". Ns nos separamos no mui-to orgulhosos de nossa "gafe". Lio que aprendemos. melhor avisar duas vezes que a entrevis-ta gravada do que s uma.

  • 140 I Segunda parte: O trabalho de pesquisaConduzir o intercmbio

    A melhor preparao conduo das entrevistas continua sendo aquela que con-siste em ler longas entrevistas publicadas em revistas de sociologia ou em livros que rela-tam pesquisas de campo (d. Bibliografia). Com isso aprender progressivamente a artee o jeito de fazer entrevistas por mimetismo. Preste ateno forma como o socilogope as questes, "relana" seu interlocutor. Voc encontrar ali os "truques do ofcio",no explcitos mas legveis nas entrelinhas. Leia, tambm, com ateno, a apresentaoe o comentrio (os dois, muitas vezes, esto entremeados) da entrevista. Por fim, saibaque cada um conduz a entrevista em funo de seu estilo e de sua personalidade.

    Gerir o tempo de uma entrevistaUma entrevista aprofundada comporta diferentes fases; nunca linear e nem se faz

    num mesmo ritmo. Sempre preciso um perodo de "aquecimento" mais ou menos ummomento importante. Voc nunca fica muito vontade, nem o entrevistado. No entan-to no dramatizemos esse tempo. Ao fazer sua questo inicial (COMBESSIE [59]), sejasimples. Pea s pessoas que falem. No h regra absoluta, mas o entrevistado precisasentir-se guiado a um campo conhecido. Como veio v-lo para abordar com ele seu as-sunto de pesquisa, comece diretamente por evoc-lo.

    Comece, por exemplo, por uma marcao histrica ("Voc me contou que respon-svel por esse clube de jud [ou outra associao qualquer] desde 1982, isso mesmo?pode dizer-me como chegou a exercer essas funes ...") e, assim, deu-se a partida; a tra-ma da entrevista est feita; siga o fio do entrevistado; quando esgotou esse filo, passeaos seguintes em funo do que lhe foi dito.

    No incio do seu "campo" no hesite em deixar claro a seus interlocutores que aca-bou de "estar iniciando a pesquisa". Pea-lhes que o ajudem nesse empreendimento("Apenas estou dando os primeiros passos"). Vou fazer-lhes algumas perguntas umpouco "ingnuas" etc.); faa mais que o possvel para precisar os fatos que lhe contam(nome de lugar, de pessoa, de empresa, de associao ...); seus interlocutores tero pra-zer em explicar-lhes o que voc no conhece ou compreende mal; encoraje-os a desem-penhar o papel de informante em seu projeto; de colocar-se na funo de quem lhe ensi-na alguma coisa. Nesse estgio da pesquisa, pode fazer-se de "ingnuo" (mas sem exa-gerar - claro -, pois est ainda na fase de aprendizagem do campo). Graas sua pos-terior familiarizao chegar, passo a passo, a conhecer as tramas e os temas que fa-zem os pesquisados reagirem sistematicamente e fazerem entrevistas mais" ousadas".

    No decorrer da entrevista alternam-se fases bem chatas" informativas" com outrasmais densas em que o pesquisado se pe, s vezes, de forma brutal, a falar de si mesmoe a relembrar seu histrico pessoal. Tudo isso no acontece de repente; fruto de seutrabalho preparatrio. Voc soube gerar confiana; mostrou-lhes que os "compreende"(BOURDIEU [77]), que no os est julgando. A partir disso tero confiana em voc.Mas, para consegui-lo, importante jazer durar a entrevista.

    Sempre h um momento, aps uma hora ou uma hora e meia, duas horas de entre-vista, em que seu interlocutor se empolga com a discusso e esquece o quadro formaldela; fica com vontade de continuar indo ao fundo de seu pensamento e de "se abrir com-

  • 6. Conduzir uma entrevista I 141pletamente"; a essas alturas j se esqueceu do gravador e est solto; como se diz no espor-te, em rodagem livre (completamente solto). O entrevistado pe-se a dizer-lhe coisas quejamais diria no incio da entrevista. Esses ltimos momentos so sempre os mais ricos, osmais pessoais; tudo se passa como se o pesquisado, sentindo chegar o fim do intercm-bio, sentisse necessidade de se abrir e de revelar, no ltimo momento, coisas que, poste-riormente, se arrependeria de no ter falado. muitas vezes o caso, ao final da entrevista,quando se desliga o gravador. Voc sinaliza a seu interlocutor que a entrevista acabou eque no poder acrescentar mais nada. ento que ele se lembra de ter esquecido de falaristo ou aquilo e, claro, que tal coisa muito importante, sempre, e que tal esquecimento muito significativo. Nessa hora, pense em ligar de novo o gravador.

    ConselhosUma entrevista deve, j de sada, estar centrada sobre um nico ponto: o entrevista-

    do deve saber, logo de incio, para onde voc vai. Alerte-o sobre o fato que, num primei-ro momento, ir falar com ele de tal assunto (seu engajamento em tal associao, seuofcio, sua atividade esportiva etc.). Uma entrevista no-diretiva no quer dizer entre-vista anrquica. Voc dever, na medida do possvel, conduzir a entrevista, impri-mir-lhe uma direo. preciso que o entrevistado se sinta um pouco guiado. No lhed de pronto todo o espao; mantenha-o numa direo que, aos poucos, voc ir alar-gando. Voc pode aceitar, num primeiro tempo, seguir o "primeiro fio" que o entrevis-tado for desenrolando.

    O que preciso evitar, acima de tudo, querer interpretar ao mesmo tempo quepe a questo; colocar questes de opinio ou questes muito factuais podem constran-ger o entrevistado, se no souber respond-Ias. Ele ter a impresso de ter sido pego emerro, de no "ter respondido bem"(cf. Encarte 43).

    Para" dar um novo estmulo" ao interlocutor durante a entrevista, o princpio bsi-co consiste em apoiar-se sobre o que ele acaba de dizer, seja retomando uma de suas ex-presses para que precise mais ou explicite, seja prolongando o sentido de seu propsi-to e suscitando sua adeso. Ele lhe dir: "T a" "certamente". "Sim, exatamente isso","voc me entendeu totalmente". Dessa forma, voc d uma srie de pequenos passosque levaro a uma entrevista frutuosa. O essencial est em no cortar seu interlocutorpara impor o seu ponto de vista em detrimento do dele. A tambm, arme-se, sobretu-do, de bom senso sociolgico, pois no voc que interessa na entrevista, o entrevista-do. Egocntricos que se abstenham.

    Siga suas questes, prolongue-as sempre com questes precisas para "retomadas" e,se preciso, numerosas. Faa explicitar, faa com que o entrevistado precise as coisas,para que as entrevistas no sejam vagas demais e pouco claras. Evite sobretudo ficarpassando de um tema a outro, pois isso o privar de informaes factuais essenciais edesestabilizar seu interlocutor que, num dado momento, no saber mais" em que pdanar". Para que o entrevistado entre no jogo da entrevista preciso lev-lo a seguirseus passos e dar-lhe a impresso de que o est escutando seriamente, que ele se sinta"ouvido". De outra forma ele abandonar a partida ...

  • "Apresentar-se": um saber social

    142 I Segunda parte: O trabalho de pesquisa

    Encarte 43

    Apresentamos aqui alguns trechos de uma entrevista realizada por uma estudante de segun-do ano de Deug de sociologia com uma senhora de 68 anos, nascida em Portugal e que veio paraa Frana com dois anos de idade. No contexto de um curso de scio-histria da imigrao, cadaestudante deveria realizar uma entrevista com um imigrante, centrada na sua trajetria de vida.

    Apesar de no ter sido solicitado, certos estudantes pediram a seus interlocutores para "seapresentar" .

    -Bom dia.Maria - Bom dia, vamos l ...- Apresente-se ... D duas ou trs caractersticas de sua personalidade.Maria - Tenho 68 anos, nasci em Portugal numa cidade chamada Sinca, no Algarve, no

    sul de Portugal... (hesita) (silncio).

    - Simplesmente, se tivesse que definir-se...Maria - (hesita) Sei no (hesita de novo) (risos) (silncio). Bem ... trabalhadora ... nervosa

    (corrige-se) no, no sou nervosa ... no to nervosa, finalmente. No sei me definir. .. obstinada(silncio) .

    Obstinada?Maria - Obstinada, sim ... (silncio)- Qual seu pas de origem?Maria - Portugal

    Este breve trecho mostra bem que tal "receita" pode gerar mal-entendidos, linguagem desen-contrada. "Apresentar-se" a um pesquisador no algo natural, nem fcil para todos pesquisa-dos. Para responder a essa solicitao direta preciso ter recursos, um saber social como, porexemplo, o hbito de falar de si ou de "abrir-se".

    Ao pedir a essa senhora, de repente, que se apresente logo ao incio da entrevista deixou-anum grande embarao. Desmontada por essa entrada e posta na defensiva, a entrevistada s con-seguiu, de incio, refugiar-se no silncio. Ao mesmo tempo, a "gafe" da pesquisadora produz in-formaes interessantes: apresentao de suas qualidades morais ("trabalhadora"), hesitaopara definir-se por seus traos de personalidade "negativos" 'nervosa"), autodefinio corrigidade imediato por um trao de carter valorizado como "positivo" ("obstinada") ...

    Criar clima de confianaEm entrevista etnogrfica, no basta ser um entrevistador brilhante, atento, neutro,

    que ajuda o pesquisado. No se deixe paralisar por essa noo de "neutralidade" dopesquisador. preciso, de incio, ganhar a confiana dos entrevistados. A entrevistano uma relao de sentido nico. O entrevistado pode transformar-se no entrevista-dor (como o observado, em observador). No se espante, pois, se for muitas vezes con-vidado, por ele, a dar seu palpite ("mas, voc, o que pensa a respeito?").

  • 6. Conduzir uma entrevista I 143Ser-lhe- difcil escapar desses pedidos. Ser tambm levado a confortar o ponto de

    vista de seu interlocutor. No hesite, por exemplo, a dar de forma, mais ou menos os-tensiva, sua aprovao aos propsitos do pesquisado. O essencial, num primeiro mo-mento, suscitar a confiana de seu interlocutor, pronto a concordar com propsitos quepodem, por vezes, chocar a voc enquanto indivduo ou enquanto cidado. Suspendatemporariamente suas opinies pessoais. Busque antes alimentar a troca, pois h umaparte de "jogo" na entrevista. Se for direto demais, franco demais, a entrevista fica blo-queada e corre o risco de parar. , finalmente, uma situao no to distante da vidareal, em que no passamos todo tempo em disputas.

    A prudncia ttica que deve adotar no quer dizer tambm que deva sistematica-mente aprovar todos os propsitos que lhe apresentam. Nos primeiros momentos daentrevista deixe o entrevistado desenvolver seu ponto de vista por tempo mais ou me-nos longo, mas h sempre um momento em que voc deve" retomar o controle", apro-fundar questes, esclarecer coisas deixadas obscuras, fazer dizer o que o entrevistadodisse antes, com meias-palavras. Uma vez a entrevista bem lanada e estabilizada, voctem o direito de retornar a coisas que lhe ficaram obscuras. No hesite em dizer que nocompreendeu tal afirmao nem em pedir esclarecimentos. Busque iluminar certo n-mero de fatos passados em silncio, esclarecer contradies que pde localizar nos pro-psitos de seu interlocutor. Ele no personagem sagrado. Pode pedir-lhe, com educa-o e com calma, que se explique melhor e, portanto, que explique melhor para voc.

    No seja, pois, passivo, do tipo" sim - sim", na entrevista. Seja progressivamenteativo, pondo questes cada vez mais precisas, seja fazendo sinais de aprovao, de sur-presa, de compaixo, de espanto. No se prive do arsenal de meios verbais e no-ver-bais para gerir a distncia e a proximidade com o pesquisado.

    ExemploQuando voc est colocado muito longe de seu interlocutor (na outra ponta da mesa

    ou numa poltrona muito fofa distante) no hesite em se aproximar fisicamente dele. Essaforma mostra sua inteno de ouvi-lo melhor e de prestar uma ateno acurada a seuspropsitos. Pode, ao contrrio, ajeitar-se mais para trs na poltrona marcando distncia.Aprenda a jogar plenamente esse jogo do perto e do longe mostrando altemadamenteseus prprios sentimentos de surpresa, de falsa ingenuidade, de sincera empatia. Cabe avoc adaptar-se situao e a seus interlocutores, suscitar-lhes simpatia.

    No caso das entrevistas com pesquisados que no se sentem bem face a face comvoc, cabe-lhe grande parte do trabalho de fazer desaparecer o sentimento de deprecia-o que podem sentir quando falam com voc. H diferenas significativas de registrode linguagem entre o incio da entrevista em que o pesquisado se esfora para" falar"bem e o fim ou o meio da entrevista onde o pesquisado, em clima de confiana, se deixaavanar e reencontra seu registro habitual de linguagem. Voc pode acompanhar essavariao do registro de linguagem no curso da entrevista dando pequenos sinais de co-nivncia e de compreenso para facilitar essa lenta transio.

  • 144 I Segunda parte: O trabalho de pesquisaEfetuar um trabalho de interpretaoExiste uma dimenso essencial da conduta de entrevista presente em filigrana nos

    desenvolvimentos precedentes: o fato de voc, durante a entrevista, no parar de fazer(mini) interpretaes sobre o que acaba de ouvir. Tal trabalho voc o faz durante a entre-vista e exige muita ateno. preciso estar sempre na espreita do menor indcio, da me-nor informao sociolgica verbal ou no-verbal (caretas, suspiros, olhares para o cu,mmicas que suprem ou acompanham os propsitos do pesquisado). Grave-os mental-mente e use-os quando for a ocasio para avanar suas investigaes sobre a personali-dade social do entrevistado. Quando j tiver feito vrias entrevistas sobre o mesmotema, ter acumulado um certo saber. Ter notadamente aprendido a localizar os temasque" tm futuro", que permitem lanar os pesquisados a questes que lhes interessamde perto. Ao acumular assim, ao longo da entrevista, um certo nmero de indcios soci-ais, pode comear a fazer" fazendo" um certo nmero de "aproximaes sociolgicas";a prever futuros resultados e, assim, "testar" a probabilidade de respostas a algumas desuas questes. Uma vez seguro de um certo saber acumulado de sua pesquisa, pode ar-riscar-se a sugerir interpretaes a seus interlocutores: eles podem estar de acordo comvoc ou contestar sua interpretao; isso permitir relanar o "debate". claro que suasdiferentes intervenes devem ser sob medida e no na forma de um "ataque" contraseus interlocutores.

    Busque, pouco a pouco, localizar os temas que provocam reaes (positivas ou ne-gativas, tanto faz) em seus interlocutores, temas que j existem no meio pesquisado evoc s est reavivando com suas questes. Por exemplo, tudo que diz respeito a confli-tos, a atritos, a antagonismos etc. que agem como reveladores de pontos de vista dife-rentes sobre um mesmo problema.

    Orientar a entrevista

    Conduzir a entrevista tambm, por momentos, retomar seu primeiro desenvolvi-mento, dar-lhe nova direo, mais ajustada sua linha de pesquisa; voc pode "inter-romper" (dando-lhe formas) seu interlocutor quando seu relato lhe parece ser" tagare-lice" (por exemplo, histrias sem fim sobre doenas ...). Em meio a outras formas poss-veis de orientar a entrevista, lembremos aqui o cuidado a ter no recolhimento, de umlado, de narrativas prticas (do cotidiano) e de dados objetivos que dizem respeito aopesquisado e seu entorno.

    Interrogar sobre prticasVoc busca conhecer o ponto de vista dos entrevistados fazendo-os contarem e des-

    creverem suas atividades, seu cotidiano; o que eles pensam de tal ou qual coisa - suas"opinies" - s tem valor e sentido a partir de suas prticas. intil, pois, comear comquestes do tipo "o que pensa de tal ou qual coisa? se previamente no fez com queseus entrevistados descrevessem suas atividades. No lhe faa, tambm, questes mui-to amplas e distantes de suas atividades corriqueiras, pois ter respostas genricas,pouco concretas. Tendero a falar" em geral", no na primeira pessoa. Convide-os afa-lar do que fazem (ou que fizeram). Ter em troca narrativas de atividades, aes, estocar

  • 6. Conduzir uma entrevista I 145fatos, histrias vividas. Agindo assim, voc se outorga meios de controle, operando re-cortes e permite tornar perceptvel a coerncia das prticas entre si (religiosas e polti-cas, prticas no trabalho e prticas domsticas, culturais e educativas etc.) e, mais tarde,a coerncia entre prticas e opinies.

    ExemploOs professores do ensino fundamental manifestam clara reticncia ao falar de suas

    prticas profissionais ordinrias. Preferem, de imediato, evocar questes" intelectuais"em pedagogia, psicologia (da criana ou do adolescente) e sociologia - a relatar com de-talhes os encargos de seu ofcio como dirigir-se aos alunos, falar em classe, fazer man-ter o silncio, estabelecer um clima de trabalho, recompensar, repreender ou castigar osalunos, corrigir os trabalhos, dar notas (por escrito ou oral), enfim, tudo que constitua oaspecto menos gratificante da tarefa (e, no entanto, essencial). preciso, ento, uma in-terveno ativa do socilogo e o estabelecimento de um clima de confiana para levaros pesquisados a refletir sobre tais prticas. A situao de entrevista , desde o incio,assimilada por eles como uma discusso entre "intelectuais" que no difere muito da-quelas que formam a trama da sociabilidade ordinria de professores de colgio; essadefinio da situao exclua, portanto, falar de coisas to simples e materiais quantosuas condies de trabalho ou de remunerao. Tal postura encontrada em porta-vo-zes autorizados, como os militantes polticos ou sindicais que - em razo de um efeitode aculturao ligado aos diferentes mecanismos de aprendizagem das atividades mi-litantes e a seu pendor social ascendente - tm tendncia a falar numa linguagem em-prestada, que tem sua fonte no registro das suas leituras sindicais, propsitos que fun-cionam como discursos de fachada, que so utilizados para evitar falar de prticas so-ciais ordinrias (d. Encarte 44).

    Conselhos. Para obter narrativas de prticas (do cotidiano): Abandone toda postura terica, use palavras simples, faa descrever, no tema

    ser muito prosaico. Pea informaes triviais especialmente quanto a tudo que parea serevidente para os pesquisados. No hesite em ser curioso, mesmo com risco de parecerindiscreto, mormente quando fala de dinheiro. Em vez de detalhes sobre o salrio, per-gunte pelo preo das coisas (da locao, da casa, do custo das frias, da matrcula). Issofaz parte integralmente da vida cotidiana de inmeros lares. No se esquea.

    No hesite em pedir aos entrevistados que contem histrias. Elas situam, de ime-diato, a entrevista no centro das prticas sociais porque elas fazem os entrevistados darvida a um certo contexto. A histria facilita tambm ao interlocutor passar para um esti-lo direto. Dada sua aparente banalidade e seu carter de sem importncia ("voc bemsabe, nada mais que uma histria"), autoriza o pesquisado a lembrar fenmenos decontedo sociolgico sem medo de infringir o decoro social. Nesta ocasio, leve-o a di-zer, com toda simplicidade, quem sabe at com toda ingenuidade, coisas que a censurasocial ordinria impede. Assim, a histria um bom revelador e analisador de situa-es sociais. Se conseguir um bom nmero, no bom momento e na linha direta do fio dodiscurso do entrevistado, ter boas chances de realizar uma rica entrevista. Enfim, ashistrias permitem-lhe compreender rapidamente os componentes e os elementos ad-

  • 146 I Segunda parte: O trabalho de pesquisa

    Breve inventrio das prticas profissionais dos docentesEncarte 44

    No lhes pea de imediato o que pensam da escola de hoje, pois isso que eles tendem a fa-zer, a falar a partir de um ponto de vista generalizante ("de cima"), o de analista. Isso teria seu in-teresse, mas comece a tirar delas uma viso mais p-no-cho, isto , mais prximos de suas prti-cas profissionais. Fazer uma entrevista sobre o ofcio de "professor" equivale a realizar um questio-namento preciso e detalhado sobre suas prticas, tendo presente os temas centrais na sua cabea.Eis alguns exemplos:

    a) Emprego do tempo: tipo de qualificao (certificado ou agregado)"; horas suplementaresou no, quais dias (ou meias jornadas) de trabalho no estabelecimento? Qual a negociao dadistribuio das horas de trabalho com a administrao e os colegas (o privilgio dos "antigos" ,primeiramente, ter os melhores horrios de trabalho).

    b) As prticas pedaggicas Dar aula: apresentao de si (roupas usadas no incio e de fim de ano); jeito de falar, entra-

    da em classe; os primeiros momentos da aula, alunos sentados ou em p (por qu?), idas e vindasna classe, modo de perguntar aos alunos (encaminhamento ou no destes ao quadro), aprendiza-gem dos conhecimentos, regime das sanes (atrasos, faltas, como perceber um aluno que no tra-balha, atitude em classe etc.).

    Dar nota: quais os princpios da avaliao? "Nota" ou "conceito"? Variao do sistema deavaliao de acordo com classes ou instituies em relao aos colegas etc. Forma de correo dostrabalhos (em quanto tempo, forma de fazer anotaes etc.).

    Orientar: modo de ensinar sobre esta questo, participao ou no nos "encontros de ori-entao profissional".

    Pesquisa pedaggica: assinaturas de revistas, jornadas de formao, participao em ofici-nas pedaggicas relacionados disciplina que ensina.

    c) Relaes com os colegas: freqenta ou no a sala dos professores (fumantes ou no-fuman-tes)? come no refeitrio ou no? S tem relaes com colegas da mesma disciplina (alemo, fran-cs...) ou com todos os colegas? ele os v fora da escola, nas frias, nas noitadas" entre professores"?

    d) Relao com os sindicatos: sindicalizado? Se sim, em qual Snes, Sgen, Snalc, FO,SUO Educao ... ?5 Participa da vida sindical (reunies, confeco de panfletos)? Faz greve (re-gularmente, de tempos em tempos, em que ocasies?)?

    e) Relaes com a administrao, com o CPE (orientador educacional), com os diretores dasescolas.

    f) Relaes com os pais de alunos: convoca-os quando h problemas com alunos ou evita-os?g) As relaes fora do trabalho: gesto das relaes com o cnjuge (sobretudo se no-docen-

    te), atividades culturais, frias, modo de educao dos filhos.

    4. N.R.: Na Frana existem diferentes formas de se tomar professor; a "agregao" o concurso que o pos-to (e o salrio) mais elevado na hierarquia. Seria algo como o cargo de professor" titular" Cagrg" = agre-gado) nas escolas de ensino fundamental e mdio. O professor" certificado" aquele que passou no concur-so comum para ser professor, o professor de base.5. N.R.: Na Frana no existe unicidade sindical, portanto, em um mesmo estabelecimento os professorespodem ser filiados a diferentes sindicatos.

  • 6. Conduzir uma entrevista I 147jacentes de uma situao social, o que o incitar a estimular seu entrevistado a dar maisdetalhes sobre os elementos da cena contada (os atores, o lugar, o ambiente, palavraspronunciadas, as atitudes dos participantes). Estes elementos sero fonte de novasquestes-hiptese. Se os entrevistados lhe contam espontaneamente estrias, no hesi-te em insistir para que detalhe extraindo todas as tramas dessa histria. Isso pode tomartempo (dez minutos, um quarto de hora ou mais) mas, primo, voc no tem pressa e,secundo, um tempo da entrevista bem empregado. Se forem reticentes ao contar hist-rias pea-lhes que sejam claros, que contem mais: "No teria mais estrias sobre esse as-sunto?" (cf. Encarte 45).

    Encarte 45