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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 48 • Outubro de 2009 Para além do cartão-postal Projetos de inclusão visual levam a fotografia para jovens de baixa renda e apontam a necessidade de a sociedade modificar o olhar estereotipado sobre a favela. Assim acontece na Escola de Fotógrafos no Complexo da Maré, criada em 2004. Ela é responsável pela formação gratuita de dezenas de jovens fotógrafos. A ideia é que eles se tornem “porta-vozes visuais” da sua própria realidade. Caçadora 13a 17 Entrevista Heloísa Buarque de Hollanda de encantos literários É com fascínio indisfarçável que Heloísa Buarque de Hollanda, professora titular da UFRJ, fala dos seus novos e provocadores projetos. Desde que, em 1976, lançou a já clássica antologia 26 poetas hoje, um ícone da poesia maldita brasileira, ela não para de desafiar o cânone literário com experimentos que impres- sionam pelo arrojo. Um deles é a antologia digital Enter – lança- da em 11 de agosto – que reú- ne textos, vídeos, fotos e áudios de 37 poetas contemporâneos. Tudo o que ela faz sempre dá o que falar e não foi diferente quando decidiu entender como funciona a lógica da percepção poética no ambiente digital. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, a pesquisadora também fala sobre o concorrido e único pós-doutorado em Estudos Culturais do Brasil, criado há 10 anos. 3a 7 10a 12 O ensino vai aonde o aluno está A cada dia, com o avanço das tecnologias da informação e comunicação, o conhecimento vem se desvinculando do espaço físico da sala de aula e da figura do professor. Ficou para trás a discussão sobre adotar ou não a Internet como ferramenta de ensino. A Educação a Distância (EaD) ressurge com força e se consolida como alternativa para o ensino de graduação. 18a 21 Quando o mínimo faz a diferença Mesmo aquém de uma justa distribuição de renda, o país diminui desigualdade através de políticas sociais. Além da unanimidade político eleitoral, ava- lia-se que a sociedade finalmente começa a perceber o papel do Estado na luta contra a exclusão social, gera- da pelo capitalismo. Custando apenas 0,4% do Produto Interno Brasileiro (PIB), soma de todas as riquezas do país, o Programa Bolsa- Família (PBF) está pre- sente em 12 milhões de lares pelo país. Pagú A estrela esquecida 28 A vida pessoal de Patrícia Galvão, a eterna Pagú, e em especial seu envolvimento com o poeta “antropofágico” Oswald de Andrade, fugiu aos moldes da sociedade paulista dos anos 1930. O casal quis chocar os conser- vadores, a ponto de fazer sua cerimônia de casamento em um cemitério. O que poucos sabem é que, para além da beleza e das intri- gas pessoais, Patrícia Galvão deixou uma obra literária plural, marcada pela intensidade. Mu- lheres como ela, que não tiveram vergonha de expor o que eram, devem ser recuperadas. Pagú foi uma estrela, em todos os sentidos. Zope

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Page 1: Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da ... · Projetos de inclusão visual levam a fotografia para ... Milton Flores Chefe de Gabinete ... Projeto gráfico – Reflexões

Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 48 • Outubro de 2009

Para além docartão-postal

Projetos de inclusão visual levam a fotografia para jovens de baixa renda e apontam a necessidade de a sociedade modificar o olhar estereotipado sobre a favela. Assim acontece na Escola de Fotógrafos no Complexo da Maré, criada em 2004. Ela é responsável pela formação gratuita de dezenas de jovens fotógrafos. A ideia é que eles se tornem “porta-vozes visuais” da sua própria realidade.

Caç

ador

a

13a 17

EntrevistaHeloísa Buarque

de Hollanda

de encantos literáriosÉ com fascínio indisfarçável que Heloísa Buarque de Hollanda, professora titular da UFRJ, fala dos seus novos e provocadores projetos. Desde que, em 1976, lançou a já clássica antologia 26 poetas hoje, um ícone da poesia maldita brasileira, ela não para de desafiar o cânone literário com experimentos que impres-sionam pelo arrojo. Um deles é a antologia digital Enter – lança-da em 11 de agosto – que reú-ne textos, vídeos, fotos e áudios de 37 poetas contemporâneos. Tudo o que ela faz sempre dá o que falar e não foi diferente quando decidiu entender como funciona a lógica da percepção poética no ambiente digital. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, a pesquisadora também fala sobre o concorrido e único pós-doutorado em Estudos Culturais do Brasil, criado há 10 anos.

3a 7

10a 12O ensino vai aonde o aluno está

A cada dia, com o avanço das tecnologias da informação e comunicação, o conhecimento vem se desvinculando do espaço físico da sala de aula e da figura do professor. Ficou para trás a discussão sobre adotar ou não a Internet como ferramenta de ensino. A Educação a Distância (EaD) ressurge com força e se consolida como alternativa para o ensino de graduação. 18a 21

Quando o mínimo faz a diferença

Mesmo aquém de uma justa distribuição de renda, o país diminui desigualdade através de políticas sociais. Além da unanimidade político eleitoral, ava-lia-se que a sociedade finalmente começa a perceber o papel do Estado na luta contra a exclusão social, gera-da pelo capitalismo. Custando apenas 0,4% do Produto Interno Brasileiro (PIB), soma de todas as riquezas do país, o Programa Bolsa-Família (PBF) está pre-sente em 12 milhões de lares pelo país.

PagúA estrela esquecida

28

A vida pessoal de Patrícia Galvão, a eterna Pagú, e em especial seu envolvimento com

o poeta “antropofágico” Oswald de Andrade, fugiu aos moldes da sociedade paulista dos

anos 1930. O casal quis chocar os conser-vadores, a ponto de fazer sua cerimônia de

casamento em um cemitério. O que poucos sabem é que, para além da beleza e das intri-

gas pessoais, Patrícia Galvão deixou uma obra literária plural, marcada pela intensidade. Mu-

lheres como ela, que não tiveram vergonha de expor o que eram, devem ser recuperadas.

Pagú foi uma estrela, em todos os sentidos.

Zope

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Outubro 2009UFRJJornal da 2 Outubro 2009

Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Esdeva Indústria Gráfica

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE)

Edição e pautaAntônio Carlos moreira

e Fortunato mauro

Redação Aline Durães, Bruno Franco,

Coryntho Baldez, Pedro Barreto,Rodrigo Ricardo e Sidney Coutinho

Projeto gráfico Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno, Patrícia Pereze Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Ilustração Jefferson Nepomuceno,

Vitor Vanes e Zope

Fotos

A.F.Rodrigues, Agência Brasil, Agência Imagens do Povo, Bira Carvalho, Fábio Café, Imagem

UFRJ, marcello Casal Jr, marco Fernandes, Ratão Diniz, Ricardo Stuckert e Rousinaldo lourenço

Revisão mônica machado

Instituições interessadas em receber essa publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

o Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de espaço as cartas sofrerão uma seleção e poderão ser

resumidas.

Agenda

21 de outubro9h – Abertura

9h30 – Apresentação Migração e Trabalho

– Representação política do trabalho escravo no Brasil contemporâneo.– O combate ao trabalho escravo na cana de açúcar no estado de São Paulo.– Manutenção do trabalhador escravi-zado nos canaviais sem desrespeitar os direitos trabalhistas.

11h30 – Debate

13h30 – Apresentação Migração e Trabalho– Projetos de desenvolvimento, deslo-camentos compulsórios e fragilização de populações locais.– Novos sentidos da pobreza e refun-cionalização da servidão – O trabalho escravo no Brasil no século XXI.– Economia da precisão: estratégias de sobrevivência dos trabalhadores rurais em Codó, Maranhão.– Reflexões sobre a violência no pro-cesso migratório.– Mulheres de Atena.

15h50 - Debate

Trabalho escravo em debate

Aline Durães

22 de outubro9h – Apresentações

– Trabalhado escravo como fenômeno internacional.– Global Production Networks and the Problem of Forced .Labour in the Eu-ropean and UK Contexts.– Espanha. Tráfico de mulheres: ex-pressão de desejo versus realidade dos fatos.– Imagens do escravo na literatura ro-mana: Apuleio.

11h20 – Debate.

13h30 – Apresentação Poder público e sociedade civil– Restrições das liberdades substanti-vas como indutoras do trabalho análo-go à escravidão.– Trabalho escravo contemporâneo: crime e conceito.– MST Relações de trabalho na Zona da Mata alagoana nas décadas de 40 e a formação das agendas sociais privadas: um estudo a partir da questão do tra-balho escravo contemporâneo. – Escravidão rural contemporânea: a sobrevivência de uma herança históri-ca do capital nacional.

15h50 - Debate

17h30 – Painel: Direitos Humanos NEPP-DH/UFRJ e Movimento Hu-

manos Direitos (MHUD).

20h – Entrega do Prêmio João Canuto.

23 de outubro9h – Apresentações

– Relato sobre a Ação Interinstitucio-nal para qualificação e reinserção pro-fissional dos resgatados do trabalho escravo em Mato Grosso. – Denúncias de “Trabalho Escravo” em Mato Grosso (1972-2005).– Escravidão contemporânea: relações existentes e estudo de caso.– Campanhas educativas para preven-ção e combate ao trabalho escravo por dívida no Brasil rural: primeiras apro-ximações.– Geografia do Trabalho Escravo Con-temporâneo no Brasil (1985-2006).– Rompendo grilhões: a função social da propriedade e o trabalho escravo como estratégias de desapropriação da fazenda Cabaceiras.

11h20 – Debate

13h30 – Avaliação da Reunião, discus-são sobre novos encontros e sobre a publicação dos anais da reunião.

ServiçoIII Reunião Científica Trabalho

Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas

Data: 21 a 23 de outubro de 2009Local: Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), 3º andar. Aveni-da Pasteur, nº 250, Botafogo, Rio de Janeiro.Dia 21, de 9h às 18h. Dia 22, de 9h às 20h. Dia 23, de 9h às 17h,http://www.nead.org.br/boletim/bole-tim.php?boletim=467&noticia=2186.

Embora oficialmente extinto há mais de um século, o trabalho escravo ainda assombra muitos brasileiros. Para de-bater a escravidão atual e pensar meios de combatê-la, a UFRJ organiza, entre os dias 21 e 23 de outubro, a terceira edição da Reunião Científica Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas.

O evento, promovido pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) do Centro de Fi-losofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ, reunirá especialistas e pesquisadores que, entre outros temas, vão discutir migração, trabalho e Direitos Humanos.

A Reunião Científica acontece, a partir das 9 horas, no auditório do Anexo do CFCH, localizado na avenida Pasteur, nº 250, campus da Praia Vermelha. Confira abaixo a programação completa do evento.

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Outubro 2009Outubro 2009 3Outubro 2009 UFRJJornal da

Inclusão Social

Aline Durães

Agenda

do cartão-postalPara além

Projetos de inclusão visual levam a fotografia para

jovens de baixa renda e apontam a necessidade de a

sociedade modificar o olhar estereotipado

sobre a favela. As fotos queilustram esta

matéria são de alunos da Escola de Fotógrafos do

Complexo da Maré.

Fim de tarde de uma se-gunda-feira ensolarada. A atendente do bar Mundo

Lindo serve mais um café expresso a um cliente. Do lado de fora, sen-tada em uma das mesas do estabe-lecimento, a mãe dá de beber a seu filho, enquanto segue com os olhos pessoas que retornam, a passos cal-mos, para casa, depois de um dia de trabalho.

Aline Durães

A.F.Rodrigues / Imagens do Povo

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Outubro 2009UFRJJornal da 4 Outubro 2009

Apesar de não parecer, a pacífi-ca cena acontece em Nova Holanda, uma das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré. Cenários como esse, embora comuns nas periferias da cidade, contrastam com as ima-gens que bombardeiam a população diariamente. Acostumados às cenas de violência, pobreza e tráfico de drogas, muitos brasileiros acabam por desenvolver uma visão deturpa-da — e preconceituosa — das comu-nidades de baixa inclusão social.

A Declaração dos Direitos Hu-manos preconiza, há seis décadas, que a Comunicação é um direito universal. Entretanto, desde que o fotógrafo Louis Daguerre apresen-tou, em agosto de 1839, sua fotogra-fia na Escola de Belas Artes de Paris, inaugurando, assim, os 170 anos da história oficial da fotografia, as clas-ses de menor renda são excluídas do processo de produção da pró-pria imagem. “A visão da nobreza, da burguesia, da classe média pre-domina, é hegemônica. A periferia regularmente é mostrada, mas não se mostra”, destaca Dante Gastaldo-ni, professor de Fotojornalismo da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ.

Para combater a exclusão visual que afeta milhões de brasileiros, al-gumas iniciativas vêm sendo desen-volvidas. Cada vez mais, a periferia encontra mecanismos de se mostrar e de combater os preconceitos que a rondam. Dentre todas as manifes-tações artísticas, a fotografia possui força singular.

Gastaldoni explica que, por não demandar uma infraestrutura cara e por ser um ato eminentemente solitário, a fotografia se torna mais atraente para os jovens de baixa renda. “Ela tem a característica qua-se única de ser um trabalho solo e pleno. Não existe como fazer uma foto a dois. Ela é solitária na sua es-sência. Além disso, a estrutura de execução é fácil e simples. Com a tecnologia digital, ela passou a ser mais acessível também. Hoje, é pos-sível fotografar, armazenar as fotos e veiculá-las a um custo baixo”, con-jectura o especialista em Linguagem Fotográfica.

Por um novo olharEm todo o Brasil, multiplicam-

se movimentos e organizações que têm como objetivo principal sus-citar em jovens e crianças, que vi-vem em situação de risco social, o interesse pela fotografia. Guiados pelo conceito de inclusão visual, a intenção desses projetos é ensinar técnicas de foto e levar cidadania para os moradores de comunidades populares. Com uma máquina nas mãos, os jovens fotógrafos mostram o cotidiano das favelas, aumentam sua autoestima e, em última instân-cia, combatem a visão propagada pela grande mídia, que as retrata,

Inclusão Social

Rousinaldo Lourenço

Fábio Café

A.F.Rodrigues / Imagens do Povo

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Outubro 2009Outubro 2009 5Outubro 2009 UFRJJornal da

na quase totalidade das vezes, como o lugar da tragédia.

Assim acontece na Escola de Fo-tógrafos da Maré, criada em 2004, pelo fotógrafo João Roberto Ripper. Localizada no Complexo da Maré, ela auxilia na formação de dezenas de jovens ao fornecer, gratuitamen-te, um curso de fotografia. A ideia é que esses novos fotógrafos tornem-se “porta-vozes visuais” da sua pró-pria realidade.

Coordenado por Dante Gastal-doni, o curso de 540 horas-aula tem duração de 12 meses. “O trunfo da Escola é justamente ser um local de excelência, que prima por dar conhecimento a um grupo de jo-vens de periferia, na esperança de que alguns, seduzidos pela paixão e de posse de informações técnicas, transformem-se em fotógrafos. Essa fotografia é nova e poderosa, pois já sugere a inclusão visual”, enfatiza o professor.

Para ingressar na Escola, os inte-ressados devem se inscrever e passar por entrevistas com os coordenado-res. As aulas são ministradas das 9h às 13h, de segunda a sexta-feira. O curso é dividido em três módu-los de 180 horas cada – Linguagem Fotográfica, Informática Aplicada à Fotografia e Fotografia Documental e Olhar Autoral. Os critérios prin-cipais de seleção são a vontade e a disponibilidade do candidato para frequentar as aulas.

Além de modificar o olhar de jovens acostumados às lentes mas-sificadas da grande imprensa, a Es-cola abre as portas do mercado de trabalho e auxilia na inserção social dos alunos. “A gente não descarta a empregabilidade como objetivo. Fe-lizmente, eu posso dizer que, entre os 60 jovens que já passaram pela escola nos dois últimos anos, mais de 20 são proprietários de câmeras digitais profissionais, ou seja, estão habilitados a executar pautas com seu próprio equipamento”, sublinha Dante.

Adriano Rodrigues é um deles. Nascido e criado na Maré, 30 anos, foi um dos primeiros alunos da Es-cola de Fotógrafos. Atualmente, tra-balha com fotografia na Prefeitura do Rio de Janeiro. Ele conta que, por ter o ensino superior completo, chegou a ser vetado no curso. Mas insistiu. “Fui selecionado para uma Pós-graduação em Campos (RJ), com direito a bolsa, e abdiquei em função do curso de fotografia. Eu tive que escolher e optei pelo que gostava. Senti dificuldades durante todo o curso, porque as aulas são pesadas. Ao contrário dos demais projetos que participei, a escola o qualifica em um ano, de forma mui-to intensa”, avalia Rodrigues.

A influência da mídiaÉ consenso entre os entusiastas

do conceito de inclusão visual que

Inclusão Social

Ratão Diniz/Imagens do Povo

Ratão Diniz/Imagens do Povo

Bira Carvalho

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Outubro 2009UFRJJornal da 6 Outubro 2009

a imprensa é a grande responsável pela imagem negativa da favela jun-to ao imaginário social. Basta abrir um jornal para verificar que as notí-cias ambientadas em comunidades de baixa inclusão social referem-se, na maior parte das vezes, às temáti-cas da violência e do tráfico.

Dante Gastaldoni compartilha dessa opinião, mas pontua que, em-bora a mídia estigmatize essas loca-lidades, ela não pode ser vilanizada. Na opinião de Dante, a imprensa está inserida em um processo his-tórico que valoriza a fotografia de tragédia. O fotojornalismo nasceu com a cobertura de guerras. Tanto o inglês Roger Fenton quanto o nor-te-americano Mathew Brady, consi-

derados os dois primeiros repórte-res fotográficos da mídia impressa, cobriram eventos conflituosos. O primeiro esteve na Guerra da Cri-meia (1853 a 1856, Sul da Rússia e Bálcãs). Já Brady fotografou a Guer-ra da Secessão (1861 a 1865, entre os estados norte-americanos do Sul e os do Norte).

Mas por que a tragédia ocupa tanto espaço? Para Gastaldoni, a resposta é simples: “Tragédias são notícias. Veicular notícia ruim tem apelo social. Nenhum jornal destina uma página inteira para divulgar um prêmio Nobel, mas dá várias páginas para informar sobre o tsunami, por exemplo. Então, se existe a mentali-dade de que a boa notícia é a tragé-dia, quando os jornais vão à favela? Quando acontece algo trágico. Esse processo reforça a máxima de que a favela é o lugar do terror, da vio-lência. No entanto, essa é uma das maiores mentiras com as quais eu já convivi. Ninguém entende o que é uma favela até entrar nela. Ao entrar, você se depara com relações de soli-dariedade estabelecidas num mundo onde não há quintais ou cercas. E percebe também que mais de 99% da comunidade são pessoas guer-reiras, que trabalham, que ganham a vida em condições adversas. Mas, na verdade, um pequeno percentual de transgressores acaba ocupando o lugar de todos os demais no imagi-nário social”, pondera o professor.

Gastaldoni alerta, no entanto, não existir um antagonismo ma-niqueísta entre os fotógrafos po-pulares e os da grande imprensa.

Pelo contrário, para ele, parte do sucesso da Escola de Fotografia da Maré pode ser atribuída às pales-tras ministradas por profissionais consagrados do fotojornalismo aos alunos do curso.

O olhar incluídoPor estarem em contato com re-

nomados fotojornalistas e disporem de equipamentos de última geração, os fotógrafos do projeto social da Maré possuem qualidade técnica profissional. O diferencial desses jo-vens reside na subjetividade. “Exis-tem diferenças autorais, de enqua-dramento e temáticas. Geralmente, quando um fotógrafo da grande im-prensa chega à comunidade, o lugar está numa situação de tensão e é isso que ele fotografará. Já os alunos, por documentarem o dia a dia, priorizam elementos de sedução, de beleza, de magia. Tem certas coisas que você somente percebe se pertence àquele território”, ressalta Dante Gastaldoni.

Ir além do olhar da mídia, descor-tinando para o mundo o lado huma-no da favela, é uma das principais lições dos projetos de inclusão vi-sual. Adriano Rodrigues narra que, no lugar das cenas de conflitos, sua câmera busca apreender momentos triviais da comunidade: “Fotografo um cotidiano que não é revelado, o cotidiano do trabalhador, do lazer, do esporte. Pretendo mostrar que aqui tem pessoas interessadas em transformar-se e em transformar o mundo delas. Retrato a questão da violência sim, mas fotografo a violência da ausência: a violência

do Estado no que se refere à saúde, quando faltam médicos e remédios nos postos de atendimento; a vio-lência da ausência nas escolas que carecem de professores e de cartei-ras; a ausência do trabalho, da di-versão.”

Marcas indeléveisPara meninos e meninas que

convivem diariamente com o des-caso do Estado, os projetos de inclu-são visual se constituem em uma nova maneira de se apresentar ao mundo e de se enxergar. E iniciativas como essas deixam marcas. “Quando eu estou fo-tografando um morador da favela, eu me vejo ali, tento me colocar no lugar daquela pessoa para não pecar na hora do clique. A principal lição é estar sem-pre de olho aberto para ver o mundo com a sua multiplicidade de vidas, de cores, de pessoas. É estar aberto para enxergar valor nas diferenças”, opina Adriano Rodrigues.

Já para Dante Gastaldoni, a expe-riência de suscitar em jovens carentes a paixão pela fotografia é, no fim das contas, um ganho de vida para os pro-fissionais envolvidos na coordenação das atividades do projeto. “Transi-tar pelas favelas é um exercício de vida fantástico. Temos que ter uma visão do Brasil para além do cartão-postal. O rompimento de algumas barreiras me fez conhecer pessoas fantásticas e talentosas. Olhando pra trás, percebo que eu vivia em uma cidade estereotipada. Esse projeto me fez mergulhar em uma cidade mais verdadeira”, finaliza o fotojornalista.

Inclusão Social

Ir além do olhar da

mídia, descortinando

para o mundo o lado

humano da favela, é

uma das principais

lições dos projetos de

inclusão visual.

No lugar das

cenas de conflitos,

as câmeras buscam

apreender momentos

triviais da comunidade.

Bira Carvalho

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Outubro 2009Outubro 2009 7Outubro 2009 UFRJJornal da

Inclusão Social

Para meninos

e meninas que

convivem diariamente

com o descaso do

Estado, os projetos

de inclusão visual são

uma nova maneira

de se apresentar

ao mundo e de se

enxergar.

E iniciativas como

essas deixam marcas.

Ratão Diniz/Imagens do Povo

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Outubro 2009UFRJJornal da 8 Outubro 2009

Rodrigo Ricardo

Inovação, tecnologia e meio ambiente. A tríade tem valor sagrado no Plano Diretor UFRJ 2020 para transformar o campus da Cidade Universitária em espaço ambiental e

energeticamente responsável. Essa meta exige esforços em pes-quisa e o compromisso de toda a comunidade acadêmica, além de uma política que aponte um conjunto de práticas a ser persegui-do. E que, quando conquistado, deve manter-se tão vivo e rotinei-ro quanto a necessidade de respirar.

A versão preliminar do Plano Diretor, em debate e aberto a contribuições públicas desde abril, encara a proposta como “am-biciosa”, porém, aponta a política e os múltiplos passos e aspec-tos a serem trilhados. “Uso responsável e econômico dos recursos materiais, busca de fontes alternativas de energia; gestão e desti-nação adequada de resíduos sólidos, redução da poluição atmos-férica e de emissões de gases de efeito-estufa”, enumera o docu-mento, previsto para ser apreciado já em outubro pelo Conselho Universitário (Consuni), que deliberará sobre a aprovação final do conjunto de diretrizes e programas que nortearão os rumos da UFRJ na próxima década.

Mesmo em ritmo aquém do desejado, parte desse futuro já co-meça a acontecer no presente com a despoluição dos canais do Cunha e do Fundão. Depois de passar 15 anos em idas e vindas, o trabalho, enfim, está em andamento. Segundo Ângela Rocha, decana do Centro de Ciências e Matemática da Natureza (CCMN) da UFRJ, o tema integra a agenda da universidade há cerca de quatro anos. “A revitalização do Cunha e do Fundão melhorará a qualidade de vida da Cidade Universitária e do Rio de Janeiro”, frisa a professora, que também preside a comissão que acompa-nha e fiscaliza as obras, de conclusão prevista para daqui a dois anos. Tudo graças a investimentos da ordem de R$ 200 milhões oriundos da Petrobrás, por conta de uma compensação da em-presa devida ao estado fluminense. “Os efeitos das obras ainda não são visíveis, mas a administração estadual tem dito que quer acelerar o trabalho e concluir as estruturas em setembro de 2010”, informa Ângela.

Com o fim do assoreamento dos canais, que impede a circu-lação das águas e prejudica a pesca, as enchentes que atingem a Vila Residencial da UFRJ, localizada na ala sul do campus, devem chegar ao fim. Estima-se que 200 milhões de metros cúbicos de sedimentos sejam retirados por dragas. Após esta etapa, serão uti-lizados os tubos geotêxteis na separação e descontaminação do material recolhido. A água tratada será devolvida aos canais e o material sólido permanecerá no “geobag”. “O pioneirismo do sis-tema pode permitir que ele seja utilizado como modelo para a despoluição de outras áreas”, avalia Ângela Rocha.

Vitrine da inovação“Temos aqui e, em expansão, uma vitrine da inovação”, observa

Ângela Uller, pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa (PR-3) da UFRJ, analisando a Cidade Universitária como ambiente destina-do ao trabalho de inovar e buscar a experimentação. “A existên-cia, nos limites da UFRJ, de três incubadoras de empresas, dois parques tecnológicos e os mais de 2,5 mil projetos assinados com

Inovaçãoa serviço do meio ambiente

Trunfos tecnológicos em prol de uma cidade energeticamente responsável

Plano Diretor

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Outubro 2009Outubro 2009 9Outubro 2009 UFRJJornal da

empresas a cada ano não deixam dúvida quanto a sua vocação. Preci-samos aplicar em benefício do campus o conhecimento gerado den-tro dele”, afirma Ângela Uller, destacando iniciativas de êxito como o Laboratório de Controle de Dopagem (Labdop) – ligado ao Instituto de Química (IQ) da UFRJ e credenciado pelo Comitê Olímpico Inter-nacional (COI).

Outro destaque sublinhado pela pró-reitora, organizadora da reu-nião do Conselho Participativo do Plano Diretor sobre Tecnologia, Inovação e Meio Ambiente, é o veículo desenvolvido pelo Laboratório de Hidrogênio do Instituto Alberto Luiz de Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. “Trata-se de um ônibus urbano para 70 passageiros, movido de forma híbrida por eletricidade e hidrogênio, que simplesmente não produz nenhuma emissão de CO2 (dióxido de carbono)”.

De acordo com o coordenador do projeto, Paulo Emílio Valadão de Miranda, o diferencial do ôni-bus encontra-se em sua tecnolo-gia, desenvolvida exclusivamen-te por pesquisadores brasileiros. “Criamos um banco de baterias que pode ser alimentado por co-nexão a uma rede elétrica exter-na ou, ainda, com a regeneração de energia cinética em elétrica. Enfim, o próprio movimento do veículo é aproveitado como fon-te energética”, explica o cientista, detalhando que o veículo tem três portas e o chassi rebaixado para proporcionar acessibilidade aos portadores de deficiências físicas.

A adoção de medidas res-ponsáveis no campo ambiental e energético, ao longo dos anos, possivelmente se converterá em enorme economia para as con-tas da universidade. Estima-se, por exemplo, que com a constru-ção de uma usina térmica de lixo poder-se-á reduzir em aproxima-damente 40% as futuras contas de luz. Atualmente, a energia elétri-ca está entre as maiores despesas da UFRJ. De acordo com a versão preliminar do Plano Diretor, um valor que alcança cerca de R$ 25 milhões por ano. Diante da ex-pansão da universidade, inclusi-ve com aulas noturnas, quando a tarifa é mais cara, o documento aponta a necessidade de modelos racionais, eficientes e recomenda atenção a alternativas ainda em fase de desenvolvimento como energia eólica e solar.

O Plano Diretor estabelece ainda que quando o Maglev-Co-bra (trem de levitação magnéti-ca) estiver operando no campus, os ônibus que hoje respondem pela circulação interna na Cidade Universitária poderão ser dispen-sados, resultando em uma econo-mia que se aproxima de quatro milhões de reais por ano. Desen-volvido em etapas, o experimento da Coppe conta com o aporte do Banco Nacional de Desenvolvi-mento Social e Econômico (BN-DES) para construir os primei-ros 150 metros de trilhos. “Ele é viável em escala real”, destaca Richard Stephan, coordenador do Maglev, pontuando que o veículo tem motor elétrico e não polui o meio ambiente. “A tecnologia em que estamos trabalhando é diferente da executada em outros países.

Trata-se de uma alternativa de transporte para os centros urbanos, de trens saindo a cada três minutos e circulando a uma velocidade de até 70 km/h.”

CatamarãA partir da economia realizada com a substituição de pelo menos

parte da frota de ônibus, a idéia é estender 4,3 km de trilhos imantados para que o trem, literalmente, flutue pela Cidade Universitária. Para Eduardo Gonçalves David, professor da Coppe e também pesquisador do Maglev, o transporte consome menos energia e ainda apresenta menores custos de manutenção do que os sistemas metroferroviários existentes, aplicando sofisticada tecnologia nacional.

“O veículo permitirá a interligação com o metrô de Del Cas-tilho e com a Fiocruz”, avisa Da-vid, receando o curso que vem tomando o projeto de implanta-ção do Trem de Alta Velocidade (TAV) para ligar Rio de Janeiro a São Paulo e a Campinas. “A análise inicial da consultoria in-glesa (Halcrow) trouxe diversos e polêmicos erros de estudo de impac-to ambiental e urbanístico. O projeto da Coppe poderia aproveitar os traje-tos das linhas de trem e, por utilizar vias em elevação, não necessitaria da escavação nos 15 quilômetros de ca-minhos subterrâneos, como previsto pelos britânicos”, critica David.

Maior aposta de infraestrutura do Programa de Aceleração do Cres-cimento (PAC) do governo federal, avaliado em mais de R$ 34 bilhões, o traçado inicial do TAV, quando em consulta pública na Agência Nacional de Transportes Terrestre (ANTT), cortava o campus da UFRJ. Itinerário que acabou alterado após a reação da comunidade acadêmica ao ser ferida em sua autonomia. “O TAV Roda-Trilho é uma máquina de datilografia. O Maglev é um com-putador. É preciso quebrar paradig-mas”, defende Eduardo David.

Outro reforço para a dupla inte-gração proposta pelo Plano Diretor UFRJ 2020 vem pelo mar. “Estamos trabalhando no desenvolvimento de dois barcos”, anuncia Fernando Amorim, coordenador do Laborató-rio de Pólo Náutico vinculado à En-genharia Naval e Oceânica da UFRJ. “Eles contarão com motores elétri-cos e painéis solares. Inicialmente, queremos, até o fim do ano, cons-truir uma primeira embarcação com cerca de 12 metros de comprimento e com velocidade de 15 nós (cerca de 28km/h) para 40 passageiros.”

O primeiro trajeto a ser experi-mentado ligaria a Ilha do Governa-dor à Cidade Universitária. “Ainda estamos analisando, mas o itinerário seria da Praia da Bica até um local que permita a integração com o Terminal Rodoviário que está em construção. O porto, provavel-mente, seria próximo ao Centro de Ciências da Saúde (CCS)”, ex-plica Amorim, lembrando que o segundo barco com 30 metros, velocidade de 25 nós e com capa-cidade para 200 passageiros está

sendo planejado para ligações com Niterói e com o campus da Praia Vermelha. “Será um serviço gratuito com o meio hidroviário inte-grado ao sistema interno de circulação da universidade.”

Plano Diretor

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Outubro 2009UFRJJornal da 10 Outubro 2009Educação a Distância

Sidney Coutinho

Vai ficando para trás a discus-são acerca

da adoção ou não da Internet como ferra-menta de ensino. A Educação a Distância (EaD) ressurge com força e se consolida como alternativa para o ensino de graduação. É o que demons-tram os levantamentos realizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-sas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontando que os estudantes dos cursos a distância estão se saindo, na maioria das vezes, melhor do que os de cursos presen-ciais.

Relatório da Organização para Coo-peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Education at Glance 2009 (Pa-norama da Educação, 2009), divulgado no início de setembro, revela que apenas 10% dos brasileiros entre 25 e 34 anos de idade têm formação superior. A EaD pode ser a ferramenta que auxiliará na reversão do quadro, como acredita Masako Oya Masuda, bióloga, professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) da UFRJ, presidente do consórcio Cederj (parceria entre o governo fluminense com as seis universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro).

Para ela, a possibilidade de acesso a um curso de graduação em uma das seis universidades se tornou mais democrática com a EaD, porque alcança pes-soas que vivem não apenas na capital, mas também no interior. Hoje, são 33 polos espalhados pelo estado, em cidades a 344 km dis-tantes do Rio, como Itape-runa. “Nos vestibulares que fazemos, específicos para cada polo e para cada curso, cerca de 70% dos alunos são moradores da região. Se é importante aumentar o número de estudantes na universidade, o aumento da capilaridade territorial da formação supe-

rior também é um fator muito importante para o desenvolvimento”, afirma a dirigen-te do Cederj.

Empreitada exitosaLembrando “Nos bailes da vida”, de

Milton Nascimento, a EaD vai, literalmen-te, aonde o aluno está. Segundo Masako, diferentemente do ensino presencial que fica aguardando o aluno na sala de aula, no sistema EaD faz-se de tudo um pouco para estimular a participação do estudan-te. “Se ele passou no vestibular, mas tem dificuldade em determinada área, não consegue evoluir, pela flexibilidade, a gen-te consegue colocar elementos para que ele possa recuperar uma porção de coisa que ficou para trás. A partir daí, o estudante consegue caminhar muito bem. Então são várias alternativas que a EaD oferece para aumentar o acesso das pessoas à educação em nível superior”, assegura a professora.

Mas a EaD também é alvo de pesadas críticas. Um histórico que a associa a curso por correspondência ainda persiste, sem contar que há uma forte carga de precon-

ceito em relação à metodologia de ensino, principalmente

por parte de profissionais “tecnofóbicos”, que re-sistem ao contato com computadores e com a

Internet. Em junho deste ano, por exemplo, um dos

motivos da greve da Universi-dade de São Paulo (USP) foi a recusa

em implantar o sistema na instituição. Na época, Marilena Chauí, filósofa, professo-ra da USP, engrossou o coro dos oposito-res afirmando que a EaD desqualifica a

formação universitária.A diretora da Divisão de Educação da

Pró-reitoria de Extensão da UFRJ, Cleide de Morais Lima, que coordena outro importante programa de EaD na instituição, acredita que o preconceito em relação ao sistema retardou a entrada das universidades públicas na modalidade. “A EaD traz a possibilidade de atualizar e acrescentar conhecimentos em novos contextos e fazer a interação en-tre os ensinos. É esse o papel das universi-dades públicas, que, na verdade, têm com-promisso com o conhecimento e com sua formulação. E, no meu ponto de vista, elas podem fazer isso melhor do que as univer-sidades particulares”, afirma a diretora.

“Todos os indicativos que temos, se eles são válidos, vão de encontro ao que Marilena Chauí disse”, contesta Masako Masuda. Segundo ela, ainda é cedo para uma avaliação aqui no Brasil, pois os re-flexos da graduação do EaD do Cederj somente poderão ser percebidos ao lon-go dos anos com a melhoria da qualida-de de ensino. No entanto, a aprovação de estudantes em concursos públicos para docentes mostra o êxito da modalidade. “Não há uma prefeitura ou uma secretaria de Educação que não tenha ex-alunos de

nossos cursos. Sei é que pessoas que não pode-

riam estar estudando em uma universi-

dade estão estu-dando com a EaD.

E essas mesmas pessoas estão ingressando no mercado e competindo com outras que

vieram do sistema presencial”, afirma a educadora, ressaltando ainda que

a qualificação universitária está beneficiando as cidades, pois as pessoas procuram fazer concur-

sos para as prefeituras nas localidades onde moram.

Para Cleide Morais, a EaD tem pro-blemas assim como o ensino presencial, “mas não fazer EaD nos coloca em uma posição de elite, até porque é nosso de-

ver, enquanto universidade pública, pensar sobre as metodologias de ensino, o que somente

ocorre quando a gente faz, e é quando são reformu-ladas. Não adianta olhar e dizer que é ruim. É preciso

dizer que não cabe por isso ou por aquilo. Não é bom ter

uma visão preconceituosa e intoleran-te acerca daquilo que não se conhece. Acho que é um absurdo completo dizer que a EaD desqualifica o diploma de uma universidade.”

De acordo com ela, não basta conte-údo bem formulado, é necessário acom-panhar bem todo o processo para que não vire uma farra. “Não basta a pessoa entrar e apenas cumprir tarefa. Tem de ter avaliação, acompanhamento, interação qualificada. Eu acredito na EaD na forma-ção, na capacitação, na qualificação, no treinamento profissional, na especializa-ção lato sensu etc.”, opina Cleide.

As ações desenvolvidas pela Pró-reito-ria de Extensão datam de 2001 e aconte-cem em colaboração com a Secretaria de Educação a Distância do Ministério da Educação e com a Secretaria de Estado de

O Ensino vai aonde o aluno está_

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Outubro 2009Outubro 2009 11Outubro 2009 UFRJJornal da

Educação do Rio de Janeiro. Dessa manei-ra a UFRJ participa ativamente do proces-so de capacitação dos educadores da rede pública de ensino no Estado do Rio de Janeiro com o objetivo de integrar os profissionais de ensino superior e os professores do ensino básico.

Gestão é crucialPara Masako Ma-

suda, a gestão é crucial na Educação a Distân-cia. Enquanto no modelo presencial o principal é o pro-fessor e a sala de aula, na EaD é pre-ciso saber se cada etapa do processo está funcionando. Verificar se o material está chegando, se há um computador disponí-vel para o estudante, se ele está funcionan-do, se há energia elétrica no polo, “enfim, o professor continua sendo extremamente importante, mas se não houver gestão o estudante fica incomunicável. Por exem-plo, eu como professora não posso deixar de seguir a programação. Não posso dizer que fiquei doente, que não vou fazer hoje e amanhã eu faço. Não dá. Tem aluno que vai andar quilômetros para chegar ao pólo e fazer a atividade. Não tem chance de fi-car mudando as coisas.”

Segundo a presidente do Cederj, todos se programam. “Grande parte dos nos-sos estudantes trabalha e quando a gente afirma que 70% deles reside no entorno do polo, significa pouco menos de duas horas de transporte. Se eu marquei uma prova no sábado, ela tem que acontecer nesse dia. Se precisar remarcar sempre ha-verá alguém que não poderá ir. É preciso cumprir a programação, porque progra-mar todo mundo programa, mas cumprir é que são elas. Se não fizer isso aqui, não funciona, perde credibilidade”, garante Masako Masuda.

No entanto, obedecer rigorosamente ao cronograma não é tudo. A infraestru-tura é fundamental no sistema de EaD. Recentemente, o Conselho Federal de Biologia passou a contestar o mode-lo e baixou uma resolução vedando a concessão de registro profissional para alunos que por ele se formam, sob a ale-gação de que estaria faltando uma parte importante na formação que é a ativida-de prática nos laboratórios. Além de a resolução ser contestada judicialmente pelo Ministério da Educação, de acordo com Masako, no Cederj um documento é preparado para mostrar que o argu-mento é falho no caso do consórcio, que realiza atividades presenciais em labora-tórios para a disciplina.

Masako Masuda reconhece que há casos de instituições que negligenciam o trabalho com a EaD. O Ministério da Educação, por exemplo, montou uma lista cobrando qualidade de duas mil unidades de 11 universidades. Há casos em que, apesar de oferecer cursos de Ci-ências Biológicas e Física, não colocam à disposição dos estudantes laboratórios, bibliotecas, equipamentos básicos e che-gam a ter tutores que levam uma sema-na para responder dúvidas. No Cederj,

o prazo máximo é de 24 horas. “Nesse caso depende do curso. Assim como há cursos de EaD que estão abaixo da críti-

ca, conhecemos também muitas instituições que somente

fazem cursos presen-ciais e também são

abaixo da crítica. Aí entra a função reguladora do Estado. Por vá-rios motivos, tais

como proteger o cidadão e garantir

a qualidade, o Minis-tério da Educação deve ter

um papel importante para definir regras não apenas para a EaD, mas para o ensino de forma geral”, aponta a dire-tora do Cederj.

Ingresso democráticoO Cederj tem 33 polos espalhados

por 31 municípios do Estado do Rio de Janeiro e realiza dois concursos de in-gresso anualmente. Os alunos são ma-triculados em uma das seis universida-des públicas participantes e fazem todo o curso de graduação em regime semi-presencial. Embora as universidades te-nham feito a adesão ao sistema de ingresso pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), para o primei-ro semestre de 2010 está mantida no consórcio a realização do vestibular.

De acordo com Masako Masuda, as mudanças sugeridas pelo Ministério da Educação para adesão ao Enem tinham um prazo cur-to para serem cumpridas. “Não haveria tempo hábil para divulgar a forma de ingresso. Essa discussão será retomada. Para decidir acerca do Enem, fizemos uma reunião conjunta e ficou acertado que em 2010 ainda faríamos um vesti-bular separado”, informa a professora.

Para Masako Masuda, há a possibi-lidade de adotar uma forma mista de ingresso dos estudantes nos cursos do Cederj, que adotaria o Enem para uma primeira fase, selecionando grande nú-mero de candidatos, e depois algo mais específico. Uma hipótese é realizar na segunda etapa uma avaliação não apenas de conhecimento, mas de adequação do perfil do estudante ao EaD. “Acho que não é qualquer pessoa que consegue se adaptar ao sistema”, afirma a dirigente.

Disciplina é a principal caracte-rística no perfil de um aluno de EaD. Uma das principais causas de evasão é a idéia errônea de muitos que acham que o curso a distância é realizado por quem não tem tempo de estudar. Pelo contrário, é preciso muita dedicação. De acordo com Cleide de Morais Lima, da Pró-reitoria de Extensão da UFRJ, a vantagem da EaD é a flexibilidade para se encaixar os horários de estudos à jornada

diária das pessoas. Para ela, a Tecnologia da Informação trouxe um novo impulso para a EaD. “Como colocar um profes-sor de ensino fundamental no espaço de uma universidade na qual, na maioria das vezes, há apenas cursos diurnos? Como um professor pode frequentar o campus universitário? A EaD é uma possibilidade de atualizar conhecimentos, de apresentar novos contextos e conhecimentos e de fa-zer interação entre os ensinos”, afirma.

Quando surgiu, em 2001, o Cederj oferecia apenas 160 vagas para um único curso de graduação (Matemática); no último vestibular para o segun-do semestre deste ano foram 3.696 para os cur-sos de Matemática, Ci-ências Biológicas, Física, Pedagogia, Computação, Administração, Química, Turismo e História.

O diploma das universidades do Cederj é tão válido quanto o do ensino presencial e a experiência fluminense foi determinante para a construção da Uni-versidade Aberta do Brasil (UAB). A par-ticipação da UFRJ no consórcio, porém, é ainda tímida, pois apenas oferece três dos

nove cursos existentes (Ciências Biológicas e licenciaturas

em Física e Química).

Dinheiro pelo ralo

Uma sangria de recursos irres-ponsável. É desta forma que Roberto

Leher, professor da Faculdade de Educa-

ção (FE) da UFRJ, en-cara a iniciativa do governo

federal em ampliar o número de va-gas nos cursos de graduação pelo modelo de Educação a Distância (EaD). Para ele, a iniciativa não resulta em acúmu-lo de conhecimentos que permitam melhorar o aparato de formação de professores nas universidades. “Esse é o desafio central, nós termos recursos em ordem de grandeza suficiente que permitam que o país tenha uma estrutura básica de formação de professores e de outros profissio-nais. Temos uma quantidade signi-ficativa de recursos que estão literalmente se esvaindo pelo ralo”, afirma Leher, que também é vice-presidente da Associação dos Docen-tes da UFRJ (Adufrj – Seção Sindical).

Para ele, o investimento enorme do Ministério de Educação para formar tu-tores em numerosos polos é falho, porque eles são indicados por critérios como laços políticos familiares ou de amizade. “Gasta-se um dinheirão para formar por dois anos o tutor, aí muda o prefeito ou o secretário e muda tudo. Na realidade é uma sangria

permanente. Não tem vínculo porque não é uma instituição, não é republicano, não tem normas, não tem institucionalidade, não tem regras claras, não tem o pertenci-mento do tutor à instituição, porque é para ser volátil”, afirma o docente.

De acordo com Leher, a EaD é uma forma não institucionalizada de formação, porque está fora do espaço universitário, no qual há uma série de mediações es-pecíficas de interação com os estudantes, com professores, com grupos de pesquisa,

com eventos acadêmicos, crian-do um ambiente geral de

aprendizado inexistente nos cursos a distân-

cia. “Esses cursos são organizados muitas vezes com bom ma-terial pedagógico, fei-

to pelas universidades públicas e privadas. Mas

esse material instrucional é repassado por tutores, pessoas

que, em geral, têm pouca qualificação e de maneira isolada fazem a mediação com os estudantes. Na realidade, o estudante não está recebendo uma orientação de natureza universitária, ele está recebendo o material que vem da universidade, me-diado por alguém que é um trabalhador precário, não um professor que tem vín-culos orgânicos com a universidade”, alega Roberto Leher.

De acordo com o professor da FE, o modelo da Universidade Aberta do Bra-sil (UAB) é juridicamente denominado de consórcio, consequentemente não tem materialidade, não tem responsabilidades definidas, o vínculo do estudante com a instituição é longínquo e virtual. “É um modelo perverso, porque é uma ilusão para quem recebe o diploma achar que teve uma formação de ensino superior”, acredita Leher. Para ele, o modelo tam-bém é perverso porque gera uma força de trabalho disponível para a educação, um exército industrial de profissionais for-mados de reserva que vai rebaixar ainda mais os salários de professor de educação básica. “Não podemos deixar de falar que

aqui no Rio de Janeiro temos uma crise com a falta

de professores de Matemática, de

Física, de Quí-mica, mas o estado paga R$ 520 para o professor. O proble-

ma não é que a universida-

de não está con-seguindo formar, a

evasão é completa e brutal porque como a pessoa vai construir uma carreira assim?”, questiona o professor, lembrando a contradição do estado em re-alizar políticas de formação, mas não asse-gurar condições elementares de trabalho para os professores.

A adoção de ferramentas como a Inter-net para a EaD não é o que incomoda Ro-berto Leher. Em sua opinião, o equívoco está na certificação, ou seja, dar diploma

Educação a Distância

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Outubro 2009UFRJJornal da 12 Outubro 2009

bem apreendido. Ele exemplifica, usando um curso técnico em Mecânica, no qual é possível visualizar a estrutura do motor melhor do que olhando direto para a má-quina. Outra vantagem é a possibilidade da repetição exaustiva, até a assimilação.

Muniz Sodré ressalva que o processo educacional não é somente a passagem do saber. “A passagem do saber por computa-ção, por informação, é muito mais ágil que a relação escolar de professor e aluno. No entanto e mais do que nunca, o professor é vital como iniciador de linguagens. Ele é central, é o eixo. Todo o inves-timento em educação deve ser feito para melhorar a vida do professor em primeiro lugar”, assegura o docente da ECO.

Em sua opinião, a máquina é valiosa, mas é apenas instrucio-nal. “Educação não é pas-sagem de informação. É apontar caminhos, é criar ambiente moral e ético onde o saber ganha algum sentido, ela é esse conjunto. Eu diria que educar alguém, indivíduo ou grupo, é fazer incorporar, as-similar todas as forças que em uma comu-nidade humana, numa sociedade, estru-turam o bem. E o que é o bem? É o ponto de equilíbrio econômico, político e ético do grupo, da comunidade. É o conceito grego de bem. Isso é educação”, define Muniz Sodré.

O professor lembra, porém, que ensi-no e educação em determinados momen-tos se separam: “Eu diria que estamos em um momento de ênfase no ensino, de tentativa de melhoria das escolas sem pensar a passagem da educação. A rea-daptação histórica deve fazer parte dessa nova realidade. Principalmente aqui no Brasil, onde se está fazendo um progres-so quantitativo. Sem dúvida nenhuma as taxas de evasão escolar diminuíram, au-mentou bastante o número de ingressos nas escolas, mas a educação ainda não é de qualidade.”

Muniz Sodré acredita que a educa-ção deve ser a distância e presencial ao mesmo tempo. “É preciso encontrar uma fórmula. Acho que todo o projeto no sen-

tido estatístico, de aumentar o número, de resolver uma

questão urgente e emergencial está

fadado ao fra-casso. Acho que deve-mos encon-trar ainda o ‘Paulo Freire da era

da Informá-tica’, ainda não

encontramos. Ele era um grande

educador, um grande pedagogo, mas ele é anterior ao

computador, à Informática. Nós temos, portanto, de repensar a questão”, destaca o professor.Determinação contra preconceito

Preconceito. Esse é o problema princi-

como forma estratégica de ampliação de acesso ao ensino superior. “Em termos de capacitação, educação perma-nente, atualização p e r m a n e nt e claro que sim. Acho que a Internet é uma ferra-menta que p o d e m o s potencializar na universi-dade. Eu quero muito que meus estudantes tenham acesso a vídeo-confe-rência, por exemplo, porque muitas vezes temos um belo seminário em Porto Alegre e nós não podemos estar lá para participar, acompanhar e interagir. Isso é perfeito, é maravilhoso, é extraordinário, mas não é disso que estamos falando. O que está em críti-ca é a certificação, o diploma”, afirma o educador.

Vigilância e disciplina: o papel da escola

Outro especialista que questiona a eficácia da EaD é o professor da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, Mu-niz Sodré, atual diretor da Biblioteca Nacional, que não crê no sucesso do modelo quando a ferramenta de apoio é a televisão. Segundo ele, foram raras as experiências bem sucedidas ao redor do planeta, como exemplo a da Ingla-terra. Para Muniz Sodré, o erro da tele-visão vale também para dar sua opinião acerca da Internet.

Nos anos 1980, Muniz Sodré tam-bém dirigiu a TV Educativa no Rio de Janeiro e a experiência lhe valeu para afirmar que o Ensino a Distância, usan-do a televisão como ferramenta, fracas-sou por não conseguir criar uma cena, uma forma social e cultural própria para a transmissão educacional. Para ele, assim

com a democracia e o mercado, a escola é uma forma moderna de estruturar a modernidade. “Essa forma implica, em primeiro lugar, o professor, com uma re-lação interpessoal e uma ideologia, que eu diria de natureza disciplinar. Discipli-nar no sentido que Foucault dá à palavra. Vigilância, interiorização de regras, e uma moral interiorizada do contexto”, ressalta Muniz, acrescentando que na forma tra-dicional, a escola é uma segunda cena, a restituição da cena parental, pais e filhos, professor e aluno.

De acordo com ele, a forma ideológica da escola foi tirada de outras duas institui-ções: a igreja e a prisão. “A forma da escola é prisional. Os alunos são separados em séries, os anos de aprendizado são hierar-quizados, o professor vigia e controla por meio da prova. Isso é a forma de vigilância prisional. E, ao mesmo tempo, a relação entre professor e aluno é uma relação re-ligiosa, pastoral. O professor fala, o aluno escuta e restitui. Tradicionalmente é as-sim”, compara Muniz Sodré.

Embora antigas, as duas instituições nas quais a escola se espelha estão em cri-

se, segundo Muniz So-dré. “Eu diria que

esse modelo de escola está

acabando t a m -b é m p o r -que o m o -d e l o disci-

p l i n a r não mais

se sustenta em uma socie-

dade ou ambiente em que a paisagem é de

mídia, de informação, que não funciona na base da disciplina, mas na do convenci-mento, da persuasão”, afirma o professor. Para ele, esse modelo ajudou a formar o espaço público e a por em crise o modelo de vigilância panóptico da escola.

Muniz explica que ao levar o ensino para a TV, não foi pensada a reestrutura-ção da forma: “Era a mesma na televisão, mas num espaço aberto. E não se criou por quê? Porque os educadores nunca fo-ram gente de mídia e nem as pessoas de mídia foram educadores. E os estudos feitos na pas-sagem não foram levados em considera-ção.”

Mudança com Inter-net

Com a Internet, na opinião de Muniz Sodré tudo muda. Segundo ele, porque há um sem número de saberes possíveis de serem apreendidos mecanica-mente. Com os recursos tecnológicos, in-clusive, o conhecimento pode até ser mais

pal e de mais difícil superação para os es-tudantes de graduação na EaD. Mas com a mesma determinação com que encaram os estudos, eles sabem que somente o sur-gimento de bons resultados pode transfor-mar a realidade. Em 2007, o Exame Nacio-nal de Desempenho de Estudantes (Enade) do Ministério da Educação, revelou que estudantes de cursos a distância se saíram melhor do que os alunos de presenciais em sete de 13 áreas em que houve a com-paração.

Um desses estudantes é Max Ferri. Ao completar 40 anos de idade, viu a

vida ganhar novo rumo com o ingresso no curso de Licen-

ciatura em Física da UFRJ pelo Cederj. Para ele, era a opção de se requalificar profissionalmente depois de ver gorar o pequeno ne-

gócio que mantinha na ci-dade de Volta Redonda, onde

mora.Segundo ele, as esperanças de ar-

rumar um emprego qualificado que o aju-de a melhor criar as três filhas é o motor que o impulsiona a se dedicar aos estudos, sem perder o foco com distrações comuns de uma sala de aula presencial. “Quando ficamos de boca aberta não avançamos. Enquanto um colega presencial está qua-tro horas na frente de um professor, nós precisamos render o mesmo em apenas uma hora. Temos determinação. Em sala presencial o professor explica a disciplina, passa exercícios e muitos ficam de bate-papo. Conosco não. Não perdemos tempo. O rendimento é muito melhor”, constata o estudante.

Segundo Max, para quem vive no inte-rior do estado, onde às vezes a única opção de requalificação profissional são as caras instituições de ensino particulares, com en-sino de qualidade duvidosa, o Cederj é uma revolução. Para ele, “a qualidade e pratici-dade do ensino e, no caso Cederj, a diplo-mação é o que fazem a diferença.”

O estudante Marcelo Antônio de Brito, 46 anos, que faz Pedagogia pelo consórcio do Cederj aponta outra vantagem para os cursos de EaD. A possibilidade de cursar mais de uma graduação ao mesmo tempo sem reter vagas presenciais na universida-de. “Sou formado em Cinema pela Univer-sidade Federal Fluminense (UFF), mas vejo muitos amigos cursando simultaneamente duas graduações com mais desenvoltura graças à flexibilidade do EaD”, afirma o estudante, que é técnico-administrativo da UFRJ.

Para ele, perde-se tempo ao querer questionar a EaD. “Hoje, o ensino presen-cial usa muito a Educação a Distância. Qual a instituição em que o professor não utili-za o correio eletrônico para se comunicar com os alunos? A questão deveria buscar o quanto uma forma de ensino pode contri-buir para melhorar a outra”, opina Marcelo, defendendo a apropriação das novas ferra-mentas de ensino para melhorar a qualida-de de vida. “Acho que quem se opõe à EaD no Brasil dá um tiro no próprio pé, porque quer negar a oportunidade de educação a pessoas que jamais teriam essa chance”, fi-naliza o estudante.

Educação a Distância

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Outubro 2009Outubro 2009 13Outubro 2009 UFRJJornal da

Entr

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ta

Heloísa Buarque de Holanda

É com fascínio indisfarçável que Heloísa Buarque de Hollanda, professora titular da UFRJ, fala dos seus novos e provocadores projetos. Desde

que, em 1976, lançou a já clássica antologia 26 Poetas Hoje (1976), um ícone da poesia maldita brasileira, ela não para de desafiar o

cânone literário com experimentos que, mais do que sair do lugar-comum, impressionam pelo arrojo.

Um deles é a antologia digital Enter – lançada em 11 de agosto – que reúne textos, vídeos, fotos e áudios de 37 poetas contemporâneos (www.oinstituto.

org.br/enter/). Tudo o que ela faz sempre dá o que falar e não foi diferente quando decidiu entender como funciona a lógica da percepção poética no

ambiente digital. “Já dei entrevista sobre o Enter até para jornalistas da Holanda”, conta a coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea

(PACC) do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ.Entre outras iniciativas que vem tocando à frente do PACC, com entusiasmo

cativante, está a “Universidade das Quebradas” – “é a minha saideira da universidade”, revela a doutora em Letras pela UFRJ, que completou 70 anos

e está às vésperas da aposentadoria compulsória. Esse projeto de Extensão inova porque realiza uma efetiva troca de conhecimentos entre o saber

universitário e a cultura das comunidades, explica Heloísa, que continuará na coordenação do PACC. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, a pesquisadora

também fala sobre o concorrido e único pós-doutorado em Estudos Culturais do Brasil, criado há 10 anos.

Entrevista

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Outubro 2009UFRJJornal da 14 Outubro 2009Entrevista

Jornal da UFRJ: Em que momento da sua vida a senhora foi fisgada pela litera-tura, em especial pela poesia?

Heloísa Buarque de Hollanda: Primei-ro eu me formei em Letras Clássicas, mais especificamente em Grego, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Isso foi em 1961. Logo depois, fui morar nos Estados Unidos e comecei a trabalhar em um centro de estudos sobre a América La-tina. Passei, então, a me interessar bas-tante pelas questões políticas da região,

de encantos literários

Caç

ador

a

Coryntho Baldez

por uma literatura social, e larguei o Grego. Quando voltei ao Brasil, já che-guei conquistada e fui fazer mestrado e doutorado em Literatura Brasileira. Comecei então a me dedicar ao estudo da questão negra, com Lima Barreto e outros autores. Esse viés político da lite-ratura foi o que me interessou. A minha tese de mestrado foi sobre Macunaíma e a relação do cinema, especialmente o Cinema Novo, com a literatura. Já mi-nha tese de doutorado foi sobre a poesia marginal produzida durante a ditadura militar.

Jornal da UFRJ: Esse viés político em seus estudos literários ajudou a senhora a compreender melhor o Brasil?

Heloísa Buarque de Hollanda: Claro. A ideia, desde o começo, era exatamen-te saber onde eu estava situada. Sou de uma geração que era muito ativista, participava intensamente do movi-mento estudantil nos anos 1960. Havia uma efervescência política e cultural, com o Cinema Novo, o Teatro Oficina, o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Eu participava de perto de todos es-ses movimentos. A literatura era uma área que assumi sob essa perspectiva. Desde o começo sempre tive essa visão literária bastante engajada e acabei fa-zendo minha tese sobre a poesia feita pela geração do sufoco, a geração AI-5, que não tinha acesso à imprensa e aos meios tradicionais.

Jornal da UFRJ: Como foi o pós-AI-5 para a senhora?

Heloísa Buarque de Hollanda: Nos anos 1960, a universidade era um fó-rum de debates muito quente. Com o AI-5, começou um esvaziamento bo-çal, uma coisa terrível. Eu fiquei ali, ten-tando procurar alguma alegria, alguma resposta. E a resposta mais eficaz foi exatamente a poesia, pela qual eu me apaixonei. Era uma área que não me-recia a atenção da censura, que dirigia suas garras mais para as manifestações públicas, como o cinema, o teatro, os jornais, a televisão. Mas quem prestava atenção à poesia?

Jornal da UFRJ: Como diz Luiz Fer-nando Veríssimo, “poesia numa hora dessas”?

Heloísa Buarque de Hollanda: Pois é... Poesia numa hora dessas não existe! Mas ela passou a existir exatamente de-vido a essa falta de atenção. Quase toda essa geração que passou a se expressar pela poesia não falava diretamente de ditadura, não era reativa, mas era o tes-temunho de uma geração que viveu no sufoco.

Jornal da UFRJ: Antes da sua antologia 26 Poetas Hoje, a crítica torcia o nariz para essa poesia marginal, que não esta-va contida no cânone literário?

Heloísa Buarque de Hollanda: Antes e depois. Quando saiu a antologia, a mi-nha vida virou um inferno. Houve um debate na imprensa violento e muitos diziam que aquilo não era literatura, não valia nada, seria poesia menor. Isso é muito interessante porque 20 anos depois essa antologia é adotada em vestibulares, ou seja, as coisas mudam e hoje Ana Cristina César, Wally Salo-mão, Torquato Neto, Francisco Alvim,

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Outubro 2009Outubro 2009 15Outubro 2009 UFRJJornal da

Entrevista

Cacaso, todos são cânone. Esses poetas estavam lá na antologia e eram consi-derados sem valor literário. A história muda as perspectivas.

Jornal da UFRJ: Na época, a senhora não encontrou “guarida” em nenhum campo de discussão literária?

Heloísa Buarque de Hollanda: Foi interessante porque a academia foi bastante crítica e uma boa parte da imprensa mais conservadora também. Mas isso deu um debate muito quente e o livro vendeu muito quando foi lan-çado, em 1976. Até hoje, não paro de reeditar essa antologia, que virou uma espécie de ícone de uma geração, uma referência daquele momento, da cultu-ra do vazio. Depois fiz a minha tese de doutorado sobre isso.

Jornal da UFRJ: Há certo fascínio pelos poetas “malditos”? Isso sempre existirá?

Heloísa Buarque de Hollanda: Esse tipo de poesia pode tudo porque ela não tem compromisso nenhum com venda, com o mercado. Mas essa ideia de poeta maldito é do século XIX. Bau-delaire é um poeta maldito. E somente foi reconhecido depois, como todos os outros. No momento em que produ-zem, esses poetas fazem uma espécie de performance. Mesmo alguns mo-dernistas, como Oswald de Andrade, eram malditos. Ele andava com o seu Cadillac por aí dizendo um monte de absurdos. Há essa performance desse tipo de artista principalmente em mo-mentos de mudança. O modernismo veio num momento de mudança de uma sociedade rural para industrial. Nessas épocas a poesia começa a falar mais alto e dá margem a esse tipo de atuação. E que não passa disso. Baude-laire, por exemplo, é um poeta até doce. Maldito era ele, pessoa física. Assim como os poetas tidos como marginais, que apareciam à margem do sistema, sem querer editoras, meio hippies, fa-zendo uma contracultura. É essa perso-na que é tida como maldita.

Jornal da UFRJ: Assim como os poetas malditos tinham uma clara atitude pro-vocadora, a sua intenção também era “provocar” quando lançou muitos deles no circuito comercial?

Heloísa Buarque de Hollanda: Sim. A minha trajetória profissional foi sempre a de estimular o debate. Então, um pou-co de tudo o que fiz e faço dá sempre uma zebra, gera comentários e polêmi-cas. Eu trabalho com microtendências, que ganham uma grande relevância momentânea quando as identificamos a partir da academia. É exatamente o que está acontecendo com a antologia digital Enter, que lancei recentemente. Já dei até entrevista para jornalistas da Holanda sobre isso. É algo que causa impacto porque ninguém tinha feito, até então, uma obra redonda e fechada sobre produção de poesia na Internet

e que toma uma posição de curado-ria. Era o caso da antologia dos poetas marginais, que dizia: “Olha como essa geração está no sufoco, olha o senti-mento e a história dessa geração e a res-posta possível à ditadura!” E isso num momento de extremo vazio cultural. Então, o que faço é descobrir essas mi-crotendências, coisas pequenas, mas que dão pauta quando as colocamos sob a luz.

Jornal da UFRJ: Em relação ao com-portamento e à intenção, quais as di-ferenças principais entre a “geração AI-5” e a geração dos anos 1990, que a senhora trouxe para o público na anto-logia Esses poetas (Aeroplano, 1998)?

Heloísa Buarque de Hollanda: Nos anos 1970, havia a marca da contra-cultura no mundo inteiro. Aqui, ha-via uma politização maior por causa da situação de repressão militar. Mas a ideia central era estar fora do siste-ma. Inclusive, uma das suas principais características era ter uma produção gráfica artesanal, doméstica. Faziam os seus próprios livrinhos, que eram vendidos de forma agressiva, de mão em mão, não passavam pelo canal da editora. A ideia da contracultura era trabalhar por fora do sistema a fim de mostrar uma alternativa de vida, de produção, até mesmo porque aque-les poetas formavam comunidades, moravam juntos. Já nos anos 1990, em plena crise, isso não dava mais pé, todo mundo já era profissional. É muito interessante essa comparação porque a referência maior dos anos 1970 era a vida, a resistência. O lema da poesia marginal era aproximar o mais possível arte e vida. Nos anos 1990, esse projeto já não existia. Tudo acontecia em um mainstream (pensa-mento corrente da maioria) e com uma referência cultural muito forte. Os poe-tas da geração AI-5 eram letrados, mas isso não aparecia no texto. Já a ideia de referência cultural e literária era fortís-sima nos poetas da geração de 1990.

Jornal da UFRJ: Acerca da recente anto-logia Enter, os poetas que lidam hoje com o hipertexto no ambiente digital são, de certa forma, uma vanguarda?

Heloísa Buarque de Hollanda: Acho que o hipertexto sempre existiu. Não tecnica-mente. Mas a literatura, por sua própria

estrutura, sinaliza um hipertexto, ou seja, tudo se desdobra em vários sentidos, em várias referências, em buscas de signifi-cados. A natureza própria da literatura, principalmente a poética, é intertextual. Agora, o hipertexto no ambiente virtual não é algo tão novo. O que considero a maior novidade, que está na antologia Enter, é a convergência de mídias. Isso é o que me parece mais de vanguarda. Eu pedi a cada um dos poetas um trabalho específico. Há poesias com background musical, ruídos, leituras, interpretação de atores, enfim, com algo que a torna sono-ra, que sai da página. A outra coisa é o videocast, que mistura palavra-som com imagem em movimento. São outros su-portes para a palavra que estão aparecen-do. A convergência de mídias, a explora-ção de vários suportes em sincronia, em todas as áreas artísticas, é uma novidade possibilitada pelo ambiente digital. Os instrumentos são mais baratos. Antiga-mente, fazer um filme era uma tragédia, e hoje se faz com um celular.

Jornal da UFRJ: Os poetas marginais estão migrando do suporte papel para o ambiente digital?

Heloísa Buarque de Hollanda: Acho que os suportes coexistem. E cada vez mais. Todo mundo que faz um traba-lho em um blog de texto, por exemplo, sempre mira a publicação em livro. É até estranho porque, em muitos casos, é uma garotada que poderia não ter o fetiche do livro, mas tem. A ideia é co-meçar no blog para mostrar o trabalho, formar um público, eventualmente ser descoberto por um editor e publicar em papel. Entrevistei todos e não tem um que não tenha como meta a publi-cação final em papel. Inclusive nas en-trevistas que dei sobre o Enter, e foram muitas, há uma pergunta recorrente: “Não vai publicar?” Não posso! Como publicar? A não ser podando e reduzin-do a antologia, pois a graça do Enter é exatamente essa pluralidade de mídias. Se eu colocar um videocast no papel perco a imagem e o som. Acaba soando estranho um trabalho que não pode ser publicado ou que não tenha essa meta.

Jornal da UFRJ: Nesse cenário, qual será o papel do e-book?

Heloísa Buarque de Hollanda: Ele possibilita esse trabalho com outras mídias, mas tende a ser um suporte para referência. Como lazer, acho que não se apresentou satisfatoriamente. Ainda está longe de substituir o livro como objeto de leitura prazerosa. Ago-ra, como referência, vai avançar rápido. Já não faz sentido ter uma enciclopédia de papel, ninguém tem mais porque ela se desatualiza em um ano. Antigamen-te, eu comprava a Enciclopédia Britâ-nica, que rapidamente ficava defasada. Acho que o e-book servirá mais como suporte para um trabalho. Por exem-plo, a Lúcia Riff, que é agente literária, tem todos os originais não impressos em e-books. Em vez de ficar carregando aquele monte de papel para cima e para baixo, já que manusear originais é mui-

“O lema da poesia marginal era aproximar o mais possível arte e

vida. Nos anos 1990, esse projeto já não existia. Tudo acontecia em ummainstream (pensamento

corrente da maioria) e com uma referência culturalmuito forte. Os poetas da geração AI-5 eram letrados, mas isso não aparecia no texto. Já a

ideia de referência cultural e literária era fortíssima

nos poetas da geração de 1990.”

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Outubro 2009UFRJJornal da 16 Outubro 2009Entrevista

to desagradável, ela coloca os textos em e-books, verdadeiros instrumentos de trabalho.

Jornal da UFRJ: Uma recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS) mostrou que 47% dos cariocas não têm o hábito de ler livros. Por outro lado, vem aumentando de modo expo-nencial o número de leitores na Internet. Como isso impacta a cultura de maneira geral e o modo como as pessoas veem o mundo?

Heloísa Buarque de Hollanda: Isso é bastante polêmico. Tem gente que acha que a Internet vai tornar superfi-cial o pensamento e acabar com uma lógica de percepção da realidade mais interpretativa. Mas eu tenho um pou-co de medo de entrar nessa onda por-que, se olharmos para trás, a polêmica era idêntica quando apareceu a escrita. Houve um pânico de que as pessoas perdessem a memória. Os textos eram orais e se considerava importante esse exercício da memória para recitá-los. Quando apareceu a escrita, muitos consideraram que ela iria prejudicar

as faculdades mentais do ser humano. É o mesmo argumento que ouvimos hoje em relação à Internet, por isso te-nho certo temor. Daqui a pouco vamos descobrir que isso não tem sentido. O livro, na verdade, ampliou o espectro da memória. Lemos mais. Temos e guardamos mais informações. Ou seja, exercitamos mais a memória. Não hou-ve prejuízo biológico à memória, como se pensava. Hoje, muitos afirmam que a nova geração vai ser desatenta e super-ficial. Acho que, como aconteceu com a escrita, não será bem assim.

Jornal da UFRJ: E em relação ao im-pacto da Internet na vida e no compor-tamento das pessoas?

Heloísa Buarque de Hollanda: É um impacto evidente. O maior ganho é que as pessoas perderam o medo de escre-ver e ler, algo que não tem preço. Acho isso maravilhoso porque o livro inti-mida em certas camadas sociais e fases de crescimento. Tem gente que acha o livro algo pesado, difícil. Já na Inter-net se lê e escreve o tempo todo. Havia um bloqueio geral das pessoas quando

se tratava de escrever. É só lermos a maior parte das redações de vestibular para constatarmos o desastre. E hoje as pessoas não temem escrever, exercitam o texto na Internet. Educar é exata-mente fazer as pessoas perderem o medo, mais nada. Ninguém ensina nada a ninguém, pode-se treinar o outro a perder o medo de aprender. A Internet está fazendo as pessoas perderem o medo de escrever e isso é muito bom.

Jornal da UFRJ: Os softwares livres, as redes de troca de arquivos e a pos-sibilidade de publicação imediata da

própria produção têm encorajado as pessoas a se tornarem produtoras de diversos tipos de conteúdo. Como a senhora avalia esse momento?

Heloísa Buarque de Hollanda: Há muita mídia para pouco conteúdo. Então, está havendo uma demanda por conteúdo nunca vista na histó-ria. Os jornais online precisam ser preenchidos constantemente. Do ponto de vista artístico e cultural, também é diferente. Agora, as pes-soas têm acesso a telefone celular e com eles fazem filmes, contos, o dia-bo! É muito barato, pois já se tem o instrumento na mão, o que dá certo assanhamento geral para produzir conteúdo. Sai muita porcaria, mas sai muita coisa boa. Também numa livraria se encontra muito lixo. A oferta é sempre complexa em qual-quer situação.

Jornal da UFRJ: Ao mesmo tempo em que a Internet tem essa dimensão liber-tária do ponto de vista da criação e do acesso aos bens digitais, muitos grupos se mobilizam na defesa do copyright. Como a senhora avalia o movimento pela liberdade digital?

Heloísa Buarque de Hollanda: Acho que a autoria tradicional está fadada a ser repensada. Fiz um estudo grande sobre essa questão, uma das mais im-portantes do momento, especialmente sobre os tipos de licenças novas e mais flexíveis, como o Creative Commons. Há uma possibilidade hoje de pro-dução colaborativa. Particularmente, acho o máximo produzir um texto e soltá-lo nessas novas mídias. Seja o que Deus quiser! Isso tem um lado muito interessante para a criação. Fui estudar direito autoral e tive uma surpresa legal. A primeira é que a idéia de direito de au-tor é muito recente, data da Revolução Francesa. A história dessa lei, tanto na França como na Inglaterra, vem mar-cada pela polêmica desde o começo. Ou seja, há uma controvérsia antiga entre o direito público e o direito do autor. En-tão, a autoria já é uma questão polêmica e frágil desde a sua primeira legislação. O DNA da autoria é bichado. Sempre houve debates e recursos. Pesquisei a história da Justiça e descobri que, já no século XIX, o que se tem de processos públicos contra o fechamento da pro-priedade intelectual é uma enormidade. Essa é uma história conflituosa, que está mais evidente hoje por causa da difi-culdade de controle na Internet. É uma questão que agora vai explodir e é bom que exploda! A ideia da propriedade in-telectual era importante politicamente em certos casos, mas a autoria muito fechada é uma complicação do ponto de vista da produção de conhecimento. Isso é muito simbolizado pelo software livre. Como não se tem um sistema pro-prietário, é possível criar conhecimento de modo colaborativo. Em relação ao direito de acesso aos bens culturais, há um movimento de luta pelo acesso ao

“Tem gente que acha que a Internet vai tornar

superficial o pensamento e acabar com uma lógica

de percepção da realidade mais interpretativa. Mas eu tenho um pouco de medo de entrar nessa

onda porque, se olharmos para trás, a polêmica era

idêntica quando apareceu a escrita.”

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Outubro 2009Outubro 2009 17Outubro 2009 UFRJJornal da

Entrevista

conhecimento chamado A2K (Access to Knowledge). Esse acesso é visto como um direito, não apenas como um dese-jo de conhecimento.

Jornal da UFRJ: É possível avançar para um marco legal que leve em conta essa nova realidade?

Heloísa Buarque de Hollanda: É uma necessidade irrecusável. Por exemplo, a indústria fonográfica, queira ela ou não, começou a acabar. Então, nessa mesma indústria já existe uma reflexão em torno disso. Começa-se a fazer um claro rearranjo no mercado, nos modelos de negócio, no sistema de propriedade. Saiu agora um livro, interessantíssimo, de Chris Anderson chamado Free (Campus, 2009). Hoje, a paranoia geral é saber como vai ficar o autor, quando deveria ser como vai ficar o intermediário, que é quem ga-nha mais com o negócio. Por exemplo, eu sou editora e, no caso do livro, a editora ganha 20%, o autor 10% e 70% ficam com a livraria e o distribuidor. Ou seja, quem mais ganha não é quem escreve e nem quem investe. Então, acho que se deve começar a eliminar o intermediário, para sobrar mais para o autor e o investidor. Mas isso ainda é muito complicado.

Jornal da UFRJ: E como a senhora avalia o Creative Commons?

Heloísa Buarque de Hollanda: É uma solução interessante porque é flexível. Pode-se, por exemplo, bloquear todos os direitos ou reservar apenas alguns. É possível estabelecer qualquer uso para qualquer bem e restringir o seu uso co-mercial. Ou então se pode liberar um determinado número de parágrafos de

textos para uso comercial sem nenhum ônus. É o autor que faz o seu negócio e ele não precisa ficar submetido àquela coisa de “todos os direitos reservados”, até porque nem todos esses direitos vão para o autor.

Jornal da UFRJ: O Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação (GPPPAI) da Universidade de São Pau-lo (USP) fez uma pesquisa que mostra que o compartilhamento de arquivos de áudio multiplicou por sete o acesso da população à música e dobrou o acesso a filmes. A Internet pode vir a ser uma revolução cultural?

Heloísa Buarque de Hollanda: Certa-mente que sim. Ela está mexendo com os padrões do mercado tal como o conhece-mos hoje. Já vemos abalos no direito de propriedade, na autoria, nas formas de venda e na privacidade. Essas questões legais estão todas sendo refeitas. O ad-vogado hoje tem um campo de traba-lho incrível.

Jornal da UFRJ: No Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) do Fórum de Ciência e Cultura (FCC) da UFRJ, que a senhora coordena, exis-te um pós-doutorado único no Brasil. Fale sobre ele.

Heloísa Buarque de Hollanda: É um pós-doutorado em Estudos Culturais, uma área nova que vê a pesquisa cultural como subsídio para políticas públicas e ações sociais. É cultura aplicada, que liga a universidade à sociedade. Essa área ainda é pouco explorada no Brasil. Nos Estados Unidos da América, essa pers-pectiva se difundiu mais porque eles têm

uma questão ligada às minorias, como imigrantes, muito complicada e eferves-cente. Os estudos culturais estão bastante associados às questões das minorias. Nos EUA isso é útil, mas no Brasil nem tanto, porque não há conflitos explícitos. Esses estudos acontecem no Brasil mais nas áreas de Letras, Antropologia e Comuni-cação. Mas o traço dos Estudos Culturais é que são transnacionais, não se desen-volvem apenas localmente, e pretendem aplicar o conhecimento em benefício da sociedade civil. Eu gosto demais desse pós-doutorado, que já existe há 10 anos. Temos turmas de cerca de 30 alunos, do Brasil e do exterior.

Jornal da UFRJ: O Fórum Permanente de Cultura Digital (FPCD) é outro eixo do PACC?

Heloísa Buarque de Hollanda: Exata-mente. E queremos aumentar o número de participantes desse Fórum. Para isso, estamos elaborando um projeto inter-disciplinar ligado à cultura e à tecnolo-gia, em conjunto com o professor Luiz Bevilacqua (emérito da UFRJ que está ajudando a montar o Plano Diretor de Pós-graduação e Pesquisa). No âmbito desse projeto, já realizamos o seminário “Cultura 2.0”. Antes, já havíamos feito ou-tro seminário chamado “Cultura Além do Digital”, por solicitação do Ministério da Cultura. Temos várias ações e projetos de pesquisa ligados à área digital.

Jornal da UFRJ: Fale sobre essa novidade que é a “Universidade das Quebradas”.

Heloísa Buarque de Hollanda: Esse é o projeto do meu coração, a minha “saidei-ra” da universidade. Ele existe há um ano,

mas engrenou mesmo há pouco tempo. É um projeto de Extensão Universitária, mas não é assistencialista e nem de capa-citação direta de comunidades periféricas. Na realidade, através dele, a universidade abre o seu mais alto saber para artis-tas ou agentes das comunidades. Para entrar para a “Universidade das Que-bradas” é preciso mostrar que é bom. Pode ser um rapper, um grafiteiro ou um escritor, mas é preciso que as pessoas mostrem a sua produção, não basta mo-rar em favela. Essas pessoas, então, têm aulas de Filosofia, Literatura, História e Antropologia, entre outras disciplinas. É a universidade abrindo o seu conhe-cimento para potenciais multiplicadores da periferia.

Jornal da UFRJ: Detalhe um pouco mais a dinâmica desse projeto.

Heloísa Buarque de Hollanda: Reali-zamos encontros periodicamente. Re-centemente, nos inscrevemos para ser um Pontão de Leitura do Ministério da Cultura, que é um projeto que articula vários pontos de leitura. Queremos fazer um “intensivão” de literatura para os me-diadores de leitura. Mas o que é mais im-portante nesse projeto, ao lidarmos com a periferia, é o respeito pela cultura das comunidades. Há uma troca de conhe-cimentos, não é absolutamente algo feito de cima para baixo, como já fiz no CPC da UNE nos anos 1960. Era um catecis-mo e aprendi que isso já era! Hoje, esco-lhemos pessoas de comprovado saber na periferia para trocar conhecimento com o saber universitário. Eu não conheço projeto assim, com essas características de troca de conhecimento, em vez de ca-pacitação.

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Outubro 2009UFRJJornal da 18 Outubro 2009Políticas Públicas

Rodrigo Ricardo

Quando o mínimo faz a diferença

Mesmo aquém de uma justa distribuição de renda, país diminui desigualdade através de políticas sociais.

A arte da pesca exige paciência, qualidade que pode significar vir-tude ou resignação frente a desafios; para quem pretende a er-radicação da miséria: a arte é manter a paciência. Assim como

a fome tem pressa, distribuir a riqueza e transformar o formalismo legal da igualdade em direito de fato na vida de todos os brasileiros impõe-se tarefa vital para concretizar o desejo de uma verdadeira democracia. Se o bolo do milagre econômico dos anos 1970 deixou a maioria com água na boca, o presente espetáculo do crescimento oferece algumas sobras aos que mais precisam do Estado para conquistar a cidadania. Para avançar nesse processo os modos de trabalho dividem opiniões de expertises e correntes políticas, estão entre “oferecer o peixe ou ensinar a pescar”. A partir dessa recorrente metáfora instaura-se a interrogação que marca os debates acerca das medidas no combate à pobreza. Entre as críticas de “assistencialistas” e “essenciais”, a manutenção e, quiçá, a expansão de políticas sociais consti-tui plataforma comum de todos os possíveis presidenciáveis em 2010.

Vitor Vanes

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Outubro 2009Outubro 2009 Outubro 2009 UFRJJornal da

“Contudo, o programa tem impacto

sobre a desigualdade

e não se limita apenas

à extrema pobreza,

mas também transfere renda

para uma camada acima, que vive com

uma baixa renda”.

Contagem, MG - Presidente Lula cum-primenta beneficiária do Bolsa Família, programa que atinge 11,1 milhões de famílias em todo o país.

Além da unanimidade político-eleitoral, avalia-se que a sociedade finalmente começa a perceber o pa-pel do Estado na luta contra a exclu-são social, gerada pelo capitalismo. As informações da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca (IBGE), divulgadas em setem-bro último, mostram que emerge uma face do país até então invisível aos olhos da elite. Todavia, mais do que a ampliação de recursos, a saí-da do mínimo à autonomia cidadã exigirá a articulação entre políticas sociais e o investimento em seto-res estruturais como saneamento e habitação popular. A superação de fraturas históricas, como a refor-ma agrária e a tributária, também representa curso inadiável rumo a um rio de margens plácidas e acessível a todo pescador.

Custando apenas 0,4% do Pro-duto Interno Brasileiro (PIB), soma de todas as riquezas do país, o Programa Bolsa-Família (PBF) está presente em 12 milhões de lares pelo país. “Ele reúne o Auxí-lio-Gás, o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação, criados no apagar das luzes da gestão de Fernando Henrique Cardoso (1994–2002)”, explica Cecília Paiva, professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, apontando que o gover-no federal prioriza recursos à As-sistência Social, nos chamados programas de transferência de renda, porém, com o decréscimo nas demais políticas sociais, in-clusive as estruturais como ha-bitação e saneamento, para um enfrentamento da pobreza mais amplo. “Atenuam-se os efeitos mais nefastos, como a subnutri-ção, contudo a miséria não se ex-pressa somente na dimensão da renda, mas na impossibilidade do acesso a serviços e bens fundamen-tais”, critica Cecília.

Sistema Único deAssistência Social

Autora de pesquisa que com-para mecanismos de transferência de renda em países da América do Sul, Cecília Paiva acredita que di-ficilmente a próxima liderança da República deixará de dar continui-dade ao PBF: “é possível até que receba outro nome, mas encerrá-lo representar ia uma enorme falta de matu-ridade, além de uma medida ant ip opular”. Ela lembra que na Argentina, onde vivem cerca de 40 milhões de ha-bitantes, há o Programa Jefes e Jefas de Ho-gar (programa chefes e “che-fas” de família) que “decres-ceu de mais de dois milhões de beneficiá-rios para 700 mil, em 2008, e o Programa por La Inclusi-ón Social (pro-grama para a inclusão so-cial) alcançou 602.650 famílias, em 2009, absorvendo parte dos benefi-ciários do primeiro, os considera-dos ‘inempregáveis’.”

De acordo com Cecília, tanto aqui quanto entre os argentinos há uma tensão cultural entre assistên-cia e trabalho. “A proteção social deve ser mantida para todos, mas coloca-se que somente há direitos para os que trabalham. A história do desenvolvimento capitalista tem a necessidade de reforçar que a inclusão social passa apenas pela

inserção produtiva”, elucida a pro-fessora, destacando a importân-cia do trabalho para romper com ciclos geracionais de miséria. “O como emancipar é a grande inda-gação. Pessoalmente, defendo o di-reito universal à renda como saída mais viável”, indaga e avalia a pes-quisadora.

Cecília Paiva concorda com o p r e s i d e n t e Luiz Inácio Lula da Silva, quando diz que a elite de-nomina de in-vestimento o que se aplica nela e o con-trário de gasto social, porém, revela aspectos contraditórios do PBF. “Ele ainda tem um caráter con-tencionista. O medo de que a revolta dos po-bres, as ‘clas-ses perigosas’, exploda em violência ou revolução. Por exemplo, uma das condições para receber o benefício é

uma frequência escolar mínima de 85%, quando a Lei de Diretrizes de Bases (LDB) determina 75%”, cri-tica Cecília, ressaltando, por outro lado, a criação e o desenvolvimen-to do Sistema Único de Assistência Social (Suas): “As ações precisam estar articuladas, como no caso do PBF com o Plano Nacional de Qualificação. Há esforços nessa direção, mas ainda fal-ta um longo cami-nho.”

O mapa dis-

tributivo brasileiro registra que a renda apropriada pelo 1% mais rico da população é igual à apropriada pelos 50% mais pobres. Enquanto menos de 1% do PIB atende o PBF, 20 mil famílias titulares da dívida pública ficam com 4,5% de toda a riqueza produzida pelo país. Para Cecília, a péssima distribuição de renda brasileira somente será re-solvida com uma radical reforma tributária. Ela cita o exemplo do Alasca, território comprado em 1867 do Império Russo pelos Esta-dos Unidos da América, onde cada cidadão recebe cerca de dois mil dólares: “Eles dividem os royalties do petróleo pela população. Isto somente foi possível graças à mo-bilização das vilas de pescadores. No Brasil, apropria-se a riqueza privadamente e, por ironia, a lei do senador Eduardo Suplicy (PT/SP), que institui a Renda Mínima foi aprovada dias antes do PBF, que esperamos seja mais um passo nes-ta direção.”

O benefício da reforma agráriaAtualmente, pelos dados ofi-

ciais, o PBF alcança 20% dos mu-nicípios brasileiros. Em algumas dessas 1,2 mil cidades, o auxílio re-presenta a principal fonte de ren-da nesses locais, como nas cidades nordestinas Junco (MA) e Severia-no Melo (RN), onde 95% da po-pulação é coberta pelo benefício. “Quando se acena para um cami-nho novo que dá certo fica difícil retroagir politicamente”, assinala a socióloga Anna Maria de Castro, professora aposentada da UFRJ, destacando a possibilidade de mu-dança propiciada pelo PBF, mesmo sendo o valor básico do benefício de R$ 68, variando mais R$ 22 para

cada criança matricu-lada na escola, e

c h e g a n d o ao máximo de R$ 200.

Políticas Públicas 19

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Outubro 2009UFRJJornal da 20 Outubro 2009

“Agora, não basta simplesmente expandi-lo de forma aguda. É im-portante que o PBF tenha políticas complementares ligadas à educa-ção e à criação de empregos”, res-salta Anna Maria.

Filha de Josué de Castro, autor do clássico Geografia da Fome que conceitua o flagelo como fenômeno social, Anna recorda que a raiz das polí-ticas sociais e n c o n t r a - s e no trabalho do sociólogo Her-bert de Souza, o Betinho. “Ele chama a aten-ção de todos para a questão da fome na dé-cada de 1980. Hoje há uma reivindicação justa por novos e mais ágeis p r o g r e s s o s , contudo eles são difíceis, pois há forças contrárias ao avan-ço”, analisa a socióloga, apontando os discursos que classificam o PBF como incentivo à preguiça, perten-centes aos interessados em poder contar com uma mão de obra es-crava.

Anna Maria de Castro reitera que a miséria não está restrita ao Nordeste. Ela afirma que o estere-ótipo, apesar de não ser totalmente falso, ainda resiste. Ela recorda que, em pleno centro de São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo,

há amontoados de pessoas em cor-tiços vivendo sob condições pre-cárias. “Nos últimos anos, houve uma diminuição da concentração urbana, porém, nada comparado ao efeito de uma reforma agrária caso já tivesse sido feita”, acredita a socióloga, indicando o acerto do PBF de privilegiar a mulher como

titular do b e n e f í c i o : “Elas se sen-tem mais in-d e p e n d e nte s numa admi-nistração do-méstica que, mesmo antes, já era assumi-da por elas. Agora, o grau de carência da realidade ainda indica a necessidade de se estender o anzol, a vara e dizer onde está o peixe.”

Em pesqui-sa realizada sobre as repercussões do PBF na alimentação, o Institu-to Brasileiro de Análises Sociais e Econômica (Ibase) traz o perfil desses beneficiados. Em sua maio-ria, negros e pardos (64%) e mu-lheres (94%) entre 15 e 49 anos, sendo que 27% delas são mães solteiras. Pelo estudo residem em área urbana 78% das famílias. Somente o estado

do Rio de Janeiro, a que, conforme dados do Ministério do Desenvol-vimento Social e Combate à Fome (MDS), são aportados, anualmen-te, R$ 1,96 bilhão para execução de programas sociais, o PBF responde por R$ 52,9 milhões mensais para 641,7 mil famílias fluminenses.

No Instituto Brasileiro de Aná-lises Sociais e Eco-nômicas (Ibase),

entidade fundada por Betinho

e de onde se origina o

“Fome Zero” incorpo-rado como programa

de governo, analisa-se que o fato do PBF estar presente na oratória dos candidatos à Presidên-cia, nas próximas eleições, não sig-nifica a plena aceitação do progra-ma. “Se não houver críticas ao PBF, é pelo temor de desagradar os elei-tores. Pois elas continuam, de for-ma recorrente, sobretudo na mídia”, e x p õ e F r a n -c i s c o M e n e z e s , d i r e t o r -e xe c ut i vo do Ibase, lembran-do “a cantilena” da grande imprensa de que o PBF acresce aos gastos públicos, gera acomodação nos benefici-ários e não resolve os problemas

reais, apenas criando compen-sações para a pobreza. “Contudo, o programa tem

impacto sobre a desigualdade e não se limita apenas à extrema

pobreza, mas também transfere ren-da para uma camada acima, que vive com uma baixa renda”, avalia Menezes.

Prova desta afirmação é o recente levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV), baseado na Pnad de 2008, do IBGE. O estudo constata que 31 milhões de brasileiros subi-ram de classe social entre os anos de 2003 e 2008. Entre eles, 19,4 mi-lhões deixaram a classe E, que tra-ça a linha da pobreza no país, ten-do a renda domiciliar inferior a R$ 768. Para muitos economistas, des-de 2001, o Brasil vive um processo de redução da desigualdade. Nes-te período, a renda per capita dos 10% mais pobres da população su-biu 72%, enquanto a dos 10% mais r i c o s cresceu a p r o x i -madamen-te 11%.

Q u a n t o à influ-ência na educação, Francis-co Menezes classifica o PBF, no qual 81% dos titulares do benefício são alfabetizados e 56% completa-ram o Ensino Fundamental, como indutor da manutenção das crian-ças na escola. “E, agora, dos ado-lescentes entre 15 e 17 anos, grupo

em que a evasão escolar é alta, porém, ainda não existe tempo para se falar

em impacto, pois não há como avaliar precisamente o

que significará dotá-las de conhecimento que

“Mesmo sob uma

Constituição que garante o direito à

assistência social, os

pobres são culpabilizados

pela sua condição.”

Fonte: MF/SPE/SIAFI e Pochmann, Márcio. “Gasto Social, o nível de emprego e a desigualdade de renda do trabalho no Brasil” In SICSÚ, João (org.) Arrecadação (de onde vem) e gastos públicos (para onde vão)? São Paulo: Boitempo, 2007.

Políticas Públicas

Gasto social do Governo Federal per capita e em valor real, de janeiro de 2006 (média em reais entre 2001-2002 e 2003-2005)

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Outubro 2009Outubro 2009 21Outubro 2009 UFRJJornal da

antes não tinham”, assegura o di-retor da Ibase, confiante de que as melhoras da alimentação e de ou-tras necessidades essenciais se re-verterão favoravelmente ao estudo. “Ainda há muito a se fazer, princi-palmente quanto a uma escola que responda satisfatoriamente ao que a realidade atual exige”, preconiza Menezes.

EstigmaApós o recente reajuste de 9,68%

no valor do benefício, o impacto do PBF sobre o orçamento atinge R$ 11,9 bilhões. Para Francisco Mene-zes, em termos de transferência de renda, não se deve criar outro programa e, sim, expandi-lo, al-cançando grupos, famílias com renda mensal por pessoa de até R$ 120, ainda fora do PBF. “É pre-ciso entender que o PBF destina-se a quem tem pouca ou nenhuma renda. Não devemos atribuir a ele mais do que ele pode responder. Agora, é fundamental pensar que junto com ele devem ser constru-ídos outros programas e ações que propiciem condições para a emancipação dos que vivem toda sorte de carências”, aponta Mene-zes, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

Entretanto muitos especialistas observam a dificuldade de tornar as políticas envolvidas diretamen-te ao PBF (Assistência, Saúde e Educação) mais integradas. “A in-tersetorialidade é ainda um expe-diente formal, o cotidiano mostra que cada uma se mantém no seu quadrado”, compara Joana Gar-cia, também professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, constatando que a abrangência e a visibilidade do PBF são incom-paráveis. “Mesmo o programa do leite, instituído por José Sarney (1985—1990), que também teve um efeito político em todo o ter-ritório nacional, não alcançou a expressão entre os beneficiários que este programa obteve. A pró-pria fundamentação do PBF busca romper com a pessoalização, com a cultura do favor e da tutela e come-ça a imprimir, mesmo que de um modo ainda tênue, a idéia de direito à assistência”, afirma Joana, advertindo que “uma política de “enfrentamento às desigualdades não se restringe à transferência de renda, sobretudo a uma renda tão residual.”

Segundo ela, faz-se necessária a remissão a uma cultura dominante que pensa a pobreza como atraso ou ameaça. “Ambas as perspectivas produzem uma espécie de ficção em que a sociedade se apresenta em oposição ao social. Mesmo sob uma Constituição que garante o di-reito à assistência social, os pobres são culpabilizados por sua condi-ção. Ainda prevalece a premissa do

ensinar a pescar no lugar de dar o peixe”, acredita a docente, con-cordando que prevalece um estig-ma negativo sobre os indivíduos que mais necessitam de amparo do poder público. “Nas sociedades capi-talistas, que premiam o talento, o su-cesso, o mérito, ser beneficiário de um programa assistencial é evidência de fracasso, de não ter conseguido suprir as necessidades pelo poder de compra, sem a mediação da ajuda filantrópica ou de um programa social”, critica a docente, enfatizando que os resulta-dos do PBF na educação são positivos, embora “o acesso das crianças e jo-vens às escolas não seja suficiente para mantê-los e ainda menos para que seu aproveitamento seja garantido. É, por isso, necessário que a qualidade do en-

sino seja compatível com a oferta de vagas.”

Entre as defesas do programa cita-se o exemplo de pessoas que conquista-ram um emprego e, por conta própria, dispensaram o benefício. Entretanto, tal situação configura-se como uma exceção. “Saem aqueles que não es-tavam tão vulneráveis. A mobilidade social do grupo extremamente pobre é muito mais lenta. Às vezes somente conseguirão na geração seguinte, que poderá ter acesso ao estudo”, lembra Francisco Menezes, sustentando a obrigação do Estado em cuidar de to-das as pessoas, em especial das mais frágeis: “Significa garantir os direitos básicos e o PBF é um instrumento im-portante para isso, embora não seja o único.”

Francisco indica ainda a impotência de uma política social que até oferece ganhos aos mais pobres, mas associa-da à uma economia que produz mais desigualdade. “Será como enxugar gelo. É preciso que as medidas econô-micas se voltem para favorecer a maior parte da população, ao invés de um pequeno grupo. Essa transformação somente ocorrerá com a constituição de uma maioria política determinada a romper com as condições de tanta iniquidade que o país carrega”, prega o ex-presidente do Consea, constatando que “essa maioria se faz na sociedade e não pode haver espaço para a in-diferença. O momento clama pela postura do cuidado com as políticas públicas, o bem comum, a natureza e com o próprio ser humano.”

Políticas Públicas

Marcello Casal Jr/ABr

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Outubro 2009UFRJJornal da 22 Outubro 2009

pretexto para o acordo é o combate ao narcotráfi-co e às Forças Armadas

Revolucionárias da Colômbia (Farc), a ocasião escolhida para a assinatura deveu-se ao fim do período de con-cessão da base militar, utilizada pelos Estados Unidos, em Manta, Equador, nos últimos dez anos, cuja renovação já era rechaçada pelo atual presidente equatoriano Rafael Correa, antes mes-mo de sua posse.

Aliado estratégico dos EUA na re-gião, Álvaro Uribe, presidente colom-biano já em seu segundo mandato, consentiu no arrendamento de sete ba-ses militares como parte de um amplo acordo estratégico que visa o combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas.

América Latina

Jefferson Nepomuceno

Bases da discórdiaA assinatura de um acordo militar entre os Estados Unidos e a Colômbia para a

utilização, por parte das forças armadas americanas, de sete bases militares

em território colombiano, por 10 anos, traz um novo momento de incertezas

para a política continental e de tensões diplomáticas entre os principais atores

envolvidos.

Bruno Franco

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Outubro 2009Outubro 2009 23Outubro 2009 UFRJJornal da

América Latina

Com isso, chegará a 872 o número de bases militares utilizadas pelas forças armadas norte-americanas em outros países. A manutenção desse opulento aparato militar global custa 250 bi-lhões de dólares aos contribuintes es-tadunidenses.

Devido à preocupação que a insta-lação das bases provocou, sobretudo nos países fronteiriços à Colômbia, a União de Nações Sul-americanas (Unasul) realizou uma cúpula extra-ordinária, na cidade argentina de Ba-riloche, dia 28 de agosto. Após longo debate, os chefes de Estado das 12 na-ções que compõem a instituição apro-varam um comunicado que estabelece que “forças militares estrangeiras não podem […] ameaçar a soberania e a integridade de qualquer nação sul-americana.”

Os 12 líderes concordaram em fortalecer iniciativas de cooperação contra o terrorismo e o crime organi-zado, bem como reforçar os laços de confiança e segurança entre os países da região. Nas acaloradas discussões ocorridas na reunião anterior da Unasul, em Quito, capital equatoria-na, os presidentes Evo Morales (Bolí-via), Rafael Correa (Equador) e Hugo Chávez (Venezuela) foram enfáticos na crítica ao acordo militar entre nor-te-americanos e colombianos. Chá-vez externou até mesmo o receio de um ataque ao seu país. Uribe recebeu apoio explícito somente de seu colega peruano Alan Garcia, ao passo que Lula, respaldado pela histórica traje-tória de articulação de consensos do Itamaraty, sugeriu a participação dos Estados Unidos nos debates.

Rearmamento colombianoO exército colombiano, graças aos

mais de quatro bilhões de dólares re-cebidos desde a implementação do Plano Colômbia (iniciativa conjunta desse país com os EUA para comba-te ao narcotráfico), se tornou um dos mais bem-equipados – e de mais nu-meroso efetivo – exércitos sul-ameri-canos. A Colômbia possui um con-tingente militar de cerca de 208.600 pessoas (para 44 milhões de habitan-tes), enquanto o Brasil, com seus mais de 190 milhões de habitantes, tem um contingente de somente 287.870 ho-mens e mulheres no Exército.

De acordo com Karl Schurster, pesquisador do Laboratório de Es-tudos do Tempo Presente (Tempo) da UFRJ, sobretudo as três bases ini-cialmente previstas no acordo (nas regiões de Apiay, Palanquero e Ma-lambo) são altamente estratégicas. Malambo situa-se próxima à fron-teira da Venezuela, com saída para o mar; Apiay fica próxima da fronteira da Amazônia brasileira, na região co-nhecida como Cabeça de Cachorro e Palanquero fica no centro da Colôm-bia. Desta região, um avião C-17, de transporte tático, com tanque cheio consegue sobrevoar metade do con-tinente.

Com a implantação do Plano Co-lômbia, há atualmente no país um efetivo de 800 soldados norte-ame-ricanos e 600 contratados (terceiriza-dos) que é o máximo que a legislação interna permitiria. Com a instalação das bases seriam mais 1.400 solda-dos.

Os interesses em questãoPara Franklin Trein, professor do

Departamento de Filosofia do Instituto de Filo-sofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, o acor-do não significa que haverá in-gerência direta norte-americana em assuntos sul-americanos, “mas, por certo permite exercer maior reconhe-cimento, contro-le e intimidação. Em caso extre-mo fica mais fá-cil desencadear ações ‘conjuntas’ com forças lo-cais, para con-trolar situações de conflito ou que ponham em risco o exercício da ‘autoridade local'.”

Para Schurs-ter, a inserção militar dos EUA e a falta de clare-za da política de Obama para com a América Latina geram grande in-segurança acerca das intenções da operação militar. “Isso, mais uma vez, coloca terra sobre o projeto sul-americano de integração e, talvez, esse seja um dos motivos pelo qual pro-cessos dessa na-tureza tenham fracassado. Cada país tem pensa-do seu projeto particular de integração, não há projeto comum. Quando nos aproximamos disso, com a criação, no ano passado, da Unasul, visando aproximar o Pacto Andino e o Mercosul, o processo pode ir por água abaixo”, lamenta-se o historiador.

As grandes inimigas que Bogotá visa combater, com mais esse auxí-lio americano, são as Farc. O próprio presidente Uribe tem sua trajetória pessoal ligada ao combate à guerrilha.

“O pai dele (Álvaro Uribe), que era proprietário de terras, morreu quando teve sua fazenda invadida. Isso devota Uribe ao combate às Farc, mesmo ele tendo sofrido várias acusações por en-volvimento com o narcotráfico”, relata Schurster.

A libertação de Ingrid Betancourt, em julho de 2008, foi uma vitória do governo Uribe e calou vozes que contra ele se levantavam. No entanto, Schurs-

ter alerta que a Colômbia continua sen-do um país institucional-mente inse-guro. “Muitos políticos foram sequestrados e mortos pelas Farc nas elei-ções locais do ano passado e a imprensa e o governo tenta-ram silenciar quanto a isso. Mas é claro que há países com fragili-dade institu-cional maior, como o Peru, do presidente Alan Garcia, onde 11 mi-nistros se de-mitiram em um mesmo dia.

Na opinião de Manuel Sanches, pro-fessor do De-partamento de Ciência Po-lítica, também do Ifcs, não se pode discernir os verdadeiros objetivos do acordo, mas podem-se de-duzir as amea-ças percebidas pelas partes e seus interes-ses de longo prazo, tais como “apro-veitamento” da bacia hi-drográfica da A m a z ô n i a ;

interesse com relação ao potencial de sequestro de carbono representado pela floresta; também com relação à biodiversidade e quanto aos re-cursos naturais, particularmente o petróleo”.

Contenção à política chavistaDe maneira mais imediata, o bo-

livarianismo – proposta política de Hugo Chávez de cunho popular e de

esquerda –, é fonte de preocupações para norte-americanos e colombia-nos. ”Chávez tem origens militares e, muitas vezes, se comporta como tal. O apoio que tem dado ao Equa-dor, à Bolívia, e à Argentina e, even-tualmente, às Farc não tem se limi-tado a sua conhecida incontinência verbal. Mas, longo prazo, a questão amazônica parece ser mais séria que a questão do combate ao tráfico de drogas e às Farc” acredita Sanches.

Também no entendimento de Schurster, os Estados Unidos têm medo de que o modelo político ve-nezuelano, chamado por Chávez de bolivarianismo, prolifere pela América do Sul. Isso já se demons-trava durante o governo George W. Bush, com as discussões entre Condoleeza Rice, ex-secretária de Estado, e Hugo Chávez. “Uma das preocupações que o próprio governo venezuelano começa a de-monstrar é que com a saída de Bush e a eleição de Obama para a Presidên-cia norte-americana o discurso de Chávez começa a ficar politicamente vazio. O inimigo foi embora e entrou no governo uma pessoa extremamen-te popular e aberta ao diálogo (ainda que não necessariamente bem-inten-cionada)”, explica Sanches.

No entanto, o advento do proje-to de cooperação militar dos EUA com a Colômbia permite a Chávez discursar contra uma nova amea-ça. “A maneira mais fácil de escon-der problemas sociais em seu pró-prio país é atacar seus vizinhos. Isso acontece muito com o Brasil, que é alvo da política externa de países vizinhos para que eles pos-sam esconder seus problemas. É o caso do presidente paraguaio Fer-nando Lugo, que tenta esconder o escândalo de seus filhos (Lugo é bispo da Igreja Católica) critican-do o acordo de fornecimento de energia da hidrelétrica de Itaipu”, critica Schurster.

Para o pesquisador, ainda que a América do Sul esteja passan-do por um processo de reformas populares, as mesmas não podem ser entendidas como socialistas. “Mesmo Morales já fez discurso falando em implantar o que cha-ma de ‘capitalismo andino’”, relata Schurster.

De todo modo, Schurster se mostra pessimista quanto aos pos-síveis ganhos de que a Colômbia poderia usufruir com mais esse acordo com os Estados Unidos. “A desarticulação do narcotráfico na Colômbia não deu certo e o con-sumo de cocaína é cada vez maior. Foram investidos milhões no Pla-no Colômbia, um projeto eminen-temente fracassado. Os Estados Unidos ocupam militarmente o Afeganistão, que é, atualmente, o maior exportador mundial de heroí-na”, critica o historiador.

O Exército colombiano, graças aos mais de quatro bilhões de dólares recebidos desde a implementação

do Plano Colômbia (iniciativa conjunta desse país com os EUA para combate ao narcotráfico), se tornou um dos mais bem-equipados - e de mais numeroso efetivo - exércitos sul-americanos.

A Colômbia possui um contingente

militar de cerca de 208.600 efetivos (para 44 milhões de habitantes),

enquanto o Brasil, com seus mais de

190 milhões de habitantes, tem

um contingente de somente 287.870

homens e mulheres no Exército.

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Outubro 2009UFRJJornal da 24 Outubro 2009Movimento Estudantil

Depois do golpe militar de 1964, uma extensa cole-ção de leis repressivas foi

sendo cuidadosamente elaborada pe-los novos donos do poder para fechar o cerco contra o movimento estudantil. Em seu auge, a fúria normativa dos mi-litares produziu o malfadado AI-5, em fins de 1968, e uma excrescência jurí-dica nem sempre lembrada, o Decreto-lei 477, de fevereiro de 1969, que previa penas administrativas, como demissões e expulsões, para professores, funcioná-rios e estudantes de universidades acusa-dos de “subversão”, à revelia de qualquer apreciação judicial. Antes, a ditadura já havia editado a Lei Suplicy de Lacerda, em 9 de novembro de 1964, que colocou na ilegalidade a União Nacional dos Es-tudantes (UNE) e as suas similares esta-duais, as UEE.

Mesmo debaixo da intensa repres-são dos anos de chumbo, os estudantes brasileiros conseguiram se reorganizar, aos poucos, e voltaram maciçamente às ruas, em 1977, para exigir mais verbas para a Educação, a revogação de puni-ções impostas aos colegas e a restauração das liberdades democráticas. Dois anos depois, fizeram o histórico congresso de reconstrução da UNE, nos dias 29 e 30 de maio de 1979, que marcou o fim do período de clandestinidade da entidade. Realizado em Salvador, o 31º Congres-so da UNE, que acaba de completar 30 anos, coincide com o início de uma nova etapa da vida política do Brasil.

Tradição de resistênciaMaria Paula Araújo, professo-

ra do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, considera o congresso de refundação da UNE um momento histórico de retomada da tradição combativa dos estudan-tes na arena política brasileira, que surpreendeu e incomodou bastante o regime militar. Para arrefecer a força do movimento estudantil que voltava à cena, a ditadura ordenou a demolição do prédio que, antes de 1964, abrigara a sede da UNE, lembra a especialista em História Moderna e Contemporânea. “O prédio da Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, foi derrubado em junho de

Coryntho Baldez

1980. Exatamente no momento em que o movimento estudantil se rearticulava, a ditadura derrubou o prédio que consti-tuía um lugar de memória de suas lutas”, assinala Maria Paula, que é pesquisadora do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ.

Para o atual presidente da UNE, Au-gusto Chagas, eleito no 51º Congresso, realizado em 19 de julho de 2009, em Brasília, a reconstrução da entidade so-mente foi possível porque o movimento estudantil nunca deixou de existir, nem mesmo durante a ditadura militar. Cita

como exemplo o congresso clandestino, realizado em 1971, que elegeu como pre-sidente da entidade o goiano Honestino Guimarães, logo depois assassinado pe-los militares. Após algumas lutas espar-sas, duramente reprimidas, os estudan-tes levantaram a bandeira das liberdades democráticas, em 1977, realizando as primeiras manifestações pela volta da democracia, como sublinha Chagas.

Os governos dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, pressionados pela opinião pública, começaram, então,

a programar a política de distensão lenta e gradual, de acordo com o dirigente. “É exatamente nesse momento que o movi-mento se rearticula para reconstruir a sua entidade nacional. A volta da UNE é mar-cada pela campanha da anistia ampla, ge-ral e irrestrita e, mais tarde, pelas Diretas Já”, observa o militante estudantil.

Augusto Chagas aponta a campanha das Diretas Já como principal bandeira nos anos seguintes ao congresso da re-construção. E ressalta que o movimento estudantil, em todos os cantos do Bra-sil, se mobilizou para derrotar a dita-dura. Depois da queda do regime, ele opina que a UNE passou a lutar por um Brasil mais justo e igualitário e, principalmente, por uma educação

pública de qualidade.Nesse período, os estudantes tam-

bém ocuparam as ruas com suas caras pintadas para pedir o impeachment do presidente Fernando Collor. Foram deci-sivos para o desfecho daquela memorável mobilização nacional, em 29 de setembro de 1992, quando o Congresso Nacional depôs o autodeclarado “caçador de mara-jás”, hoje de volta à cena política.

“Também marcou esse período uma bandeira específica, levantada desde a década de 1980, que é a volta da entida-de para a sua sede histórica”, frisa Cha-gas. Essa, aliás, já é uma reivindicação vitoriosa. Depois de reaver a posse do espaço doado à entidade pelo presidente Getulio Vargas – na Praia do Flamengo, 132 – a UNE reerguerá a sua sede no mesmo local. O projeto arquitetônico é de Oscar Niemeyer e o convênio com a Fundação da Caixa Econômica Federal (Funcef) para a liberação de recursos foi assinado no 51º Congresso.

Embora ressalte que muitas reivindi-cações da entidade, nos últimos 30 anos, tiveram um caráter conjuntural, Maria Paula também enfatiza que há bandeiras históricas que jamais foram abandona-das. “Uma delas é a defesa da democra-cia na política. Em relação às questões específicas, as lutas pela qualidade do ensino e pela meia-entrada para estu-dantes também são históricas”, destaca a pesquisadora.

Um difícil equilíbrioAo analisar as correntes políticas que

participaram do congresso de recons-trução, Maria Paula lembra que o movi-

A voz de muitas gerações

Manifestação pelo petróleo em 1957. A UNE foi

uma das maiores defensoras da criação da Petrobras, partici-pando ativamente da campanha “O petróleo é nosso”.

Em 1942, estudantes protestam contra as forças fascistas durante a Segunda Guerra mundial. O mo-

vimento estudantil mobilizou alunos, professores e intelectuais em oposição aos regimes de Hitler e Mussolini.

Internet

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Outubro 2009Outubro 2009 25Outubro 2009 UFRJJornal da

mento estudantil estava polarizado por dois grandes blocos partidários. Um que se articulava em torno do Partido Co-munista do Brasil (PC do B) e outro que reunia diversas correntes do Partido dos Trabalhadores (PT).

A pesquisadora lembra que, entre 1980 e 1989, os dois blocos partidários se revezaram na diretoria da UNE, mas a partir daí concordaram em dividir, de forma proporcional, os votos obtidos na eleição para a diretoria da entidade. “Tendências e correntes políticas sem-pre existiram, mas, pelo menos até ago-ra, a entidade nunca se dividiu, sempre se acatou a decisão das urnas”, assinala Maria Paula.

Também para Augusto Chagas, a grande marca da UNE é a sua unida-de de ação, mesmo com a pluralidade de idéias. Para o estudante de Sistemas de Informação da Universidade de São Paulo (USP), “as diferentes correntes de pensamento na entidade a tornam de-mocrática, forte e mobilizadora”.

A professora da UFRJ, ao analisar as críticas hoje dirigidas à entidade quanto a uma possível perda de autonomia fren-te ao poder público, afirma que não ape-nas o movimento estudantil, mas todos os movimentos sociais, de modo geral, vivem um impasse pela proximidade de suas relações com o governo federal.

Augusto Chaves, porém, afirma que a UNE sempre esteve do lado do de-senvolvimento do Brasil. Ressalta que a entidade participou da campanha “O petróleo é nosso!”, subiu no palanque do presidente João Goulart para pedir as “reformas de base” e lutou contra a di-tadura. “Hoje, avaliamos que o governo Lula teve avanços, mas falta muito ainda. O problema é que a mídia não dá desta-que a algumas das nossas ações. Fizemos uma manifestação em Brasília, que reu-niu mais de 20 mil estudantes, contra a política econômica de Lula. Pedimos em público a saída de Henrique Meirelles do Banco Central, mas nada disso veio à tona”, revela o estudante, citando, ain-da, a luta que a UNE travou, nos últimos anos, contra o Ministério da Educação, para fazer avançar a qualidade do sis-tema educacional brasileiro. “Contudo, é importante dizer que o governo atual nos recebe para o diálogo, enquanto no tempo de Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Educação, Paulo Renato,

Breve cronologiaNovembro de 1964A Lei Suplicy de Lacerda, de 9/11, coloca a UNE e as UEEs na ilegalidade, que passam a atuar na clandestini-dade. Todas as instâncias da representação estudantil ficam submetidas ao Ministério da Educação.

Início de 1965A UNE convoca um conselho para eleger, com mandato-tampão, o presidente que a dirigirá até o 27º Con-gresso, em julho. Alberto Abissâmara, de tendências progressistas, é escolhido.

Julho de 1965O 27º Congresso da UNE, em São Paulo, elege o paulista Antônio Xavier. É realizada uma campanha do mo-vimento estudantil contra a Lei Suplicy de Lacerda.

Julho de 1966. Mesmo na ilegalidade, é realizado o 28º Congresso da UNE, em Belo Horizonte (de 28/7 a 2/8), que marca a oposição da entidade ao Acordo MEC-Usaid. O congresso acontece no porão da Igreja de São Francisco de Assis e o mineiro José Luís Moreira Guedes é eleito presidente.

Outubro de 1971Em plena vigência do AI-5, ocorre na clandestinidade o 31º Congresso da UNE, que elegeu presidente Hos-nestino Guimarães, morto em seguida pela ditadura. Este Congresso foi reconvocado seis anos depois.

1976Começam os debates para o I Encontro Nacional de Estudantes (ENE), que visava a reconstrução da UNE.

Março de 1977Os estudantes voltam às ruas, com uma passeata que reuniu quatro mil, em São Paulo, intensificando a luta contra a ditadura.

Outubro de 1978O IV Encontro Nacional de Estudantes, realizado em São Paulo, aprova a comissão Pró-UNE.

Maio de 1979O 31º Congresso da UNE, em Salvador, marca a retomada da entidade. O baiano Rui César Costa Silva é eleito presidente da entidade.

Fonte: Projeto Memória do Movimento Estudantil (www.mme.org.br/), organizado pela União Nacional dos Estudantes em colabo-ração com a Petrobrás, a Fundação Roberto Marinho, o Museu da República e a TV Globo.

Congresso histórico de reconstrução da UNE completa 30 anos. Muitas bandeiras do movimento estudantil mantêm-se vivasaté hoje.

batia a porta na nossa cara”, enfatiza Au-gusto Chaves.

Qual política?Ao abordar o futuro do movimen-

to estudantil, Maria Paula avalia que a política ainda atrai os jovens, mas uma política de outro tipo. Aponta a esfera institucional como inteiramente des-gastada e desacreditada, não apenas pelos jovens. Para a docente, o que atrai os jovens para a política, hoje, são as mesmas questões de sempre, ligadas às idéias de liberdade, justiça e igualdade. Mas essas bandeiras não estariam lo-calizadas mais nos partidos políticos,

e sim em movimentos sociais e culturais, projetos e ações comuni-tárias, na luta pela defesa do meio ambiente e pelos direitos iguais para negros e índios. “Essa é outra forma de pensar a polis e as questões polí-ticas. Não sei se a atual diretoria da UNE está atenta a essas novas práti-cas, mas é o que percebo nas ações dos jovens ao meu redor”, analisa a professora.

Já para o presidente da UNE, o futuro

do movimento estudantil é conti-

nuar a luta para ampliar as conquistas dos estudantes e por um

Brasil justo e democrático. Ele assinala que, nos anos 1980 e 1990, o neoliberalis-mo tentou acabar com as formas coletivas de organização, mas os seus alicerces eco-nômicos ruíram. “O que vimos no último congresso é que o movimento está muito vivo e os estudantes com muita vontade de lutar por seus interesses e pela sobera-nia do Brasil”, completa Chagas.

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Outubro 2009UFRJJornal da 26 Outubro 2009

no centro das atençõesA criança

Embora o dia 12 de outu-bro tenha sido oficializado como o Dia da Criança em

1924, por decreto do presidente Ar-tur Bernardes, a data ganharia visibi-lidade apenas em 1960 graças a uma promoção comercial – a “Semana do Bebê Robusto” – de duas conhecidas fabricantes de produtos infantis. Des-de então, a infância passou a ser alvo de agressivas estratégias de venda e foi alçada pelo mercado em expan-são no Brasil, à semelhança do que já ocorria em economias capitalistas mais pujantes, à condição de valioso segmento consumidor. Nas famílias mais abastadas, de fato, a criança che-ga a ter hoje uma influência de 80% nas decisões de compras do lar, se-gundo pesquisa da TNS InterScience - Informação e Tecnologia Aplicada.

Por outro lado, o poder público pressionado por setores sociais que desejavam que a criança antes de ser consumidora exercesse a sua cidada-nia, pelo menos nas leis, passou a dis-pensar atenção especial à infância. A

A infância não é um fenômeno natural e eterno. Para muitos pesquisadores é um conceito que se forjou historicamente, com a ascensão da burguesia ao poder.

Coryntho Baldez

Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, criaram condições legais para que o Estado assegurasse os direitos elementares da criança e a colocasse a salvo de toda forma de negligência, discriminação e exploração. Como a previsão legal não garante, por si só, a efetivação do direito, o traba-lho infantil, por exemplo, ainda afeta um contingente de 4,452 milhões de menores entre 5 e 17 anos de idade, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2008, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 18 de setembro passado.

A construção da infânciaMas, se hoje a infância desperta

interesses distintos, seja de um mer-cado sedutor e voraz ou de setores públicos e sociais empenhados em protegê-la, nem sempre foi assim. Mesmo porque o conceito de infân-cia, para muitos especialistas, não é um fenômeno natural, mas uma

construção histórica. Segundo Pa-trícia Corsino, professora adjunta da Faculdade de Educação (FE) da UFRJ, os estudos acerca das crianças ganham relevância a partir do sécu-lo XIX. Mas foi no século XX que as pesquisas da Psicologia, da Antropo-logia, da Sociologia, da Filosofia, da Linguística, entre outros campos do conhecimento, produziram as mais ricas contribuições para que se possa pensar a infância. “Há quem diga que este foi o século da criança, tal a ên-fase dos estudos dada a elas”, observa a pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFRJ e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja-neiro (PUC-Rio).

Patrícia Corsino cita o livro “His-tória social da criança e da família”, de Philippe Ariès, lançado em 1973, para reforçar a ideia de que a infância, no sentido de diferenciação do adulto, é uma construção da modernidade. Tal conceito, para Ariès, teria surgido de modo incipiente ainda no fim do

século XVII, nas camadas superio-res da sociedade, e se sedimentado no século seguinte. “De acordo com este autor, na Idade Média, assim que a criança tornava-se mais autônoma em relação aos cuidados da mãe ou da ama, logo se inseria na sociedade dos adultos, participando dos seus traba-lhos e jogos. Observando as pinturas da época, vemos crianças e adultos dividindo o mesmo espaço, as mes-mas atividades e o mesmo vestuário, numa grande sociabilidade. A única diferença está no tamanho das figuras representadas”, afirma Corsino.

As crianças, segundo a docente, adquiriam os seus conhecimentos junto aos adultos, sendo entregues muitas vezes a famílias desconheci-das para que fossem educadas, pres-tassem serviços domésticos ou apren-dessem algum ofício. Não havia escola na Idade Média dirigida especifica-mente à criança. “Segundo Ariès, foi a partir de uma série de mudanças na sociedade, como a ascensão da burguesia, a difusão do impresso e o

Sociedade

Márcia Carnaval/Imagem UFRJ

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Outubro 2009Outubro 2009 27Outubro 2009 UFRJJornal da

“Hoje, as crianças despertam o

interesse tanto do mercado, que

as trata como consumidoras,

como de setores empenhados

em garantir os seus direitos de

cidadania”.

crescente interesse pela alfabetização e a moralização, que ocorre a sepa-ração entre criança e adulto”, frisa a pesquisadora. Então, a criança seria mantida à distância antes de ser sol-ta no mundo, numa espécie de qua-rentena: a escola, para o historiador francês, era percebida como o lugar inicial do longo processo de clausura. E isso somente foi possível, segundo Ariès, com a cumplicidade da famí-lia, que passou a experimentar uma afeição pela criança, trazendo para si a responsabilidade por sua proteção e formação; tornando-se nuclear.

A infância no BrasilPatrícia Corsino realça que, ape-

sar de importantes e inovadoras, ao identificarem o sentimento de in-fância como construção histórica, as pesquisas de Ariès sofreram críticas na época de sua publicação. Foram acusadas de refletirem uma realida-de européia que, embora tivesse forte influência no mundo ocidental, não pode ser generalizada ou transporta-da mecanicamente para outras reali-dades sociais, como a brasileira.

“Desde os primórdios da coloni-zação, as diferenças contrastantes da nossa sociedade, pela distribuição de renda e de poder, fizeram emergir in-fâncias distintas para classes sociais também distintas. O significado so-cial dado à infância não foi homogê-neo pelas próprias condições de vida de nossas crianças. Portanto, usando as palavras de Mary Del Priori, his-toriadora brasileira, a historiografia internacional pode servir de inspira-ção, mas não de bússola para orientar a construção deste sentimento entre nós”, analisa Patrícia Corsino.

Para ela, a história da criança brasileira foi feita à sombra de uma sociedade que viveu quase quatro sé-culos de escravidão, tendo a divisão entre senhores e escravos como de-terminante da sua estrutura social. Portanto, na história do Brasil, a es-colarização e a emergência da vida privada burguesa e urbana não pode-riam ter sido e não foram os pilares sustentadores da construção do nos-so sentimento de infância.

A inadequação das teses europeias à realidade brasileira, no entanto, de acordo com a professora, permite compreender que o nosso sentimento de infância foi sendo construído na mesma lógica dicotômica escravista de senhores e escravos, repleta de dis-torções e fruto de desigualdade. As-sim, enquanto os filhos dos senhores mandavam e o adulto escravo obede-cia, os filhos de escravos, de mestiços e de imigrantes, diante da pobreza e da falta de escolarização, trabalha-vam.

Como resultado desse processo histórico, o Brasil hoje é um país que ainda não reconheceu completamen-te as crianças como portadoras de direitos, inclusive o de acesso a bens culturais. Para Georgina Martins, que

integra a equipe de Literatura Infantil da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, a questão de fundo, que merece des-taque, diz respeito às diversas con-cepções de infância no país. “Criança pobre, ainda que a família disponha de alguma fonte de renda, torna-se mais um braço de mão-de-obra e, em função disso, não sobra espaço nem tempo para que ela possa usufruir de bens culturais, sobretudo se os pais não têm condições de valorizar o conhecimento como algo im-portante para a formação. Nesse aspecto, a criança que trabalha não é vista como criança, logo não tem direito à infância como têm as crianças que não precisam trabalhar”, afirma Georgina, auto-ra de livros infantis e doutoranda em Literatura Brasileira.

Patrícia Corsino concorda que foi sob a égide de uma socieda-de estratificada que foram sendo construídas as muitas histórias das crianças brasileiras. De acor-do com a pesquisadora, a recons-tituição do cotidiano infantil dos diferentes grupos sociais e regio-nais tem permitido conhecer a traje-tória histórica dos comportamentos e das formas de ser da criança brasi-leira, desconstruindo a ideia de uma natureza ou essência infantil idealiza-da e universal, tão difundida pela Pe-dagogia. “Nas histórias individuais e

coletivas das crianças brasileiras não há uma resposta única às perguntas sobre o que significa ser criança e quando deixamos de ser crianças e nos tornamos adultos”, questiona a pesquisadora.

Apesar de evitar generalizações, Patrícia Corsino afirma que um con-junto de situações sociais, políticas e

das para a Infância (Unicef). “A De-claração Universal dos Direitos das Crianças, de 20 de novembro de 1959, ao traçar os seus direitos, sintetizados em proteção, provisão e participação, define uma concepção de infância”, constata Corsino, que é autora da tese de doutorado “Infância, linguagem e letramento: a educação infantil na

rede municipal de Educação do Rio de Janeiro”.

Para a professora, o Brasil re-conheceu os direitos das crian-ças e jovens e possui uma legis-lação avançada. A Constituição Federal e o ECA – frisa – insti-tuem outro olhar para elas, que se traduz no conceito de prote-ção integral, concebida como prioridade absoluta. Corsino aponta avanços no Brasil em re-lação a muitos aspectos, como a diminuição da mortalidade infantil e das taxas de fecundi-dade, a quase universalização da escolaridade obrigatória e a in-clusão das crianças de seis anos de idade no processo de escola-rização obrigatória. “Mas ainda

falta muito para conferir cidadania de fato a todas as crianças brasilei-ras. Faltam melhores condições de vida e diminuição das desigualdades sociais e políticas em grau suficiente para transformar a realidade social”, conclui a educadora.

Muitas propagandas insidiosas de linhas de produtos infantis invadem as telas da televisão brasileira às véspe-ras do Dia da Criança. Ao comentar a possibilidade de serem presas fáceis de apelativas estratégias de marketing, Patrícia Corsino lembra que as crianças são hoje concebidas como agentes sociais plenos e, portanto, “agem no mundo e também consomem”. A mídia sabe disso e se dirige diretamente a elas, destaca. “Mas sua autonomia é relativa. Consomem o que os pais e adultos responsáveis autorizam. Cabe aos adultos negociar as escolhas, colocar seus pontos de vista em discussão. Tudo isso dá trabalho e demanda tempo, diálogo, relacionamento familiar. A questão está também na relação entre adultos e crianças. Que tempo os adultos dispensam às crianças?”, indaga a professora da Faculdade de Educação da UFRJ.

Para Georgina Martins, a primeira questão que surge quando se debate a influência da propaganda sobre a infância refere-se, também, à própria autonomia da criança, “que em termos legais não é autônoma, tampouco do ponto de vista da proteção”. Lembra que vivemos numa sociedade capitalista, de regras postas pelo mercado: “É ilusório pensar que a criança pode ficar livre dessa influência, embora seja isso que gostaríamos que ocorresse, o que somente seria possível numa outra sociedade”, observa a especialista da Faculdade de Letras da UFRJ. Como autora de livros infantis, vê também com pesar o fato de não haver propagandas de livros para crianças. “Quando há, são sempre modestas, em geral ligadas a novelas, filmes e aos demais produtos de consumo”, critica a autora.

Rosa Gens, professora da Faculdade de Letras da UFRJ, tem a mesma opinião de que o papel da literatura in-fantil na formação das crianças poderia ser valioso e melhor explorado. “Há várias vertentes de ideias. Podemos perceber a importância da literatura infantil no desenvolvimento da imaginação, no despertar da fantasia, na compreensão e na interpretação do mundo, e na preparação para a ‘vida real’. E também para o desenvolvimento cognitivo e a fixação de habilidades de leitura”, completa a coordenadora do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras.

econômicas, além de estudos especí-ficos, deram origem a uma ideia mais global de infância, endossada por organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Fundo das Nações Uni-

Consumidoras, mas de quê?

Sociedade

Imagem UFRJ

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Outubro 2009UFRJJornal da 28

PagúA estrela esquecidaagú tem uns olhos moles / uns

olhos de fazer doer. / Bate-coco quan-do passa. / Coração pega a bater./ Eh Pagú eh!/ Dói porque é bom de fazer doer (...)”. Dessa forma, Raul Bopp, poeta modernista, definiu Patrícia Galvão, no poema “Coco de Pagú”, de 1928.

Pagú, apelido dado pelo próprio Bopp, foi uma das musas do Movi-mento Antropofágico da década de 1930 e ganhou notoriedade por ter sido o estopim do divórcio entre Tar-sila do Amaral e Oswald de Andrade, dois célebres personagens da Sema-na da Arte Moderna de 1922. O que poucos sabem é que, para além da beleza e das intrigas pessoais, Patrícia Galvão deixou uma obra literária plu-ral, marcada pela intensidade.

Ela iniciou cedo sua vida pública. A paulista de São João de Boa Vista demonstrava, desde a adolescência, certa inclinação para a literatura. Tanto é que, aos 15 anos, colabora-va com textos para o jornal Brás. Já nessa época passou a adotar a marca indelével de suas obras: os pseudôni-mos. Patsy, Mara Lobo e King Shelter foram alguns dos apelidos que assi-naram as obras da escritora. “Ela gos-tava muito de brincar com os nomes, de ser outra pessoa. Era uma maneira de expressar sua multiplicidade, ma-nifestada tanto na literatura como na vida. Pagú vivenciou várias fases num mesmo momento histórico. Era plural e mostrava suas facetas”, explica Rosa Gens, professora do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ.

Romance proletárioParque industrial, de 1933, foi o

livro mais expressivo da obra de Pa-trícia Galvão. Considerado o primei-ro romance proletário da Literatura Brasileira, une a temática política à estética da narrativa modernista. Abusando de parágrafos curtos e de pontuação frenética, Pagú aborda a luta de classes ao descrever o cotidia-no de trabalhadores durante o proces-so de industrialização em São Paulo.

Apesar de proveniente de família burguesa, na opinião de Rosa Gens, a autora conseguiu descrever a aura de exploração que se abatia sobre o proletariado do início do século XX. “Pagú queria mostrar o ser proletário. E conseguiu. Não me interessa dizer se Parque Industrial é uma obra de alta literatura; o que importa é o livro ter se fixado. Ele é quase um documento da época”, salienta a professora.

No decorrer da carreira literária, no entanto, Patrícia Galvão se afasta do compromisso político. À medi-da que se desilude com as propostas comunistas, passa a tratar outras te-máticas. Romances policiais, textos autobiográficos, poesias. A escritora,

Aline Durães

P

assim como a mulher, se reinventa. “Pagú se move o tempo todo pelo emotivo, pelo sentimental. Ela busca transformação. Nunca é a mesma. Chega ao momento em que não in-teressa mais a ela passar a imagem de revolucionária”, ressalta Rosa Gens.

Militância e prisõesAo longo dos seus 52 anos, Pa-

trícia Galvão passou 22 vezes pela prisão. Foi em Buenos Aires, no fim da década de 1920, que ela teve seu primeiro contato com as ideias socia-listas. Em viagem à cidade, conheceu Luís Carlos Prestes e, ao retornar ao Brasil, ingressou no Partido Comu-nista Brasileiro (PCB). O estilo de vida luxuoso e as festas deram lugar à militância intensa.

Pagú chegou a morar em uma vila operária e a trabalhar como lanterni-nha em um cinema para, assim, expe-rimentar o modo de vida proletário. Viajou o mundo em prol da ideologia pela qual lutava, mas se decepcionou com a pobreza que verificou em algu-mas regiões. Em um trecho do livro Verdade e liberdade (1950), a escrito-ra deixa transparecer sua desilusão: “Em Moscou, um hotel de luxo para os altos burocratas, os turistas do co-munismo, para os estrangeiros ricos. Na rua, as crianças mortas de fome: era o regime comunista”.

Vida de antropofagia Injustamente, Pagú passou para

a história como a amante do escri-tor Oswald de Andrade. Ainda casa-do com a pintora Tarsila do Amaral, Oswald manteve um romance com a jovem Patrícia Galvão. Por ele Pagú teve acesso ao Movimento Antro-pofágico. Chegou a escrever para a Revista da Antropofagia, criada pelo

escritor para difundir o movimento que, entre outras coisas, pregava a “deglutição” — e não a imitação — da cultura externa pelos artistas brasilei-ros.

A vida pessoal de Pagú e em es-pecial seu envolvimento com o poeta “antropofágico” fugiam aos moldes da sociedade paulista dos anos 1930. Rosa Gens conta que a intenção do ca-sal era, por vezes, chocar os mais con-servadores: “Tanto é que eles casam em um cemitério. Oswald gostava disso. Era o palhaço da burguesia. Mas é claro que a elite não aceitaria a relação deles. O ca-sal enfrentou preconceitos; prova disso é que, embora tivesse uma tese magnífica, Oswald nunca conseguiu ser catedrático da USP”, observa a professora.

A união com Oswald, finda depois de cinco anos, em 1935, rendeu um fi-lho a Pagú. A escritora casou-se nova-mente com o jornalista Geraldo Ferraz, com quem teve o segundo filho e viveu

até sua morte, em 1962. Mas o espectro do romance com o poeta modernista continuou a rondar a figura pública de Pagú; suas obras literárias, inclusive. “Houve uma explosão Pagú, nos anos 1970 e em parte dos anos 1980, impulsionada por sua figura públi-ca; ela atendeu aos propósitos femi-nistas de libertação da mulher. Mas, posteriormente, a escritora caiu no esquecimento. Para se ter uma idéia: desconheço pesquisas feitas no Rio de Janeiro acerca dela. Isso mostra que, por vezes, a imagem pública apaga a imagem criadora. As obras de Pagú estão esgotadas, as biogra-fias também, o livro Parque indus-trial foi reeditado pela José Olym-pio, em 2006. Mulheres como ela, que não tiveram vergonha de expor publicamente o que eram, devem ser recuperadas. Pagú foi uma estrela, em todos os sentidos. E não do cinema, mas da vida”, conclui Rosa Gens.

Persona