revista geografia v9 n1 - uel portal - universidade ... · prof. dalton Áureo moro – uem ......

90
REITOR Jackson Proença Testa VICE-REITOR Marcio José de Almeida GEOGRAFIA: Revista do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina, é uma publicação semestral destinada a editar matérias de interesse científico de qualquer área de conhecimento, desde que tenham relação com a ciência geográfica. Comissão de Publicação do Departamento de Geociências Profª Angela Massumi Katuta Prof. Claudio Roberto Bragueto Prof. José Barreira Conselho Editorial Prof. Dalton Áureo Moro – UEM Prof. Eliseu Savério Spósito – UNESP – Presidente Prudente Prof. Francisco de Assis Mendonça – UFPR Prof. Geraldo Cesar Rocha – UFU Prof. José Barreira – UEL Prof. José Paulo Piccinini Pinese – UEL Profª Nilza Aparecida Freres Stipp – UEL Profª Rosana Figueiredo Salvi – UEL Profª Yoshiya Nakagawara Ferreira – UEL Universidade Estadual de Londrina Geografia Revista do Departamento de Geociências ISSN 0102-3888 EDITORIAL Com a edição do volume 9 da publicação Geografia: Revista do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina, estamos dando mais um passo na intenção de manter a periodicidade da mesma, conforme manifestamos quando da retomada da publicação com o volume 8, em 1999. Estamos cumprindo um outro objetivo traçado, uma vez que este número contempla artigos de temas diversos, envolvendo professores e alunos de Geografia e áreas afins do Departamento de Geociências e outros departamentos da UEL, assim como de outras instituições. Este volume também representa mais um esforço na busca constante do aprimoramento da revista, tendo em vista que estamos contando com a valiosa colaboração dos colegas do departamento e de outras instituições que vieram a compor o Conselho Editorial. Comissão de Publicação VOLUME 9 – NÚMERO 1 – J AN./J UN. 2000

Upload: doankhuong

Post on 20-Jan-2019

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

REITORJackson Proença Testa

VICE-REITORMarcio José de Almeida

GEOGRAFIA: Revista do Departamentode Geociências da Universidade Estadualde Londrina, é uma publicação semestraldestinada a editar matérias de interessecientífico de qualquer área deconhecimento, desde que tenham relaçãocom a ciência geográfica.

Comissão de Publicação do Departamentode GeociênciasProfª Angela Massumi KatutaProf. Claudio Roberto BraguetoProf. José Barreira

Conselho EditorialProf. Dalton Áureo Moro – UEMProf. Eliseu Savério Spósito – UNESP –Presidente PrudenteProf. Francisco de Assis Mendonça –UFPRProf. Geraldo Cesar Rocha – UFUProf. José Barreira – UELProf. José Paulo Piccinini Pinese – UELProfª Nilza Aparecida Freres Stipp – UELProfª Rosana Figueiredo Salvi – UELProfª Yoshiya Nakagawara Ferreira – UEL

UniversidadeEstadual de Londrina

Geografia

Revista do Departamento de Geociências

ISSN 0102-3888

EDITORIAL

Com a edição do volume 9 da publicaçãoGeografia: Revista do Departamento deGeociências da Universidade Estadual deLondrina, estamos dando mais um passo naintenção de manter a periodicidade da mesma,conforme manifestamos quando da retomada dapublicação com o volume 8, em 1999.

Estamos cumprindo um outro objetivotraçado, uma vez que este número contemplaartigos de temas diversos, envolvendo professorese alunos de Geografia e áreas afins doDepartamento de Geociências e outrosdepartamentos da UEL, assim como de outrasinstituições.

Este volume também representa mais umesforço na busca constante do aprimoramento darevista, tendo em vista que estamos contandocom a valiosa colaboração dos colegas dodepartamento e de outras instituições que vierama compor o Conselho Editorial.

Comissão de Publicação

VOLUME 9 – NÚMERO 1 – JAN./JUN. 2000

Editora da Universidade Estadual de Londrina

Campus UniversitárioCaixa Postal 6001

Fone/Fax: (43) 371-4674E-mail: [email protected]

86051-990 Londrina - PR

Conselho EditorialLeonardo Prota (Presidente)José Eduardo de SiqueiraJosé Vitor JankeviciusLucia Sadayo TakahashiMary Stela MüllerPaulo Cesar BoniRonaldo Baltar

Editoração Eletrônica e ComposiçãoKely Moreira Cesário

CapaProjeto Ilustração – CECA/UEL – Arte DesignCoord.: Cristiane Affonso de Almeida ZerbettoVice-Coord.: Rosane Fonseca de Freitas MartinsAluno: Alexandre Hayato Shimizu

Normalização Documentária e Revisão GeralIlza Almeida de Andrade CRB 9/882

Montagem e AcabamentoRubens Vicente

Geografia / Departamento de Geociências, Univer-sidade Estadual de Londrina. – Vol. 1, nº 1(Dez. 1983)- . – Londrina : Ed.UEL, 1983- . v. ; 29 cm

Semestral. Publicado anualmente até 1993.Suspensa de 1994-1998.Descrição baseada em: Vol. 8, nº 1 (Jan./Jun. 1999)

ISSN 0102-3888

1. Geografia humana – Periódicos. 2. Geografiafísica – Periódicos. I. Universidade Estadual deLondrina. Departamento de Geociências.

CDU 91(05)

GeografiaRevista do Departamento de Geociências

GEOGRAFIA – LONDRINA – VOLUME 9 – NÚMERO 1 – JAN./JUN. 2000

EDITORIAL ............................................................................................................................................................... 1

O ENSINO E APRENDIZAGEM DAS NOÇÕES, HABILIDADES E CONCEITOS DEORIENTAÇÃO E LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICAS: ALGUMAS REFLEXÕES .......................................... 5Ângela Massumi Katuta

TURISMO RURAL E MODERNIZAÇÃO – SUA FORMA E FUNÇÃO ......................................................... 25Maria del Carmen M. H. Calvente

O ENSINO DE PEDOLOGIA NO CICLO BÁSICO DE ALFABETIZAÇÃO .............................................. 41Selma Lúcia de Moura Gonzales, Omar Neto Fernandes Barros

MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS PARA O JAPÃO E A FORMAÇÃOESCOLAR DOS FILHOS DE DEKASSEGUIS.MARINGÁ – PARANÁ-BRASIL ......................................... 51Alice Yatiyo Asari, Luzia Mitiko Saito Tomita

GEOGRAFIA E CONTROLE TERRITORIAL :SABER ESTRATÉGICO PARA QUEM? ............................ 61Eliane Tomiasi Paulino

A COOPERAÇÃO AGRÍCOLA NOS ASSENTAMENTOS: UMA PROPOSTA POLÍTICA ....................... 67João Edmilson Fabrini

NOTAS

VALORIZAÇÃO DO ENSINO DA CIÊNCIA DO SOLO NASESCOLAS PÚBLICAS DO MUNICÍPIO DE IJUÍ – RS, BRASIL ................................................................... 81Sílvia Maria Costa Nicola, Noemi Huth, Leonir Terezinha Uhde, Sandra Vicenci Fernandes, Omar Neto Fernandes Barros

PROCERA VERSUS PRONAF:VEJO O FUTURO REPETIR O PASSADO... ............................................... 83Rosemeire Aparecida de Almeida

INSTRUÇÕES PARA PUBLICAÇÃO .................................................................................................................. 89

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 5

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver noUniverso...Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terraqualquerPor que eu sou do tamanho do que vejoE não do tamanho da minha altura...Nas cidades a vida é mais pequenaQue aqui na minha casa no cimo deste outeiro.Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar paralonge de todo o céu,Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que osnossos olhos nos podem dar,E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.(Alberto Caeiro)

Pretendemos no presente artigo refletir sobreo ensino e aprendizagem das noções, habilidadese conceitos de orientação e localizaçãogeográficas porque o uso dos mapas, que se fazem geral no ensino de Geografia, é o de meraorientação e localização dos fenômenos, queestão sendo alvo de estudos. Vale salientar queum outro tipo de uso dos mapas que costumaser efetivado em sala de aula, e que está arraigado

O ensino e aprendizagem das noções, habilidades econceitos de orientação e localização geográficas:algumas reflexões

Ângela Massumi Katuta*

RESUMO

O presente artigo objetiva contribuir com reflexões sobre o ensino e a aprendizagem das noções, habilidades e conceitosde orientação e localização geográficas. Num primeiro momento, refletimos sobre o significado das palavras orientação/localização cotidianas e orientação/localização geográficas. Posteriormente, fazemos um breve esboço sobre como essesconhecimentos são ensinados e aprendidos na escola para, logo em seguida, analisarmos essas práticas cotidianas a fimde que o docente do Ensino Fundamental e Médio possa também refletir sobre a questão.

PALAVRAS-CHAVES: orientação; localização; ensino; Geografia; território; mapas.

à prática pedagógica docente, ocorre quando oprofessor de Geografia pede para seus alunosdecalcarem mapas de vários locais, colocar onome dos estados, as respectivas capitais e ospontos cardeais ou sua orientação geográfica.

Observa-se que nas situações citadas acima,o mapa não passa de um recurso para localizaçãoe orientação de fenômenos. Entendemos queesse recurso didático é uma das representaçõespossíveis de serem utilizadas em classe e que omapa deve ser lido tal qual um texto, que evocaem nós inúmeros significados sobre o mundo quenos cerca.

Por isso, concordamos com Masson1 quandoesta afirma que as representações gráficas têmduas finalidades diferentes no ensino deGeografia. A primeira é a de servir para analisaros elementos do espaço, a segunda para umainterpretação do mesmo, dentro de umahermenêutica própria da disciplina. Com basena afirmação acima poderíamos dizer que atravésdos mapas poderíamos analisar os elementospresentes num determinado território para,posteriormente, fazer interpretações acerca dalógica da territorialidade dos mesmos. Noentanto, é preciso explicitar que as finalidades

* Professora do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina – PR. E-mail: [email protected]

6 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

delegadas a esse meio de comunicação, noEnsino Fundamental e Médio dependem dasconcepções de Geografia dos docentes que, regrageral, são muito diferentes entre si:

“... l’une statique décrivant l’ordre du monde,l’autre dynamique, productrice de noveausavoir sur un monde non directement lisible,vision d’emblée que donne du sens à ce quin’en pas d’emblée.”2 (Masson 3 )

Observa-se pela citação acima que é emfunção de uma determinada visão de ensino ede Geografia, que se utilizam as representaçõesgráficas e cartográficas de diferentes maneiras.

Se o professor concebe a Geografia, comouma disciplina que tem por função descreverlugares, o uso que se fará do mapa possivelmenteserá o de mera localização e haverá maior ênfasena realização de descrições. Por outro lado, se odocente concebe a Geografia como umadisciplina que tem por função ensinar oucontribuir para que o aluno entenda melhor asterritorializações produzidas pelos homens, o usoque se fará do mapa possivelmente será outro, poisapesar de ser utilizado enquanto meio de orientaçãoe localização, poderá também ser utilizadoenquanto recurso que pode encetar análises eexplicações geográficas da realidade mapeada.

Temos que concordar com a mesma autoraquando esta afirma que a Geografia é umdomínio do saber que consome e produz muitasrepresentações gráficas, que por sua vez, possuemdiferentes usos dependendo do tipo de Geografiaque se produz. Algumas propiciam ou originamapenas descrições do espaço (“géographie debilans”); outras propiciam uma Geografia voltadapara a pesquisa ou de procura de mecanismosexplicativos para determinadas territorialidades.

“ La premiére favorise des démarches didactiquetradicionelles de type essentiellement inductif,centrées sur la acquisition de contenus factuelet de savoir-faire. La seconde privilégie desdemarches hypothético-déductives et desacquisitions de type plus conceptuel ous’interéressant davantage aux processusexplicatifs liées à des atitudes pedagogiquescentrées sur la construction des savoirs par lesélèves.”4 (Masson5 )

É importante ressaltar que apesar de termos

discutido brevemente sobre as funções do mapano ensino de Geografia, na presente reflexão, nosateremos somente à questão da aprendizagem edo ensino das noções, habilidades e conceitosde orientação e localização, pois este é o principale um dos primeiros usos que se faz dos mapas,nas escolas do Ensino Fundamental e Médio.Optamos por centrar nossa análise no processode ensino e aprendizagem desses conhecimentosa fim de subsidiar as reflexões dos professoresdos diferentes níveis de ensino .

QUE ORIENTAÇÃO? QUE LOCALIZAÇÃO?

Quando falamos em orientação e localização,logo nos vem à mente o rumo e a determinação(no sentido da localização) de um lugar, de umacasa, escola, bairro, cidade, estado, e outros. Paranos dirigirmos a determinado local, regra geral,sempre pensamos em virar à direta, à esquerda,ou seguir em frente até que a rua termine.Quando não sabemos direito o caminhoadequado a ser seguido, ou que rumo tomar, emgeral, perguntamos a alguém que nos possafornecer a informação sobre a localização, ou pelomenos sobre a direção que poderíamos seguirpara encontrar o referido local. Verifica-se nassituações acima descritas que, no limite,poderíamos muito bem passar sem um mapa, ouseja, nossa ida ou não a um local não dependeriasomente do uso do mapa, enquanto meio delocalização, mas essencialmente de pedirinformações a qualquer transeunte.

A atitude acima descrita é a mais comum entrea maior parte da população do que a de procurarnum mapa a localização de algum lugar, mesmoentre os alunos do Ensino Médio e Fundamental.Isso ocorre devido a inúmeros fatores, desde aausência e/ou o não acesso a mapas, falta dehábito em usá-lo, dificuldade em orientar-se como mesmo, facilidade em obter informações,existência de placas informativas e outros. Grossomodo, nos deslocamentos diários e saberescotidianos relativos a um determinado local,poucas pessoas necessitam e se recordam quepoderiam utilizar-se de mapas.

Para nos orientarmos e nos localizarmoscotidianamente, principalmente na cidade, nãohá muita necessidade de sabermos o rumo dospontos cardeais, muito menos a latitude elongitude de determinado local, pois as

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 7

habilidades e noções espaciais que construímos,satisfazem as nossas necessidades básicas dedeslocamento.

Orientar e localizar são ações que se aprendedesde o nascimento, que foram sendoestruturadas a partir e com a construçãoprogressiva da noção de espaço6 . Essas noçõescertamente são importantes para o sujeito na suavida cotidiana, pois no limite, a ignorância dessas,pode trazer-lhe inúmeros problemas.

As referidas noções vão se estruturando desdeo nosso nascimento e são aprendidas durante anossa vida, em função principalmente dasexigências materiais que a mesma nos impõe. Éimportante salientar que cada sociedadedesenvolve mecanismos e esquemasdiferenciados de orientação e localização, quevão depender em grande parte das suas condiçõesmateriais de vida, da forma como percebem oseu entorno, do seu entendimento sobre ele, daforma como ocorre a interação entre o sujeito eo lugar, enfim da forma como as diferentessociedades se relacionam com os outroselementos da natureza.

Depreende-se das afirmações acima que,grosso modo, para nossos alunos pouco sentidofaz aprender noções, habilidades e conceitos deorientação e localização geográficas paraorientarem-se e localizarem-se na cidade. Issoporque nos diferentes espaços existem algunspontos de referência semi-fixos ou fixos, muitoconhecidos pelo público em geral e que servem

como semi-invariáveis, que são elementos queguardam uma certa invariância na paisagem, taiscomo pontes, viadutos, linhas de trem, igrejas,praças, prefeitura, hospitais, shopping center, eportanto, servem como pontos de referência paraa localização e orientação no espaço vivido. Alémdisso, esses invariáveis ou semi-invariáveis,aliados à possibilidade de pedir informações aalguém sobre a localização ou rumo dedeterminado lugar constituem-se em meios decerta forma eficientes para o deslocamento dequalquer sujeito. Portanto, para nos orientarmose nos localizarmos não necessitamos, a priori, doconhecimento das noções, habilidades econceitos de orientação e localização geográficas.É claro que esse conhecimento, em diferentesníveis, poderia proporcionar mais autonomia nodeslocamento do sujeito, no entanto, o que seobserva, regra geral, é que as pessoas não seutilizam desses conhecimentos para orientaçãoe muito menos para localização.

A maioria das pessoas se orienta e se localizamesmo sem saber ou dominar os conhecimentosgeográficos de orientação e localização. Por issofaz-se necessário distinguir a orientação elocalização pura e simples da orientação elocalização geográficas. Faremos isso numprimeiro momento, explicitando algunssignificados das palavras orientação e localizaçãopara a maioria do público menos especializado.Após termos consultado o dicionário Aurélio7

encontramos os seguintes significados:

Quadro 1– O significado das palavras Orientação e Localização segundo o Dicionário Aurélio.

Orientação Localização Ato ou arte de orientar(-se) Ato ou efeito de localizar(-se)

Localizari Determinar o local de; locar

Direção, guia, regra Tornar local; fixar ou limitar a determinado local

Impulso, tendência, inclinação.

Fixar, limitar ou estabelecer em determinado lugar

Imaginar num determinado ponto

iComo o referido dicionário só trazia uma definição que nos interessava, para a palavra localização, inserimos os significados da palavra localizar, pois como o próprio dicionário afirma localização é o ato ou efeito de localizar(-se).

8 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

Observa-se que no dicionário não háreferência às redes e coordenadas geográficas,muito menos paralelos/meridianos e latitude/longitude. Os sinônimos referem-se a ações quequalquer sujeito, letrado ou não, realiza em nossasociedade, portanto, o uso de mapas ou qualqueroutro recurso de representação cartográfica nãoestá explícito na efetivação de ambas as ações. Aconclusão que podemos tirar da leitura dossinônimos acima é que qualquer pessoa poderealizar essas ações, mesmo sem saber ou teracesso a conhecimentos geográficos específicos.

É importante atentar para tal fato, pois há umaconfusão generalizada dos docentes da disciplinade Geografia e das séries iniciais, que justificama importância da aprendizagem das noções deorientação e localização geográficas, para que osujeito situe-se melhor no espaço em que vive.Quando a justificativa da aprendizagem dessesconhecimentos torna-se essa, na verdade estamoscometendo, a priori, um equívoco que nos custarácaro, pois a realidade nos mostrará que os alunos,por melhor trabalhadas que forem essas noções,dificilmente as usarão na sua vida cotidiana. Aotomar consciência desse fato, tendemos aabandonar o ensino dessas noções, habilidadese conceitos, que “não são mais importantes hojeem dia”, para nos preocupar com “aquilo querealmente importa”: a dinâmica que leva asociedade a (re)construir suas territorialidades.Discorremos então a partir desse outro objetivo,sobre as diferentes sociedades, suaspeculiaridades históricas, sem no entanto, nosreferir ou sem dar ênfase acerca do local ondeesses fatos ocorrem ou ocorreram, omitindofreqüentemente até o fato de que por causa dessadinâmica social, as territorializações são alteradase muitas vezes também influem na primeira.

Essa atitude decorre exatamente da falta declareza sobre o que significa ensinar o aluno aorientar-se e localizar-se geograficamente, e paraquê servem esses conhecimentos. Muitosdocentes entendem que as orientações elocalizações que fazemos no dia-a-dia, as quaisnos referimos acima, são sinônimos da orientaçãoe localização geográficas. Inicia-se aí a confusãoque vai acompanhar o docente até que ele desistade ensinar esse conteúdo, “porque nem elemesmo e muito menos os alunos os utilizam”,para ensinar um outro “mais útil” para a vidacotidiana do corpo discente.

É preciso ressaltar que, apesar de serem

importantes os conhecimentos, noções ehabilidades de orientação e localizaçãogeográficas, esses acabam sendo marginalizadospela prática pedagógica do professor, que sedesenvolve a partir de alguns equívocos deentendimento. Deve-se ensinar o aluno a seorientar e localizar geograficamente, no entanto,devemos ter claro que essas noções, habilidadese conceitos não devem estar desvinculados deoutros conteúdos, porque para empreendermosuma análise geográfica temos que iniciá-larespondendo às seguintes questões: O quê? eOnde?. Observa-se que ambas as questõespodem ser facilmente respondidas com o uso demapas. No entanto, a segunda questão somentepode ser respondida adequadamente a partir dautilização de conhecimentos sobre orientação elocalização geográficas.

É importante agora enfatizar que orientar elocalizar geograficamente tem outros sinônimosem dicionários e livros técnicos, no dicionárioCartográfico de Oliveira8 esses termos sãodefinidos da seguinte maneira:– Orientação9 :

“O ângulo horizontal de um determinadoponto medido na direção dos ponteiros dorelógio, a partir de um ponto de referência, paraum segundo ponto. (...) O ângulo horizontal numdeterminado ponto medido no sentido dosponteiros do relógio, a partir de um datum dereferência para outro ponto. O mesmo queângulo de orientação. (...) A direção horizontalde um ponto terrestre para outro, expressa comodistância angular a partir duma direção dereferência. É medida, habitualmente, a partir de000º, numa direção de referência, no sentido dosponteiros do relógio, até 360º . Os termosorientação e azimute, tem às vezes, uso recíproco,mas, em navegação, o primeiro é aplicado, quasesempre, a assuntos terrestres, e o segundo àdireção de um ponto da esfera celeste, a partirde um ponto da Terra.”– Orientação geodésica:

“Sistema de controle horizontal apoiado emum lado, cujo azimute geodésico é conhecido”.– Localização:

“Determinação exata de um ponto ou detalhenuma carta ou numa fotografia; traçado deacabamento depois da marcação dos pontosprincipais, como um diagrama; traçado emarcação (um ponto), como num papelmilimetrado, por meio de suas coordenadas;

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 9

construção (duma curva) pela marcação de umnúmero de pontos na sua trajetória; colocaçãode dados de levantamento num mapa.”– Localização geográfica:

“...posição geográfica”.– Posição geográfica:

“A posição de um ponto da superfície da Terra,expressa em termos de latitude e longitude, sejageodésica ou astronômica.”

Observa-se pelas definições acima que há umadiferença muito grande entre os sinônimosdescritos pelo dicionário Aurélio e peloDicionário Cartográfico. A principal é que osegundo utiliza-se de um conjunto deconhecimentos e termos científicos para queocorra a ação de orientar e/ou localizargeograficamente, esta, em geral é realizada porquem já foi iniciado no conhecimento sistemáticodessas noções, habilidades e conceitos. Por suavez, o primeiro define os termos de acordo comos significados atribuídos pela maioria daspessoas, ou pelo significado de uso comum dapopulação e que não está baseado em nenhumtipo de conhecimento científico, mas em açõescotidianas realizadas pela maioria das pessoas.

A partir dos sinônimos explicitados por ambosos dicionários chega-se à seguinte conclusão:existe uma diferença muito grande entreorientação e localização em nível de açõescotidianas e orientação e localização geográficas.As primeiras imprescindíveis, a qualquer sujeitoe aprendidas nas suas ações e relações cotidianascom o espaço empírico e, as segundas,imprescindíveis a alguém que queira realizarentendimentos geográficos sobre o mundo eaprendidas necessariamente na escola.

Depreende-se também das afirmações acimaque os conhecimentos, noções e habilidadessobre orientação e localização geográficas, serãoimprescindíveis aos sujeitos que quiseremestabelecer uma compreensão geográfica darealidade e, assim, estabelecer raciocínios decunho geográfico. Isso não quer dizer que osmesmos são perfeitamente dispensáveis paraquem não objetiva essa compreensão apenas que,bem ou mal, os sujeitos conseguem se orientar elocalizar sem ter nenhum conhecimento sobreorientação e localização geográficas. É precisosalientar que, em algumas sociedades, a cultura,a inserção do indivíduo no mundo do trabalho,os costumes, a religião, entre outros fatores,impõem a necessidade da aprendizagem de

conhecimentos, noções e habilidades deorientação e localização geográficas. Podemoscitar o caso de muitos muçulmanos quenecessitam de conhecimentos básicos deorientação e localização geográficas, para sevoltarem em direção à Meca a fim de fazeremsuas orações. Um outro exemplo, que pode sercitado para ilustrar melhor nossa afirmação, é odo piloto de avião, cujo exercício da profissãoimplica, necessariamente entre outros saberes,no domínio de conhecimentos sobre orientaçãoe localização geográficas.

Depreende-se, a partir do que foi expostoacima, que quando vamos ensinar ou fazerreferência aos termos orientação e localização, épreciso que se tenha claro sobre qual delesestamos falando (orientação e localizaçãocotidiana ou orientação e localizaçãogeográficas), para não incorrer no equívoco deacreditar que a aprendizagem de noções,habilidades e conceitos de orientação elocalização geográficas são imprescindíveis paraque o sujeito possa realizar seus deslocamentos.

A aprendizagem desses conhecimentos éimportante para o estabelecimento de raciocíniosgeográficos, ou para que haja um entendimentogeográfico da realidade, é claro que isso talvezacabe implicando, na realização dedeslocamentos mais racionais e mais autônomospor parte do sujeito que tem domínio sobre essesconhecimentos, o que não quer dizer que oobjetivo do ensino de Geografia tenha que seapoiar somente nessa justificativa. Entendemosque a mesma é válida mas insuficiente parajustificar o ensino dos conhecimentos a que nosreferimos acima. O ensino das noções,habilidades e conceitos de orientação elocalização geográficas se justificam, em grandeparte, na medida em que se constituem emconhecimentos básicos para que o alunoestabeleça raciocínios de ordem geográfica, ouem outras palavras, para entender a lógica dasterritorializações produzidas pela humanidade.

É preciso ter claro que não podemos enfatizar,em sala de aula, somente o trabalho com noçõesde localização e orientação geográficas. Aaprendizagem desses conhecimentos éimportante, desde que eles estejamcontextualizados, ou seja, desde que sirvam paraque o aluno possa entender melhor o territórioem que vive.

O que se observa em geral nos dias de hoje é

10 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

o ensino e aprendizagem dessas noções,habilidades e conhecimentos de forma estanque,os professores trabalham de um a dois meses esse“conteúdo” para depois ensinarem outros. Essetipo de prática decorre de uma determinadaconcepção de Geografia que é muito presenteem sala de aula, esta tenta trabalhar algunselementos da realidade, transformando-os numasérie de conhecimentos especializados edicotômicos. Entendemos que tal prática deveser superada, para que a disciplina de Geografiase torne necessária do ponto de vista do aluno.Deve-se privilegiar nessa disciplina opensamento, o entendimento da realidadegeográfica pelo aluno e não somente a descriçãoe a memorização, como muitos docentes fazemhoje em dia.

É preciso salientar que para se ensinar asnoções, habilidades e conceitos de orientação elocalização geográficas faz-se necessário umarelação de ensino e aprendizagem que nãoprivilegie meramente o ponto de vista técnicodesses conteúdos, mas que esteja preocupadacom a utilização dessas formas de orientação elocalização para um melhor entendimento doespaço geográfico. Enfim, no que se refere aoEnsino Fundamental e Médio acreditamos quea relação pedagógica que se deve estabelecerentre professor, aluno e esse tipo de saber éaquele citado logo acima. Não há a necessidade,por exemplo, dos alunos saberem toda a históriada construção dessas noções, e nem dascondições materiais necessárias, para que essesconhecimentos fossem engendrados, muitomenos que os discentes saibam definí-los doponto de vista técnico.

Faz-se necessário que o aluno saiba essesconhecimentos para que ele consiga situar-se nasaulas de Geografia e também em relação aospróprios conteúdos geográficos quando oprofessor utilizar termos como: sudoeste asiático,países das baixas, altas e médias latitudes, EuropaOriental e Ocidental, Países meridionais,setentrionais, ocidentais, orientais, tropicais,equatoriais, e outros. Além disso, esse tipo deconhecimento é básico, para quem querestabelecer entendimentos geográficos darealidade. É importante ter cuidado com o termosublinhado acima, porque não podemosconfundir a palavra básico com central. Naverdade, estamos querendo dizer que o ensinode Geografia não pode se esgotar na

aprendizagem dessas noções, conceitos ehabilidades, mas que elas são básicas eelementares para quem quiser estabelecer ouconstruir um raciocínio geográfico.

O ENSINO E APRENDIZAGEM DASNOÇÕES, HABILIDADES E CONCEITOSDE ORIENTAÇÃO E LOCALIZAÇÃOGEOGRÁFICAS: UM BREVE ESBOÇO DOCOTIDIANO ESCOLAR

O mapa nas escolas em geral é usado, comorecurso para localização e orientação dosfenômenos geográficos que serão ou estão sendoestudados em sala de aula e a constatação é aprincipal atividade desenvolvida pela maioria dosprofessores de Geografia, que pouca importânciadão ao entendimento de determinados territóriose, muito menos, ao significados que estespossuem para os alunos.

Como dissemos anteriormente, por causa deinúmeros problemas decorrentes de uma máformação, na maioria das vezes, o professordelega a escolha do conteúdo a ser trabalhadono ensino de Geografia ao livro didático, ou aoautor do mesmo. Num estudo sobre essaquestão, Freitag10 , a partir da leitura de inúmeraspesquisas sobre o uso do livro didático peloprofessor, afirma que os mesmos fazem aindicação dos manuais a serem utilizadosbaseados em critérios bem heterogêneos: aspectográfico, envio gratuito do livro pela editora,presença na lista de documentos governamentais,indicação por um colega. A escolha não se faz,portanto, a partir dos objetivos que o docentetem em relação ao ensino e ao aluno e o pior éque esse processo todo ocorre de forma poucocrítica, pois segundo a mesma autora:

“... O livro didático não funciona em sala deaula como um instrumento auxiliar paraconduzir o processo de ensino e transmissãodo conhecimento, mas como o modelo-padrão, a autoridade absoluta, o critérioúltimo de verdade. Neste sentido, os livrosparecem estar modelando os professores. Oconteúdo ideológico do livro é absorvido peloprofessor e repassado ao aluno de formaacrítica e não distanciada.” (Freitag11 )

Na verdade, regra geral, o docente não fazuma opção consciente dos conteúdos a serem

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 11

estudados, em função dos objetivos que ele temcom o ensino. Por isso, determinados temas sãoou não trabalhados dependendo do livro didáticoadotado. Se por exemplo, os conteúdos sobreorientação e localização geográficas sãoapresentados no início do livro didático, osmesmos são trabalhados, regra geral, no iníciodo ano. Caso o material didático não apresenteesses conteúdos, o professor não faz questão deensinar seus alunos, pois tem muito pouca clarezada necessidade do ensino dessas noções,habilidades e conceitos.

A falta de critérios críticos do professor paraavaliar o livro didático, acaba fazendo com queeste último, seja o grande responsável pelaescolha dos conteúdos a serem trabalhados emsala de aula. Em outras palavras, existe umasubordinação do professor em relação ao autordo livro didático no que se refere à visão demundo, opções teórico metodológicas e portanto,à escolha do conteúdo e à forma como este vaiser ensinado.

Ao examinar alguns livros didáticos deGeografia para o Ensino Fundamental,percebemos uma nítida diferença entre osmesmos. Aqueles mais conhecidos comotradicionais trazem, geralmente nos primeiroscapítulos, tópicos que tratam do ensino e daaprendizagem dos conteúdos de orientação elocalização geográficas. Os livros maisconhecidos como críticos, muitas vezes, nãotrazem esses conteúdos ou o fazem“homeopaticamente”, trazendo-os no final dealguns capítulos em colunas denominadas: saibaque..., você sabia que..., para saber mais, e outros.Verifica-se então que, dependendo do livrodidático adotado em sala de aula, o professor temmaior ou menor possibilidade de trabalhar ounão com os conteúdos acima citados.

Em relação aos livros que trazem, nosprimeiros capítulos, conteúdos sobre orientaçãoe localização geográficas, é preciso destacar queos mesmos dão um tratamento estanque a essesconteúdos. Muitas vezes, observamos que osmesmos são trabalhados em apenas um capítulodo livro para, logo em seguida, seremabandonados. Em outras palavras, trabalha-seexaustivamente esses conteúdos durante certoperíodo, para depois estes serem esquecidos e/ou marginalizados, como se a compreensãogeográfica da realidade não prescindisse dessasnoções, habilidades e conceitos.

Apesar de termos afirmado anteriormente,que esse é um conhecimento básico, para quemquiser construir um entendimento geográfico darealidade verificamos que o ensino ou não domesmo vai depender, na maioria das vezes, dolivro didático adotado. É preciso, no entanto,salientar que alguns professores ensinam essesconhecimentos apesar de não comparecerem nomaterial ao qual fizemos referência (livrodidático). Em relação ainda aos livros didáticos,poderíamos afirmar que, na verdade, autoresconsiderados “críticos” pouca importância dão aesse tipo de conhecimento, como se os fatosgeográficos ocorressem “descolados” dedeterminados territórios, ou como se as relaçõesdas sociedades com os outros elementos danatureza e com outros homens não implicassemna transformação, (re)produção e/oumanutenção de uma determinadaterritorialidade. Em outras palavras, não seconsidera questões referentes à orientação elocalização geográficas em função de que essesconhecimentos são considerados, por algunsautores, como elementos que fazem parte doideário daquilo que chamamos comumente de“Geografia Tradicional”.

É preciso, no entanto, explicitar que não éporque não se enfatiza os conteúdos acimacitados que a Geografia será “crítica”. Houve,na verdade, um equívoco sobre o entendimentodo que era fazer “Geografia Crítica” nas escolas.Confunde-se como afirma Santos12 , até hoje,aquilo que conhecemos como Geografia Crítica,com um amontoado de discursos panfletáriossobre os últimos acontecimentos, ou com umdiscurso político-partidário que, na maioria dasvezes, ao invés de contribuir para a construçãode uma efetiva cidadania, ou para a formação deuma pessoa que tenha mais autonomiaintelectual, acaba contribuindo,contraditoriamente, para a sua marginalização emrelação ao acesso dos conhecimentos socialmenteconstruídos pela humanidade.

Tendo em vista essa primeira diferenciação,no tratamento dos conteúdos de orientação elocalização geográficas, a partir dos livrosdidáticos, passaremos a refletir sobre como temsido a relação do professor do EnsinoFundamental e Médio com esse tipo deconhecimento.

No que se refere à prática pedagógica doprofessor, podemos fazer uma série de

12 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

considerações. Iniciaremos pela forma como esseconhecimento é ensinado, ou seja, apesar dosaber ser o mesmo, no processo de ensino eaprendizagem ele passa por uma transformação:de apenas “saber” transforma-se em “saber a serensinado”.

O saber a ser ensinado no que se refere aorientação e localização geográficas, é trabalhadoregra geral, da seguinte forma: num primeiromomento o professor das séries iniciais trabalhaalgumas noções de lateralidade (direita,esquerda, à frente, atrás, em cima e em baixo)para, em seguida, nas aulas de Estudos Sociaise/ou Geografia trabalhar com os pontos cardeais.Estes, são ensinados a partir da observação dolado onde o Sol nasce (nascente), e se põe(poente). A partir do estabelecimento donascente e do poente e, a partir do momento emque o aluno consegue fazer distinção entre direitae esquerda, ensina-se, aproximadamente na 3ªsérie do Ensino Fundamental (2º ciclo), noçõesbásicas de orientação geográficas.

As noções citadas logo acima, regra geral, sãoensinadas a partir de uma figura e/ou através deexperiências no pátio com as crianças. Fala-separa elas apontarem para a direção onde o Solnasce com a mão direita, ou para verificarem nolivro didático, a partir de uma figura dada que,em geral, é a de uma pessoa apontando para adireção em que o Sol nasce, com a mão direita.Essa direção, diz o professor para seus alunos: éo nascente ou leste. Feito isso, afirma-se para osmesmos que à esquerda está o poente ou oeste,à frente o norte e atrás o sul. Após a realizaçãodessas atividades no pátio, ou leitura do textodo livro didático, dá-se por encerrada o ensinodessa noções, habilidades e conceitos.

Às vezes, com uma dose bem grande de boavontade, o professor faz alguns exercícios outenta orientar geograficamente a sala de aula, emrelação aos pontos cardeais. Sobre isso temosduas considerações a fazer.

A primeira é a de que, na verdade, nãoestamos criticando as atividades que o professorestá realizando. Nossa crítica se situa mais acercado contexto em que o ensino dessesconhecimentos se dão (a relação do professorcom o conhecimento a ser ensinado), ou seja,apesar do docente muitas vezes enxergar ou saberquais serão as utilidades ou vantagens de seadquirir determinados conhecimentos, para oentendimento do espaço geográfico, geralmente

isso não fica muito claro para o aluno. Em outraspalavras, este último não é provocado a pontode tentar encontrar utilidade para osconhecimentos sobre orientação e localizaçãogeográficas, não que o professor tenha que chegarna aula e dizer explicitamente: “A função deaprendermos noções básicas de orientação é ....”. Mas o docente tem que deixar claro que essasnoções sempre serão utilizadas para oentendimento da realidade geográfica, através desua prática pedagógica. Quando se estudar asterritorializações produzidas pelas pessoas, oprofessor poderia a todo momento, utilizartermos geográficos que pressupõem o uso dasnoções de orientação e localização geográficas,a fim de que os alunos se familiarizassem com ostermos e os incorporassem ao seu vocabulário.Além disso, poderia-se também estabelecer umasérie de situações nas quais os alunos, a partir dolugar em que estivessem sentados, pudessemapontar para o rumo ou orientação dedeterminados lugares.

Para que o professor se relacione com oconhecimento a ser ensinado da forma acimabrevemente descrita é preciso, antes de maisnada, que o mesmo saiba esse conhecimento e otenha incorporado às suas práticas cotidianas. Seessa relação com o saber não for colocada nessestermos para o professor, ou se a relação dodocente com o “saber a ser ensinado” não foressa, provavelmente vai ocorrer o que sempreocorreu: o trabalho na escola com conteúdosestanques e mal elaborados, que quase nãoservirão para nada, a não ser, como nos disse umavez um aluno que entrevistamos “Para tirar notasnas provas”.

A segunda consideração decorre da primeira,pois a partir da forma com a qual o professor serelaciona com o saber sobre orientação elocalização geográficas, (regra geral, entende queé algo difícil de aprender, pois ele mesmodemorou para fazê-lo e, muitas vezes não seutiliza desse conhecimento), ele tenta simplificaro ensino, portanto, também a aprendizagem,falando por exemplo, para o aluno que o Solnasce para o lado da porta da sala de aula, e sepõe para o lado da janela, de forma a simplificaro conhecimento. Muitas vezes isso não ocorrepor má vontade, mas por causa de orientaçõesrecebidas de outras instâncias (coordenadores,supervisores pedagógicos e outros, que o docenteconsidera mais competente tecnicamente

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 13

falando), de que o professor deve trazer oconhecimento para “perto do cotidiano doaluno”. É preciso frisar que o docente muitasvezes com o intuito de fazer com que o aprendizentenda o que ele quer explicar, simplifica eincorre no perigo de mistificar e/ou deturpar oconhecimento, dando margem paraentendimentos do tipo: “para saber onde o Solnasce preciso saber em que lado está a porta” (aporta torna-se o invariante), ou “o Sol semprenasce a leste, que está sempre à minha direita,então se eu apontar com a mão direita em direçãoao quadro negro, o leste vai estar nessa direção,se apontar para o fundo da sala o leste muda deposição...”. Verifica-se que a hipótese de que oSol nasce a leste é correta, mas a outra, de que“o leste está sempre à minha direita” estáequivocada.

Como pode se observar, a eficiência ou nãodo processo de ensino e aprendizagem vaidepender, em grande parte, da forma como oprofessor se relaciona com o saber a ser ensinado,isso porque muitas vezes o mesmo também é umsaber a ser aprendido, ou de outra forma,constitui-se num saber a ser ensinado e que nãofoi aprendido pelo docente.

Entendemos que isso ocorre muitofreqüentemente, principalmente nas sériesiniciais do Ensino Fundamental (1º e 2º Ciclos),por causa da qualidade questionável da formaçãoa que esses docentes estão sujeitos.

A partir da 5ª série do Ensino Fundamental,ou se retorna novamente aos conhecimentossobre orientação geográfica, para depois ensinarlocalização, ou parte-se diretamente para oensino da localização geográfica. Com relação aisso, é importante lembrar que, na maioria dasvezes, quando o professor ensina o processo deorientação geográfica na realidade, o sujeito estáem determinado local, tentando se orientar apartir de algum invariável disponível (Sol, Lua,outras Estrelas ou Constelações). Ao iniciar-se oensino da localização geográfica, passa-se autilizar mapas, e o aluno nesse processo se colocacomo observador e não mais como ser que faziaparte ou que estava inserido no espaço. Verifica-se portanto, uma ruptura entre os espaços ondeocorreu a orientação geográfica, daquele em quese vai fazer a localização geográfica. No primeiro,o sujeito está no espaço, fazendo parte dele, nosegundo torna-se mero observador.

Do fato acima exposto, decorre que orientar-

se e localizar-se no mapa, utilizando somente esserecurso, é uma atividade que implica na utilizaçãode determinadas noções, habilidades e conceitos.Orientar-se e localizar-se na realidade é umaoutra diferente, agora, fazer isso no mapa e narealidade, simultaneamente, ou utilizar um mapapara se orientar e se localizar no mundo é outra,totalmente diferente que requer noções,habilidades e conceitos utilizados na primeira esegunda atividades descritas anteriormente.

É preciso salientar que o sujeito conseguefazer orientações e localizações geográficas nomapa até mesmo guiando-se por pistas, e apesarde não ter adquirido os esquemas mentais pararealizar esses atividades, pode conseguir realizá-las utilizando-se de outros mecanismos ou pistas.O aluno não precisa necessariamente terdesenvolvido e aprendido as noções, habilidadese conceitos de orientação e localizaçãogeográficas, para resolver alguns exercícioselaborados pelo professor, é claro que isso vaidepender, em grande parte, do nível de exigênciadesse último. No entanto, o que podemosobservar nos exercícios de sala de aula é que elesnão exigem muito raciocínio mas, em grandeparte, memorização.

No caso da orientação e localização no espaçoempírico, como já dissemos anteriormente, amaioria das pessoas orientam-se e localizam-sepor pistas ou representações empíricas do espaçoreal (o muro, a árvore, a igreja e outros), algunssemi-invariáveis que servem de ponto dereferência. Denominamos esses objetos dessaforma porque apesar desses elementos nãomodificarem-se diariamente, num certo intervalode tempo tal fato pode ocorrer, ao contrário doSol e outros pontos de referência astronômicos,que não variam numa escala de tempo curta, oucuja variação ocorre num intervalo de centenase até milhões de anos. No caso desse tipo delocalização e orientação, faz-se necessário autilização somente das noções de espaço quedesenvolvemos desde o nosso nascimento e queforam seriamente estudadas por Piaget eInhelder13 .

O problema se torna maior para o usuário naterceira situação citada acima, pois o sujeito devefazer diversas idas e vindas do real, para arepresentação e desta para o primeiro. Deveadequar seus sistemas de orientação elocalização, ao sistema do mapa que é geográfico,e realizar as idas e vindas do real para a sua

14 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

representação, até que consiga orientar-se e/oulocalizar-se no espaço.

Na verdade, é nessa situação que o alunodeveria “amalgamar”, relacionar, fundir os doistipos de representações de orientação elocalização (cotidianas e geográficas). Noentanto, como freqüentemente vemos, o ensinode Geografia dificilmente chega nesse nível.Regra geral, o que se observa é o professorenfatizar ora uma, ora outra atividade, nãoocorrendo, portanto, a necessária fusão entreambas.

A ruptura entre as perspectivas do observadornos espaços de orientação e localização acimacitados, explica o fato de que muitas vezes osalunos não conseguem distinguir a direção daslatitudes e longitudes, ou nem sabem que ambastem direções opostas, exatamente para que sepossa localizar algum ponto na Terra, (alocalização através de coordenadas geográficasimplica, necessariamente, na existência deperpendiculares), ou pior, não sabem que alocalização de um ponto depende de duascoordenadas: latitude e longitude14 .

O processo de ensino e aprendizagem denoções de orientação e localização geográficas,quando ocorre, se dá nos moldes acimaesboçados, ou seja, a relação que o professor temcom o “saber a ser ensinado” e a relação que oaluno tem com o “saber a ser aprendido” não édas melhores. Ambos se relacionam com esseconhecimento, como se ele somente existissepara o professor avaliar o aluno e, para o alunoser avaliado pelo professor.

Em relação ao trabalho com os conceitos deparalelos/meridianos e latitude/longitude,verifica-se também o mesmo procedimento deensino. Em outras palavras, esses conhecimentostambém são trabalhados, regra geral, de formaestanque do restante do conteúdo “geográfico”,ou em outras palavras, os conhecimentosconsiderados como geográficos são trabalhadosseparadamente das noções, habilidades econceitos de orientação e localização geográficas.

Tendo em vista o que foi exposto, é mais doque provável que o aluno manterá as mesmasrelações com esse saber que o professor.Depreende-se então que, na verdade, o alunopoderá reproduzir a relação que o docentemantém com o saber a ser ensinado.

Nesse sentido, podemos afirmar que o ensinoé sempre muito eficiente. O aluno sempreaprende, no entanto, enquanto educadores

devemos nos questionar sobre a relevância doque foi aprendido. Muitas vezes, em relação àsnoções, habilidades e conceitos de orientação elocalização geográficas, o aluno aprende com oprofessor que esses conhecimentos não têmimportância nenhuma, ou que eles nunca irãoutilizá-los ao longo da sua passagem na escola, anão ser nos dias da prova.

Na verdade, como todo objeto de reflexãogeográfico pode ser localizado e orientado, todosos estudos da Geografia deveriam partir daorientação e localização geográficas dasdiferentes territorialidades produzidas pelohomem. Esse, poderia ser o ponto de partida,para o estabelecimento de raciocínios, para oentendimento do espaço geográfico.

A importância da aprendizagem dessesconhecimentos, se dá na medida em que elestambém vão auxiliar o aluno na leitura eentendimento dos mapas, que representam asterritorializações produzidas pelo homem.

O ENSINO E APRENDIZAGEM DASNOÇÕES, HABILIDADES E CONCEITOSDE ORIENTAÇÃO E LOCALIZAÇÃOGEOGRÁFICAS: O COTIDIANO ESCOLARREVISITADO À PARTIR DE ALGUNSPONTOS DE VISTA

Afirmamos anteriormente, que o trabalhocom mapas em classe, nas aulas de Geografia,resume-se ao uso dos mesmos como meio deorientação e localização geográficas. Em funçãodisso, fizemos um breve esboço de como se dá,regra geral, o ensino e aprendizagem das noções,habilidades e conceitos de orientação elocalização no cotidiano escolar.

Tendo em vista as práticas retratadasanteriormente, iremos tentar revisitá-las, a partirde algumas teorias que procuram refletir maisamplamente sobre a questão do processo deensino e aprendizagem.

A partir da análise da produção de trabalhosna área de Educação e ensino de Geografia,observamos ao longo da nossa reflexão queparece existir um fosso entre as metodologias deensino propriamente ditas, e o restante daprodução científica na área. Na verdade, asprimeiras parecem, grosso modo, não dar contadas dificuldades de ensino e aprendizagem, pelasquais passam os professores e alunos. Isso se deveao entendimento dicotomizado de dois processos

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 15

que não devem ser entendidos separadamente:ensino e aprendizagem. Entendemos que osmesmos estão intimamente ligados, pois somentepoderemos propor formas de ensino se tivermosclareza das dificuldades de ensino eaprendizagem que professores e alunos passamnesse processo.

É preciso salientar que existem pesquisas quese preocupam com um ou outro fenômeno, ouseja, ou se preocupam somente com a questãoda aprendizagem, ou, num outro extremo, sepreocupam somente com a questão do ensino.Ao nosso ver, dar ênfase somente a um ou outrocomponente do processo de ensino eaprendizagem não proporciona a resolução dosproblemas de aprendizagem dos alunos. Muitasvezes, esse suposto problema materializa-se emfunção da dificuldade de ensino do professor e/ou constitui-se por causa de dificuldades deaprendizagem dos alunos. Por isso, é necessáriopara tentar entender o processo de ensino eaprendizagem de conteúdos específicos, olharpara o problema na sua totalidade, ou seja,precisamos considerar os três elementos queparticipam do processo de ensino eaprendizagem: professor, aluno e conhecimento(a ser ensinado, pelo primeiro e, a ser aprendidopelo segundo).

Segundo Johsua e Dupin15 :

“La structure didactique est en effetconstituée non de trois pôles superposés – leprofesseur, l’élève, le savoir – mais desrelations ternaires entretenues par ces troispôles, lesquelles ne se manifestent qu’ensituation d’enseignement.”16

O que tem ocorrido ultimamente, quecontraria o que os autores afirmaram acima noque se refere ao ensino de Geografia, é quealguns pesquisadores se ocupam em elaborarpropostas de trabalho para determinadosconteúdos e outros preocupam-se somente coma questão da aprendizagem. Essa atitude, a nossover, pode acabar provocando a efetivação depráticas de ensino muito pouco eficientes.

Ensino, aprendizagem e saber fazem parte deuma totalidade que, se analisadasseparadamente, podem acabar materializando-se em práticas pedagógicas inócuas pois, muitasvezes, o professor utiliza determinadas técnicasou formas de ensino sem saber, na verdade, quais

são as dificuldades efetivas que seus alunospossuem para aprender determinado assunto.

Na verdade, quando o professor nãoconsidera as dificuldades dos alunos no processode ensino, está negando o fato de que se constróiconhecimentos novos ou, se aprende sempre apartir das representações prévias que os últimostêm. Segundo Santos17 :

“... é com estas representações espontâneasque a criança inicia a aprendizagem formal.”

Nota-se no caso do ensino de Geografia, umcerto descaso em relação à essas representações.Em função disso, é importante explicitarmos umconceito de representação que nos auxilie noentendimento daquelas elaboradas pelos alunos.

Santos18 cita De Ketelle, ao explicitar seuentendimento sobre o conceito de representaçãoe que tomaremos emprestado:

“ ... entendemos as representações comosínteses mentais de informações, mais oumenos carregadas afectivamente, que a pessoaconstrói, mais ou menos conscientemente, apartir do que ela própria é, do que foi e doque projeta e guia seu comportamento. São,pois, visões de mundo e visões de nós própriosinseridos nesse mundo, construídas emfunção da dialética bipolar sujeito/objeto. Defacto pressupomos que a realidade é sempreapercebida de forma pessoal pelo sujeitosendo essa percepção dependente dasrepresentações preexistentes em cada um.Assim, a representação que temos do mundoé sempre subjetiva. É como se fôssemos umespelho onde se constrói uma representaçãoda realidade que tem a ver com essa realidademas também com o espelho onde ela seprojeta. Por conseguinte, a mesma realidadeestá na origem de múltiplas representaçõesdiferentes.”

Pela exposição acima, pode-se afirmar que seo professor não tiver noção das representaçõesdos alunos, no que se refere ao assunto a sertrabalhado em sala de aula, dificilmente poderápropor estratégias de ensino eficientes. O quepode acabar fazendo com que, ao final doprocesso, o docente não consiga repensar a suaprática pedagógica, culpando a metodologiautilizada e/ou, na pior das hipóteses, este pode

16 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

acabar taxando seus alunos de despreparados,imaturos, ou incapazes para a aprendizagem dedeterminados conteúdos.

Atualmente, alguns autores têm trabalhadocom o conceito de contrato didático19 . Segundoos mesmos, este estabelece-se no processo deensino e aprendizagem, e distribui papéisdiferentes a professores e alunos em relação aum objeto de conhecimento. Parte-se dopressuposto de que esses sujeitos possuem doisregistros epistemológicos diferentes sobre oconhecimento, que vão distinguir os seus papéisno contrato didático. É a existência do mesmoque permite que essa estrutura didática funcionede maneira equilibrada.

Brousseau citado por Koch20 , analisou trêstipos de contratos didáticos que caracterizam trêstipos de relações entre os elementos : professor,aluno e saber. Observamos que, em geral, sãoesses três tipos de contratos que se materializamna sala de aula.

No primeiro tipo de relação:

“... o professor detém o monopólio doconhecimento, escolhe o que e como“transmitir” aos seus alunos, em geralpartindo de definições e/ou explicações edepois propondo problemas. Para ele, todossabem o mesmo, isto é, nada sobre o assuntoque vai tratar. (...) ... o erro aparece aqui nãocomo inerente ao processo (e portanto fontede conhecimentos), mas como desvio deaprendizagem.”

Num segundo tipo de relação, o professoracredita que é o aluno que aprende e ele,enquanto docente, não ensina nada. A partirdessa concepção há uma valorização dos acertos,e não pode ocorrer a intervenção docente nacapacidade de alguém aprender. Isso mantém osalunos um tempo maior com suas hipótesesparciais ou equivocadas, pois fica a cargo deleou do coletivo, a busca ou superação de umestado de saber para outro. Podemos verificar aexistência desse tipo de contrato, em geral, nosentendimentos equivocados de algunseducadores que acreditam que o professor nãoensina, mas aprende com o aluno.

No terceiro tipo de relação:

“O professor planeja, reflete, decide o quepropor a cada grupo ou a cada aluno, ou ao

grande grupo. Escolhe situações desafiadoras(...) adequadas a cada grupo e às crianças queo compõem. Prevê e imagina soluçõespossíveis das crianças aos problemas quepossam surgir e pensa já em estratégias enovas questões que possam desafiá-las ouencaminhar soluções.”

Pelo que foi explicitado acima, observamosque o terceiro tipo de relação é o que seria idealpara que o processo de ensino e aprendizagemse efetivasse. Os dois primeiros tipos, regra geral,correspondem ao que ocorre atualmente naprática docente, situam-se num posicionamentoque vai do autoritarismo a uma certa liberdadeincondicional. Acreditamos que apesar do últimocontrato ser o mais adequado, do ponto de vistada concepção de aprendizagem que defendemos,podemos afirmar que esse, é quase inexistentenas nossas escolas dos diferentes níveis de ensino.

No último contrato, aprender e ensinar sãoações diferenciadas, e nela estão inseridas pelomenos dois sujeitos que participam desseprocesso: aquele que ensina (professor) e aqueleque aprende (aluno). Aprender nessa concepção,significa elaborar conhecimentos como respostapessoal a uma pergunta. Esses conhecimentos,devem funcionar ou ser modificados de acordocom as exigências do meio. Ensinar por outrolado, significa executar diferentes papéis paraconduzir uma situação didática de ensino21 .

O saber científico, que é ensinado na escolaao contrário do que muitos educadores pensam,deve necessariamente ser modificado(transposition didactique) de saber erudito devepassar a saber a ser ensinado e daí a ser aprendidopelo aluno, como afirmam Johsua e Dupin22 :

“On peut estimer que la transpositiondidactique concerne dans un premier tempsles transformations suivantes:→ objet de savoir → objet à enseigner →objetd’enseignement “23

Na verdade, o que os autores queriamsalientar com essa afirmação é que numa situaçãopedagógica (de ensino e aprendizagem) sedistinguem várias representações de ciência, emoutras palavras, em torno de um mesmo saberexistem representações diferenciadas dediferentes atores sociais que, segundo Santos24 ,são as seguintes:

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 17

“Ciência do cientista: representaçõesconsensuais da comunidade científica, ou seja,representações que o cientista tem da ciênciaque produz;Ciência do professor: representações que oprofessor tem da ciência curricular que ensina;Ciência da criança: representações, mais oumenos imediatas, que a criança tem darealidade científica e tecnológica que a cerca;Ciência do aluno: representações que o alunoadquire (readquire) da ciência do cientistaatravés da aprendizagem escolar.”

Observa-se que as representações acimaexplicitadas trazem, a priori, a diferenciação dosujeito enquanto aluno e criança. O primeiro éum sujeito confrontado com um projetopedagógico, o segundo é um sujeito psicológico.No entanto, pode-se afirmar que essa separaçãoé apenas momentânea, pois a autora afirma emoutro ponto da sua obra que:

“... a criança enquanto sujeito psicológico e oaluno enquanto sujeito epistemológico nãofazem parte de conjuntos disjuntos. Assim,as representações construídas no dia-a-dia dacriança – passo obrigatório na construção doconhecimento – são muitas vezes obstáculo aessa mesma criança, enquanto aluno deciências, para que se aproprie deconhecimentos científicos.”25

Depreende-se do exposto acima que éimportante, num primeiro momento, a separaçãoda criança (sujeito psicológico) e do aluno (sujeitoepistêmico), pois segundo a autora, algumasrepresentações que construímos no nossocotidiano constituem-se em obstáculo para aaprendizagem de conhecimentos científicos.

No que se refere às dificuldades deaprendizagem e portanto, de ensino dosconceitos, noções e habilidades de orientação elocalização geográficas, e ao uso do mapa,poderíamos afirmar que existe uma série defatores que poderiam ser considerados comoobstáculos à aprendizagem:– Falta de observação dos astros, do céu em geral

pela criança urbana, ou seja, a maioria dasatividades urbanas, ao contrário daquelasdenominadas de rurais, não exigem do sujeitoa elas ligado a observação ou o conhecimento,mesmo em nível de senso comum, dos

acontecimentos que ocorrem nos outroselementos da natureza, tais como: direção emque o Sol “aparece” ao observador situado noPlaneta Terra, inclinação dos raios solares deforma diferenciada ao longo das estações do ano;

– Possibilidade de entrar em contato com alguém quepoderia fornecer informações oralmente, e/oupossibilidade de se orientar e se localizar através deelementos semi-invariáveis encontrados na áreaurbana (placas, árvores, viadutos, pontes, prédios,lojas, praças, igrejas e outros);

– Falta de acesso aos mapas em geral, em funçãodo baixo nível de renda de boa parte dos nossosalunos da rede pública de ensino;

– Inexistência de possibilidades de mobilidadehorizontal, ou seja, em função também dobaixo nível de renda, nossos alunos não têmpossibilidade de vivenciar experiências que oslevem a sentir, na sua vida cotidiana, anecessidade de usar o mapa enquanto meio deorientação e localização geográficas;

– Dificuldade de relativização das noções, poispara nos orientarmos na realidade, no mapa ena realidade com o mapa, necessitamos denoções de orientação e localização geográficasrelativas. Muitos alunos não conseguementender que o estado de São Paulo podesituar-se ao sul (do estado de Minas Gerais),ao norte (do estado do Paraná), no sudeste (doBrasil), ao mesmo tempo. Além disso, paraindicar a direção (rumo) de outros países, dolocal onde estou, preciso ter agilidade ao usaressas relações, pois os Estados Unidos podeestar à direita, esquerda, ou em qualquer outradireção dependendo da posição do sujeito emrelação ao referido país;

– Dificuldade no estabelecimento da relaçãotodo-partes, pois como muitos alunos não têmrepresentações sobre os vários municípios eestados existentes em seu país e, numa outraescala, também não têm representações doscontinentes e países existentes no mundo,tendem a construir uma noção dos mesmos dejustaposição26 ;

– Impossibilidade de visualização, a partir do localem que vive, com seus próprios sensores físicos(olhos), áreas ou superfícies da Terra muitoextensas, o que dificulta a elaboração de imagensmentais27 do planeta, dos continentes; a imagemmental dos mesmos deve ser construída portanto,na escola, em contato com mapas de diferentesescalas e temas.

18 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

A nosso ver, na vida cotidiana, construímosmuitos conhecimentos, ou nos é exigido outrosconhecimentos que tendem a obstaculizar o usode mapas e coordenadas geográficas, enquantorepresentações que nos propiciariam umdeterminado entendimento da realidade.

É preciso agora, explicitar um conceitoextremamente importante para a concepção deensino que estamos tentando desvelar, que é o deobstáculo epistemológico. Bachelard no seu livro“A formação do espírito científico”28 afirma que:

“Os professores de ciências imaginam que oespírito começa como na aula, que é semprepossível reconstruir uma cultura falha pelarepetição da lição, que se pode fazer entenderuma demonstração repetindo-a ponto porponto. Não levam em conta que osadolescentes entram na aula de física comconhecimentos empíricos já constituídos: nãose trata, portanto, de adquirir uma culturaexperimental, mas sim de mudar de culturaexperimental, de derrubar os obstáculos jásedimentados pela vida cotidiana.”

Observa-se que o conceito de obstáculoepistemológico pode nos auxiliar a repensar aspráticas escolares cotidianas, pois o professormuitas vezes não consegue compreender porqueseu aluno não aprendeu o que lhe foi ensinado,ou não entende como o aluno pôde se apropriardo conhecimento como demonstrou em alguminstrumento de avaliação.

É preciso considerar, portanto, asrepresentações cotidianas dos alunos, para quese possa apreender e/ou entender quais são osobstáculos que dificultam a aprendizagem dedeterminado conhecimento. Neste sentido, trata-se também de rever o entendimento dosignificado que o “erro” do aluno tem para oprofessor. Segundo Koch29 :

“O “erro” fator importante para o professordescobrir que hipóteses faz(em) seu(s) aluno(s),aparece aqui não como inerente ao processo (eportanto fonte de conhecimentos), mas comodesvio de aprendizagem.”

Percebe-se que o erro ainda é concebido peloprofessor e pela escola, não como umarepresentação do aluno a ser re-trabalhada, re-arranjada, mas como um desvio de

aprendizagem. Faz-se “tábula rasa” do aluno,como se ele nunca tivesse ouvido falar sobredeterminado conhecimento para,posteriormente, cobrar em provas e trabalhos aaprendizagem que supostamente o professor lheoutorgou em classe.

As razões que podem explicar esse fato sãomuitas: má formação profissional, saláriosaviltados, relações autoritárias presentes naestrutura de ensino, falta de incentivo naimplementação de pesquisas na área deeducação, falta de visão crítica em relação aoprocesso de ensino e aprendizagem, entre outros.

Como afirmamos anteriormente, apesar depouco freqüente na rede de ensino, o terceirocontrato, já explicitado anteriormente, é o queexige um professor que agregue dentro de sicompetência técnica, que, em uma concepçãoampla, se desdobra em compromisso políticocom uma educação de qualidade.

A orientação e localização geográficas sãoconhecimentos que devem ser aprendidos pelosseres humanos na escola e que não sedesenvolvem, espontaneamente, como as noçõesde localização e orientação no espaço vivido, queforam estudadas por Piaget e Inhelder. A esserespeito é importante lembrar que a humanidadelevou séculos para a estruturação desseconhecimento, pois houve a necessidade dodesenvolvimento de uma série de condiçõesmateriais necessárias para a sua construção30 .Além disso, nem eram todas as pessoas quetinham acesso a esse tipo de conhecimento,apenas os estudiosos e exploradores da época éque entraram em contato com o mesmo, ohomem comum, ou seja, aquele que nãonecessitava desses conhecimentos para suasobrevivência não teve acesso ou este era restrito.

O que pudemos verificar após as leituras,principalmente dos estudos presentes na obra dePiaget e Inhelder31 “A representação do espaçona criança”, é que eles nos auxiliam para oentendimento da forma como o sujeito se orientae se localiza no seu espaço vivido, como o mesmovai construindo “espontaneamente”32 , noçõesespaciais que o auxiliarão nas percepções erepresentações das ações e dos objetos . Issoporque eles estavam preocupados com aestruturação da representação do espaço, ou coma questão de como se dá a evolução espontâneadas noções e representações do espaço no serhumano, na sua relação com o meio físico e social.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 19

É preciso notar que, para os autores, a ação derepresentar consiste em evocar objetos em suaausência ou duplicar a percepção em suapresença. Para que isso ocorra, faz-se necessárioa diferenciação e coordenação entre significantese significados. Por exemplo, posso evocar a idéiade cadeira ou sua imagem, na sua ausência, e/ouna sua presença posso observar a sua constituição,se é de madeira ou outro material qualquer, quaisoutros objetos foram utilizados para a suafabricação. Consigo estabelecer essespensamentos pois já sei diferenciar o objeto dapalavra que o representa. Melhor explicando,com início da estruturação da representação eda linguagem, aprendo que existem símbolos querepresentam o objeto na sua ausência, esses sãoos signos que são símbolos coletivos e arbitrários,que podem ser utilizados para nos referirmos aoobjeto do qual estamos falando. No caso darepresentação que se refere à construção danoção de espaço, ou seja, no caso darepresentação espacial, Piaget diz que ela é umaação interiorizada e não simplesmente aimaginação de um dado exterior qualquer.

Do exposto acima, pode-se observar umacerta diferença entre a concepção derepresentação desse último, daquela dos autoresaos quais nos referimos e que trabalham com oensino. Na verdade, as concepções derepresentação apesar de serem próximas, cadauma delas possui sua especificidade pois o focode análise da psicologia piagetiana é o sujeitoepistêmico e o de Santos, por exemplo, se refereao sujeito epistêmico, mas numa relaçãopedagógica de ensino.

O núcleo de preocupação central daspesquisas de Piaget foi, como diz Castorina33 :

“... como se passa de um estado de menorconhecimento para outro de maiorconhecimento. Isto é, se um sujeito em umasituação determinada não pode resolver certosproblemas e depois de um certo tempo conseguefazer isso, a questão é estabelecer os mecanismosresponsáveis por tal mudança entre o “não poderfazer” (que do ponto de vista do sujeito é outropoder fazer) e o “poder fazer”...”

Verifica-se que a afirmação acima nos propiciaelementos para a compreensão dodesenvolvimento cognitivo, do sujeitoepistêmico, que interage com o meio físico e

social. Não há a preocupação com o aluno, oucom os conhecimentos que os mesmos aprendemna escola. Na verdade Piaget, procura através do“Método Clínico”34 verificar quais são osmecanismos do pensamento responsáveis pelamudança de comportamento da criança, “do nãopoder fazer” para o “poder fazer”. Observamosuma preocupação com a lógica do pensamentoda criança, ou seja, uma preocupação com ascaracterísticas de cada fase do pensamento quenorteia e diferencia a atitude de “não poderfazer” com a outra de “poder fazer”.

Em função do que foi exposto anteriormente,é preciso que se tenha claro que a transposiçãodireta das teorias piagetianas para a proposiçãode conteúdos para o ensino de Geografia, comovem ocorrendo, pode resultar em açõespedagógicas cuja eficiência no que se refere aoentendimento geográfico da realidade podem serquestionadas. Na verdade, não estamosquerendo afirmar que os entendimentospiagetianos sobre o desenvolvimento cognitivodo sujeito não auxiliam o fazer pedagógico,apenas estamos querendo problematizar umaatitude, que vem se tornando comum na redeoficial de ensino, principalmente nas sériesiniciais, que é a de ensinar noções e habilidadesespaciais aos alunos, sem considerar asrepresentações já desenvolvidas pelos mesmos.

Lerner35 , ao citar Piaget, para mostrar que opróprio autor tinha consciência da limitação desuas pesquisas no que se refere ao aspecto citadoacima, afirma o seguinte:

“Pelo seu lado, Piaget (1974) estava tãoconvencido de que a missão da escola écomunicar o saber científico e os produtosculturais em geral, que lamentava não podercontribuir com dados psicológicos úteis parao ensino dos diferentes saberes específicos,incitando a avançar nesse sentido...”

Verifica-se pela afirmação da autora, que opróprio Piaget tinha consciência de que seusestudos sobre o sujeito epistêmico não poderiamauxiliar, ou auxiliavam muito pouco a pesquisana área de ensino e aprendizagem, e que este éum campo de estudos que deveria ser tambémpesquisado.

Boa parte dos profissionais, que buscampossibilidades de contribuições da teoriapiagetiana, para o ensino (conhecidos pelos que

20 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

criticam esse posicionamento comoaplicacionistas), tentam converter o estudo dasestruturas intelectuais em objetivos de ensino.Um exemplo disso, no caso do ensino eaprendizagem das noções de latitude e longitude,no ensino fundamental, é o trabalho de Goes36 ,que elaborou tarefas operatórias para apreparação da construção das noções de latitudee longitude, com base nas noções de referencial,direção e distância. A autora parte do pressupostode que o professor deve, antes de ensinar osconhecimentos referentes à latitude e longitude,trabalhar com tarefas operatórias (declassificação, seriação, aprendizagem de relaçõesespaciais topológicas tais como em cima,embaixo, atrás, em frente, direita, esquerda), queirão preparar o aluno para melhor aprenderconhecimentos geográficos. Verifica-se portanto,que esse entendimento, coloca enquanto objetivoe conteúdo do ensino de Geografia, apenas otrabalho com algumas estruturas intelectuais quepermitiriam uma melhor aprendizagem do saberensinado na escola.

Sobre isso, é necessário lembrar que muitosalunos, conseguem executar tarefas operatóriasem diferentes níveis, ou seja, não é porque oaluno não consegue trabalhar com eixos decoordenadas geográficas (latitude e longitude)que ele não utiliza, ou tem dificuldade em utilizardois ou mais eixos de coordenadas para arealização de tarefas cotidianas. Pelo contrário,o aluno pode conseguir executar ações no seucotidiano, como saber jogar Batalha Naval, masquando for trabalhar com eixos de coordenadas,aplicados a determinados conteúdos, poderá nãoconseguir fazê-lo. O problema então é descobrirquais são os obstáculos epistemológicos quefazem com que esse aluno tenha dificuldade emlidar com determinado saber e, não estabelecertarefas operatórias com o objetivo de que asdificuldades sejam sanadas. Muitas vezes, apesarda realização das tarefas operatórias, o aluno nãoconsegue vencer a barreira da situação de nãoaprendizagem.

Essas posturas didáticas conhecidas como“aplicacionistas” atualmente têm sido criticadaspor dois motivos principais:

“... tanto porque desvirtuam o sentido daspesquisas psicogenéticas quanto porquedesconhecem a natureza da instituiçãoescolar.

(...) ao deduzir objetivos educacionais dapsicologia, esquecemo-nos de que a escolaestá inserida numa sociedade e que asfinalidades da educação só podem emanar darealidade social.” (Lerner37 ).

Tendo em vista as considerações acima, éimportante deixar claro que nossa reflexão nãoprocura propor nenhuma atividade de ensino eaprendizagem, pelo contrário, nos propomosapenas a fornecer subsídios para os docenteselaborem suas próprias reflexões sobre a questão.

É preciso reconhecer que, apesar de sepreocuparem com o sujeito em diferentes níveis,a psicologia genética (sujeito epistêmico) e adidática (aluno), têm pontos em comum, poisambas se ocupam da transformação doconhecimento. A primeira, preocupando-se comas estruturas lógicas que vão se desenvolvendona relação do sujeito com aquilo quedenominamos de meio físico e social e, asegunda, com a aquisição de saberes socialmenteconstruídos, cujo não acesso, pode implicar numamarginalização ainda maior dos alunos das classesmenos favorecidas, pois estes, quase não têmpossibilidade de entrar em contato com essesaber a não ser na escola. Pode-se depreenderentão que os referenciais teóricos, ainda quepossuindo preocupações diferentes, não são tãoestanques assim, pois ambos se preocupam coma questão da transformação do conhecimento.

É importante deixar claro que as teorias dePiaget sobre a representação do espaço na criançanos auxiliam a entender, por exemplo, a ausênciade alguma operação em nível de desenvolvimentocognitivo que pudesse estar influenciando naaprendizagem dos alunos. Um aluno que nãoconsegue utilizar um eixo de coordenadas delatitude e longitude pode ter essa dificuldade porvários motivos, inclusive pela falta de domíniodessa operação em relação a conteúdosespecíficos de localização.

No que se refere à aprendizagem das noções,habilidades e conceitos de orientação elocalização geográficas, especificamente, existempoucos autores que trabalham com a questão.Como já citamos anteriormente, Góes explicitaas noções que poderiam ser trabalhadas em salade aula, para facilitar o ensino e/ou prepararestruturas cognitivas, para a aprendizagem deconceitos de latitude e longitude.

Em termos de referências bibliográficas no

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 21

Brasil, sobre o assunto da nossa reflexão,encontramos na verdade um conjunto demateriais (Propostas de ensino, livros didáticos,livros de apoio à prática pedagógica docente) compropostas já elaboradas de como ensinar o alunoa se orientar e localizar geograficamente.

Regra geral, essas propostas seguem umamesma lógica que é a de ensinar os alunos a seorientarem e depois, através de algumasatividades de exercício operatórias (BatalhaNaval para o uso de um eixo de coordenadas,por exemplo), procuram dar dicas de comoensinar os alunos a fazer localizações a partir douso das latitudes e longitudes.

No que se refere a forma de apresentaçãodesse assunto, nos livros didáticos de Geografiaem geral, vale a pena tomar emprestada asobservações de Goes38 :

“Os livros didáticos analisados começam atrabalhar o emprego de pontos de referênciaa partir de observações do Sol. Nas primeirasséries do primeiro grau, é iniciado o ensinodas direções cardeais através da observaçãodo nascente. Até mesmo em livros destinadosà segunda série aparecem ilustrações em queum menino de braços abertos tem à sua direitao leste, à esquerda, o oeste, etc.Estabelecidas as direções, passa-se às plantase mapas. A amplitude do espaço representadoaumenta gradativamente, da casa e da sala-de-aula até o mapa múndi. Na quinta sériedo primeiro grau, por volta dos onze anos, oaluno entra em contato com representaçõesesféricas da Terra.”

Observa-se pelos comentários da autora que,regra geral, realmente é isso o que observamosnos livros didáticos, ou o que se faz para ensinarnoções de orientação e localização geográficas,quando se trabalha com as mesmas. Numprimeiro momento, se ensina as noções deorientação geográficas, utilizando uma figura quenormalmente, traz um menino de braços abertosapontando a sua direita para o Sol ou para adireção onde ele nasce (nascente ou leste), a suaesquerda para a direção onde ele se põe (poenteou oeste). Costuma-se falar para os alunos, apartir dessas posições anteriores, que tudo o queestá a sua frente será norte e, tudo que estiveratrás, será sul. É importante salientar que essavisão do movimento do invariante (Sol), que nas

figuras sempre está à direita do observador, podepropiciar certas confusões na aprendizagem dosalunos. Melhor explicando, a visão das figurasque o aluno vê nos livros apontando para adireita, pode fazer com que ele sub-entenda, casoo professor se descuide desse detalhe, que o lestevai estar sempre à direita do observador.

Como a maioria dos escritos que encontramossobre a aprendizagem das noções de orientaçãoe localização geográficas, segue mais ou menosas orientações descritas acima, resolvemos tomá-los como exemplos de ensino aprendizagem, oude exemplos das relações dos alunos eprofessores, com esse tipo específico deconhecimento.

Na verdade, em função de questões que nãonos cabe entrar em detalhe no momento, aprática pedagógica docente foi se tornando cadavez mais dependente do livro didático, por isso,via de regra, o primeiro se torna o efetivador daspráticas e conteúdos trabalhados em sala de aula.Poderíamos até afirmar que, na maioria das vezes,o livro didático é o responsável pelos conteúdosescolhidos para o trabalho em classe, bem como dametodologia de ensino adotada para aaprendizagem, como já observamos anteriormente.

Em função disso, verificamos que o trabalhocom os conhecimentos referentes a orientação elocalização geográficas, fazem parte somente dasprimeiras semanas de estudo, paraposteriormente serem substituídos por outrosconteúdos. Verifica-se então que orientação elocalização geográficas são conteúdostrabalhados separadamente, ou de formaestanque de outros fenômenos consideradosgeográficos.

Não é preciso entrar mais em detalhes sobreo que encontramos nos livros e manuaisdidáticos, acerca do ensino dos conhecimentosacima citados. Essa tarefa foi muito bem realizadaanteriormente por Goez. Apenas poderíamosdizer que esses materiais nos serviram comoelementos para refletir a relação entre professor,aluno e saber, no contexto da aprendizagem desseconteúdo em particular.

Observamos que, em geral, há uma rupturamuito grande dos livros de metodologia, com osde Educação em geral. Os primeiros, semprepropondo atividades que não consideram asrepresentações dos alunos e, portanto, investindoem contratos didáticos pouco eficientes, e ossegundos, refletindo sobre uma concepção de

22 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

educação ideal, mas sem contribuir para aquestão do processo de ensino e aprendizagem.Pudemos verificar que o caminho mais profícuopara pensar o referido processo na área deEducação, ou em propostas de ensino eficazes,é aquele de interface entre as ciências cognitivas,a epistemologia, a teoria da comunicação eobviamente, a Geografia.

Ensinar e aprender são ações a serempensadas, refletidas e conduzidas peloespecialista na área de ensino. Para isso, o mesmodeve ter a habilidade, de pelo menos, proporestratégias de ensino do conhecimento científico,que considerem o saber do aluno e/ou suasrepresentações, o professor precisa saber tambémquais são os obstáculos epistemológicos a seremvencidos, no que se refere à aprendizagem dedeterminados conteúdos.

A dificuldade do saber fazer pedagógico, anosso ver, é grande em função das poucaspesquisas na área de ensino, que compartilhamda concepção que ora discutimos. Apesar disso,é possível, fazer a transposição de teorias ereflexões produzidas em diversas áreas doconhecimento, para entender questões referentesao ensino de Geografia, o que possibilitaria aelaboração de novos entendimentos e debates eportanto, o enriquecimento da diversidade deanálises e propostas de fazeres pedagógicos quesão elementos necessários quando se pensa emqualidade de ensino.

NOTAS

1 MASSON, M., Representations graphiques etgeographie.

2 "... uma estática descrevendo a ordem domundo, a outra dinâmica, produzindo novossaberes sobre um mundo não diretamentelegível, visão que dá sentido ao que não éobtido na primeira impressão.”

3 MASSON, M., Representations graphiques etgeographie, p. 159.

4 A primeira favorece encaminhamentos didáticostradicionais do tipo essencialmente indutivo,centrados numa aquisição de conteúdos factuaise de habilidades. A segunda privilegia raciocínioshipotético dedutivos e aquisições mais conceituaisou se interessa mais em processos explicativos eestão ligados a atitudes pedagógicas centradas naconstrução do saber pelos alunos.

5 MASSON, M., Representations graphiques etgeographie, p. 174.

6 Sobre a construção da noção do espaço nacriança consultar: PIAGET, J. e INHELDER,B., A representação do espaço na criança.

7 FERREIRA, A. B. de H., Dicionário Auréliobásico da língua portuguesa, p. 399-469 passim.

8 OLIVEIRA, C., Dicionário Cartográfico, p.314-438 passim.

9 Como o dicionário traz nove sinônimos, todoseles com explicações; optamos por transcreversomente alguns, ou seja, aqueles que nos seriamúteis para diferenciar, orientação e localizaçãogeográficas, de orientação e localização cotidianas.

10 FREITAG, B. e outros., O livro didático emquestão.

11 FREITAG, B. e outros., O livro didático emquestão, p. 111.

12 Santos, D., Conteúdo e objetivo pedagógicono ensino da Geografia.

13 Sobre o desenvolvimento das noções de espaçona criança ver: PIAGET, J. e INHELDER, B.,A representação do espaço na criança.

14 Quando se lê sobre as dificuldades dos alunosa impressão que se tem é que elas só ocorremno Ensino Fundamental e Médio, é precisosalientar que mesmo os alunos da graduaçãotem essa dificuldade. Muitos deles não sabemque para se localizar um ponto na superfícieterrestre é preciso de duas coordenadas comsentidos diferentes (norte/sul, leste/oeste),outros alunos imaginam que o leste acompanhao deslocamento da sua mão direita, enfimpoderíamos dar inúmeros outros exemplos comos quais nos deparamos ao longo da nossa práticapedagógica, que expressa as dificuldades deaprendizagem desses conhecimentos por alunosde diferentes níveis de ensino.

15 JOHSUA, S. e DUPIN, J., Introduction à ladidactique des sciences et des mathématiques,p. 249.

16 A estrutura didática é com efeito constituídanão de três pólos superpostos – o professor, oaluno, o saber – mas de relações ternáriasmantidas pelos mesmos, os quais manifestam-se somente em situação de ensino.

17 SANTOS, M. E. V. M. dos., Mudançaconceptual na sala de aula: um desafiopedagógico, p. 22.

18 SANTOS, M. E. V. M. dos., Mudançaconceptual na sala de aula: um desafiopedagógico, p. 19.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000 23

19 Sobre esse assunto ver JOHSUA, S. e DUPIN,J., Introduction à la didactique des sciences etdes mathématiques. ; BROUSSEAU, G., Osdiferentes papéis do professor.

20 KOCH, M. C., O contrato didático numaproposta pós-piagetiana para a construção donúmero, p. 78-80 passim.

21 Sobre esse assunto ver: BROUSSEAU, G., Osdiferentes papéis do professor. In: SAIZ, C. P.I., Didática na matemática: reflexõespsicopedagógicas. Nesse texto, o autor afirmaque o professor é o condutor da ação didática,dentro da qual ele exerce inúmeros papéis.

22 JOHSUA, S. e DUPIN, J., Introduction à ladidactique des sciences et des mathématiques,p. 194.

23 Nós podemos estimar que a transposiçãodidática se refere, num primeiro momento, àstransformações seguintes: → objeto de saber→objeto a ensinar → objeto de ensino.

24 SANTOS, M. E. V. M. dos., Mudançaconceptual na sala de aula: um desafiopedagógico, p. 20.

25 SANTOS, M. E. V. M. dos., Mudançaconceptual na sala de aula: um desafiopedagógico, p. 41.

26 Segundo Piaget, em sua obra “O raciocínio dacriança”, ao pesquisar a noção de país, afirmaque num primeiro estágio da mesma, a criançanão tem noção do país e das cidades que ela ouvefalar, por isso justapõe essas diferentes instânciasterritoriais, como se fossem a mesma coisa.

27 Segundo Piaget e Inhelder, na sua obra “Arepresentação do espaço na criança”, a imagemé uma imitação motora, é uma acomodação daação própria do sujeito sobre o objeto.

28 BACHELARD, G., A formação do espíritocientífico, p. 23.

29 KOCH, M. C., O contrato didático numaproposta pós-piagetiana para a construção donúmero, p. 79.

30 A esse respeito ver KATUTA, A. M., Um brevehistórico sobre a construção de mapas e o seuuso por alunos de 5ª e 8ª séries do 1º grau –Estudo de caso. Nesse estudo, procurou-sefazer um resgate da história da construção demapas, dos conhecimentos necessários paraque pudéssemos ter esse meio de comunicaçãotal qual nós o conhecemos nos dias de hoje.Além disso, procurou-se verificar se existe umparalelo entre a história da construção demapas e aqueles feitos pelos alunos de 5ª e 8ªséries do atual Ensino Fundamental.

31 Sobre esse assunto ver: PIAGET, J. eINHELDER B., A representação do espaço nacriança.

32 Entenda-se espontaneamente quando aaprendizagem não ocorre a cargo de nenhumainstituição socialmente reconhecida.

33 CASTORINA, J. A., O debate Piaget-Vygotsky:a busca de um critério para sua avaliação, p.16.

34 Para maiores esclarecimentos sobre o MétodoClínico ver: CARRAHER, T. N., O métodoclínico: usando os exames de Piaget.

35 LERNER, D., O ensino e o aprendizadoescolar: argumentos contra uma falsa oposição,p. 94.

36 GOES, L. E. L., O ensino/aprendizagem dasnoções de latitude e longitude no primeiro grau.

37 LERNER, D., O ensino e o aprendizadoescolar: argumentos contra uma falsa oposição,p. 95.

38 GOES, L. E. L., O ensino/aprendizagem dasnoções de latitude e longitude no primeiro grau,p. 71.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. A formação do espírito científico.Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. 314p.

BROUSSEAU, G. Os diferentes papéis do professor.In: SAIZ, C. P. I. Didática da matemática: reflexõespsicopedagógicas. Porto Alegre: Artes Médicas,1996. p. 48-72.

CASTORINA, J. A. O debate Piaget-Vygotsky: a buscade um critério para sua avaliação. In:CASTORINA, J. A. e outros. Piaget-Vygotsky:novas contribuições para o debate. 2.ed. SãoPaulo: Ática, 1996. p. 7-50.

FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio básico delíngua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1988. p. 399-469.

FREITAG, B. e outros. O livro didático em questão.São Paulo: Cortez, 1989.159p.

GOES, L. E. L. O ensino/aprendizagem das noçõesde latitude e longitude no primeiro grau. Rio Claro,1982. 182p. Mestrado em Geografia – IGCE,Campus de Rio Claro, Universidade EstadualPaulista Júlio de Mesquita Filho.

JOHSUA, S. e DUPIN, J. Introduction à la didactiquedes sciences et des mathématiques. Paris: PressesUniversitaires de France, 1993. 422p.

KATUTA, A. M. Um breve histórico sobre aconstrução de mapas e o seu uso por alunos de 5ªa 8ª séries do 1º grau – Estudo de caso. Presidente

24 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 5-24, jan./jun. 2000

Prudente, 1993. 207p. Monografia de bachareladoem Geografia – FCT, Universidade EstadualPaulista Júlio de Mesquita Filho.

KOCH, M. C. O contrato didático numa propostapó-piagetiana para a construção do número. In:GROSSI, E. P. e BORDIN, J. (orgs.)Construtivismo pós-piagetiano: um novoparadigma sobre a aprendizagem. Petrópolis:Vozes, 1993. p. 65-81.

LERNER, D. O ensino e o aprendizado escolar:argumentos contra uma falsa oposição. In:CASTORINA J. A. e outros. Piaget-Vygotsky:novas contribuições para o debate. 2.ed. SãoPaulo: Ática, 1996. p. 85-146.

MASSON, M. Representations graphiques etGeographie. Les Sciences et l’education, nº 1-3,159-174, 1993.

OLIVEIRA, C. Dicionário Cartográfico. 4ª ed. Riode Janeiro: IBGE, 1993. 646p.

PIAGET, J. O raciocínio da criança. Rio de Janeiro:Record, s.d. 234p.

PIAGET, J. e INHELDER, B. A representação doespaço da criança. Porto Alegre: Artes Médicas,1993. 507p.

SANTOS, D. Conteúdo e objetivo pedagógico noensino de Geografia. Caderno Prudentino deGeografia, nº 17, p. 20-61, 1995.

SANTOS, M. E. V. M. dos. Mudança conceptual emsala de aula: um desafio pedagógico. Lisboa: LivrosHorizonte, 1991. 261p.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 25

Las ciencias sociales no pueden avanzar através de deducciones puras a partir de cosas

que se presumen conocidas. Es elconocimiento “auto-evidente” lo que debe

constituir su objetivo principal.(SHANIN, 1983, p.15)

INTRODUÇÃO

O turismo, hoje, aparece como um tema degrande interesse, com necessidade de estudosinterdisciplinares. Este artigo surge de umapesquisa geográfica em andamento sobre oturismo rural ainda na fase inicial mas, para osinteressados pelo tema, poderá indicar algumaspesquisas necessárias na área das ciências sociais,assim como as possibilidades contraditórias queo turismo rural traz para a sociedade.

Discute primeiro o turismo ruralpropriamente dito, trazendo logo a seguir algunsquestionamentos que as novas formas de turismotrazem. Através de informações levantadas nabibliografia apresenta como o turismo rural

Turismo rural e modernização – sua forma e função

Maria del Carmen M. H. Calvente*

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar uma discussão teórica preliminar e reflexões a respeito do conceito de turismoe da noção de turismo rural, fenômeno recente na realidade brasileira. O turismo rural está dentro de um processode diferenciação de formas de turismo, e pode abranger o que atualmente está sendo chamado pela mídia de“ecoturismo”, dependendo da perspectiva adotada. São brevemente apresentadas algumas experiências de turismorural realizadas em alguns países (Alemanha, Espanha, Portugal, França, Grécia, Argentina e Uruguai), levantadasna bibliografia específica. Por fim, discutindo a realidade brasileira, coloca-se alguns aspectos das transformaçõesdo meio rural, entendendo o turismo rural como um aspecto no processo de modernização, que tem sido excludente,ao contrário do discurso teórico a respeito do turismo rural que o coloca como um fenômeno que pode serrevertido para o benefício da população local. O artigo é concluído com indicações de pesquisas necessáriasrelacionadas ao tema.

PALAVRAS-CHAVES: Desenvolvimento local, espaço geográfico, modernização, turismo rural, forma e função.

ocorreu e sua importância em alguns países. Paraentender a realidade brasileira apresenta a seguira discussão da modernidade e da mundializaçãoda economia conforme colocada por MiltonSANTOS em obras recentes, sendo que por fimtraz algumas reflexões a respeito damodernização do campo brasileiro e o turismo.

1. O TURISMO RURAL

O turismo internacional movimentaatualmente quinhentos milhões de turistas/anoe 8% do PIB mundial (RODRIGUES, 1997). Éuma prática social e uma atividade econômicade importância crescente, com reflexosmarcantes nas mais diversas escalas, deinternacional a local: provoca estagnação,deterioração e transformação, produção ereprodução de novos espaços. Neste século,gradativamente, a atividade turística deixou deser praticada apenas por uma elite social e passoua ser popularizada. O aumento do tempo livre(considerado como o não dedicado ao trabalho)e o fenômeno de urbanização e metropolização

* Docente de Geografia Humana da Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Geociências: Caixa Postal 6001,CEP 86051-990, Londrina, Paraná. E-mail: [email protected].

26 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000

são destacados na explicação da importânciacrescente desta prática.

Relacionando também esta importânciacrescente com a nova organização do territóriomundial, pode-se citar RODRIGUES (1996, p.17): Num mundo globalizado o turismoapresenta-se em inúmeras modalidades, sobdiversas fases evolutivas, que podem ocorrersincronicamente num mesmo país, em escalasregionais ou locais. Expande-se em nívelplanetário, não poupando nenhum território...

As mudanças do espaço rural estãorelacionadas à mundialização e globalização daeconomia. Para FROEHLICH e RODRIGUES(1998, p. 68): À velocidade crescente em todasas esferas da vida social, acompanhada de umamundialização do consumo, onde os gruposhumanos consomem bens materiais e simbólicosque se originam longe de suas fronteiras, ocorreconcomitantemente um novo reposiocionamentodo espaço agrário.

Também para SANTOS:

Com a globalização, a especialização agrícolabaseada na ciência e na técnica inclui o campomodernizado em uma lógica competitiva queacelera a entrada da racionalidade em todosos aspectos da atividade produtiva, desde areorganização do território aos modelos deintercâmbio e invade até mesmo as relaçõesinterpessoais. (1996, p. 242)

O litoral brasileiro, com maior intensidade nasáreas próximas aos grandes centros urbanos,passou por uma transformação significativa emdecorrência da atividade turística, que provocouimpactos que produziram desestruturação nascomunidades pesqueiras, trazendo uma novalógica no valor das terras. À procura do lucrorápido, sem criar a necessária infra-estrutura,agentes econômicos incentivando o turismotrouxeram também um grande impactoambiental. Nas discussões teóricas a respeito doturismo rural é sempre enfatizada a necessidadedesta destruição não mais ocorrer nos novosespaços turísticos. Estes novos espaços turísticosjá estão sendo criados no Brasil, através apenasde um olhar atento nos cadernos de turismo dosjornais pode-se observar que nesta última décadaocorreu uma crescente interiorização do turismo.

O turismo rural, ainda pouco estudado,aparece como uma tendência importante na

produção do espaço. Mas o que vem a ser oturismo rural não é “auto-evidente”, como podeparecer. Discussões estão surgindo a respeito doturismo rural, e pode-se partir do fato que novasformas de turismo, não convencionais, vêmaparecendo. O turismo litorâneo, no modelo sole praia, vai deixando gradativamente de ser aescolha de uma parcela dos usuários. Osmovimentos ambientalistas e o processo deurbanização terminaram por valorizar paisagensnaturais e com acomodações mais rústicas.

Há grande variação na compreensão do conceitode turismo e, principalmente, da noção de turismorural, ainda pouco discutida. No início do século,mais exatamente no ano de 1905, GUYER (apudGARCÍA, 1995, p. 49) afirmava que:

O turismo, no sentido moderno, é umfenômeno de nosso tempo que se explica pelanecessidade crescente de descanso e demudança de ares, pelo aparecimento edesenvolvimento do gosto pela beleza dapaisagem, pela satisfação e bem-estar que seobtém da natureza virgem, mas, muitoespecialmente, pelas crescentes relações entrepovos diferentes, pelo aumento das empresasfruto do desenvolvimento do comércio, dasindústrias e das profissões e peloaperfeiçoamento dos meios de transporte.

Como ponto de partida, pode-se aceitar adefinição de turismo feita por ELIAS (apudVALCÁRCEL-RESALT et. al. – Coord., 1993):são consideradas como de turismo as atividadesrealizadas no tempo livre desenvolvidas fora dodomicílio habitual e que produzem trocasmonetárias. Os agentes governamentais eempresariais consideram também o turismo denegócios e de eventos, de importância para aorganização e utilização da infra-estrutura. Paraa OMT (Organização Mundial do Turismo) oturismo também está relacionado ao pernoite.

Em 1991 foi realizada pela OMT umaconferência em Ottawa – ConferênciaInternacional sobre Estatísticas de Viagens eTurismo – que tentou chegar a um consensomundial sobre conceitos básicos de turismo.Recomendou definir turismo como:

“...las actividades de las personas que sedesplazan a un lugar distinto al de su entornohabitual, por menos de un determinado

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 27

tiempo y por un motivo principal distinto alde ejercer una actividad que se remunere enel lugar visitado y donde:a) La noción de entorno habitual excluyecomo turísticos los desplazamientos dentrodel lugar de residencia y los que tienencarácter rutinario.b) La noción de duración por menos de undeterminado tiempo implica que se excluyenlas migraciones a largo plazo.c) La noción motivo principal distinto al deejercer una actividad que se remunere en ellugar visitado implica que se excluyen losmovimientos migratorios de carácter laboral.”(GARCÍA, 1995, p. 52)

A viagem, segundo a OMT, pode ter comomotivação férias, ócio, negócios, reuniões,congressos, conferências, saúde, esportes,religião, visitas a parentes e amigos etc. Asexclusões são os deslocamentos para o exercíciode uma atividade remunerada e as migrações.

Por conseqüência, e a grosso modo, o turismorural seria aquele praticado no meio rural, emcontraposição ao litoral e ao meio urbano. ParaOXINALDE (apud GRAZIANO DA SILVA;VILARINHO e DALE, 1998, p. 12): ...o turismorural engloba as modalidades de turismo (...) quenão se excluem e que se complementam, deforma tal que o turismo no espaço rural é a somade ecoturismo e turismo verde, turismo cultural,turismo esportivo, agroturismo e turismo deaventura.

Mas este mesmo artigo coloca que algunsautores propõem a utilização do termo turismoem espaço rural ao referir-se aos movimentosturísticos que se desenvolvem neste, e reservar aexpressão turismo rural para atividades que seidentifiquem com as atividades do meio rural(principalmente o agroturismo, que se desenvolveno interior da propriedade rural, ligado ao seucotidiano). Outra proposta vai surgir, oferecidapelos autores do artigo: adotar a denominaçãoturismo rural quando os rendimentos sãorecebidos pela comunidade rural ou pelosagricultores.

Assim, o agroturismo seria uma modalidadedo turismo rural, que por sua vez seria umamodalidade do turismo em espaço rural, já quedentro do turismo em espaço rural aparecematividades que ocorrem no espaço rural mas quepoderiam ocorrer em qualquer outro lugar:

competições, práticas esportivas, festas, turismode negócio, turismo de saúde etc.

GARCÍA (1995) define o turismo rural comoaquela atividade turística realizada em espaço rural,composta por uma oferta integrada para o tempolivre, dirigida a uma demanda cuja motivação é ocontato com o ambiente autóctone e que tenha umainter-relação com a sociedade local.

Torna-se importante para a clareza da noçãocolocar a discussão existente da diferenciaçãoentre turismo rural e ecoturismo. A perguntaprincipal é se o ecoturismo é uma modalidadede turismo rural ou se seria uma modalidade deturismo em espaço rural. Em alguns países, e aquino Brasil também pela EMBRATUR – InstitutoBrasileiro de Turismo, o turismo realizado emáreas de conservação é chamado de ecoturismo,sendo que ...o chamado “turismo ecológico”,realizado em parques e reservas está tambémimbuído desse neo-mito de natureza intocada eselvagem. (DIEGUES, 1994, p. 54) A paisagemnatural é o atrativo principal.

Para BOULLON (1993) quatrocaracterísticas são necessárias para que aatividade possa ser chamada de ecoturismo: 1)possuir uma paisagem natural com biomas deinteresse turístico; 2) ter um sistemaadministrativo que organize as visitas e informeos turistas sobre aspectos do que vai serobservado; 3) a experiência do usuário sersatisfatória quanto ao conhecimento dosecossistemas visitados e 4) a exploração turísticanão colocar em perigo as bases de funcionamentodesses ecossistemas. A perspectiva do autor, aomenos nesta obra consultada, é a inversa da atéaqui colocada: considera o turismo rural umavariante do ecoturismo, onde os ecossistemas sãoculturais ao invés de naturais.

Já GARCÍA (1995) partindo de que amotivação principal do ecoturismo é o contatocom a paisagem natural, coloca que é consideradoecoturismo o turismo que contribui realmentepara a conservação, realizando-se por meio dacriação de fundos financeiros para áreasprotegidas, criando possibilidades de empregospara as comunidades locais e oferecendoeducação ambiental para os visitantes.

GRAZIANO DA SILVA; VILARINHO eDALE (1998) consideram que o ecoturismo nãoé uma modalidade de turismo rural, pois em geralnão tem relação com a dinâmica agropecuária daregião, mesmo gerando renda para algumas

28 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000

propriedades rurais. Colocam que poucaspropriedades rurais brasileiras possuem paisagensnaturais singulares que sirvam como atraçãoprincipal, e que a renda gerada pelo ecoturismopouco beneficia a população local, ficandoconcentradas nas mãos dos agentesintermediários dos centros urbanos.

Para os autores, o turismo rural estariaassociado às seguintes atividades: fazenda-hotel(que é diferenciada do hotel-fazenda), pesque-pague, fazenda de caça, pousada, restaurantetípico, vendas de artesanato e diretas doprodutor, atividades estas ligadas ao modo devida do homem no campo, e que significam umadiversificação necessária pela queda derentabilidade dos negócios tradicionais. Asatividades agropecuárias continuam a fazer partedo cotidiano da propriedade, sendo que osturistas são atendidos pelos familiares residentes,com uma contratação eventual de mão-de-obra.

A diferença colocada pelos autores entrehotel-fazenda e fazenda-hotel é bem clara: ohotel-fazenda é similar a qualquer outro hotel,estando no meio rural. Já na fazenda-hotel apropriedade agropecuária continua com suasatividades produtivas, e os hóspedes podemassistir ou participar deste cotidiano.

Além do hotel-fazenda e da fazenda-hotel, osautores destacam como atividades turísticas queestão surgindo ou crescendo em áreas ruraisbrasileiras as seguintes: chácaras de recreio econdomínios rurais; pesca amadora; turismo emrios e represas; complexos hípicos; leilões eexposições agropecuárias; festas e rodeios;fazendas de caça; fazendas escola; visitasprogramadas e cursos especiais; e artesanato paraos turistas.

Já para RUSCHMANN (1998, p. 49), queoptou por definir o que o turismo rural deveriaser: ...deve estar constituído sobre estruturaseminentemente rurais, de pequena escala, ao arlivre, proporcionando ao visitante o contato coma natureza, com a herança cultural dascomunidades do campo, e as chamadassociedades e práticas “tradicionais”.

Posição diferente é tomada porRODRIGUES (1998), que analisa o que oturismo rural é, e pela falta de critérios existentespara diferenciar o ecoturismo do turismo ruralpassa a utilizar a denominação “turismo eco-rural” onde identifica o fato de atender nichosde demanda e propor visitas de pequenos grupos

dirigidos às áreas de conservação e espaços rurais– colocando que como em qualquer outro tipode turismo a “imagem” é vendida, a propagadaautenticidade não existindo, sendo que os turistasprocuram por essa imagem, sabendo que é umaimagem artificialmente criada ou não. O objetivoda atividade é o entretenimento, e como qualqueroutra atividade econômica causa impactos sociaise ambientais.

O turismo rural e o ecoturismo são produtosque prometem e não podem cumprir aautenticidade, a identidade, o vínculo com olugar, a relação íntima com a natureza e com osaber fazer das antigas gerações. Escreve a autoraque, partindo da desmitificação, entendendo queo turismo rural é um produto e não uma panacéia,é mais fácil pensar em propostas sérias deconservação ambiental e de desenvolvimento embase local, pois os empresários sabem que avenda do produto está fundamentado naqualidade das condições ambientais e nasegurança dos turistas.

Mais quatro posições quanto ao que é oturismo rural serão aqui colocadas:ZIMMERMANN (1998) afirma que o turismoé uma atividade econômica que trazconseqüências positivas e negativas, entre elas abusca de lucro a curto prazo. Considera que ...sãotodas as atividades turísticas endógenasdesenvolvidas no meio ambiente natural ehumano... (p. 99). Apresentaria pontos emcomum com o ecoturismo, o turismo cultural, oturismo de aventura e o turismo esportivo, àsvezes ocorrendo isoladamente e às vezesocorrendo em conjunto (a identidade daatividade seria dada pelo grau de atratividade noproduto final); sendo ...produto que atende ademanda de uma clientela turística, atraída pelaprodução e consumo de bens e serviços no ambienterural produtivo... (p. 100). Teria como princípios oatendimento familiar, a harmonia, a autenticidade,a qualidade e o envolvimento da comunidade. Oautor é diretor técnico da ABRATURR – AssociaçãoBrasileira de Turismo Rural.

Ao escrever sobre o turismo rural naArgentina, BARRERA (1998) enfatiza que oturismo rural é tanto aquele onde as pessoas sealojam em um estabelecimento agrícola quantoo feito pelos caçadores, pescadores, cientistas,estudantes, turistas de passagem e empresáriosque participam de um evento. Da perspectivaagropecuária, os serviços de alojamento,

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 29

alimentação e as atividades devem ser oferecidaspelos produtores agropecuários. Considera comomodalidades do turismo rural: o agroturismo, oecoturismo, o turismo cultural, o turismo deaventura, o turismo esportivo, o turismo técnico-científico, o turismo educativo, o turismo deevento, o turismo de saúde, o turismogastronômico, o turismo em comunidadeaborígene e o turismo em comunidade derecreação e retiro. O autor trabalha na DireçãoNacional de Alimentação da Subsecretaria deAlimentação e Mercados da Secretaria deAgricultura, Gado, Pesca e Alimentação daArgentina.

Já MAILHOS (1998) em seu trabalho sobreo turismo rural no Uruguai, faz referência a certascaracterísticas que o produto deve ter: atençãopersonalizada e convivência com a família naresidência, entorno natural e/ou produtivo,participação em tarefas rurais com apoio didático,passeios guiados e gastronomia ligada aosprodutos típicos. Diferencia três modalidadesque estão ocorrendo no Uruguai:estabelecimentos por um dia (oferecemalimentação, passeios, jogos, esportes, aluguel decavalos, loja, mostra de atividades rurais e shows)para excursões que chegam em ônibus deaproximadamente 45 pessoas; estâncias(hospedagem em propriedades rurais, comatividades agropecuárias e atendimento dadopelos proprietários) e hotel no campo (o similarao hotel-fazenda, já discutido aqui). A autora épresidente da Sociedade Uruguaia de TurismoRural.

Por fim, em Portugal, segundo RIBEIRO(1998) vai aparecer o turismo de habitação(casarões e casas rústicas de reconhecido valorarquitetônico), o turismo rural (casas rústicasintegradas à arquitetura típica regional) e oagroturismo (inserido em explorações agrícolas,onde os turistas podem participar dos trabalhosagrários). Nestas três modalidades é exigido queos proprietários também habitem a casa, já querecebem apoio financeiro do Estado. Maisrecentemente apareceu o turismo de aldeia(conjunto de pelo menos cinco casas particularessituadas em uma aldeia) e casas de campo, sendoque nestas duas últimas modalidades as casaspodem ser habitadas pelos proprietários ou não.Todas as modalidades estão incluídas nochamado TER (turismo em espaço rural).

Em síntese, a noção do que é (ou deve ser) o

turismo rural ainda está em processo dediscussão, e podemos encontrar quatropossibilidades ao consultar a bibliografiaespecífica:

a) atividades turísticas realizadas no meio rural(todas que não realizadas na praia ou no meiourbano);

b) atividades turísticas relacionadas às atividadescomuns do meio rural (atividadesagropecuárias, caminhadas e observações depaisagens naturais, pesca e caça, lazer em rios)

c) serviço oferecido pela população rural, equando a renda auferida fica com essapopulação;

d) atividades realizadas em estabelecimentorural, onde as atividades produtivas agrícolasou de pecuária fazem parte importante doatrativo.

O conceito de turismo rural para o espaçobrasileiro deverá ser construído a partir darealidade concreta, e a diferenciação entreturismo em espaço rural e turismo rural, assimcomo entre ecoturismo e turismo rural estarásubordinada à opção entre as quatro alternativasanteriores. Se nos itens a e b o ecoturismo podeser considerado parte integrante do turismo rural,nos itens c e d isto não ocorre. Duas discussõesestão relacionadas, principalmente nos estudosgeográficos: o que é espaço e o que é espaço rural.

Pode-se considerar espaço geográfico comoa interação entre configuração territorial erelações sociais, segundo SANTOS, que tambémenfatiza que: (a)...compreensão da organizaçãoespacial, bem como de sua evolução, só se tornapossível mediante a acurada interpretação doprocesso dialético entre formas, estrutura efunções através do tempo. (1997b, p. 50).

Com base neste autor, entende-se formacomo o aspecto visível do espaço, sendo que aforma pode continuar a mesma e a funçãotransformar-se com o tempo. Por outro lado, aforma pode mudar e a função ser a mesma. ParaRODRIGUES (1997) a função decompõe oespaço turístico em seus elementos – oferta,demanda, transporte, infra-estrutura, serviços,gestão e marketing, num tempo determinado. Jáa estrutura espacial vai além da forma, poisexpressa a dependência mútua entre as partesdo todo.

30 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000

O que está sendo discutido, neste momento,com relação ao turismo rural, não será umprocesso ligado à transformação da função, formae estrutura? Mas pode ocorrer mudança de formae função do espaço turístico, sem que ocorramudanças na estrutura (as relações entre osdiversos elementos)? O que está sendotransformado na estrutura do espaço turístico?E no espaço rural? As mudanças na estruturaestão, claramente, ligadas às mudanças nasrelações sociais.

Por exemplo, vários trabalhos enfatizam que,se realizado de maneira diferente de comoocorreu no litoral, pensando numa ocupação empequena escala e na coexistência do turismo comas atividades agrárias, o turismo rural podepossibilitar a manutenção da propriedade da terrae de construções históricas, diminuir o êxodorural e propiciar ao morador urbano férias nocampo, a um custo menor. Isto seria umatransformação do que ocorre na quase totalidadeda atividade turística, ou no processo, forma,função e estrutura do espaço turístico brasileiro.

Escreve CAVACO (1996) que, dentro dacriação de estratégias de desenvolvimento local,ocorreu um alargamento do conceito dedesenvolvimento rural para além do agrícola,pensando-se em desenvolvimento endógeno,com os agentes locais, centrado nas necessidadesda própria comunidade (chamado dedesenvolvimento sustentável,ecodesenvolvimento ou desenvolvimentoalternativo). O desenvolvimento local vai estarassentado na diversificação da economia:valorização dos produtos agrícolas, artesanais ede atividades ligadas ao turismo e à cultura.

Isto é ainda mais importante no agroturismo:é de pequena escala, ligado à comunidadeexistente e às suas formas de vida, o turistapartilhando as habitações com os proprietáriosresidentes, habitações que são remodeladas paraproporcionar algum conforto, o que ocorre deuma forma espontânea ou é promovidaoficialmente.

Na Europa, onde CAVACO realizou apesquisa no artigo já citado, há uma progressivaperda de importância do mundo rural tradicional.Alguns lugares são meios sócioeconômicosresiduais, com uma população envelhecida e comcarência de elementos dinâmicos, cada vez maisisolada com o abandono da circulação ferroviáriae rodoviária e ausência de automóveis

particulares, na época das auto-estradas e dainformatização.

Aparece a idéia de regeneração rural,significando a definição do novo papel que omeio rural deve desempenhar na sociedade, alémdo abastecimento alimentar, função primordialdesempenhada ao longo dos séculos. Certosespaços rurais deveriam tornar-se bens sociais enão privados, com uma conservação que tragaempregos e melhore a qualidade de vida,resultando em usos múltiplos. Estes espaçosseriam disponíveis para o lazer, educaçãoambiental e investigação científica.

2. NOVAS FORMAS DE TURISMO?

Constata-se que a concentração de fluxosturísticos em locais com grande oferta deequipamentos (praias quentes do Mediterrâneo,praias dos países tropicais, cidades com grandevalor simbólico e/ou com patrimônio histórico-cultural) causou efeitos negativos e até mesmorepulsivos em parte da população local e sazonal(turística). Mesmo assim, para uma quantidadesignificativa de pessoas, as multidões e os diasagitados são grandes atrativos, em contraposiçãoà rotina cotidiana dos outros meses do ano.

Para outros turistas ocorreu a procura dealternativas. Nestas alternativas aparece a utopiaturística ou, conforme CAVACO (1996), oturismo do futuro: individualizado, em escalahumana, de estrutura familiar e artesanal,culturalmente rico e não necessariamentedispendioso. Vários nomes são colocados a esteturismo: turismo alternativo, ecoturismo, turismoverde, turismo leve, turismo responsável eturismo rural. São, segundo a autora:

...formas de turismo que em princípiorespeitam as capacidades de carga dos meiosde acolhimento, em termos naturais, culturaise sociais, com conservação dos recursos locais,físicos e humanos, incluindo os de interesseturístico, diminuindo custos e elevandobenefícios e, não menos importante,reduzindo as saídas de divisas... (p. 105).

O termo turismo alternativo procuraevidenciar uma certa oposição ao turismointernacional e nacional massificado, mas ficaambíguo, ao indicar uma substituição do turismo

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 31

de massas, sem impactos ou danos ou meio ou àsociedade local. O mais provável é que ochamado turismo alternativo não irá substituir,significativamente, o turismo convencional emtermos econômicos e de preferências pessoais.E os impactos sociais e ambientais sempre irãoexistir, podendo porém serem minimizados.

Um dos papéis do turismo rural pode ser ode responder às necessidades de certos gruposde turistas, outro o de permitir um acréscimo aorendimento das populações rurais e outro o delevar o turismo a áreas sem outras potencialidadesde desenvolvimento econômico. Em Lages (SC),onde o turismo rural brasileiro surge, ou pelomenos primeiro aparece com essa denominação,significou a alternativa para criadores de gado,com terras de pouca fertilidade, quando aatividade econômica predominante ficou poucoatrativa economicamente.

Vários autores destacam a importância dosefeitos indiretos do turismo rural: melhoria dainfra-estrutura e das comunicações,desenvolvimento da pequena produção esurgimento de atividades de lazer também paraa população local.

Para BARRERA (1998) estes efeitos indiretossão os aspectos mais relevantes do ponto de vistasócioeconômico, pois uma análise que fiquerestrita à renda auferida diretamente irá concluirpela pouca importância da atividade.

Destaca a importância e necessidade dadiversificação agrícola, onde o turismo rural podeser a opção mais viável; a criação de empregos evalorização do modo de vida rural; a importânciade mulheres e jovens na atividade; a valorizaçãodo patrimônio arquitetônico, sítios arqueológicose aspectos naturais representativos do lugar;criação de mercado potencial para a produçãolocal e, por último, a tendência de aparecer oassociativismo, pela escala necessária paracomercialização, capacitação, compra deinsumos, procura de fontes de financiamento eassessorias.

Os documentos oficiais e a grande maioriados textos relacionados ao turismo ruralapresentam essa preocupação: que os recursosvindos do turismo fiquem com a populaçãoreceptora. As políticas públicas comfinanciamentos e bônus fiscais poderiaminfluenciar nesse sentido. Pelo menos parte daoferta do turismo rural na Espanha, Grécia,Portugal e Alemanha foi financiada com recursos

vindos do LEADER (Ligação entre Ações deDesenvolvimento da Economia Rural), que deuapoio técnico e financeiro às regiões rurais daComunidade Européia desfavorecidas(PRESVELOU, 1998; MAILHOS, 1998).

Na discussão a respeito do turismo rural nonorte do Paraná já foi enfatizado que não sedeveria contar com outras fontes definanciamento, mas mobilizar apenas os recursosfinanceiros que a comunidade local tenha comodisponíveis. Para isso o turismo rural deveria semostrar mais rentável que outras atividades, poisdificilmente o empresário irá investir pensandonos benefícios indiretos. Outra dificuldade queaqui surge é que a agricultura brasileira estádescapitalizada – os autores que estudam ocampo brasileiro destacam que a taxa deacumulação no setor é muito baixa.

Interessante notar que a diversificação doturismo acontece junto com o processo mundialde diversificação e flexibilização da produção,para públicos diferenciados e entre as novasfunções que o meio rural vem adquirindo: lazer,conservação e educação ambiental – ligadas àprodução de bens e serviços não materiais,estudadas em um projeto temático desenvolvidona UNICAMP denominado Caracterização doNovo Rural Brasileiro, 1981/95 (GRAZIANODA SILVA; VILARINHO e DALE, 1998).

Este novo processo de produção é chamadode pós-fordismo, pois no fordismo aparece alógica da produção em massa: grande quantidadee produtos iguais. Agora a produção passa porum processo onde é importante ser flexível, comprodutos diferenciados para públicosdiferenciados.

BUTLER (apud CAVACO, 1996) coloca umaimportante reflexão: o turismo alternativo podetambém trazer um importante impacto social eambiental, pois se o número de turistas é sempremenor, as suas exigências e expectativas,infidelidade e mobilidade podem continuar asmesmas. Nem sempre o turismo alternativo émelhor que o turismo de massas.

Um problema observado em Portugal (deacordo com RIBEIRO, 1998) foi o de uma certaaversão dos proprietários em receber as pessoasdentro de suas próprias residências, assim comode alguns turistas que preferem uma privacidademaior do que a possibilitada por este contatoestreito. A tentativa de que o turismo rural seja“autêntico” nesse sentido, de convivência estreita

32 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000

com os proprietários da residência, pode tambémtrazer esse problema.

Para CAVACO (op. cit.) o mais importantesão as ofertas rurais, endógenas, dispersas emtermos de alojamento, de locais de interesse avisitar e de atividades de lazer. Há necessidadede resolver, de forma adequada, a eletrificação,o abastecimento de água, o saneamento básico,a coleta de lixo doméstico e os serviços pessoaiscotidianos e de saúde. Pode também surgir oturismo social, sem objetivo de lucros, masapenas com a reprodução simples de capital, demodo a permitir a conservação operacional dosequipamentos e outros custos de funcionamento.Algumas ofertas turísticas exógenas, como hotéis-fazenda e parques temáticos, estão longe da idéiade desenvolvimento local.

Os espaços tradicionais, mais do que ostécnicos, possuem força atrativa. A modernizaçãovisível destes espaços enfraqueceria seu potencialturístico. Mas a utilização destes espaços para oturismo, mesmo com sua aparência tradicional,já significa sua modernização: a forma é a mesma,mas a função é outra.

3. O TURISMO RURAL EM ALGUNS PAÍSES

O espaço rural, na Europa, não é um destinonovo. Migrações de férias caracterizaram duranteséculos as relações cidade/campo para a nobrezafundiária e burguesia urbana. Mas estedeslocamento não tinha a dimensão econômicaque possui hoje.

Através do levantamento feito por CAVACO(1996), observamos que já existe uma tradiçãode turismo rural na Suiça e na Áustria (comaluguel de quartos). Um quinto dos agricultoresaustríacos, suíços e suecos recebem visitantes,8% de alemães e holandeses, 4% dos franceses e2% de italianos. A procura turística de espaçosrurais nestes países, nas últimas décadas, tevemudanças: nova clientela (classes médias e altasdas sociedades urbanas), sem raízes rurais fortes.

Na Alemanha, o agroturismo é importante,pois procuram explorações agrícolas rústicas. Sãocasais jovens, com crianças; e adultos com maisde cinqüenta anos, residentes em cidades médiase grandes, com níveis escolares esocioeconômicos médios e superiores à média.Ocupam o tempo dormindo, repousando,passeando, andando a pé, conversando com

outras pessoas, ficando com as crianças, tomandobanho em rios, bronzeando-se, andando a cavalo,visitando parques e reservas naturais e atéparticipando nas atividades agrícolas.

Ainda na Alemanha o maciço de Rhön (quefoi muito tempo dividido em dois pela Cortinade Ferro) foi declarado reserva da biosfera pelaUNESCO e um projeto financiado peloLEADER foi colocado em ação. SegundoPRESVELOU (1998) é uma regiãoexclusivamente rural, tendo 12% da populaçãoativa ocupada com o turismo. As dificuldadespara o projeto turístico foram de caráteradministrativo (compreende três estados, com 90municípios), a diversidade das situações e adesconfiança dos habitantes. A implementaçãocomeçou em 1993, sendo que os primeirosprojetos resultaram na cooperação entreagricultores e donos de restaurante e oestabelecimento de uma linha de ônibuspercorrendo todo o território.

Na Espanha dados de 1983 indicam que oespaço rural foi destino de férias para 44% dapopulação que se deslocou das cidades com maisde cem mil habitantes. Cerca de 85% da procuraestá ligada à origem rural, são pessoas queinstalam-se em casas de familiares, amigos oupróprias. Um fluxo mais reduzido é o de classesmédias e altas, que ocupam alojamentoscomerciais e sentem falta de equipamentosrecreativo-desportivos e de animaçãosociocultural (CAVACO, 1996).

PRESVELOU (1998) refere-se ao apoio doLEADER na Espanha, em Asturias (Oscos). Aregião é constituída por sete municípios, comreservas naturais e vestígios pré-romanos.Elaboraram uma “carta de qualidade” com ascondições para o estabelecimento do turismorural. A cultura popular tradicional transformou-se em potencial econômico, tendo sido criado27 empregos fixos e 8 sazonais.

Em Portugal, cerca de um terço da populaçãoque viaja nas férias vai para o interior,principalmente o Interior Norte (CAVACO, op.cit.). Estas áreas são freqüentadas principalmentepelas classes de menor poder econômico e pelapopulação residente na própria região. Quasemetade declara-se insatisfeita, pelo custo elevadodos alojamentos e transportes. O campo,enquanto destino turístico, parece ir ganhandoforça em Portugal, até pela segmentação dasférias, gozadas em dois períodos.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 33

O processo ocorre da seguinte maneira,segundo a autora: numa primeira fase, procuram-se quartos nas casas das famílias residentes. Oaluguel destes quartos aumenta a carga detrabalho doméstico e perde-se a privacidadefamiliar, mas significa também, ainda quesazonalmente, a entrada de um certo valormonetário extra, para amortização doinvestimento e valorização dos serviçosprestados, como alojamento e refeições. Depois,passa-se à remodelação de antigas construções,criando alojamentos independentes, às quais sejuntam edificações de novos alojamentos. Esteprocesso, conforme descrito até aqui, foilocalizado no turismo rural brasileiro em SantaCatarina, na região de Lages.

Em Portugal, em alguns lugares, ocorre arenovação da hotelaria tradicional ou aconstrução de pequenos hotéis rurais eacampamentos. As iniciativas são internas –agricultores e poder local – e, mais raramente,externas, com a procura de lucro, ou o turismosocial (colônias de férias, albergues de gruposespecíficos). Alguns empresários criaramequipamentos complementares (restaurantes,bares e atividades de recreação). Ocorreu umaprocura urbana, em determinados lugares, porvelhas casas que foram remodeladas, para autilização como segunda residência. Esgotadasestas casas, passou-se à procura de lotes paranovas construções.

Segundo LAURENT e MAMDY (1998) oturismo rural na França é disperso, mesmo assimrepresentando mais de 50% da capacidade totalde alojamento do país. No início era visto compreconceitos por ser mais barato, pobre emserviços e uma opção para quem não podia ir àpraia, mas hoje já representa uma opção paraférias diferentes ou para estadias mais curtas. Háum certo desanimo dos empresários do turismorural, que muitas vezes estão isolados, comproblemas de gestão das empresas familiares ecom dificuldades para adaptar-se às exigênciasdos turistas. No espaço rural aparecemacampamentos (alguns estão localizados emfazendas), hotéis rurais, pousadas rurais epousadas para as crianças. São importantes agastronomia, a enologia, a tradição e o folclore.Colocam que foi necessário um subsídio paraincentivar os interessados, públicos ou privados,na realização de obras para alojamento ourecreação.

Na Grécia três programas financiados peloLEADER foram apresentados porPRESVELOU (1998): um em Evros (Trácia),outro em Oropedio Lassithiou (Creta) e o últimoem Amavrakikos (Epire). Em Evros um antigopântano foi transformado em lago artificial; criou-se um centro de artesanato, com as mulheresconfeccionando artigos de seda; foi construídoum parque ao redor de um antigo aqueduto, comum café gerenciado por mulheres, que produzemdoces, frutas cristalizadas, cerâmica e confecções;e uma cooperativa de jovens organiza estadiasde uma semana, integrando sítios arqueológicos,centros artesanais etc.

Em Oropedio Lassithiou os moinhos devento, típicos, estavam sendo abandonados.Ocorreu um trabalho para a valorização dosmoinhos como símbolos da identidade regional.Jovens fizeram estágio e aprenderam a construire restaurar moinhos. Este estágio gerou empregospara os jovens, a valorização dos artesãos e arevitalização de pequenas empresas provedoras.Um museu foi organizado e outro construído,uma empresa de cerâmica conseguiu subsídiopara comprar equipamento, abriram-se tambémrestaurantes e pequenos hotéis. O trabalhoconjunto das organizações locais (que ocorreupela primeira vez) é destacado.

Amavrakikos é um golfo que serve de habitatou de área de repouso para aves selvagens emvias de extinção. Possui também um patrimôniohistórico e arqueológico. O financiamento doLEADER visa o desenvolvimento do ecoturismo,prevendo um conjunto de atividades de lazer(passeios em lagos, observação de pássaros,festivais etc.) e trilhas.

Na América do Sul, BARRERA (1998) refere-se ao turismo rural na Argentina, sendo que estefoi estudado apenas na Patagônia, tendo sidocriada em 1997 a Rede Argentina de TurismoRural, dependente da Secretaria de Agricultura,Gado, Pesca e Alimentação. Observa-se, pelaleitura do artigo, que o turismo rural está em seuinício.

O mesmo ocorre no Uruguai, segundoMAILHOS (1998), onde as primeirasexperiências foram organizadas porintermediários, surgindo depois a SociedadeUruguaia de Turismo Rural (em 1995). Umaspecto destacado é a importância das mulherese filhos de proprietários na organização eadministração da atividade. Coloca também que

34 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000

o produto turismo rural é difícil de vender, e osoperadores turísticos, neste início, o estãoconsiderando pouco possível ou prático. Tambémé destacado o fomento do associativismo, com aoferta de pacotes complementares entre osdiversos estabelecimentos.

Em síntese, observa-se na maior parte destespaíses algumas características:

a) financiamento e subsídio estatal;b) importância das mulheres e jovens para a

oferta;c) oferta dispersa, principalmente em pequena

escala, com mão-de-obra familiar;d) valorização pelo poder público dos efeitos

indiretos trazidos pelo turismo rural;e) fomento do associativismo e criação de

organizações específicas;f) dificuldades com os operadores de turismo

tradicionais;g) custo da estadia para os turistas de baixo a

alto (grande variação);h) diversidade grande quanto às atividades

ofertadas.

Mas o processo ocorrido na Europa e mesmoem outros países da América Latina, relacionadoao turismo rural, necessariamente não será omesmo do que ocorrerá no Brasil. A dinâmicabrasileira é outra, e torna-se importante entendero processo de modernização brasileira, pois comoconseqüência o turismo rural irá apresentarformas e funções diferentes.

4. A MODERNIDADE BRASILEIRA

Como uma breve introdução ao assunto,pode-se dizer que, para SANTOS (1997a), oespaço geográfico atual é um meio técnico-científico, sendo este a resposta geográfica aoprocesso de globalização. No início da vida social,o homem escolhia o que lhe podia ser útil àsobrevivência, no seu pedaço de natureza, o lugar.A partir daí inicia a mecanização do planeta,tendo sua ação efeitos continuados eacumulativos, trazendo como conseqüência ograve problema do espaço do homem, um espaçosocial, estudado pela Geografia.

No início, cada grupo humano construía seuespaço com técnicas e materiais próprios. Ocomércio entre as coletividades introduziu novas

lógicas, desejos e necessidades. A organização doespaço e da sociedade começa a ocorrer semcorrespondência com as necessidades íntimas decada grupo.

Hoje, com a economia mundializada, todasas sociedades possuem, de forma mais ou menostotal, um modelo técnico único. A mundializaçãounifica o planeta: suas mais diferentes partesestão ao alcance dos mais diversos capitais. Aligação é mundial, guiando os investimentos, acirculação de riquezas e a distribuição demercadorias. Mas cada lugar é o ponto deencontro de lógicas em diversas escalas, que àsvezes são contrárias entre si. Cada lugar não podemais ser explicado em si mesmo, como ocorriana Geografia Tradicional. Acrescenta SANTOS(1997a) ao conceito de lugar: Assim se redefinemos lugares: como ponto de encontro de interesseslongínquos e próximos, mundiais e locais,manifestados segundo uma gama declassificações que está se ampliando emudando...(p. 18-19).

O território inclui, hoje, obrigatoriamente,ciência, tecnologia e informação. As relaçõeshegemônicas instalam-se neste meio técnico-científico informacional, participando docomércio internacional. As possibilidades detransmitir, à distância, produtos e ordens,determinam especializações produtivas mundiais.A especialização cria a necessidade de circulação.Fluxos de informações são responsáveis pornovas hierarquias e polarizações, comoorganizadores de sistemas urbanos e da dinâmicaespacial. Quanto mais a globalização seaprofunda, impondo regulações verticais novasa regulações horizontais preexistentes, tanto maisforte é a tensão entre globalidade e localidade,entre o mundo e o lugar. Mas, quanto mais omundo se afirma no lugar, tanto mais este últimose torna único. (SANTOS, op. cit., p. 56)

Mas, conforme colocado pelo autor, aracionalidade dominante não é forçosamente asuperior, nem a única possível, e a questão torna-se descobrir e pôr em prática novasracionalidades, de acordo com a ordem desejadapelos homens no lugar. Chama a isto de“contrafinalidades”. Pode-se pensar que aprocura por um turismo, no Brasil, que tenha umafunção social, além da econômica, poderia estarcontida nestas contrafinalidades.

Nas palavras do autor: Nesse sentido, ascidades regionais podem tornar-se o “locus” de

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 35

um novo tipo de planejamento, que desafie asverticalidades que as sociedades locais não podemcomandar e imponham contrafinalidades, isto é,“irracionalidades” do ponto de vista daracionalidade que lhes é sobreposta. (op. cit., p. 94)

Um planejamento comprometido com osinteresses da maioria da população poderia tentarorganizar um turismo que trouxesse benefícios àesta população. Se para alguns isto é uma utopiaturística, esta utopia é importante para sercolocada como meta, mesmo que não sejarealizada completamente. Uma outra citação deSANTOS (op. cit., p. 116) pode ser aquicolocada:

Entre o que somos e o que desejamos ser,entre os impasses atuais e as possibilidades eesperanças, jamais o homem e as regiões tantonecessitaram do conhecimento. Tudo começacom o conhecimento do mundo e se ampliacom o conhecimento do lugar, tarefa conjuntaque é hoje tanto mais possível porque cadalugar é o mundo. É daí que advém umapossibilidade de ação. Conhecendo osmecanismos do mundo, percebemos por queas intencionalidades estranhas vêm instalar-se em um dado lugar, e nos armamos parasugerir o que fazer no interesse social.

Afirma o autor, na mesma obra, que no Brasilalguns fatos da modernização devem serressaltados: um grande desenvolvimento daconfiguração territorial, da produção material eda produção não material: saúde, educação,informação e lazer (aí pode-se incluir o turismo,uma forma de lazer), e um modelo econômicodistorcido, privilegiando a produção orientadapara fora e um consumo que serve a menos deum terço da população, em lugar de um consumodas coisas essenciais, para a totalidade desta. NoSul e Sudeste brasileiros há uma diferenciaçãoterritorial do trabalho ampliada, com grandefluidez do território (autopistas e estradasvicinais).

Mas qual seria a demanda para o turismo ruralno Brasil? E nas diversas regiões brasileiras?Como conseqüência da ampliação da estruturaviária do Sul e Sudeste brasileiros, há umaacessibilidade maior dos indivíduos, facilitandoportanto a atividade turística para uma demandaregional. Torna-se importante então investigar seo turismo rural no Brasil é valorizado pela

população da região (isto é, se existe demandaou se esta pode ser criada) pois em alguns dospaíses aqui abordados, onde se estudou o turismorural, a maior parte da demanda era formada porturistas estrangeiros. A outra parte, a dos turistasnacionais, é constituída por moradores dasgrandes cidades.

5. A MODERNIZAÇÃO DO CAMPOBRASILEIRO E O TURISMO

Desde o início a distribuição de terras noBrasil foi concentracionista: capitaniashereditárias, sesmarias e Lei de Terras de 1850.A modernização do campo não mudou estequadro, pois os novos espaços que foramtomados às nações indígenas aumentaram aconcentração, sendo que nos últimos quarentaanos ocorreu um aumento violento daconcentração fundiária.

A pergunta que surge é: será o turismo ruralmais um mecanismo para a concentração deterras ou possibilitará o contrário? Estaconcentração de terras está ocorrendo comgrande força no sul do Brasil, incluindo o nortedo Paraná, que tem uma história de colonizaçãobaseada em pequenas propriedades.

Deve-se notar que algumas vezes o turismorural está sendo colocado como a construção deparques temáticos. Uma notícia no jornalconsiderava a construção do “Triple J Ranch”,com um milhão e duzentos mil metros quadradosde área construída, em Boituva (SP), como uminvestimento no turismo rural (FOLHA DE SÃOPAULO, 01/07/97). Este mesmoempreendimento foi colocado por GRAZIANODA SILVA; VILARINHO e DALE (1998) comoum complexo hípico, modalidade de turismo noespaço rural e não como turismo rural.

Com relação ao turista, encontra-se entre doisextremos: o que não estabelece vínculosterritoriais permanentes com o espaço para o qualse dirige e o que cria um vínculo permanente,gerando a segunda residência ou residênciasecundária. A venda de sítios ou chácaras para olazer é uma variável, que pode diminuir aquantidade de terras disponíveis para a produçãoagrícola, não significando a concentração deterras nos dados estatísticos e sim o contrário,quando analisados.

Por outro lado, GRAZIANO DA SILVA,

36 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000

VALARINHO e DALE (op. cit.) colocam queas chácaras de recreio e condomínios ruraiscombinam, em parte, as atividades de final desemana dos proprietários com alguma atividadeprodutiva: criação de abelhas, peixes, aves eoutros pequenos animais; produção de flores eplantas ornamentais; frutas e hortaliças. Atravésdos estudos feitos no projeto “Caracterização doNovo Rural Brasileiro, 1981/95” concluíram queestas propriedades servem para manter aconservação do que restou da flora local na área,afastam as grandes culturas e criam empregos,assalariando antigos moradores como caseiros,podendo evitar a saída destas pessoas do campo.

Uma discussão que também pode ser aquicolocada, tendo como base uma pesquisa(CALVENTE, 1993) realizada sobre atransformação do espaço com o turismo no litoralde São Paulo (Ilhabela) é a importância damanutenção da posse ou da propriedade da terra.Um dado importante foi obtido: a grande maioriados moradores tradicionais (caiçaras)entrevistados optaria por permanecer no local, ejá estavam com bastante informações sobre asdificuldades e desvantagens da moradia nasperiferias das cidades. Mas uma das condiçõesconcretas (e a mais importante) para apermanência era a manutenção da posse da terra,pois se num primeiro momento eram contratadoscomo caseiros e empregados domésticos, numsegundo momento eram preteridos pormigrantes, considerados melhor mão-de-obra. Asfamílias caiçaras que conseguiram manter a terraeram os que estavam conseguindo obter umaqualidade de vida melhor com o turismo.

Mais uma referência pode ser feita comrelação a esta modernização do campo brasileiroe de sua produção: o parque industrial expandiu-se, inclusive com fertilizantes, máquinas eimplementos agrícolas que serão usados nocampo. O processo de produzir no campo é, cadavez mais, um processo de consumo. O ritmoindustrial está impondo a monocultura, usando-se produtos e adubos químicos, assim comocolheitadeiras e tratores.

Ocorrem novas formas de consumo, numprocesso de sujeição ao modelo industrial. Sãocriadas e recriadas novas necessidades. Umexemplo interessante e que traz a questãoambiental, no sentido de como está é incorporadae apropriada pelo capital pode ser observado nanotícia com o título Grifes criam moda sem

agrotóxico – Estilistas e agricultores queremaumentar o consumo de algodão “orgânico”, maiscaro e difícil de cultivar no jornal FOLHA DESÃO PAULO (20/11/94) onde o articulistaescreve: Talvez o fator mais crucial a determinarse os produtores vão ou não passar a cultivaralgodão orgânico será a capacidade de venda daidéia, pelo mundo da moda.

Este texto pode trazer uma reflexão, pelacontradição que fica aparente. Tanto pode-sepensar na importância do cultivo livre dosagrotóxicos, de uma maneira geral, e qualqueriniciativa pode ser bem-vinda, quanto qual é aimportância de um mercado diferenciado, quepode ser chamado de “ecologicamente correto”,e que pode pagar um preço maior por uma calçaproduzida com este algodão, em um país comgraves problemas sociais como o brasileiro.

Entre estas novas formas de consumo,contraditórias, aparece o consumo do espaçoturístico. Trata-se do aproveitamento de diversosfatores físicos e culturais que convertem oterritório em um recurso com capacidade paraser explorado economicamente, dentro de umacondição subjetiva (a criação da demanda). Estesdiversos fatores podem ser duráveis, mas sãopassíveis de destruição se utilizados sem cuidado,o que significa que devem ser defendidos dospróprios agentes que se beneficiam do territóriocomo um recurso, assim como dos possíveisusuários. A educação para o turismo torna-se umanecessidade, entendendo educação como umprocesso social, de responsabilidade de todos.

Esta necessidade também aparece naschamadas formas alternativas de turismo. Oturismo rural pode ser uma forma alternativa comrelação ao modelo sol e praia, mas é necessárioanalisar o quanto de alternativa ele possui emrelação ao modelo generalizado de turismo,ligado à uma determinada condição social e aoconsumo predatório, difundido pela atividadeturística.

No campo, o ritmo do trabalho dependemuito mais da natureza, pois existe um limitebiológico à aceleração dos ciclos reprodutores.Este próprio limite à aceleração do tempo podeser um atrativo turístico. Para uma parcela doshabitantes urbanos, a ida ao campo significa fugirdo tempo acelerado do cotidiano e aproximar-sedos fenômenos naturais. Várias questões surgem.Até que ponto o homem urbano, controlado pelotempo formal, vai conseguir diminuir seu ritmo,

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 37

procurando o bem-estar? Como as atividadesagrárias serão encaradas? Ocorrerá participaçãoou apenas observação?

No jornal FOLHA DE SÃO PAULO (30/06/97) um garoto adolescente da classe médiapaulistana orgulhava-se de acordar às seis horasda manhã e ir para o campo cortar cana, duranteas férias. Declarava que vários amigos tambémtinham resolvido, durante este ano, passar asférias no que foi chamado, pelo jornal, de“intercâmbio rural”.

No artigo denominado Tempo livre comoobjeto de consumo e lazer dirigido comooportunidade de manipulação, RODRIGUESescreve que:

O tempo livre torna-se um tempo social e o lazertorna-se um produto da sociedade de consumo,mercadoria que se vende e se compra. Aevolução atual da sociedade industrial mostraque o tempo livre, longe de ser um tempoprivado do indivíduo, do seu encontro consigomesmo, torna-se um tempo social, ou seja,criador de novas relações sociais carregadas denovos valores. (1997, p. 109)

Outro fator a ser destacado é a modernizaçãodo campo entendida como um incentivo à grandecultura. São as regiões Sul e Sudeste que recebema maioria do crédito rural, e este está centralizadono Estado de São Paulo, e em segundo lugar noEstado do Paraná (GRAZIANO NETO, 1988).É dirigido, principalmente, para o café, soja, cana,algodão e trigo. Também há diferenças entre osprodutores rurais. Os maiores produtores são osque conseguem obter o crédito e são os grandesprodutores que se beneficiam com a política decrédito rural, incentivos fiscais e assistênciatécnica.

As pequenas propriedades, principalmente,apenas podem adequar-se para a recepção deturistas através de linhas de crédito, poispossuem, na maioria, uma taxa de acumulação decapital muito baixa. O turismo rural foi estimuladona Espanha e outros países da ComunidadeEuropéia através do crédito estatal. Assim, se ocrédito ligado ao turismo, via Estado, continuarsendo facilitado, na maior parte do país, apenas aosgrandes proprietários, ou aos que possuem maiorpoder de acumulação, a colocada função do turismorural de impedir a concentração de terras não vaiocorrer, e sim o contrário.

BOULLON (1993) enfatiza que o turismorural se desenvolveu principalmente na Europapor este continente ter uma estrutura de espaçorural baseada em pequenos povoados dispersospor todo o território e pequenas propriedadesrurais onde é possível alojar turistas, pois não hágrandes diferenças sociais e culturais entre oscamponeses e visitantes, principalmente asrelacionadas ao conforto e tecnologias utilizadas.

Considera que na América Latina o quadro édiferente, correndo-se o risco do turismo ruralficar restringido aos grandes e médiosestabelecimentos. E, com relação aos pequenosprodutores e comunidades indígenas, o que podeocorrer é uma curta permanência ou a construçãode alojamentos e instalações especiais (enclavesturísticos) de onde saem as excursões para aobservação.

Nas zonas brasileiras de ocupação antiga aconcentração de terras dá-se com as pequenaspropriedades sendo adquiridas pelas grandes. NoParaná, são os produtores de soja que têmcomprado as menores propriedades. Assim,torna-se importante um planejamento, dentro dapolítica estatal, pensando em reais possibilidadesde crédito para pequenos projetos turísticos emespaços rurais.

Na modernização das relações de trabalho nocampo brasileiro um grande contingente de mão-de-obra, antes necessário, migrou para asperiferias das maiores cidades, com o trabalhadorbóia-fria sendo contrato sazonalmente, trazendosérios problemas de falta de infra-estrutura eaumento de violência nestas cidades. As menorescidades do Paraná perderam população edinamismo, enfrentando severa crise. Estão àprocura de alternativas para a sobrevivência dosseus habitantes.

Em fevereiro do ano de 1997, durante o 1ºFórum de Turismo do Norte do Paraná, realizadoem Londrina, com representantes das prefeiturasde vários municípios, de médios a pequenos, oturismo era colocado pela EMBRATUR e outrasinstituições como uma possibilidade para acriação de empregos e melhoria das condiçõesde vida no campo e na cidade.

Em suma, algumas questões podem ser objetode estudos, relacionadas às formas e funções doturismo rural:

a) a estrutura fundiária (concentração de terrase condomínios ou chácaras de recreio);

38 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000

b) o trabalho (surgimento de novos empregos,transformação nos existentes, origem da mão-de-obra, tipo de empregos que surgem);

c) a criação de novas necessidades e atransformação no processo de produção;

d) a relação entre educação formal e informal eo turismo;

e) os tipos de convivência entre os turistas e asatividades produtivas;

f) o crédito e subsídios estatais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O turismo rural, que hoje se apresenta comoum elemento na organização do espaço rural,pode ser entendido como uma outra faceta damodernização. A modernização brasileira foi,sempre, excludente, e no espaço rural significouuma transformação violenta nos modos de vida,com uma grande quantidade de pessoasmigrando para as cidades.

Qualquer planejamento comprometido coma maioria da população deve pensar em algumasdas possibilidades que têm sido colocadas parao turismo rural: geração de empregos,manutenção da pequena e média propriedaderural assim como de obras arquitetônicas de valorhistórico e/ou artístico, conservação de paisagenscom valor cênico ou dado pela biodiversidadeexistente ou pelo critério da raridade e criaçãode locais de lazer e turismo com baixo ou médiocusto para o morador urbano. Por outro lado, énecessário evitar que esta atividade torne-secompletamente dominada por uma lógica externaaos interesses da população local.

Outro aspecto a ser destacado é a importânciade pensar, antes da implementação, naconservação destes espaços, pois o turismo podeser extremamente predatório, e neste sentidosurge a ligação importante entre turismo eeducação, entendendo aqui educação como umprocesso permanente, que vai além datransmissão e recepção de conhecimentos, maspara a qual a troca de informações é importante,sendo esta educação necessária para promotorese usuários da atividade turística, para conseguir-se um turismo com menor impacto ao meio.

Como qualquer outra atividade humana, oturismo é carregado de complexidades: uma visãocrítica do turismo, sem colocá-lo a princípio comonegativo ou positivo, aceitando a contingência e

procurando entendê-lo dentro das contradiçõespróprias da sociedade, torna-se necessária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRERA, Ernesto. Situacion del turismo rural en laRepublica Argentina in ALMEIDA, Joaquim A;FROEHLICH, José M; RIEDL, Mário (Org.)Turismo Rural e Desenvolvimento Sustentável.Santa Maria: Universidade Federal, 1998.

BOULLON, Roberto. Ecoturismo – SistemasNaturales y Urbanos. Buenos Aires: LibreiaTurística, 1993.

CALVENTE, Maria del C. M. H. No Território doAzul-Marinho – A busca do espaço caiçara. SãoPaulo: USP/Dep. de Geografia, 1993 (Dissertaçãode mestrado).

CAVACO, Carminda. Turismo Rural eDesenvolvimento Local in RODRIGUES, Adyr B.Turismo e Geografia – Reflexões Teóricas eEnfoque Regionais. São Paulo: Hucitec, 1996.

DIEGUES, Antonio C. S. O Mito Moderno da NaturezaIntocada. São Paulo: NUPAUB/USP, 1994.

FOLHA DE SÃO PAULO, Caderno Ciência. Grifescriam moda sem agrotóxico. São Paulo: 20/11/94,p. 16.

FOLHA DE SÃO PAULO, Folhateen. Garotosinvestem em férias originais. São Paulo, 30/06/97,p.5.

FOLHA DE SÃO PAULO, Agrofolha. Empresáriosinvestem na área country. São Paulo, 01/07/97, p. 6.

FROEHLICH, José M.; RODRIGUES, Ivone da S.Atividade turística e espaço agrário – consideraçõesexploratórias sobre o município de Restinga Seca– RS in ALMEIDA, Joaquim A; FROEHLICH,José M; RIEDL, Mário (Org.) Turismo Rural eDesenvolvimento Sustentável. Santa Maria:Universidade Federal, 1998.

GARCÍA, Rafael F. El Turismo en España – EspecialReferencia al Analisis de la Demanda. Madrid:Instituto de Estudios Turísticos, 1995.

GRAZIANO NETO, Francisco. Questão Agrária eEcologia – Crítica da moderna agricultura. SãoPaulo: Brasiliense, 1988.

GRAZIANO DA SILVA, José; VILARINHO, Carlyle;DALE, Paul J. Turismo em áreas rurais – suaspossibilidades e limitações no Brasil in ALMEIDA,Joaquim A; FROEHLICH, José M; RIEDL, Mário(Org.) Turismo Rural e Desenvolvimento Sustentável.Santa Maria: Universidade Federal, 1998.

LAURENT, Christiane; MAMDY, Jean-François. Oturismo rural na França in ALMEIDA, JoaquimA; FROEHLICH, José M; RIEDL, Mário (Org.)Turismo Rural e Desenvolvimento Sustentável.Santa Maria: Universidade Federal, 1998.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 25-39, jan./jun. 2000 39

MAILHOS, Victoria. El turismo rural en el Uruguayin ALMEIDA, Joaquim A; FROEHLICH, JoséM; RIEDL, Mário (Org.) Turismo Rural eDesenvolvimento Sustentável . Santa Maria:Universidade Federal, 1998.

PRESVELOU, Clio. Ações inovadoras em turismorural in ALMEIDA, Joaquim A; FROEHLICH,José M; RIEDL, Mário (Org.) Turismo Rural eDesenvolvimento Sustentável. Santa Maria:Universidade Federal, 1998.

RIBEIRO, Manuela. Turismo rural em Portugal – dosseus protagonistas principais e da sua configuraçãoin ALMEIDA, Joaquim A; FROEHLICH, JoséM; RIEDL, Mário (Org.) Turismo Rural eDesenvolvimento Sustentável . Santa Maria:Universidade Federal, 1998.

RODRIGUES, Adyr A. B. Turismo eco-rural inALMEIDA, Joaquim A; FROEHLICH, José M;RIEDL, Mário (Org.) Turismo Rural eDesenvolvimento Sustentável . Santa Maria:Universidade Federal, 1998.

._______. Turismo e Espaço – Rumo a umconhecimento transdisciplinar . São Paulo:Hucitec, 1997.

._______. Desafios para os estudiosos do turismo inTurismo e Geografia – Reflexões Teóricas eEnfoques Regionais. São Paulo: Hucitec, 1996.

RUSCHMAN, Doris v. d. M. O turismo rural edesenvolvimento sustentável in ALMEIDA,Joaquim A; FROEHLICH, José M; RIEDL,Mário (Org.) Turismo Rural e DesenvolvimentoSustentável. Santa Maria: Universidade Federal,1998.

SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo,Globalização e Meio Técnico-CientíficoInformacional. São Paulo: Hucitec, 1997a.

._______. Espaço e Método. São Paulo: Nobel,1997b.

._______. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo– Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

SHANIN, Teodor. La Clase Incómoda – Sociologíapolítica del campesinado en una sociedad endesarrollo (Rusia 1910-1925). Madrid: AlianzaEditorial, 1983.

VALCÁRCEL-RESALT, Germán et al. (Coord.)Desarrollo local, Turismo y Medio Ambiente .Cuenca: Publicaciones de la Excma. DiputaciónProvincial de Cuenca, 1993.

ZIMMERMANN, Adonis. Planejamento eorganização do turismo rural no Brasil inALMEIDA, Joaquim A; FROEHLICH, José M;RIEDL, Mário (Org.) Turismo Rural eDesenvolvimento Sustentável . Santa Maria:Universidade Federal, 1998.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000 41

INTRODUÇÃO

O Ciclo Básico de Alfabetização, implantadonas escolas estaduais do Estado do Paraná, tempor objetivo não apenas a alfabetização enquantoapreensão da língua escrita e desenvolvimentodo raciocínio lógico mas também, alfabetizaçãopara a vida, não desvinculando os conteúdosculturais, universais, historicamente construídos,mas ligando-os à sua significação social. Partindo-se deste pressuposto, é necessário odesenvolvimento de um trabalho com as criançasque envolva todas as ciências. Neste sentido, ainterdisciplinaridade cumpre papel essencial, poisvem ao encontro dessa questão, quando faz asinterrelações entre os conteúdos das diversasdisciplinas. O conceito de interdisciplinaridadeé muito vasto e permite, assim como o conceitode solo, muitas definições. Utilizaremos nessetrabalho aquele que parece ser o mais aceito pelosprofessores do ciclo básico de alfabetização. A

O ensino de pedologia no ciclo básico de alfabetização*

Selma Lúcia De Moura Gonzales**, Omar Neto Fernandes Barros ***

RESUMO

O Ciclo Básico de Alfabetização tem por objetivo não apenas a alfabetização enquanto apreensão da línguaescrita e desenvolvimento do raciocínio lógico mas também, alfabetização para a vida. Neste sentido trabalhar demaneira interdisciplinar é uma necessidade. Para exemplificar um trabalho interdisciplinar foi proposto comotema gerador: O SOLO. A partir deste tema exemplificou-se, tendo por base o trabalho desenvolvido pelo CentroTécnico de Ciência do Solo-CTCS e Universidade Estadual de Londrina-UEL. Como desenvolver um trabalhointerdisciplinar objetivando contribuir com o professor alfabetizador, embasando o educador , para este rever suaprática cotidiana, na busca pelo melhor ensinar?

PALAVRAS-CHAVES: Interdisciplinaridade, aprendizagem, metodologia, solos, ONG, CTCS.

interdisciplinaridade é o desenvolvimento dosconteúdos de uma forma global, salientando-sea importância do trabalho com um tema gerador.O conteúdo de Pedologia começa a sertrabalhado a partir das séries iniciais, ou seja, pelaprimeira fase do Ciclo Básico de Alfabetização,tanto sob o enfoque geológico , quanto sob oedafológico. Desta forma, o trabalho deve serfeito interrelacionando para que a criançaassimile os conteúdos pedológicos nãodesvinculados do conhecimento historicamenteconstruído, mas que este apreenda a fazer maisque uma leitura de palavras; e sim uma leiturade vida, da sociedade em que está inserida e seupapel dentro dela. Neste sentido, a propostainterdisciplinar vem ao encontro à essasaspirações, para que estas possibilidades seconcretizem no início da caminhada da busca doconhecimento, que são as séries iniciais, desde àpré-escola até o Ciclo Básico de Alfabetização.

* Parte da Monografia de Especialização no Ensino de Geografia do primeiro autor, intitulada “A Interdisciplinaridade ComoCaminho Para Se Trabalhar Pedologia No Ciclo Básico”. Londrina, 1996. Departamento de Geociências da UniversidadeEstadual de Londrina. Trabalho apresentado no XIII Congresso Latinoamericano de Ciência do Solo, Águas de Lindóia-SãoPaulo-Brasil entre 4 e 8 de agosto de 1996.** Escola Preparatória de Cadetes do Exército – Campinas. E-mail: [email protected].*** Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Geociências, C.P. 6001, Londrina-PR-Brasil, Fax: (042) 3714216.Email: [email protected].

42 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000

O SOLO NOS CONTEÚDOS DO CICLOBÁSICO

No Ciclo Básico de Alfabetização, o SOLOaparece em vários conteúdos e mesmo naquelesem que não aparece de forma explícita, muitassão as ocasiões em que podemos utilizá-lo para

o desenvolvimento dos conteúdos propostos.Num trabalho interdisciplinar, e utilizando-se dotema gerador SOLO, exemplificamos asmúltiplas possibilidades de enfocar váriosconteúdos de diversas disciplinas, integrando einteirando-os.

Tema Gerador : SOLO

Subtemas Quais conteúdos poderiam ser trabalhados

De que maneira (exemplos)

-O que é SOLO? .Constituintes (areia, silte, argila)

-Os elementos produzidos diretamente pela natureza. -A habitação da criança. -Outras famílias e outras habitações. -Acontecimento de sua vida: passado, presente, futuro

-Na constituição do solo. -Construídas com materiais provenientes do solo: argila, calcário, cimento. -Brincadeiras com argila, barro, etc.

-Diferentes tipos de uso do solo. .Solo para agricultura: propriedades rurais; tipos de propriedades rurais, etc.

-Homem: produção alimentar-cultivo do solo. -Os elementos naturais importantes para a existência da vida: a água, os vegetais, os animais.

-A importância da produção de alimentos. -A importância da água para a agricultura, os animais que vivem no solo, os tipos de vegetais que se adaptam a determinados solos.

-Solo como habitat: pessoas, animais, plantas, etc.

-Os seres vivos que habitam a superfície terrestre e o solo.

-Seres vivos que vivem na superfície e dentro do solo (raízes das plantas, insetos, animais).

-Solo como matéria-prima; cerâmica, cimento, recursos energéticos.

-As pessoas transformam os elementos naturais em produtos que tenham utilidade.

-Produção de cerâmica a partir da argila.

-Cuidados com o solo. -Uso dos elementos naturais e seu impacto sobre o meio ambiente.

-Uso inadequado do solo, retirada de solos férteis, alagamento de grandes extensões de solo agricultável, etc.

A utilização do tema solo, embora não sendoa única maneira de tratar de formainterdisciplinar uma grande parte dos conteúdospara o Ciclo Básico, pode contribuir de formasignificativa para o desenvolvimento deste deuma maneira mais dinâmica. Como pode ser vistoacima, utilizando-se do SOLO como temagerador, houve inúmeras possibilidades detrabalhar os mais diversificados conteúdos dediferentes disciplinas.

UMA PROPOSTA METOLÓGICAPEDAGÓGICA – CTCS (CENTROTÉCNICO DE CIÊNCIA DO SOLO)

O CTCS é uma organização nãogovernamental, brasileira, sem fins lucrativos,fundada em abril de 1990, com sede em SãoPaulo, cuja proposta central de trabalho é dotaros agricultores e o público em geral de uma visão,conceitos e instrumentos que lhes permitamconhecer e compreender melhor o solo para

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000 43

utilizá-lo melhor. O procedimento técnicoprincipal do CTCS é o da abordagemmorfológica do solo, ou seja, começando o estudodos solos pela descrição de campo, da anatomia(morfologia), descobrem-se as propriedades dossolos, suas fertilidades, seus comportamentosface às plantas, às técnicas agrícolas e aosmanejos. É em função dos dados morfológicosque serão abordados os conhecimentos(biológicos, químicos, físicos, mecânicos)relativos aos solos, às relações solo-planta, aomanejo e à exploração, isto é, toda gama depossíveis interpretações. O ensino doprocedimento da análise morfológica do solo jáfoi experimentado no Brasil, na Françaparticularmente, mas também, em países daÁfrica e Ásia, primeiro nos meios universitários,depois para agrônomos, técnicos agrícolas,produtores rurais e alunos do 1º. Grau do ensinobrasileiro, como vem sendo feito na cidade deLondrina-PR, através do projetos “Descobrir OSolo” e “Um Olhar Sobre O Solo” daCoordenadoria de Extensão à Comunidade daUniversidade Estadual de Londrina-UEL. Temsido demonstrado pelo êxito destesensinamentos, especialmente junto aoscamponeses e crianças o grande interesse detodos os utilizadores dos solos, qualquer que sejao tipo e o nível de sua formação, por esteprocedimento que qualquer um assimilafacilmente. O CTCS/UEL utilizam-se de umacadeia pedagógica, visando facilitar odesenvolvimento do trabalho nos seus cursos deformação. Esta cadeia pedagógica consta dosseguintes recursos: Um filme “Terra Pra Viver”.Uma apostila “Descobrir o Solo”. Um livro demorfologia de solos intitulado “Regards Sur LeSol”, de autoria de Alain RUELLAN e MireilleDOSSO. Uma maleta pedagógica: além do filmee da apostila, esta maleta contém 85 (oitenta ecinco) transparências; 164 (cento e sessenta equatro) diapositivos ilustrativos: paisagens, cortesde solos, detalhes de estruturas pedológicas eesquemas; um pôster do perfil fotografado deum solo, que serve como um exemplo dereferência ao longo do curso e fichas pedagógicas.Uma exposição itinerante: intitulada “ADescoberta Dos Solos”. É interessante notar queo CTCS, ao utilizar como procedimento aabordagem morfológica, não o faz apenasenfocando o conhecimento específico sobre osolo, mas o faz numa perspectiva que poderíamos

chamar de interdiciplinar, pois relaciona oconhecimento sobre o solo para melhor utilizaçãocom as questões agrárias, problemas sociais, etc.Como exemplo podemos citar o filme “Terra PraViver”. Neste, apesar de o solo ser o elementoprincipal, é mostrado a questão do êxodo rural,a posse pela terra (posseiros, grileiros), mádistribuição de renda, a relação solo-clima, usodo solo. Além do filme, os outros materiaispedagógicos utilizados nos cursos de formaçãoenfocam a relação sociedade/natureza quandocolocam a importância do solo em diferentesculturas, a boa ou má utilização deste, osproblemas ambientais decorrentes da máutilização e sua relação social, etc.

ALGUNS EXEMPLOS PARAOBSERVAÇÕES SOBRE A NATUREZA EPROPRIEDADES DOS SOLOS COMALUNOS DO CICLO BÁSICO

Os exemplos citados já foram aplicados emmuitos cursos para professores, tais como: SãoVicente-São Paulo (20 professores); Recife-Pernambuco (25 professores); Ijuí-Rio Grandedo Sul (70 escolas); Macapá-Amapá (76professores e 15 técnicos agrícolas); Jandáia doSul (62 professores de 26 municípios), Paranavaí(46 professores de 14 municípios); Paranacity (25famílias de assentados do MST) e Londrina (10professores e 199 alunos da 8ª série) no Paraná,dentre tantos outros. Tendo em vista um trabalhointerdiciplinar, com crianças do ciclo básicocitamos cinco exemplos práticos, objetivandocontribuir no sentido de tornar possível oucolocar em prática o interdiciplinar.

1- Peneira para Determinação das Frações deSolo: Utilizando se de peneiras de malhas(tamanho da grade interna) de dimensõesprogressivamente menores, pode-se determinarparcialmente as diferentes fraçõesgranulométricas do solo. Existem peneiras dedimensões preestabelecidas que são vendidas nomercado, mas a determinação pode ser feitautilizando-se de qualquer tipo de peneira, comopor exemplo: peneira de chá, de suco, de leiteou de construção civil. O importante é que elaspermitem a separação de algumas frações,mostrando a seriação do tamanho das partículas.Este processo de peneiramento feito com o uso

44 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000

de peneiras é uma atividade bastante prática erelativamente simples, além de despertar ointeresse do aluno. Ao realizar esta atividade oprofessor poderá trabalhar: a) registro dequantidades: por exemplo, num determinadosolo, qual o tamanho de partículas quepredomina, quantos torrões foram encontrados.b) trabalho com semelhanças e diferenças entreas formas geométricas encontradas nos diferentestamanhos de partículas e a relação destaspartículas com o processo erosivo, o tipo de solo.c) construção de maquetes utilizando-se dosdiferentes tamanhos de partículas. Nestetrabalho, além da relação entre quantidades(onde tem mais, onde tem menos), seriaçãonumérica, o professor estará trabalhandotambém com textura, volume, forma, pintura,colagem. d) a partir da partícula menor (argila),construir bonecos, bichos, objetos (de usoindividual e coletivo), e utilizar essas modelagenspara dramatização de fatos vividos ou históriasde suas próprias vidas. e) produzir textos a partirdas atividades desenvolvidas: maquetes,dramatizações, modelagens. f) utilizar torrões dediferentes tamanhos, por exemplo, um de cincocentímetros e cinco de um centímetros etrabalhar equivalência, igualdade, desigualdade,etc. Para medir-se os tamanhos seria útil verificara proposta feita no livro O Menino Maluquinhodo Ziraldo página 26 [uma lição e um versinho]“Tem mil perninhas o metro – Eu vou comprarum pernômetro – Pra saber quantas perninhas –Que deve ter um quilômetro”.

2- Teste de Detecção do Mineral Magnetita:Utilizando-se de terra fina e pulverizada, depreferência obtida pelo processo depeneiramento, pode utilizar-se de um ímã paradetectar a presença do mineral magnetita (Fe

3O

4)

no solo. Colocando uma pequena quantidade deterra fina sobre uma folha de papel branca, passa-se por baixo da mesma um ímã. Caso haja apresença desse mineral, ele será atraído pelo ímãe será separado do resto da amostra. Em solosderivados do basalto ou de rochas associadasdevido aos teores elevados de magnetita, o testeserá positivo. Portanto em solos do tipo LatossoloRoxo e Terra Rocha Estruturada comuns em todaa Bacia do Paraná, o teste indicado é altamenteilustrativo. O mineral magnetita é de coloraçãopreta, possui densidade 5,2 gr/cm3 e contém altaporcentagem de ferro, podendo ser utilizado

como mineral na indústria. Nesta atividade dedetecção do mineral magnetita, o alunoperceberá que o solo possui muitos minerais, queencontram-se misturados, juntamente commaterial decomposto proveniente de animais,plantas, restos orgânicos, etc. Neste sentido, oprofessor pode trabalhar: a) as noções básicasde rochas e minerais, mostrando que o solocontém minerais pois é o resultado dadesagregação da rocha em conseqüência da açãodas chuvas, calor do sol, ventos, geleiras. b)trabalhar a utilização do ferro pelo homem, nasindústrias, nos objetos de uso doméstico, nasconstruções. c) fazer relação entre os objetos detrabalho feitos a partir do mineral ferro, que sãousados no trabalho rural. d) utilizar o teste emdiferentes solos peneirados, com diferentescolorações e observar se todos possuem ferro(magnetita) ou se são diferentes. e) produzir umrelatório com ilustrações a partir do que foitrabalhado e montar glossário. f) após o teste,classificar os diferentes tipos de solo, etiquetar efazer uma exposição do mateial com explicaçõesescritas. Além dessas atividades, muitas outraspoderão ser desenvolvidas, ficando a critério doprofessor, que conhecendo a sua turma, poderápropor outras atividades conforme o seu trabalhosala e\ou campo.

3- Teste de Detecção do Manganês: Um outroteste de fácil execução em campo ou laboratórioé a utilização de água oxigenada, de preferênciade 20 volumes, para detecção do Bióxido deManganês (MnO

2

)

. A água oxigenada reage com

o Bióxido de Manganês, liberando o gás oxigênio,o que resulta numa efervescência da amostra eliberação do calor (reação exotérmica) segundoa reação abaixo.

MnO2 + H

2O

2—— MnO + H

2O +O

2 ↑ + E (calor)

Em solos derivados de basalto e rochasassociadas essa reação é muito comum. Assimcomo no exemplo anterior, esta atividade de fácilexecução também comprova para o aluno que osolo possui minerais. Trabalhando com essaatividade o professor poderá: a) coletardiferentes tipos de solo, fazer o teste paradetecção de manganês e a partir do resultado,classificar, juntamente com os solos que contémferro e os que não contém do exemplo anterior,fazendo uma exposição na sala de aula. b) a partir

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000 45

das amostras de diferentes solos, pedir para ascrianças plantar (feijão, arroz ou milho, porexemplo), em latinhas separadas. c) montar umrelatório relatando os resultados obtidos com asplantas nos diferentes solos e ilustrá-los. d)elaborar situações problemas a partir dasexperiências. f) relacionar o uso de manganês nasindústrias e a utilização deste pelo homem nasua vida. g) colocar as crianças em contato comtextos informativos – científicos, matérias dejornais, enciclopédias, etc., para que o aluno váconstruindo conceitos, ampliando o uso dediferentes linguagens nos diversos conteúdostrabalhados. h) propor pesquisas, onde o alunoutilize os diversos tipos de textos, montando ummini-dicionário de termos desconhecidos. Alémdesses exemplos citados, outros poderão serdesenvolvidos, de acordo com osencaminhamentos e os enfoques que foremsurgindo ou os questionamentos dos alunos.

4- Teste de Determinação do pH:Propósito: medir o pH do solo, das soluções erelacionar com o desenvolvimento das plantas.Visão geral : o pH ou a acidez da amostra dosolo e soluções é o fator chave que determina oque pode viver no solo.Nível Escolar: todos.Tempo : 5 minutos para as medidas; algumassemanas para a observação de crescimento dasplantas.Freqüência :semanalmente medida de pH, ediário crescimento das plantas.Conceitos chave :

pH e suas medidas. Efeito do tempo na variação do pH. Calibragem. pH e seus padrões.Habilidades : usando equipamentos de medir pH. gravando informações.Materiais e Instrumentos :– papel indicador de pH.– copos de 50 ou 100ml, ou ainda copo plásticode café.– Vasos de plástico ou cerâmica.– sementes de plantas (feijão, milho, etc.).– amostras de solo arenoso.

No Brasil é possível encontrar fitas medidorasde pH MERCK ou MACHEREY-NAGEL no valoraproximado de U$$ 30,00 ou da marca COPARpor R$ 10,00 com 100 fitas (Junho de 1999).

Preparação :Manuseie o medidor de pH de acordo com asinstruções do fabricante.Lembre-se de deixar o tempo suficiente (1minuto).Calibre a medida conforme indicado no esquemaa seguir; adaptado do Programa GLOBE –Global Learning and Obsrevations to Benifit toEnvironment – An International EnvironmentalEducation and Science Partnership. GLOBEHomepage @www.globe.govTraga os instrumentos e materiais para o lugaradequado ao trabalho, sem perigo aos alunos.Pré-requisitos : nenhumPlano final:O protocolo consiste em determinar o pH daamostra do solo e das soluções de suco de limãoe sal de fruta para seu estudo de propriedadesquímicas e crescimento de plantas.(Figura 01)

Como medir o pH pelo método do indicador depapel1- enxágüe um copo de 50ml ou 100ml, ou ainda

copo de plástico para café pelo menos duasvezes com a amostra de água destilada depreferência.

2- encha um copo pela metade com a água/solona proporção de 1:1 a ser testado.

3- encha outros copos pela metade com assoluções de suco de limão e sal de fruta aserem testadas.

4- mergulhe uma tira de papel indicador em cadaamostra por pelo menos um minuto .Tenhacerteza de que todos os quatro segmentos depapel estão imersos na amostra de águaquando tratar-se de de pH MERCK ouMACHEREY-NAGEL .

5- Remova as tiras e compare as cores dossegmentos resultantes com a tabela atrás dacaixa de papel de indicadores de pH .Tenteachar a seqüência onde todos os quatrosegmentos do papel da amostra combinemcom os segmentos da caixa .

6- Se a leitura não está clara, pode ser porque opapel necessite de mais tempo para que possareagir totalmente. O papel indicador demoramais para reagir em água com condutividadeinferior a 400microSiemens/cm. Se é o caso,recoloque o papel na amostra por mais umminuto e verifique novamente. Repita até sesatisfazer de que a leitura está precisa. Se aleitura ainda não está clara alguns minutos,

46 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000

comece novamente com uma nova tira depapel de pH. Se o papel falhar uma segundavez, anote no seu relatório.

7- Leia o pH correspondente e grave seu valorna sua folha de investigação para efeito depreparação de relatório.

Nota : a leitura de papel de pH pode não serprecisa se as amostras possuírem umacondutividade elétrica inferior a 300microSiemens/cm. O papel de pH não funcionacorretamente abaixo deste nível.

Propósito Final: possibilitar aos alunos o contatocom conhecimentos relativos à química cotidianapois, mesmo sem conteúdo aprofundado sobreos conceitos de ácido e base, os dados de pHsão de domínio comum; sobretudo por aquelesque desenvolvem suas atividades no meio rural.Seguindo-se as etapas e anotando os resultadosda evolução do pH ao longo dos dias edesempenho das plantas é possível elaborarrelatórios compostos contendo uma dissertaçãocom apoio de um conjunto de documentos taiscomo: textos, mapas, gráficos, estatística, etc.

Figura 1 – Protocolo para determinação do pH.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000 47

5- Jogo Mosaico Educativo – Jogo de Tabuleiro.

Este jogo foi desenvolvido pelo pessoal doCET- Chile e procura demonstrar a necessidadede uma grande atividade biológica no solo parauma boa alimentação das plantas. Nesse jogo, ascrianças são divididas em quatro grupos, cadagrupo com um tabuleiro com peças de diferentescores em números iguais. Cada tabuleirorepresenta da mais alta a mais baixa diversidade(mais ou menos organismos se alimentando) ecada criança representa um organismo ou aplanta, que deve comer seu alimento (os pinoscoloridos) em função de determinadascombinações de cores. No final do jogo a plantaque fica no meio mais diversificado é a queconsegue comer mais peças.

“Regras” do Jogo Mosaico Educativo – Jogode Tabuleiro:

O jogo consiste em simular como se dá anutrição de uma planta em ambientes comdiversidade biológica diferente e onde aquantidade de alimento é sempre a mesma. Aidéia é mostrar aos jogadores as interações queexistem entre os organismos e a necessidade dese ter um solo bem equilibrado do ponto de vistada composição biológica.

Utilizando-se de tabuleiros plásticos e pinoscoloridos a planta se alimenta ao mesmo tempoque outros organismos presentes no solo.

O organismo 1 come os pinos vermelhos quenão tenham pino azul ao lado.

O organismo 2 come os pinos azuis que nãotenham pinos vermelhos e amarelos ao lado.

O organismo 3 come os pinos amarelos quenão tenham pinos azuis e verdes ao lado.

O organismo 4 come os pinos vermelhos quenão tenham pinos verdes e amarelos ao lado.

O organismo 5 come os pinos verdes que nãotenham amarelos e vermelhos ao lado.

O organismo 6 come os pinos azuis que nãotenham verdes e vermelhos ao lado.

O organismo 7 come os pinos amarelos quenão tenham pinos vermelhos e verdes ao lado.

O último organismo é a planta, que comepinos verdes sem amarelos ou azuis ao lado.

Para o jogo completo são necessários 20jogadores, onde cada um representará umdeterminado organismo. Eles devem se dividirem 4 tabuleiros onde:

Tabuleiro A: todos os organismos presentes(planta + organismos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7)

Tabuleiro B: Planta + organismos 1, 2, 3, 4, 5e 6.

Tabuleiro C: Planta + organismos 3, 5 e 7.Tabuleiro D: apenas a planta.Cada um dos jogadores vai comer (tirar do

tabuleiro) o pino da cor (alimento) determinada.A medida que outros organismos também vãose alimentando, eles podem comer mais pinos,uma vez que os pinos que não podiam sercomidos, por estarem com um outro pinocolorido ao lado, já podem ser comidos.

A grande observação a fazer é onde a plantapôde comer mais pinos: onde estava sozinha, ouonde havia maior diversidade de organismos. Onúmero de pinos pode variar e a sua disposiçãono tabuleiro é aleatória, mas o importante é queo número de pinos seja o mesmo para cada umadas cores. O tempo de jogo será variável emfunção do número de pinos, mas em geral é algorápido – 5 a 10 minutos. São necessários 4tabuleiros para o desenvolvimento completo dojogo.

O jogo Mosaico Educativo – Jogo deTabuleiro é um material de fácil aquisição, poisnão é um jogo sofisticado. Depois que oprofessor tiver trabalhado as outras atividadesou mesmo durante, poderá utilizar este material,pois o aluno já saberá o que é solo, como ele épor dentro , seus usos, a importância deste navida do homem, os seres que vivem na superfíciee interior do solo, etc.

Trabalhando este jogo o professor poderá: a)levar os alunos a perceberem a importância dosorganismos que vivem no solo e asinterdependências que estes mesmo realizam. Apartir daí trabalhar a idéia de cadeia alimentar:seres produtores, consumidores, decompositores.b) relacionar que da mesma maneira que osseres vivos se interdependem, o ser humano, aoviver em sociedade, necessita deinterdependências com outros seres humanos,começando pela família, a sala de aula, a escolae os grupos que convivem no local de moradiado aluno. c) mostrar também que o ser humanoalém de ser interdependente de outros sereshumanos, também é das plantas, animais , ouseja, a natureza. E que da mesma maneira quetemos que respeitar os outros seres humanos,também a natureza deve ser respeitada. d)relacionar os tipos de solo (com mais organismos,com menos) com a vegetação. Fazer a experiênciaplantando o mesmo tipo de planta em latinhas

48 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000

com solos com menor e maior quantidade deorganismos (solo de mata e solo agrícola ou atésolo de construção civil). e) redigir pequenosrelatórios, relatando os resultados e ilustrá-lo. f)fazer relação entre propriedades rurais e os tiposde solos, usos de inseticidas e herbicidas,produtividade e tamanho das propriedades. g)trabalhar com unidade padrão de comprimento,relacionando o tamanho dos terrenos, dos lotesurbanos e unidade padrão de massa: quilos,sacas, etc. e a partir desse trabalho, elaborarsituações problemas envolvendo as quatrooperações fundamentais e o sistema monetário.h) utilizar o tabuleiro e os pinos para trabalharsituações problemas, seqüênciação, lateralidadee cores. i) montar um texto coletivo que envolvamos tipos de propriedades, a produtividade, o usodo solo, a degradação ou pedir aos alunos queescrevam os seus próprios textos ou contemalgumas situações vividas e a partir desses textosfazer dramatizações. j) levar os alunos paraobservarem dois ou mais solos no quintal daescola (horta ou jardim, solos desnudos, etc.) eanotarem a diferença entre eles quanto aquantidade de “bichinhos” (organismos),fazendo relação com o tipo de plantação queexiste em cada um. É importante salientar queas produções de textos (relatórios, descrições,histórias, etc.) devem sempre ser trabalhadasconjuntamente com as atividades desenvolvidas,pois a criança vai ampliando os usos dasdiferentes linguagens, facilitando a aquisição dalíngua escrita.

Estas atividades propostas estão maisespecificamente voltadas para a 2ª. fase do CicloBásico de Alfabetização, mas podem sertrabalhadas também na 1ª. fase. Caberá aoprofessor adequar a linguagem e os níveis dedificuldades das atividades à realidade de cadaturma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Elegendo-se como tema gerador o SOLO epropondo um trabalho interdiciplinar, é possívelao professor do Ciclo Básico de Alfabetizaçãodesenvolver muitas áreas do conhecimento, o quenão significa que se priorize esse tema emdetrimento de outros, mas que é possíveltrabalhar-se com conteúdos da pedologia,conforme as necessidades, interesses e

encaminhamentos que forem surgindo noprocesso pedagógico. Exemplos complementarespara a observação sobre a natureza epropriedades dos solos podem ser encontradosem GONZALES (1996), bem como, umareflexão de caráter teórico mais completa.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta deensinar. 13. ed. São Paulo: Cortez, 1985. (ColeçãoPolêmica do Nosso Tempo).

BRADY, Nyle C.; BUCKMAN, Harry. O. Natureza epropriedades dos solos. 4. ed. Rio de Janeiro: F.Bastos, 1976.

CALLAI, Helena Copetti (org.). O ensino degeografia. Ijuí: UNIJUÍ, 1986.

CARDOSO, Heloísa. O discurso interdisciplinar. Riode Janeiro: [UFRJ, 1994]. Mimeografado.

CARNEIRO, Sônia Maria Marchiorato. Geografia einterdisciplinaridade. In: CONGRESSOBRASILEIRO DE GEÓGRAFOS, 5, 1994, Curitiba.Anais... Curitiba: AGB, 1994. v. 1, p.67-75.

CENTRO TÉCNICO DE CIÊNCIA DO SOLO.CTCS: Origens e objetivos. Brasília: [s. n.], 1990.

DUARTE, Gerusa Maria. A interdisciplinaridade noscursos de pós graduação em geografia. [s. l.: s. n.,s. d.]. Mimeografado.

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Estudos. 11.ed. São Paulo: Perspectiva, 1994.

FAZENDA, Ivani C. Arantes. Interdisciplinaridade:história, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus,1994.

FAZENDA, Ivani C. Arantes. Práticasinterdisciplinares na escola. 2. ed. São Paulo:Cortez, 1993.

FERNANDES BARROS, Omar Neto. Análiseestrutural e Cartografia detalhada de solosem Marília, Estado de São Paulo: ensaiometodológico. São Paulo, 1985. Dissertação –(Mestrado em Geografia) – Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas,Universidade de São Paulo.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novodicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1986.

GONZALES, Selma Lúcia de Moura. AInterdisciplinaridade Como Caminho Para SeTrabalhar Pedologia No Ciclo Básico. Londrina,1996. Monografia de Especialização no Ensino deGeografia – Departamento de Geociências daUniversidade Estadual de Londrina.

INSTITUTO DE TERRAS, CARTOGRAFIA EFLORESTA. Atlas do Estado do Paraná.Curitiba: [s. n.], 1987. p.2-3.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 41-49, jan./jun. 2000 49

JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade e patologiado saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

MARCOS, Zilmar Ziller. Ensaio sobre epistemologiapedológica. Piracicaba: Fundação Cargil, 1979.

MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia:pequena história crítica. 8. ed. São Paulo:HUCITEC, 1988.

MÜLLER, Mary Stela: CORNELSEN, Julce Mary.Normas e padrões para teses, dissertações emonografias. Londrina: UEL, 1995.

NOGUEIRA, Adriano (org.). Contribuições dainterdisciplinaridade para a ciência, para aeducação, para o trabalho sindical. Petrópolis:Vozes, 1994.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de (org.). A ciênciageográfica moderna e seu ensino. São Paulo: USP,1993. (apostila mimeo.)

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A ciênciageográfica moderna e o seu ensino. São Paulo:USP, 1993. (apostila mimeo).

OLIVEIRA, João Bertoldo de; MENK, João RobertoFerreira. Latossolos roxos do Estado de São Paulo.São Paulo: Secretaria de Agricultura eAbastecimento, 1984. (Boletim Técnico, n. 82).

PARANÁ. Secretaria de Estado do Planejamento.Anuário Estatístico do Paraná: 1984. Curitiba:Departamento Estadual de Estatística, 1985.

PEREIRA, Diamantino. Geografia Escolar:identidade e interdisciplinaridade. CONGRESSOBRASILEIRO DE GEÓGRAFOS, 5, 1994,Curitiba. Anais... Curitiba: AGB, 1994. v.1, p.76-83.

PONTUSCHKA, Nídia Nacib (org.). Ousadia nodiálogo: interdisciplinaridade na escola pública.São Paulo: Loyola, 1993.

QUEIROZ NETO, José Pereira de. Pedologia:conceito, método e aplicações. Revista doDepartamento de Geografia. São Paulo, v. 3., p. ,1986.

RUELLAN, A. DOSSO, M. Regards sur le sol.Universités Francophones. Difusão Foucher,EDICEF ou ELLIPSES. Paris, 1993.

SAVIANI, Demerval. Pedagogia Histórico-Crítica:primeiras aproximações. 2. ed. São Paulo: Cortez,1991.

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO.Currículo básico para a escola do Estado doParaná. Curitiba: SEED, 1990.

SANTOS, H. L.; VASCONCELLOS, C.A.Determinação do número de amostras de solo paraanálise química em diferentes condições demanejo. Revista Brasileira de Ciência do Solo, n.11:p.97-100, 1987.

ZIRALDO, Alves Pinto O Menino Maluquinho.Comp. Melhoramentos de São Paulo, 1980.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000 51

INTRODUÇÃO

Os estudiosos das questões populacionaisconsideravam, até o Censo Demográfico de1980/IBGE, que a população brasileira era“fechada”, alterando-se apenas pela mortalidadee natalidade, pois a participação da populaçãoestrangeira era bastante pequena. Apenas paraexemplificar, em 1920 os estrangeirosparticipavam com 5,1% da população residenteno país, e em 1980 essa participação representavaapenas 0,8%. Observe-se ainda que o Brasil atéos anos 50 recebeu cerca de cinco milhões deimigrantes estrangeiros, encerrando-se então a“vocação” receptora da história brasileira.(Patarra e Baeninger, 1995).

A partir da década de 80, há uma modificaçãoneste panorama, quando os movimentosmigratórios internacionais passaram a mostrar

Migrações internacionais para o Japão e a formaçãoescolar dos filhos de dekasseguis.Maringá – Paraná-Brasil *

Alice Yatiyo Asari **Luzia Mitiko Saito Tomita ***

RESUMOO artigo trata das migrações internacionais e os reflexos na vida escolar de trabalhadores brasileiros descendentesde japoneses (“dekasseguis”), que se dirigem para o Japão a fim de compor o contingente de mão-de-obra nasempresas japonesas (indústrias e prestação de serviços). O caráter temporário deste fluxo migratório tem penalizadoos filhos de “dekasseguis”, e, nesta pesquisa se enfoca os problemas causados pela interrupção dos estudos noBrasil, a adaptação ao novo local de estudo e o retorno ao Brasil.

PALAVRAS-CHAVES: migrações internacionais, dekasseguis, formação escolar

uma outra faceta, em que brasileiros se dirigemprincipalmente para os Estados Unidos, Japão epaíses da América Latina, fato que sinaliza aexistência de uma crise econômico-social nospaíses de saída, justaposta ao impacto dastransformações nas estruturas econômicas nospaíses de recepção, apoiado na flexibilidade dosprocessos e mercados de trabalho e dos padrõesde consumo. (Harvey, 1994).

No caso brasileiro, o Ministério de RelaçõesExteriores realizou em 1996 um levantamentodos brasileiros no exterior, totalizando 1.324.189pessoas, sendo que dentre os principais paísesreceptores estavam os Estados Unidos, com610.130, Paraguai, com 325.000 e Japão com170.000 brasileiros.

No ano de 1997, segundo dados dodepartamento de Imigração do Ministério daJustiça do Japão, são 233.254 brasileiros

* Resultado parcial da pesquisa denominada “A report based on the field research in foreign countries regarding the Educationof students from overseas countries”, coordenada pelo prof. Satoshi Kawanobe da Tokoha Gakuen University-Shizuoka,Japan. A equipe de pesquisadores é constituída de professores desta Universidade: Taijun Saito, Sampei Suzuki, JandyraMaeyama, Hironori Nagashima e XinMin Yu e de colaboradores externos do Brasil, da Universidade Estadual de Londrina,NRE-Secretaria de Educação de Maringá e de Assaí-Pr..** Professora do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina- Paraná – Brasil*** Coordenadora Pedagógica da Área de Geografia e Educação Ambiental do Núcleo Regional de Educação de Maringá eProfessora do Curso de Especialização em Ensino de Geografia da UEL-Londrina-Pr.

52 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000

(“nikkeis”) registrados no país, sendo que 62%estão distribuídos nas seguintes províncias:– Aichi............. 42.917 brasileiros– Shizuoka........32.202 “– Kanagawa......15.434 “– Nagano..........14.676 “– Gunma..........13.933 “– Mie............... 12.433 “– Saitama........ 12.226 “

Observe-se ainda que, outros países sul-americanos têm contribuído para compor a mão-de-obra não especializada e temporária do setorprodutivo japonês, como se verifica nos dados aseguir, referentes a dezembro/97, da instituiçãojaponesa responsável pelo registro de estrangeiros:

País nº de pessoas %Brasil 233.254 82,8Peru 40.394 14,3Bolívia 3.337 1,2Argentina 3.300 1,2Paraguai 1.466 0,5Total 281.751 100,0

Este deslocamento de pessoas em direção aoJapão tem seu início em meados dos anos 80,alcançando em 1991 mais de 100 mil pessoas, eem 1997 apresenta o dobro de pessoas, mesmocom a crise porque tem vivenciado este país.

E é sobre os reflexos deste movimentomigratório que estaremos tratando nesse relatóriopreliminar das pesquisas empíricas realizadasneste ano, em conjunto com os professoresJandyra Maeyama, Sampei Suzuki, Taijun Saito ,da Universidade de Tokoha Gakuen, deShizuoka. Este trabalho faz parte da pesquisadenominada “O processo educacional dosestudantes brasileiros de 1º e 2º graus no Japão,cabendo-nos, na qualidade de colaboradoresexternos, fazer um resumo dos resultados parciaisobtidos até o momento.

No ano de 1998 escolheu-se como área deestudo o município de Maringá para a realizaçãoda pesquisa empírica, junto aos “dekasseguis”eseus filhos em idade escolar que osacompanharam ao Japão.

No item a seguinte, faremos uma sucintaapresentação do município de Maringá, quepossui uma significativa comunidade de nipo-brasileiros.

A) A PESQUISA EMPÍRICA

A.1. O município de Maringá

O município de Maringá faz parte doempreendimento da Companhia de Terras Nortedo Paraná, de capitalistas ingleses, que adquiriudo Governo do Estado do Paraná, uma gleba de550 mil alqueires (um alqueire corresponde a24.200 m2), na região norte-paranaense. Destes,515 mil alqueires foram adquiridos até 1928(CMNP, 1975:p.59) e posteriormente, em 1944,mais 29 mil alqueires no território do NorteNovíssimo, na zona de Cianorte e Umuarama(Padis, 1981:p.91). A companhia colonizadoraparcelou a área em pequenas propriedades (de10 a 20 alqueires), vendendo-as a famílias comexperiência na agricultura, residentes no Estadode São Paulo, principalmente. Dentre essasfamílias encontravam-se muitas famílias deimigrantes japoneses que haviam trabalhado nacultura do café no oeste paulista. Municípios designificativa importância, além de Maringá,resultaram deste empreendimento, tais como:Londrina (a 1ª cidade fundada pela Companhia),Umuarama, Cianorte, Apucarana, Cambé,Rolândia, Arapongas, Jandaia do Sul,Mandaguari.

Maringá torna-se município no ano de 1947e, segundo a AMUSEP (Associação dosMunicípios do Setentrião Paranaense), é um dostrês mais importantes pólos de desenvolvimentosócio-econômico e cultural do Estado. Suapopulação atual é estimada em 271.347 habitantes,sendo que 96% residem na zona urbana.

Segundo a publicação Perfil de Maringá(1987), a superfície do município é de 47.306hectares; situa-se a noroeste do Estado, numaaltitude média de 554 metros acima do nível domar, num espigão divisor de água, entre os riosPirapó e Ivaí.

Possui uma posição privilegiada em relação arede viária, com rodovias asfaltadas que ligam atodas as cidades do Estado, assim como osEstados de São Paulo, Santa Catarina e MatoGrosso do Sul. Por localizar-se em um dos eixosde acesso às Cataratas do Iguaçu e às fronteirascom o Paraguai e Argentina, Maringá é tambémincluída em roteiros turísticos do país.

O clima de Maringá, segundo a classificaçãode Koppen, é do tipo Cfa, clima tropicalmodificado pela altitude, com verão quente e

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000 53

temperatura do mês mais quente acima de 22ºC. Geologicamente, a região em foco tem origemna Era Mesozóica (230 a 65 milhões de anos),do período Jurássico e Cretáceo, e rochasoriginárias de lavas basálticas e arenitos.Predomina o relevo plano e suave ondulado,cujos espigões constituem divisores de águassecundárias e suaves colinas e platôs. Apresenta,em geral, solos profundos, bem desenvolvidos ede alta fertilidade natural (latossolo e terra roxaestruturada). É uma região onde hoje, sedesenvolve uma agricultura de tecnologiamoderna, intensamente mecanizada. Noentanto, vale lembrar que a cidade surgiu noperíodo áureo do café e hoje apresenta umaprodução agrícola diversificada, composta desoja, trigo, algodão, milho, cana-de-açúcar, bicho-da-seda e produtos hortigranjeiros.

Observa-se que esta região, dotada dequalificação para um processo de desenvolvimentoagrícola e industrial, por seu estratégicoposicionamento físico, tornou-se ponto deconvergência de malhas rodoviárias e ferroviárias,polarizando uma vasta área de influência.

Quanto a população, o município éconstituído de diversas etnias, em decorrênciasdas correntes migratórias que para cá sedirigiram, a exemplo dos japoneses, árabes,portugueses, alemães, italianos e outros, queenriqueceram a cultura do município com apreservação de suas tradições, do seu folclore.

No setor industrial, destaca-se aagroindústria, além do setor têxtil , confecções eindústria da construção civil. No que se refereao comércio e serviços o município conta commodernos shoppings centers, lojas dedepartamentos, além de propiciar condições parao desenvolvimento de atividades culturais.

A . 1.1. A comunidade nipo-brasileira de Maringá

As informações que se apresentam a seguirsão baseadas em entrevista concedida pelo dr.Shudo Yassunaga, vereador de Maringá emembro atuante nas várias entidades “nikkeis” .Segundo o entrevistado, a comunidade nipo-brasileira de Maringá conta com cerca de quatromil famílias, que vivem, na sua maioria, na zonaurbana, embora tenham propriedades na zonarural. É um grupo que faz questão de manter astradições orientais, principalmente nascomemorações ligadas a este segmento étnico.

Os primeiros japoneses formavam um grupoconstituído de 65 famílias e chegaram a Maringáà época da fundação da cidade. Já em 1947fundaram o Nippon-Jin-Kai, a versão inicial declube social e cultural da colônia japonesa.

Os imigrantes japoneses, acreditando nopotencial da terra fértil, investiram, lançando-seà luta, resultando na participação atuante emtodos os setores de atividades. Foi importante atradição agrícola trazida pelos japoneses no inícioda colonização.

Ressalte-se a importância exercida pelacomunidade nipo-brasileira, onde sua históriaconfunde-se com a história da evolução dopróprio município. Hoje, os descendentesjaponeses estão inseridos no cotidiano da cidade,com influência quer no campo empresarial, querno campo político; exemplo deste destaqueencontra-se no período de 1982 a 1986, em que24% dos vereadores maringaenses eram deorigem nipônica.

A. 1.2. Perfil Educacional de Maringá

No campo do ensino, Maringá atende umgrande número de estudantes do município e daregião, sendo considerado pólo regional deeducação. São estabelecimentos de ensino pré-escolar até o 3º grau, tanto na rede pública comona privada que oferecem cursos de diversasmodalidades.

A polarização de Maringá neste setor éjustificada, principalmente pela presença decursos superiores que oferecem opções paradiversos cursos. Destaca-se a UniversidadeEstadual de Maringá, criada no ano de 1970.Cerca de nove mil alunos estão matriculados noscursos de graduação das áreas de CiênciasExatas, Ciências Humanas, Letras e Artes,Ciências de Tecnologia, Ciências da Saúde,Ciências Biológicas, Ciências Agrárias, deEstudos Sócio-Econômicos.

A estrutura educacional de EnsinoFundamental e Ensino Médio de Maringá, temcapacidade de atender 85 mil alunos, por anoletivo. Deste total, o maior número de vagas éofertado pela rede estadual, que conta com 41escolas . A Prefeitura Municipal mantém 30escolas sob sua jurisdição atendendo desde a pré-escola até a 8ª série do Ensino Fundamental.

Maringá é sede do Núcleo Regional deEducação, tendo sob sua jurisdição as ações do

54 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000

Ensino Fundamental e do Ensino Médio, dasescolas públicas e privadas do município e de 24outros municípios da região.

Com relação a Língua Japonesa, acomunidade conta com dez escolas de línguajaponesa, inclusive na Universidade Estadual deMaringá, onde funciona o Instituto de LínguaJaponesa. Cerca de 500 alunos , dedescendências diversas, de vários níveis e faixasetárias freqüentam estas escolas.

A . 2. A situação dos ex-dekasseguis de Maringá

O mundo vive sob o impacto de grandestransformações no campo social, político eeconômico, face a acelerada alteração movidapela revolução técnico-científica. Soma-se a estesfatos a ocorrência de rompimento de fronteirasgeográficas tradicionais.

O impacto desse fenômeno é sentido,segundo as peculiaridades de cada país ou nação,conforme o seu grau de desenvolvimentoeconômico e sua posição central ou periférica nocontexto mundial.

Por isso, discutir a questão educacional, nosdias de hoje, necessita-se que se leve em contaas considerações acima, pois os sistemaseducacionais, hoje, têm contribuído paraaumentar as visíveis disparidades sociais, com aconseqüente exclusão social. No entanto,devemos salientar que o Brasil como um todo eo Estado do Paraná, especificamente, tembuscado a reformulação de currículos, atitudes,para que estas distorções sejam minimizadas.

Neste contexto, outras questões como as deordem econômica, têm levado muitas pessoas aodesemprego, a insatisfação para continuarresidindo no país. Assim, muitos brasileiros têmse dirigido a outros países na expectativa demelhorar suas condições de sobrevivência. É ocaso dos brasileiros de origem japonesa que tem,desde meados dos anos 80 , se dirigido para oJapão, na qualidade de trabalhadorestemporários, enfrentando problemas, como as deadaptação ao clima, aos costumes, a língua, aomodo de vida do japonês.

Em Maringá, segundo estimativas da ACEMA(Associação Cultural e Esportiva de Maringá), ofenômeno “dekassegui” iniciou-se há seis anos.O ex-presidente da ACEMA, sr.M. Hossokawa,argumenta que “o que era para ser uma

alternativa de vida, vem se tornando umproblema”. Muitos “dekasseguis” conseguirampoupar um capital razoável no Japão e quandoretornam já não têm emprego, nem uma profissãodefinida. Assim, o que tem ocorrido é ummovimento “pendular” de “nikkeis” entre oBrasil e o Japão.

Estima-se que cerca de 4.000 descendentesde japoneses de Maringá, já devem terparticipado da experiência como “dekassegui”,segundo um dos “ex-dekasseguis”, que hoje fazrecrutamento de mão-de-obra para empresasjaponesas,. Alguns têm passado por muitasexperiências amargas, porém, é importante nãogeneralizar os caso, pois há registros de muitosque tiveram sucesso no Japão e, ao retornaremao Brasil, fizeram bons investimentos, tantoempresariais como culturais. Essas pessoas nãotiveram problemas de readaptação, ao contrário,reconquistaram o seu espaço no Brasil, comotimismo ainda maior, pela auto-confiançaadquirida no Japão, enquanto “dekassegui”.

B) OS RESULTADOS PRELIMINARES DAPESQUISA EMPÍRICA

B.1. Os “dekasseguis” e a questão educacional

Cabe mencionar neste momento, os casos deinúmeros alunos que participaram da experiênciacomo “dekasseguis”, quando muitos jovenscursando o Ensino Médio e o Superior trancaramsuas matrículas por ocasião de sua ida para oJapão. Ao retornarem ao Brasil, poucos foram osque optaram em abandonar os estudos. Os quevoltaram a estudar, têm deparado com problemasde adaptação ou complementação curricular,porém, sem grandes dificuldades para superareste problema. Tal fato pode ser creditado aofato do afastamento ter sido uma opção dopróprio aluno, na expectativa de ganhosmonetários e a aquisição de novas experiências.

As experiências mais amargas têm ocorridocom os filhos que acompanharam os pais etiveram que freqüentar as escolas dos dois países.Na verdade, movidos pela ilusão e com aprobabilidade de conseguir salários elevados, asfamílias têm se dirigido ao Japão, acompanhadodos filhos em fase escolar. Lá chegando, deparamcom a obrigatoriedade de matricular os filhos naescola, pois os menores de 16 anos são obrigadas

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000 55

freqüentar as aulas regularmente, sob pena desanções para os pais omissos.

Portanto, são crianças, jovens queinterrromperam seus estudos no Brasil eingressam no sistema escolar japonês,enfrentando a discriminação e as dificuldades deadaptação, principalmente no que respeita a nãocompreensão da língua japonesa. Ao retornaremao Brasil, enfrentam novamente problemas paraa readaptação psicológica, emocional , somada ànova adaptação curricular. A respeito dessaadaptação, a parte legal é analisada e orientadapelo setor de Documentação Escolar do NúcleoRegional de Educação. Esse processo édenominado “Revalidação e Equivalência deEstudos Feitos no Exterior”, que obedece aDeliberação 06/96 do Conselho Estadual deEducação do Estado do Paraná.

Denomina-se Revalidação, o processo que oaluno que estudou no exterior e retornando aopaís de origem, submete-se a readaptação, paraa reintegração do currículo. Existem casos emque o estudo realizado no exterior é convalidado,isto é, não requer a adaptação, podendo assimdar continuidade aos seus estudos.

O processo se inicia a partir do interesse doaluno, que requer a equivalência e a revalidaçãode estudos no Colégio credenciado peloConselho Estadual de Educação. Cabe asecretaria do estabelecimento examinar adocumentação e encaminhar à Comissão deProfessores designada pela direção doestabelecimento, para fazer a análise dosdocumentos, que determina os examesnecessários, faz o acompanhamento, registrandoem ata própria. Cabe então à direção doestabelecimento, caso seja aprovado pelaComissão, emitir o deferimento do pedido,convocando o interessado e encaminhando-o aoNúcleo Regional de Educação, que expede ocertificado correspondente.

Anualmente, passam por este processo,muitos alunos que tiveram experiência de estudosno exterior, a exemplo dos Estados Unidos,Portugal, Paraguai, Alemanha, Tailândia eprincipalmente o Japão.

No Núcleo Regional de Educação de Maringáesses processos vêm tramitando por longos anos;a maioria está cursando o 1º grau, predominandoos alunos de 1ª a 4ª séries. No ano de 1998,dentre os alunos que estiveram estudando noexterior, 13 alunos, filhos de “dekasseguis”, que

estiveram no Japão, estão tendo seu processo derevalidação em andamento.

Note-se que, pelas informações obtidas juntoao Setor de Documentação Escolar do NúcleoRegional de Educação, as questões legais não têmcausados problemas sérios. O maior problemase localiza no encaminhamento pedagógico, queem última análise, revela os desajustesemocionais e psicológicos enfrentados pelosalunos, “vítimas” dos deslocamentos realizadospela família, no processo de migração temporária.

Não podemos de deixar de fazer referênciasao desempenho escolar dos filhos de“dekasseguis” que permaneceram no Brasil.Também neste caso, foram detectados problemasna vida escolar dos alunos, justamente pelaausência dos pais, para apoiá-los nesta fase davida, tão importante para a formação do cidadãointegral. Estes fatos não serão abordados nesterelatório, face a necessidade de realizarentrevistas que possam dar o embasamento paraas nossas análises.

B. 2. A pesquisa empírica em Maringá .“Dekasseguis” e os filhos em idade escolar.

A realização da pesquisa empírica foi baseadanos questionários aplicados no ano de 1997, emAssaí – PR. No entanto, face a impossibilidadede se fazer um levantamento em todos osestabelecimentos de ensino da cidade deMaringá, utilizou-se os dados constantes noNúcleo Regional de Educação, que possuiinformações sobre os alunos que fizeramrequerimento para a Revalidação e Equivalênciade Estudos Feitos no Exterior, pois uma dascolaboradoras da pesquisa, profª Luzia MitikoSaito Tomita, faz parte de sua equipe pedagógica.Foram ainda contactados “dekasseguis”mediante indicações de líderes da comunidade“nikkei”. Assim, foram realizadas oito entrevistascom os pais ou mães “dekasseguis”, e com osfilhos – alunos que freqüentaram escolas (desdeo pré-primário até o 1º e 2º graus) no Japão. Otexto a seguir, representa o resultado preliminardas entrevistas realizadas.

A idade média dos pais é de 39,8 anos, sendoque a dos filhos varia de 02 a 24 anos. No períodoque residiram no Japão, os filhos tinham idadesentre 2 e 11 anos, portanto todos estudaram emescolas japonesas, no pré-primário e no ensino

56 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000

fundamental. Observe-se que os filhos com maisde 16 anos não frequentaram escolas, tendo sidoencaminhados para o mercado de trabalho,juntamente com os pais.

Dos pais entrevistados, 50% são da 2ª geração(“nisseis”), 31% da 3ª geração (“sanseis”) e 19%são de origem não japonesa. No que se refere aescolaridade, 38% possuem curso superior, 50%o 2º grau e 12% o 1º grau. Quanto a atividadeprofissional, dedicavam-se ao comércio (frutaria,representante comercial), a prestação de serviços(contador, assistente social, fotógrafo, professor),sendo que duas são donas de casa, não exercendoatividade remunerada.

O grau de conhecimento da língua japonesados entrevistados é muito variado, pois 44%disseram que entendem apenas o “japonêsbásico” para sobreviver no Japão, havendooutros(50%) que tem um bom conhecimento(equivalente a 3ª/4ª série do sistema escolarjaponês), e um dos entrevistados possui um graude conhecimento da língua japonesa que opossibilita a freqüentar o curso superior no Japão.

Os entrevistados foram ao Japão entre os anosde 1989 e 1997, tendo permanecido de 01 ano a9 anos; destes, três retornaram duas vezes aoJapão e um seis vezes, por razões de trabalho,para fazer contatos com empresas japonesas.

As causas da ida para o Japão estão centradasna melhoria das condições econômico-financeiras, no sonho e expectativa de um ganhomelhor, além do desejo de conhecer um país do1º Mundo, o Japão, aprender a língua japonesaou por motivos de foro íntimo.

Note-se que 75% dos entrevistadosconseguiram seu primeiro emprego no Japão porintermédio de empreiteiras e 25% por indicaçãode parentes e amigos. Assim, os que foram aoJapão contratados por empreiteiras residiram emapartamentos e alojamentos alugados ou comaval destas empresas de alocação de mão-de-obra, residindo com a família. Apenas dois dosentrevistados responderam que na primeira vezque foram trabalhar no Japão residiram com oscolegas de trabalho, pois haviam deixado a famíliano Brasil.

Ao serem indagados quanto aos problemasenfrentados no Japão, 88% se referiram aotrabalho, diferente daquele exercido no Brasil,além das dificuldades relativas a comunicação nolocal de trabalho, até a adaptação ao tipo detrabalho, ao funcionamento das máquinas.

Houve também casos em que o tipo de trabalho,as condições do serviço, o salário, não foram asmesmas apresentadas por ocasião dorecrutamento, fato que deve ser creditado ao maugerenciamento das “empreiteiras”. Orelacionamento com os colegas de trabalho, tantocom brasileiros quanto com os japoneses foiconsiderado um dos problemas enfrentados,assim como a instabilidade no emprego, já queeram contratados pela “empreiteira” e nãodiretamente pela empresa, fato que não propiciaa consolidação de laços mais fortes com o localde trabalho.

No que se refere aos avisos da escola, foramcitadas as dificuldades pelo não entendimentoda língua, dos caracteres, recorrendo então aoscolegas que tinham mais conhecimentos. Há quese ressaltar que algumas escolas já enviavam osavisos em língua portuguesa, ou então cabia apresidente da Associação de Pais, ler e explicar oconteúdo das correspondências dirigidas aos pais.

Quanto a saúde, não foram colocadasobjeções, apenas que deveria haver maiororientação para a consulta a médicosespecializados. Esta deve ser decorrente do fatode não se entender a língua japonesa o suficientepara se dar conta dos procedimentosdiferenciados quanto a saúde nos dois países.

No período em que residiram no Japão, amaior parte dos entrevistados (88%) afirmou tersentido muitas saudades dos familiares, emfunção da solidão, em parte provocada peladiscriminação que sofreram por parte dosjaponeses. NO entanto, 25% declararam que nãosofreram quaisquer tipos de discriminação, aocontrário os japoneses faziam questão decumprimentá-los, e depois que puderam secomunicar na língua local foram alvo de muitagentileza.

Questionou-se ainda sobre a comunicaçãoentre os pais e os filhos. No Japão, a língua maisutilizada era o japonês (88%), enquanto osdemais utilizavam os dois idiomas. A línguautilizada na residência era o português para acomunicação entre os familiares. Havia tambémcasos em que se fazia uma “mistura” das duaslínguas. Segundo um dos entrevistados, este faziaquestão de utilizar o português para que o filhonão esquecesse a língua pátria. Porém, o filhovivia uma situação de duplicidade, pois na escolaele tinha, obrigatoriamente, de utilizar o japonêsporque senão seria marginalizado; em seu lar

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000 57

tinha de voltar a falar a sua língua de origem,Este é um dos pontos “perversos” para os jovense crianças que estão vivenciando duas realidades,sem ter ainda uma formação mais consolidadaenquanto ser humano.

No tocante ao uso e entendimento da línguajaponesa, este foi uma das barreiras mais citadaspelos entrevistados, isto é, os jovens quefreqüentaram as escolas japonesas. Nos primeirosmeses de aula, todos, à exceção de uma alunacujo pai tinha domínio do japonês, afirmaram quenão conseguiram compreender o que se ensinavana escola, portanto com problemas na adaptaçãoe no aprendizado. No período que variou de doisa quatro meses, os alunos já compreendiam ojaponês, podendo então prosseguir os seusestudos. Note-se que a barreira da língua, fezcom que não conseguissem ter amizades com oscolegas e até sofrendo agressões (mordidas,tapas)porque os colegas queriam conversar, mas ele nãoentendia(à época, o aluno citado tinha apenasseis anos). Há ainda relatos de professores quesempre foram muito amáveis e de uma escolaque contratou uma professora fluente emespanhol para auxiliar os alunos; provavelmentehavia mais alunos latino-americanos e o professorde espanhol estavam com disponibilidade dehorário para atender os alunos. Alguns alunoscomplementavam o ensino da escola japonesa,com aulas particulares de japonês. Nas reuniõesdas escolas, os pais que não entendiam a línguarecebiam o auxílio de funcionários da“empreiteira” que tinham fluência nos doisidiomas, ou de pessoas que já estavam a maistempo no país e entendiam a língua. Houveainda um caso de um aluno que recebeu apoiodo diretor da escola e do chefe da fábrica onde opai trabalhava, que fizeram todos os esforços ,inclusive contatando o Ministério de Educaçãopara que ele pudesse freqüentar o pré-primárioe não o 1º ano, face a dificuldade de adaptaçãoe acompanhamento dos conteúdos por suadeficiência no entendimento da língua japonesa.Ressalte-se que no Japão, o aluno tem suamatrícula condicionada a idade-série.

A opinião sobre a escola japonesa, recebeude quase todos os entrevistados, adjetivos como:muito boa, maravilhosa, ótima, formidável, limpa,bem organizada, com professores espetaculares,rigorosos no horário, boa disciplina. Se a maioriacolocou que há o ensino de conteúdo, além deoutras atividades como música, natação,

educação física, há os que fazem críticas quantoa excessiva exigência no cumprimento do horário,da disciplina, observando-se que os alunos sãoreprimidos, tornando-os muito introspectivos eagressivos. Uma opinião que merece serapresentada é de que havia falta de diferenciação,por parte dos professores, quanto aosestrangeiros. Uma indagação que se lança, parase refletir é: deveria haver um tratamento à partepor serem estrangeiros? Não está se buscando aigualdade de tratamento quando se critica adiscriminação de que são alvo os “dekasseguis”e seus filhos?

Um outro ponto questionado foi em relaçãoao retorno ao Brasil. Qual a opinião sobre estanova mudança? Como seria a recepção doscolegas, dos professores, dos familiares? Equanto a vida escolar? Como seria seudesempenho ?

Na opinião dos filhos, à exceção de um quequeria concluir a 6ª série no Japão, todos ficarammuito contentes em retornar ao seu país, porquepoderiam rever os irmãos, os avós, os primos, osamigos. O aluno que afirmou que queria concluira 6ª série, concordou em retornar e ficar no Brasilsomente com a mãe (o pai e os irmãos ficaramtrabalhando no Japão), desde que continuasse osestudos de japonês ao retornar. Há também umaresposta que evidencia a divisão que tal mudançaprovocou no jovem, ao afirmar: “... tinha alegriapor voltar, mas tristeza por deixar os amigos”.

As motivações apresentadas para o retornoao país, à exceção de um entrevistado, dizemrespeito ao estudo dos filhos, a sua continuidadeno Brasil, refazendo assim a vida escolar dosmesmos. Outras causas também são apontadas:doença na família (da mãe, da sogra), dificuldadeno relacionamento com os filhos, o término doperíodo de licença no emprego, a crise que estavase alastrando no Japão.

No retorno ao Brasil, claro é que a primeirasensação apresentada foi a de euforia, porqueestava voltando ao seu lugar de origem, a suaterra natal. Porém, passada esta fase, ocorre ainevitável comparação entre os dois países,levando a emitir opiniões desfavoráveis como:“estou decepcionado, vi o retrocesso, a sujeira, amá educação, a falta de segurança, o trânsitocaótico, o mau atendimento em todos os setores:públicos e privados”.

Outro ponto abordado é quanto a adaptaçãoem relação à moeda, ao preço dos produtos, dos

58 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000

serviços, sempre tendo como referência o Japão.Veja-se por exemplo, um caso corriqueiro, ao sefazer um paralelo entre o preço de frutasbrasileiras (de clima tropical), que tem um preçomuito baixo, se comparado com as do Japão; omesmo ocorre com os imóveis, os produtoseletro-eletrônicos.

Quanto aos filhos, estes tiveram dificuldadesde comunicação com os amigos e parentes, fatosuperado rapidamente. A reação dos jovens aoretornar ao Brasil vai da alegria do reencontrocom os parentes e amigos , a maior liberdade, oespaço mais amplo, até o medo de andar na rua,a crítica a poluição, às ruas sem cuidados, a visãode crianças “sujas”, de mendigos, aflorandosentimentos contraditórios, além do que o climadiferente (ambiente tropical), faz com que aspessoas também tenham comportamentosdiferenciados dos japoneses, encarando a vidacom mais otimismo, mais alegria.

No que se refere ao desempenho escolar dosfilhos no Brasil, as primeiras semanas foram asmais difíceis , porém, após este período seadaptaram. Há o caso de um jovem que não quisir à aula no 1º mês porque só falava japonês echorava muito porque não entendia o quefalavam; no caso, a família e o incentivo doprofessor foram fundamentais para superar estafase. Há casos de alunos que tiveram defreqüentar aulas particulares de português paramelhorar o desempenho, bem como um dosentrevistados apresentou seu boletim escolar commédias do 2º bimestre/98, que variavam de 6,4a 10,0, sendo que sua nota em Português era 8,5;Matemática – 9,5; Ciências - 6,4 e EducaçãoReligiosa – 10,0. Conforme já foi referenciado emitem anterior, os alunos que trouxeram documentoscomprobatórios de que freqüentaram a escolajaponesa, têm a revalidação e equivalência dos seusestudos no Brasil.

Na entrevista com os jovens, filhos de“dekasseguis”, foram questionados pontosrelativos ao seu desempenho na escola japonesa.Estes freqüentaram o pré-primário e o 1º grau,sendo que nos primeiros dias de aula, para amaior parte deles, comunicação era realizadaatravés de gestos, com a ajuda de um professorespecial para estrangeiros ou de colegas nãojaponeses (peruanos).

De forma geral, foram bem recepcionados,havendo apenas uma criança que afirmou ter sidoagredida fisicamente. Outros foram objeto de

curiosidade, tendo sido até motivo de notícia nojornal local.

Indagados sobre o que mais gostava na escolajaponesa, os entrevistados citaram as aulas deginástica, de matemática, de música (flauta,piano), de culinária, de educação artística(desenho-dança)., e de atividades comoexcursões e brincadeiras variadas em que tomavaparte no intervalo das aulas. Quanto às ‘coisas”de que menos gostou foram citados: usar ouniforme obrigatório, o período integral dasaulas, o excesso de tarefas, fazer exercícios todasas manhãs, usar o “kanji”(ideograma japonês).

Um outro ponto ressaltado é que na escola, alimpeza era realizada pelos próprios alunos, aocontrário do que ocorre no Brasil, que conta comauxiliares para tal serviço.

Quanto aos sentimentos em relação ao Japão,todos os jovens afirmaram ter saudades do paísem que moraram, seja pelos parentes, pelosamigos, pelos lugares onde passeou, pela comida.Apenas uma entrevistado afirmou que não temsaudades da escola e do trabalho. Isto ésintomático porque, todos pretendem voltaralgum dia ao Japão, para encontrar os amigos,para ver a neve, para esquiar, para saborear acomida, pois consideram o país limpo, lindo eseguro. Todas estas opiniões refletem asvivências positivas de cada um, pois, após anosde residência no país, possuem como referênciasas experiências mais gratificantes. Somente doisdos jovens entrevistados pretendem voltar aoJapão para trabalhar.

C) CONCLUSÕES PRELIMINARES

A sucinta análise dos resultados da pesquisaempírica, realizada em Maringá, permite-nosfazer algumas considerações sobre as migraçõesinternacionais para o Japão e a formação escolardos filhos de “dekasseguis”.

Cinco pontos devem ser destacados:– o primeiro refere-se ao caráter temporário das

migrações para o Japão, implicando nainconstância da permanência, no nãoenraizamento de pessoas, ou nadesestruturação familiar;

– o segundo, leva em conta a peculiaridade dofluxo migratório que se circunscreve ao grupoétnico formado por imigrantes japoneses e seusdescendentes, que vieram para o Brasil a partir

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 51-59, jan./jun. 2000 59

de 1908 e hoje fazem o caminho inverso parao Japão;

– o terceiro deve tratar do acelerado ritmo emque novas tecnologias são incorporadas aoprocesso de trabalho, provocando mudançassignificativas nas relações de produção e porconsequência nas relações de trabalho, comreflexos na constituição da força-de-trabalhode uma região ou de um país;

– o quarto diz respeito aos filhos dos“dekasseguis”que são bastante penalizados nasua formação escolar, face às diferenças delíngua, de currículo e de atitudes;

– e, como último ponto, não devemos nosesquecer das barreiras encontradas por umsignificativo número de pessoas, no seuretorno representadas por: dificuldades deadaptação a realidade brasileira (dedesemprego, de baixos salários, deinsegurança, de políticas econômicasrecessivas) por parte dos chefes de família, equanto aos jovens e crianças, a necessidadede continuar os estudos, buscar alternativaspara capitalizar as experiências vivenciadas noexterior, e, principalmente, lutar para nãoretornar ao Japão, então na qualidade detrabalhador temporário, em funções que osnacionais do país se recusam a assumir porserem perigosos, sujos e que necessitam demuita resistência física.

Os “dekasseguis”e seus filhos, entrevistadospelos pesquisadores, apresentaram, de maneirageral, opiniões positivas acerca do tempo depermanência no Japão, seja como trabalhadores,seja como dependentes. No caso específico dosjovens em idade escolar, aparentemente, oimpacto da mudança de país nos seus estudospode ser minimizado de diversas formas: com oauxílio dos dirigentes de escolas e dosprofessores, dos “dekasseguis” mais experientese com fluência na língua japonesa, dosfuncionários das “empreiteiras” que atuam comointérpretes, além dos colegas de classe que, namedida do possível, auxiliaram os alunosestrangeiros a superar as dificuldades inerentesa qualquer aprendizado.

Portanto, nestas conclusões preliminares, oque pudemos verificar, tanto no Japão, quantono Brasil, foi a existência de uma postura solidáriapara com aqueles que sairam e retornaram,compondo um dos mais intensos movimentosinternacionais de população do país.

FONTES E BIBLIOGRAFIA

A) Fontes de pesquisa• Pesquisa realizada no 2º semestre/98, junto aos

“dekasseguis”e filhos em idade escolar, Maringá-Paraná.• Entrevista com o dr. Shudo Yassunaga, vereador da

Câmara Municipal de Maringá e sr. EduardoSasaki, dirigente da Associação Paranaense deAmparo as Pessoas Idosas “Wajun-Kai” e M.Hossokawa, ex-presidente da ACEMA, Maringá.

• Entrevistas com o sr. Prefeito Municipal , com aSecretária de Educação do Município de Maringá,com dirigentes do Instituto de Lingua Japonesa daUniversidade Estadual de Maringá, com a Chefedo Núcleo Regional de Educação de Maringá, coma direção e professores da Escola São FranciscoXavier, Maringá.

B) Bibliografia

ASARI, A .Y. e YOSHIOKA, R. Migraçõesultramarinas. Trabalhadores brasileiros no Japão.Revista Semina/Ciências Sociais/Humanas.Londrina,UEL, v.17,n.3,set/96 p.237-245

ASSOCIAÇÃO DOS MUNICÍPIOS DOSETENTRIÃO PARANAENSE. RevistaAMUSEP. Maringá,janeiro//98

COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DOPARANÁ. Colonização e desenvolvimento doNorte do Paraná. São Paulo, 1975

CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO.Legislação-Parecer 266/96, Deliberação 006/98

FRANCO, M.L.P.B. Ensino Médio: desafios ereflexões. Campinas, Papirus, 1992

HARVEY, D. Condição pós-moderna. 4.ed. São Paulo,Ed.Loyola, 1994

PADIS, P.C. Formação de uma economia periférica:o caso do Paraná. São Paulo: Hucitec, 1981.

PATARRA, N.L. e BAENINGER, R. Migraçõesinternacionais recentes: o caso do Brasil, inEmigração e Imigração Internacionais no BrasilContemporâneo, org.N.L.Patarra, 2.ed.Campinas/FNUAP, 1995. (v.1)

PATARRA, N.L. (coord). Migrações internacionais.Herança XX e Agenda XXI. Campinas,FNUAP,São Paulo:Oficina Editorial, 1996 (v.2)

PREFEITURA MUNICIPAL DE MARINGÁ. Planode manejo do Bosque II. Maringá,1993

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ.Sinopse Estatística, UEM, Maringá,1998

WACHOVICZ, C.R. História do Paraná. Curitiba,Gráfica Vicentina, 1988]

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 61-66, jan./jun. 2000 61

INTRODUÇÃO

O conceito território implica não apenas emuma dimensão espacial, mas pressupõe aexistência de relações de poder (RAFFESTIN,1993). Portanto, é partindo da premissa de queas relações de poder interferem na construçãodo território, que discutiremos a questão dageografia e a gestão do território.

Ao levarmos em conta que as relações depoder remontam ao período em que o homempassa a se organizar em sociedade, inferimos quea gestão territorial é muito antiga, ao contrárioda ciência geográfica, que somente ésistematizada enquanto saber autônomo noséculo XIX.

No entanto, cumpre salientar que nosprimórdios das sociedades humanas, a gestãoterritorial se consolidava em bases simples, viade regra, conduzida pelo chefe da famílianômade. À medida em que as sociedades foramevoluindo, o controle sobre o território foi setornando mais complexo, mais conflituoso, sendoeste o processo que nos propomos a analisar.

Desconsiderando o longo período queantecede a consolidação da ciência geográfica, é

Geografia e controle territorial :saber estratégico para quem?

Eliane Tomiasi Paulino *

RESUMOO conhecimento do espaço tem sido, ao longo da história humana, uma forma de delimitar o território e exercero poder. Nesta perspectiva, a consolidação da ciência geográfica coincide com um estágio específico de relaçõessociais em que, para otimizar as relações econômicas e garantir a perpetuação das relações de poder, recorre-seprogressivamente aos conhecimentos sobre o espaço e a sociedade. Reconhecendo o seu potencial estratégico eante a dinâmica atual, o comprometimento no exercício da geografia coloca-se como possibilidade de construçãode um devir, na perspectiva de uma sociedade de cidadãos.

PALAVRAS-CHAVES: Geografia, Território, Gestão, Cidadania

a própria lógica da expansão capitalista que nospermite entendê-la, visto apresentar-se comoresposta às crescentes necessidades deconhecimento sobre o globo terrestre. Em outraspalavras, é a expansão do capitalismo que reclamaa sistematização de um saber científico voltadoà compreensão do espaço, com o fito deidentificar o potencial em recursos/possibilidadesque garantam a acumulação capitalista em escalaampliada.

Nesta perspectiva, é o contexto das diferentesnações européias do século XIX que nos forneceindicativos preciosos para compreendermos oprocesso, pois em plena corrida colonial,tínhamos na Alemanha um conjunto de feudosdesarticulados, que não participaram da partilhada África e Ásia.

Tendo em vista que o controle sobre oterritório impõe um conhecimento prévio sobreo recorte espacial em questão, a Alemanha era,naquele momento, a portadora das condiçõesconcretas para o impulsionamento do processode consolidação da geografia enquanto saberautônomo.

Assim, Humboldt e Ritter, os precursores daGeografia contemporânea, atuaram num

* Docente do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina. Caixa Postal 6001. CEP 86051-990 -Londrina PR. E-mail: [email protected].

62 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 61-66, jan./jun. 2000

contexto em que o conhecimento geográficoconstituiu-se em instrumento importante noprocesso de unificação territorial. Na sequência,teremos outro pensador, igualmente alemãooriginário da aristocracia junker, inscrevendo-sede forma decisiva na História do PensamentoGeográfico.

O legado de Ratzel adquire significadoquando o relacionamos ao processo deconstituição real do Estado Alemão. Pelaspróprias condições já apontadas, cuja unificaçãotardia implicou inclusive na inexistência de umprocesso de revolução burguesa, a forte tendênciaao autoritarismo/militarismo expansionista explica-se pela manutenção das bases de dominação daaristocracia agrária nas estruturas políticas daAlemanha recém constituída.

A geografia de Ratzel é a expressão maiscontundente da captura do saber por uma classeque necessita legitimar ações concretas deapropriação. Assim, a tese do espaço vitalencaixa-se perfeitamente às políticasbismarckianas de anexação de territórios, comoos de Alsácia e Lorena, perdidos pela França.

É o intenso imbricamento entre sabergeográfico e controle sobre o território que faz aFrança voltar-se à Geografia, tornando adisciplina obrigatória no ensino fundamental.Florescem, assim, na França, as condições paraque o saber geográfico se expanda. No contextoda derrota imposta pela Alemanha, outroimportante geógrafo irá se destacar, desta vez ofrancês Vidal de La Blache.

Sua obra irá se basear na necessidade explícitade combater a política de anexação de territóriosdentro da Europa, logo, de combater ospressupostos Ratzelianos travestidos em açõespolíticas. Desta maneira, a teoria dos gêneros devida, ao mesmo tempo em que legitima ocolonialismo francês, pois pressupõe anecessidade de contato entre civilizações maisavançadas, para que as estagnadas possam evoluir(como é o caso daquelas que foram alvo dacolonização), nega o determinismo ambiental.

Ainda dentro da perspectiva do imbricamentoentre saber geográfico e controle territorial,vamos encontrar a obra de Hartshorne, que naprimeira metade deste século irá se constituir emsuporte para um estágio mais avançado docapitalismo, o qual passa a prescindir cada vezmais de um planejamento prévio, a fim de dirigiros investimentos no sentido de maximizar os

lucros. Assim, o conhecimento geográficocomparece como potencial instrumento deprecisão na gestão do território, pelasinformações estratégicas que detém sobre as maisdiversas porções do globo terrestre.

Claro está que o conhecimento geográfico éapropriado pela classe dominante, constituindo-se em instrumento por excelência de perpetuaçãodas relações de poder estabelecidas. Não é paramenos que o respeitável geógrafo francês YvesLacoste (1977) tenha produzido uma obradenominada “A geografia serve antes de maisnada para fazer a guerra”.

GESTÃO TERRITORIAL E PODER

O fato do Estado ser apropriado por fraçõesde classe, torna o controle territorial uminstrumento de manutenção do status quo.Assim, vamos encontrar políticas globais,nacionais ou locais de cunho estrategista, daí oconceito de gestão territorial.

Um exemplo de gestão territorial em escalaglobal é o plano Marshall, que reconstruiu umaEuropa dilacerada pela Segunda GuerraMundial, estendendo suas ações também aoJapão. É evidente que os Estados Unidos nãoforam movidos por causas humanitárias, mas porestratégias de geopolítica mundial, pois impunha-se a necessidade de capturar territórios quepudessem desequilibrar as relações de poder como mundo socialista.

Em se tratando do Brasil, há expressõescontundentes de gestão sobre o território desdeo período colonial. A própria política econômicabaseada na concessão de sesmarias revela anecessidade da classe dominante não perder ocontrole sobre o patrimônio fundiário. ParaMARTINS (1981), o impedimento da populaçãonão branca, de “sangue impuro” a uma porçãode terra era, antes mesmo de uma política deconcentração fundiária, uma estratégia deviabilização da economia escravista, visto que otributo representado pela compra do escravodeveria necessariamente ser repassado àprodução, encarecendo-a. Nesta perspectiva, sehouvesse uma economia baseada no trabalholivre, de pequenos produtores autônomos, logode custo mais baixo, poderia se instalar umaconcorrência indesejável para o empreendimentoagromercantil do Brasil colônia.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 61-66, jan./jun. 2000 63

Com a decadência do regime escravista aaristocracia agrária se antecipa, criando em 1850a Lei de Terras, que veda a posse e torna a terramercadoria, de livre acesso apenas àqueles quepuderem comprá-la. A elevação artificial do preçoe a transferência do patrimônio fundiário para aUnião, somente pode ser entendida a partir daeminência de uma ruptura implícita no “trabalholivre”, que somente se consolidaria se nãohouvessem terras disponíveis. É por isso queMARTINS (1979,p.15) afirma que “num regimede terras livres, o trabalhador tinha que ser cativo;num regime de trabalho livre, a terra tinha queser cativa”

Deste modo, a Lei de Terras garante ocontrole da classe proprietária sobre a força detrabalho indispensável à continuidade doempreendimento agropecuário com vistas aomercado internacional. Entre os mais de quatromilhões de imigrantes que chegaram no Brasilpara serem trabalhadores livres, poucos sabiamde antemão que seriam livres apenas paravenderem sua força de trabalho, a preço vil, paraos senhores da terra.

Se até a década de 30, a gestão territorialcomandada pelo Estado (esta abstração queoculta as composições de classe no e para opoder) encontrava-se dissimulada, a grandedepressão desta década enterrou o liberalismo,com seus pressupostos de livre regulação pelomercado, passando o Estado a intervir firme eexplicitamente na economia.

É a partir dos pressupostos de Keynes quevamos entender a ruptura com o modelo agro-exportador e a ascensão da burguesia industrial,a qual passa a encontrar terreno fértil para aexpansão de suas atividades no Brasil. Cumpresalientar que tratamos de um processo, poissegundo OLIVEIRA (1993), já no início desteséculo o Estado Brasileiro cria uma política deproteção tarifária às indústrias de bens deconsumo não duráveis, fato que favoreceu a suaconsolidação.

O privilégio dado à expansão industrial, logo,aos capitalistas, em detrimento dos oligarcas,torna-se expressivo a partir do governo deGetúlio Vargas, culminando no “Plano de Metas”de Juscelino Kubstchek. É o Plano de Metas queexprime a versão mais acabada da gestãoterritorial, pois o planejamento é levado a corrigiros empecilhos para a livre expansão capitalista,seja através da atuação estatal em segmentos que

não produzem lucros imediatos, como as obrasde infra-estrutura, seja através de políticas decrédito subsidiado, os quais realizaram umafantástica transferência da poupança pública parao setor privado.

É no contexto de um Estado capturado porinteresses privados que podemos entender acriação de órgãos voltados especificamente aosuporte da atividade econômica de determinadossetores. É por isso que SOJA (1993) nos lembraque nos países subdesenvolvidos, o Estadobasicamente limitou-se a atuar no sentido dediminuir os riscos para a atividade capitalista, emdetrimento das políticas sociais.

A criação das superintendências regionaiscomo a SUDAM (Superintendência para oDesenvolvimento da Amazônia), SUDESUL(Superintendência para o Desenvolvimento doSul), SUDECO (Superintendência para oDesenvolvimento do Centro Oeste) etc. é aexpressão do planejamento pautado na teoria dosPólos de Desenvolvimento de Perroux, cujaressonância foi enorme na América Latina, emespecial no Brasil.

No entanto, conforme já se fez referência,estas superintendências, ao propugnar a atuaçãono sentido de diminuir as diferenças regionais,estavam na verdade ampliando a capacidade deacumulação dos grupos dominantes. Bastaverificar o imenso impacto da SUDAM naAmazônia que, ao criar incentivos e isençõesfiscais da ordem de até 50%, passou a atrair emmassa os capitalistas do centro-sul.

Mediante a simples apresentação de projetosagropecuários, estes empresários conseguiramapropriar-se não só de recursos, mas também deenormes porções de terra, desalojando aspopulações indígenas e ribeirinhas,desencadeando assim uma série de conflitossociais dos quais os massacres de Corumbiara(Rondônia) e Eldorado do Carajás (Pará) não sãomeros fatos isolados.

Segundo OLIVEIRA (1988), na década de70 a SUDAM passou a aprovar somente projetosagropecuários para mais de 25.000 hectares deterra, razão pela qual a Amazônia tornou-se olugar dos maiores latifúndios que a história dahumanidade já registrou, a ponto de possuir, em1985, um único estabelecimento com 4 milhõesde hectares.

Deve-se ressaltar que esta foi uma políticadeliberada, visando consolidar o modelo de

64 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 61-66, jan./jun. 2000

exploração empresarial da terra, em detrimentoda agricultura familiar. Além disso, foi a políticade incentivos fiscais que garantiu umatransferência gigantesca de recursos públicos paraa iniciativa privada, para os bancos, para asempresas automobilísticas do sudeste, cujaprática tem sido o enquadramento à legislaçãoem suas empresas urbanas e, muitas vezes, odesrespeito até mesmo das normas maiselementares que regem uma sociedadecapitalista, visto haverem comprovados casos derelações de escravidão nas longínquas e semi-exploradas fazendas de alguns destes grupos naAmazônia.

Vimos assim que a gestão territorial é uminstrumento por excelência de maximização daacumulação, manifestados a partir das maisdiferentes faces. Expressa na política desuperintendências dos anos 60 e 70 (ainda nãodesmontada inteiramente), no PIN (Plano deIntegração Nacional) dos anos 70, entre outros,irá assumir novas formas nos anos 80.

Com o esgotamento do “milagre brasileiro”,resultado de uma conjuntura mundial provocadapela manobra americana de atrair investidoresestrangeiros, ocorre uma abrupta diminuição daliquidez do mercado financeiro, o que provoca ofim dos empréstimos fáceis no exterior. Nestecontexto, ao mesmo tempo em que cessa ocrédito, explodem as taxas de juros, levando oEstado Brasileiro a desviar grande parte dareceita para o pagamento da dívida externa. Nãoobstante, a lógica de dar suporte aosinvestimentos capitalistas se mantém e, ante oscofres dilapidados, opta-se pelo corte progressivonos serviços públicos essenciais.

É neste contexto que avança o neoliberalismo,pelas formas alternativas que tornam possível amanutenção das taxas de acumulação: bastaverificar que o Estado, ao abdicar de políticaspúblicas de educação, saúde, transportes etc, criaoportunidades crescentes de negócios para ainiciativa privada.

Somado aos novos mercados criados peloafastamento do Estado de suas funçõesprecípuas, articula-se o processo de privatizações,visto que a lógica de reprodução ampliada docapital às expensas do erário público seaprofunda no país. Com isso, opta-se pordilapidar o enorme patrimônio público,construído com os recursos de toda uma nação.

Com a justificativa de que o Estado seria

administrador ineficiente e as estataisperdulárias, transfere-se de estradas a empresasde comunicação a poderosos grupos privados,que ganham duplamente, pois além de adquirirum mega patrimônio a preço vil (cuja arrecadaçãojá se dissolveu na ciranda do déficit público),ganham o monopólio de serviços estratégicos eessenciais. Doravante, a sociedade ficainteiramente refém dos monopólios privados,pois a regulamentação proposta comomecanismo de controle destes grupos tenderá ademonstrar sempre uma eficiência compatívelcom os interesses do pacto de poder estabelecido.

O afastamento do Estado nunca esteve tãoexplícito como no governo de FernandoHenrique Cardoso, em especial nos setores comoos da saúde, cujos investimentos tem diminuídoano a ano, a despeito do indisfarçado tributocriado com a justificativa de socorrê-la, fato nãoconsumado e reconhecido pelo próprio Ministroda Saúde José Serra, cuja manifestação dedescontentamento ante ao desvio dos recursosarrecadas pela CPMF (contribuição Provisóriasobre Movimentações Financeiras) lhe rendeu ahumilhação do desdito, sob pena de demissãosumária.

A voracidade de um Estado que usa a saúdepública agonizante para criar novos mecanismosde extrair ainda mais renda dos trabalhadores,revela-se pouco tempo depois, quando oimposto, praticamente duplicado, torna-se umdos personagens principais do idílico “ajustefiscal”, leia-se aumento da arrecadação a sertransferida para os insaciáveis “investidoresglobais”.

Paralelamente a este estado de coisas,explodem as epidemias que há algumas décadasestavam controladas, voltam doenças tidas comoerradicadas, morre-se como nos velhos tempos,como se a revolução médico-sanitária não tivesseacontecido há mais de meio século.

No entanto, este cenário não éhomogeneizante, devendo ser relacionado aopoder de compra da sociedade, visto que, aosque podem pagar, a revolução científica é concreta,dados os modernos recursos existentes. Trata-se deuma questão de perspectiva: a saúde tornou-seexplicitamente uma questão privada no país.

Em se tratando da educação, outra atribuiçãoinquestionável de um Estado que controla eexerce sem parcimônia o poder de arrecadar, adeterioração igualmente se manifesta. O discurso

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 61-66, jan./jun. 2000 65

massivo da opção pela mesma não resiste aoapelo de uma realidade manifesta em imensascarências em termos materiais e humanos: dafalta de vagas ao “projeto” de capacitação evalorização dos profissionais envolvidos.

Mas não se pode deixar de constatar asestratégias do governo, materializado empersonagens concretos como o Presidente daRepública e o Ministro da Educação que, adespeito de terem a sua trajetória vinculada aoprojeto de educação pública e gratuita em todosos níveis, criam agora um pseudo responsávelpelas mazelas do ensino médio e fundamental,advindas do baixo investimento: nada menos queo ensino superior público.

Na falta de vilões nacionais, desaparecidoscom as falecidas estatais, surge a Universidade,execrada publicamente pelo suposto desvio damaior parte das verbas da educação, devendoportanto ser privatizada. Chegaria-se, assim, aosfins propostos: ao mesmo tempo em que seamplia o mercado para os empresários daeducação, reduz-se ainda mais o investimentodos recursos que deveriam retornar à sociedadesob forma de serviço público inalienável.

Neste turbilhão, a academia, por estar inseridaem uma sociedade mergulhada no marasmo, viveum momento bastante ambíguo: parece quererser dragada por esta teia de perplexidade, aomesmo tempo que a repudia, buscando escapar daasfixia imposta pelo projeto em curso, o qual nãose circunscreve apenas à esfera do econômico,passando pelo político, pelo teórico, pelo cultural,enfim, atingindo na íntegra o tecido social.

O PAPEL DO GEÓGRAFO NAPERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE PODER

Caímos novamente na geografia, pois osgeógrafos são parte integrante da academia,sendo os próprios a expressão do processomencionado. Na esteira da letargia, pode-seperecer, pois a dinâmica do capitalismo,particularmente em sua fase mais recente, aomesmo tempo que impõe a maximização daprodutividade, requer a paralisia nas reflexões,visto que a inquestionabilidade do modelo étambém uma garantia de preservação.

Longe de sugerir que estamos sendocooptados, buscamos refletir sobre a dificuldadeem construir e disseminar modelos alternativosde compreensão e intervenção na realidade, dadaa eficiência dos canais oficiais de (in)formação.Se o terreno é lodoso, deve-se de antemãoconsiderar os riscos de nele caminhar. É sob orisco de escorregar, mas também de fortalecer-se, evitando maiores tropeços mais adiante, quepodemos atuar.

Considerando que somos sujeitos políticos,nosso trabalho é o maior indicativo docompromisso que assumimos dentro destasociedade de classes. Assim, o seuencaminhamento é também o encaminhamentode propostas, seja no sentido de manutenção dostatus quo, seja na luta por um país mais decente.

A geografia que, como vimos, nasce dasnecessidades de controle sobre o território, nosdá munição suficiente para invertermos a lógicado exercício do poder. Portanto, urge um esforçoe um comprometimento crescente na discussãoacerca do projeto de sociedade implantado e emcurso no Brasil; afinal é este o país que queremos?

Neste momento, em que a garantia deampliação da capacidade de acumulação se fazàs custas do patrimônio e das conquistashistóricas dos trabalhadores, explicita-se avulnerabilidade de um povo que perde o que nemsequer vira consolidado, ampliando-se a exclusãono presente e as incertezas quanto ao futuro.

Por sermos geógrafos e nos dedicarmos porexcelência à análise do espaço na perspectiva derelações de poder, não podemos nos furtar àtarefa de colocarmos este saber a serviço dasclasses desprivilegiadas, pois como nos lembraYves Lacoste, a geografia serve antes de maisnada para fazer a guerra. Para nós, não no sentidoliteral, mas uma guerra no nível das idéias, deforma a contribuir efetivamente para aconstrução de uma sociedade menos desigual,de cidadãos.

66 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 61-66, jan./jun. 2000

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Manuel Correia. Caminhos e descaminhosda geografia. Campinas: Papirus, 1989.

CORREA, Roberto L. Trajetórias geográficas. Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

EGLER, Claudio A. G. Questão regional e gestãodo território no Brasil. In: Geografia: conceitos etemas. Org: Iná Elias de Castro et all. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 207-35.

LACOSTE, Yves. A geografia serve, antes de maisnada, para fazer a guerra. Lisboa: IniciativasEditoriais, 1977.

MARTINS, José de S. Os camponeses e a política noBrasil. Petrópolis: Vozes, 1981.

________. O cativeiro da terra. São Paulo: LivrariaEditora Ciências Humanas, 1979.

MORAES, Antonio C.R. Geografia: pequena históriacrítica. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1987.

________. Ideologias geográficas. São Paulo:Hucitec, 1984.

OLIVEIRA, Ariovaldo U. Agricultura e Indústria noBrasil. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo:AGB, n.º 58, , p. 5-64. set. 1981

________. O processo de industrialização no Brasil.In: Geografia, Série Argumento, São Paulo.Secretaria do Estado da Educação, 1993. p. 11-9.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder.São Paulo: Ática, 1993.

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. SãoPaulo: Hucitec, 1978.

SOJA, Edward W. Geografias pós-modernas. Rio deJaneiro: Zahar Editores, 1993.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000 67

A expansão das relações capitalistas no campofoi acompanhada pelo processo de expropriação/expulsão dos trabalhadores rurais. Diante dessequadro de expropriação/expulsão, ostrabalhadores rurais passaram, a partir do finalda década de 70 a se organizar e promover açõesde luta para conquista da terra, com o surgimentodo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra(MST). Até então, as lutas dos trabalhadoresrurais eram vistas como inviáveis, pois ocamponês, categoria produzida no processo deprodução capitalista, seria essencialmenteindividual/familiar. Daí não se poderia esperarações e práticas coletivas.

O Movimento tem se materializadoprincipalmente, em ocupações e acampamentosem todo o Brasil, através do qual o sem-terra temconseguido algum resultado em seu favor. Osacampamentos tornaram-se o principalinstrumento de luta e resultam no assentamentodos trabalhadores sem terra.

A conquista da terra e o desenvolvimentoeconômico não significam apenas a inclusão dosem-terra no mundo da produção, mas também,

A cooperação agrícola nos assentamentos:uma proposta política

João Edmilson Fabrini *

RESUMOA expansão das relações capitalistas no campo foi acompanhada pelo processo de expropriação/expulsão dostrabalhadores rurais. Diante desse quadro, a partir do final da década de 70 os trabalhadores rurais passaram a seorganizar e a conquistarem a terra. Os sem terra assentados procuram organizar a produção desenvolvendo açõescoletivas na terra, onde se destacam as Cooperativas de Produção Agrícola. A viabilidade da produção cooperativanos assentamentos não deve ser entendida exclusivamente a partir do aspecto econômico, pois as cooperativastransformam-se numa retaguarda política para acumular forças na realização da Reforma Agrária e mudança dasociedade. Assim, a produção agrícola cooperativa nos assentamentos está articulada, sobretudo, às questõespolíticas e ideológicas.

PALAVRAS-CHAVES: cooperação agrícola; assentamentos; reforma agrária; ideologia; política.

a conquista de seus direitos, da consciênciapolítica, da cidadania.

A análise e estudo da viabilidade da produçãoda cooperativa nos assentamentos não devem serfeitas exclusivamente a partir do aspectoeconômico, pois, as cooperativas transformam-se numa retaguarda política para acumular forçasna realização da reforma agrária e mudança dasociedade. Assim, a produção agrícolacooperativa nos assentamentos está articulada,sobretudo, às questões política e ideológicas.

O QUE SÃO ASSENTAMENTOS?

O termo assentamento possui diferentesconteúdos. Segundo Esterci, o termoassentamento surgiu, provavelmente, no interiordo Estado e refere-se às ações que tem por fimordenar ou reordenar recursos fundiários comalocações de populações para solução deproblemas socioeconômicos, reconhecidos suaimportância e necessidade, principalmente, pelaviabilidade econômica. Desta forma, as ações do

* Professor Assistente do Depto. de Geografia da Unioeste/PR – Supervisor Externo do Projeto Lumiar/INCRA-PR. E-mail:[email protected].

68 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000

Estado são concebidas como ações de ordemtécnica e não política, e as populações“beneficiadas” estão destituídas de caráter ativo.(ESTERCI,1992:5).

Os assentamentos realizados no campoatravés de projetos de colonização, entregues àsempresas colonizadoras, bem como os projetosde colonização realizados na Amazônia pelogoverno dos militares, são exemplos semelhantesaos assentamentos rurais referidos acima.Evidentemente, não são destes assentamentosrurais que nos propomos a abordar, mas àquelesresultantes da ação de movimentos organizadosatravés de lutas de resistências e ocupações deterra, que se desencadearam a partir do final dadécada de 70.

Tomando o movimento de luta pela terracomo referência, nesta abordagem, ostrabalhadores rurais, através de ações políticas,vão modificando e acrescentando novosconteúdos ao termo assentamento. Aídesdobram-se novas ações políticas,desenvolvendo lutas e confronto com o Estadopor assistência técnica, crédito, infraestrutura, etc(ESTERCI, 1992:6).

Apenas o assentamento dos sem-terras nãogarante a implantação da Reforma Agrária, poisesta tem caráter bem mais amplo. Entretanto, osassentamentos dos sem-terras significam aconquista do principal elemento da reformaagrária: a Terra. É importante destacar quemuitos assentamentos já nascem comprometidos,demonstrando um quadro extremamenteadverso em vista das condições que osassentamentos são criados (dimensão dos lotes,fertilidade da terra, declividade, distância).

Os assentamentos de reforma agrária sãoconquistas alcançadas pela organização,mobilização dos trabalhadores envolvidos.Embora o Movimento (MST) esteja vivendo umaconjuntura favorável, tanto nacional comointernacionalmente (basta recordar orecebimento do Prêmio Nobel Alternativo em1991 e o Prêmio Rei Balduíno em 1997, naBélgica), este sempre causou rejeição entre aselites. Os grupos dirigentes temem a realizaçãode assentamentos, (reforma agrária) porquepodem fortalecer os movimentos, levando àperda de fatia do poder. Assim, significam umaameaça à ordem estabelecida. A rejeição aosassentamentos e à reforma agrária é umaevidência de que estes possuem um importantesignificado político.

A idéia de que o desenvolvimento das forçasprodutivas e, consequentemente, odesenvolvimento econômico dependem dareforma agrária não é suficiente para convenceras elites da importância da reforma agrária e dosassentamentos dos sem-terras, pois não estãointeressadas em qualquer desenvolvimento deforças produtivas. Na verdade, as eliteseconômicas não precisam da reforma agrária edos assentamentos dos sem-terras, visto comoum elemento estimulador do aumento daprodução e acúmulo de lucros e rendas.

Ocorre que, apenas a propriedade da terrapermite o acúmulo, pois o proprietário podeutilizá-la como reserva de “valor”, ou seja, oproprietário investe na compra de terra paraextrair mais-valia social e não para destiná-la àprodução agropecuária.

A apropriação da terra, no modo de produçãocapitalista, é diferente da apropriação de outrosmeios de produção, pois esta não é produzidapelo processo do trabalho. Para apropriar-se daterra é necessário pagar um preço pelo direitode sua utilização e exploração. Essa licença pagapelo direito de utilizar a terra é a renda da terra.

A renda da terra pode ser resultado daconcorrência (renda diferencial) ou demonopólio (renda absoluta). A renda diferencialresulta do caráter capitalista da produção e podeser oriunda dos investimentos de capital no solo,da localização, da fertilidade natural do solo. Arenda absoluta resulta do monopólio da terra poruma parcela da sociedade: os proprietário deterra. (OLIVEIRA, 1986:74).

Essa renda não é resultado de parte dotrabalho excedente daquela terra, mas resulta damais – valia social paga ao seu proprietário. Daía necessidade de apropriação de uma parcelacada vez maior de terra (concentração) para queseja aumentada a capacidade de extrair mais –valia social. A terra transformada em mercadoria,permite ao proprietário cobrar a renda quandoela estiver sendo utilizada para a produção ouquando for vendida.

Observa-se que existem diferentes formas deapropriação de mercadoria, produzidas e nãoproduzidas pelo processo do trabalho. O capitalistaacumula apropriando-se da mais – valia. Já, oproprietário de terra, acumula capital,transformando a renda da terra em rendacapitalizada, ou seja, o acúmulo não é provenientedo lucro e espoliação dos trabalhadores, mas apenaspelo fato de possuir terra.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000 69

Dessa forma, apenas a propriedade da terragarante renda ao seu proprietário. Este caráterrentista do campo brasileiro é um elemento a serconsiderado para entender a reação das elitescontra a reforma agrária.

REFORMA AGRÁRIA, ASSENTAMENTOS EIDEOLOGIA

A luta pela terra sempre foi marcada porinteresses políticos, revolucionários, e vista comouma questão de segurança nacional pelosgovernos dos militares.

A principal palavra de ordem nos dias atuais,Reforma Agrária: uma luta de todos, indica novosencaminhamentos na luta pela terra. A sociedadedeve empenhar-se na realização da reformaagrária, pois esta beneficia a todos (trabalhadoresrurais, urbanos, estudantes, empresários,militares, etc.). Entretanto, a desideologização éaparente, pois a reforma agrária, os assentamentosrurais e as cooperativas aí presentes estão carregadasde conteúdo ideológico.

Não é objetivo deste trabalho problematizare estudar o conceito de ideologia. Entretanto, éimportante dizer sobre que ideologia estamosfalando, pois este termo possui um grau decomplexidade muito grande e vai além de suaetimologia.

O termo ideologia, assumindo um significadonegativo, ilusório e pejorativo, ou seja, umamaneira errada de ver as coisas. A concepção deideologia de Marx é entendida neste sentidonegativo, isto é, idéias erradas, incompletas,distorcidas e vinculadas aos interesses das classesdominantes.

Mannheim, em seu livro Ideologia e Utopiaavança na discussão sobre ideologia, além deelaborar uma crítica ao marxismo, argumentandoque este não aplicou sua “revelação ideológica”a si mesmo, ou seja, que todas as idéias, inclusiveo marxismo, estão comprometidas com umaclasse social.

Mannheim, em Ideologia e Utopia, estabelecea diferença entre os dois conceitos: utopia eideologia.

O termo ideologia aparece ainda em doissentidos distintos, ou seja, a ideologia total e aparticular. O sentido particular de ideologia atuano nível psicológico e o ponto de referência é oindivíduo.

“As análises de ideologias, no sentidoparticular, que fazem o conteúdo dopensamento individual depender amplamentedos interesses do sujeito, jamais podemrealizar esta reconstrução básica do modo dever total de um grupo social.” (MANNHEIM,1976:85).

O sentido total de ideologia está inserido nocontexto histórico do indivíduo e pressupõe acorrespondência entre uma situação social e umacerta perspectiva.

“Referimos aqui – ideologia total – à ideologiade uma época ou de um grupo histórico –social concreto, por exemplo, a de uma classe,ocasião em que nos preocupamos com ascaracterísticas e a composição da estruturatotal da mente desta época ou deste grupo.”(MANNHEIM, 1976:82).

Assim, ideologia, para Mannheim, seria umconjunto de idéias e concepções que se propõe amanutenção e reprodução de uma determinadaordem social. As utopias, seriam aquelas idéiasque trazem um conteúdo revolucionário e denegação da ordem instituída.

“Iremos referir como utópicas somenteaquelas orientações que, transcendendo arealidade, tendem, se transformarem emconduta, a abalar, seja parcial ou totalmente,a ordem de coisas que prevaleça nomomento”. (MANNHEIM, 1976:216).

É como se a ideologia olhasse para trás e asutopias para frente, onde, uma, procuraacomodar à realidade e a outra, procuratransformá-la. (RICOEUR, 1988:88).

As utopias podem transformar-se emideologias: O positivismo, por exemplo,comprometido com a ordem burguesa no séculoXVIII possuía um caráter contestador erevolucionário (utópico), com as idéias deneutralidade e objetividade. Também a burguesianascente, apresentava-se como uma classerevolucionária, com ideais utópicos, poiscentrava-se no direito ‘a igualdade, liberdadefraternidade, democracia, etc. No século XIX,quando a burguesia torna-se a classe hegemônica,assume características conservadoras.

70 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000

“Podemos então dizer que a visão social domundo da burguesia tinha um caráter maisutópico no século XVIII e mais ideológico noséculo XX, e pode ser interpretada por algunspensadores mais no seu sentido utópico e, poroutros, mais no seu sentido ideológico”.(LOWI, 1989:30).

Por outro lado, a ideologia, se compreendidacomo uma concepção política vinculada aosinteresses de classes sociais (concepção deLênin), apresentando-se como ideologiaburguesa ou ideologia do proletariado, remete-nos a termos como “luta ideológica”, “embateideológico”, “trabalho ideológico” (LOWI,1989:12). Neste sentido, as classes sociaisconstroem suas ideologias, podendo tornar-seuma arma disponível a uma determinada classesocial e qualquer grupo pode utilizá-la contra osdemais. Observa-se que a ideologia podeconstituir-se num arsenal intelectual, utilizadotanto pela classe dominante como pelostrabalhadores. Neste sentido, a ideologia evoluipara a sociologia do conhecimento, e o queanteriormente era um arsenal entendido comoconstrução de armas intelectuais dostrabalhadores, transforma-se num método depesquisa da história intelectual e social.(MANNHEIM, 1976:103/4).

Trazendo a discussão para o tema abordado,podemos afirmar que a “reforma agrária” técnicae desideologizada, visando exclusivamente odesenvolvimento das forças produtivas, é, emúltima instância, ideológica, pois dispensa-se deuma importante arma, que a ideologia poderá seconstituir.

O assentamento e a organização da produçãofeitos exclusivamente a partir da perspectiva deelevação da produção agropecuária, seria umaproposta de reforma agrária admitida pelas elites,que diante das pressões populares, procuramatender as demandas ao seu modo(desideologizando-a). A reforma agrária técnica,desideologizada e feita exclusivamente a partirda perspectiva econômica, apresenta-se como umcontradição, pois a reforma agrária possui umsignificado subversivo à ordem estabelecida nasua essência.

A reforma agrária e a proposta de produçãoagropecuária nos assentamentos através dascooperativas, estão inseridas num contextoideológico (entendida como uma concepção

política vinculado a interesses de classe) que,neste caso, servem aos trabalhadores sem terra enão reproduz o modelo dominante (capitalista)de produção agropecuária no campo.

MARTINS (1994:151) afirma que houve umaalteração de prioridades na ação dos mediadoresda reforma agrária, quando a figura do posseirofoi substituída pela figura do sem terra,deslocando o “...centro da questão fundiária doposseiro para o sem – terra”. A luta dos posseirosestava respaldada por um forte conteúdo moral,pois o grileiro era sinônimo de delinqüente,criminoso e violento. Já as lutas dos sem-terrasnão se dão com base no mesmo argumento moral,mas no argumento econômico.

“A posição deslocada da questão agrária nonovo regime despolitizou-a em favor doprodutivismo econômico da retórica dosgrandes proprietários...” (MARTINS,1994.152).

A reforma agrária proposta pela “novarepública” assumiu um caráter produtivista,tecnicista e economicista, ou seja, uma reformaagrária aceitável pela burguesia e pelo capital, queestaria a serviço do capitalismo. Não vêem, eles,que o capital internacional, nacional eproprietários de terra estão unidos, com capitaltransformado em capital rentista.

A proposta dos trabalhadores não é de umreforma agrária apenas de caráter econômico,limitada aos domínios do mercado, visando oabastecimento alimentar, mas uma reformasocial. Os trabalhadores querem mais do quereforma meramente econômica.

“Querem uma reforma social para as novasgerações (...) que os reconheça não apenascomo trabalhadores, mas como pessoas comdireito à contra partida do seu trabalho, aosfrutos do trabalho. Querem, portanto,mudanças sociais que os reconheçam comomembros e integrantes da sociedade”.(MARTINS, 1994:154).

O aumento da produção agropecuária e amelhoria no padrão de vida dos trabalhadoresrurais são visíveis nos assentamentos. Entretanto,cabe destacar que a importância dosassentamentos não reside apenas na sua funçãoeconômica e de produção, pois os trabalhadores

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000 71

não têm apenas necessidades de comer, vestir,morar, mas também necessidade de democracia,participação política, de contrapor-se ao poder;de tomar decisões, enfim.

Surge, nos assentamentos rurais, apossibilidade de se colocar em prática uma novaproposta de produção no campo, de um homemnovo, ou seja, a proposta de uma sociedade nova.

Para Abramovay, as relações sociais, políticas,e, principalmente, econômicas nosassentamentos, adquirem novas formas,diferentes daquelas desenvolvidas noacampamento e na luta pela terra. As açõescoletivas não têm o mesmo espaço, e

“estabelece-se o desencantamento do mundo,realidade da sociedade capitalista, onde vocêtem mercado, dinheiro, desigualdade,despersonalização das relações econômicas eassim por diante”. (ABRAMOVAY,1994:316).

Os movimentos entram em refluxo e otrabalhador assentado sai do mundo das utopiase entra no mundo da produção.

O acesso à terra coloca ao trabalhador umanova condição (condição de produtor). Aí ocorreuma tendência à dispersão das lutas ereivindicações, que não são as mesmas doperíodo vivido no acampamento, quando as lutaseram mais políticas do que econômicas. Osassentados, agora preocupam-se com questõesde produção, política agrícola, assistência técnica,investimentos, etc. O seu discurso parece seroutro, afinando-se mais aos dos “pequenosprodutores”, pois até mesmo procuram estendersuas formas de organização (cooperativas,associações, grupos de produção) aos agricultoresnão assentados. Entretanto, os assentamentosnão são apenas lugares dedicados à produçãoagrícola/pecuária/agroindustrial, mas também olugar do debate político, onde se discute questõescomo a conquista da terra e a continuidadearticulada das lutas.

Por outro lado, os assentamentos são um“campo fértil” para que os ideais possam sematerializar e as utopias não morrem.

Em vista de sua trajetória e experiênciapolitizadora nos acampamentos, os assentadosconcebem a produção de forma diferenciada dosagricultores familiares.

“Alem disso, a observação, no seu nascedouro,de experiências de organização coletivas eassociativas, faz pensar que o conceito usualde pequeno produtor não se aplica em taiscasos, pois aí estar-se-iam criando ‘novasformas de pequena produção’ baseadas em‘ideais utópicos’ gerados nas lutas deconquista”(ESTERCI, 1992:8).

O Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra defende a necessidade da implantação decooperativas agrícolas nos assentamentos, comouma das formas para fortalecer a luta pelatransformação da sociedade:

“...as cooperativas não devem se organizarapenas com objetivos econômicos, mastambém com objetivos políticos, de longoprazo, que permitam conscientizar ostrabalhadores para fortalecer as suas lutas,tendo em vista a transformação da sociedade.Os assentamentos devem transformar-se emretaguarda política de luta contra a burguesiapara ir acumulando forças para a realizaçãoda Reforma Agrária”. (GÖRGEN eSTÉDILE, 1991:146).

Os assentados tornam-se agricultores etambém militantes trazendo consigo oenvolvimento das dimensões políticas,ideológica, social, econômica, filosófica ereligiosa.

EFICIÊNCIA POLÍTICA E ECONÔMICA DASCOOPERATIVAS NOS ASSENTAMENTOS

As ações iniciais do MST foram caracterizadaspor ações políticas de luta e conquista da terra.A conquista da terra levou o sem-terra a declinarsua atenção também para ações coletivas nosassentamentos, que não se restringem apenas àbusca de benefícios econômicos, com vista àimplementação da produção. A discussão sobrea produção no assentamento foi inserida naseguinte palavra de ordem: Ocupar, resistir eproduzir. A produção passou a ser entendidacomo uma forma de sustentação do projetopolítico dos sem-terras.

As pressões do governo federal (Collor) noinício da década de 90, colocaram muitosobstáculos para o desenvolvimento de ações

72 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000

massivas, levando o MST a voltar-se para dentro,com propósito de organização interna, inclusiveorganizar a produção. O entendimento de queas conquistas, da terra primeiramente, somentese dão em vista de ações coletivas; desdobram-se também nos assentamentos, quando asquestões econômicas ganham maior relevânciado que no acampamento.

O entendimento da direção do MST é de quenão existe condições do assentado progredireconômica, social e politicamente através deprodução individual/familiar. O modelo deprodução capitalista inviabiliza esse progresso, epor isso, os assentados devem reconhecer notrabalho cooperativo a possibilidade dedesenvolvimento, garantindo assim, a suaexistência.

A intenção do assentado produzirindividualmente no seu lote é entendida peloMST como um “desvio” que deve ser combatidopara evoluir e alcançar formas superiores deprodução (cooperativa). A formação dessaconsciência de individualidade seria fruto dasrelações de trabalho vividas no passado de cadaassentado.

A fase inicial dos trabalhos associativos foicaracterizada pelo surgimento de associações epequenos grupos inspirados nas CEBs; ougrandes associações com objetivo de prestaçãode serviços. Era uma cooperação espontânea esem direcionamento político definido.

Resultante dos debates internosdesenvolvidos no MST, surge em 1992, aCONCRAB (Confederação das Cooperativas deReforma Agrária), que passa a centralizar as açõesde mais de uma centenas de cooperativas deprodução, comercialização e prestação deserviços e estimulando a implantação deCooperativas nos assentamentos de todo o Brasil,através de cursos, organização de laboratóriosexperimentais, articulação de convênios efinanciamentos, elaboração de cadernos sobre acooperação. É importante destacar que oconteúdo destes cadernos não traz apenas umaproposta técnica de organização da produção nosassentamentos, mas acima de tudo, são altamenteideológicos e politizadores.

As iniciativas de organização da produção nosassentamentos como, por exemplo, a criação daCONCRAB, fazem parte de alterações dapolítica do MST, para a produção, e, em vista daconjuntura nacional e internacional levou-o a

rever seus objetivos e ações, procurando integrar-se à economia de mercado com a formação decooperativas. Ao contrário da plataforma queenfatizava o socialismo e a luta revolucionária, aprodução nos assentamentos, através dacooperativa, passa a buscar inserção na economiacapitalista. Neste caso, seriam ações coletivas queprocuram superar os problemas e não contestara ordem dos mercados capitalistas. (Gohn,1997:149).

Essa parece ser uma discussão marcada porduas orientações políticas dentro do MST. Uma,que entende o assentamento como lugar daprodução, e voltado prioritariamente para as lutaseconômicas; e outra, que concebe oassentamento como lugar de continuidade daslutas dos sem-terras, com uma orientação maispolítica do que econômica.

Segundo Gohn, a produção em cooperativasnos assentamentos não é apenas uma forma debarateamento dos custos de produção, masrepresentam saídas para a crise atual do sistemacapitalista que apresenta na sua essênciadificuldades de inserir setores populares na suadinâmica. São processos que experimentam novaformas de produção e técnicas produtivas, agorasob gestões coletivas, aproveitando as forçascomunitárias. A formas cooperativas de produçãodos assentamentos foram descartadas nopassado, por serem consideradas arcaicas, poisfaltava racionalidade técnica, sustentava-se emtradições, crendices populares, solidariedade,laços de amizade, que agora estão sendoresgatados. (Ghon,1997: 153/4).

A proposta de cooperação refere-se aodesenvolvimento das forças produtivas, comocondição para viabilidade econômica dosassentamentos. Assim, existe a necessidade deaumento de capital constante, produtividade dotrabalho, divisão e especialização do trabalho,racionalização da produção, de acordo com osrecursos naturais e desenvolvimento deagroindústrias (MST, 1993:10/11).

Pode-se levantar, aqui, a seguinte questão: acooperação agrícola nos assentamentossustentada na eficiência econômica viabiliza aeficiência política? As cooperativas destacam-sepela sua eficiência política ou eficiênciaeconômica?

O progresso das cooperativas não é avaliadosomente pelo volume de produção. Ascooperativas têm demonstrado também uma

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000 73

eficiência política. A liberação de militantes paradesenvolver lutas nas “frentes de massa”, comorganizações de ocupações de terra em outrasregiões é um exemplo desta perspectiva política,implícita na concepção de cooperativa. Atravésda cooperação nos assentamentos procura-seviabilizar e implantar a estratégia do MST, ouseja, constituir-se em

“...retaguarda ao proporcionar militantes/dirigentes e criar condições materiais para aluta; desenvolver a consciência política nabase; construir a sua organicidade; engajar-sena sociedade, seja fazendo articulação políticaou ajudando a organizar outros segmentos;vivenciar novos valores” (CONCRAB,1998:9).

A cooperação é entendida como a associaçãode trabalho, capital e terra na produçãoagropecuária para enfrentar a concorrência, ou omonopólio que o setor mercantil/industrial/financeiro exerce sobre o agropecuário. Como épraticamente impossível ao assentado concorrercom os grandes grupos econômicos que atuamno setor, trabalhando individualmente no seulote, a cooperação agrícola surge como umaalternativa de sobrevivência da “pequenaagricultura”. A cooperativa seria semelhante auma grande empresa, dirigida pelos assentados,que, produzindo em escala, colocaria seusprodutos no mercado a preços mais competitivos.

“No mercado capitalista sempre se consegueos melhores preços quando se negociaquantidades maiores e produtos de maiorqualidade. Através da cooperação, portanto,aumentam as chances de resultadosfinanceiros mais rentáveis” (MST, 1993:11).

A cooperação agrícola, sustentada através dainserção no mercado, poderá apresentar-se comoum sério obstáculo à proposta dos trabalhadoresassentados, embora a cooperativa se proponha aconstruir e operar num mercado alternativo.

“Já o segundo – mercado alternativo – deverábuscar desenvolver a concepção de que omercado existe para servir os trabalhadores eatender as suas necessidades” (CONCRAB,1998:39).

Para alcançar preços mais competitivos, osassentados necessitam cada vez mais aumentaros investimentos para ampliar seu capitalconstante e variável, baixar custos, diminuirdespesas para aumentar a produção/produtividade. A renda obtida através doexcedente da produção, deve ser reinvestida naprodução e não destinada à aquisição de bensde consumo às famílias assentadas. Em tese, oconsumo familiar (aquisição de produtos comomóveis, gêneros alimentícios, eletrodomésticos,combustível, por exemplo) seria sacrificado, paradestinar maior volume de recursos nas atividadesprodutivas da cooperativa.

Concebendo as cooperativas diferentementede uma empresa capitalista, porque aí, ostrabalhadores socializaram os meios de produção,dirigem o processo de produção ecomercialização, enfim, “apropriam-se” dasriquezas produzidas por eles, cabe observar quea “lógica”, o motor , é a inserção no mercado. Éuma “lógica” que sobrepõe os interessesacumulativos às necessidades de cada assentado.

Nos assentamentos, a cooperativa não deveser vista como um empreendimentoessencialmente capitalista, porque esta nãoproduz exclusivamente para o mercado: produztambém para as famílias. Entretanto, éimportante observar que existe uma grandepreocupação em produzir excedentes,viabilizados, principalmente, através damecanização e uso de instrumentos eequipamentos modernos, adquiridos nomercado. É evidente que a produção destinadaao consumo no próprio assentamento/cooperativa (gêneros alimentícios, instrumentos,produtos de sustentação de outras atividades)têm importância fundamental na produção deexcedentes, com barateamento de produtosdestinados ao mercado.

A cooperação agrícola nos assentamentos éuma proposta dos sem-terras assentados paratirar vantagens no mercado, pois a produçãoindividual/familiar (camponesa) está subordinadaaos interesses do capital mercantil/industrial, quese apropria da renda da terra na circulação e nãona produção.

A cooperativa tem um caráter empreendedor(empresa).

“O SCA – Sistema Cooperativista dosAssentados –, como cada cooperativa, deve

74 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000

ter, ao mesmo tempo, um caráter político eum caráter de empresa econômica”(CONCRAB, 1998:11).

Esta dificuldade de conciliação dos objetivoseconômicos e políticos, é percebida pelo MST,quando procura conceber e organizar acooperativa como uma totalidade.

“Sempre haverá uma tensão (contradição)entre as duas faces do caráter do SCA: fazera luta política e ser uma empresa econômica.Sê só fazermos a luta política nãoprecisaríamos constituir cooperativas e nemlegalizar as associações. Sê só agirmos comoempresa econômica caímos no desvio doeconomicismo” (CONCRAB, 1998:12).

Espera-se que os trabalhadores, nacooperativa, possam tirar vantagens comintegração ao mercado, o que, seria a garantiapara permanência da terra nas mãos de quemnela trabalha.

Segundo Horácio Martins de Carvalho, há oentendimento de que a luta do MST(estruturação, ocupações e acampamentos) éuma tática reformista que possui um caráterrevolucionário e, a luta para permanecer na terraocupada, onde se inclui a cooperação agrícola queprocuram integrar ao mercado para se beneficiardeles, é a evidência de uma proposta reformistaburguesa. Entretanto, o mesmo autor levanta oargumento de que as reformas

“...podem estar subordinadas a estratégiasdistintas, ou seja, reformas táticas burguesasou revolucionárias. ...As reformas táticas queinteressam aos socialistas revolucionários sãoaquelas arrancadas da burguesia, aquelas quecontribuem para elevar a independência, aconsciência de classe, a combatividade doproletariado e seus aliados populares.”(CARVALHO, 1994:256).

Assim, a manutenção de independência dascooperativas não seria garantida pelo seu objetivoeconômico, até porque procura-se integrar aomercado capitalista, mas pelo objetivo político,que garantiria o seu caráter revolucionário. Assim,podemos afirmar que a viabilidade econômicadas cooperativas depende da viabilidade política.A sobreposição desta (política) garante o caráter

revolucionário e a não subordinação à ordemcapitalista.

Portanto, observa-se que a força dascooperativas reside mais no seu objetivo políticodo que econômico, e que a cooperação, noassentamento, possui um cunho anticapitalistano sentido político, mas necessita de aderir aomercado, se o considerarmos a partir daperspectiva econômica.

O trabalhador assentado possui uma“consciência” construída no processo de trabalhoe relação de produção (forma de conceber aprodução no campo) diferente daquela vividapelos agricultores familiares. A proposta decooperação é um exemplo dessa diferença.

Após expropriação/expulsão e experiênciasurbanas, os trabalhadores sem terra deixam deconceber a produção no campo de formaindividualizada, característica da produçãocamponesa. Agora, não aceitam mais o prejuízodiante dos grandes esquemas econômicos, quelhes subtraem a renda. A não aceitação àsubordinação da produção familiar a estesesquemas é a evidência da visualização do campopolítico pelo camponês, que geralmente não seinteressa por esta questão.

É importante observar que não foramnecessariamente suas experiências na cidade,resultante da expulsão/expropriação que levaramos sem-terras assentados a conceber a produçãode forma diferente (inseridas no contextopolítico). As novas propostas de produção noassentamento são resultantes do “aprendizado”nas lutas e ações coletivas que se desenvolveramno processo de conquista da terra. As novaspropostas não são resultados das experiênciasurbanas, pois considerando assim, chegar-se-ia aconclusão de que a expropriação/expulsão foi umfato benéfico aos trabalhadores rurais.

Apesar do refluxo do movimento com oassentamento dos sem-terras, a organização nascooperativas é uma forma de procurar manter asmesmas disposições vividas no período deacampamento, para que o sem-terra assentadonão perca o desencanto pela luta. Torna-se uminstrumento de fortalecimento das utopias.

Uma parcela considerável dos assentados têmaversão ao trabalho cooperativo e coletivo. Comoa produção cooperativa não reproduznecessariamente o “modelo” familiar agrícola, agrande questão colocada está na dificuldade dereprodução do modelo experimentado por parte

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000 75

dos assentados. Segundo o INCRA, 5,38% dosassentados desenvolvem exploração coletiva,enquanto que 86,59% desenvolvem exploraçãoindividual e 8,03% utilizam a terra paraexplorações de forma mista (INCRA/CRUB/UNB, 1998:40).

Essa aversão e resistência justifica-se pelatrajetória de vida dos assentados que sempredesenvolveram atividades produtivastrabalhando individualmente ou com a família.Entretanto, a forma de produção cooperativaproposta pelo MST, encontra receptividade emmuitos assentamentos.

É importante destacar que a adesão dosassentados à cooperação não passa apenas pelasquestões subjetivas (liberdade de escolha), mas,também por questões objetivas, como força detrabalho de cada família, técnicas e área decultivo, por exemplo.

Além da dificuldade de aceitação dacooperação, existe a resistência aos programasde entidades de apoio ao movimento, comosindicatos e partidos políticos. Estas resistênciasestão vinculadas às questões de ordem objetivae subjetiva e revelam as dificuldades internas doMST, bem como no interior dos assentamentos.

Os conflitos entre os projetos da direção e oprojeto dos trabalhadores, baseados naagricultura familiar levam à flexibilização com acriação de espaços associativos intermediários,conciliando o trabalho coletivo com o individual(Gohn,1997:150), pois

“O SCA, deve trabalhar com todos osassentados, independente da forma deorganizar o trabalho e a produção.”(CONCRAB, 1998:15).

O exemplo da coletivização, como as comunasrussas, já foram criticadas, e a importância daagricultura familiar foi tratada por Chayanov (LaOrganización de la Unidad EconómicaCampesina, 1974), entre outros autores.

Deve-se observar ainda, que o trabalhocooperativo é recusado, porque existe apreocupação do assentado em perder sua“autonomia”.

Os assentados entendem que as atividadesdesenvolvidas através de trabalho cooperativopodem proporcionar resultados econômicosfavoráveis. Entretanto, é uma aspiração dele areconstrução do projeto de ser colono, relação

que envolve “autonomia” e “auto-suficiência” secomparada com as regras rígidas(estabelecimento de horários, por exemplo) edivisão do trabalho, exigidos pelas atividadescoletivas/cooperativas.

“...o móvel principal da luta pela terra queempreenderam foi a busca da efetivação doprojeto de ‘ser colono’, ou seja, ver viabilizadauma forma de apropriação da terra e ter sobreseu controle a organização e os resultados daprodução.” (ZIMMERMAM, 1994:208).

Os assentados vêem no trabalho coletivo umaameaça ao seu projeto de ser colono, que ébaseado na hierarquia; quando se manifesta umchoque entre o projeto de igualitarismo nãoreconhecido pelos camponeses (proposta feitapelas lideranças preparadas e formadaspoliticamente pelos mediadores, neste caso oMST) e uma proposta de organização socialbaseada na hierarquia, estabelecida navalorização diferencial, com deveres, direitos eatribuições estabelecidos não necessariamentepor critérios econômicos.(ROMANO,1994:257).

Esta recusa evidencia que o assentado nãoperdeu o seu “espírito camponês”, formado noprocesso de trabalho e produção individual/familiar. Embora os trabalhadores sem-terrasassentados tivessem passado por experiências detrabalho assalariado nas cidades, ele traz consigotoda uma experiência de trabalho individual/familiar, característica da produção camponesa.

Por outro lado, a produção no assentamento,pensada como uma unidade agrícola isolada,quando um único trabalhador domina todas asetapas da produção não é mais aceita por umaparcela dos assentados, quando investem naprodução cooperativa.

Ocorre que a existência da produçãocamponesa está em constante mudança, nãoexistindo um conceito pré-estabelecido, visto queeles diferem de uma sociedade para outra. Ocampesinato é formado no âmago da relação deprodução e se transforma em função das novasexigências colocadas. Produzem-se mudançasimportantes nas suas estruturas, aparecendoformas diferenciadas de produção, em função dasnecessidades de transformação para garantir suaexistência e reprodução.

76 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000

“... Sob certas condições, os camponeses nãose dissolvem, nem se diferenciam emempresários capitalistas e trabalhadoresassalariados. ....Eles persistem, ao mesmotempo que se transformam e se vinculamgradualmente à economia capitalistacircundante, que pervade suas vidas. Oscamponeses continuam a existir,correspondendo a unidades agrícolas diferentes,em estrutura e tamanho, do clássicoestabelecimento rural familiar camponês, emmaneira já parcialmente explorada por Kautsky.”(SHANIN, 1980: 58).

A discussão sobre organizações coletivas etrabalho individual nos assentamentos sempre“dividiram” técnicos, militantes, intelectuais e ospróprios assentados. É comum observar posiçõesda direção, principalmente, defendendo que ostrabalhos cooperativos têm vantagens superioresaos trabalhos individuais/familiares. Emborapossa existir resistência e oposição dosassentados em adotar de forma absolutamentecoletivista (terra, plantio, criação, construções deresidências e infraestrutura, comercialização),muitos se deixam seduzir pelo novo e utópico.(ESTERCI, 1992:6).

Na concepção de Oliveira, as iniciativascooperativistas no campo parecem não ser umasaída para os assentados, pois a especializaçãoimplícita na proposta de cooperação podesignificar a entrada nas enrascadas da estruturabancária para adquirir técnicas e instrumentos afim de competir com os produtores capitalistas.

“Entretanto, parece que o rumo a ser trilhadopela agricultura camponesa pode e deve seroutro. Estamos pensando numa alternativadefensiva... Esta alternativa defensivaconsistiria na recuperação da policultura comoprincípio oposto à lógica da especialização queo capital impõe ao campo camponês. Apolicultura baseada na produção da maioriados produtos necessários a manutenção dafamília camponesa. De modo que ela diminuao máximo sua dependência externa. Aomesmo tempo, os camponeses passariam aproduzir vários produtos para o mercado,sobretudo aqueles de alto valor agregado, quegarantiria a necessária entrada de recursosfinanceiros.” (OLIVEIRA, 1994:50).

O acesso às técnicas e máquinas modernassão importantes para garantir a viabilidadeeconômica, e, a integração aos mercados surgecomo uma “alternativa econômica” para ascooperativas, e as agroindústrias tomam impulsonaqueles assentamentos que a cooperaçãoagrícola encontram-se mais evoluídos política eeconomicamente.

Como existe uma grande demanda deprodutos agrícolas industrializados, osagricultores (assentados) devem adaptar-se àsnecessidades do mercado, investindo naverticalização da produção(agroindustrialização), procurando agregar valoraos seus produtos.

Para o MST, a “integração” da produçãoagrícola à indústria seria uma tendência dos diasatuais, que se daria com indústrias capitalistasou através da organização de agroindústrias pelospróprios assentados.

As agroindústrias nos assentamentos têmcaracterísticas essenciais que as diferenciam dosCAI (complexo agroindustrial). Além de umaforma diferenciada de produzir, oempreendimento dos trabalhadores (ascooperativas dos assentamentos) produzem aspróprias matérias primas, enquanto que asindústrias capitalistas adquirem essas matériasprimas produzidas pelos agricultores. Assim, asrendas obtidas com indústrias e agroindústriassão provenientes de relações diferenciadas.

As agroindústrias não se referemnecessariamente ao CAI. A renda obtida pelasgrandes empresas industriais que atuam natransformação de produtos agrícolas é resultadoda apropriação de renda obtida pela circulaçãodos produtos agrícolas e pela exploração dostrabalhadores assalariados (lucro). Nasagroindústrias desenvolvidas nos assentamentos,a renda é gerada na produção de bensagroindustrializados e apropriada pelos própriostrabalhadores.

A produção agroindustrial exige grandesmudanças na forma de produzir do assentado.Uma questão importante a ser destacada é aespecialização e divisão do trabalho, quepraticamente não existem na produçãocamponesa. Entretanto, a questão daespecialização deve ser melhor estudada, poismuitas cooperativas têm se estruturadodesenvolvendo culturas e atividadesdiversificadas.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000 77

UF Município Assentamento Cooperativa Sócios BA Alcobaça Pojeto –4045 Coopranova 30 BA Arataca Terra Vista Coopasul 100 BA Prado 1 de Abril Cooraunião 28 BA V. Conquista Faz. Amaralina Coopaa 128 CE Canindé Vitória Coopavi 56 CE Itararema Lagoa Mineiro Copaglam 140 CE Madalena 25 de Maio Copama 80 CE M.S.Tabosa Santana Copaguia 54 ES Ecoporanga Vale Ouro Coopane 48 ES N. Venecia Pip Nuk Coopoap 40 ES S.G. Palha 13 De Maio Coopranovas 45 ES São Mateus Vale da Vitória Cooprava 65 MA V Mearim Vila Diamante Coopervid 72 MS Anastácio São Manoel Copal 28 PE Arcoverde Pedra Vermelha Cooprav 30 PE Ribeirão Serrinha Coopase 20 PE Bonito Serra Quilombos 30 PE Timbaúba Panorama Coopapa 20 PR Lindoeste Verdum Coprac 20 PR Paranacity Santa Maria Copavi 37 PR Quer. Norte Portal do Tigre Copaco 31 PR Pitanga Cascata Coproag 20 PR Pitanga Otto Cunha Cooproserp 54 RS Charqueadas 30 de Maio Copac 58 RS Eldorado Sul Irga Copael 46 RS Hulha Negra Conq. Fronteira Capaul 38 RS Jul. Castilhos Nova Ramada Coopanor 52 RS Pontão Faz. Annoni Copagri 15 RS Salto Jacui Rincâo do Ivai Coparil 54 RS N Barreiro Peq. Agricultores Coobapa 650 RS Constantina Peq. Agricultores Coopac 700 RS Trindade Sul Trindade Sul Coopatrisul 30 RS Três Passos Peq. Agricultores Coopema 100 RS São Pedro Pe. Josimo Copaes 45 RS Pontão Faz. Annomi Cooptar 70 RS Piratini Conq. Liberdade Coopava 46 RS N.S. Rita Capela Coopan 60 RS S. Livramento Liberd. Futuro Copal 54 SC Abelardo Luz Volta Grande Copranova 77 SC Abelardo Luz Papuã II Cooprapã 100 SC Cmp. Novos 30 Outubro Copagro 78 SC D. Cerqueira Conq. Fronteira Coopeunião 58 SP Itabera Vó Aparecida Copava 58 SP Itapeva Pirituba Copracol 40 SP Promissão Pe. Josimo Copajota 80

COOPERATIVAS DE PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA – CPA’ s

COOPERATIVAS REGIONAIS UF Município Cooperativa Sócios PI São João Comasjopi 130 PR Cantagalo Coagri 1328 PR Lindoeste Coara 90 RS Hulha Negra Cooperal 870 RS Sarandi Coanol 880 RS Hulha Negra Cooptil 304 RS Porto Alegre Camail 98 SC Abelardo Luz Cooperjus 92 SC Matos Costa Coopercon 192 SP Pontal Cocamp 300

Fonte: CONCRAB. 1996

78 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 67-78, jan./jun. 2000

CONCLUSÃO

Verifica-se que as associações, gruposcoletivos, cooperativas, desempenham papel dearticuladores dos assentados na busca derecursos, créditos, infraestruturas, organização deoutros acampamentos e ocupações, além daprópria organização produtiva. As associações ecooperativas de produção agrícola têmdemonstrado mais eficiência política do queeconômica, pois tornam-se instrumentos dediscussão sobre a produção, cultura, política,lazer, etc.

As cooperativas dos assentamentos tornam-se importantes não apenas pelo seu significadoeconômico, mas sobretudo, pelo seu significadopolítico. Por isso, os assentamentos e ascooperativas aí existentes, são uma importanteconquista para a realização da reforma agrária etornam-se instrumentos questionadores daordem capitalista/oligárquica.

Verifica-se ainda, que as cooperativas tambémassumem importância política quando se tornamelemento irradiador e fortalecedor dasmobilizações e lutas. Elas são referência naformação de lideranças e “quadros” que atuamtanto nas propostas de organizar a produçãoagrícola, como nas mobilizações de conquista daterra e novos assentamentos. Os sem – terrasassentados constróem alianças com outrossegmentos de trabalhadores organizados, comomovimentos, entidades, sindicatos defuncionários públicos, professores, transportes,etc. Unem-se a outros trabalhadores para realizarmobilizações e conquistas.

Todas as conquistas dos sem-terras têm inícioa partir da conquista maior: a Terra. Assim,encerramos tomando emprestada uma palavra deordem dos sem-terras (acampados e assentados)de Itaquiraí no Mato Grosso do Sul: “Da TerraVem a Esperança.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, H.M. Tática Reformista, EstratégiaRevolucionária. In: STÉDILE, J.P. (Coord). AQuestão Agrária Hoje. São Paulo: Editora daUniversidade, 1994. p. 255-58.

CHAYANOV, A. La organización de la UnidadEconómica Campesina. Buenos Aires: NuevaVisión, 1974.

CONCRAB (Ed.) CONCRAB: Quatro AnosOrganizando a Cooperação. São Paulo:CONCRAB. 1996.

CONCRAB (Ed.) Cooperativas de Produção –Questões Práticas. Caderno de formação, n. 5,1997.

CONCRAB (Ed.) Sistema Cooperativista dosAssentados. Caderno de Cooperação, n. 5, 1998.

ESTERCI, N. et al. Assentamentos Rurais: UmConvite ao Debate. Assentar, Assentados eAssentamentos – Solução ou Atenuante, n. 3, p.4-15, 1992.

GOHN, M.G. Os sem-terra, Ong’s e Cidadania. SãoPaulo: Cortez, 1997.

GÖRGEN, F.A.S., STÉDILE, J.P. (Orgs).Assentamentos: Resposta Econômica da ReformaAgrária. Petrópolis: Vozes, 1991.

INCRA/CRUB/UNB. I Censo da Reforma Agrária noBrasil. Brasília:INCRA.1998. LÖWY, M.Ideologias e Ciência Social . 5. ed. São Paulo:Cortez. 1989.

MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia. 3. ed. Rio deJaneiro: Zahar, 1976.

MARTINS, J.S. O poder do Atraso. São Paulo:Hucitec, 1994.

MST. Agenda do MST. São Paulo: MST. 1988.MST (Ed.) A Cooperação Agrícola nos Assentamentos.

Caderno de Formação, n. 20, 1993.OLIVEIRA, A. U. Geografia e Território:

Desenvolvimento e Contradições na Agricultura.In: ENCONTRO NACIONAL DEGEOGRAFIA AGRÁRIA, 12, 1994, Água de SãoPedro. Mesas Redondas. Rio Claro: IGCE, 1994.p. 24-51.

OLIVEIRA, A. U. Modo de Produção Capitalista eAgricultura. São Paulo: Ática, 1986.

RICOEUR, P. Interpretação e Ideologia. 3. ed. Riode Janeiro: Francisco Alves, 1988.

ROMANO, J.O. Poder Valores e Conflito nosProcessos de Organização no Interior dosAssentamentos. Comentários a um Debate. In:MEDEIROS, L. et. al. Assentamentos Rurais:Uma Visão Multidisciplinar. São Paulo: UNESP,1994. p. 249-58.

SHANIN, T. A definição de Camponês: Conceituaçãoe Desconceituação – O velho e o novo em umadiscussão marxista. Petrópolis: Estudos, 1980.n.26.

ZIMMERMANN, N.C. Os Desafios da OrganizaçãoInterna de um Assentamento Rural. In:MEDEIROS, L. et al. Assentamentos Rurais: UmaVisão Multidisciplinar. São Paulo: UNESP, 1994.p. 205-24.

NOTAS

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 81-82, jan./jun. 2000 81

O Centro Técnico de Ciência do Solo (CTCS)é uma organização brasileira, sem fins lucrativos,que desenvolve desde 1985 experiências deformação em ciência do solo, em diversas regiõesbrasileiras (CTCS,1990). Em 1995, lançou oPrograma de Formação “A descoberta dos solos”,com o apoio financeiro da Comunidade Européiaaté 1997 (CIMADE & CTCS, 1995). O objetivogeral deste programa é transmitir para um públicodiversificado (pequenos agricultores, agrônomose técnicos agrícolas, alunos e professores deEscolas Agrícolas, alunos e professores de 1o e2o Graus e universitários) os conhecimentosnecessários para a descoberta e melhor utilizaçãodos solos.

O CTCS é a instituição responsável pelasformações, porém, conta com a substancialcolaboração de outras instituições, sem as quaisos trabalhos não seriam realizados. Nestecontexto, a parceria entre o CTCS, oDepartamento de Estudos Agrários daUniversidade de Ijuí, a 36a Delegacia deEducação de Ijuí e o Departamento deGeociências da Universidade Estadual deLondrina/Coordenadoria de Extensão àComunidade possibilitaram a realização doprojeto “Meio Ambiente e Solo” (agosto/97 amarço/99), com os seguintes objetivos a)Ressignificar o Ensino da Ciência do Solo nasEscolas Públicas de 1oGrau do Município de Ijuí,

Valorização do ensino da ciência do solo nas escolaspúblicas do município de Ijuí – RS, Brasil

Sílvia Maria Costa Nicola* , Noemi Huth** , Leonir Terezinha Uhde*** ,Sandra Vicenci Fernandes***, Omar Neto Fernandes Barros****

RS e b) Superar a fragmentação do currículoescolar, afastando-se da relação escrava com oslivros didáticos tradicionais e aproximando-se darealidade local das comunidades.

A metodologia utilizada é morfológica,refletindo o conceito do solo como meioorganizado (CTCS, 1990). Inicia-se o estudo dosolo com a descrição e interpretação da suamorfologia. Em função desta prosseguem-se osestudos da biologia, da química, da física e damecânica do solo, da relação solo-planta e domanejo.

O trabalho dos formadores e também dosprofessores nas escolas foi facilitado pelo materialdidático da Maleta Pedagógica “A descoberta dossolos” (RUELLAN & DOSSO, 1991), divulgadapelo CTCS para o estudo da morfologia do soloe suas aplicações na agricultura e meio ambiente.

Os resultados deste trabalho foram:

• A adoção do Eixo Solo como um gerador daprática interdisciplinar, através da utilização doprocedimento morfológico.

• Maior contato dos 145 professoresparticipantes do projeto e dos seus alunos(cerca de 7000) com o solo, conduzindo àampliação do seu conhecimento específico, àsensibilização para a sua importância na vidade todos e a melhoria considerável doenvolvimento dos alunos nas atividadespropostas pelo professor.

* Centro Técnico de Ciência do Solo - SQN 205 BL.B apto 405 Brasília-DF, CEP 70843-020, [email protected]** 36a Delegacia de Educação de Ijuí*** Universidade de Ijuí, Departamento de Estudos Agrários**** Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Geociências .

82 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 81-82, jan./jun. 2000

• Maior integração da escola com os pais dosalunos, com a Universidade local, com asSecretarias de Educação e, finalmente, com acomunidade, através da valorização dediferentes realidades locais (problemas do lixourbano, qualidade e disponibilidade de água,erosão, migração, história das Comunidades,etc).

• O Eixo Solo está, progressivamente, sendoincluído no Plano Integrado das Escolas de 1o

Grau do Município de Ijuí.• A produção de material didático mais adaptado

as diferentes realidades locais.

As conclusões e perspectivas da formaçãorealizada são:

ü O solo é um objeto de estudo que permitedesenvolver a interdisciplinaridade.

ü A metodologia morfológica é eficaz nasensibilização e formação de diferentes tiposde público. Todos aprender a observar, adescrever e a interpretar a morfologia de umsolo.

ü O solo deve fazer parte da cultura popular.ü O Eixo Solo poderá fazer parte do Plano

Integrado das Escolas, não somente no Estadodo Rio Grande do Sul, mas na escala de todoo Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CTCS. Brasília, DF, 29p.1990.CIMADE & CTCS. Paris, França.26p,1995.RUELLAN, A. & DOSSO, M. Maleta pedagógica,

CNEARC, 1991.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 83-87, jan./jun. 2000 83

“Hegel observa em uma de suas obras que todosos fatos e personagens de grande importância na

história do mundo ocorrem, por assim dizer, duasvezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez

como tragédia, a segunda como farsa.”(MARX, 1997:21).

A princípio este ensaio tinha como objetivodiscutir os resultados e perspectivas dosinstrumentos creditícios da Reforma Agrária, nocaso, o PROCERA. No entanto, diante doimpacto da recente e unilateral decisão dogoverno federal de extinção do PROCERA –Programa de Crédito Especial da ReformaAgrária e de incorporação de seu público aoPRONAF – Programa Nacional deFortalecimento da Agricultura Familiar, sintimo-nos quase como quem chega atrasada ao debate(que debate?) e pior, convictos de que oPROCERA tinha problemas e tragédias, masrepresentava uma conquista social que ansiavapor avaliação. Portanto, sua substituição sumáriapelo PRONAF é, em última instância, uma farsa,acima de tudo, por não superar os problemas pordentro, ou seja, a partir do entendimento dosmesmos em sua interioridade. Vejamos com mais

PROCERA versus PRONAF:vejo o futuro repetir o passado...

Rosemeire Aparecida de Almeida *

RESUMOEste ensaio tem como objetivo analisar o crédito rural para a Reforma Agrária, no caso, o PROCERA – Programade Crédito Especial para a Reforma Agrária, bem como as implicações de sua recente extinção no tocante a lutasecular de resistência ao processo de miserabilidade e expulsão que tem marcado a história dos homens e mulherescamponesas. Sentimo-nos covictos de que o PROCERA tinha problemas e tragédias, mas representava umaconquista social. Portanto, sua substituição arbitrária pelo PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento daAgricultura Familiar é, em última instância, uma farsa. Desta forma, a questão que se coloca é a de que precisamosdecidir qual o modelo de agricultura que queremos. E acima de tudo identificarmos os verdadeiros entraves quecercam a permanência do homem no campo.

detalhes o significado desses problemas. Assim,cabe salidentar que dentro da premissa de quedemocratizar o acesso a terra significa sincroniaentre Reforma Agrária e Política Agrária, oPROCERA representou um capítulofundamental na história de luta por crédito ruraldesencadeada, em meados da década de 80,pelos assentados no Rio Grande do Sul.

A partir da realização de um projeto deextensão na UFMS – Universidade Federal doMato Grosso do Sul, pudemos participar dacoordenação Sul-Mato-Grossense da Avaliaçãodo Programa de Crédito Especial da ReformaAgrária1 , situação que permitiu nossa inserçãonos desdobramentos da luta pela terra,principalmente no tocante aos instrumentoscreditícios e a assistência técnica.

O PROCERA NO MATO GROSSO DO SUL

O crédito rural para a Reforma Agrária sob aforma de “PROCERA-Programa de CréditoEspecial para a Reforma Agrária”, foi instituídoem 1986, no entanto, o projeto de pesquisa“Avaliação do Programa Especial de Crédito daReforma Agrária” privilegiou o ano base de 1993

* Professora assistente do Curso de Geografia DCH/CEUL/UFMS. Email [email protected]

84 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 83-87, jan./jun. 2000

para seleção e análise dos dados referentes aocrédito. O procedimento justifica-se em funçãoda necessidade de se ter um intervalo significativoentre a aquisição do crédito e sua amortização.Lembrando ainda que as operações analisadasforam custeio e investimento, e que o últimoconta com um período de carência de dois anospara início do pagamento das parcelas.Consequentemente, buscou-se avaliar a situaçãosocial e econômica daqueles parceleiros que nopassado, ou seja, em 1993, contraíram operaçõesdo PROCERA. Assim, partiu-se do pressupostoque essas famílias já possuíam tempo hábil paraserem analisadas em relação aos avanços e recuosdo Programa de Crédito Especial.

No Estado do Mato Grosso do Sul oPROCERA representava 10% do FCO – FundoConstitucional do Centro-Oeste, portanto suasoperações eram conhecidas como FCO-PAPRA-PROCERA e coordenadas pela ComissãoEstadual do PROCERA, sediada em CampoGrande e presidida pelo representante doINCRA no Estado.

Os recursos do PROCERA aplicados nosassentamentos do Mato Grosso do Sul, noperíodo de 1992 a 1997, ficaram totalizados emR$47.075.955,25. Foram atendidas nesse período7.544 famílias distribuídas por 38 assentamentosno Estado.

Em relação a metodologia utilizada napesquisa, optou-se por uma amostra estatísticaque possui uma relevância mais no âmbitoestadual e do país, com questões norteadas paraos aspectos econômicos-sociais. Em especialdestaca-se os questionários qualitativos aplicadosnas agências bancárias, assistência técnica eassentados. Esses receberam tratamentodiferenciado no processo de análise, a eles sendodispensado o trabalho minucioso de gabinete porcontemplarem as questões abertas que permitiamuma possibilidade maior de apreensão darealidade. Os questionários quantitativostambém aplicados nos assentamentos e emnúmero bastante superior aos qualitativos, foramtabulados com ajuda de um programa estatístico.Primeiramente, é necessário destacar que 90%

dos assentados que receberam recursos doPROCERA apresentaram relativa melhoria naqualidade de vida, sendo que o mesmo éapontado como a única opção viável de seproduzir no campo, com grande destaque para adependência dos assentados a essa linha definanciamento, no tocante ao desenvolvimentoeconômico.

Todavia, essa realidade contém seusparadoxos, pois no decorrer da pesquisa fomosencontrando vários entraves que cerceavam ocrédito e que precisavam ser analisados paraaperfeiçoamento do programa.

Desta maneira, no que refere-se a assistênciatécnica, no caso, a EMPAER- Empresa dePesquisa, Assistência Técnica e Extensão Ruralde Mato Grosso do Sul- constatamos umasituação de sujeição dos assentados. Por um lado,porque o único meio de encaminhamento daproposta do PROCERA era através daEMPAER, ou seja, o técnico era visto comoaquele que elabora o projeto e encaminha aobanco; por outro, pela completa inexistência decondições efetivas de pesquisa, assistênciatécnica e extensão rural. Basta dizermos que, namaioria das vezes, encontramos escritórios daEMPAER sucateados e funcionáriossobrecarregados com um número paraatendimento que ultrapassava 600 famílias.Portanto, medidas emergenciais configuravam o“jeitinho brasileiro” da assistência: projetos meioque padronizados; feitos em grupo com cédulaúnica; substituição da assistência pela solicitaçãodo trabalho de campo pela fiscalização.

A referência ao PROCERA como uma linhade crédito sem burocracia também foi alvo deinvestigação e, segundo as partes entrevistadas,o processo até a liberação do dinheiro duravaem média três meses e meio, percorrendo asseguintes fases:

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 83-87, jan./jun. 2000 85

Vemos que, por parte dos assentados etécnicos, houve preocupações com relação ademora entre a aprovação do projeto e a liberaçãodos recursos, em que pelo menos 35% dosassentados alegaram terem tido prejuízos tantono crédito de custeio como no investimento, emfunção da demora na liberação dos recursosatrelada a exigência de aplicação dos mesmos nasatividades arroladas no projeto à época de suaelaboração. Tal situação juntamente com aescolha de áreas de assentamento, na maioria,não recomendáveis para agricultura, temorientado uma prática bastante comum entretécnicos/assentados, vale dizer, a gradativadiminuição do interesse por crédito direcionadopara lavoura (custeio) e crescente incentivo aoinvestimento, principalmente referente a compra

de gado leiteiro como parte de uma estratégiade “poupança” onde o bezerro figura comgarantia de pagamento das prestações em casode “aperto”. Sintomático dessa situação, foi apresença constante de lavouras para subsistêncianos assentamentos, feitas com “sobras” dosrecursos do crédito de investimento, bem comoa descontinuidade na liberação dos recursos decusteio, no período de 1992 a 1997, presente nosdados apresentados pela Superintendência doBanco do Brasil. Ainda a respeito da trajetóriado PROCERA, cabe acrescentar que osdepoimentos atestam o fato do programa ter setornado burocrático, porque a estrutura em tornodele o era, ou seja, a EMPAER, a agência local ea Comissão Estadual estavam mergulhadas emburocracia.

1º EMPAER - Elabora carta consulta.

2º AGÊNCIA LOCAL - Emite parecer com informações sobre a situação bancária dos assentados.

3º EMPAER - Elabora juntamente com os assentados a proposta.

4º COMISSÃO ESTADUAL DO PROCERA - Analisa as propostas e emite parecer.

5º EMPAER - recebe as propostas aprovadas e elabora os projetos.

6º AGÊNCIA LOCAL - elabora os contratos e solicita recursos.

7º SUPERINTENDÊNCIA DO BANCO DO BR - libera os recursos e repassa a agência local.

8º AGÊNCIA LOCAL- Celebra o contrato e repassa recursos aos assentados.

86 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 83-87, jan./jun. 2000

Outro fato bastante relevante é o circuito deinvalidação presente na relação assentados efuncionários das agências bancárias. Inferimosque muito se deve pela inexistência quaseconstante de documentação (cédula rural)referente as operações do PROCERA entre osassentados, principalmente no caso dos Grupos,fato observado até mesmo nas operaçõesrecentes, restando apenas a presença de umainformação unânime: o valor já pago e ainconformidade com a quantia ainda restante, oque revela, em última instância, uma certaincapacidade de compreensão da figura do juroe até mesmo da possibilidade de aquisição dorebate de 50% em cima do valor adquirido maistaxa de juro, mediante pagamento efetivo na datado vencimento. Situação esta, afirmamos, queexigia uma campanha de divulgação maciça doPrograma com estratégias que enfrentassem oanalfabetismo, buscando uma interação com oPRONERA – Programa Nacional de Educaçãona Reforma Agrária.

Em relação a agência bancária (Banco doBrasil) notamos um relativo desconhecimento dalegislação do PROCERA e estranha ausência deinformações referentes ao número de famíliasbeneficiadas e quantia de recursos liberados, oque acabava gerando uma impossibilidadequanto a análise de dados mais detalhada. Essaexpurgação foi explicada pela necessidade de“qualidade total” nos serviços. Contudo, éinteressante destacar que esse “desinteresse” dobanco talvez esteja ligado ao fato de que nestetipo de operação não há capitalização, além deser risco de terceiro.

A discussão a respeito das metas doPROCERA revelou que o Programa eraentendido pelos entrevistados como resgate evalorização da agricultura familiar, com destaquepara o caráter de subsídio, o qual possibilitavauma relativa distribuição de renda. A meta doPROCERA, qual seja, a de um possível aumentode produtividade e lucratividade na atual políticade Reforma Agrária, onde as terras destinadaspara assentamento são as consideradas nãoprodutivas seguindo a risca a concepçãoagronômica do termo, bem como de desamparodo agricultor frente aos mecanismos decomercialização, parece de difícil alcance. Poroutro lado, pareceu estar firmando-se no meiorural a opção e possibilidade, através doPROCERA, de geração de uma política de

segurança alimentar, portanto, mesmo semconseguir a chamada capitalização, os assentadosconseguiam melhorar sua renda familiar visandosua reprodução em condições dignas, revertendoo processo de expropriação material que marcousuas trajetórias de migrantes e acampados sem-terra.

Portanto, a ausência de debate que cercou aextinção do PROCERA só tem a contribuir parao mascaramento e eternização dos problemas quecircundam a permanência do homem no campo.Agravados, ao nosso ver, pela supressão docrédito especial para Reforma Agrária, isto é,retirou-se a possibilidade de tratar os diferentesem suas especificidades. Portanto, essa manobrapolítica de anexação dos assentados aoPRONAF, aliada a uma indisfarçavel intençãode emancipar precocemente os assentamentos,parece ser a nova ofensiva do governo parainviabilizar o modelo de desenvolvimentoconquistado pelo MST – Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem-Terra, o que significaum reforço aqueles que intelectualmentedefendem a grande propriedade como o caminhoeconomicamente viável.

Gostaríamos também de ressaltar que seoptou neste ensaio por tratar os assuntos relativosao resultado da pesquisa pela homogeneidadedas respostas, todavia assumimos que a realidadeé composta por diversidade e contradição, assimnão raro encontramos situações onde porcondições historicamente determinadas odiferente se fez presente. Como exemplodestacamos os assentamentos do sul do MatoGrosso do Sul, em que o nível de organização ébastante desenvolvido e a luta por crédito ruralespecial, uma bandeira viva.

Enfim, acreditamos que o problema nãoresolve-se com troca de rótulo (PROCERA-PRONAF), com classificações de “A” a “G” queseparam assentados por sua renda anual numreducionismo próprio daqueles que pouco ounada entendem sobre a composição da renda nocampo. Neste sentido indagamos: quais oscritérios que serão utilizados? Será que oConselho Monetário Nacional irá exigir que nocálculo se leve em conta todas as galinhas e pésde alface existentes no quintal? Será que ocritério “ter recebido recursos do PROCERA”serve como parâmetro para decidir as condiçõesde pagamento que o assentado será submetido?Não esquecendo aí o irrisório e “imexível” teto

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, p. 83-87, jan./jun. 2000 87

máximo de custeio e investimento, que foram ogesso do antigo crédito rural. Outras questõestambém extremamente importantes, que nosfazem acreditar na perversidade do Novo MundoRural, são as mudanças na linha definanciamento. Agora além da taxa de juros de6% ao ano transportada do antigo PROCERA,os assentados pagarão também no PRONAF aTJLP ( taxa de juros de longo prazo).

Desta forma, a questão que se coloca é a deque precisamos decidir qual o modelo deagricultura que queremos. E acima de tudo,

identificarmos os verdadeiros entraves que, naaparência, estão no desencontro dos órgãosenvolvidos oficialmente na Reforma Agrária ena essência, na luta que tem permeadosecularmente a questão da terra no Brasil, lutaque é política, e fundamentalmente de classes.

NOTAS

1 Projeto com coordenação nacional da FCA/UNESP e recursos da FAPESP/FINEP-BID/INCRA.

Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, jan./jun. 2000 89

GEOGRAFIARevista do Departamento de Geociências

INSTRUÇÕES PARA PUBLICAÇÃO

A revista GEOGRAFIA: Revista do Departamento de Geociências da Universidade Estadual deLondrina, destina-se à publicação de matérias de interesse científico de qualquer área de conhecimento,desde que tenham relação com a ciência geográfica.

NORMAS EDITORIAIS

1. Serão aceitos somente trabalhos originais divulgados ou não, mas ainda não publicados em periódicosdo gênero, ou, em casos especiais, a critério do Conselho Editorial.

2. Os originais recebidos serão submetidos à apreciação de assessores científicos que sejam especialistasreconhecidos nos temas tratados. Os trabalhos serão enviados para avaliação sem a identificação deautoria.

3. O editor se reserva o direito de introduzir eventuais alterações nos originais, de ordem normativa,ortográfica e gramatical, com o fim de manter a homogeneidade e qualidade da publicação, respeitadoso estilo e as opiniões dos autores, sem que seja necessário submeter essas alterações à aprovação dosautores.

4. A revista classificará as colaborações de acordo com as seguintes seções:

4.1 Artigos: compreende textos que contenham relatos completos de estudos e pesquisas, matéria decaráter opinativo, revisões da literatura e colaborações assemelhadas (no máximo 40 páginas);

4.2 Notas prévias: comportam observações, opiniões, críticas, ponderações, explicações sobre temasde interesse do público-alvo (no máximo 6 páginas);

4.3 Resenhas: compreende a apreciação e análise crítica e interpretativa de obras recém-lançadas,cabendo ao resenhista toda a liberdade de julgamento (no máximo 4 páginas).

5. As opiniões emitidas pelos autores dos artigos são de sua exclusiva responsabilidade.

6. As provas tipográficas não serão enviadas aos autores.

7. Os autores e co-autores receberão um exemplar da revista.

90 Geografia, Londrina, v. 9, n. 1, jan./jun. 2000

APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS

Formato: todas as colaborações devem ser enviadas, de preferência, em disquete, acompanhada deuma cópia impressa, com entrelinhamento duplo, em tamanho A4 (21 x 29,7 cm). O disquete (3 ½¨)será aceito se o trabalho estiver, preferencialmente, no editor de texto Microsoft Word for Windows,versão 6.0 ou superior.

Texto: com intuito de agilizar o trabalho de editoração eletrônica, a digitação deverá seguir as seguintesnormas:a) não utilizar tabulações no início do parágrafo;b) colocar espaço após a pontuação;c) usar fonte (letra) padrão Times New Roman e modelo de formatação normal do editor de textos,

podendo-se usar negrito, itálico, sublinhado, sobescrito e subscrito;d) apresentar o texto em um único arquivo; com exceção das ilustrações que devem ser em arquivos

separados.

Título: deve ser em português, com versão para o inglês

Autoria: O(s) autor(es) deve(m) indicar na primeira lauda do original, em nota de rodapé, a queInstituição pertence(m), Departamento ou Unidade de Trabalho, e o endereço completo de cada umpara as consultas que se fizerem necessárias (preferencialmente com e-mail).

Resumo/Palavras-chave: deve ser incluído um resumo informativo de aproximadamente 200 palavras,em português, acompanhado de sua tradução para o inglês. As palavras-chave devem representar oconteúdo do texto, em português e inglês, e não devem ultrapassar cinco (5) descritores.

Agradecimentos: agradecimentos a auxílios recebidos para a elaboração do trabalho ou mesmo à pessoas,deverão ser mencionados em nota de rodapé na primeira página.

Notas: notas referentes ao corpo do artigo devem ser indicadas pelo sistema numérico e inseridas nofim do artigo, antes das referências bibliográficas.

Ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos, mapas, quadros, tabelas etc.): deverão ser contempladasaquelas estritamente indispensáveis à clareza do texto, indicando-se no mesmo o lugar em que devemser inseridas. As ilustrações devem ser apresentadas em arquivo separado, em um dos seguintes formatos:BMP, TIF, PCX.Importante: serão publicadas somente as ilustrações em diferentes tons de cinza.

Citações bibliográficas: deverão seguir o sistema de chamada alfabética conforme as normas da ABNT(NBR 10520 – apresentação de citações em documento) e listadas alfabeticamente no final do trabalho.

Referências Bibliográficas: deverão ser redigidas conforme as normas da ABNT (NBR 6023 – referênciasbibliográficas).

As colaborações devem ser enviadas, acompanhadas de carta de encaminhamento, para o endereço:Geografia: Revista do Departamento de GeociênciasUniversidade Estadual de LondrinaCentro de Ciências ExatasDepartamento de GeociênciasCampus Universitário s/nCaixa Postal 600186.051-990 Londrina, Paraná