ghins, michel - introdução à metafísica da natureza

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Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas

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Metafísica e Filosofia

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  • Uma introduo metafsica da natureza:Representao, realismo e leis cientficas

  • ReitorZaki Akel Sobrinho

    Vice-ReitorRogerio Andrade Mulinari

    Diretor da Editora UFPRGilberto de Castro

    Conselho EditorialAndre de Macedo DuarteAnna Beatriz da Silveira PaulaCristina Gonalves de MendonaEdison Luiz Almeida TizzotElsi do Rocio Cardoso AlanoEverton PassosIda Chapaval PimentelLauro Brito de AlmeidaMarcia Santos de MenezesMaria Auxiliadora M. dos Santos SchmidtMaria Cristina Borba BragaNaotake FukushimaSergio Luiz Meister BerlezeSergio Said Staut Junior

  • MICHEL GHINS

    Uma introduo metafsica da natureza:Representao, realismo e leis cientficas

    Traduo: Eduardo Salles O. BarraRonei Clcio Mocellin

  • Michel Ghins

    Uma introduo metafsica da natureza:

    representao, realismo e leis cientficas

    Coordenao editorial Daniele Soares Carneiro

    RevisoLuciane Alves F. Mendes

    Projeto grfico, editorao eletrnica e capaRafaella Raboni Sabatke

    Serie Pesquisa, n. 229

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN. SISTEMA DE BIBLIOTECAS.

    BIBLIOTECA CENTRAL. COORDENAO DE PROCESSOS TCNICOS.

    Ghins, MichelG424 Uma introduo metafsica da natureza : representao, realismo e leis cientficas / Michel Ghins; traduo Eduardo Salles O. Barra, Ronei Clcio Mocellin.[Curitiba, PR] : Editora UFPR, [2013]. 49f. (Pesquisa; n.229)

    Inclui referncias e notas de rodap

    1. Metafsica. 2. Espao (Metafsica). 3. Metafsica da Natureza. 4. Conservao da natureza Filosofia. I. Ttulo. Srie.

    CDD 22.ed. 110

    Samira do Rego Elias CRB-9/755

    ISBN 978-85-65888-35-6Ref. 707

    Direitos desta edio reservados

    Editora UFPRRua Joo Negro, 280. Centro. CEP 80010-200.

    Curitiba Paran Brasil

    Caixa Postal 17309

    Tel.: (41) 3360-7489 / Fax: (41) 3360-7486

    www.editora.ufpr.br / [email protected]

    2013

  • SUMRIO

    Prefcio

    Captulo 1: O que uma teoria cientfica?

    1. Abstrao e atitude objetivante2. Modelizao e adequao emprica3. Os requisitos de cientificidade4. A concepo sinttica das teorias5. Explicao e mecanismo causal6. Concluso

    Captulo 2: A interpretao realista das teorias cientficas

    1. A objeo da perda de realidade2. O argumento antirrealista da subdeterminao dasteorias pelos dados empricos3. O paralelismo com a experincia ordinria4. O retorno explicao5. Concluso

    Captulo 3: H leis cientficas?

    1. A concepo regularista das leis 2. A concepo necessitarista das leis 3. O realismo cientfico 4. Concluso

    Captulo 4: Rumo a uma metafsica da natureza

    1. As propriedades disposicionais 2. As propriedades categricas3. A explicao categorial4. O realismo categrico5. O fundamento metafsico das leis: os poderes causais6. Concluso: boa ou m metafsica?

    Referncias

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  • 7Qual seria a metafsica ajustada cincia? Tendo iniciado minha for-mao filosfica no Instituto Superior de Filosofia da Universidade Catlica de Louvain (Blgica), numa poca em que a filosofia de inspirao aristotli-ca ainda impregnava os cursos, sempre tive grande interesse pela metafsica, mais precisamente por uma metafsica de substncias dotadas de potenciali-dades. Quando tive a sorte de prosseguir minha formao no Departamento de Filosofia da Universidade de Pittsburgh (EUA), onde sopravam fortes ven-tos empiristas e antimetafsicos, meu interesse pelas questes metafsicas ofuscou-se progressivamente. Concentrei-me, desde ento, nas problemti-cas relativas aos fundamentos da fsica, em particular no estatuto do espao e do tempo, tema ao qual consagrei minha pesquisa de doutorado, apoiando--me no que aprendera nos meus primeiros estudos universitrios em fsica.

    Todavia, as influncias empiristas jamais me afastaram da convico de que nossas melhores teorias cientficas nos fornecem um conhecimento do mundo, mesmo sobre entidades inacessveis percepo sensvel direta, mas acessveis quando se pode contar com o apoio de instrumentos de medida. Tal posio filosfica conhecida pelo o nome de realismo cientfico. Visto que uma convico no carrega qualquer interesse filosfico se no estiver em condio de ser sustentada por uma argumentao rigorosa, fui levado a exa-minar os argumentos favorveis e contrrios mobilizados, respectivamente, por realistas e antirrealistas contemporneos, bem como a ponderar as razes que nos autorizam a acreditar na verdade, ao menos parcial e aproximada, de certas teorias e na existncia de certas entidades inobservveis postuladas por essas teorias, tais como campos de fora e molculas.

    A problemtica do realismo, central para a filosofia da cincia, con-duz inevitavelmente a duas outras interrogaes. A primeira concerne na-tureza de uma teoria cientfica. De fato, antes de se perguntar se uma teoria

    PREFCIO

  • 8UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    verdadeira, natural interrogar-se sobre o que uma teoria cientfica. Mes-mo que certos argumentos em favor do realismo cientfico sejam indepen-dentes da maneira como concebemos as teorias, isso no vale para todos eles. No que me diz respeito, penso ser razovel conceber uma teoria cientfica como constituda de um conjunto de modelos e de leis suscetveis de forne-cer explicaes causais dos fenmenos.

    A segunda questo concerne natureza da realidade que, ao menos aproximadamente, tornam verdadeiras no sentido de verdade como cor-respondncia as leis cientficas. Essa questo, francamente metafsica, apresenta dois aspectos. Requer-se, de pronto, aprofundar a noo de lei cien-tfica e, em seguida, averiguar, entre as diferentes concepes filosficas a propsito de leis, qual seria a mais satisfatria. Se uma lei cientfica for, aci-ma de tudo, uma proposio universal incorporada a uma teoria cientfica, parece-me que argumentos convincentes possam ser invocados em favor da existncia de entidades dotadas de potencialidades, a saber, poderes causais, que, em condies apropriadas, determinam o comportamento dessas enti-dades em conformidade a leis. Portanto, defendo uma metafsica da natureza baseada em poderes causais, assim como o fazem atualmente vrios filsofos oriundos da tradio analtica.

    Quando meu colega da Universidade Federal do Paran, o professor Edu-ardo Barra, concedeu-me a honra e o prazer de ministrar o curso principal da Es-cola Paranaense de Histria e Filosofia da Cincia de 2011, realizada em Curitiba entre os dias 11 e 13 de agosto daquele ano, pensei naturalmente em retomar esses quatro temas a natureza das teorias cientficas, os argumentos em favor ou contra o realismo cientfico, as leis cientficas e a metafsica da cincia.

    Em virtude disso, este livro divide-se em quatro partes. Na primeira, caracterizo brevemente a atitude objetivante da cincia, contrastando-a a ou-tras atitudes ou posturas caracterizadas como holsticas acerca daquilo que existe. Nas atitudes esttica, religiosa e emptica, as entidades existentes so tomadas como totalidades singulares, com as quais se pode estabelecer uma relao de proximidade. Por seu turno, a atitude objetivante caracteri-za-se por um ntido distanciamento das coisas, que passam a ser encaradas pelos cientistas como sistemas, ou seja, como um conjunto de elementos or-ganizados mediante relaes. Um objeto cientfico no outra coisa seno um conjunto de propriedades organizadas numa estrutura. A modelizao em cincia consiste precisamente na construo de estruturas de proprie-

  • 9MICHEL GHINS

    dades abstradas dos fenmenos para serem, em seguida, representadas por meio de outras estruturas, tais como os modelos de dados e aquilo que van Fraassen chama de subestruturas empricas embutidas, por sua vez, em es-truturas mais abrangentes ou tericas. Os modelos representam estruturas abstradas dos fenmenos, que chamo de estruturas perceptivas ou feno-mnicas. Assim, se h, entre os modelos da teoria, alguns que representam os modelos de dados, pode-se dizer que a teoria empiricamente adequada. Mas, da mesma forma, so os modelos que tornam as proposies da teoria verdadeiras ou as satisfazem; e, entre elas, encontram-se proposies univer-sais, que so as leis ou, em particular, as leis causais responsveis pelo poder explicativo de uma teoria. Em resumo, uma lei causal uma lei matemtica na qual ocorre uma derivada temporal referente ao efeito, enquanto os de-mais termos da equao se referem s causas.

    Essas consideraes me conduziram defesa de uma concepo sin-ttica das teorias cientficas, a qual tenta conciliar os mritos das abordagens ditas semnticas e sintticas. De acordo com a concepo sinttica, uma teoria cientfica consiste no apenas num conjunto de modelos, conforme pre-coniza a abordagem semntica, mas contm igualmente proposies, notada-mente as leis, conforme sustenta a abordagem sinttica. Entre as proposies, convm destacar as leis causais com as quais so descritos os mecanismos, isto , certas estruturas de propriedades, nas quais se concentra a capacidade de uma determinada teoria para explicar os fenmenos.

    No segundo captulo, examino as razes que legitimam a crena na verdade parcial e aproximada de uma teoria empiricamente adequada e explicativa dos fenmenos. Essa questo de natureza epistemolgica pode ser encarada sob dois aspectos. Primeiramente, podemos nos perguntar se os modelos, que so estruturas abstratas, representam os fenmenos, os quais so, por sua vez, entidades concretas. Esse hiato entre entidades pertencentes a distintas categorias o que confere plausibilidade s concepes antirrea-listas e construtivistas a que me oponho. Segundo essas ltimas concepes, nossos modelos so nossas construes (alis, como poderia ser diferente?) e, consequentemente, no temos razo alguma para pensar que elas possam re-presentar fielmente realidades externas. Bas van Fraassen, que chama essa ob-jeo antirrealista de objeo da perda da realidade, procurou respond-la de uma perspectiva empirista. Embora esteja de acordo com van Fraassen sobre a importncia de dar uma resposta a essa objeo, a resposta que proponho

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    diferente da que ele prope. Ao contrrio de van Fraassen, no creio que os modelos possam representar os fenmenos, pois uma representao implica necessariamente uma similitude particular que deve ser especificada pela no-o de homomorfismo, mas o contedo informativo dos modelos repousa sobre a verdade de proposies predicativas pelas quais so atribudas certas propriedades s entidades fenomnicas. Essas propriedades so, justamente, aquelas envolvidas nas relaes estruturais constituintes dos modelos.

    A segunda questo relativa ao realismo cientfico diz respeito capa-cidade representacional de modelos constitudos de propriedades no-obser-vveis, bem como verdade daquelas proposies que descrevem entidades inacessveis observao direta. Podemos nos perguntar, por exemplo, se as molculas existem e se a teoria cintica dos gases verdadeira. Sem entrar nos meandros de um debate de grande complexidade, limito-me a examinar o ar-gumento principal utilizado pelos realistas batizado por Hilary Putnam de no-miracle argument 1 e sua capacidade de responder principal objeo dos antirrealistas, a saber, a subdeterminao das teorias pelos modelos de dados. Vrias teorias incompatveis mostram-se, de fato, suscetveis de ser empirica-mente adequadas. Muito brevemente, Putnam considera que seria um milagre se uma teoria falsa obtivesse xito na predio de fenmenos especficos. O re-alismo cientfico se tornaria, ento, a melhor explicao cientfica do sucesso da cincia. Sou um crtico do argumento do milagre, assim como do recurso capacidade explicativa de uma teoria a fim de defender sua verdade. Todavia, sustento a possibilidade de defender um realismo moderado e seletivo, basea-do numa analogia com a experincia sensvel ordinria. Esse realismo pressu-pe uma concepo de verdade como correspondncia entre uma proposio e uma situao externa da qual depende a verdade da primeira. Estamos tanto mais habilitados a acreditar na existncia de uma mesa percebida quanto mais dispomos de observaes variadas e concordantes acerca desse fato. Da mes-ma maneira, estamos autorizados a acreditar na existncia, por exemplo, das molculas, se dispusermos de mtodos distintos e independentes para mensu-rar suas propriedades e se, mesmo assim, houver uma convergncia entre os resultados da aplicao desses diferentes mtodos. A partir desses resultados de mensurao, temos a possibilidade de determinar se as relaes entre essas propriedades de fato ocorrem ou se as leis so (aproximadamente) verdadeiras.

    1 N. dos T.: Expresso cuja traduo corrente em portugus argumento do milagre.

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    MICHEL GHINS

    Na terceira parte, debruo-me sobre a problemtica das leis cientfi-cas. Se filsofos empiristas tais como Ronald Giere e Bas van Fraassen negam a existncia de leis, por outro lado, empiristas moderados, tais como David Lewis, sustentam que as leis descrevem regularidades contingentes e o fa-zem a partir de uma perspectiva inspirada em David Hume. Os neorregu-laristas identificam as leis como sendo proposies universais que figuram na condio de axiomas ou teoremas em sistemas axiomticos, que, por sua vez, realizam o melhor equilbrio entre simplicidade formal e capacidade de predizer fenmenos. Contra os neorregularistas, os necessitaristas, tais como David Armstrong, sustentam que uma lei uma proposio singular que enuncia uma relao de necessitao entre propriedades individuais. Aps ter apontado as dificuldades insuperveis com as quais se defrontam tanto os neorregularistas humeanos quanto os necessitaristas, proponho que as leis cientficas sejam identificadas como sendo proposies universais integradas a uma teoria cientfica empiricamente adequada, causalmente explicativa e interpretada de modo realista. Uma lei, uma proposio nomo-lgica, aproximadamente verdadeira e, aquilo que a faz verdadeira, seu fa-zedor de verdade, uma regularidade, ou seja, uma reiterada ocorrncia de propriedades instanciadas que satisfazem uma relao matemtica precisa.

    Contudo, essa concepo das leis cientficas no responde a duas questes prementes. Em primeiro lugar, de que modo as leis podem se cons-tituir no fundamento da verdade de proposies condicionais contrafactu-ais, ou seja, proposies do tipo Se eu soltasse este objeto, ento ele cairia, que exprimem uma modalidade de necessidade? Em segundo lugar, de que modo explicar a existncia de regularidades na natureza? A fim de respon-der a essas duas questes cujas respostas neorregularistas e necessitaristas so insatisfatrias apresento, no quarto e ltimo captulo, uma metafsica neoaristotlica da natureza baseada em poderes causais e inspirada, entre outros, em Brian Ellis e Alexander Bird.

    A existncia, nas entidades as substncias em sentido amplo , de propriedades disposicionais e propriedades categricas constitui a base para a metafsica da natureza que pretendo aqui apresentar. Uma vez definida o que uma propriedade disposicional e, em seguida, um poder causal (que um caso particular de disposio), passo a caracterizar uma propriedade categ-rica como sendo algo cuja definio independe das condies de sua manifes-tao. A ttulo de exemplo, ser frgil e ser solvel so propriedades disposicio-

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    nais, enquanto ser esfrico ou ter uma determinada massa so propriedades categricas. Argumento que as disposies no so redutveis s propriedades categricas, ou seja, que elas no so definveis com a ajuda dessas ltimas. A metafsica neoaristotlica das leis aqui defendida apoia-se na existncia de duas classes distintas e independentes de propriedades: disposicionais e categricas. Trata-se, ento, de uma metafsica dualista ou, ainda, mista. Se a natureza est povoada de entidades dotadas de poderes causais, essas enti-dades manifestaro necessariamente, nas circunstncias apropriadas, certos comportamentos e se submetero a certos tipos de processos. Esses processos so exatamente aqueles descritos pelas leis cientficas. A existncia de poderes causais permite explicar metafisicamente a existncia de regularidades na natureza e esclarecer o fundamento da verdade das proposies contrafactu-ais. Com efeito, se eu soltasse um corpo, ele, em virtude do poder causal que possui essencialmente, cairia necessariamente em conformidade com a lei da gravitao de Newton, desde que as circunstncias apropriadas se realizassem. As leis cientficas so, assim, sustentadas por uma metafsica da natureza e me-recem plenamente o ttulo de leis da natureza.

    Concluo defendendo uma concepo da metafsica cuja sustentao no se restringe a inferncias da melhor explicao. Para justificar a crena em realidades que no so dadas diretamente na experincia sensvel, reali-dades tais como os poderes causais, insuficiente provar que a sua existncia constitui a melhor maneira de resolver problemas que consideramos impor-tantes, tais como o so a explicao das regularidades e a justificao dos con-trafatuais. necessrio ainda mostrar que as existncias postuladas podem ser atestadas a partir de sua proximidade com a experincia sensvel ordin-ria. Ser justamente isso que, nas ltimas linhas deste livro, procurarei esta-belecer a propsito da crena na existncia de poderes causais na natureza.

    Ao longo de minhas aulas e desta obra, esforcei-me para apresentar temas centrais e difceis da filosofia da cincia atual da maneira mais peda-ggica possvel e de escrever um texto acessvel a estudantes que iniciam seus estudos universitrios. Nessa perspectiva, foi-me impossvel entrar em detalhes nos argumentos necessrios justificao de todas as posies que defendo. Privilegiei a apresentao de uma viso geral coerente e pessoal de uma vasta problemtica, ao invs de uma discusso minuciosa de teses e de argumentos particulares. As referncias bibliogrficas permitiro aprofun-dar certos pontos a todos que assim desejarem.

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    MICHEL GHINS

    H muito trago comigo as questes tratadas aqui. Durante esses v-rios anos, tive o privilgio de beneficiar-me da colaborao muito proveito-sa com muitos colegas, entre os quais gostaria de mencionar especialmente Evandro Agazzi, Mario Alai, Gennaro Auletta, Alexander Bird, Jean Bric-mont, Harvey Brown, Jim Brown, Anjan Chakravartty, Silvio Chibeni, Alber-to Cordero, Jean-Michel Counet, Mauro Dorato, Luiz Henrique de A. Dutra, Michael Esfeld, Vincenzo Fano, Bernard Feltz, Steven French, Jean Ladrire, Marc Leclerc, Zeljko Loparic, Diego Marconi, Michele Marsonet, Rafael Mar-tinez, Michel Paty, Angelo Petroni, Oswaldo Porchat Pereira, Stathis Psillos, Tom Ryckman, Howard Sankey, Porfrio Silva, David Speiser, Mauricio Su-rez, Giuseppe Tanzella-Nitti, Claude Troisfontaines, Claudio Pizzi, Daniel Vanderveken e Bas van Fraassen.

    Gostaria de agradecer igualmente aos meus alunos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), da Universidade Catlica de Louvain e da Pontifcia Universidade Gregoriana de Roma. Seus esforos para alcanar uma boa compreenso fizeram deles exigentes guardies da clareza e da pre-ciso, que so as metas para as quais deve convergir toda exposio filosfica digna desse nome. Aquelas e aqueles que acompanharam minhas aulas na Universidade Federal do Paran no ficaram aqum dessas exigncias, bem ao contrrio; alm disso, motivaram-me fortemente a escrever este livro.

    Meu particular reconhecimento a Eduardo Barra por ter me concedi-do a oportunidade de ministrar essas aulas, assim como a Ronei Clcio Mo-cellin pela preciso da presente traduo. Dirijo um agradecimento especial a Eduardo Barra que imprimiu ao texto em portugus uma qualidade liter-ria superior quela do original em francs. Last but not least, queria agradecer a Daniel Tozzini, que muito contribuiu para tornar minha estada em Curiti-ba extremamente agradvel.

    Primum vivere, deinde philosophari por isso que eu no poderia dei-xar de agradecer a minha esposa Vronique e a nossos trs filhos Lopold, Arthur e Jean-Baptiste, que todos os dias iluminam minha vida e oferecem minha atividade filosfica um apoio insubstituvel.

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    As teorias cientficas no nascem espontaneamente, do nada. Tam-pouco esto inscritas num cu platnico, num mundo de ideias inalterveis s quais os cientistas poderiam ter acesso. As teorias so o resultado ou o produto de uma atividade comumente chamada de prtica cientfica. Essa prtica, tal como todas as atividades humanas, desenvolve-se em vista de cer-tas finalidades ou objetivos precisos. Definir esses objetivos est longe de ser uma tarefa trivial. Trata-se, em primeiro lugar, de traar uma distino entre, de um lado, os objetivos especificamente cientficos ou internos cincia e, de outro lado, as motivaes que animam certas pessoas ou grupos humanos a engajarem-se numa atividade cientfica. Essas motivaes externas no so exclusivas cincia, mas so compartilhadas por um grande nmero de ati-vidades humanas. Podem ser econmicas, religiosas, polticas, militares, so-ciais etc. A atividade cientfica caracteriza-se pela busca de metas especficas, entre as quais a capacidade de predizer fenmenos e de explic-los. Para os filsofos da cincia, assim como para os cientistas, essa uma das suas metas prioritrias, de tal modo que as teorias cientficas so elaboradas com a fina-lidade de predizer o comportamento dos fenmenos ao longo do tempo e de compreender suas causas.

    1. Abstrao e atitude objetivante

    Ora, a fim de explicar e predizer os fenmenos, o cientista deve adotar uma atitude especfica em relao ao mundo. Ele deve encarar as entidades (e, por entidade, compreendo em geral os eventos, as coisas, os processos etc.) dadas na percepo os fenmenos observveis como sistemas, isto , como conjuntos de elementos organizados por meio de relaes. Um sistema , por definio, uma estrutura composta de um domnio cujos elementos esto dispostos segundo relaes determinadas. Para visualizar as entidades como sistemas, preciso distanciar-se da percepo imediata, selecionar cer-

    CAPTULO 1:O QUE UMA TEORIA CIENTFICA?

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    tas caractersticas dos fenmenos e, ao mesmo tempo, negligenciar muitas outras. Por exemplo, poderemos estar interessados na presso e no volume de um gs ao invs de estarmos interessados na sua cor ou no seu odor. Em outras palavras, trata-se de ingressar num processo de abstrao. Abstrair significa, em meio disperso e confuso entre os fenmenos, isolar uma entidade particular, selecionar algumas das suas propriedades, tais como a presso e o volume, bem como ordenar os valores da presso e do volume por meio de relaes, que so, particular e prioritariamente, relaes mate-mticas. Um fenmeno reduz-se, desse modo, a alguns de seus aspectos e di-vide-se em elementos que constituem um domnio estruturado por meio de relaes. Por exemplo, para um gs temperatura constante, o domnio de valores simultneos da presso e do volume pode ser organizado de maneira que seus produtos sejam iguais a uma constante.

    Bas van Fraassen, em The Empirical Stance, distingue na atitude cien-tfica um elemento essencial que ele chama de atitude objetivante. A fim de construir um objeto cientfico, que, conforme vimos acima, sempre um sistema, cabe ao cientista colocar-se a certa distncia das coisas. Ele deve re-alizar uma ciso entre, de um lado, ele mesmo, na condio de sujeito, e, de outro, o objeto. Ou ainda, segundo Martin Buber (1923), trata-se de separar o eu do isso. O objeto cientfico um objeto coletado, etiquetado, colocado num museu, cortado em fatias, dissecado, solidificado, colorido e posto sob um microscpio, segundo as palavras de Catherine Wilson citadas por van Fraassen (2002, p. 157). Vista dessa maneira, uma entidade constituda em objeto cientfico torna-se algo completamente despido de qualquer valor prprio. Essa entidade, reduzida a um objeto, torna-se algo do qual o cien-tista pode dispor inteiramente em funo do objetivo de suas pesquisas, a saber, a elaborao de teorias que permitem compreender e predizer o com-portamento dos objetos investigados. Desprovido de todo valor intrnseco, um objeto cientfico pode ser manipulado, alterado e at mesmo destrudo em funo dos objetivos traados. O objeto no possui outro valor seno um valor externo a ele, a saber, aquele que o cientista pode ou deseja conferir-lhe dentro dos limites da sua prtica. Disto resulta que toda entidade, enquanto for considerada um objeto cientfico, no digna de nenhum respeito nem possui qualquer dignidade intrnseca. O respeito devido aos seres humanos e aos animais, por exemplo, no pode estar fundado em consideraes de tipo cientfico, mas deve encontrar seu fundamento em princpios ticos, que for-osamente so alheios s cincias.

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    MICHEL GHINS

    Esse procedimento objetivante, tpico da cincia mas no somente dela requer uma inverso da atitude com a qual os fenmenos so enca-rados no como sistemas constitudos de elementos, mas como totalidades singulares. Se voltarmos nossa ateno a esse fato, tomaremos conscincia de que os fenmenos se apresentam imediatamente nossa percepo no como sistemas, mas como totalidades com as quais podemos nos relacionar por meio de laos pessoais de proximidade. A criana atribui espontanea-mente s entidades percebidas caractersticas humanas, tal como um prin-cpio de vida (isto , uma alma), e reconhece que elas possuem um determi-nado valor. Ocorre o mesmo com as populaes tradicionais, cujo mundo povoado de entidades ancestrais, que possuem de imediato um valor in-trnseco e com os quais se podem estabelecer uma comunicao. Longe de atribuir a tal atitude conotaes pejorativas, devemos ver nelas uma atitude humana fundamentalmente positiva, suscetvel de nos revelar aspectos es-senciais das entidades naturais; atitude essa que chamei de atitude holsti-ca (GHINS, 2009). Esse relacionamento pessoal com as entidades percebi-das, prxima daquelas que podemos manter com as demais pessoas, deve ser cuidadosamente distinto das relaes por meio das quais organizamos os elementos de um sistema. A abstrao ou a suspenso desse relacionamento pessoal, imediato, com as coisas percebidas uma exigncia da atitude ou da postura objetivante, que consiste em enxergar sistemas nos fenmenos. Chamarei essa abstrao de abstrao primria, primordial ou originria.

    Na cincia, a escolha das propriedades ou parmetros relevantes est sujeita a restries impostas pela necessidade de o cientista colocar-se dis-tncia, de no atribuir nenhum valor intrnseco aos objetos e de abster-se na medida do possvel de qualquer comprometimento pessoal subjetivo com o objeto estudado. Embora permanea sempre inacessvel, esse ideal perseguido pelos cientistas de maneira consciente e deliberada. Nisso reside uma das faces essenciais da busca por um mximo de objetividade, ou seja, da eliminao de qualquer fator que esteja ligado individualidade de um experimentador ou de um terico particular. Decorrente da ou, frequen-temente, concomitante abstrao originria, a segunda etapa constituti-va da postura cientfica consiste em selecionar, num dado fenmeno, certas propriedades, grandezas ou quantidades consideradas dignas de interesse. Trata-se de definir o domnio de pesquisa de um modo suficientemente pre-ciso e, por conseguinte, restritivo. A escolha de quantidades ou de parme-tros determinados resulta daquilo que chamarei de abstrao secundria. Por

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    exemplo, se estamos interessados nos movimentos dos astros, as posies e as velocidades sero selecionadas como grandezas relevantes, ao passo que a cor no ser levada em considerao. Uma vez feita essa escolha, um sistema de relaes entre essas posies e velocidades poder ser ento construdo.

    No h dvidas de que as preferncias subjetivas, os sentimentos pes-soais, desempenham um papel decisivo nas motivaes que conduzem uma pessoa a interessar-se por certos objetos ou por certas disciplinas cientficas em detrimento de outras. Alguns preferem a fsica qumica; outros, a psicologia demografia, etc. De qualquer forma, as propriedades estudadas devem ser inde-pendentes dos indivduos, tanto na sua concepo quanto na maneira de medi--las. Isso corresponde ao sentido mais comum de objetividade. Nas cincias, imprescindvel que as propriedades relevantes sejam mensurveis por todo e qualquer observador ou experimentador, ou seja, por qualquer pessoa que dis-ponha dos aparelhos de observao ou de mensurao apropriados. O objeto cientfico no uma entidade nica, singular, mas uma entidade que pode ser replicada, multiplicada indefinidamente. No domnio da astronomia relativa aos movimentos dos corpos celestes, um planeta invariavelmente considera-do um objeto dotado de propriedades, tais como a velocidade e a posio, men-surveis por qualquer pessoa, em qualquer lugar e a qualquer momento.

    Quem nunca contemplou o cu durante uma bela noite sem nuvens, sem luar e em um local retirado das luzes das cidades? Assim como ocorreu com Immanuel Kant, ficamos encantados com o esplendor deslumbrante de mirades de estrelas que se distribuem atravs do firmamento, um sentimen-to magnificamente expresso pelos versos de Olavo Billac em Via Lctea:

    Ora (direis) ouvir estrelas! CertoPerdeste o senso! E eu vos direi, no entanto,Que, para ouvi-las, muita vez despertoE abro as janelas, plido de espanto...E conversamos toda a noite, enquantoA Via Lctea, como um plio aberto,Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,Inda as procuro pelo cu deserto.2

    2 N. dos T.: No original, constavam aqui os seguintes versos do poema Chanson du mal-aim de Guillaume Apollinaire (1880-1918): Voie lacte sur lumineuse/Des blancs ruisseaux de Chanaan/Et des corps blancs des amoureuses/Nageurs morts suivrons-nous dahan/Ton cours vers dautres nbuleuses.

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    MICHEL GHINS

    Quanta diferena entre a atitude do poeta e aquela do cientista! Ao invs de esquadrinhar o cu num sistema, o poeta v nele uma totalidade na qual podemos literalmente penetrar sem operar qualquer distino entre um sujeito e um objeto. Na atitude esttica, as coisas so vistas como totalidades nicas, singulares, nas quais tentamos penetrar profundamente, confundindo-nos com elas, adentrando a prpria obra, at o ponto de esque-cermos que somos ns quem a contempla. Este tipo de atitude, que chamarei de atitude totalizante, sapiencial ou, ainda, holstica, tambm aquela que nos convm adotar em nossos relacionamentos pessoais, na amizade, no amor ou no relacionamento possvel com Deus.

    2. Modelizao e adequao emprica

    Retornemos cincia. Por meio de uma abstrao primria, o cu inicialmente encarado como um sistema. Em seguida, isolamos certas enti-dades, tais como determinadas manchas luminosas em movimento, alm de certas propriedades, tais como suas posies e velocidades relativas a outras manchas luminosas que permanecem imveis, fixas. Chamamos as man-chas mveis de planetas e as manchas imveis de estrelas, e designamos os planetas individuais por nomes prprios tais como Marte ou Vnus. Como cientistas, decidimos dirigir nosso interesse s posies e velocidades dos planetas ou, mais precisamente, aos seus perodos orbitais (ou seja, o tempo despendido por um planeta para percorrer uma revoluo completa em relao a ns ou, ainda, o tempo necessrio para que ele retorne mesma posio em que antes se encontrava em relao s estrelas vistas da Terra). Construmos, ento, o que chamarei de estrutura perceptiva, cujo domnio constitudo pelas magnitudes observadas dos perodos orbitais, organizadas pela relao menor ou igual a. Essa relao uma relao de ordem. Note--se e isto importante que o domnio da estrutura perceptiva no cons-titudo pelos planetas, mas por algumas de suas propriedades, isto , pelas magnitudes observadas dos perodos orbitais. Os planetas so entidades que efetivamente possuem certas propriedades, especialmente a de se movimen-tar segundo um perodo orbital preciso; mas os planetas no so os elemen-tos do domnio da estrutura perceptiva por ns construda.

    Construir uma estrutura perceptiva a primeira etapa no processo de modelizao nas cincias. Um modelo , por definio, uma estrutura que torna verdadeira ou satisfaz certas proposies. Aqui, a estrutura percepti-

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    va torna verdadeiras as proposies que descrevem as relaes entre os per-odos orbitais dos planetas, tais como o perodo orbital de Marte maior do que o de Vnus. Naturalmente, o cientista no pode se limitar construo de estruturas perceptivas. Na maioria dos casos, a observao direta fornece apenas valores muito aproximativos, valores que somente instrumentos ou aparelhos de mensurao permitem precisar. Os procedimentos de mensu-rao geram uma nova estrutura cujo domnio o conjunto dos resultados obtidos com aqueles instrumentos. Obtemos assim um modelo de dados (data model) que satisfaz tambm certas proposies acerca de relaes mantidas pelos elementos do domnio considerado. Alm disso, a preciso das men-suraes permite corrigir a estrutura perceptiva, visto que, na maioria dos casos, seus elementos no so estimados com a exatido desejada.

    Da mesma forma que a estrutura perceptiva, o modelo de dados satisfaz enunciados tais como o perodo orbital de Marte maior do que o de Vnus. Alm de tornarem verdadeiras certas proposies, os modelos desempenham outro papel de igual importncia. De fato, os modelos so utilizados pelos cientistas para representar certos aspectos dos fenmenos. Aqui, um modelo de dados pode ser utilizado como uma representao de uma estrutura perceptiva. Para tanto, estabelecemos uma correspondncia entre os resultados de mensuraes e as grande-zas observadas diretamente. Se os domnios da estrutura perceptiva e do modelo de dados contm o mesmo nmero de elementos ou, em outras palavras, se eles tm a mesma cardinalidade, podemos construir uma cor-respondncia biunvoca (uma bijeo) cujo conjunto de partida o dom-nio do modelo de dados e o conjunto de chegada o domnio da estrutura perceptiva. Podemos tambm arranjar as coisas de tal forma que a funo construda F preserve as relaes presentes no domnio de partida, isto , o domnio de dados. Se elementos do domnio de dados so ligados por uma relao R, as imagens proporcionadas por F desses elementos no do-mnio de chegada so ligadas por uma relao R*. No exemplo acima, as relaes R e R* so ambas a relao maior ou igual. Denomina-se essa funo F de funo representativa. Se a funo bijetiva e preserva as rela-es, temos um isomorfismo. Etimologicamente, um isomorfismo uma funo que preserva a forma, isto , preserva as relaes que estruturam os respectivos domnios. Se a funo F no bijetiva, temos no mais um isomorfismo, mas o que se chama de homomorfismo. A noo de ho-momorfismo mais geral e, portanto, menos forte, menos restritiva, que

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    MICHEL GHINS

    aquela de isomorfismo. A construo de um isomorfismo ou, mais gene-ricamente, de um homomorfismo entre duas estruturas uma condio necessria para que uma possa ser a representao da outra.

    O modelo de dados (aqui, as medidas dos perodos orbitais dos plane-tas) utilizado para representar a estrutura perceptiva (as observaes diretas dos perodos orbitais). A relao entre essas duas estruturas uma relao de representao. Essa relao de representao apoia-se sobre a existncia de uma funo representativa que deve ter sido previamente construda por um usurio. Um sistema representativo representa um sistema no em vir-tude de suas caractersticas prprias, intrnsecas, mas apenas relativamente a um usurio. O usurio aqui o cientista. Conforme acrescenta van Fraassen, qualquer coisa pode ser utilizada para representar qualquer outra coisa (VAN FRAASSEN, 2008, p.233). Uma folha de papel com algumas linhas traadas ao acaso pode ser utilizada, mediante apropriadas convenes, para representar o campus da Universidade Federal do Paran. Com certeza, tal mapa no ser muito prtico, mas ser sem dvida um mapa do campus. Por outro lado, o contexto desempenha um papel primordial. o contexto que, num meio cul-tural particular, permite determinar as convenes que esto sendo ali em-pregadas, muitas vezes de maneira tcita. Desse modo, damo-nos conta que a relao de representao particularmente complexa, pois envolve quatro ingredientes: o representante, o representado, o usurio e o contexto.

    No sentido que atribuo palavra representao, a relao de re-presentao demanda que um usurio, imerso num determinado contex-to, construa um homomorfismo entre duas estruturas. Um cientista so-mente consegue representar um fenmeno, segundo certos aspectos, se satisfizer a condio de haver construdo previamente um homomorfis-mo entre estruturas. O astrnomo pode assim representar o cu como um sistema de perodos orbitais. Esse modo de proceder dentro dos limites da atitude objetivante engendra a seguinte consequncia contra-intuitiva: o modelo de dados no representa diretamente o cu, mas a estrutura per-ceptiva que, por assim dizer, dele se extrai por meio da abstrao. Parece ento que, pelo procedimento objetivante e pela modelizao, o cientista distancia-se da realidade at o ponto de perder o contato com o real feno-mnico tal como ele dado na percepo imediata. Voltaremos a falar so-bre essa problemtica filosfica essencial quando tratarmos do realismo cientfico no segundo captulo.

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    Evidentemente, a atividade cientfica no se encerra com a constru-o de um modelo de dados, visto que ele no proporciona explicao algu-ma. Com o objetivo de explicar os dados das mensuraes, os cientistas inse-rem ou embutem os modelos de dados em estruturas mais amplas, que se chamam estruturas tericas. Para os defensores da assim chamada concepo semntica de teorias, tais como Bas van Fraassen (1980) e Ronald Giere (1988), as teorias cientficas so identificadas como modelos ou, mais precisamente, como classes de modelos. Temos agora que examinar em que consiste esse embutimento (embedding).

    Embutir um modelo de dados numa estrutura terica consiste em construir um homomorfismo entre uma de suas subestruturas e o modelo de dados. Por extenso, podemos falar de embutimento de estruturas percep-tivas ou, ainda, de fenmenos dos quais so retiradas essas estruturas per-ceptivas. Por exemplo, a estrutura das medidas dos perodos orbitais pode ser embutida na classe dos modelos de dois corpos da mecnica clssica de partculas. Isso significa que podemos, com a ajuda da mecnica clssica e por intermdio do clculo, construir uma estrutura necessariamente te-rica que seja homomrfica ao modelo de dados. Mas apenas isso no basta. preciso ainda que os valores obtidos pelo clculo no se afastem muito dos valores mensurados. No caso dos planetas, exigimos que os valores cal-culados para os perodos orbitais sejam suficientemente prximos ou, mais precisamente, adequados aos valores mensurados. Uma subestrutura suscet-vel de ser homomrfica e adequada a um modelo de dados chamada de su-bestrutura emprica (VAN FRAASSEN, 1980). Visto que uma subestrutura em-prica igualmente uma subestrutura terica, as qualificaes emprico e terico aqui no se opem mutuamente. Quando, para qualquer modelo de dados relevante, uma teoria contm subestruturas empricas homomrfi-cas adequadas, ela dita empiricamente adequada.

    Naturalmente, uma teoria permite no apenas calcular resultados j observados, mas tambm calcular e predizer novos resultados. Trata-se de um requisito particularmente exigente. A adequao emprica no se limita s mensuraes j efetuadas, mas se estende ao conjunto de mensuraes que podero ser realizadas no futuro, ou seja, a todas as medidas possveis. A adequao emprica requer um conjunto de modelos de dados que podem ser construdos em vista do conjunto das estruturas perceptivas relativas ao campo de pertinncia de uma determinada teoria. Essa teoria ser empirica-

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    MICHEL GHINS

    mente adequada se ela contiver estruturas empricas homomrficas a esse conjunto de modelos de dados. Por essa razo, uma teoria est sempre sujeita a um possvel falseamento: no h qualquer garantia de que as predies da teoria sempre estaro de acordo com as observaes. Se as predies da te-oria no forem conformes s observaes nem for possvel construir, com base na teoria, uma estrutura emprica homomrfica aos novos resultados, teremos conseguido mostrar que a teoria no empiricamente adequada.

    At agora a atividade do cientista pode ser resumida da seguinte forma:

    Fenmeno(cu)

    Estrutura perceptiva(perodos orbitais percebidos)

    Modelo de dados(perodos orbitais mensurados)

    Subestrutura emprica (e terica)(perodos orbitais calculados)

    Modelo terico(modelo de dois corpos)

    Classe de modelos (teoria)(mecnica clssica de particulas)

    abstrao

    homomorfismo

    homomorfismo

    incluso conjuntista

    incluso conjuntista

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    3. Os requisitos de cientificidade

    Para merecer o ttulo de cientfica, uma teoria deve satisfazer a uma srie de condies. Alm da adequao emprica, as qualidades exigidas mais frequentemente lembradas pelos filsofos das cincias e pelos prprios cientistas so a universalidade, a simplicidade e o poder explicativo. Tradicional-mente, os filsofos empiristas tentaram limitar as condies que uma (boa) teoria cientfica deve, em princpio, satisfazer sua adequao emprica, bem como tentaram reduzir a requisitos de natureza pragmtica as demais caractersticas irredutveis adequao emprica. Certamente, constitui um requisito importante para a aceitao de uma teoria a sua adequao empri-ca considerando-se os dados j conhecidos. Essa aceitao implica a deciso de utilizar a teoria para predizer novas e talvez inesperadas observaes. Em outras palavras, admite-se que a teoria empiricamente adequada no ape-nas s observaes passadas e atuais, mas tambm com relao s futuras observaes. A teoria permite, ento, antecipar observaes futuras, fazer predies bem-sucedidas e, contanto que se possa manipular certas vari-veis, controlar a evoluo de um objeto-sistema.

    Uma teoria cujas predies so mais exatas ser naturalmente prefe-rida a uma teoria cujas predies so menos exatas. Porm, notoriamente difcil caracterizar o requisito de preciso de um modo suficientemente rigo-roso, uma vez que tal requisito depende do contexto no qual a teoria utili-zada. Em certos contextos, a facilidade de manipulao ser privilegiada em detrimento da preciso das predies. Trata-se, aqui, de um critrio pragm-tico. Em numerosas aplicaes prticas, perfeitamente legtimo preferir a mecnica clssica ou a ptica geomtrica em detrimento da relatividade ge-ral ou da mecnica quntica. De qualquer forma, o filsofo julgar que uma teoria empiricamente mais adequada e, por conseguinte, mais satisfatria, se os clculos que ela permite realizar conduzem a predies que se confor-mem com maior preciso aos resultados das mensuraes.

    O grau de generalidade a universalidade uma qualidade parti-cularmente valorizada. Uma teoria mais geral ser preferida a uma teoria acerca de um domnio mais limitado. Convm notar que o grau de genera-lidade de uma teoria apenas uma das facetas da sua adequao emprica. Uma teoria ser tanto mais empiricamente adequada quanto mais ela con-tiver modelos aos quais possa ser incorporada uma maior variedade de ob-

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    MICHEL GHINS

    servaes. Por essa razo, os empiristas do grande importncia unificao das teorias existentes, promovida por teorias mais abrangentes cujo grau de generalidade seja mais elevado. A mecnica de Newton unifica a mecnica celeste de Kepler e a mecnica terrestre de Galileu. A, assim chamada, teoria sinttica da evoluo unifica a teoria da seleo natural de Darwin e a gen-tica. A teoria unificadora, alm de aumentar em muitas vezes a exatido das predies, permite tambm predizer novas observaes e, com isso, aumen-tar o poder preditivo, ou seja, em ltima instncia, construir teorias empi-ricamente adequadas a um maior nmero de observaes. Sabemos que a mecnica de Newton, alm de dar conta dos movimentos planetrios com maior preciso, permitiu predizer tambm o retorno do cometa Halley e os movimentos das mars.

    No entanto, utilizamos uma teoria cientifica no somente para predi-zer resultados de observao de forma numerosa, variada e precisa. Presumi-mos tambm que ela seja capaz de explicar os fenmenos. Os cientistas pro-curam compreender, por meio de teorias, a evoluo de certos aspectos dos fenmenos ao longo do tempo. O poder preditivo, que repousa na adequa-o emprica, sem dvida uma qualidade muito valorizada, o qual torna possvel o controle sobre o curso de certos fenmenos ou processos, se nos for dada a possibilidade de intervir nas condies sob as quais eles evoluem. Por exemplo, podemos controlar a presso de um gs ao intervir sobre a sua temperatura, esfriando-o ou aquecendo-o. No caso dos processos que esca-pam ao nosso controle, podemos ajustar o nosso comportamento em funo do conhecimento do modo como eles evoluem com o tempo. No podemos (ainda) intervir nas condies meteorolgicas futuras, mas podemos adaptar o nosso vesturio a elas.

    Um modo de esclarecer a noo de explicao procurar reduzi-la noo de predio. No surpreendente que os empiristas tenham escolhido essa via; em primeiro lugar, porque a predio de resultados de observao ou de mensurao possui um sentido emprico; mas tambm porque a ca-pacidade de predizer possui grande valor prtico. A concepo empirista da explicao nas cincias proposta por Hempel e Oppenheim (1948) identifica justamente o poder explicativo de uma teoria sua capacidade de efetuar predies a partir de leis gerais. Um resultado de observao explicado se for possvel deduzi-lo de uma lei geral e de condies iniciais ou de condi-es de contorno ou, em outras palavras, se for possvel calcular com ante-

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    cedncia o resultado a ser obtido numa operao de mensurao. Assim, a teoria de Newton explica, isto , prev por deduo, segundo Hempel e Oppe-nheim, a posio e a velocidade de um planeta num dado momento a partir das medidas da sua posio e velocidade em outro determinado momento.

    Essa concepo da explicao pressupe que uma teoria cientfica seja um conjunto de proposies, de preferncia, axiomaticamente organi-zado, cujas proposies mais fundamentais so as leis mais gerais possveis. Segundo essa abordagem, uma teoria cientfica no em primeiro lugar uma classe de modelos, mas um conjunto de proposies. Isso corresponde assim chamada concepo sinttica das teorias, em contraste com a concepo se-mntica ou modelizante, que considera uma teoria como sendo antes de tudo uma classe de modelos. A anlise da noo de explicao cientfica realizada por Hempel e Oppenheim conhecida como covering law model of explanation ou modelo dedutivo-nomolgico da explicao apoia-se no somente nas leis cientficas (das quais voltaremos a falar), mas tambm numa viso das te-orias segundo a qual as teorias cientficas so antes de mais nada conjuntos de proposies, e no modelos, conforme defende a abordagem semntica.

    4. A concepo sinttica das teorias

    Quanto a mim, defendo uma concepo das teorias que, na falta de uma expresso melhor, chamarei de sinttica, pois procura conciliar as abordagens se-mnticas e sintticas e, ao mesmo tempo, conserva os mritos de ambas. Segun-do essa concepo sinttica, uma teoria cientifica um conjunto de modelos e de proposies satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos. Podemos ver isso mais de perto a partir do exame do exemplo de uma teoria particularmente admirada pelos cientistas e filsofos da cincia: a teoria cintica dos gases.

    Se retomarmos o esquema apresentado acima, temos:

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    MICHEL GHINS

    A teoria cintica dos gases contm a lei dos gases perfeitos, que fre-quentemente expressa pela frmula matemtica:

    pV=KT,

    onde K a constante de Boltzmann.

    Mas essa frmula no uma proposio assertiva. No afirma nada sobre o que acontece ou pode acontecer no mundo. A lei completa deve ser formulada do seguinte modo:

    (x)(Gx (p)(V)(T)(px.Vx = KTx ))

    Fenmeno(gs)

    Estrutura perceptiva(presso, volume, temperatura)

    Modelo de dados(as medidas da presso p, volume V, temperatura T)

    Subestrutura emprica (e terica)(os valores calculados de p, V, T)

    Modelo terico(p, T expressos velocidade mdia )

    Classe de modelos (teoria)(mecnica estatstica de partculas)

    abstrao

    homomorfismo

    homomorfismo

    incluso conjuntista

    incluso conjuntista

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    Se uma entidade um gs perfeito isto , um gs que se encontra num estado afastado de seu ponto de liquefao , ento os valores simulta-neamente medidos de sua presso, sua temperatura e seu volume assumi-ro valores tais que suas relaes obedecem a frmula pV=KT. Em outras palavras, as medidas da presso, volume e temperatura realizadas simulta-neamente, que constituem aqui o modelo dos dados, satisfazem ou tornam aproximadamente verdadeira a frmula pV=KT.

    Essa lei dos gases perfeitos uma lei de coexistncia. Ao contrrio das leis de sucesso (que concernem aos processos), ela no faz referncia ao tempo. Ela impe uma restrio aos valores possveis das variveis de estado de um gs que se encontra num estado de equilbrio. Essa lei no explica, por exemplo, o valor da presso a partir dos valores do volume e da temperatura, nem o valor da temperatura a partir dos valores de presso e de volume.

    Coube teoria cintica dos gases de Maxwell-Boltzmann a descri-o dos processos microscpicos explicativos subjacentes. Supondo-se que um gs seja um conjunto de molculas que colidem entre si segundo as leis da mecnica de partculas que so leis de sucesso , a teoria ci-ntica nos diz que a presso resulta dos choques das molculas com a pa-rede do recipiente e que a temperatura proporcional energia cintica mdia das molculas do gs. A noo de energia cintica mdia recorre a propriedades que no so observveis, tais como a massa das molculas e sua velocidade mdia. Essa teoria que uma teoria estatstica permi-te construir uma subestrutura emprica cujo domnio contm os valores calculados para a presso e a temperatura a partir da velocidade mdia das molculas do gs, e homomrfica ao modelo de dados das presses e temperaturas medidas. (O volume assim como a quantidade de gs so dados empricos que desempenham o papel de condies de contorno.) A explicao da lei dos gases perfeitos repousa sobre leis fundamentais e causais (veja mais adiante) que descrevem o comportamento de corpos considerados como pontos massivos sem extenso.

    5. Explicao e mecanismo causal

    Convm acrescentar que a explicao de uma lei particular aqui, a lei dos gases perfeitos consiste numa deduo dessa lei a partir das leis mais gerais da mecnica estatstica de partculas. Mas isso no tudo. Se aqui consideramos essa explicao da lei de Boyle-Mariotte como particu-

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    MICHEL GHINS

    larmente satisfatria, isso ocorre porque ela est associada a uma imagem visual obtida a partir de nossa experincia perceptiva. Com efeito, uma vez que o choque entre corpos nos dado em nossa experincia visual, po-demos facilmente imaginar um conjunto de pequenos corpos em coliso. Alm disso, em nossa cultura, somos acostumados a manipular as leis da mecnica clssica. Essas leis no nos parecem mais to estranhas quanto eram poca que Newton as enunciou pela primeira vez. A conexo bas-tante imediata com nossa experincia visual, assim como a nossa familia-ridade com as leis da mecnica newtoniana, torna compreensvel o nosso contentamento com essa explicao da lei dos gases perfeitos. Contudo, uma concepo filosfica da explicao no pode se basear em considera-es desse tipo, que so de natureza psicolgica.

    Um grande nmero de filsofos defende que uma teoria explicati-va somente se ela descrever mecanismos causais. Dito de outro modo, no basta que se possam deduzir por meio de proposies da teoria outras pro-posies, as quais descrevem as mudanas que se deseja explicar. Mas, antes, necessrio nos colocar de acordo sobre a noo de mecanismo causal. Para Galileu e Descartes, um mecanismo um conjunto de partes dotadas de formas geomtricas cujas posies e velocidades esto relacionadas entre si, tal como no clebre exemplo do relgio. No difcil imaginar esse tipo de mecanismo. A teoria cintica dos gases fornece um mecanismo explicativo muito prximo disso. Por outro lado, nem o choque como tal nem a inte-rao gravitacional so explicados de um modo mecnico. Hoje em dia, o choque entre os corpos ou as molculas explicado, primeiro, pela teoria eletromagntica de Maxwell e, num passo frente, pela teoria quntica de campos. A teoria da gravitao de Einstein a relatividade geral explica a interao gravitacional recorrendo ao intercmbio de certas partculas: os grvitons. Mas esses ltimos no tm muito em comum com as bolas de bi-lhar e sua existncia ainda hipottica.

    Se nos detivermos bem sobre aquilo em que consiste a natureza da explicao mecanicista, constataremos que ela se apoia na noo de sis-tema. Para a cincia matematizada, um mecanismo nada mais que um conjunto de grandezas posies, velocidades, aceleraes, formas geom-tricas, massas etc. que mantm entre si relaes matemticas. So as pro-priedades dos corpos que figuram nas equaes e no os prprios corpos. Podemos certamente visualizar os corpos que possuem essas propriedades,

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    mas somente os valores quantitativos abstrados dos corpos adquirem al-guma relevncia do ponto de vista cientfico. Esse um resultado tpico do processo objetivante. Apenas sistemas de grandezas abstratas so levados em considerao na construo de nossas teorias.

    A histria nos ensina que a evoluo das cincias caracteriza-se por uma generalizao do pensamento mecanicista. Os pais fundadores da ci-ncia moderna, Galileu, Descartes e muitos outros acreditaram que a fsica, e mesmo a cincia na sua totalidade, poderia ser construda com base num nmero reduzido de propriedades quantificveis as qualidades prim-rias, de natureza essencialmente geomtrica e que as demais qualidades secundrias , tais como a cor e o som, poderiam ser reduzidas, isto , definidas a partir das qualidades primrias. Esse sonho no se realizou, mas ele sobreviveu de modo atenuado no processo de objetivao que consiste, antes de tudo, em considerar as entidades como sistemas que se caracteri-zam por grandezas quantificveis e mesurveis, em virtude da abstrao pri-mria. Decerto, essas grandezas no devem necessariamente ser grandezas mecnicas, mas elas devem poder ser organizadas em modelos quantita-tivos aptos a representar estruturas perceptivas ou estruturas de resultados da mensurao (os modelos de dados). A noo de mecanismo foi, pois, ex-pandida consideravelmente, at o ponto de no conservar nenhuma relao, seno longnqua, com a concepo galileana e cartesiana original. De modo bastante amplo, um mecanismo um modelo, uma estrutura de elementos quantificveis organizados por relaes matemticas, isto , leis e, agora acrescento, leis causais (ver o segundo captulo). Esse modelo, ou mecanis-mo no senso amplo, na maioria dos casos tem apenas um vnculo tnue com a visualizao ou a imaginao. Essas ltimas podem certamente desempe-nhar um papel heurstico, isto , favorecer a descoberta de certas estruturas matemticas. No entanto, a fora explicativa de uma teoria repousa no so-bre imagens visuais, mas antes sobre as leis matemticas causais que permi-tem calcular os domnios das subestruturas empricas aptas a representar os fenmenos como sistemas.

    Essa maneira de conceber os mecanismos fez recair sobre as leis o peso principal da fora explicativa de uma teoria. Nem todas as relaes ma-temticas tm poder explicativo: pensemos nas leis ditas fenomenolgicas que exprimem matematicamente uma curva que mais ou menos se ajusta s mensuraes (curve fitting) e nada mais fazem que resumir os resultados da

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    MICHEL GHINS

    observao. Portanto, devemos exigir que uma teoria cientfica possua leis que satisfaam certas condies, entre as quais deve figurar, numa posio de destaque, a expresso de algum nexo causal. Voltaremos a falar sobre essa questo crucial da causalidade no captulo seguinte. Por enquanto, podemos simplesmente dizer que, para merecer o ttulo de lei causal, uma expresso matemtica deve ser uma equao diferencial que contm uma derivada em relao ao tempo. No final das contas, um mecanismo explicativo no sentido geral um sistema cujo domnio, isto , o conjunto das grandezas que so seus elementos, satisfaz leis de natureza causal.

    6. Concluso

    Segundo a concepo semntica, uma teoria cientfica uma classe de modelos que satisfazem um conjunto de leis matemticas. Uma teoria cientfica deve conter subestruturas empricas, isto , estruturas capazes de representar modelos de dados extrados de certos fenmenos com a ajuda de instrumentos. Uma teoria deve ser capaz de predizer, com a maior preciso possvel, os resultados de mensuraes, mas, igualmente, ser capaz de forne-cer uma explicao causal desses resultados. Se os dados recolhidos no so conformes s predies da teoria, ela no empiricamente adequada. Dito de outro modo: a teoria foi falseada. O poder explicativo de uma teoria sustenta--se em leis de natureza causal por intermdio das quais podemos construir calculando as subestruturas empricas. Se uma lei causal, ela descreve o que podemos chamar de mecanismo, no no sentido restrito da filosofia mecanicista dos scs. XVII e XVIII, mas no sentido amplo segundo o qual um mecanismo no mais que um sistema de propriedades quantificadas que tornam verdadeiras as leis causais, as quais descrevem a evoluo dos valores daquelas propriedades ao longo do tempo.

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    Em que medida uma teoria cientfica verdadeira? Trata-se de uma questo de importncia central para a qual convergem vrios debates atuais da filosofia da cincia. Essa questo , em primeiro lugar, epistemolgica por-que diz respeito ao alcance e aos limites do conhecimento cientfico, mas tambm metafsica porque no podemos escapar de uma interrogao sobre a natureza das realidades das quais falam as nossas teorias. No presente cap-tulo, examinaremos os argumentos em favor da verdade, pelo menos parcial e aproximativa, das nossas melhores teorias e da existncia de objetos inaces-sveis observao direta postulados por essas teorias. Tentaremos defender uma concepo da verdade como correspondncia, assim como uma verso moderada e seletiva de realismo cientfico. Segundo a concepo sinttica das teorias, que tem a minha preferncia, a problemtica do realismo cientfico pode ser considerada sob dois aspectos. Em que medida pode-se aceitar que os modelos representam corretamente certas realidades? Em que medida pode-se acreditar que as leis cientficas so verdadeiras?

    1. A objeo da perda de realidade

    Lembremos brevemente o processo de modelizao descrito no cap-tulo precedente para um gs em expanso ou contrao no interior de um recipiente. No incio, selecionam-se no fenmeno considerado como um sistema em decorrncia de uma abstrao originria as propriedades relati-vas ao volume, presso e ao grau de calor, a fim de construir uma estrutura perceptiva ou fenomenal. Em seguida, o volume, a presso e o grau de calor, mais exatamente a temperatura,3 so medidos do modo mais preciso possvel

    3: O conceito de temperatura tem sua origem nas sensaes de calor e frio. Sua elabo-rao cientfica precisa foi particularmente rdua e a histria da cincia nos ensina que ela levou um tempo considervel (cf. VAN FRAASSEN, 2008, p. 121-130).

    CAPTULO 2: A INTERPRETAO REALISTA DAS TEORIAS CIENTFICAS

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    UMA INTRODUO METAFSICA DA NATUREZA

    por instrumentos apropriados. Dessa maneira, construmos um modelo de dados organizados aproximativamente pela relao pV=KT. Com esse mo-delo de dados, podemos, por meio de um homomorfismo, representar a estru-tura perceptiva. Tal modelo pode, por sua vez, ser incorporado a uma estrutura mais abrangente: a teoria cintica dos gases. Isso significa que podemos, com base na teoria cintica, calcular as presses e as temperaturas e construir assim uma subestrutura emprica cujo domnio contm esses valores tericos calcu-lados. Esta subestrutura emprica representa o modelo de dados. No entanto, a teoria cintica contm grandezas, tais como a massa e a velocidade mdia, que no so acessveis observao direta: so grandezas inobservveis que no podem ser diretamente observadas por meio de nossos sentidos; mas somente calculadas pela teoria e mensuradas com a ajuda de instrumentos.

    Sob essa abordagem semntica, a questo do realismo cientfico se pe em dois nveis distintos. Num primeiro nvel, convm interrogar-se so-bre a relao entre as estruturas por ns construdas e os fenmenos observ-veis, que na sua realidade bruta no so sistemas, mas totalidades singulares ao contrrio do que ocorre com as estruturas perceptivas, os modelos de dados e as subestruturas empricas. Num segundo nvel, perguntamo-nos se as superestruturas de propriedades inobservveis correspondem a realida-des externas, independentes, quer dizer, correspondem a objetos reais, tais como as molculas, que possuem, efetivamente, propriedades de massa e de velocidade. Durante as ltimas dcadas, os filsofos da cincia debruaram--se principalmente sobre esse segundo nvel de anlise, ao passo que o pri-meiro nvel, mais prximo da experincia, raramente chamou a ateno dos filsofos da cincia do sc. XX, ainda que abrigasse em si a questo filosfica fundamental. Em Scientific Representation (2008, p. 240), Bas van Fraassen tem o mrito de se concentrar nessa problemtica indevidamente negligenciada: Como uma entidade abstrata, como uma estrutura matemtica pode representar uma coisa que no abstrata, uma coisa na natureza?

    Bas van Fraassen denomina essa dificuldade que ele apropriada-mente considera ser essencial de objeo da perda da realidade (loss of reality objection). Diferentemente de van Fraassen, defensor da possibilidade de um fenmeno ser representado por uma estrutura matemtica, no creio que possamos dizer que esse tipo de estrutura seja suscetvel de representar um fenmeno. Com efeito, uma relao de representao s pode ser instau-rada entre estruturas, visto que, segundo o modo como concebo a representa-

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    MICHEL GHINS

    o (veja o primeiro captulo), podemos nos julgar bem-sucedidos em nossas representaes somente aps termos construdo um homomorfismo entre a estrutura representante e a estrutura representada. Contudo, algumas das nossas representaes fornecem informaes muito preciosas acerca dos fe-nmenos. Como isso possvel?4

    neste ponto que devemos chamar a ateno para a importncia das proposies verdadeiras. Quando um cientista afirma que o volume de um gs igual a 1 dm3, ele pretende afirmar uma verdade a respeito de certas en-tidades fenomnicas. Asseres desse tipo no so representaes. Tampou-co elas afirmam que uma representao dada correta. Quando atribumos a uma entidade uma propriedade denotada por um termo predicativo, no representamos aquela entidade como dotada dessa propriedade. No descre-vemos uma relao de representao entre uma propriedade, de um lado, e uma entidade, de outro lado; nem muito menos uma relao entre uma imagem ou uma representao na minha mente e uma entidade que lhes corresponderia. Quando afirmo uma proposio (que o contedo significa-tivo de um enunciado) e quando fao uma afirmao predicativa ou um ju-zo, no estou cavando um abismo entre uma representao e um fenmeno, simplesmente porque no estou representando.5

    Num juzo perceptivo, atribumos certas propriedades a certas enti-dades fenomnicas. O procedimento representacional tem como ponto de partida certas entidades fenomnicas e certas propriedades observadas, que se supem efetivamente pertencentes quelas entidades. a partir disso e somente a partir disso que nossa atividade representacional pode seguir seu caminho, bem como nos conduzir construo de estruturas e a estabe-lecer funes representativas entre elas. O xito de nossa atividade represen-tacional repousa de maneira crucial sobre a verdade de certas afirmaes.

    Em que consiste, ento, para van Fraassen, a relao entre uma teoria representante e os fenmenos? Para ns, a afirmao (A) de que a teoria adequada ao fenmeno e a afirmao (B) de que adequada ao fenmeno como representado, isto , como representado por ns, so com efeito idnti-cas! (VAN FRAASSEN, 2008, p. 259). O que van Fraassen tem em vista aqui

    4: Ver tambm Ghins (2011; 2012).5: Ver Ghins (2010).

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    a adequao emprica de uma teoria a certos fenmenos; mas podemos nos perguntar e de uma maneira mais fundamental se estruturas perceptivas ou modelos de dados so empiricamente adequados aos fenmenos. O fe-nmeno, enquanto nossa representao, no outra coisa seno a estrutura perceptiva ou fenomenal. Com efeito, seria incoerente para ns colocar em dvida a adequao de um modelo de dados ao fenmeno, quando a es-trutura perceptiva for adequadamente representada pelo modelo de dados. Obviamente, podemos errar, visto que outros dados recolhidos por meio do uso de instrumentos mais precisos podem conduzir-nos a rever o modelo de dados. Resultar disso outra representao, que ser mais precisa do que a representao inicial. Mas essas preocupaes so de ordem epistemolgica, ao passo que a objeo da perda da realidade de ordem metafsica. Perdemos contato com a realidade, isto , neste caso, com o fenmeno a entidade fe-nomnica real , quando construmos nossas representaes dele?

    Para van Fraassen, essas preocupaes no tm fundamento. Colocar a questo da adequao de nossos modelos de dados aos fenmenos somente faria sentido se nos fosse possvel pr entre parnteses o fato de que somos ns que representamos. Uma representao , inicialmente, minha represen-tao, da qual me aproprio em primeira pessoa. No podemos simplesmen-te dizer que o modelo de dados representa o fenmeno; devemos dizer que usamos a estrutura de dados para representar o fenmeno segundo certos aspectos. Uma representao bem-sucedida pressupe sempre um ingredien-te indexical, um eu quem representa. Ora, no possvel eliminar esse in-grediente indexical a fim de colocar-me do ponto de vista de Deus ou de um ponto de vista a partir de lugar algum para contemplar numa espcie de sobrevoo cartesiano o fenmeno, de um lado, e as minhas construes re-presentacionais, de outro lado. A contemplao de uma realidade em si an sich um sonho inacessvel a ns. Como um bom empirista, van Fraassen recorre a consideraes de tipo pragmtico: Que (A) e (B) sejam idnticos uma tautologia prtica. (...) isso solapa toda a sustentao para a objeo da perda da realidade. (VAN FRAASSEN, 2008, p. 259).

    Se pensarmos que somos irremediavelmente prisioneiros de nossas re-presentaes, o fato de afirmar (A) e de negar (B) nos colocaria numa situao de incoerncia pragmtica. Isso seria equivalente a pretender que minha teo-ria seja empiricamente adequada sem acreditar que o seja. Contudo, a questo aqui no se resume a uma relao entre estruturas, especificamente uma es-

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    trutura emprica, de um lado, e um modelo de dados ou uma estrutura percep-tiva, de outro lado; a questo versa sobre a relao entre a estrutura perceptiva e o fenmeno observado. Ora, uma estrutura perceptiva , conforme vimos, abstrada do fenmeno e constitui um certo ponto de vista ou uma certa pers-pectiva sobre esse fenmeno. Os modelos de dados so o que van Fraassen chama de aparncias, isto , contedos de observao ou de resultados de mensurao (VAN FRAASSEN, 2008, p. 8). O mesmo se aplica ao que chamo de estruturas perceptivas ou fenomenais. Elas tambm so aparncias.

    As aparncias, embora sejam obtidas atravs de um processo de abs-trao, no so estruturas abstratas, puramente matemticas ou formais. Na realidade, elas so estruturas bem concretas, cujos elementos so certas pro-priedades conectadas por meio de relaes dotadas de contedo emprico. O carter concreto das aparncias provm do fato de que elas sejam usadas num certo contexto. Um mapa do sistema de transporte coletivo de Curiti-ba pode ser considerado in abstracto como sendo uma estrutura geomtrica. Essa estrutura geomtrica adquire o estatuto de mapa quando apropriada por um usurio do sistema de transporte que confere significado s linhas e as manchas traadas no papel, se orientando em relao a essa estrutura.

    Poderamos reformular as afirmaes (A) e (B) acima, aplicando-as a um mapa:

    (A) o mapa adequado cidade.(B) o mapa adequado cidade como representada, isto , como representada por mim.

    Admito naturalmente que, na prtica, no posso afirmar (A) e negar (B), e vice-versa. Isto porque falamos aqui de estruturas concretas. Fui eu quem construiu uma funo representativa, ainda que de modo implcita, entre um mapa (o representante) e o sistema de transporte coletivo (o re-presentado). Se o mapa for correto, ele ser til e me permitir chegar sem problemas ao destino desejado.

    Voltemos agora ao exemplo do gs. verdade que o gs possui pro-priedades tais como o volume, a temperatura e a presso? Sim. verdade que essas propriedades possuem certos valores numricos? Sim. verdade que essas propriedades possuem valores numricos a, b, c quando expressas em unidades de medida apropriadas? Pelo que eu saiba, se efetuei cuidadosamen-te minhas mensuraes, posso responder sim. Notemos que, embora o fator

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    indexical esteja sempre presente, essas respostas positivas podem ser dadas pela totalidade da srie de observadores que se coloquem diante do mesmo fenmeno e que efetuem as mesmas mensuraes. A natureza indexical da atividade representacional no impede que haja certa concordncia entre os juzos proferidos por um conjunto de observadores, tampouco que haja certa objetividade, compreendida no sentido de um acordo intersubjetivo.

    Quando respondemos sim s trs perguntas acima, estamos cami-nhando rumo a uma posio realista. Mas essa posio permanece incom-pleta enquanto no esclarecemos o que entendemos por verdade. Ora, parece-me que a concepo tradicional de verdade como correspondncia a mais razovel, pois ela est de acordo com o uso do termo verdadeiro que fazemos na maior parte das situaes cotidianas e, com certeza, nas ci-ncias. Quando afirmo que o volume deste gs igual a 1 dm3, afirmo uma proposio que verdadeira (ou falsa) em virtude de algo que independen-te de mim, de minha linguagem, de meus desejos, do que me levou, no curso da minha histria pessoal, a afirmar esse enunciado etc. Chamemos o que torna uma proposio verdadeira de um fato ou ainda de um fazedor de verdade (truth-maker). Paradoxalmente, o argumento mais convincente a fa-vor da concepo da verdade como correspondncia o fato de que devemos reconhecer que muitas vezes erramos. Frequentemente, a experincia nos coloca diante de fatos que tornam falsas proposies at ento consideradas verdadeiras e que, assim, nos obrigam a mudar de crenas, embora isso possa nos trazer decepo e at sofrimento. Mas a obrigao de reconhecer nossos erros aponta para a aceitao da existncia de uma instncia externa falsea-dora de proposies que acreditamos ser verdadeiras.

    Podemos salientar que uma concepo da verdade como correspondn-cia pode ser sustentada, ainda que ignoremos a natureza exata da correspon-dncia entre um fato e a proposio a qual ele torna verdadeira. Uma teoria (filosfica) correspondentista da verdade tem como objetivo determinar, de modo preciso, a natureza de tal correspondncia. A teoria da proposio verdadeira como imagem lgica dos fatos defendida por Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus (1921) um clebre exemplo de teoria corres-pondentista da verdade. Para Wittgenstein, a correspondncia consiste num homomorfismo entre uma proposio e uma situao possvel. Quando ela representa uma situao real um fato , a proposio verdadeira. O not-rio fracasso dessa tentativa, reconhecido mais tarde pelo prprio Wittgens-

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    tein, evidencia que as proposies no representam, pelo menos no sentido restrito que atribuo ao termo representao. At hoje, que seja de meu co-nhecimento, no dispomos de uma teoria correspondentista da verdade que seja realmente satisfatria.

    Como temos visto, os valores das propriedades do gs podem variar ao longo do tempo e esses valores formam um sistema. Tomado de modo cinemtico, no esttico, um gs que est evoluindo atravs de estados de equilbrio num volume varivel, por exemplo um sistema no sentido de que os valores da presso, do volume e da temperatura satisfazem a fr-mula matemtica dos gases perfeitos. O realista sustenta que proposies que descrevem essa evoluo so verdadeiras, no sentido da verdade como correspondncia. Tal posio filosfica no nos obriga a admitir a existncia das propriedades ou, ainda, das propriedades naturais que cortam a natu-reza em suas articulaes, segundo a expresso usada por Plato no Fedron (265d-266a). A concepo correspondentista da verdade implica a existncia de realidades que tornam as proposies verdadeiras ou falsas, sem com isso se comprometer com juzos sobre a natureza especfica dessas realidades.

    Se dermos devida ateno verdade das proposies responsveis pelo sucesso e pela fidelidade de nossas representaes, a objeo da perda da realidade no eliminada nem cancelada, tal como pretende van Fraas-sen, mas enfrentada numa perspectiva realista. A realidade reencontrada pela simples e boa razo de que jamais havia sido perdida. Os fenmenos no so objetos representados pela simples razo de que fenmenos no so estruturas, mas totalidades singulares, e somente estruturas podem ser re-presentadas. O fenmeno da evoluo de um gs no , consequentemente, representado por estruturas perceptivas, modelos de dados e subestruturas empricas. Decerto, posso conceder que um gs seja representado como um sistema, se por isso entendermos que, a partir de algumas propriedades do gs, construmos uma estrutura perceptiva ou um modelo de dados em con-formidade com o procedimento de abstrao acima descrito.

    No entanto, mais uma vez, estritamente falando, o fenmeno no representado. O contato com a realidade repousa sobre proposies ver-dadeiras acerca do fenmeno. Perdemos o contato com a realidade quando acreditamos estar encerrados na caverna platnica de nossas representaes e das relaes homomrficas entre elas, porque no podemos contar com a ajuda de um deus cartesiano ou qualquer outro expediente desse tipo que ga-

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    rantisse a fidelidade de nossas representaes a certas realidades externas. As nossas representaes nos encerram num mundo de estruturas fenomenais, aparncias, modelos de dados e assim por diante. Se mantivermos sempre presente nossa mente que nossas prticas representacionais so sustenta-das por proposies verdadeiras, chegamos concluso de que nosso conta-to com a realidade jamais foi nem ser suspenso.

    2. O argumento antirrealista da subdetermi-nao das teorias pelos dados empricos

    Ao tomarmos conscincia do papel decisivo desempenhado por pro-posies verdadeiras em nossas atividades de modelizao correta, aproxi-mamo-nos da concepo sinttica das teorias, segundo a qual uma teoria cientfica em primeiro lugar constituda de um conjunto de proposies. De acordo com essa concepo sinttica, torna-se legtimo examinar a ques-to da relao entre as superestruturas tericas e certas realidades, a partir da problemtica da verdade das leis cientficas. Uma frmula matemtica, tal como pV=KT, adquire valor cientfico somente sob a condio de que exis-tam no mundo entidades, tais como os gases, que possuem efetivamente as propriedades s quais se referem os termos que figuram nessa frmula. Em outras palavras, necessrio que sejam verdadeiras as proposies que afir-mam que certas entidades possuem certas propriedades. No caso dos gases, fcil verificar, por observaes imediatas, que aquilo que est contido den-tro de um recipiente tem de fato um volume, uma presso e tambm o que podemos chamar de grau de calor ou de frio (relacionado de um modo muito elaborado noo precisa de temperatura). Logo, os gases existem e possuem efetivamente as propriedades quantificveis de presso, de volume e de temperatura que tornam aproximadamente verdadeira a frmula mate-mtica de Boyle-Charles-Mariotte.

    Por outro lado, a identificao de um gs com um conjunto de part-culas que se movem e so dotadas das propriedades de possuir uma massa e de mover-se a certa velocidade muito mais problemtica, conforme teste-munha a histria da resistncia s teorias atomistas, no final do sculo XIX e no incio do sculo XX, s quais se opuseram energisistas, tais como Pierre Duhem, Ernst Mach e Wilhelm Ostwald.6 As partculas constitutivas de um

    6. Ver Psillos (2011).

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    gs no so visveis e suas velocidades mdias no so nem observveis nem individualmente mensurveis. A problemtica do realismo situa-se agora no segundo nvel mencionado acima, a saber, aquele da verdade da supo-sio de que um gs seja um conjunto de partculas cujo movimento des-crito por leis, presumidamente corretas, da mecnica clssica de partculas. Chamemos essa suposio de hiptese de base da teoria cintica dos gases. Partindo dessa hiptese fundadora, podemos construir modelos mecnicos e estatsticos cujas subestruturas empricas sejam adequadas aos modelos de dados para os gases perfeitos. A questo que se pe aqui a seguinte: a adequao emprica da teoria cintica dos gases constitui uma razo sufi-ciente em favor de uma interpretao realista dessa teoria e da verdade de sua hiptese de base? A essa questo, precisamos responder negativamente.

    O argumento mais forte a favor da posio antirrealista o argumen-to da subdeterminao das teorias pelas estruturas perceptivas e os modelos de dados. Visto que, em princpio, sempre possvel construir vrias teorias incompatveis entre si, mas que salvam as estruturas perceptivas relevantes, no temos nenhuma razo para acreditar na verdade, ao menos aproximada, de apenas uma dentre elas. Esse argumento da subdeterminao, j conhe-cido de Descartes (1953, III, 46), foi aperfeioado e amplamente utilizado muito mais tarde por Duhem e Quine. Por isso, conhecido como a tese de Duhem-Quine (cf. CURD & COVER 1998, captulo 3). Num certo sentido, essa tese trivial e, por conseguinte, dificilmente contestvel. Ningum, com efeito, pode terminantemente recusar que uma teoria alternativa, igualmen-te adequada do ponto de vista emprico, embora ainda no seja atualmente conhecida, possa vir a ser formulada no futuro. Todavia, nessa trivialidade que reside a fragilidade da tese de Duhem-Quine. Na prtica, para contestar a interpretao realista de uma teoria particular, no basta ao ctico antirrealis-ta agitar o espantalho da simples possibilidade de teorias alternativas a serem propostas num futuro talvez distante. Cabe ao ctico mostrar que a qualquer momento possvel elaborar teorias alternativas incompatveis com uma dada teoria empiricamente adequada. Ou, ento, ele deve efetivamente pro-por uma teoria concorrente.

    A simples possibilidade de teorias alternativas demonstra-se facil-mente, tanto na perspectiva sinttica quanto na abordagem semntica. Com efeito, se considerarmos o conjunto de proposies que pertencem a uma teoria, basta apoiarmo-nos no fato lgico de que a mesma proposio pode

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    ser obtida, por meio de um raciocnio vlido, a partir de premissas agrupadas em conjuntos diversos e incompatveis entre si. Se, agora, adotarmos a pers-pectiva semntica, basta ao antirrealista apontar para o fato de que superes-truturas distintas e inconciliveis podem conter as mesmas subestruturas empricas. Isso decorre imediatamente da fraqueza do requisito de incluso conjuntista booleana no interior da abordagem semntica. A maioria dos realistas reconhece a fora dessa argumentao e admite a subdetermina-o das teorias pelas observaes e mensuraes. A adequao emprica no constitui, por si mesma, uma garantia de verdade de uma teoria. Somente condies suplementares quelas que uma teoria deve satisfazer podem ser-vir de apoio aos argumentos em favor de sua verdade. A condio suplemen-tar mais vezes invocada sua capacidade explicativa. Conforme vimos, uma boa teoria no pode ser apenas empiricamente adequada; uma teoria satis-fatria supostamente capaz de fornecer uma explicao das observaes ou das mensuraes efetuadas. Nesse caso, no mais possvel demonstrar a priori que pode sempre existir uma teoria alternativa cuja explicao seria igualmente satisfatria e at melhor. Levar em considerao o poder explica-tivo provoca a quebra da subdeterminao pelos dados empricos.

    Mas novas dificuldades surgem imediatamente. A primeira dificul-dade, e no a menor, a de nos entendermos sobre o que uma boa expli-cao, um tpico sobre o qual os desacordos entre os filsofos da cincia so bem conhecidos e numerosos... Em seguida, trata-se de mostrar que a noo de explicao no meramente epistmica e, portanto, no relativa apenas ao que julgamos ser uma boa explicao, mas que uma teoria explicativa nos abre um acesso cognitivo a certas realidades externas, embora inobserv-veis. Nada garante a priori que a realidade seja conforme s nossas exigncias subjetivas mesmo se elas forem compartilhadas por uma comunidade de cientistas e filsofos em relao a um tipo particular de explicao. Para responder a esse tipo de objees, proponho adotarmos, para comeo de con-versa, a noo de explicao baseada em mecanismos descritos por leis cau-sais, tal como vimos no captulo precedente. Em seguida, mostraremos que temos boas razes para pensar que tais leis causais so verdadeiras ou, dito de outro modo, que relaes causais existem na realidade.

    No caso dos gases (perfeitos) podemos constatar que as leis da teoria cintica de Maxwell-Boltzman, sobre as quais a explicao da lei de Boyle--Mariotte se apoia, so leis causais. Em primeiro lugar, as leis da mecnica

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    so leis temporais. Em segundo lugar, essas leis possuem termos que assu-mem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos (cf. BLONDEAU & GHINS, 2012). As variaes de velocidade as aceleraes so efeitos cujas causas so as foras pelas quais so produzidas as acelera-es. Esse modo de ver as coisas est em acordo com a nossa intuio funda-mental no que diz respeito causalidade, a saber, que os efeitos so mudan-as e que essas variaes resultam de certas causas. A ausncia de mudana pode ser considerada como um caso-limite de relao causal. Por exemplo, a ausncia de mudana de velocidade de um mvel, no movimento inercial, a consequncia da ausncia de uma fora resultante no-nula. Quanto variao de posio num movimento inercial, ela resulta da variao da ve-locidade e explicada por essa ltima. Uma lei causal no outra coisa seno uma proposio que descreve um processo causal possvel. Uma lei causal permite explicar as variaes temporais de propriedades determinadas ao longo de um processo ao report-las a causas definidas. Essas causas podem, por sua vez, variar ao longo do tempo, mas tal variao no necessria para o desempenho do seu papel causal. Com efeito, causas constantes podem produzir efeitos variveis, conforme ocorre quando uma fora constante produz uma variao de velocidade constante.

    O comportamento de um gs pode ser explicado a partir dos pro-cessos causais descritos pelas leis do movimento das molculas que, presu-midamente, constituem o gs. Segundo a teoria cintica, ao colidir com a parede de um recipiente, uma molcula exerce uma fora sobre ela. Reci-procamente, segundo a lei da ao e da reao (que no uma lei causal), a parede tambm exerce uma fora que causa uma variao na velocidade da molcula. A presso do gs definida como sendo a fora resultante exercida pelas molculas sobre as paredes em cada unidade da sua superfcie. Quanto temperatura, segundo a teoria cintica, ela uma funo matemtica da energia cintica mdia das molculas. A teoria cintica permite assim de-duzir, partindo das leis da mecnica de partculas, e explicar a relao entre as propriedades de um gs em estado de equilbrio conforme prevista na lei de Boyle-Mariotte. Todavia, a lei dos gases perfeitos no uma lei causal. Se, por exemplo, aumentarmos a presso empurrando um pisto, poder-se-ia ter a impresso de que a presso do pisto a causa da diminuio de volume. Mas isso uma viso antropomrfica resultante da nossa tendncia de iden-tificar nossas aes como sendo causas. Com efeito, no h lei causal que ligue a fora exercida pelo pisto diminuio de volume. Mais uma vez,

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    a lei de Boyle-Mariotte no descreve um processo causal. Ela descreve uma situao num estado de equilbrio. Para obter uma explicao, necessrio se referir s leis causais que descrevem os processos microscpicos. Na rea-lidade, a diminuio de volume se traduz por um aumento do nmero de choques de molculas por unidade de superfcie e, consequentemente, por um acrscimo de presso (cf. BLONDEAU & GHINS, 2012).

    Admitamos que a teoria cintica dos gases fornea uma explicao causal da lei de Boyle-Mariotte. Seguem-se disso razes suficientes para acre-ditar que um gs possa ser identificado a um conjunto de molculas dotadas de propriedades mecnicas (velocidade e posio)? No, ao menos no ain-da, porque essas molculas so inobservveis diretamente e suas velocidades mdias so apenas mensurveis por meio da temperatura e da presso, e isso somente sob a condio de tambm admitirmos a teoria cintica. Para poder defender a existncia de molculas, temos que dispor de mtodos de mensu-rao que permitam determinar o valor da velocidade mdia, da massa e do nmero de molculas. Alm disso, preciso que esses processos de medida da velocidade mdia e do nmero de molculas sejam independentes dos mtodos de mensurao da temperatura e da presso. Caso contrrio, nossa argumentao em favor da existncia de partculas (molculas) poderia ser acusada de circularidade.

    No entanto, se pudssemos lanar mo de mtodos independentes que nos permitam contar ou atribuir um nmero a essas partculas, poderamos alegar um argumento de peso em favor de sua existncia. Ora, acontece que dispomos de diversos mtodos de contagem. Sem entrar em detalhes, basta mencionar que podemos medir o nmero de Avogadro, isto , o nmero de mo-lculas contidas numa molcula-grama de um gs, por mtodos que, embora independentes,7 proporcionam isto importante resultados que conver-gem com um alto grau de preciso. Esses fatos, assim como outros atestados no quadro de outras disciplinas cientficas (ptica ou qumica), constituem um fei-xe de argumentos em favor da composio molecular, no somente dos gases, mas tambm dos lquidos e dos slidos, isto , da totalidade dos corpos. Nossa hiptese terica de base , desse modo, confirmada por um conjunto de men-suraes realizadas em domnios distintos daquele inicialmente considerado.

    7. Jean Perrin (1913) identificou treze mtodos de medir o nmero de Avogadro (cf. ACHINSTEIN, 2001).

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    3. O paralelismo com a experincia ordinria

    Com toda razo, os empiristas insistem que os fenmenos, isto , os dados da experincia sensvel, desempenham o papel epistmico de afianar as nossas asseres de existncia. Para justificar a crena na existncia de certas entidades inobservveis, os nicos argumentos convincentes so aqueles que apresentam uma analogia suficientemente forte com os argumentos utilizados para susten-tar as crenas na realidade de entidades percebidas (cf. GHINS, 1992, 2000, 2005). Ora, atestamos a realidade de entidades sensveis aumentando a quantidade de observaes e repetindo-as, bem como recorrendo a outros sentidos, alm do sentido da viso. Julgamos que nossa crena na existncia de uma entidade tal como, por exemplo, um abacaxi mais segura quando podemos v-lo em boas condies de luminosidade sob pontos de vista distintos e quando constata-mos uma concordncia entre nossas observaes, isto , quando constatamos que certas propriedades permanecem constantes, invariveis. Em seguida, in-tensificamos a nossa certeza da existncia do abacaxi tocando-o, cheirando-o e, finalmente, degustando-o. Assim, o recurso aos nossos cinco sentidos ou, ao menos, a alguns deles , ou seja, a utilizao de diversas modalidades de nos-sas percepes amplia o grau de crena que podemos atribuir a nossas asseres de existncia sem, no entanto, atingir uma certeza absoluta. O risco de erro est sempre presente. No pode ser nunca eliminado, no importa qual for a qualida-de e a variedade de nossas observaes nem quais forem as precaues tomadas ao efetu-las. Por essa razo, um realista razovel admite que possa errar. Essa po-sio chama-se falibilismo. Nenhuma pessoa pode pretender ser infalvel, e deve aceitar revisar suas crenas em funo de eventuais dados novos.

    Nossas crenas na existncia de objetos inobservveis, tais como as mol-culas, as partculas elementares, o campo gravitacional, os vrus, os genes, as pla-cas tectnicas etc., encontram sua justificao a partir de consideraes anlogas quelas q