g u e rra , t e rro r, julgam ento*

36
Os desafios provocados pelo ataque suicida e assassino às Torres Gêmeas no Lower M anhattan e ao Pentágono em Washington,D.C., foram mais profundos para as considerações prevalecentes no julga- mento polí tico. O que fazer desses atos dramáticos de violência?Em que bases pode- ríamos compreendê-los e encaixá-los nas nossas expectativas a res- peito de como o mundo se revelaria depois da virada do milênio?Em que bases poderíamos enfrentá-los,tomando-os como desafios aos critérios predominantes da ação polí tica legí tima?Como atos de vio- lência que,embora contrariando o senso comum de ilegitimidade ge- 297 * Publicado em Bulent Gokay e R. B. J. Walker (eds.), September 11, 2001: War, Terror and Judgement. L ondon, F rank C ass, 2 0 0 3 . A ceito p ara p ublicaç ã o em outubro de 2 0 0 3 . T raduç ã o de M arisa Gandelman. ** Prof essor de C iê ncia Política e diretor do C ultural S ocial and Political T h oug h t Prog ram da U niv ersity of V ictoria, C anadá , e p rof essor de Relaç õ es I nternacionais da U niv ersity of K eele, Grã - Bretanh a. CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro,vol.25,n o 2,julho/dezembro 2003,pp.297-332. G u e r r a , T e r r o r, J u lg a m e n to * R . B . J. W a lk e r * *

Upload: vulien

Post on 12-Feb-2017

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Os desafios provocados pelo ataque suicida e assassino às Torres

Gêmeas noLowerM anhattan e aoPentágono em Washington,D.C.,

foram mais profundos para as considerações prevalecentes nojulga-

mento político.

Oque fazer desses atos dramáticos de violência?Em quebases pode-

ríamos compreendê-los e encaixá-los nas nossas expectativas a res-

peito de como omundo se revelaria depois da virada domilênio?Em

que bases poderíamos enfrentá-los,tomando-os como desafios aos

critérios predominantes da açãopolítica legítima?Como atos de vio-

lência que,embora contrariando o senso comum de ilegitimidadege-

297

* Publicado em Bulent Gokay e R. B. J. Walker (eds.), September 11, 2001: War, Terror and Judgement.

L ondon, F rank C ass, 2 0 0 3 . A ceito p ara p ublicaç ã o em outubro de 2 0 0 3 . T raduç ã o de M arisa Gandelman.

** Professor de C iê ncia Política e diretor do C ultural S ocial and Political T h oug h t Prog ram da U niv ersity

of V ictoria, C anadá , e p rofessor de Relaç õ es Internacionais da U niv ersity of K eele, Grã -Bretanh a.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro,vol.25,no2,julho/dezembro 2003,pp.297-332.

G u e r r a , T e r ro r,Ju lg a m e n to *R . B . J. W a lk e r * *

ral da violência, ocorreram em um mundo em que a vida da maior

parte das pessoas, em última instância, se apóia em uma disposição,

muitas vezes tácita, outras vezes explícita, de usar a violência em es-

cala ainda maior do que a que se viu naquele dia assombroso de se-

tembro? Baseados em quê fomos encorajados a compreendê-los por

meio de narrativas que começaram a ganhar coerência nos comuni-

cados oficiais e nos noticiários depois de alguns dias de desordem

conceitual frenética? Em que bases podemos refletir sobre nossas

próprias habilidades para questionar o espaço que a violência ocupa

na vida política contemporânea, considerando-se a ferocidade da vi-

olência e da contraviolência expressa especificamente nessa série de

eventos?

Muitas das respostas a estas questões foram oferecidas por atores po-

líticos e comentaristas que ocupam todo o espectro do debate político

e ético vigente. Felizmente, nem todas elas foram tão incipientes

como aquelas usadas para justificar a ação militar adotada por Bush,

Blair e por vários outros governos. Tampouco, também felizmente,

tem sido fácil alcançar credibilidade, por meio da articulação de acu-

sações igualmente incipientes e grosseiras, a respeito da resposta vi-

olenta que esses governos deram à violência.

Com exceção daqueles que estavam completamente cegos aos pa-

drões conflitantes e conflituosos do mundo contemporâneo, ou da-

queles preparados para aceitar o incrível sentido de autojustificabili-

dade demonstrado tanto nesses eventos específicos como na reação

oficial a eles, nossa resposta a toda essa violência necessariamente

leva a algumas questões muito difíceis a respeito das bases sobre as

quais faremos agora julgamentos políticos, ou que teremos nossos

julgamentos feitos por aqueles que alegam ter autoridade para fazer

julgamentos políticos.

Pelo menos em alguns lugares, o recurso ao moralismo fácil tor-

nou-se um forte sinal de falência política e ética em qualquer dos la-

R. B. J. Walker

298 �������� ���������� � � �� ��� � �� � � �� � � � �� � �

dos do debate. Tomo isto como uma das poucas coisas positivas que

se pode dizer sobre aqueles eventos e suas conseqüências imediatas.

No entanto, embora possamos ser cuidadosamente positivos sobre o

grau de resistência que muitas pessoas têm conseguido manter diante

dos fáceis moralismos preferidos por tantas elites políticas, tor-

nou-se muito difícil encontrar qualquer tipo de fundamento sobre o

qual possam ser desenvolvidos julgamentos políticos mais responsá-

veis, tanto em relação a esse conjunto de eventos, como em relação à

dinâmica da (des)ordem internacional/global contemporânea.

Algumas das questões mais difíceis com as quais nos defrontamos

são familiares, e há muito vêm deixando os pensadores modernos

bastante desconfortáveis, porém não o suficiente. Elas têm origem

nos critérios aceitos como válidos que compõem os pressupostos so-

bre a necessidade e a legitimidade ética da violência em um mundo

moderno de Estados soberanos. Em última instância, essas questões

se apóiam na hipocrisia fundamental, nos padrões duplos institucio-

nalizados, por meio dos quais o mundo moderno, em geral, e os libe-

rais, particularmente, vêm tentando alegar padrões universais de ver-

dade e justiça, embora eles defendam argumentos paroquiais, de seus

próprios Estados-nação, sobre verdade e justiça. Deus, ou civiliza-

ção, ou a virtude, está sempre do lado de alguém e conhecemos muito

bem o que isto significa para aqueles do lado de quem não está.

Algumas questões, em segundo lugar, têm a ver com a dificuldade de

se interpretar a dinâmica estrutural do poder e da autoridade na or-

dem global contemporânea. Os Bushes e os Blairs podem falar como

se estivessem atuando em um mundo de Estados soberanos e moldar

suas retóricas de acordo com isso. No entanto, nós, assim como eles,

sabemos o suficiente sobre globalização, militarização e desigualda-

des em escala global para dar um desconto às suas retóricas, embora

provavelmente não o bastante para fazer surgir uma explicação mais

coerente sobre um mundo que passou a ser demasiadamente comple-

Guerra, Terror, Julgamento

299

xo para ser reduzido às categorias simplistas dos escritores de discur-sos e dos livros-texto de relações internacionais.

Conseqüentemente, em terceiro, mesmo aqueles que estão acostu-mados a lidar com a hipocrisia estabelecida da vida política modernaencontram dificuldades, quando tentam responder aos eventos de 11de setembro com base nas formas de internacionalismo que, emborasejam especialmente populares entre os homens de Estado, advoga-dos, acadêmicos e comentaristas na Europa e em muitos outros luga-res, parecem fundamentar-se em premissas sobre a organização polí-tica do mundo que não se encaixam no que a maior parte das pessoasintui a respeito do que está se passando. Éaqui que as dificuldades dejulgamento são mais intensas. Independentemente de quais sejam asespecificidades do 11de setembro, elas devem ser entendidas comoparte de um padrão mais amplo de eventos que expressam desafiosprofundos para as motivações da violência legítima em um sistemade Estados modernos soberanos que são aceitas como válidas. Essesdesafios não são novos. No entanto, o tipo de crise precipitada pelosdramas daquele dia oferece um grau de aprofundamento em um pro-cesso que muitas pessoas percebem apenas vagamente, e que esca-pam até mesmo às mais sofisticadas formas de análise política. Tate-ando na luz ofuscante das novas ordens mundiais, da globalizaçãoem expansão, de uma nova paz liberal e uma civilização aparente-mente vitoriosa, um lampejo na escuridão revela novos pactos de vi-olência, e ainda mais violência.

Aqui, faço alguns breves comentários sobre cada uma dessas trêsfontes de incerteza para os fundamentos de nossos julgamentos, an-tes de concluir com um comentário ainda mais breve sobre a relaçãoentre a dificuldade de se fazer julgamentos nesse caso e um conjuntomais amplo de preocupações a respeito da possibilidade de uma prá-tica política significativa sob as condições contemporâneas –talvezhegemônica, talvez quase-imperial, bastante familiar em alguns as-pectos, mas em outros completamente desconcertantes.

R. B. J. Walker

3 0 0 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

Muitos julgamentos sobre os eventos específicos de 11 de setembroforam articulados:alguns sábios, outros bastante irresponsáveis. Osjulgamentos a respeito desses julgamentos variam. Do meu ponto devista, a sabedoria combinou genericamente algum sentido de tradi-ção de internacionalismo com uma noção de que esses eventos espe-cíficos precisam ser colocados em um contexto histórico e estruturalmais amplo, enquanto a irresponsabilidade foi disfarçada na roupa-gem familiar de hipocrisia nacionalista mascarada de moralidadeuniversal. No entanto, ao final, muito da dificuldade de se fazer julga-mentos nesse caso surge de uma fragilidade mais ampla no consensointernacionalista estabelecido e dos padrões das transformações es-trutural-históricas que desafiam, há bastante tempo, os critérios deautoridade legítima que são aceitos como válidos.

Hipocrisias Modernas

Os ataques em Nova Yorke Washington provocaram uma sensaçãode afronta em quase, porém não em todos, os lugares. De fato, paramuitas pessoas, os fundamentos do julgamento eram tão claros e fir-mes quanto é possível imaginar. Para a maioria dos americanos –abatidos pela primeira vez com tanta violência dentro de seu próprioterritório, e contra símbolos tão importantes de poder e autoridadepolítica –, a afronta continua sendo o único fundamento sério para ojulgamento. Nos Estados Unidos, especialmente, o julgamento polí-tico tem sido poderosamente moldado por um elemento ético de re-vanche. Esta ética foi amplificada pela mídia de massa cruelmentemanipuladora, pela profunda incompreensão entre muitos – mas cer-tamente não entre todos os americanos – de seus efeitos no mundomaior, por uma variedade de peculiaridades distintivas da culturaamericana e pela mobilização de sentimentos nacionalistas e patrió-ticos que fazem parte de um intimidante exercício um pouco pareci-do com state-building. Em troca, essa ética serviu para legitimar umaexibição maciça de poder militar e diplomático e para deslegitimar

Guerra, Terror, Julgamento

301

qualquer política que desafie as decisões soberanas do regime Bush.Não há dúvida de que naquele momento específico de crise, e duran-te alguns meses seguintes, a política foi condensada em um “decisio-nismo”impressionante: um “decisionismo”, vale dizer, que traz devolta à lembrança muitos dos piores momentos da história do séculoXX. Uma emergência foi declarada, um inimigo foi definido, a vio-lência foi desencadeada, a democracia foi mais uma vez subordinadaàs alegações de necessidades de Estado.

Entretanto, a vida política nunca é tão simples, mesmo em estado deemergência, e mesmo para aquele que parece ser o maior dos grandespoderes. Que tipo de emergência era essa? E para quem? Que tipo dedecisão foi tomada? Que tipo de violência foi desencadeada? Comque tipo de ambição e de legitimidade?

Conforme vários comentaristas observaram quase imediatamente,eventos como esses não acontecem por mágica ou por força dos de-mônios. São episódios que fazem parte de uma série mais ampla deeventos, processos, estruturas, necessidades e liberdades. As deci-sões que respondem a um evento específico, isolado, colocam em ris-co o julgamento político e possibilitam sua substituição por uma éti-ca do compromisso (Weber, 1994) – nos termos que Max Weber usoupara capturar a contradição definidora da vida política moderna no fi-nal da Primeira Guerra Mundial. Não surpreendentemente, a princi-pal resposta crítica à imediata ética da revanche que parecia dirigir oregime Bush foi a contextualização dos eventos, atraindo a atençãopara outras exibições de violência ultrajantes, muitas delas com o en-volvimento americano explícito e brutalmente imperdoável. As res-postas críticas buscavam se desembaraçar de vários padrões de cau-salidades históricas e estruturais que podem, de alguma maneira, ex-plicar a violência que simplesmente não fazia sentido para muitaspessoas, exceto nas categorias religiosas de bem e de mal: categoriasque privilegiam uma teologia de salvos e condenados em detrimentode todas as categorias políticas que o mundo moderno vem constru-

R. B. J. Walker

302 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

indo tão cuidadosamente para evitar a degeneração da política emguerras de religião de convicção ética.

Aqui chegamos ao âmago do problema. Há muito que os apelos àsconvicções autojustificáveis vêm sendo entendidos como um meioefetivo de mobilizar apoio para fins políticos, especialmente em mo-mentos de crise. No entanto, desde o fim das guerras religiosas do sé-culo XVII na Europa, ou mesmo desde que o surgimento do huma-nismo renascentista desafiou a autoridade religiosa em nome de umacomunidade política secular, uma das principais ambições da políti-ca moderna tem sido evitar a redução da política a qualquer ética sim-ples de convicção. Por isso, a Paz de Westphalia de 1648, no fim daGuerra dos Trinta Anos – uma guerra disputada principalmente emfunção de fundamentos religiosos –, é vista tão freqüentementecomo o momento fundador básico das relações internacionais mo-dernas. Diz-se que as guerras religiosas são especialmente sórdidas,e as considerações modernas das relações internacionais são afirma-das sobre premissas de que é possível mitigar sua maldade por meioda construção de instituições puramente seculares e formas de Esta-do que se fundamentem em modos mais triviais de auto-interesse ede acomodação pragmática.

É claro que, na prática, os sentimentos religiosos, ou quase religio-sos, freqüentemente, ameaçam submergir em uma política de poderpuramente secular. Tanto o nacionalismo como as lutas ideológicasdo período da Guerra Fria, demonstraram formas muito poderosas,apesar de secularizadas, de convicção religiosa e de autojustificabili-dade, trazendo níveis extraordinários de violência e militarizaçãopara sociedades que se orgulhavam de sua civilização e ilustração. Avida secular moderna não é imune à dinâmica de autojustificabilida-de normalmente associada aos conflitos religiosos. A experiência dedestruição em massa do século XX representa uma advertência im-pressionante para todos aqueles comentaristas insensíveis que consi-deram de forma simplista o Islã como a fonte de todos os problemas

Guerra, Terror, Julgamento

303

contemporâneos ou que tentam fingir que a modernidade liberal nãotem sido cúmplice da violência. Contudo, as esperanças do internaci-onalismo moderno vêm se apoiando em uma aposta de que as estru-turas do sistema moderno de Estados soberanos seculares – demo-cracias amantes da paz, como somos encorajados a chamá-las – con-tinuam fortes o suficiente para impedir mais uma erupção de fervorideológico.

O dia 11 de setembro de 2001 marcou um momento no qual essaaposta começou a se mostrar excepcionalmente arriscada outra vez.Mostrou-se arriscada não somente porque esse momento foi desen-cadeado em nome de uma religião específica sobre partes de uma or-dem norte-americana/global, mas também porque a resposta do regi-me de Bush – o fato de todas as oposições às agendas políticas própri-as do Bush filho terem sido identificadas como nocivas, como susce-tíveis aos propósitos e ao status extremamente volúvel de terrorista –vai contra a própria índole de qualquer das considerações tradicio-nais a respeito do que significa agir de forma responsável em um sis-tema moderno de Estados soberanos. Ao mesmo tempo que é possí-vel ver a maneira como o apelo ao bem e o mal funcionam politica-mente – como uma tática para ser usada em estado de emergência,como um procedimento para promover o nacionalismo, o patriotis-mo, a construção do Estado e as escoras de regimes quase-democrá-ticos –, é possível ver também o resultado do enfraquecimento de po-líticas que guardam alguma semelhança com uma política responsá-vel para um sistema moderno de Estados seculares e democráticos.

Essa é uma dinâmica que remonta ao início do sistema moderno deEstados. Ela se expressa na tensão entre julgamentos enraizados emalgum tipo de ética religiosa privada e em uma ética ancorada na pre-servação de um Estado capaz de sustentar uma comunidade humanade pessoas éticas, e de um sistema de Estados capaz de garantir a va-riedade de possibilidades éticas na forma das diversas culturas quecompõem a comunidade de nações. É uma dinâmica que foi usada

R. B. J. Walker

304 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

exaustivamente no rastro dos ataques: entre o nacionalismo extremo,ou alguma coisa do gênero, da maior parte da administração Bush eas tendências mais internacionalistas de Colin Powell;entre Bush e amaior parte dos Estados europeus;e na tentativa de TonyBlair desustentar as duas posições simultaneamente, ou de fingir que interna-cionalismo bom é a mesma coisa do que defesa do bem contra o mal.É claro que Blair pode ser entendido como um ator político inteligen-te ao desempenhar um papel, amplamente aceito, de intermediárioentre os Estados Unidos e a Europa. Ele pode ser entendido tambémcomo alguém que está pessoalmente orientado mais por uma ética deconvicção do que por uma ética de responsabilidade política. Em umou outro caso, a intensidade com que ele conseguiu disfarçar a con-tradição central entre uma ética de convicção de que ele está ao ladode uma moralidade universal e uma ética de responsabilidade dentrode um sistema pluralista de Estados soberanos, diz respeito a uma di-nâmica mais importante do que a carreira de um político pequeno, ouo lugar de um pequeno Estado no mundo.

Muitas das questões de julgamento que são difíceis neste caso, po-dem ser compreensíveis em termos de algo como a distinção que We-ber faz entre uma ética de responsabilidade e uma ética de convicção.Aqueles que recomendaram cautela no recurso à violência, ou queinsistiram na importância de se manter uma coalizão internacional,ou a necessidade de se respeitar os procedimentos do direito interna-cional aceitos como válidos, ou a necessidade de contextualizar umevento violento em relação a outros muitos eventos violentos quecontinuam a ser uma parte normal da vida cotidiana de tantas pesso-as, tenderam a fazer julgamentos com fundamento na responsabili-dade internacional. Os outros que pensaram que tudo fosse uma sim-ples questão de bem e mal optaram por algo diferente: talvez pelo na-cionalismo e patriotismo virtuosos de seus próprios Estados;talvezpor um conjunto de valores que acreditavam que poderia ser aplicadoa todas as pessoas do planeta;ou, por ambos, o que é uma hipótese di-fícil e muito perigosa.

Guerra, Terror, Julgamento

305

Bush e até mesmo Blair foram francos proponentes da última posi-ção, a hipótese que é sempre complicada. Muitas vezes essa foi umaprerrogativa dos líderes dos Estados hegemônicos, daqueles Estadosque eram mais constantes do que os outros e que tinham mais respon-sabilidade pela manutenção de alguma aparência de ordem interna-cional. Ocasionalmente, essa foi uma prerrogativa dos Estados “re-volucionários”, aqueles que querem impor seus valores mais ampla-mente como condição para alcançar seu próprio status de hegemôni-co desejado. É claro que o perigo óbvio tanto para os Estados hege-mônicos como para os revolucionários é que ao se verem como maisconstantes e mais virtuosos do que os outros, eles se vejam mais emtermos de império do que de sistema de Estados.

Por isso, estas são as dificuldades mais assombrosas do julgamentopolítico neste caso. Não apenas porque podemos tentar responder aum assalto violento e seu resultado violento repetindo a luta conheci-da entre convicções justificadas e responsabilidade internacional,mas porque as verdadeiras bases sobre as quais a maneira de formu-lar julgamentos sobre o julgamento político se apóia podem estar emprocesso de abrir caminho para outra coisa. Esta possibilidade foi an-teriormente considerada muitas vezes, pelo menos em relação à eraclássica da PaxBritannica e da PaxAmericana, mas vem sendo in-vestigada com um vigor renovado desde o fim da Guerra Fria. Nessecontexto, ela foi examinada especialmente como uma pretensão a umhumanitarismo feito da combinação de aspectos selecionados do li-beralismo de direita e as considerações mais benignas a respeito daglobalização, que a tomam como um processo que, finalmente, estános levando para longe daquele mundo fora de moda de Esta-dos-nação em competição, que convivem com a escolha impossívelentre uma ética de convicção e uma ética de responsabilidade. Previ-sivelmente, essa pretensão foi desafiada como se fosse uma simplesimposição do mais poderoso. São desafios que tiveram apoio limita-do em razão da sua popularidade junto aos mais sanguinários ditado-

R. B. J. Walker

306 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

res, que buscam legitimidade sob o manto da soberania de Estado,mas que, no entanto, advertem contra modificações simplistas deuma comunidade pluralista de nações para qualquer Nova OrdemMundial, ou Paz Democrática, ou Fim da História, determinadas poruma pequena elite de governos altamente militarizados agindo emnome do bem comum.

É possível que estejamos vivendo em um mundo no qual todos osEstados são democráticos e amantes da paz, em que todos estão nocontrole de seus próprios assuntos domésticos e ainda estão milagro-samente unidos pelo tipo de convicção exposto tão orgulhosamentepor Bush e Blair. Ou, pelo menos, é possível que com apenas um pou-co de ajuda, e um pouco mais de violência, este seja o mundo que es-tará logo ali na esquina, tão logo nos livremos de mais alguns ditado-res sanguinários e de algumas pessoas que não acreditam completa-mente que Bush e Blair representam a última palavra em virtude hu-manitária. A partir de uma história como esta, poderemos restabele-cer alguma resistência para as bases sobre as quais fazemos julga-mentos políticos. Bush virá a ser conhecido como um grande interna-cionalista. O multilateralismo associado a Powell e, articuladamen-te, defendido por intelectuais do antigo establishment da política ex-terna, como Joseph Nye Jr. (2002), muito mais do que o unilateralis-mo revolucionário de Donald Rumsfeld e de outros pode, eventual-mente, ser julgado como a maneira apropriada de enunciar o lugar daAmérica na ordem política global. Coisas extraordinárias acontece-ram. Mas de todas as histórias que estão acontecendo no momento arespeito de onde o mundo se encontra agora, deve ser dito que estanão é a mais evidentemente convincente.

Mais Violência Ainda

A parte mais difícil da análise de qualquer evento político é decidirpor onde começar. Os atores políticos contam com a fraqueza da me-mória humana. Para todas as pessoas, com exceção dos mais ingênu-

Guerra, Terror, Julgamento

307

os, ficou imediatamente claro que nenhum comentário sério poderiacomeçar com o 11 de setembro de 2001. Fazer isso seria subestimartanto o significado desses eventos específicos, como a complexidadedos processos que os causaram. Se uma parte da dificuldade de se fa-zer julgamentos nesse contexto pode ser concebida em termos datensão tradicional entre uma ética de convicção e uma ética de res-ponsabilidade, uma parte adicional pode ser pensada em termos dadificuldade, cada vez maior, para se interpretar o contexto mais am-plo no qual as reivindicações contemporâneas a respeito de uma éticade responsabilidade podem ser entendidas agora.

Existem obstáculos óbvios a qualquer entendimento como este. Aspaixões do momento sempre tendem a nublar nossos julgamentosanalíticos. Tem sido muito difícil também conseguir informação bá-sica, e a informação que temos está muito claramente corrompidapela dinâmica da mídia de massa e pelas exigências da propaganda,especialmente em razão da convergência das tecnologias e práticasda informação e da comunicação com as novas formas de estratégiamilitar, de táticas e armamentos. Além disso, é muito fácil apelarpara situações que pensamos entender a fim de dar algum sentido aoseventos que parecem fugir à nossa compreensão. Muitas analogiasforam empregadas para dar sentido a esses eventos relacionadas como que se presume como lições da história. As analogias que os políti-cos dos Estados Unidos e do Reino Unido favoreceram inicialmentese referiam a um câncer que precisava ser extirpado e ao ataque aPearl Harbor, mas foram logo desafiadas por outras mais complexase preocupantes que se referiam: a um grande iceberg do qual o 11 desetembro era apenas uma pequena ponta; ou a uma estrutura muitoinstável de uma coluna de pratos; ou a 1914; ou a aspectos da Europanos anos 1920 e 1930; ou mesmo à queda do Império Romano. Quan-to mais os comentários buscavam fundamentos nas lições da história,mais a história parecia ser um guia traiçoeiro para uma situação queatraía, no mínimo, a mesma quantidade de alegações de novidade e

R. B. J. Walker

308 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

de continuidade. As imagens padronizadas das guerras entre Estadospareciam especialmente enganosas, da mesma forma que têm sido háalgum tempo, não obstante os recentes assaltos sobre o Iraque e aSérvia. Seria esta uma guerra apropriada ou um crime? Se fosse umaguerra, precisamente, quais seriam os Estados que estavam em guer-ra uns com os outros? Se um crime, precisamente, contra quem essecrime era cometido – a América? a humanidade? a modernidade? oliberalismo?

A confusão aumentou ainda mais na medida em que a resposta a umato específico de violência, rapidamente tomou a forma de um con-junto de conflitos. Até mesmo para um público normalmente engaja-do, ficou difícil manter a atenção na bola, em parte porque havia mui-tas bolas em jogo, em parte porque não estava claro se o jogo estavaacontecendo, nem exatamente onde estaria acontecendo. A respostaa um grupo específico de terroristas tornou-se uma guerra generali-zada contra o terrorismo (prometendo uma guerra mais ampla contratudo e todos, começando com o Iraque) e uma intervenção específicaem uma guerra civil no Afeganistão (prometendo, no entanto, outroexercício de state-building, um exercício de construção sobre umahistória mais longa e freqüentemente duvidosa a respeito de Estados“fracassados” e Estados “nocivos”, e que abre as portas para preocu-pações a respeito da relação problemática entre Estados fracassa-dos/nocivos e intervenção militar).

No início do mês de novembro, as vozes com poder de definição pa-reciam ter deixado o Departamento de Estado, que tinha orientaçãomais internacional, e se transferido para os militaristas mais intransi-gentes do Pentágono e que se encontravam entre os assessores maispróximos de Bush, e forças militares extraordinárias foram desenca-deadas sobre o território do Afeganistão, que é apenas um lugar entrevários lugares. No entanto, a clareza com que o poder estava centrali-zado e autorizado em Washington em detrimento de uma coalizão in-ternacionalista, ou de qualquer papel para os Estados regionais, ou

Guerra, Terror, Julgamento

309

para as Nações Unidas, fez a interpretação dos eventos tornar-semais difícil e contestável; ou talvez mais fácil e ainda mais contes-tável.

O fato de a destruição ter sido derramada naqueles locais específicosem Washington e Nova York aponta para uma estrutura ampla de sig-nificado na qual esses locais conquistaram um valor simbólico maci-ço. O fato de o dia 11 de setembro ter provocado uma guerra contra oTerror em qualquer lugar do mundo aponta para o contexto globalamplo desses eventos específicos. A identificação tão rápida do ini-migo com Bin Laden/Al-Qaeda aponta para uma rede muito maisampla e desordenada de conflitos, cujo centro poderia ser qualquerlugar – Arábia Saudita, de acordo com os discursos de causalidadeimediata; Afeganistão, de acordo com os discursos de localizaçãoimediata; Palestina/Israel, conforme os discursos de injustiça adja-cente; ou a geopolítica do petróleo, de acordo com os discursos do in-teresse oculto –, mas também, indiscriminadamente, qualquer lugaronde o Terror pudesse ser encontrado.

Existem várias maneiras de se tentar desenhar um quadro mais com-plexo do contexto no qual o 11 de setembro deve ser entendido e ava-liado. Sete formas de análise podem ser identificadas bem facilmen-te. Todas têm uma sustentação razoavelmente óbvia a respeito decomo se deve tentar dar significado aos ataques de 11 de setembro eos que se seguiram, mas está longe de ficar claro como poderão con-vergir em um quadro mais abrangente.

Primeiramente, podemos tentar entender a geopolítica de uma regiãoespecífica como um local crucial para as estruturas geopolíticas glo-bais. Aqui podemos focalizar especialmente na Arábia Saudita, re-conhecendo que embora tenham se manifestado fisicamente nos ter-ritórios dos EUA e do Afeganistão, tanto o assalto de 11 de setembrocomo muitos dos aspectos da guerra civil do Afeganistão tiveramsuas fontes imediatas na dinâmica que se desenvolvia lá na Arábia

R. B. J. Walker

310 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

Saudita. Ou na ferida supurada do Estado de terror israelense e no ci-clo infinito da resistência Palestina a décadas de colonialismo, o es-cândalo maciço e o contra-escândalo por meio do qual um conjuntomais amplo de injustiças na região tem sido perpetrado. Ou no Pa-quistão, como um outro Estado importante implicado na organiza-ção de redes específicas de terror. Ou em várias tentativas de descre-ver um modelo complexo de alinhamentos e realinhamentos, inclu-sive aqueles que envolvem Iraque, Irã, várias ex-repúblicas soviéti-cas, Somália, Sudão e Rússia.

Em segundo, podemos tentar reconhecer que essa geopolítica regio-nal complexa está ligada, de forma intricada, aos aspectos regionaisde uma economia política internacional em transformação. Aqui po-demos apontar para a geopolítica do fornecimento de energia, espe-cialmente em relação à importância relativa do petróleo no mundoárabe e na bacia do mar Cáspio, tanto a curto como longo prazo. Oupara os imperativos de uma economia de mercado globalizante, su-jeita à recessão e ao imperativo do consumo, à organização globaldos fluxos financeiros, às economias informais de todos os tipos decriação de riqueza, pelo menos aquelas que envolvem as organiza-ções criminais e as terroristas, e sujeita a uma mudança no papel doEstado e das instituições interestatais de governança na condução deum certo tipo de economia mundial.

Em terceiro, a necessidade de se entender os aspectos regionais deuma ordem internacional em transformação, na qual a lógica do sis-tema multicêntrico de Estados está em tensão com a lógica da hege-monia global orientada em parte pelo Estado norte-americano, emparte pela dinâmica do capital global. Aqui estamos sujeitos a avan-çar contra um dos grandes desafios conceituais que confrontam todasas formas de análise política contemporâneas. A tendência comumde tratar a “América” e o “capital global” como atores unitários e in-tensamente conspiratórios que manipulam as cordas do cenário polí-tico mundial não colaborou com esse desafio, assim como o aparente

Guerra, Terror, Julgamento

311

paradoxo, pelo menos em alguns aspectos, expresso pela idéia de queos Estados Unidos podem ser entendidos menos como uma hegemo-nia global do que como o único Estado que talvez ainda possa plausi-velmente alegar assemelhar-se às velhas fantasias internacionalistasde um Estado soberano autônomo em busca de sua própria segurançanacional. No mínimo, parece claro que estamos testemunhando umamudança profunda no caráter da antiga tensão entre ordem internaci-onal ou multilateral e a hegemonia do grande poder. Dentro dos Esta-dos Unidos essa mudança se expressa como uma modulação da velhatensão entre multilateralismo e unilateralismo no sentido de isolacio-nismo, para uma tensão entre multilateralismo e unilateralismo nosentido de hegemonia global. O duplo sentido do termo unilateralis-mo – como uma saída para as responsabilidades internacionais ecomo uma forma de equacionar responsabilidades internacionaiscom os interesses puramente nacionais – há muito vem fornecendoum meio útil para a política externa norte-americana disfarçar umadas contradições centrais da política internacional moderna a esterespeito. Muitas pessoas passaram a recear corretamente que uma re-tórica unilateralista para legitimar a defesa nacional tenha finalmen-te empurrado para bem longe as convenções de um poder hegemôni-co dentro de um sistema internacional, para alguma coisa mais próxi-ma de uma hegemonia que subordina um sistema internacional à suaprópria forma unilateralista – imperialista – de ordem global1.

Por essas razões crescem as tensões estruturais entre o Estado nor-te-americano e as convenções multilaterais estimuladas pela Europa;tensões que vinham aumentando de qualquer maneira, pelo menosdepois da guerra nas fronteiras orientais da Europa promovida contraa Sérvia pelos Estados Unidos em nome da Europa, e em relação àsdemandas de alargamento da União Européia, ao desenvolvimentode idéias sobre sua política de segurança, e assim por diante. Essassão as razões também das tentativas de Blair de equacionar, sem terde fazer emendas, os aspectos multilaterais e unilaterais da coalizão.

R. B. J. Walker

312 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

Além disso, prolonga-se ao fundo o aparente realinhamento da Rús-sia com o Ocidente, assim como a tensão entre os Estados Unidos e aChina e todas as outras questões de longo prazo que, entre outras coi-sas, induziram as elites americanas poderosas a pressionar por novasformas de sistemas de defesa de mísseis que ameaçam minar todo oprogresso na redução de armas de destruição em massa.

Essas três considerações levam diretamente a um atalho para, emquarto lugar, algumas observações familiares sobre o padrão maisamplo de violência no mundo contemporâneo. Muitas cifras podemser citadas aqui, mas escolherei apenas uma: a taxa de morte nosEstados Unidos dos ataques de 11 de setembro foi apenas cerca de1% da média estimada de pessoas mortas no mundo em razão de vio-lênciapolítica a cada ano na década de 90; política, vale dizer, não in-clui aqueles que morrem de exclusão/exploração econômica ou co-lapso ecológico. É nesse contexto que se pode entender os níveis ma-ciços de hipocrisia nos quais estamos todos implicados e que nos co-nectam todos, de boa ou de má vontade, a forças que atuaram tantonos ataques como nas respostas a eles.

Devemos fazer uma pausa aqui para lembrar os massacres da Guerrado Golfo que não foram largamente relatados, os efeitos diretos docerco ao Iraque que estão em andamento, o massacre de Srebrenica,os milhões que morreram no Afeganistão nas duas últimas décadas,ou talvez, especialmente, a contínua produção e o comércio de ar-mas, que é tão central para a produção cotidiana da vida social empartes supostamente civilizadas do mundo. Os números são semprecontestáveis, é claro, e sempre haverá alguém para justificar essa ouaquela matança em massa, essa ou aquela remessa de armas, esse ouaquele investimento na comunidade local que sobrevive da produçãode máquinas de matar. O que parece ser bastante incontestável e in-justificável, no entanto, é a contínua militarização de todas as socie-dades, inclusive, e em algumas circunstâncias especialmente, daque-las que alegam ser os bastiões da liberdade e da virtude internacional.

Guerra, Terror, Julgamento

313

Não é nenhuma novidade que a violência provoca violência, e quequanto mais continuarmos a buscar segurança nacional com mísseisde defesa e todo o restante do aparato, tanto menos segurança qual-quer um terá em qualquer lugar. Daí todas as demandas por algumtipo de segurança humana preferivelmente à segurança nacional quese desenvolveram nas últimas duas ou três décadas, e o argumento deque temos vivido com alguns sintomas especialmente malignos ge-rados pelas formas patológicas de militarização em escala global.

Este ponto está relacionado com, em quinto lugar, a necessidade de seentender as formas de violência em transformação no mundo contem-porâneo. Muito do debate recente sobre segurança e assuntos militaresfoi tomado pela mudança, bem divulgada, das guerras abertamente in-ternacionais para guerras civis nos chamados Estados fracassados, porum lado, e o desenvolvimento das tecnologias de comunicação inten-siva móvel (centrada em redes/centrada em informação), por outro. Osargumentos sobre a ameaça do terror são inseparáveis de ambos. A vi-olência detonada no Afeganistão pode ter sido militar, mas não foiuma guerra convencional entre Estados, e a maneira apropriada de fa-zer associações entre o que se passou lá e o recurso ao terror será, semdúvida, um tema para conjecturas sem fim.

Em sexto, podemos tentar entender o alcance das mudanças globali-zantes de larga escala que contribuem para e são efeitos de tudo o quefoi dito acima. Aqui devemos focalizar na novidade de uma econo-mia política global em vez de internacional; ou de uma ordem políti-ca global em vez de internacional; ou de um sistema político emer-gente de redes interurbanas no lugar dos velhos Estados-nação; ou dadinâmica da mudança climática e ambiental a longo prazo. Em todosos casos, a globalização, independentemente do que ela possa envol-ver, diverge consideravelmente da imagem popular de um movimen-to em direção a algum tipo de supranacionalidade que envolve o fimdos Estados, e provavelmente envolve uma proliferação sem prece-dentes de redes em constante transformação, e a intensa agitação das

R. B. J. Walker

314 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

fronteiras da inclusão e exclusão. Sob esse aspecto, e independente-mente de seu apelo substantivo a uma religião dos tempos antigos, aAl-Qaeda, assim como a “guerra” detonada contra ela, demonstraum mundo altamente contemporâneo de redes e fluxos que são fami-liares para os analistas do crime organizado, das finanças, da infor-mação e do movimento de pessoas.

Finalmente, devemos começar a admitir que a interpretação e o jul-gamento serão influenciados pelo lugar onde a pessoa está, pelo lu-gar que a pessoa ocupa dentro das estruturas da ordem internacionalou global. Pode ser, por exemplo, que muito do debate entre os defen-sores europeus do multilateralismo e o tipo de unilateralismo preferi-do pela maioria do regime Bush acenda uma preocupação sobre amudança de uma ordem internacional para algum tipo de ordem im-perial, mas muitas pessoas vivenciaram, por muito tempo, vários ti-pos de ordem imperial como se fosse a ordem natural das coisas. Jul-gamentos sobre violência legítima que pressupõem um mundo deEstados soberanos iguais têm maiores possibilidades de soarem es-pecialmente vazios em lugares onde os fatos mais óbvios da vida sãoa desigualdade e a contínua reprodução da desigualdade em nome deum capitalismo liberal globalizante. Existe, afinal, mais do que umamaneira de se analisar as hipocrisias do mundo global contemporâ-neo que se normalizaram e foram institucionalizadas, hipocrisias quenão podem ser ignoradas nas tentativas de explicar os eventos de 11de setembro nem nos desafios que apresentam para as consideraçõesque prevalecem no julgamento político.

Guerra por Outros Meios

Todos esses e outros pontos de partida oferecem uma oportunidadepotencialmente sem fim para a análise e o debate. A maneira comocomecei a esboçar as várias direções nas quais essas linhas de análisepoderiam ter sido tomadas dá alguma noção das estruturas e forçasque gostaria de enfatizar especialmente, mas também do alcance das

Guerra, Terror, Julgamento

315

discussões a respeito de o que poderia ser considerado uma narrativaexplicativa convincente. Entretanto, elas implicam mais significati-vamente uma série de desafios, que se sobrepõem e se reforçam mu-tuamente, a vários princípios fundamentais da vida política moder-na, especialmente porque esses princípios estão expressos nas estru-turas e determinações do sistema de Estados que tem sido a principalcondição de viabilidade da vida política moderna há alguns séculos.

As teorias modernas de relações internacionais normalmente come-çam com alguma versão da idéia de que o sistema de Estados é frag-mentado e, portanto, governado da forma mais rudimentar possível.O resultado é uma seqüência de períodos mais ou menos pacíficos deacomodação e ajuste entre Estados – como ouriços dentro de umsaco*, conforme um dia foram chamados pelo pensador do séculoXIX Schopenhauer – e períodos de mudança violenta à medida quevários Estados se tornavam mais poderosos; são períodos de guerra,que tradicionalmente têm sido vistos como necessários para o ajusteàs mudanças em um sistema que não tem uma fonte abrangente degovernança, e, dessa forma, são tidos como legítimos. Esta é a idéiabásica que ainda aparece nas imagens das grandes guerras do séculoXX – guerras nas quais algumas pessoas ainda querem lutar, mas quequalquer um que tenha uma memória significativa desse século sabeque agora são impossíveis ou insanas.

Por trás desse raciocínio familiar – ainda que cada vez mais ultrapas-sado – sobre a organização das comunidades políticas modernas emum sistema de Estados, estão dois princípios básicos, ainda muitopresentes em nossas vidas. Um deles estabelece que o sistema deEstados precisa ser organizado em termos seculares razoavelmenteracionais; guerras só devem ser lutadas para buscar os interessespragmáticos e materialistas do Estado, e não para garantir a adesão

R. B. J. Walker

316 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

* [A expressão “ouriços dentro de um saco” é a tradução literal de “h edg eh og s in a b ag ” q ue foi

usada pelo autor e por ele atrib uída a S ch openh auer. N .T .]

universal a qualquer doutrina religiosa ou quase-religiosa. O outro éo princípio de que não deve ser permitido ao sistema de Estados reca-ir nos tipos de império dos quais os Estados modernos conseguiramse libertar reivindicando seus direitos soberanos de autodetermina-ção.

As coisas não foram sempre iguais desde o surgimento do sistemamoderno de Estados, e esses dois princípios têm sido constantementedesafiados desde o início. Por um lado, práticas explicitamente secu-lares acabam freqüentemente sendo dirigidas, pelo que se parecemuito com fervor religioso, por uma ética de convicção. Aqui, os pio-res excessos de nacionalismo vêm à mente, assim como alguns as-pectos do fascismo e a dinâmica ideológica da era da Guerra Fria. Po-rém, muitas tendências aparentemente mais benignas precisam serentendidas nesse contexto também, como, por exemplo, aquelas quenos encorajam a pensar que podemos ser todos humanos unidos porum elo de fraternidade, ou mesmo de irmandade universal; ou comoas que nos encorajam a pensar em humanismo, paz universal, pro-gresso, modernização, como no discurso de Blair para o Partido Tra-balhista em Brighton.

Em qualquer das hipóteses, podemos ver as conseqüências do grandepacto que fizemos com nós mesmos, como modernos que somos,para que nossas reivindicações sejam humanas, éticas, de algumaforma mais próximas de Deus, mesmo quando negamos a existênciadele ou dela. Nesse pacto, somos todos bons humanos, exceto quan-do confrontados, digamos, com Napoleão, Hitler, a ameaça comu-nista, os revolucionários do Terceiro Mundo, as hordas islâmicas ou,mais recentemente, os terroristas, caso em que Deus os ajudou. Po-demos nos sentir justificados ao fazer qualquer uma dessas exceções,mas quando estas são orientadas para os extremos, a justificabilidadepassa a ser, mais precisamente, uma autojustificabilidade. Por todasas nossas simpatias a várias moralidades, estamos sempre prepara-dos para fazer uma exceção, e acreditar que a violência, a violência

Guerra, Terror, Julgamento

317

de massa, é legítima. Deus, ou pelo menos a razão, o senso comum, acivilização, a sociedade que pode ser religiosa ou moral sem ser faná-tica, e todos os outros sinônimos para a nossa versão do bem, da ver-dade e da beleza, estão do nosso lado. Na história convencional, o“nosso lado” é interpretado como algum tipo de identidade nacionalou estatizante, embora o jogo de amigo ou inimigo nem sempre tenhasido contido pelas estruturas do sistema de Estados. Conhecemos asnossas hipocrisias. Freqüentemente nos preocupamos com elas. Noentanto, especialmente em momentos de crise, deixamos nossas hi-pocrisias soltas no mundo.

Por outro lado, o princípio da igualdade soberana dos Estados tem vi-vido em tensão com as realidades de hegemonia e dominação de umgrande poder (Pax Britannica, Pax Americana, colonialismo e neo-colonialismo, uma Guerra Fria entre dois superpoderes), com oavanço de uma economia capitalista globalizante e agora com o sur-gimento de apenas um superpoder, ou hiperpoder, ou hegemonia glo-bal, ou talvez algum tipo novo de império. Esta tensão se expressa,por exemplo, na distinção institucional entre a Assembléia-Geral e oConselho de Segurança das Nações Unidas. Não está claro agora sedevemos entender a dinâmica principal da vida política como rela-cionada a algum tipo de sistema de Estados (o grande jogo, o equilí-brio de poder, as regras de multilateralismo, e assim por diante), comos Estados Unidos desempenhando o papel de grande poder hegemô-nico, ou relacionada a um império entendido em parte como “Améri-ca” e em parte como “globalização” ou “pós-modernidade”. Deacordo com a sabedoria convencional sobre internacionalismo mo-derno, é de se esperar que quando a lógica hipócrita do sistema mo-derno de Estados se encontra com a lógica de um império universali-zante, provavelmente, se está diante de um problema. Não é irracio-nal pensar que podemos estar vivendo um momento como este, e issovem acontecendo há algum tempo. Mais uma vez, o 11 de setembroparece ser apenas um episódio de uma história mais longa, mas neste

R. B. J. Walker

318 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

caso é uma história que vai ao âmago dos princípios mais básicos pe-los quais alegamos ter consciência de nossas possibilidades como se-res políticos modernos.

Sem dúvida, é possível continuar contando a história do internacio-nalismo moderno. Estamos, pode-se dizer, testemunhando um poderhegemônico pedindo para ser o grande responsável pela sustentaçãoda ordem em um mundo sitiado pelo fervor revolucionário e, nestecaso, um fervor explicitamente religioso. Nesse processo, gera-setambém um certo tipo de fervor, talvez um pouco “religioso” demaisno sabor, mas que em último caso se manifesta como um nacionalis-mo compreensível, ou talvez um patriotismo, mas em qualquer hipó-tese subordinado aos seus parceiros internacionais em um sistema in-ternacional apropriado que ainda é capaz de manter os princípios bá-sicos da vida política moderna. Esta é a grande esperança de todos osinternacionalistas, a esperança que permite que várias tradições doliberalismo encontrem alguma acomodação para mais um recurso àviolência em massa e para o apoio a aliados duvidosos. Neste ponto,as complicações surgem a partir de três suspeitas.

Primeiro, a suspeita de que para o regime Bush o internacionalismotenha se transformado em um abrigo conveniente para uma formaimperialista de unilateralismo que se completa com uma tropa deEstados-clientes que podem se lamentar amargamente, mas que con-tinuam incapazes de competir no campo de jogo da ordem internaci-onal. Segundo, a suspeita de que aquilo que alguns preferem inter-pretar como patriotismo legítimo de um poder hegemônico tenha setransformado em uma ideologia quase-religiosa de superioridadeuniversal. Terceiro, a suspeita de que onde os temores convencionaisa respeito de hegemons focalizam no perigo dos Estados revolucio-nários ou quase-imperiais que mobilizam ideologias quase-reli-giosas de nacionalismo e patriotismo para gerar distinções absolutasentre amigos e inimigos em uma guerra total entre Estados, estamostestemunhando sinais de luta entre salvos e condenados, ou civiliza-

Guerra, Terror, Julgamento

319

dos e bárbaros, que estão menos marcados no espaço territorial dosistema moderno de Estados do que em um espaço globalmente arti-culado e territorialmente incerto que existe entre civilizações con-correntes.

Nesse contexto, verificamos, em parte, o medo de um retorno a ummundo que, na imaginação política moderna, é associado à vida an-tes do Tratado de Westphalia, às guerras de fanatismo religioso ouquase-religioso, medos que são provocados tanto pelos discursospresidenciais de Bush como pelos vídeos de Bin Laden. Constata-mos também medos relativos ao tipo de distinção que é feita entre osupostamente civilizado e o supostamente bárbaro, que volta muitomais longe no tempo e que é menos lembrado no que diz respeito àsconvenções do sistema de Estados moderno do que em relação àsCruzadas de quinhentos anos atrás, conquistas, colonialismos e mis-sões civilizadoras de todas as espécies.

O aspecto mais impressionante das declarações de guerra de Bush éque elas foram entendidas em termos da capacidade soberana de de-clarar estado de emergência – a capacidade de suspender todas asnormas de comportamento diário – não em relação a outro Estado so-berano, mas sim em relação a um inimigo que é essencialmente in-tangível, que não se conecta a nenhum Estado territorial e que podeser projetado, quase à vontade, em qualquer território que seja conve-niente, em quaisquer corpos e pessoas. Isto pode ser soberania, masnão é a soberania conforme deveríamos conhecê-la. E se não é sobe-rania da maneira que deveríamos conhecer, então podemos esperarque o internacionalismo eventualmente nos resgate da América uni-lateralista e francamente imperialista – seja ela patrocinada por umpequeno grupo de fanáticos ou dirigida por enormes forças históricas– ou aceitar que as maneiras pelas quais as regras básicas do sistemamoderno de Estados e as instituições internacionalistas fizeram essesistema viável, apesar da recorrência necessária às guerras, realmen-te agora se desmantelam de forma muito séria2.

R. B. J. Walker

320 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

Este ponto pode ser relacionado não somente à lógica espacial do sis-tema moderno de Estados, mas também à lógica temporal daquiloque passamos a chamar de modernização. Em razão de todo o apelo àtradição e ao Islã, o fenômeno conhecido como Bin Laden foi umaprodução da (tardia ou até mesmo pós-) modernidade. Ele expressamais uma de uma longa linha de invenções modernas que usam a tra-dição para desafiar aqueles que adaptaram a modernidade aos seuspróprios propósitos. A imagem-padrão aqui é a de um Frankenstein,e não está muito longe de tentar entender o Bin Laden como um fenô-meno que lembra as contradições construídas nos nacionalismosmodernos ou no Estado fascista.

Bin Laden surgiu de condições sociais nas quais a modernização nãosignificou o processo gradual de democratização, muito orgulhosa-mente imaginado como tendo liderado “o Ocidente civilizado”, parao lugar onde se encontra no momento, mas sim a fraude cometida poresse Ocidente civilizado, ou pelo menos de partes específicas dele,ao sustentar Estados antidemocráticos em razão de seus própriospropósitos. Daí, a aguda tensão existente entre os regimes mais oumenos modernistas de Estados nessa região e as várias formas de an-tagonismo social que passaram a se manifestar, cada vez mais, naqui-lo que muitos poderiam caracterizar como formas patológicas oufundamentalistas de Islã, embora elas também tenham se manifesta-do nas tentativas de articular uma resistência pan-árabe a várias for-mas de colonialismo. No mínimo, é um erro pressupor que os eventosde 11 de setembro tinham em mira simplesmente, ou até mesmo prin-cipalmente, os Estados Unidos; mais do que, digamos, a Casa deSaud e todos que ela sustenta como uma expressão de autoritarismomodernista, e como um agente da hegemonia política e econômica daAmérica/global. O que se pode dizer da Arábia Saudita pode ser ditotambém, com variações importantes, em relação ao Egito, Irã, Síria,Iraque, os Estados do Golfo, e assim por diante. Por este caminho,chegamos até os dilemas específicos do Afeganistão; a combinação

Guerra, Terror, Julgamento

321

de sauditas ricos, porém militantemente antimodernos, possivel-mente associados com a Jihad Islâmica e outros, e uma sociedade pe-sadamente naufragada pelos atos predatórios de intrusos, incluindoas sociedades mais altamente modernizadas do mundo. Qualquer coi-sa que se possa dizer sobre características específicas de Bin Laden, aJihad Islâmica egípcia, Al-Qaeda, ou o Talibã, é crucial para se com-preender que expressam contradições sociais e forças que surgemdas intensas lutas sociais contra as formas globalmente articuladasde poder econômico, militar e político. Como tal, eles refletem nãoapenas um recuo fundamentalista ou extremista a uma era imaginadade profetas, mas também muitas críticas caracteristicamente moder-nas, liberais, feministas e outras críticas às formas arbitrárias e nãodemocráticas de governo na região. Embora seja ultrajante, o 11 desetembro não teve como mira simplesmente a “América”, mas a de-sestabilização das formas altamente corruptas da política em uma re-gião na qual a “América”, entre outros, é a grande amiga dos regimescorruptos.

Muito do debate, até mesmo do debate crítico, a respeito desse con-flito é retratado como se as opções fossem simples questão de bem ede mal, de modernidade ou barbarismo, de Ocidente versus Islã, deAmérica boa ou América má. Em vários lugares, no entanto, a res-posta principal e mais esclarecedora foi dada não ao se invocar umsimples dualismo maniqueísta, mas muito mais ao se apontar formasostensivas de hipocrisia: a hipocrisia do mais poderoso, que organizao sistema de acordo com seus próprios interesses e depois recorre abombas e à autojustificabilidade quando o tiro sai pela culatra; e a hi-pocrisia do menos poderoso que trouxe para o sistema e conspiroupara sustentar regimes corruptos e gerar as condições sob as quais ex-tremistas respondem com violência às injustiças amplamente reco-nhecidas. Essas hipocrisias atuam em vários contextos. É imprová-vel que regimes autoritários desistam de seu monopólio da riquezado petróleo, e os americanos não vão desistir do fornecimento de pe-

R. B. J. Walker

322 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

tróleo barato e seguro. Mas a conseqüência positiva dos padrões dehipocrisia que se repetem à exaustão é que a análise se desloca das te-ologias do bem e do mal para as tentativas de entender um mundo decontradições e relações, pelo menos no que se refere ao que tão facil-mente caracterizamos simplesmente como modernidade, como al-gum tipo de condição benigna.

O pensador que ocupou o lugar de maior destaque no pensamento so-bre a guerra moderna ao longo do século passado foi Carl von Clau-sewitz. Ele é famoso por sua noção de que a guerra é a continuação dapolítica por outros meios; noção pela qual ele se referia à necessidadede garantir que a guerra era conduzida de acordo com algum tipo deracionalidade política, em vez de dirigida por paixões incontroláveisdo nacionalismo pós-napoleônico aliado a tecnologias altamentemodernizadoras (Clausewitz, 1984). A este respeito, Clausewitz tra-balhava a partir do entendimento de um mundo de Estados nos quaisas práticas normais da política podiam ser conduzidas internamente,mas não podiam ser aplicadas a outros Estados, e pelas quais se pre-paravam para o estado de guerra, ou estado de emergência, por outrosmeios.

Uma boa parte da história do século XX pode ser lida tomando-secomo referência a questão da possibilidade de se sustentar a distin-ção entre um mundo racional da política e um mundo de “outrosmeios”. A compreensão da racionalidade de Clausewitz foi influen-ciada pelo filósofo Hegel, e estava subordinado a uma alegação deque o progresso humano tem uma direção genérica, pelo menos oprogresso humano dentro do Estado racional moderno. No começodo século XX, esse tipo de racionalidade progressiva parecia umpouco duvidoso. Max Weber desenvolvia um raciocínio influente arespeito da dialética peculiar da racionalidade moderna, através daqual quanto maior a força da eficiência instrumental racionalista,maior o apelo aos comprometimentos com valores irracionais – umpensamento que pode demonstrar alguma coisa sobre a experiência

Guerra, Terror, Julgamento

323

dos campos de extermínio e da dissuasão nuclear, sobre o banho desangue de um século supostamente progressista, e a hipócrita morali-zação de uma modernidade que prefere negar suas responsabilidadessobre a violência em massa3. Subseqüentemente, Carl Schmitt(1985;1996) apresentou algumas críticas, lembrando que quaisquerque fossem as pretensões dos liberais, democratas e outros progres-sistas, o Estado moderno dependeria de uma capacidade arbitrária esempre potencialmente violenta de definir quem são os violentos.Talvez de forma ainda mais perturbadora, Walter Benjamin (1969)olhou adiante para ver não a guerra como a política por outros meios,mas a política como a guerra por outros meios, a transformação danorma em exceção, a inclusão da violência que parece uma guerra naprática da vida diária, e talvez até mesmo a tentativa de transformartudo em assunto de segurança, em todos os lugares.

Esses são pensadores bastante depressivos, mas que chegam a algunsdos paradoxos mais profundos de uma modernidade que trouxe tantoo progresso como o desespero, a inclusão para alguns e a exclusãopara outros. Mais uma vez, os insights desses pensadores podem sertomados em várias direções. Questões convencionais sobre relaçõesinternacionais, por exemplo, pressupõem que o lado positivo da mo-dernidade pode ser experimentado dentro dos Estados e só temos detolerar, ou de alguma forma mitigar, a violência entre Estados que fazcom que seja possível uma boa vida em casa. Considerações conven-cionais sobre modernização dão a essa história uma interpretaçãotemporal e identificam a vida boa com alguns ideais que têm caracte-rísticas ao mesmo tempo inglesas e americanas* e, em seguida, insis-tem na necessidade de violência, ou de limites à democracia, ou dascondições do FMI, como o preço a pagar para se avançar em direção aesses ideais. Em um ou em outro caso, podemos alcançar um pouco

R. B. J. Walker

324 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

* [A expressão “ideais que têm características ao mesmo tempo inglesas e americanas” é usada

como tradução de “mid-Atlantic ideals”. N.T.]

do sentido da dinâmica espacial e temporal na qual as forças de umageopolítica e economia política regional-global se desenvolveramno que diz respeito tanto ao Estado em modernização, com todo o au-toritarismo e corrupção usuais, como a um império/hegemon globa-lizante, que expressa toda a hipocrisia que pode ser empacotada den-tro de histórias a respeito da modernidade como uma jornada perfei-tamente benigna a um futuro iluminado.

As sabedorias convencionais que são geralmente apresentadas pararesponder a essa idéia mais crítica e deprimente da modernidade ten-dem a se apoiar nas esperanças de um mercado supostamente livre,ou em algum tipo de cosmopolitismo, seja de repúblicas ou de sujei-tos individuais, articulado com referência em algum tipo de razãouniversal; uma combinação de Adam Smith com Immanuel Kant.Mais uma vez, essas sabedorias sofreram uma virada internaciona-lista. Todas as proposições universais podem se manifestar nas juris-dições da autodeterminação dos Estados soberanos, espaço no qual avida normal cotidiana pode se desenvolver com o auxílio de uma par-cela de modernização vinda de cima ou de uma intervenção externa,se necessário. Sam Huntington (1997), o grande contador de históri-as sobre as necessidades dos Estados em modernização, dá um nomepopular para o deslocamento daquela velha história para um novomundo de civilizações em competição. Mas as civilizações não coe-xistem em um sistema de Estados. Tampouco têm um sistema políti-co. Embora existam poucas coisas positivas, se é que existem, paradizer sobre a tese de Huntington, de fato ele tem um faro muito bompara a transformação decisiva, apesar de dar a ela um nome engano-so. Huntington torna-se um bom apologista de um império em buscade um roteiro histórico ágil.

Depois da Folga

Durante aproximadamente uma década antes dos choques dosaviões, a queda do Muro de Berlim foi a base para as alegações de um

Guerra, Terror, Julgamento

325

mundo em rápida transformação, que passou a ser a nova moeda decredibilidade acadêmica e de formulação de políticas. A geladeiraestava desligada, permitindo que a podridão acumulada cheirasse eameaçasse. A nova ordem mundial foi anunciada, a ser sucedida pelaAnarquia Vindoura, o Conflito de Civilizações, a promessa de Glo-balização e tudo o mais. Parecia que estávamos vivendo uma era detransições, de trajetórias múltiplas, um mundo que tinha ficado mui-to mais solto e diferenciado do que as rígidas divisões da Guerra Fria.Enquanto se pode apelar para slogans, prefiro pensar em uma era defolga, uma proliferação descontrolada de tendências pontuadas pelatentativa ocasional de criar um pouco de disciplina para alguns pou-cos e selecionados folgados – Iraque e Sérvia mais notadamente –,embora não para outros. O 11 de setembro gerou um rápido apertodessa folga, um aperto que foi mais dramático e determinado do queaconteceu em relação à Guerra do Golfo ou ao redesenho das frontei-ras européias depois da dissolução da Iugoslávia. As linhas foramapertadas outra vez, mas, crucialmente, estão sendo desenhadas me-nos em torno de um mundo de Estados soberanos do que em torno dealguma outra coisa: uma defesa mundial da civilização contra umaameaça mundial do terror. Contudo, entre 1989 e 2001, as bases dojulgamento político se modificaram. Enquanto a Guerra Fria eracompreensível em termos de uma distinção básica entre amigos e ini-migos, tendo como base os Estados soberanos, a distinção agora é li-gada a algo dramaticamente diferente.

Procurar um contexto mais amplo para situar os eventos de 11 de se-tembro não significa livrar-se da necessidade de condenar aquelesque se valeram de tal violência. Não tenho dúvida de que essas açõesconstituíram um enorme crime e deveríamos lidar com elas como tal.O que é realmente terrível nisso tudo é que foi um crime enorme den-tre vários crimes enormes, e como bem sabemos, alguns dos piorescriminosos têm sido nossos amigos, até mesmo nossos heróis; defato, ainda estamos reforçando-os. Pior, alguns dos maiores crimes

R. B. J. Walker

326 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

contra a humanidade foram gerados por forças sociais imensas quedestroem as vidas de um vasto número de pessoas todos os dias, for-ças com as quais alguns de nós prosperamos à custa dos outros, e con-tra as quais não temos absolutamente nenhum recurso legal. Não po-demos levar ao tribunal o sistema econômico, social, cultural ou reli-gioso, e também não podemos bombardeá-los até que deixem deexistir. Estamos diante de um problema político, e não somente deum problema legal ou ético. Gostando ou não, prender ou exterminartodos aqueles que foram diretamente responsáveis pelo 11 de setem-bro não vai resolver os problemas dos quais esses eventos são sinto-mas.

Provavelmente, vamos ver um contínuo recurso ao fanatismo auto-justificado de ambos os lados. De um lado, um fanatismo gerado pe-los extremos de violência, injustiça e exclusão, sustentado por umainvenção bizarra de dogmas religiosos e liderado por redes de pesso-as que se beneficiaram tanto de nossa indulgência e do nosso desejode manipular os outros para que matem por nós, como de suas longasexperiências de guerras de resistência contra o colonialismo. De ou-tro, um fanatismo sustentado por uma crença autojustificada na supe-rioridade da civilização, assim como nas formas de superioridademuito menos civilizadas. Ambos são perigosos e precisam sofreroposição. Algumas das pessoas mais perigosas do mundo se escon-dem nas montanhas, e outras têm acesso legítimo às armas mais de-vastadoras de destruição em massa que o mundo jamais conheceu. Ogrande Thomas Hobbes tinha uma idéia bastante boa da maneiracomo aqueles que alegam nos proteger estão sempre propensos a noscausar sérios prejuízos (Hobbes, 1991). Hoje, essa percepção funda-mental é muito mais perturbadora do que era no tempo da Guerra Ci-vil inglesa.

Provavelmente, vamos ver também tentativas de reviver várias for-mas de internacionalismo ou multilateralismo, já que vários Estadosbuscam tanto apoiar a campanha norte-americana contra o terroris-

Guerra, Terror, Julgamento

327

mo (não somente porque o terrorismo é direcionado a eles, em mui-tos casos mais por causa disso), como resistir a novos deslizes de umsistema de Estados pluralista em direção a um império unilateral. Daía insistência em coalizões e consenso, e, esperamos, resistência aoincrível declive que vai da retirada de Bin Laden à retirada de Sadame outros indesejáveis altamente seletivos.

Ao final, no entanto, os eventos de 11 de setembro e os que se segui-ram a eles apontam para uma multiplicidade de perigos em um mun-do no qual as considerações prevalecentes do poder, da autoridade eda segurança fazem dele um lugar seriamente arriscado para todos.Está ficando cada vez mais difícil e custoso assumir que podemos or-ganizar e controlar o mundo desenhando uma linha, tanto físicacomo metaforicamente, entre aqui e ali, entre este e aquele Estado,entre a América e o Oriente Médio, entre os incluídos e os excluídos,entre os cidadãos desse Estado e os daquele Estado, entre as boaspessoas aqui e os estranhos e perigosos estrangeiros lá. As premissasmais básicas da posição internacionalista estão cada vez mais abala-das, como sugere tão claramente a observação dos padrões de refugi-ados, dos fluxos financeiros, do comércio de drogas, da organizaçãode células terroristas, da organização de forças militares e todo o res-to, embora isso certamente não pareça capaz de evitar a busca de vá-rios Estados pelo policiamento da linha existente entre incluídos eexcluídos com graus de discriminação maiores do que nunca. Os ex-tremistas de ambos os lados acreditam que podemos e devemos dese-nhar a linha, e fazem isso da forma mais simplista possível. É espe-cialmente perturbador pensar que a linguagem de cruzada que tantasfiguras públicas endossaram no que diz respeito ao Islã é apenas umaforma extrema de moralismo de cruzada que todos os tipos de pes-soas usaram para encobrir e legitimar a violência diária intolerávelgerada pelos padrões globais das práticas econômicas e militares. Ocaminho para o inferno foi brilhantemente polido com as melhoresintenções.

R. B. J. Walker

328 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

Qualquer tentativa de desenhar as linhas bem esticadas, de pintar omundo seja como um conflito de religiões ou como uma partida dogrande jogo dos Estados soberanos, fará com que uma má situação fi-que ainda pior. Pode-se temer a possibilidade de estarmos de volta auma versão ainda mais terrível da Guerra dos Trinta Anos, ou diantedo desmoronamento final da política moderna em demandas de umimpério autojustificado; ou ambos. Pode-se ter esperança, com os in-ternacionalistas, que esses medos sejam infundados. Mas ambos osespectros mascaram uma transformação geopolít ica egeoeconômica complexa que vai muito além da procura de terroris-tas específicos no Afeganistão ou em qualquer outro lugar.

Esse é o contexto no qual deveríamos falar sobre as formas emergen-tes de ordem legal, formas mais criativas de relações culturais e sobrea dramática diminuição do espaço para um casamento entre um mer-cado globalizante e um renascimento do darwinismo social em esca-la global. A tragédia de nosso tempo não é que não sabemos como fa-lar sobre essas coisas, mas sim que nossa capacidade para fazer issoestá, cada vez mais, divorciada dos processos políticos que podemnos permitir fazê-lo de uma forma significativa. Enquanto isso, o ge-neral Sharon recebe as benções do mais poderoso, os multilateralis-tas se mostram bastante preocupados, as questões mais básicas a res-peito de autoridade legítima em um mundo em rápida mudança sãocada vez mais difíceis de serem respondidas e a política cotidianaestá, de fato, se transformando, cada vez mais, na continuação daguerra por outros meios. Certamente, existe um problema aqui, mas éum problema que não atende pelo nome de Terror.

Guerra, Terror, Julgamento

329

Notas

1 . As provas para tal suspeita podem ser encontradas não somente nos comen-tário mais voláteis que vêm da parte de Bush e de seus conselheiros, mas tam-bém no tipo de análise exposta no trabalho de Brooks e Wohlforth (2002).

2 . A discussão recente mais provocativa a respeito dessa possibilidade é a deHardt e Negri (2001), que desenvolvem uma análise que converge e diverge como argumento subjacente que informa a análise que aqui faço (cf. Falk et alii,2002; Cox et alii, 2001, e Biel, 2000).

3 . Daí as preocupações de Weber, em “Politics as a Vocation”, com o tipo depolítico, ou homem, ou personalidade, que poderia corresponder às expectati-vas desses tempos modernos espiritualmente difíceis.

ReferênciasBib liográ ficas

BENJAMIN, Walter. (1969), “On the Critique of Violence”. Traduções de frag-mentos de Illuminations (com introdução de Hannah Arendt). New York,Schocken Books.

BIEL, Robert. (2000), The New Imperialism:Crisis and Contradiction in

North/South Relations. London, Zed.

BROOKS, Stephen e WOHLFORTH, William. (2002), “American Primacy inPerspective”. Foreign Affairs, vol. 81, no 4, julho/agosto, pp. 20-33.

CLAUSEWITZ, Carl von. (1984) [1832], On War (tradução de Michael Ho-ward e Peter Paret). Princeton, Princeton University Press.

COX, Michael, DUNNE, Tim e BOOTH, Ken (orgs.). (2001),Empires,Systemsand States:Great Transformations in International Politics. Cambridge, Cam-bridge University Press.

FALK, Richard, RUIZ, Lester E. J. e WALKER, R. B. J. (orgs.). (2002),Refra-ming the International:Law,Culture,Politics. New York, Routledge.

R. B. J. Walker

330 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����

HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. (2001), Empire. Cambridge, MA, Har-vard University Press.

HOBBES, Thomas. (1991) [1651], Leviathan (organizado por Richard Tuck).Cambridge, Cambridge University Press.

HUNTINGTON, Samuel. (1997),TheClash of Civilizations and the Remakingof World Order. London, Penguin.

NYE JR., Joseph S. (2002), The Paradox of American Power: Why the World’sOnly Superpower Can’t Go it Alone. Oxford, Oxford University Press.

SCHMITT, Carl. (1985) [1922],Political Theology: FourChapters on theCon-cept of Sovereignty (tradução de George Schwab). Cambridge, MA, MIT Press.

. (1996) [1932], The Concept of the Political (tradução e introdução deGeorge Schwab e novo prefácio de Tracy Strong). Chicago, University of Chi-cago Press.

WEBER, Max. (1994) [1919], “The Profession and Vocation of Politics”, in P.Lassman e R. Spiers (orgs.),Weber: PoliticalWritings. Cambridge, CambridgeUniversity Press.

Resumo

Guerra, Terror, Julgamento

O presente artigo responde a uma variedade de tentativas precoces de inter-pretar o significado mais amplo da violência do 11 de setembro de 2001.Seu argumento central diz respeito às bases do julgamento político. Abordauma variedade de interpretações correntes para as formas contemporâneasde violência em parte relacionadas às alegações de uma política weberianade responsabilidade, em parte relacionadas às tensões estruturais entreprincípios de multilateralismo e unilateralismo. O artigo sugere que nem omultilateralismo nem o unilateralismo são suficientes para dar conta dasquestões sobre autoridade legítima e violência, para as quais o 11 de setem-bro de 2001 pelo menos trouxe um pouco mais de clareza. Conclui com umabreve alusão à crescente dificuldade para se desenhar linhas, não somenteentre os civilizados e os bárbaros, mas também as linhas físicas que foramusadas para criar o sistema moderno de Estados, em muitos contextos, mas

Guerra, Terror, Julgamento

331

esta é uma dificuldade que está na raiz de problemas mais sérios envolvidosna formação do julgamento político moderno.

Palavras-chave: Guerra – Terror – Julgamento – Soberania

Abstract

War, Terror, Judgement

This article responds to the variety of early attempts to interpret the broadersignificance of the violence of September 11, 2001. Its central argumentconcerns the grounds for political judgement. It reads a variety of currentinterpretations of contemporary forms of violence partly in relation toclaims about a Weberian politics of responsibility and partly in relation tostructural tensions between principles of multilateralism and unilateralism.Neither multilateralism nor unilateralism, the article suggests, is sufficientto engage the questions about legitimate authority and violence to whichSeptember 11, 2001 at least brought greater clarity. It concludes with a briefallusion to the increasing difficulty of drawing lines; not only lines betweenthe civilized and the barbarian but also the physical lines that have beenused to create a modern system of states, in many contexts, but this is adifficulty that is at the root of more serious problems involved in theformation of modern political judgment.

K ey w o rd s: War – Terror – Judgement – Sovereignty

R. B. J. Walker

332 �������� ���������� � � �� ��� � �� ������� ����