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1 GEOGRAFIA HISTÓRICA E FORMAÇÃO TERRITORIAL EM MATO GROSSO SÉCULO XX Prof. Dr. Carlo Eugênio Nogueira Universidade Federal de Mato Grosso / Campus Universitário de Rondonópolis [email protected] INTRODUÇÃO Essa comunicação relata alguns resultados do projeto institucional PROPEQ/218/CAP/2014 desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso Campus Universitário de Rondonópolis, que tem como proposta efetuar uma avaliação da formação territorial de Mato Grosso ao longo do século XX analisando as alterações ocorridas na geografia material do estado a partir de uma visão retrospectiva centrada no território. Tendo em vista que dentre seus objetivos principais destaca-se o estudo pormenorizado das principais linhas de força presentes no processo de produção do espaço mato-grossense, seria importante ressaltar que a geografia material não deve ser reduzida apenas à localização dos objetos na superfície da Terra, ao contrário, essa materialidade socialmente produzida pode ser apreciada e identificada com mais propriedade se entendida na acepção daquilo que se pode denominar configuração ou organização territorial (CORRÊA, 1986; SANTOS, 1988). A partir daí, sustenta-se que embora o enfoque da análise pretendida seja colocado no processo de formação territorial do estado do Mato Grosso, não se deve perder de vista o contexto específico de cada um dos momentos históricos avaliados em separado, com o que se pretende, pois, revelar a dimensão espacial do movimento de construção de um âmbito delimitado de exercício do poder (SACK, 1986). Assim, a formação territorial surge como expressão de um projeto que congrega simultaneamente a ocupação material e a legitimação simbólica da expansão espacial de uma sociedade, sendo o território considerado, portanto, como realidade objetiva localizada espacial e temporalmente (MORAES, 2011). Assumindo esses parâmetros, pode-se dizer que a cada movimento da sociedade, um espaço construído herdado, funcionando como rugosidade, é continuamente chamado a desempenhar novos papéis, na medida em que há uma nova apropriação que

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GEOGRAFIA HISTÓRICA E FORMAÇÃO TERRITORIAL EM MATO

GROSSO – SÉCULO XX

Prof. Dr. Carlo Eugênio Nogueira

Universidade Federal de Mato Grosso / Campus Universitário de Rondonópolis

[email protected]

INTRODUÇÃO

Essa comunicação relata alguns resultados do projeto institucional

PROPEQ/218/CAP/2014 desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em

Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso – Campus Universitário de

Rondonópolis, que tem como proposta efetuar uma avaliação da formação territorial de

Mato Grosso ao longo do século XX analisando as alterações ocorridas na geografia

material do estado a partir de uma visão retrospectiva centrada no território.

Tendo em vista que dentre seus objetivos principais destaca-se o estudo

pormenorizado das principais linhas de força presentes no processo de produção do

espaço mato-grossense, seria importante ressaltar que a geografia material não deve ser

reduzida apenas à localização dos objetos na superfície da Terra, ao contrário, essa

materialidade socialmente produzida pode ser apreciada e identificada com mais

propriedade se entendida na acepção daquilo que se pode denominar configuração ou

organização territorial (CORRÊA, 1986; SANTOS, 1988).

A partir daí, sustenta-se que embora o enfoque da análise pretendida seja colocado

no processo de formação territorial do estado do Mato Grosso, não se deve perder de

vista o contexto específico de cada um dos momentos históricos avaliados em separado,

com o que se pretende, pois, revelar a dimensão espacial do movimento de construção

de um âmbito delimitado de exercício do poder (SACK, 1986). Assim, a formação

territorial surge como expressão de um projeto que congrega simultaneamente a

ocupação material e a legitimação simbólica da expansão espacial de uma sociedade,

sendo o território considerado, portanto, como realidade objetiva localizada espacial e

temporalmente (MORAES, 2011).

Assumindo esses parâmetros, pode-se dizer que a cada movimento da sociedade,

um espaço construído herdado, funcionando como rugosidade, é continuamente

chamado a desempenhar novos papéis, na medida em que há uma nova apropriação que

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refuncionaliza inclusive simbolicamente suas formas pretéritas. Isso ocorre porque as

formas espaciais contêm frações do social, podendo ser consideradas verdadeiras

formas-conteúdos, que estão constantemente mudando de significação na medida em

que a sociedade lhes atribui, em momentos diversos, diferentes porções do todo social

(SANTOS, 2002). Por esse motivo, as formas acabam por influenciar o posterior

desenvolvimento da sociedade, visto que funcionam como uma espécie de testemunho

de um momento do modo de produção, memória que se apresenta como espaço

construído, uma vez que as coisas fixadas na paisagem por meio das formas tendem a

durar mais que os processos que lhes deram origem (SANTOS, 2002a).

Aproximando-nos de vez do universo pesquisado, o processo de produção do

espaço mato-grossense vem sendo avaliado em detalhe a partir de três marcos temporais

de notória importância para a organização territorial do estado, quais sejam: 1) o

período de 1900 a 1930, que corresponde grosso modo à duração oficial da Comissão

Rondon, quando a imagem da região como um sertão distante a ser conquistado pela

ciência e pela técnica, tal um enfermo que deveria ser curado pelo progresso

(LENHARO, 1982; LIMA,1999), embasa a mentalidade dos principais artífices das

ações que alteraram a estrutura sócio-espacial do Mato Grosso, formando o caldo

cultural no qual foram gestadas algumas tentativas de apropriação do espaço regional

dentro de uma ordem bem ou mal já capitalista; 2) 1930 a 1960, época que inclui os

dois governos de Getúlio Vargas e o de Juscelino Kubitschek, quando a elaboração de

políticas territoriais oficiais, como a “Marcha para o oeste” e a campanha para a

interiorização da capital, que culminou com a construção de Brasília, reapropria-se da

imagem do sertão e da fronteira, com a qual o Mato Grosso sói a ser continuamente

identificado, e do discurso da modernização regional para defender a construção das

próteses territoriais concebidas como os veículos da difusão do capitalismo no espaço,

em outras palavras, pensadas como estruturas facilitadoras da fluidez do território e de

sua dominação pelo capital; e 3) 1960 a 2000, anos marcados decisivamente pela ótica

integracionista das políticas territoriais do regime militar com seu discurso geopolítico

sobre a necessidade de colonização e ocupação produtiva dos ‘espaços vazios’, e nos

quais a divisão do estado, a consolidação de um novo padrão demográfico e migratório

e a reestruturação produtiva engendrada pela globalização, com a abertura de extensos

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pastos e campos de cultivo, principalmente de soja, repõem o tema das frentes pioneiras

e das fronteiras em movimento (MARTINS, 1997; VELHO, 1979) como uma variável

importante na explicação do desenvolvimento geograficamente desigual (HARVEY,

2005; SMITH, 2008) experimentado pelo país ao decorrer do século XX.

No caso deste último período, a aceleração contemporânea (NASCIMENTO,

1997) e o processo de fragmentação do espaço, que se tornam mais agudos com as

alterações trazidas na esteira da introdução do modo capitalista de produzir na

agricultura (OLIVEIRA, 1996), impõem-se como pano de fundo da nova realidade a ser

debatida no final de século, visto que faz referência à tendência de desenvolvimento do

capitalismo financeiro que vai questionar os alicerces da soberania dos Estados

nacionais, colocando imensas áreas do Brasil e do Mato Grosso sob o comando de

agentes decisórios exógenos, como as empresas multinacionais, os bancos e outros

atores mundiais, que são os responsáveis, ao fim e ao cabo, por emitir os estímulos e

ordens que vão tornando porosas as fronteiras, porquanto os fluxos que atualmente mais

influenciam a configuração do território mato-grossense prescindem de uma relação de

contiguidade com as áreas que hegemonizam.

METODOLOGIA

Como ponto de partida para o início dos trabalhos de pesquisa derivados do

projeto inicial, enfatiza-se a conjuntura histórica na qual foram gestadas as principais

linhas de desenvolvimento e organização do espaço em cada um dos recortes temporais

trabalhados. Por meio da análise dos dados estatísticos existentes, bem como do

levantamento bibliográfico acerca da literatura específica, a ideia é a de reconstruir a

materialidade do território mato-grossense ao longo do século XX, estruturando uma

interpretação que examine em que medida as imagens e concepções acerca do espaço de

Mato Grosso veiculadas pelo pensamento político-social, que podem ter tomado corpo

nas ações de efetiva modificação da configuração territorial do estado, informando

projetos e políticas públicas que comandaram o processo de produção do espaço a partir

de certas premissas, levavam em consideração a configuração territorial de fato

existente em cada momento.

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Nessa direção, em que pese a diversidade dos temas de que tratam as pesquisas

individuais de cada um dos quatro integrantes do projeto, há em comum uma

preocupação compartilhada com a elucidação de diferentes momentos do processo de

formação territorial de Mato Grosso que fundamenta e une cada um dos estudos, com a

tabulação e tratamento cartográfico dos dados e informações disponibilizadas por

órgãos oficiais, como o IBGE.

Como estratégia de ação que busca estabelecer uma conexão entre os objetivos

mais amplos do projeto institucional e os trabalhos individualizados de pesquisa, há a

necessidade de escolha prévia não só dos temas norteadores e das localidades de estudo,

mas sobretudo do período histórico que será avaliado em pormenor, pois isso acaba por

definir, ao fim e ao cabo, o escopo dos levantamentos documentais e bibliográficos a

serem efetuados, bem como das fontes a serem consultadas.

RESULTADOS PRELIMINARES

Até o momento, dos quatro alunos envolvidos no projeto, todos desenvolvendo

pesquisa em nível de mestrado, com duas orientações recentemente finalizadas e duas

ainda em andamento, observa-se que os resultados obtidos demonstram um foco mais

agudo no período de 1960 a 2000. Colocando em perspectiva os trabalhos já finalizados,

vemos que a especificidade dos objetos estudados demandou o detalhamento no período

em questão. Na primeira pesquisa finalizada, intitulada “Geografia Médica e

Agronegócio: urbanização, crescimento econômico e a expansão de doenças no estado

de Mato Grosso (1970/2010)”, o pesquisador Moisés Silva Pereira procurou avaliar qual

é a relação existente entre a expansão continuada da agricultura e da pecuária praticada

em larga escala, o processo de urbanização que acompanha essa expansão do

agronegócio e a distribuição espacial de algumas doenças em Mato Grosso.

A partir do cruzamento dos dados presentes no DATASUS com os indicadores

socioeconômicos, a hipótese geral pontuava uma provável correlação entre o aumento

dos casos de câncer de estômago, fígado e pâncreas e o crescimento da produção

agrícola no território mato-grossense nos últimos 40 anos, uma vez que a expansão da

área plantada deve-se em muito à aplicação de grandes quantidades de fertilizantes e

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agrotóxicos, como acaricidas, fungicidas, inseticidas e herbicidas como forma de

correção da acidez dos solos, aumento de fertilidade dos mesmos e combate às pragas.

Na verdade, a situação desencadeada pelo aumento no consumo de agrotóxicos

impõe à população um risco que aumenta a probabilidade de incidência dos cânceres,

tanto em razão de intoxicações por exposição direta a produtos químicos nas lavouras e

nas áreas de seu entorno, como por meio do consumo de produtos com elevados índices

de contaminação por agrotóxicos ou mesmo através da ingestão de água com possíveis

níveis de contaminação via bacias hidrográficas afetadas (PIGNATTI, 2007).

Outra situação bastante reveladora quanto à utilização de agrotóxicos nas lavouras

brasileiras são os subsídios econômicos destinados para a compra desses produtos, pois

por meio do crédito rural há um crescente incentivo financeiro que fortalece o mercado

de insumos químicos. De forma representativa, a quantidade de agrotóxicos entregue ao

consumidor final mais do que dobrou ao longo da primeira década do século XXI, pois

a comercialização desse tipo de produto partiu de 2,7 kg por hectare em 2000 para

6,9kg/ha em 2012 (IBGE, 2015).

MAPA 1 – DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DE INTERNAÇÕES DE CÂNCERES NO

ESTÔMAGO/FÍGADO/PÂNCREAS POR LOCAL DE RESIDÊNCIA (1995/2015).

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FONTE: PEREIRA (2016)

Nos dados colocados em perspectiva no mapa acima, que localiza 26 municípios

escolhidos pela presença ou ausência do agronegócio, pode se perceber um alto índice

de casos de câncer nos municípios produtores de commodities agrícolas (algodão, milho

e soja), chegando a um total de 1468 casos entre 1995 e 2015. Ao contrário, são

somente 85 os casos de cânceres nos municípios cuja base da economia não é a

agricultura mecanizada, o que evidencia a discrepância vislumbrada em hipótese.

No caso, a partir da década de 1970, as políticas territoriais e os programas

oficiais do governo brasileiro, cuja finalidade era justamente a ocupação produtiva do

território pelo avanço da agricultura e pecuária no território de Mato Grosso, ao

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priorizar a constituição de grandes propriedades voltadas para a produção de

commodities destinadas à comercialização no mercado mundial, fomentou o uso

indiscriminado de defensivos na formação dos pastos e manutenção das lavouras,

tornando possível elaborar uma base cartográfica que demonstra a sobreposição das

áreas com maior índice de incidência de cânceres com os municípios dedicados ao

agronegócio (PEREIRA, 2016).

Na outra pesquisa finalizada, intitulada “Desenvolvimento regional e organização

territorial em Mato Grosso: os polos Aripuanã, Juruena e Xingu/Araguaia (1970/2010)”,

Manoel Messias de Freitas dedicou-se ao estudo das transformações ocorridas na

configuração territorial de Mato Grosso a partir das ações previstas nos planos de

integração nacional, com o estudo de caso de três polos localizados no Norte do estado,

o Aripuanã, o Juruena e o Xingu/Araguaia.

A proposta de analisar as transformações ocorridas em Mato Grosso à luz dos

planos de integração partiu da compreensão de que estes eram as ferramentas utilizadas

pelos órgãos de planejamento para produzir modificações efetivas na configuração

espacial do estado. O levantamento, tabulação e tratamento cartográfico dos dados

oficiais referentes ao desenvolvimento econômico e demográfico objetivou comprovar a

hipótese de que os programas e projetos implantados durante o período militar

tendencialmente continuaram a comandar a organização do território mato-grossense.

Em outras palavras, os projetos de desenvolvimento regional elaborados e postos em

ação num momento histórico específico, foram bem sucedidos em fornecer certo

direcionamento ao processo de formação territorial, continuando mesmo a influenciar o

processo de organização do território por anos depois de finalizados (FREITAS, 2016).

Ao coletar os dados disponíveis, verificou-se que os objetivos gerais colocados

para a região na década de 1970, quais sejam, de aumento populacional, de expansão da

propriedade privada e da acentuação da apropriação produtiva do espaço, que deveria

ser explorado e transformado a partir dos ideais de uma suposta racionalidade, foram

bem ou mal alcançados posteriormente. Dessa forma, a pesquisa conseguiu demonstrar

que as ações desses programas governamentais hegemonizaram os fluxos de ocupação

dos então chamados ‘vazios econômicos e demográficos’ de Mato Grosso, concorrendo

efetivamente para a afirmação da soberania do Estado brasileiro em amplas áreas do

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território que, embora formalmente sob sua jurisdição legal, não se encontravam

integradas ao espaço econômico do país.

MAPA 02 – PÓLOS ARIPUANÃ, JURUENA E XINGU/ARAGUAIA

FONTE: FREITAS (2016).

Ao longo de seu trabalho, o autor identificou alguns dos elementos utilizados

como estratégia do governo para assegurar a construção de uma nova configuração

territorial em Mato Grosso, como a Superintendência do Plano de Valorização

Econômica da Amazônia (SPVEA), vinculada diretamente à Presidência da República.

Outra estratégia governamental pode ser percebida através das ações do Departamento

Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), que iniciam a construção das rodovias

Cuiabá-Porto Velho (BR-364), que objetivava a implantação de um eixo de circulação

no norte e noroeste do Mato Grosso e no sul do Amazonas, e da rodovia Belém-Brasília

(BR-010), que formaria um eixo de articulação rodoviária entre o nordeste do Mato

Grosso e o leste da região Norte com o restante do país.

Todos esses programas e projetos promovidos pelas políticas territoriais

concernentes à Amazônia Legal representam uma pequena parte de um projeto mais

abrangente que revela a relação entre o planejamento regional e a intencionalidade de

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assegurar a integração política e econômica dessa parte do país, concebido então como

um espaço vazio, descontínuo do restante do território. Para tanto, foram implantadas

ações que intentavam levar definitivamente para essas áreas distantes do Mato Grosso a

dinâmica produtiva já vislumbrada na economia do Sul e Sudeste do país.

Sendo assim, não seria de todo errado apontarmos a continuidade histórica de

certas posições do Estado brasileiro a respeito da integração das terras que hoje formam

o Mato Grosso, uma vez que, a partir da década de 1970, com a Política de

Planejamento Regional e a criação dos polos de desenvolvimento, ações que expressam

o caráter intervencionista do Estado para criar condições de expor essa parte do país aos

desígnios do capital, a proteção das fronteiras e certa visão militarizada do espaço

continuam sendo fatores importantes na análise da elaboração das políticas territoriais

que conferiam um direcionamento ao processo de produção do espaço em Mato Grosso:

Uma ótica enfaticamente geopolítica marcou a atuação do regime, que

direcionou a ação modernizante do Estado no sentido da integração do

espaço nacional, objetivo de fato alcançado por um caminho

autoritário e centralizador. Uma modernização conservadora (na

plenitude do termo) foi realizada no Brasil dos anos setenta, tendo o

planejamento territorial integrado como instrumento, a doutrina de

segurança nacional como fundamento, e o endividamento externo

como meio de realização (MORAES, 2011, p 128).

O reflexo imediatista dessa política em Mato Grosso foi a delimitação de polos

de desenvolvimento em pontos considerados estratégicos pelo regime, os quais foram

servidos de serviços básicos e vantagens competitivas através dos incentivos e créditos

por parte do governo. Com efeito, entre 1968 e 1974 o Estado busca legitimar o controle

efetivo de seu Hinterland impondo: “uma malha de duplo controle – técnico e político –

constituída de todos os tipos de conexões e redes, capaz de controlar fluxos e estoques,

e tendo as cidades como base logística para a ação” (BECKER, 2006, p 26).

Nessa direção, percebe-se que a crescente emancipação de municípios registrada

na porção norte de Mato Grosso, assim como o aumento populacional e de todos os

indicadores socioeconômicos, de certa forma fazia parte das políticas territoriais

desenvolvidas nesse período, quando foram criadas redes técnicas de circulação e de

telecomunicações através de incentivos fiscais e disponibilização de créditos a juros

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baixos, bem como facilidades para o povoamento e a consequente formação de um

mercado de trabalho na região.

Do ponto de vista da divisão territorial do trabalho, o Mato Grosso passa então a

ser visto e compreendido como um espaço de fronteira de oportunidades do capital.

Assim, as ações que intencionalmente buscavam comandar o processo de produção do

espaço das áreas definidas como prioritárias para o desenvolvimento regional em Mato

Grosso, paulatinamente inseriu o Norte do estado na órbita de influência do processo de

reprodução ampliada do capital pela ocupação e exploração de seus recursos naturais.

Finalizando, fica evidente que a despeito das especificidades de cada trabalho,

ambos trazem uma contribuição para a compreensão conjunta, em um exercício de

geografia histórica, das esferas do político e do econômico, focando o processo de

formação territorial do Mato Grosso em articulação, de um lado, com os projetos

políticos e os sujeitos envolvidos na elaboração das propostas de políticas territoriais do

Estado brasileiro, e de outro, com as mudanças efetivas na organização de seu território.

Essa perspectiva busca diferenciar e relacionar a realidade fático-material

identificada na organização dos objetos e seres na superfície terrestre, com as

representações elaboradas pelas sociedades acerca dessa mesma realidade, numa ótica

geográfica de interpretação do processo histórico que o compreende como um

movimento progressivo de apropriação e transformação do planeta, tal uma reiterada

antropomorfização do espaço (MORAES, 2002).

Voltando o foco ao universo de pesquisa delimitado, percebe-se que o projeto

constrói uma argumentação fundamentada na circunstância de que o imaginário da

conquista territorial existente no Brasil em formulações diversas desde ao menos o final

do XIX (MACHADO, 1995) é um fato especialmente sensível ao caso do Mato Grosso,

cujo espaço foi constantemente qualificado e concebido como sertão ou fronteira

(NOGUEIRA, 2008). Ao final, como esse projeto tem como referência o fato de o

conceito de formação territorial conceber o território simultaneamente como

materialidade e representação, relacionando o processo de sua efetiva ocupação material

com os discursos e projetos que o têm como objeto, ganha importância o fato de o

imperativo da conquista, que acompanha a elaboração de planos que propagam a

concepção do país como um espaço, e não como uma sociedade, ser uma constante em

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diversos momentos históricos do Brasil (MORAES, 2011) que pode ser apreendida em

suas singularidades no estudo de Mato Grosso.

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