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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL - CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS POLÍTICAS PÚBLICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA: UM ESTUDO SOBRE O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA FAVELA DO PAVÃO- PAVÃOZINHO, RIO DE JANEIRO APRESENTADA POR MICHELE DE LAVRA PINTO PROFESSORA ORIENTADORA: Dr.ª MARIANA CAVALCANTI Rio de Janeiro

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Page 1: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL - CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA: UM ESTUDO

SOBRE O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA FAVELA DO PAVÃO-

PAVÃOZINHO, RIO DE JANEIRO

APRESENTADA POR

MICHELE DE LAVRA PINTO

PROFESSORA ORIENTADORA: Dr.ª MARIANA CAVALCANTI

Rio de Janeiro

Page 2: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL – CPDOC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

DOUTORADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

PROFESSORA ORIENTADORA: MARIANA CAVALCANTI

MICHELE DE LAVRA PINTO

POLÍTICAS PÚBLICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA: UM ESTUDO

SOBRE O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NA FAVELA DO PAVÃO-

PAVÃOZINHO, RIO DE JANEIRO

Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de

História Contemporânea do Brasil – CPDOC/FGV como requisito para a

obtenção do Título de Doutor em História, Política e Bens Culturais.

Rio de Janeiro, agosto de 2016

Page 3: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Pinto, Michele de Lavra Políticas púbicas de transferência de renda: um estudo sobre o

Programa Bolsa Família na favela do Pavão-Pavãozinho, Rio de Janeiro / Michele de Lavra Pinto. – 2016.

166 f.

Tese (doutorado) - Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais.

Orientadora: Mariana Cavalcanti. Inclui bibliografia.

1. Programa Bolsa Família (Brasil). 2. Consumo. 3. Pobreza. 4. Programas de

sustentação de renda. 4. Políticas públicas. I. Cavalcanti, Mariana, 1976-. II. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.

Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. III. Título.

CDD – 361.61

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Page 5: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

AGRADECIMENTOS

Ao chegarmos ao final de uma etapa como o doutorado sempre temos

muito a agradecer. Foi um caminho longo e com muitas dificuldades e por isso

meus sinceros agradecimentos:

A minha orientadora Mariana Cavalcanti pelo apoio, dedicação e

amizade. Muito obrigado!

Aos professores do CPDOC/FGV e de outras instituições que ao longo

do doutorado tive o privilégio de cursar as disciplinas.

Ao Claudio Pinheiro por ter compreendido e apoiado, desde o início, o

meu projeto. Obrigado!

Aos professores Fernando Rabossi e Letícia Ferreira obrigado pelas

contribuições na banca de qualificação.

As assistentes sociais e profissionais do CRAS que me receberam e

auxiliaram durante a pesquisa de campo. Foram momentos de observação,

mas também de aprendizado sobre a área da assistência social.

As beneficiárias e suas famílias que abriram suas casas e

compartilharam comigo suas histórias de vida. Obrigado pela generosidade e

confiança.

As amigas que fiz ao longo da minha trajetória acadêmica e que se

tornaram amigas para a vida toda. Em especial as amigas cariocas Isabel

Travancas, Carla Barros e Silvia Borges que me acolheram na cidade

maravilhosa desde o primeiro dia e tiveram a paciência de ouvir as queixas de

uma gaúcha desgarrada. Muito obrigado!

As amigas e irmãs da vida toda. A Luciane Moreau Coccaro que sempre

Page 6: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

esteve e está ao meu lado em todos os momentos – para o que der e vier,

obrigado pelas leituras, conversar, carinho e apoio. A Eloisa Martin pelo carinho

e conselhos – Done is better than perfect. Sem vocês o Rio de Janeiro não

seria o mesmo, sem a Confraria do Sul tudo teria sido mais difícil. Muito

obrigada gurias!

A Janie Pacheco, amiga e irmã. Muito obrigado pela ajuda, leituras,

paciência, carinho e por estar sempre perto.

Aos meus familiares pelo apoio. A minha irmã Deise que sempre torceu

por mim e esteve ao meu lado e da mãe dando apoio quando eu não pude

estar. Obrigado por tudo. A minha mãe que compreendeu as minhas ausências

e me deu forças para continuar mesmo nos momentos mais delicados e

difíceis. Ao meu pai (in memoriam) que faz parte do que sou.

Ao meu marido pelo apoio, força, amor e por estar comigo em todos os

momentos. Sem o teu apoio e amor nada disso teria sido possível. Muito

obrigado!

Page 7: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

RESUMO

O Programa Bolsa Família (PBF) possui mais de dez anos de existência e, durante esse período, tornou-se o principal programa de transferência de renda do Governo Federal com vistas ao combate à pobreza. Nesse contexto, a tarefa realizada pela gestão municipal do programa mostra-se relevante, uma vez que são os responsáveis por cadastrar, orientar e acompanhar as famílias beneficiárias. Tendo isso em vista, o objetivo central desta tese é compreender as dinâmicas e as relações que acontecem na “ponta” da gestão municipal do PBF em um grande centro urbano no período de 2012 a 2015. O foco da análise recai, assim, sobre os beneficiários do programa e sua relação com os agentes sociais responsáveis por implementar essa política pública. Para tanto, foi realizada uma etnografia em uma favela da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, observando, sobretudo, os moradores beneficiários e os atendimentos no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) − um dos responsáveis pela execução do programa no âmbito municipal. Buscou-se com isso analisar as estratégias e negociações que surgem da relação entre as partes envolvidas (beneficiários e assistentes sociais), bem como os impactos e significados do benefício no consumo das famílias atendidas pelo programa que residem na favela. Entre os resultados alcançados, destaca-se que, no âmbito municipal, para se tornar ou permanecer um beneficiário, existem estratégias e negociações “informais” diferentes das estabelecidas pelas diretrizes oficiais do programa e que os beneficiários atribuem distintos significados ao dinheiro dele proveniente.

Palavras-chaves: Bolsa Família. Consumo. Pobreza. Dinheiro.

Page 8: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

ABSTRACT

Bolsa Família Programme (PBF) has over ten years of existence and, during this period, became the main income transfer programme of federal government that aims to fight poverty. In this context, the task performed by the municipal management of the programme seems to be relevant, since this is responsible for registering, guiding and monitoring the beneficiary families. Considering this, the central objective of this doctoral thesis is to understand the dynamics and relationships that occur in the “end” of the municipal management of PBF in a large urban center in the 2012 to 2015 period. The analysis focuses on the beneficiaries of the programme and their relationship with the social agents responsible for implementing this public policy. For this purpose, it was conducted an ethnographic research in a favela located in the south area of the city of Rio de Janeiro, noting especially the beneficiaries residents and the attendances in the Social Assistance Reference Center (CRAS) − one of the responsible entities for the implementation of the program at municipal level. It has been sought thereby to analyze the strategies and negotiations that arise from the relationship between the parties involved (beneficiaries and social workers), as well as the impact and significance of the benefit in consumption of families served by the programme residing in the favela. Among the results achieved, it is emphasized that, at the municipal level, in order to become or remain a beneficiary, there are strategies and “informal” negotiations different from those established by the official guidelines of the programme and the beneficiaries attribute different meanings to the income.

Keywords: Bolsa Família. Consumption. Poverty. Income.

Page 9: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Escadaria que liga a Rua Sá Ferreira à Rua Saint Roman (rua de

acesso à favela), Copacabana ......................................................................... 25

Figura 2 – Circuito Casas-Tela, favela do Cantagalo ....................................... 26

Figura 3 – Limites das favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho....................... 29

Figura 4 – Escada com tonel (em azul) de água na entrada de um domicílio .. 31

Figura 5 – Prédio construído pelo PAC (à esquerda) na favela do Pavão-

Pavãozinho....................................................................................................... 32

Figura 6 – Favela do Pavão-Pavãozinho ......................................................... 33

Figura 7 – Casa do CRAS e Clínica da Família ............................................... 42

Figura 8 – Entrada que dá acesso ao CRAS.................................................... 42

Figura 9 – Recepção do CRAS ........................................................................ 44

Figura 10 – Quadro informativo sobre programas sociais na recepção do CRAS

......................................................................................................................... 44

Figura 11 – Quadro informativo sobre o cadastro no PBF ................................ 45

Figura 12 – Calendário de pagamento do PBF ................................................ 84

Figura 13 – “Ponto” de venda de móveis e eletrodomésticos no Pavão-

Pavãozinho................................................................................................... 1500

Figura 14 – “Ponto” de venda de móveis e eletrodomésticos no Pavão-

Pavãozinho..................................................................................................... 150

Page 10: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Blocos e questões contempladas pelo Censo SUAS .................... 50

Quadro 2 – Composição do CadÚnico ............................................................. 83

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LISTA DE SIGLAS

BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento

BPC - Benefício de Prestação Continuada

BSM - Brasil Sem Miséria

BSP - Benefício para Superação da Extrema Pobreza

BVG - Benefício Variável à Gestante

BVJ - Benefício Variável Jovem

BVN - Benefício Variável Nutriz

CADÚNICO - Cadastro Único

CAP - Caixa de Aposentadorias e pensões

CBIA - Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência

CDS - Coordenadoria de Desenvolvimento Social

CEF - Caixa Econômica Federal

CIEP - Centro Integrado de Educação Pública

CONSEA - Conselho Nacional de Segurança Alimentar

CPDOC - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do

Brasil

CRAS - Centro de Referência de Assistência Social

CREAS - Centro de Referência Especializado de Assistência Social

FGV - Fundação Getúlio Vargas

FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz

FIRJAN - Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro

FNAS - Fundo Nacional de Assistência Social

IAP - Instituto de Aposentadorias e Pensões

IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IFCS - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

IFF - Instituto Fernandes Figueira

IGD - Índice de Gestão Descentralizada

IMP - Indicador Multidimensional de Pobreza

INPS - Instituto Nacional de Previdência Social

INSS - Instituto Nacional do Seguro Social

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

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IRN - Imposto de Renda Negativo

ISSA - Associação Internacional de Seguridade Social

LBA - Legião Brasileira de Assistência Social

LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social

MBES - Ministério do Bem-Estar Social

MDS - Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MDSA - Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário

MEC - Ministério da Educação

MME - Ministério de Minas e Energia

MPAS - Ministério da Previdência e Assistência Social

MS - Ministério da Saúde

MUF - Museu da Favela

NAF - Núcleo de Apoio à Família

NIS - Número de Identificação Social

ONG - Organização não governamental

ONU - Organização das Nações Unidas

OPHI - The Oxford Poverty and Human Development Initiative

PAA - Programa de Aquisição de Alimentos

PAC - Programa de Aceleração do Crescimento

PAIF - Programa de Atenção Integral à Família

PBF - Programa Bolsa Família

PGRM - Programa de Garantia de Renda Mínima

PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua

PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar

PNAIF - Plano Nacional de Atendimento Integrado à Família

PNAS - Política Nacional de Assistência Social

PNI - Política Nacional do Idoso

PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura familiar

SAGI - Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação

SAS - Secretaria de Assistência Social

SEAS - Secretaria de Estado da Assistência Social

SESEG - Secretaria de Estado de Segurança

SMDS - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social

SMHC - Secretaria Municipal de Habitação e Cidadania

Page 13: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

SNAS - Secretaria Nacional de Assistência Social

SUAS - Sistema Único de Assistência Social

UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

UPP - Unidade de Polícia Pacificadora

Page 14: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14

1 O ÍNICIO DA PESQUISA: AS NARRATIVAS, AS ESTRATÉGIAS E OS AGENTES

SOCIAIS.................................................................................................................... 22

1.1 A PRIMEIRA VISITA À FAVELA DO PAVÃO-PAVÃOZINHO ................................ 22

1.2 A FAVELA DO PAVÃO-PAVÃOZINHO ................................................................. 24

1.3 AS ESTRATÉGIAS DE ENTRADA EM CAMPO E AS NARRATIVAS DE ACESSO

ÀS FAMÍLIAS BENEFICIÁRIAS DO PBF .................................................................. 35

1.3.1 O Centro de Referência de Assistência Social: o primeiro dia .................. 40

1.4 DESVENDANDO O “CAMPO” DA ÁREA SOCIAL .............................................. 46

1.4.1 Os agentes sociais e o “campo” ................................................................... 52

2 SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL, PROGRAMAS SOCIAIS E O BOLSA

FAMÍLIA .................................................................................................................... 60

2.1 O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRO E A IMPLEMENTAÇÃO DO

PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA .................................................................................. 60

2.1.1 O Programa Bolsa Família..............................................................................70

2.1.2 O Bolsa Família e as condicionalidades ...................................................... 74

2.2 INSIDERS E OUTSIDERS DO BOLSA FAMÍLIA: CRITÉRIOS, NÚMEROS E

CADASTROS ............................................................................................................ 76

2.2.1 As famílias beneficiárias: o “ideal” e o real ................................................. 79

2.2.2 O Cadastro Único e os benefícios do Programa Bolsa Família ................. 82

2.2.3 O cotidiano no Centro de Referência de Assistência Social: demandas,

atendimentos e histórias ........................................................................................ 87

2.2.4 Os atendimentos no Centro de Referência de Assistência Social: entre o

público e o privado ................................................................................................. 96

3 O BOLSA FAMÍLIA: FAMÍLIAS, POBREZA, DINHEIRO E CONSUMO ............. 101

3.1 O UNIVERSO DA PESQUISA ........................................................................... 101

3.2 TRÊS HISTÓRIAS: AS BENEFICIÁRIAS E SUAS FAMÍLIAS ........................... 103

Page 15: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

3.2.1 A família Silva: Maria .................................................................................... 106

3.2.2 A família Siqueira: Sandra ........................................................................... 115

3.2.3 A família Cardoso: Kátia .............................................................................. 122

3.2.4 Três histórias: algumas comparações ....................................................... 127

3.3 “POBREZA”: CRITÉRIOS E SIGNIFICADOS ................................................... 131

3.3.1 “Ser pobre”, “precisar” e “merecer” o Bolsa Família: significados e

critérios presentes no Pavão-Pavãozinho .......................................................... 133

3.4 CONSUMO E DINHEIRO: O BÁSICO, O SUPÉRFLUO E AS QUESTÕES

MORAIS .................................................................................................................. 141

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 152

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 158

Page 16: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

14

INTRODUÇÃO

O objetivo central desta tese é compreender as dinâmicas e relações que

acontecem na “ponta” da gestão municipal do Programa Bolsa Família (PBF). O foco

da análise recai, assim, sobre os beneficiários do programa e sua relação com os

agentes sociais responsáveis por implementar essa política pública. Para tanto, foi

realizada uma etnografia na favela do Pavão-Pavãozinho, localizada na Zona Sul da

cidade do Rio de Janeiro, a fim de observar, sobretudo, os moradores beneficiários

em suas moradias e os atendimentos realizados pelas assistentes sociais no Centro

de Referência de Assistência Social (CRAS), órgão que é um dos responsáveis pela

execução do programa no âmbito municipal. Busca-se com isso analisar as

estratégias e os critérios que surgem da relação entre as partes envolvidas

(beneficiários e assistentes sociais), bem como os impactos e significados no

consumo de famílias beneficiárias residentes na favela, visto que, diferentemente de

outros benefícios até então concedidos1, o PBF destina os recursos monetários sem

impor um destino obrigatório para o seu dispêndio. Trata-se de algo inovador em

termos de políticas de transferência de renda no Brasil, mas que enfrenta um

discurso moralizante sobre o ato de gastar e de consumo, que atinge

particularmente os segmentos mais pobres da população.

O PBF completou dez anos de existência em 20132 e, durante esse período,

tornou-se o principal programa de transferência de renda com condicionalidades do

Governo Federal que tem como objetivo combater à pobreza. Ao estudar o PBF, fica

evidente a existência de uma rede de proteção social mais ampla que inclui outros

1 Benefícios como Bolsa Escola e Vale Gás, nos quais o gasto do dinheiro tinha destino certo. Tais

programas serão descritos posteriormente 2 O PBF foi instituído pela Medida Provisória n.º 132, de 20 de outubro de 2003, sendo convertido em

Lei, em 09 de janeiro de 2004, pela Lei Federal n.º 10.836.

Page 17: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

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agentes e entidades, aspecto que será demonstrado ao longo deste trabalho.

Contudo, para a execução do programa, desde a sua criação, a tarefa realizada pela

gestão municipal tem sido essencial, uma vez que esta é responsável por cadastrar,

orientar e acompanhar famílias beneficiárias. Cabe mencionar que o PBF é um

programa que está em constante mudança e alterações. Portanto, a pesquisa

contempla o PBF no período de 2012 a 2015.

O interesse por estudar o tema do PBF iniciou em 2008. Nessa época, o

programa já existia há alguns anos e era visto por certos setores da sociedade

brasileira como algo negativo que incentivava os mais pobres a não trabalharem e

ou a terem mais filhos. A esses argumentos, pertencentes ao senso comum,

somava-se o fato de estarmos vivendo no Brasil o segundo mandato do presidente

Luiz Inácio Lula da Silva3, cuja reeleição foi atribuída4, em parte, aos programas

sociais e principalmente ao Bolsa Família, uma vez que a maioria dos votos que

recebeu foi oriunda da população mais pobre.

Desde o seu lançamento, o programa tem sido alvo de discussões e recebido

atenção da mídia brasileira. Pires e Dias (2015) analisaram como o PBF foi

apresentado no período entre 2003 e 20135 em um grande jornal de circulação

nacional, O Estado de São Paulo. Segundo os autores, em 2003, foram encontradas

matérias que chamavam atenção para a “questão das ‘portas de saída’, e tratavam

como ‘Bolsa Esmola’, por uma característica de seu desenho de não exigir um

tempo máximo de permanência no Programa”. Tais críticas, ao longo dos anos,

3 As eleições para presidente de 2006 foram disputadas entre os candidatos Geraldo Alckmin (PSDB)

e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Lula foi eleito no segundo turno com 60,83% dos votos válidos (TSE, 2006). 4 Artigos produzidos após as eleições de 2006 que analisam os resultados a partir da classe social

dos eleitores demonstram estatisticamente que a base eleitoral do candidato Lula está nas camadas mais pobres da população. Conferir, por exemplo, Holzhacker e Balbachevsky (2007). 5 Esse período de tempo se refere ao início do Programa, em 2003, até o ano em que os autores

realizaram a pesquisa.

Page 18: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

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arrefeceram, a tal ponto de, em 2013, o principal candidato da oposição à

presidência da República propor a constitucionalização do benefício e de este ser

visto como um fator positivo para a campanha de reeleição da então presidenta da

República Dilma Rousseff6 (PIRES; DIAS, 2015).

Ainda em 2008, juntamente com uma colega7, desenvolvi uma pesquisa sobre

o tema do Bolsa Família8. Durante todo o período daquela pesquisa, no ano de

2008, buscaram-se indicadores sobre o Bolsa Família, tanto no universo acadêmico

ou quanto no universo de quem trabalhava diretamente com os beneficiários.

Embora tenhamos nos deparado com alguns estudos9 que já apontavam os

impactos positivos do programa, este continuava sendo visto pela população como

um programa assistencialista e “eleitoreiro”. Não se sabia, contudo, qual era a

percepção dos beneficiários − quem eram estes, o que pensavam e qual o impacto

do dinheiro recebido no orçamento das famílias pareciam ser questões deixadas em

segundo plano.

Diante disso, ao buscar referências que abordassem o tema, foram

encontrados artigos e pesquisas quantitativas que analisavam os impactos das

políticas de transferências de renda sobre a pobreza e a desigualdade no Brasil;

6 No atual momento político e econômico do país, que inclui a necessidade de cortes no orçamento e

a instabilidade política advinda do afastamento e do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o PBF volta a ficar em evidência, sendo visto de forma polarizada: uns defendem a sua manutenção, e outros o consideram como “bolsa esmola” e “bolsa desocupado” e/ou apoiam o corte no orçamento de parte do dinheiro destinado ao programa, que em 2015 foi em torno de R$ 27,1 bilhões. Porém, cabe salientar que a minha pesquisa foi realizada em um período em que essa polarização, embora existisse, não estava tão em evidência. 7 A pesquisa foi realizada em conjunto com a professora Janie K. Pacheco – professora da Escola

Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Sul), localizada em Porto Alegre. 8 Naquele momento, investigamos os modos de provisão e as políticas de transferência de renda

voltadas às populações de baixa renda da cidade de Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre. O município, fundado em 1939, está distante 13,5 km da capital, e sua população, segundo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2015), é de 341.343 habitantes e apresenta alta taxa de alfabetização, 96%. No que se refere aos dados do PBF, segundo o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), são beneficiárias no município 9.822 famílias, cuja renda média do benefício alcançou, em março de 2016, R$ 142,82. 9 Jaccoud (2006), Hoffmam (2006) e Barros et al. (2006).

Page 19: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

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porém, até aquele momento, existiam poucos estudos qualitativos relacionados ao

tema do Bolsa Família. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises

Sociais e Econômicas (IBASE) (2008) sobre o PBF e a segurança alimentar

apontavam alguns indicadores de como o dinheiro oriundo do benefício era gasto

pelas famílias em diferentes regiões do Brasil, algo que aguçava a curiosidade

acerca de quem eram esses beneficiários e de como viviam. Dessa forma, por meio

de um estudo etnográfico, seria possível dar um “rosto” a essas famílias

beneficiárias, observando os impactos do programa em seu cotidiano, bem como as

formas de vida e de consumo.

Assim, com o objetivo de compreender o processo em torno do PBF e,

principalmente, de estudar junto às famílias beneficiárias os significados do auxílio

recebido e o modo como o dinheiro era empregado, iniciou-se, então, uma pesquisa

etnográfica com famílias de um bairro chamado Santo Operário10, situado na cidade

de Canoas (PINTO; PACHECO, 2009). Os resultados desse estudo trouxeram

inspiração, mais tarde, para minha pesquisa de doutorado, ainda que o contexto e o

local fossem outros.

Em 2010, havia me mudado para o Rio de Janeiro, uma cidade totalmente

diferente de Porto Alegre, onde então residia, e com desigualdades que

despertavam a curiosidade de conhecer o processo e as particularidades do PBF11. A

10 O bairro Santo Operário é também conhecido como Vila Operário. Favelas e vilas são termos

utilizados, respectivamente, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul como referência aos locais de residência das populações de baixa renda. Segundo Athayde (2011), no Brasil, a forma de denominar apresenta variações em cada uma das regiões do país, mas a realidade socioeconômica é a mesma, o que implica um perfil semelhante a seus moradores. 11 Por não saber como iniciar a pesquisa nem em qual instituição e pós-graduação o projeto de

pesquisa seria mais bem acolhido, por determinado período, cursei como ouvinte duas disciplinas em instituições distintas. Uma delas, intitulada “Sociologia do Consumo”, foi ofertada no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e ministrada pela professora Fátima Portilho; e a outra disciplina, intitulada “As favelas cariocas e seu lugar na cidade: aproximações e debates”, ofertada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi conduzida pelos professores Luiz Antônio Machado da Silva,

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partir do ingresso no curso de doutorado do Centro de Pesquisa e Documentação de

História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no

ano de 2012, iniciei um projeto cujo escopo era abordar a relação entre o PBF e o

consumo de populações de baixa renda no Rio de Janeiro, como já havia feito em

relação a um município do Rio Grande do Sul. Entre os objetivos pretendidos, a

partir de uma pesquisa etnográfica, buscava-se analisar os significados do consumo

para as populações de baixa renda beneficiadas por essas políticas de transferência

de renda. O projeto original de doutorado previa que a pesquisa fosse realizada com

beneficiários de favelas das Zonas Sul, Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Todavia, com o início da pesquisa e o estudo dos dados referentes às favelas e à

cidade do Rio de Janeiro, tornou-se perceptível a inviabilidade da execução de uma

etnografia em três regiões distantes e distintas da cidade, em que seria preciso

observar o cotidiano das famílias beneficiárias e os atendimentos nos CRAS, bem

como circular pelo local e conversar com moradores das favelas. Dessa forma, a

pesquisa tomou outros rumos a partir do que Malinowski (1976, p. 29) já havia

descrito como “os imponderáveis da vida real”. Segundo o autor:

Há uma série de fenômenos de suma importância que de forma alguma podem ser registrados apenas com o auxílio de questionários ou documentos estatísticos, mas devem ser observados em sua plena realidade. A esses fenômenos podemos dar o nome de os imponderáveis da vida real. Pertencem a essa classe de fenômenos: a rotina do trabalho, cuidados corporais, modo como prepara a comida e se alimenta, o tom das conversas e da vida social, laços de amizade [...] reações emocionais (MALINOWSKI, 1976, p. 29, grifo do autor).

Desse modo, a pesquisa concentrou-se em apenas uma favela, a do Pavão-

Pavãozinho, situada na Zona Sul do Rio de Janeiro, em detrimento da ideia inicial de

realizar um comparativo entre as três favelas das regiões mencionadas. A pesquisa

Marco Antônio da S. Mello e Márcia da S. P. Leite. Esta última disciplina permitiu conhecer melhor as favelas e a cidade do Rio de Janeiro, visto que eram estranhas ao meu cotidiano, tanto na vida pessoal quanto acadêmica.

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de campo iniciou oficialmente no final de 2012, após o recebimento da autorização

da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS)12 do Rio de Janeiro para

frequentar os CRAS. Primeiramente, realizei as observações no CRAS, órgão

localizado no acesso às favelas do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo13, o que permitiu

conhecer os beneficiários do programa, para posteriormente selecionar as famílias

que participariam do estudo e começar as visitas e observações em suas casas. O

trabalho de campo no CRAS e nas casas das famílias foi finalizado em agosto de

2015; entretanto, continuei mantendo contato com o CRAS, a fim de atualizar os

dados do programa relativos à favela do Pavão-Pavãozinho14.

Durante os quase três anos de pesquisa de campo (outubro de 2012 a agosto

de 2015), os objetivos propostos também sofreram algumas alterações, uma vez

que as investigações indicavam novas perspectivas e questões sobre o programa e

as diferentes etapas da execução desta política pública. As observações dos

atendimentos que eram realizados no CRAS pelas assistentes sociais e as

demandas da população beneficiária das políticas de assistência social sinalizavam

a existência de relações, percepções e dinâmicas em torno do PBF distintas das

diretrizes oficiais do programa e que, portanto, não poderiam ser captadas por

pesquisas e análises quantitativas, o que se justificava a realização de uma

etnografia.

A execução de uma análise do PBF quanto à gestão municipal em um grande

12 A autorização foi concedida pelo Centro de Capacitação da Política de Assistência Social da SMDS

em outubro de 2012. 13 Sobre a origem dos nomes das duas favelas, Bastos (2013, p. 10), a partir de entrevistas feitas com

moradores, explica que havia no Pavão-Pavãozinho e no Cantagalo dois homens: um, no lado do Pavão-Pavãozinho, criador de pavão; o outro, no lado do Cantagalo, criador de galo (e os galos cantavam, originando-se daí o nome Cantagalo). Os dois homens colocavam os animais para brigarem e apostavam dinheiro, o que inspirou os nomes das favelas. 14 No período de pesquisa, o CRAS teve três diretoras e uma rotatividade de assistentes sociais, que

solicitaram transferência para outros CRAS. Assim, nem todas as assistentes sociais que conheci no primeiro ano permaneceram até o final da pesquisa.

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20

centro urbano brasileiro possibilita a compreensão de várias interfaces desta política

pública e de diferentes aspectos da vida social de seus beneficiários (cultural,

econômico e político). Conceber o PBF como um “fato social” permite descrevermos

a “multiplicidade de coisa em movimento” relacionada ao programa (MAUSS, 2003,

p. 187). Ou seja, o estudo do Bolsa Família possibilita desvendar as relações de

troca que emergem na “ponta” do programa entre as partes envolvidas; trocas que

se apresentavam de distintas maneiras, materiais e simbólicas, criando obrigações

articuladas de modo particular em cada caso e gerando, assim, determinadas regras

de retribuições (MAUSS, 2003).

Desse modo, esta tese está estruturada em três capítulos. O primeiro capítulo

destina-se a descrever e apresentar o local de pesquisa, tecendo uma breve

explicitação sobre a história da favela do Pavão-Pavãozinho e as características do

CRAS, para posteriormente apresentar o modo de ingresso no trabalho de campo e

de acesso às famílias beneficiárias do PBF. Os demais tópicos do primeiro capítulo

são dedicados a elementos relacionados à área da assistência social e às primeiras

descrições e análises referentes ao papel do CRAS e à atuação dos seus agentes

na “ponta” da execução do programa. Para construir a narrativa referente à área da

assistência social no Brasil, baseamo-nos em autores como Bichir (2016) e, para

compreender as dinâmicas e a atuação dos agentes no CRAS, valemo-nos da

noção de campo de Bourdieu (1983, 2007).

Já o capítulo dois é dedicado a descrever o sistema de proteção social

brasileiro até a implementação do PBF. Dessa forma, primeiramente abarca

aspectos históricos e conceituais da área social com base em autores como Silva et

al. (2008), Rocha (2009), Rego e Pinzani (2013) e Campello e Neri (2013).

Posteriormente, a partir de casos observados nos atendimentos do CRAS, são

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21

expostos e discutidos os critérios e as estratégias de inclusão e exclusão dos

beneficiários, assim como a relação entre os beneficiários e as assistentes sociais.

No terceiro capítulo, são apresentadas as trajetórias de três beneficiários e

suas famílias. Trata-se de um recorte realizado a partir de um universo maior de

famílias beneficiárias do PBF na favela do Pavão-Pavãozinho, com a finalidade de

examinar o universo dessas famílias com base em seu consumo e seus aspectos

morais, nos significados que atribuem ao dinheiro proveniente do PBF e nos critérios

que utilizam para determinar o que é “ser pobre” e “merecedor” do benefício na

localidade. Auxiliam na reflexão acerca de consumo e dinheiro autores como

Barbosa e Campbell (2006), Miller (2002), Douglas e Isherwood (1996), Zelizer

(2003; 2009) e sobre populações de baixa renda autores como Sarti (1996), Zaluar

(1994) e Caldeira (1984).

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22

1 O ÍNICIO DA PESQUISA: AS NARRATIVAS, AS ESTRATÉGIAS E OS

AGENTES SOCIAIS

Este capítulo tem o objetivo de traçar um panorama sobre o percurso da

pesquisa de campo. Assim, após apresentar a favela do Pavão-Pavãozinho, são

descritas as estratégias de ingresso no trabalho de campo e os primeiros contatos

com os CRAS e seus agentes.

1.1 A PRIMEIRA VISITA À FAVELA DO PAVÃO-PAVÃOZINHO

Minha primeira ida à favela15 Pavão-Pavãozinho aconteceu em uma manhã de

sábado ensolarada. Nesse dia, dirigi-me até a favela na companhia de uma colega

pesquisadora que estava familiarizada com o local. Pegamos o metrô no bairro do

Flamengo e fomos a Copacabana. Descemos na estação do metrô General Osório e

saímos no sentido da Rua Sá Ferreira, para chegarmos à favela subindo por uma

das escadarias que faz a ligação entre as ruas Sá Ferreira e Saint Roman − esta

última é a principal rua de acesso ao local pelo bairro de Copacabana. Caminhamos,

então, pela Rua Saint Roman até outra escadaria, subimos e finalmente estávamos

em uma das pequenas ruas da comunidade. Paramos para tomar um café, e minha

colega explicou um pouco sobre a geografia do local, visto que a favela do Pavão-

Pavãozinho divide o espaço com a do Cantagalo.

Naquele sábado, fui apresentada à presidenta da Associação de Moradores

do Pavão-Pavãozinho e a alguns moradores. Pude, também, presenciar uma

reunião na Associação para discutir possíveis investimentos na comunidade, que

15 Sobre a origem das favelas no Rio de Janeiro, ver Valladares (2005). Em sua obra, a autora analisa

a construção da categoria favela enquanto problema social, salientando, contudo, sua dimensão histórica.

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23

seriam realizados com recursos provenientes do Banco Nacional do

Desenvolvimento (BNDES) e da Prefeitura do Rio de Janeiro. Participaram dessa

reunião a presidenta da Associação de Moradores, um representante da Unidade de

Polícia Pacificadora (UPP)16 Social, representantes da SMDS do Rio de Janeiro, um

representante do BNDES e moradores. A reunião, realizada no salão da Associação,

foi acompanhada de um café da manhã composto de bolos, pães, queijo, biscoitos,

suco, café e leite, itens trazidos pelos moradores e colocados em uma mesa no

fundo da sala. A reunião começou com a presidenta da Associação explicando os

motivos para sua realização − ela lamentou haver poucos moradores presentes (em

torno de 20 pessoas) e solicitou que estes falassem sobre quais investimentos

achavam necessários na comunidade. Entre as reivindicações, houve pedidos de

mais creches e da extensão do horário de atendimento das que já existiam, uma vez

que vários moradores trabalhavam à noite e precisavam da creche para deixar seus

filhos, assim como de escolas de tempo integral. Na área da saúde, uma moradora,

enfermeira, solicitou programas de planejamento familiar; outros moradores

reclamaram da falta de estacionamento na comunidade desde a instalação da UPP.

Aproveitando a queixa sobre a falta de estacionamento, alguns moradores criticaram

as políticas de habitação nas favelas; segundo um morador, “constroem prédios sem

garagem e sem qualquer tipo de infraestrutura de lazer, e depois perguntam: ‘O que

vocês querem? Onde investir?’”.

Na reunião, ficou evidente a diversidade de solicitações dos moradores. As

demandas e os discursos foram sendo apresentados em tom reivindicatório, assim

como as acusações aos representantes públicos de abandono e falta de políticas

16 A UPP é uma Política de Segurança Pública implementada pela Secretaria de Estado de

Segurança (SESEG) do Rio de Janeiro. Foi instalada nas favelas do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo em dezembro de 2009. Sobre UPP ver Cunha (2014; 2011).

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24

públicas para a comunidade. Entre os moradores que pediam a palavra e

apresentavam-se, alguns, que possuíam curso superior, mencionavam a sua área

de formação, o que parecia dar legitimidade às demandas, como foi o caso de um

morador que era advogado e de uma moradora que era enfermeira: “Bom dia,

pessoal. Eu sou o [...] todos me conhecem, sou formado em Direito...”; “Oi, bom dia.

Eu sou a [...], sou formada em Enfermagem”.

Em dado momento, um dos moradores reforçou a importância de a favela ter

pessoas com curso superior, já que assim não precisavam mais depender de

profissionais de fora da comunidade para resolver seus problemas. As falas e os

conteúdos expostos naquela reunião deixavam claro que, na favela do Pavão-

Pavãozinho, existia um universo heterogêneo de moradores. Mas qual eram a

história e as características daquele local e de seus moradores?

1.2 A FAVELA DO PAVÃO-PAVÃOZINHO

O Pavão-Pavãozinho faz parte de um “complexo17 de favelas”, Pavão-

Pavãozinho-Cantagalo, localizado na Zona Sul do Rio de Janeiro entre os bairros de

Copacabana, Ipanema e Lagoa18. A favela do Pavão-Pavãozinho fica no morro,

voltada para o lado do bairro de Copacabana, e possui acessos pelas ruas Saint

Roman e Sá Ferreira (figura 1).

17 O termo “complexo” foi designado pela Prefeitura do Rio de Janeiro para fazer referência a um

agrupamento de várias favelas. 18 A população total do “Complexo Pavão-Pavãozinho-Cantagalo” é de 10.338 habitantes (IBGE,

2010). A favela do Pavão-Pavãozinho possui uma população de 5.567 habitantes distribuídos em 1.840 domicílios com uma média de 3,03 habitantes. Já a favela do Cantagalo possui uma população de 4.771 habitantes distribuídos em 1.428 domicílios com uma média de 3,34 habitantes (IBGE, 2010). Segundo a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) (2010), a renda per capita do Pavão-Pavãozinho é de R$ 755, e a do Cantagalo é de R$ 670.

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Figura 1 – Escadaria que liga a Rua Sá Ferreira à Rua Saint Roman (rua de acesso à favela),

Copacabana

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2014).

As histórias de ocupação das duas favelas são semelhantes. A origem do

Cantagalo remonta à ocupação da orla do Rio de Janeiro, no início do século XX,

com trabalhadores vindos principalmente do interior dos estados do Rio de Janeiro e

de Minas Gerais que, em geral, eram negros. A história do Pavão-Pavãozinho,

conforme dados do Instituto Pereira Passos (IPP) (2010), não é muito diferente − a

comunidade estabelecera-se ali atraída pelo mercado de trabalho que os bairros de

Ipanema e Copacabana passaram a oferecer a partir da década de 1930. A esse

respeito, Cunha (2014, p. 13) descreve parte da história da formação das duas

favelas a partir dos relatos dos moradores: “A ocupação teve início na década de

1910 no Cantagalo. Pouco depois a ocupação se estendeu pela encosta do morro,

com a formação da favela Pavão-Pavãozinho”. Este relato pode ser confirmado em

um tour guiado realizado por meio do Museu da Favela (MUF)19. No “tour circuito

19 O MUF está localizado na favela do Cantagalo. É uma organização não governamental (ONG)

privada de caráter comunitário, fundada em 2008 por lideranças culturais residentes nas favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Nesse primeiro museu territorial e vivo sobre memórias e patrimônio cultural de favela do mundo, o acervo consiste em cerca de 20 mil moradores e seus modos de vida, narrativos de parte importante e desconhecida da própria história da cidade do Rio de Janeiro (MUSEU DA FAVELA, 2016). Sobre o MUF, ver Portilho (2016) e Bastos (2013).

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26

Casas-Tela”20, como é denominado pelo MUF, foi possível andar pelas comunidades

e conhecer um pouco da sua história por meio dos relatos da guia do museu e das

pinturas feitas nas paredes externas de algumas casas (Figura 2). Cada pintura

remitia a um momento da história e da vida dos seus moradores.

Figura 2 – Circuito Casas-Tela, favela do Cantagalo

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2012).

Durante a pesquisa, algumas vezes ouvi de moradores histórias do passado

sobre a rivalidade entre as comunidades do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho,

rivalidade essa que, segundo os moradores, acirravam-se em partidas de futebol na

praia e em blocos carnavalescos. Tal hostilidade não fez presente durante as

observações realizadas, mas por vezes aflorava em certos comentários sobre os

investimentos da prefeitura e setores privados realizados no Cantagalo feitos pelos

moradores do Pavão-Pavãozinho, que se sentiam preteridos.

Cunha (2011, p. 3) descreve a história da rivalidade entre as comunidades:

20 Segundo Portilho (2016, p. 174), os painéis das “Casas-Tela” “narram a história da ocupação

maciço do Cantagalo a partir da memória coletiva local, acessada por meio de entrevistas realizadas com os moradores mais antigos. Assim, inicia-se pela chegada de escravos que haviam fugido e migrantes vindos de Minas Gerais. Houve uma escolha por valorizar mais as memórias transmitidas oralmente do que documentos oficiais e outras fontes depositadas em arquivo”.

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27

É interessante notar que por trás da categoria “Complexo Pavão-Pavãozinho-Cantagalo” estão duas favelas vizinhas que ao se expandirem, acabaram se interligando fisicamente [...]. No entanto, não anula uma certa rivalidade ou disputa entre seus “moradores” que, por vezes, vem à tona, mas que, por vezes, é também posta em segundo plano (grifo do autor).

Em outro momento, uma moradora do Pavão-Pavãozinho mencionou que,

quando era jovem, as meninas não iam para o Cantagalo nem namoravam rapazes

de lá e vice-versa21. O motivo da “proibição” do contato entre os moradores das duas

favelas ela dizia não recordar:

Eram outros tempos, imagina uma menina ir para o lado de lá [Cantagalo] ou o contrário, tinha uma rivalidade nem lembro por quê. As coisas começam e depois se esquece o motivo. Hoje é mais mesclado isso, principalmente depois da chegada dos “paraíbas”22 nos anos 80 (Lauriete,

52 anos).

A moradora utiliza o termo “paraíba” para referir-se aos imigrantes

nordestinos23 dos anos 1970 e 1980 que chegaram à cidade do Rio de Janeiro em

busca de trabalho e foram incorporados ao mercado em diferentes atividades

(BARBOSA, 2005). Cabe mencionar que, durante a pesquisa, observou-se a

existência de um fluxo contínuo de imigrantes nordestinos, de modo que sempre

havia uma família chegando à favela ou dela indo embora24. Presenciei no CRAS

famílias nordestinas que vinham solicitar a transferência do benefício do Bolsa

Família de seu município, na região nordeste, para o Rio de Janeiro e outras famílias

querendo ir embora e precisando de ajuda. Claudete e Raimundo, um casal com 21 Bastos (2013, p. 12), com base no relato de alguns moradores, descreve uma das possíveis

motivações dessa rivalidade. Segundo a autora, houve no passado uma separação imposta por “grupos de traficantes de drogas que atuavam na localidade e não pertenciam à mesma facção criminosa. A divisão acontecia onde hoje fica a Lotérica na Estrada do Cantagalo - do lado do Pavão-Pavãozinho, Comando Vermelho e o lado do Cantagalo, Terceiro Comando. Mas isso não é algo consensual para os moradores”. 22 “Paraíba” é um termo genérico usado para designar imigrantes nordestinos. 23 Sobre a ocupação do Pavão-Pavãozinho, sabe-se que seus moradores são descendentes, em sua

maioria, dos estados da região nordeste do Brasil. Esses moradores são nomeados, “jocosamente, em um jogo ambíguo e muitas vezes de auto-ironia, de paraíbas” (MARZULO, 2005, p. 141-147 apud BASTOS, 2003, p. 9). 24 Sobre os imigrantes da região nordeste no Rio de Janeiro, ver Barbosa (2005).

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28

dois filhos que era do interior de Pernambuco e estava morando há dois anos no Rio

de Janeiro, procuraram o CRAS com esse propósito: receber ajuda para retornar ao

à sua cidade25.

Nas caminhadas pelas comunidades, principalmente nos finais de semana,

quando havia mais pessoas em casa, circulando e conversando nos bares ou nas

biroscas26, a divisão relatada pelos moradores era perceptível nas músicas tocadas e

ouvidas. No lado do Cantagalo, ouvia-se mais funk; e, no lado do Pavão-

Pavãozinho, as músicas mais tocadas eram o sertanejo e o forró. Tal fato, segundo

os moradores, indicava que, na favela do Pavão-Pavãozinho, o número de

nordestinos era superior.

Em termos da geografia do local, as favelas do Pavão-Pavãozinho e

Cantagalo são separadas por uma rua (ladeira); porém, ao circularmos entre as

favelas, é quase imperceptível o limite entre elas, ainda que haja algumas

diferenças. As ruas no Pavão-Pavãozinho, por exemplo, possuem nomes de flores e

pássaros, como Hortência e Beija-Flor. Entretanto, são poucas as ruas que

apresentam alguma indicação de nome, o que torna difícil encontrá-las para quem

não conhece a sua localização.

25 Claudete contou, durante o atendimento no CRAS, que a família pretendia voltar para sua cidade

em virtude dos filhos. Eles tinham sido reprovados na escola, não gostavam da vida na favela e não conseguiam fazer amigos. Dessa forma, o melhor a fazer, segundo ela, era retornar devido ao fato de os filhos “estarem sofrendo”. 26 Birosca é um termo usado pelos moradores para referirem-se a pequenos estabelecimentos que

vendem bebidas e alimentos. Trata-se de um misto de mercado, bar e local para lanches.

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Figura 3 – Limites das favelas Cantagalo e Pavão-Pavãozinho

Fonte: Rio Mais Social (2016).

Nas áreas da saúde e educação, o “complexo” conta com um Centro

Integrado de Educação Pública (CIEP) – Presidente João Goulart; uma creche

Municipal – Elza Machado dos Santos ou “Tia Elza”, como chamam os moradores; e

uma Clínica da Família27, além de serem atendimentos por diversas ONGs – tais

como Criança Esperança, AfroReggae e Surf Club.

Os moradores do Pavão-Pavãozinho são atendidos pelo Plano Inclinado,

sistema de transporte com cabine que leva as pessoas para as partes mais altas da

favela. O trajeto possui cinco estações e transporta até oito pessoas e 400 quilos de

27 A Clínica da Família tem como objetivo focar as ações de prevenção, promoção da saúde e

diagnóstico precoce de doenças.

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30

cargas28.

Quanto às condições de ocupação no Pavão-Pavãozinho, segundo

documento sobre o “Panorama dos Territórios”29, 989 dos domicílios são próprios,

815 são alugados, 30 são cedidos, e seis encaixam-se em outras categorias30.

Desses domicílios, 99,6% têm abastecimento de água, e 99,4% possuem banheiro

ou sanitário31. Contudo, ao caminhar pela favela, era comum encontrar tonéis com

água nas portas de algumas moradias, assim como banheiros precários (somente

com vaso sanitário e sem chuveiro ou com vaso sanitário com problemas ou

quebrado) e falta de água em outras casas. Em uma das casas visitadas, a mulher

costumava dar banho nas crianças utilizando a água do tonel que ficava na parte

externa da casa, ao lado da porta de entrada (Figura 4). Em outra moradia, havia um

“rodízio” no abastecimento de água conhecido como “manobra”32. A utilização de

tonéis pelos moradores também foi relatada na pesquisa realizada por Cunha (2014,

p. 16): “tais toneis são utilizados para armazenar água, forma encontrada pelos

moradores para lidar com muitos dias em que a água não chega até suas casas”.

28 Na favela do Cantagalo, em Ipanema, um dos acessos pode ser feito pelo elevador panorâmico

localizado na Rua Barão da Torre. O elevador dá acesso à favela e a um mirante, o “Mirante da Paz”, com vista para o bairro e a praia de Ipanema. 29 Documento elaborado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, por meio do Instituto Pereira Passos e da

UPP Social, com base no censo do IBGE de 2010. 30 No bairro de Copacabana, 61% dos moradores residem em imóvel próprio; 33% em imóvel

alugado; e 6% em imóveis cedidos (IPP, 2010). 31 O Pavão-Pavãozinho possui índices aproximados aos do bairro de Copacabana, que conta com

99,9% de domicílios com abastecimento de água e com banheiro ou sanitário. Na cidade do Rio de Janeiro como um todo, 98,5% das residências têm abastecimento de água, e 94,9% possuem banheiro ou sanitário. 32 A prática da “manobra” consiste em um “sistema local através do qual o curso da água a cada dia é

direcionado para determinada área das favelas por um morador, pois a rede pública não chega para todos” (CUNHA, 2014, p. 16).

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Figura 4 – Escada com tonel (em azul) de água na entrada de um domicílio

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2013).

O “Complexo Pavão-Pavãozinho-Cantagalo”, a partir do final de 2007, passou

a ser foco de políticas públicas como o Programa de Aceleração do Crescimento

(PAC)33 (Figura 5), sediando obras de infraestrutura e reurbanização, obras de

expansão do Metrô Rio – por meio das quais também foram construídos um

elevador e um mirante (já mencionados) –, a instalação da UPP e, ainda, o processo

de regularização urbanística e fundiária (CUNHA, 2011; 2014). Em 2011, mais obras

foram executadas via o programa chamado “PAC 2”. Desde então, dois prédios

foram construídos no Cantagalo, e um prédio foi edificado no Pavão-Pavãozinho

(figura 5). Houve, também, investimentos em acessibilidade e na rede de esgoto e

água, sobretudo, do Pavão-Pavãozinho.

33 Criado em 2007, no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PAC tem a

proposta de retomada do planejamento e da execução de obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país. Entre os programas que fazem parte do PAC, está o “Minha Casa Minha Vida”, programa habitacional para a contratação de unidades habitacionais com prioridade às famílias de baixa renda (PAC, 2016). Sobre PAC ver Cunha (2014).

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Figura 5 – Prédio construído pelo PAC (à esquerda) na favela do Pavão-Pavãozinho

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2014).

Entretanto, conforme Cunha (2014), de maneira geral o Cantagalo concentra

os equipamentos urbanos e usufrui de um nível avançado de urbanização em

relação ao Pavão-Pavãozinho. Segundo a autora, “as duas favelas foram palco das

mesmas políticas públicas de urbanização, porém segundo algumas lideranças das

duas favelas, no entanto, elas foram mais atuantes no Cantagalo” (CUNHA, 2014, p.

15), percepção essa compartilhada por parte dos moradores do Pavão-Pavãozinho.

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33

Figura 6 – Favela do Pavão-Pavãozinho

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2013).

Cabe frisar que, durante todo o tempo de pesquisa de campo, ou grande

parte dele, havia uma sensação de segurança34 que permitia transitar com

tranquilidade pelas ruas, pelos becos e pelas escadarias da favela. Foi um momento

“especial” na cidade do Rio de Janeiro, marcado pelos eventos da Copa do Mundo

de 2014 e das futuras Olimpíadas de 2016 e pela estabilidade econômica. Parte dos

moradores do Pavão-Pavãozinho afirmava que tudo corria bem − embora alguns

traficantes ainda permanecessem por lá, não andavam visivelmente armados e

conservavam-se nas partes mais altas do morro. Assim, era possível deixar as

crianças sentadas nas escadas ou nas portas das casas. Além disso, a UPP Social

buscava participar mais ativamente da vida dos moradores da comunidade,

ofertando cursos sobre empreendedorismo e estando presente nas reuniões da

34 A implementação das UPPs em pontos distintos da cidade e a ampla divulgação do governo

municipal e estadual, via imprensa, acerca de que tais unidades acabariam com os problemas de violência na cidade criaram uma sensação de segurança.

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34

Associação de Moradores. Contudo, essa segurança e os “megaeventos”

colaboraram para a alta dos preços dos imóveis, alvo de reclamações constantes

dos moradores:

Com a UPP ficou melhor, a gente pode sair mais tranquilo. Mas, tem o outro lado também: o “pessoal do asfalto”35; principalmente estudante vem morar aqui. É uma bola de neve, o asfalto fica caro e então vem para o morro, e a gente paga mais caro ou vai para mais longe (Osvaldo, 60 anos).

Entretanto, no final de 2013 e especialmente em 2014, moradores

começavam a comentar a volta dos traficantes mais perigosos para a comunidade e

a presença de milicianos. A primeira vez que senti medo na favela foi em janeiro de

2014: estava próxima à primeira estação do plano inclinado esperando uma das

beneficiárias vir ao meu encontro, pois havia marcado de ir até sua casa, mas não

sabia como chegar. Enquanto aguardava, fiquei observando o vai e vem dos

moradores. Dois policiais da UPP caminhavam nas proximidades, e tudo estava

calmo. Eis que surgiu um grupo de cinco rapazes, a passos largos, com semblante

fechado e olhando para todos os lados. Fiquei sem ação e desviei o olhar para o

chão. Os dois policiais que estavam próximos saíram caminhando atrás dos

rapazes, e uma senhora que esperava o elevador do plano inclinado comentou: “já

pode ter confusão”. Naquele instante, materializava-se a percepção dos moradores

de que os momentos de tranquilidade poderiam estar chegando ao fim. Um episódio

marca e deflagra o final da tranquilidade na comunidade: na madrugada de 22 de

abril de 2014, houve um tiroteio entre policiais da UPP e traficantes. Um jovem

chamado Douglas Pereira, que atendia pelo apelido de DG, foi encontrado morto. O

caso teve grande repercussão, pois o jovem era dançarino do programa “Esquenta”

35 “Asfalto” é um termo usado pelos moradores para referir-se ao que não é ou não está no morro.

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35

da Rede Globo de televisão apresentado por Regina Casé. Após o corpo ter sido

encontrado e alguns moradores acusarem os policiais pelo assassinato, houve

conflito no bairro de Copacabana36.

Foram momentos de tensão, em que circular pela favela já não parecia tão

seguro. As observações no CRAS continuaram, mas as visitas às casas das famílias

não. Nesse período, recebia ligações das mulheres solicitando que eu não fosse −

“não vem, está tenso ainda, espera, homens andando armados”. As assistentes

sociais também me desaconselhavam a transitar pela favela. O ambiente voltou “ao

normal” no mês seguinte, mas outros tiroteios aconteceram naquele ano. Em 2015,

os traficantes, na sua maioria jovens, voltaram a circular armados por toda a favela,

e os relatos de tiroteios tornaram-se mais frequentes. A tranquilidade que presenciei

nos anos anteriores (final de 2012 e decorrer de 2013) havia acabado.

1.3 AS ESTRATÉGIAS DE ENTRADA EM CAMPO E AS NARRATIVAS DE ACESSO

ÀS FAMÍLIAS BENEFICIÁRIAS DO PBF

No primeiro ano de doutorado, como mencionado, procurei estratégias de

acesso às famílias beneficiárias. A preocupação era por onde e como iniciar o

trabalho de campo. Começar uma pesquisa é sempre um processo complexo; em

várias etnografias clássicas ou mais recentes sobre sociedades simples ou

36 Segundo notícia do G1, a noite do dia 23 de abril de 2014, “foi uma noite de muita tensão, com

tiros, barricadas com fogo e ruas de Copacabana bloqueadas. O tumulto se estendeu por duas das principais ruas do bairro e o comércio fechou as portas. A Avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma das principais do bairro, foi fechada antes das 18h. O Batalhão de Choque se posicionou bem perto da entrada do Pavão-Pavãozinho onde está situada a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Uma multidão se concentrou no acesso ao morro. A cada movimentação da polícia, havia revolta da população. Na confusão, Edilson da Silva dos Santos, de 27 anos, levou um tiro na cabeça e morreu antes de chegar ao hospital. Segundo o comando da UPP, na madrugada de terça-feira, houve um tiroteio entre policiais da unidade e traficantes. O caso foi registrado na delegacia e, quando policiais civis faziam uma perícia no local do tiroteio, viram Douglas morto. Moradores do Pavão-Pavãozinho relataram à TV Globo que Douglas estaria pulando muros da creche para fugir do tiroteio entre bandidos e policiais da UPP, na madrugada. O dançarino teria sido confundido com traficantes” (G1, 2014).

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36

complexas, as narrativas de acesso ao campo quase sempre tratam das dificuldades

iniciais. Malinowski (1978, p. 19), por exemplo, descreve as primeiras semanas de

visitas realizadas em Nova Guiné e o sentimento de “desespero e desalento” após

inúmeras tentativas “inúteis” para estabelecer contato “real” com os “nativos” e

conseguir dados para sua pesquisa. A narrativa de Geertz (2008) sobre Bali, onde

ele e sua mulher eram ignorados e tratados pelos “nativos como não-pessoas”,

indica que tal fato somente se alterou após o episódio da “briga de galos”. Estando

no Rio de Janeiro nos anos 1980, Zaluar (1994) expõe as dificuldades para iniciar a

pesquisa com classes populares, o seu ingresso no campo e a maneira como foi

recebida pelos moradores do bairro Cidade de Deus, local da pesquisa.

Sabendo das dificuldades que teria, a primeira tentativa de acesso a famílias

do PBF ocorreu por meio da sugestão de amigos que residiam no Rio de Janeiro e

indicaram duas famílias beneficiárias que moravam na cidade de Duque de Caxias37.

Parecia ser um caminho promissor para ter contato com famílias beneficiárias.

Todavia, minha intenção era permanecer na cidade do Rio de Janeiro, apesar das

dificuldades que se apresentavam.

A tendência nas etnografias realizadas acerca do programa e de seus

beneficiários é escolher municípios menores38, assim como havíamos feito na

pesquisa de 2008 realizada no estado do Rio Grande do Sul. Os motivos para isso

estão nas facilidades de acesso aos beneficiários e ao gestor no âmbito local, assim

como na observação e análise de toda a estrutura em um município de menor porte.

Até aquele momento, não havia etnografias sobre o programa na cidade do Rio de

37 Município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com população estimada em 882.729

habitantes (IBGE, 2015). 38 Acerca de etnografias sobre o PBF, conferir os seguintes estudos: Eger (2013), Cruz (2013), Marins

(2013), Pires (2013c) e Rego e Pinzani (2013).

Page 39: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

37

Janeiro. Desse modo, a decisão de permanecer e pesquisar nesse local se impunha

e parecia desafiadora. Entretanto, também se fazia necessário iniciar as atividades

relacionadas à pesquisa de campo. Como seriam? Em qual local (região, bairro e

favela) da cidade ocorreriam? Iniciaria pelas famílias a partir de indicações de

conhecidos ou pelo gestor municipal do PBF? Qual seria a melhor estratégia para

iniciar o trabalho de campo?

Em um primeiro momento, por indicações da minha orientadora, entrei em

contato com uma moradora do Morro do Borel39, que poderia auxiliar na interação

com as famílias beneficiárias. O local parecia adequado para iniciar a pesquisa de

campo, pois, segundo dados da SMDS (2012), 80% da população atendida pelo

PBF reside em domicílios nas regiões norte e oeste da cidade, índice que foi

motivador para que eu entrasse em contato com a referida moradora, que, embora

não recebesse o benefício, poderia indicar e apresentar famílias do PBF. Após vários

telefonemas, conversas e tentativas frustradas de ir ao Morro do Borel, acabei

desistindo. A experiência que eu já possuía na realização de etnografias anteriores

indicava que o contato não iria acontecer. Era necessário, então, buscar uma

alternativa − a angústia de iniciar o trabalho de campo acentuava-se, pois, além de

não conseguir acesso às famílias beneficiárias, não possuía conhecimento da

geografia da cidade e de seus códigos para circular sozinha por locais como o Borel.

Em abril de 2012, após mais uma tentativa malsucedida, estabeleci outra

estratégia. Cabe salientar que, nas pesquisas com populações de baixa renda em

um grande centro urbano, como o Rio de Janeiro, uma das “portas” de acesso a

esse grupo pode ser a SMDS. Esse órgão é responsável pelos programas sociais do

município, realizando a gestão local do PBF. E foi assim que procedi. Desse modo,

39 Favela localizada no bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro.

Page 40: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

38

em uma nova tentativa de inserção, parti em busca de contato com a SMDS para

obter acesso às famílias do PBF. Já possuía a informação de que os CRAS eram

responsáveis diretos por atender as famílias do programa. Na SMDS, fui informada

da necessidade de obter uma autorização para pesquisar as famílias beneficiárias

por intermédio do contato com o CRAS. Entretanto, em virtude da estrutura

burocrática da SMDS, tal exigência se mostrou extremamente difícil de ser cumprida

por uma pesquisadora acadêmica, uma outsider do sistema, que não possuía

vínculos nem conhecidos que fizessem parte dessa “estrutura” e que pudessem,

assim, auxiliar ou até mesmo facilitar meu ingresso no campo.

As tentativas de contato por telefone ou por e-mail não funcionaram, pois

cada setor encaminhava-me para outro, e nenhum funcionário sabia informar como

obter a autorização para realizar a pesquisa. As dificuldades e a falta de informação

passaram a ser estudadas: se as experiências em pesquisas anteriores – em outro

município, é verdade – com setores públicos vinculados ao PBF haviam se

concretizado, por que agora seria de outra forma? Diante disso, precisei analisar

quais eram as diferenças e complexidades do PBF no Rio de Janeiro em relação

aos dos demais estados. Certamente a existência de uma estrutura burocrática mais

extensa dificultava o acesso às famílias; entretanto, era perceptível também a

existência de um “campo”40 no âmbito municipal, em que o acesso às informações e

aos diferentes agentes envolvidos se apresentava como um “jogo de xadrez”, no

qual conhecer as regras e saber quando e como mover as peças era fundamental.

Assim, busquei alternativas que pudessem legitimar meu acesso ao PBF na

cidade do Rio de Janeiro. Após várias tentativas e muita persistência em obter a

40 O espaço percebido como um “campo” diz respeito à área social, em que estão relacionados a gestão local do

PBF e os agentes que dele fazem parte, aspecto que será posteriormente analisado.

Page 41: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

39

permissão, a SMDS exigiu a apresentação de: 1) carta da Instituição de Ensino

(informando o vínculo), 2) carta da orientadora, 3) cópia do projeto de pesquisa, 4)

termo de consentimento (se houvesse entrevistas) e 5) cronograma de pesquisa.

Uma vez ciente da solicitação, ficou claro que o consentimento somente seria dado

mediante a entrega da documentação requerida, e assim foi feito. Porém, apesar do

cumprimento das exigências, fui informada de que, devido à reestruturação de

setores da SMDS, após as eleições municipais de 2012, seria necessário aguardar a

publicação de uma resolução que criaria o “Comitê de Pesquisa” − este seria

responsável pela aprovação da pesquisa.

No período em que aguardava a autorização da SMDS, fui conhecendo

melhor a comunidade do Pavão-Pavãozinho e seu cotidiano. Conheci moradores

como a família de Márcia, 30 anos, ajudante em uma creche na parte da tarde,

formada por ela, seu marido Paulo, 35 anos, porteiro de um prédio em Copacabana,

e sua filha Larissa, seis anos. A renda “oficial” do casal provinha do salário de Paulo

e girava em torno de um salário mínimo − havia também a renda de Márcia (meio

salário mínimo), que trabalhava sem carteira assinada. Ela recebia do PBF o

benefício de R$ 102. Conversamos algumas vezes na Associação; porém, quando

falávamos do Bolsa Família, ela mostrava-se desconfiada. Conheci também a família

do seu Joaquim. Ele, um senhor de 70 anos, aposentado e bastante participativo

nas reuniões da Associação de Moradores, residia com a filha, o genro e um neto e

orgulhava-se da casa própria e de tudo o que tinha conquistado com seu trabalho. A

filha trabalhava em um hotel de Copacabana, e o genro, em um restaurante. Era seu

Joaquim quem cuidava do neto de cinco anos quando este não estava na escola.

Tais encontros e conversas foram tornando a comunidade mais familiar. Já naquele

momento permanecia a maior parte do tempo na favela do Pavão-Pavãozinho,

Page 42: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

40

talvez pelo modo como fui acolhida primeiramente na Associação e depois por

alguns moradores − era uma maneira de conhecer e também de me tornar

conhecida.

Sempre que “subia” na favela pelo plano inclinado, tomava café na birosca da

Dona Maria e ficava observando o vai e vem dos moradores com seus afazeres

diários, os jovens conversando e descendo em direção à praia e as crianças indo à

escola ou dela voltando. Em outros momentos, frequentava o salão que ficava

próximo à Associação, na Avenida Pavãozinho, fazia as unhas e hidratação nos

cabelos, conversava e ouvia sobre o cotidiano da comunidade. No começo, houve

olhares curiosos, como de uma menina que aparentava ter uns seis anos. Eu estava

na birosca da Dona Maria, e ela apareceu para comprar sacolé41. Ficou olhando-me,

parou ao meu lado e perguntou: “Você mora aqui?” A minha resposta foi afirmativa,

simplesmente para ver qual seria a sua reação. Ela ficou parada mais alguns

segundos me olhando e disse: “Não parece, você não tem cara que mora aqui, não”,

deu um largo sorriso e saiu correndo. Voltamos a nos encontrar, e ela sempre vinha

conversar comigo, já com a certeza de que eu não era moradora. Perguntei por que

eu não parecia moradora do local, e ela com um sorriso respondeu: “sei lá [pausa

pensando], pelo jeito” e mudou de assunto. Assim, permaneci na favela do Pavão-

Pavãozinho conversando com as pessoas e circulando pelo local até obter a

autorização para frequentar o CRAS.

1.3.1 O Centro de Referência de Assistência Social: o primeiro dia

Durante o processo de obtenção da autorização junto à SMDS, foi solicitado

41 “Sacolé” é uma espécie de picolé feito de água e xarope ou sumo de fruta, congelado dentro de um

saquinho plástico.

Page 43: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

41

acesso a três CRAS na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de ter um

panorama do PBF em três regiões distintas: CRAS Sebastian Theodoro Filho, que

atende a Zona Sul; CRAS Machado de Assis, que contempla bairros da Zona Oeste;

e CRAS Bonsucesso, que se situa na Zona Norte, abrangendo o Complexo ou bairro

da Maré42. Após receber a autorização, no final de 2012, procurei o CRAS que

atendia a Zona Sul com o intuito de iniciar a pesquisa de campo por aquela região,

já que estava familiarizada com a favela do Pavão-Pavãozinho. O CRAS Sebastian

Theodoro Filho (figuras 7 e 8) 43 está localizado em uma casa de dois andares na

Rua Saint Roman, em um dos acessos para as favelas do Pavão-Pavãozinho e

Cantagalo. Na primeira visita oficial ao local, identifiquei-me na recepção e fui em

seguida recebida de forma amistosa pela diretora do CRAS, que já estava ciente da

autorização, em sua sala. Relatei, então, os objetivos da pesquisa e fui conduzida

por todas as instalações e informada sobre a estrutura física do local.

42 Naquele momento, a intensão de realizar a pesquisa em três CRAS ainda existia. 43 Bairros de abrangência desse CRAS: Copacabana, Ipanema, Lagoa (parte), Leme e Leblon. As

comunidades são: Copacabana – Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras (até o n.º 1.013) e Morro dos Cabritos; Ipanema – Cantagalo; Lagoa – Morro dos Cabritos e Rua Vitória Régia; Leme – Chapéu Mangueira e Babilônia; e Leblon – Cruzada São Sebastião.

Page 44: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

42

Figura 7 – Casa do CRAS e Clínica da Família

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2015).

Figura 8 – Entrada que dá acesso ao CRAS

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2015).

Page 45: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

43

Embora o CRAS compartilhe o local com a Clínica da Família44, os espaços

são divididos. No primeiro andar da casa, há duas salas45 de espera com cadeiras e

duas recepções com mesas onde ficam, de um lado, as funcionárias do CRAS

(Figura 9) e, do outro, da Clínica da Família, tudo dividido e sinalizado para cada

atividade. Nas paredes, do lado do CRAS, há quadros com propaganda dos

programas sociais (Figura 10), calendário do pagamento do Bolsa Família e cartazes

que informam os horários de atendimentos e os documentos necessários para o

cadastro no PBF (Figura 11). Além da sala de espera/recepção, há outras salas no

mesmo andar. Do lado da Clínica da Família, há um consultório médico e a farmácia

para distribuição de medicamentos; do lado do CRAS, existem duas salas de

atendimentos, uma para as assistentes sociais e outra para os funcionários que

realizam o cadastro. Há, ainda, no mesmo andar, um banheiro e uma cozinha, sendo

esta compartilhada pelos funcionários do CRAS e da Clínica da Família. Já no

segundo andar, existem mais salas que são utilizadas pelo CRAS – sala da diretora,

sala para as reuniões e salas para os cursos promovidos pelos CRAS, além de um

banheiro.

44 A Clínica da Família tem como objetivo realizar consultas médicas, ações de prevenção, promoção

da saúde e diagnósticos precoces de doenças. Está vinculada à Secretária da Saúde do Município. 45 São as duas salas no CRAS que possuem computadores e acesso à internet.

Page 46: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

44

Figura 9 – Recepção do CRAS

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2015).

Figura 10 – Quadro informativo sobre programas sociais na recepção do CRAS

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2013).

Page 47: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

45

Figura 11 – Quadro informativo sobre o cadastro no PBF

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2015).

No mesmo dia, fui apresentada às assistentes sociais e informada acerca do

trabalho realizado no CRAS. Cada assistente social é responsável por uma parte da

Zona Sul denominada “território”. As assistentes atendem e acompanham as famílias

do seu território em determinado dia da semana e realizam as demais atividades no

período restante. No total, são quatro territórios: 1) Chapéu Mangueira e Babilônia

(Leme); 2) Tabajara e Cabrito (Copacabana); 3) Pavão-Pavãozinho (Copacabana); e

4) Cantagalo e Cruzada (Ipanema, parte da Lagoa e Leblon). O fato de eu

acompanhar os atendimentos causou, no princípio, desconforto nas assistentes

sociais, que se preocupavam com o que seria descrito acerca do trabalho por elas

realizado. Uma das assistentes manifestou essa insegurança ao comentar que

“quem pisa na bola é transferida para trabalhar em Santa Cruz”46. Procurei

tranquilizá-las, explicando o objetivo da pesquisa; porém, a relação de confiança

46 Santa Cruz é um bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro considerado um dos mais distantes da

área central da cidade.

Page 48: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

46

pretendida foi sendo construída apenas com a convivência.

Como o universo contemplado pelo trabalho das assistentes sociais

mostrava-se amplo, inicialmente, acompanhei somente os atendimentos no CRAS e

principalmente “os plantões”, realizados às sextas-feiras, por uma das assistentes

sociais, com o propósito de atender as pessoas que procuram por programas

sociais47. Os atendimentos eram visados por todos os moradores da Zona Sul,

denunciando as mais variadas demandas da população.

1.4 DESVENDANDO O “CAMPO” DA ÁREA SOCIAL

Para melhor compreender o PBF, é primordial descrever os aspectos

relacionados à história da assistência social no Brasil. Bichir (2016, p. 111)

argumenta que para entender as dinâmicas recentes da proteção social não

contributiva no Brasil, “é necessário analisarmos não somente o PBF, mas também

os desafios e articulações com outras políticas sociais, e em particular a política de

assistência social”. Trata-se, assim, de questionar: como iniciou a área da

assistência social no Brasil?; que elementos e entidades foram construindo a

assistência social?; e quem dela faz parte? Não se pretende aqui analisar todas as

políticas e articulações, mas dar ciência de parte da dinâmica da área social e,

desse modo, compreender o papel dos CRAS e da atuação de seus agentes no

atendimento aos beneficiários das políticas públicas de assistência, especificamente

do PBF.

Em seu surgimento, o campo da assistência social no Brasil esteve ligado às

47 Duas assistentes sociais mostraram-se mais receptivas à pesquisa, e foi com elas que mais convivi.

As duas tinham mais de 12 anos de experiência na área, aparentando entre 35 e 45 anos. Ambas eram formadas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), e a mais jovem estava cursando uma segunda faculdade (Direito) em uma instituição privada.

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47

noções de assistencialismo e caridade, com baixa responsabilização do Estado e

ações pouco sistemáticas realizadas por entidades filantrópicas. Com a Constituição

de 1988, a assistência social ganha reconhecimento como política pública, e sua

efetiva reforma ocorre após as transformações em outras áreas da política social,

como saúde e educação (BICHIR, 2016). A assistência social passa, então, a ser

instituída como um direito do cidadão e um dever do Estado. Segundo Bichir (2016,

p. 121), no início dos anos 1990, o contexto para a discussão acerca do combate à

pobreza era desfavorável, “dada a conjuntura de recessão econômica, inflação, além

das preferências de políticas” do presidente Fernando Collor de Melo48, que vetou o

primeiro projeto de lei sobre Assistência Social. A Lei n.º 8.742, de 07 de dezembro,

também conhecida como Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), sancionada

posteriormente, em 1993, pelo presidente Itamar Franco, em seu artigo 1º descreve:

“A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade

Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um

conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o

atendimento às necessidades básicas”49 (BRASIL, 1993).

Um dos efeitos importantes da Lei n.º 8.742 consistiu na difusão de conselhos

municipais sobre assistência social que colaboraram para a construção de um

sistema de políticas também no âmbito da assistência de forma geral. No período do

governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), outras iniciativas

foram implementadas, como a regulamentação do Fundo Nacional de Assistência

Social (FNAS) e a criação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza,

48 O presidente Fernando Collor de Melo sofreu processo de impeachment e renunciou à Presidência

da República em 1992, assumindo seu cargo o vice-presidente Itamar Franco. 49 Segundo o MDS (2015a), a proteção básica “destina-se à população que está em situação de

vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos afetivos - relacionais e de pertencimento social, discriminações de gênero, étnicas, por idade, por deficiências”.

Page 50: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

48

importantes fontes de financiamento das ações assistenciais e de repasse de

recursos para estados e municípios (BICHIR, 2016). A partir do governo do

presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), a assistência social avança em

termos de institucionalização, tento em vista a agenda de políticas sociais voltadas

para o combate à pobreza e à desigualdade. Nessa época, a Política Nacional de

Assistência Social (PNAS) definiu parâmetros para a implementação do Sistema

Único de Assistência Social (SUAS) e os tipos de segurança sob responsabilidade

da assistência (acolhida, renda, convivência, autonomia e riscos circunstanciais) e

especificou a organização de locais públicos em todos os municípios como portas de

entrada à assistência, separados de acordo com a complexidade do atendimento –

proteção social básica e proteção social especial. A proteção social básica tem como

objetivo prevenir a violação dos direitos, sendo sua porta de entrada e suas ações

executivas os CRAS – este se configura como uma unidade pública estatal

destinada ao atendimento socioassistencial e localizada em áreas com maiores

índices de vulnerabilidade e risco social. Fazem parte da proteção social básica o

Programa de Atenção Integral à Família (PAIF)50, o Benefício de Prestação

Continuada (BPC)51, o PBF, o ProJovem52 e a Proteção Básica à Pessoa Idosa53,

entre outros.

50 O PAIF é o principal serviço da proteção social básica. Por meio dele as famílias em situação de

vulnerabilidade social são acompanhadas. O PAIF teve como antecedentes o Programa Núcleo de Apoio à Família (NAF), criado em 2001, e o Plano Nacional de Atendimento Integrado à Família (PNAIF), criado em 2003. Em 2004, o MDS criou o PAIF. Com o Decreto n.º 5.085, de 19 de maio de 2004, da Presidência da República, o PAIF tornou-se “ação continuada da Assistência Social”, passando a integrar a rede de serviços de ação continuada da Assistência Social (MDS, 2015a). 51 O BPC é um benefício individual, não vitalício e intransferível, que garante a transferência de um

salário mínimo à pessoa idosa com 65 anos ou mais e à pessoa com deficiência de qualquer idade que comprove não possuir meios de se sustentar ou de ser sustentado pela família. Para receber o benefício, as pessoas com deficiência precisam passar por avaliação médica e social realizadas por profissionais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) (MDS, 2015a). 52 Programa com a finalidade de preparar jovens, de baixa renda, para diferentes mercados de

trabalho. 53 Programa que visa assegurar os direitos sociais do idoso, criando condições para promover sua

autonomia, integração e participação efetiva na sociedade, conforme preconizam a LOAS e a Política Nacional do Idoso (PNI).

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49

A proteção social especial, por sua vez, atua quando os direitos já foram

violados, tendo como unidade assistencial os Centros de Referência Especializados

de Assistência Social (CREAS). Este órgão se caracteriza como uma unidade

pública e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e

indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (violência física,

psicológica e sexual, tráfico de pessoas e cumprimento de medidas socioeducativas

em meio aberto) (BICHIR, 2016).

Para o monitoramento da implementação do SUAS e o conhecimento das

capacidades locais, em particular da gestão municipal na área assistencial, foi

desenvolvido um levantamento eletrônico de informações organizadas pela

Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) e pela Secretaria de Avaliação e

Gestão da Informação (SAGI) do MDS. O levantamento foi iniciado em 2007 com o

“Censo CRAS” e regulamentado posteriormente, em 2010, com o nome de “Censo

SUAS”, agrupando informações que permitem mapear a “organização dos serviços e

benefícios, além da disponibilidade de recursos humanos, formas de financiamentos

da política, entre outros aspectos” (BICHIR, 2016, p. 125). São responsáveis por

responder aos questionários elaborados para coletar as informações órgãos

gestores da assistência social municipal e estadual, tais como o CRAS e o CREAS

(BICHIR, 2016). O não preenchimento do questionário acarreta sanções

administrativas e bloqueio de recursos destinados (programas e serviços sociais)

aos estados e municípios. No caso do município do Rio de Janeiro, existem

pressões internas e cobranças por parte da Secretaria de Assistência e

Desenvolvimento Social para que os CRAS preencham o questionário. No CRAS em

que realizei a pesquisa de campo, sempre que se aproximava o prazo para o

preenchimento do censo, havia uma dedicação especial, principalmente das

Page 52: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

50

assistentes sociais, na elaboração dos dados a serem informados − era o momento

em que todo o trabalho executado ao longo do ano precisava ser organizado de

forma a facilitar o preenchimento do censo. As assistentes elaboravam, então,

tabelas com as informações essenciais ao seu preenchimento.

O questionário do Censo SUAS é dividido em nove blocos, contendo um total

de 54 questões (Quadro 1). Os blocos englobam informações físicas, de pessoal e

de gestão, bem como dados acerca das atividades desenvolvidas pelo CRAS54. Os

dois primeiros blocos de questões buscam identificar o CRAS e sua estrutura. Já os

blocos seguintes, 3, 4 e 5, tratam da assistência de proteção básica desenvolvida

pelo CRAS. Nas questões posteriores, referentes aos blocos 6, 7 e 8, são expostos

a quantidade e os tipos de benefícios concedidos pelo CRAS, quais públicos e

bairros/territórios são atendidos, assim como que articulações são elaboradas em

termos de serviços e programas. O último bloco de perguntas, por sua vez, é

direcionado ao perfil dos profissionais que atuam no CRAS.

Quadro 1 – Blocos e questões contempladas pelo Censo SUAS

Bloco 1 Dados de identificação do CRAS: nome e localização;

Bloco 2 Informações sobre a estrutura física do CRAS: condições dos prédios (se é próprio, se é compartilhado), ambiente e equipamentos;

Bloco 3 Dados sobre o PAIF: ações de acolhimento e atendimento desenvolvidas no CRAS e número de famílias atendidas e acompanhadas no período;

Bloco 4 Serviço de convivência e fortalecimento de vínculos executados com crianças, jovens e adultos: formas, quantidades e frequência das atividades;

Bloco 5 Equipe volante: se há equipe de acompanhamento interna e externa ao CRAS, formas de deslocamento da equipe, frequência e área de atendimento;

Bloco 6 Benefícios socioassistenciais e cadastro único: que tipo de benefícios é concedido (auxílio-funeral, auxílio-natalidade ou cesta básica);

54 O agente responsável por preencher o questionário deve fazê-lo eletronicamente, utilizando para acessá-lo seu

CPF e sua senha. O modelo do questionário pode ser visualizado no site do MDS, por meio do link

http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/dicivip_datain/ckfinder/userfiles/files/Censo_SUAS_2015. O último Censo

SUAS foi realizado entre setembro e dezembro de 2015, e todos os CRAS da cidade do Rio de Janeiro

preencheram o questionário.

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51

Bloco 7 Gestão e território: territórios e bairros que são atendidos pelo CRAS, mecanismos de participação que são utilizados e público atendido (comunidades tradicionais, por exemplo);

Bloco 8 Articulação: articulações que mantêm com serviços, programas e instituições;

Bloco 9 Recursos humanos: perfil de cada membro da equipe.

Fonte: elaboração própria.

Os dados do Censo SUAS mostram que, no Brasil, em 2013, havia 7.883

CRAS, 2.249 CREAS e mais de 250 mil trabalhadores da área social vinculados ao

setor público (MDS, 2013). Tais dados indicam, ainda, um avanço no número de

gestores com ensino superior e pós-graduação, o que aponta para uma maior

especialização dos profissionais que atuam na área.

Outra informação, apresentada por Bichir (2016) com base nos dados sobre

os municípios disponibilizados pelo IBGE e que indica a consolidação da área social,

diz respeito ao aumento da criação de secretarias municipais exclusivas para a área

da assistência social nos anos de 2005, 2009 e 2013. Em 2013, “praticamente todos

os municípios tinham institucionalidade para a área e estes, 75,4% possuíam

estrutura na forma de secretaria exclusiva, e não em conjunto com outras áreas”

(BICHIR, 2016, p. 124). A autora atenta, também, para a redução do fenômeno do

“primeiro-damismo”, embora ainda existam municípios em que a gestão da área

social esteja a cargo da primeira dama. Segundo Bichir (2016, p. 128), “mesmo com

trajetórias institucionais distintas, cada vez mais a política de assistência social e o

PBF estão articulados, principalmente no plano municipal”, promovendo

cadastramento, controle social e acompanhamento das famílias e das

condicionalidades, uma vez que boa parte da gestão do PBF está vinculada à área

da assistência social, ao contrário do planejamento inicial do PBF, que pretendia

criar uma institucionalidade própria, à parte. A intenção inicial mostrou-se inviável, já

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52

que uma família poderia ser atendida por outros programas e serviços sociais,

gerando duplicidade de informações e recursos financeiros55. Assim, a articulação do

gestor federal com o municipal é essencial para o funcionamento e financiamento

das políticas de assistência social, sobretudo do Bolsa Família.

1.4.1 Os agentes sociais e o “campo”

Os CRAS são os principais agentes que mediam a interlocução entre os

beneficiários e o PBF. Mesmo com a burocratização sistematizada e o controle do

MDS, por meio do Censo SUAS e do cadastro, por exemplo, são os agentes sociais

no CRAS que efetivamente executam a política. Daí advém a importância de

compreender a dinâmica de atuação dos agentes que fazem parte desse órgão.

Embora o CRAS Sebastian Theodoro Filho atendesse toda a Zona Sul, a sua

estrutura funcional era pequena. O centro contava com uma diretora que

coordenava e administrava as demandas que cabiam ao CRAS, quatro assistentes

sociais que executavam diversas tarefas (tais como atender e acompanhar a

população assistida), dois funcionários responsáveis pelo cadastro das famílias, uma

pedagoga, uma psicóloga e duas funcionárias que auxiliavam na recepção e no

funcionamento do centro.

A partir do conhecimento mais aprofundado da dinâmica dos atendimentos e

das demandas da população atendida no CRAS, os contornos de um “campo

55 Quando o cadastro federal foi expandido e modificado, além do Governo Federal, estados e

municípios também passaram a adotá-lo para fins de seus programas e serviços sociais. Como o programa “Cartão Família Carioca”, programa de transferência de renda do município do Rio de Janeiro, que funciona como um complemento ao PBF, famílias cadastradas e com renda per capita de até R$ 108 podem se candidatar ao benefício complementar, mas devem cumprir as condicionalidades do PBF. Há, também, o programa do governo do estado do Rio de Janeiro “Renda Melhor” (com fim previsto para setembro de 2016). Das famílias acompanhadas na pesquisa, nenhuma recebeu os benefícios do “Cartão Família Carioca” e/ou do “Renda Melhor”.

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53

social”56, tornaram-se mais evidentes. O “campo”, nos termos de Bourdieu (2007;

1983), serve como instrumento que permite localizar os agentes sociais em posições

relativas percebidas em um espaço social em que ocorrem relações invisíveis. Para

o autor, a sociedade, de um ponto de vista espacial, é constituída de variados

campos, isto é, de mundos sociais relativamente autônomos (religioso, político,

artístico, científico, filosófico, artístico etc.). Nesse sentido, caracterizar os campos

como autônomos implica considerar que neles há um modo próprio de atuação, o

que implica, também, a ideia de que a atuação do agente no campo é estruturada e

estruturante. Isso significa que, nos campos, identificam-se espaços de relações nos

quais as posições dos agentes se encontram a priori fixadas. Os agentes realizam

suas práticas no interior de um campo, adquirindo interesses, construindo

estratégias e fazendo escolhas delineadas pelo habitus internalizado durante sua

trajetória e ligado à sua origem social de vida. O habitus pressupõe, assim, que a

narrativa do agente é relacionalmente determinada no campo e sustentada com

base em sua história passada, que orienta o perfil e a ação posterior da trajetória do

indivíduo, ou seja, seu habitus, definindo o repertório de decisões para a ação.

No cotidiano do CRAS, eram executadas atividades técnicas e burocráticas,

que incluíam preenchimento de relatórios e de ofícios em respostas a demandas da

área social. Ou seja, havia uma burocracia, às vezes protocolar, que precisava ser

atendida sob pena de haver alguma punição ao CRAS ou ao funcionário. Tal

questão, por vezes, denotava a existência de um “controle” e de cobranças por

resultados por parte da SMDS e do gestor federal do PBF. O Censo SUAS,

apresentado anteriormente, é um exemplo de um instrumento que consiste em uma

56 Independentemente de sua especificidade, os campos possuem leis gerais invariáveis e

propriedades particulares que se expressam como funções variáveis secundárias. Um campo limita-se, entre outros aspectos, pela definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos do próprio campo (BOURDIEU, 1983).

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54

forma de controle, ainda que no discurso “oficial” este tenha sido apresentado como

uma ferramenta de auxílio ao trabalho dos profissionais, no caso das assistentes

sociais.

Ao analisar o “campo” na área social, percebemos que os agentes que

trabalham no CRAS, ainda que submetidos à gestão federal do PBF, ocupam uma

posição essencial na execução do programa. Entre os agentes do CRAS, as

assistentes sociais são as principais mediadoras entre o PBF e os beneficiários, uma

vez que efetuam a triagem das famílias com o perfil socioeconômico adequado para

receber o benefício do PBF, acompanhando-as após esse processo. Portanto, elas

são profissionais centrais para que essa política social seja efetuada e estão entre

os funcionários que, por meio do seu capital57 cultural, originário da formação

acadêmica, sentem-se e são legitimados para falar e atuar sobre a área social. A

formação acadêmica mostra-se fundamental para as assistentes, pois a área social

é permeada por pessoas que são voluntárias e que desempenham atividades em

ONGs e instituições de caridades, auxiliando os segmentos mais pobres da

população. Adquirir a distinção de suas atividades por meio da formação superior e

do reconhecimento da profissão obtido via regulamentação da profissão torna-se

essencial para elas58.

57Os tipos de capitais são aqui entendidos com base na concepção de Bourdieu (2012; 2007), para

quem o conceito, em todas as suas manifestações, constitui a “chave” para dar conta da estrutura, do funcionamento e da classificação do mundo social. O capital consiste, assim, em “toda energia (ou poder) social suscetível, mas também toda energia que pode ser utilizada nas competições sociais”, podendo ser de ordem tanto material quanto simbólica (BOURDIEU, 2012, p. 66). 58 A primeira lei de regulamentação da profissão de assistente social no Brasil é de 1957 (Lei nº.

3.257). Posteriormente, em 1993, foi substituída pela Lei n.º 8.662, que estabelece no artigo 2º que somente poderão exercer a profissão de Assistente Social: I - os possuidores de diploma em curso de graduação em Serviço Social, oficialmente reconhecido, expedido por estabelecimento de ensino superior existente no país, devidamente registrado no órgão competente; II - os possuidores de diploma de curso superior em Serviço Social, em nível de graduação ou equivalente, expedido por estabelecimento de ensino sediado em países estrangeiros, conveniado ou não com o governo brasileiro, desde que devidamente revalidado e registrado em órgão competente no Brasil; III - os agentes sociais, qualquer que seja sua denominação com funções nos vários órgãos públicos,

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55

Outro fator que reforça sua posição e atuação no “campo” da área social é o

fato de serem funcionárias concursadas do município, pois, como algumas

mencionaram: “os governos passam, mas a assistência social precisa continuar” e

“nós somos preparadas para atuar diretamente com as pessoas, foram anos de

estudo e prática com a população assistida pelos programas”; “quando uma

administração acaba e outra é eleita, somos nós que continuamos aqui fazendo

funcionar. Como assistentes lidamos diretamente com a população independente de

quem esteja governando o município”.

Desde o início desta pesquisa, a centralidade da gestão do PBF pelo Governo

Federal causava algumas reclamações por parte das assistentes, uma vez que as

demandas urgentes, como desbloqueio do benefício, dependiam do MDS. Após

discussões e disputas em fóruns e reuniões nos Conselhos de Assistências Sociais,

foi permitido às assistentes sociais o desbloqueio dos benefícios59, uma demanda

bastante frequente no CRAS. Juntamente com a possibilidade de desbloquear os

benefícios, as assistentes passaram a ter mais trabalho, pois deveriam acompanhar

a família para a qual o PBF era desbloqueado por três meses e escrever, ao final

desse período, um relatório sobre o acompanhamento realizado. Uma das

beneficiárias que teve seu benefício desbloqueado comentou com a assistente

social, primeiramente surpresa: “Não precisa esperar desbloquear? Mesmo? [...] Tá

podendo [...] agora tá poderosa, gostei de ver”. Nessa ocasião, a assistente social

esboçou um leve sorriso e respondeu: “Por enquanto sim, mas você precisa voltar

aqui no mês que vem; senão pode bloquear”. A “ameaça” do possível bloqueio,

segundo o disposto no artigo 14 e seu parágrafo único da Lei n.º 1.889, de 13 de junho de 1953. Parágrafo único. O exercício da profissão de Assistente Social requer prévio registro nos Conselhos Regionais que tenham jurisdição sobre a área de atuação do interessado nos termos desta lei (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2016) 59 O desbloqueio pelas assistentes sociais foi permitido a partir de 2013.

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56

embora fictícia, é uma estratégia usada pela assistente social para que a beneficiária

retorne, de modo que o acompanhamento da família possa ser efetuado. A

possibilidade de desbloquear o benefício empoderou as assistentes perante os

beneficiários, permitindo que o vínculo entre as partes se fortalecesse, assim como

reforçou a posição delas no “campo”.

Além das assistentes sociais, os funcionários responsáveis pelos

cadastramentos e pela atualização dos dados dos beneficiários dos programas

sociais também ocupavam uma posição relevante. Esses funcionários nem sempre

possuíam curso superior, mas sentiam-se legitimados no “campo” da área social,

uma vez que receberam um treinamento da SMDS, órgão que era responsável por

transmitir as instruções referentes aos programas e ao cadastro. Além disso, seu

capital social era fortalecido pelo resultado da experiência em lidar diretamente com

os beneficiários do PBF e pela importância que o cadastro tem na estrutura do PBF.

Portanto, as chances que os agentes têm de acumular ou de reproduzir capital

social dependem de sua posição dentro do sistema de estratificação.

As assistentes identificavam o perfil da família para ingressar no programa,

mas era o cadastrador que incluía as pessoas no cadastro e verificava se a

documentação solicitada estava correta. Contudo, apesar do treinamento e da

existência de critérios estabelecidos pela Lei n.º 10.836, de 09 de janeiro de 2004,

para o acesso das famílias ao PBF, havia, às vezes, os funcionários que julgavam

pela aparência se os beneficiários eram ou não “merecedores”. Segundo um

funcionário do cadastro, “tem mulheres que não precisam, dá para ver, [usam] roupa

boa, celular novo, claro que essa não precisa. Tem gente muito mais pobre; às vezes

eu pergunto: precisa mesmo?”. Esse julgamento pela aparência não era

compartilhado por parte das assistentes sociais pesquisadas.

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57

Entre os funcionários do CRAS, as assistentes sociais e os cadastradores

eram os agentes sociais mais visíveis que compunham no âmbito municipal, na

“ponta” do atendimento à população, o campo das políticas sociais, em que o PBF é

um dos objetos de disputa. Entretanto, havia outros atores que também faziam parte

do “campo” da área social no que se refere ao PBF. Estes lidavam com a “carência”

das famílias, e alguns possuíam vínculos ou participavam da Associação dos

Moradores, visto que residiam na favela há bastante tempo, o que possibilitava a

construção de redes60 e relações sociais bastante densas.

Na favela pesquisada, esses atores sociais estabeleciam “pontes” entre os

moradores e a SMDS. Cabe lembrar que o ingresso em algumas favelas até pouco

tempo era bastante restrito. Mesmo com a criação das UPPs, que facilitaram a

circulação no local, ainda era necessário o auxílio de moradores que pudessem

estabelecer o contato entre os moradores e o Estado, função que era

desempenhada pelo gestor municipal. A Associação de Moradores colaborava

muitas vezes, indicando as famílias em situação de pobreza que poderiam receber o

benefício. Indicavam o local de residência, assim como acompanhavam as

assistentes sociais nas visitas, pois havia locais de difícil acesso em que somente

um “nativo” sabia chegar.

Ao descrever o caminho para chegar às famílias do PBF, é possível

compreender como cada um dos agentes envolvidos com o programa demarca seus

espaços a partir do local de atuação (CRAS ou favela), quais objetos e interesses

60 Marques (2010), em sua obra “Redes Sociais: segregação e pobreza”, descreve e analisa, na

cidade de São Paulo, a importância da sociabilidade para a compreensão das condições da pobreza urbana no que tange ao acesso a bens e serviços (obtidos via mercado) e ao “provimento” aos indivíduos de elementos oriundos de trocas e apoio social. O estudo de Marques sobre as redes e suas diversidades ajuda a compreender a heterogeneidade das situações sociais, mesmo entre a população mais pobre, que ainda é produzida pelos efeitos complexos dos “diversos atributos e processos, como escolaridade, idade, sexo” (2010, p. 121), além das decisões e estratégias ao longo da vida que influenciam eventos e dinâmicas que estão acima do controle dos indivíduos.

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58

estão em disputa e quais são os códigos apropriados à competição. Bourdieu

(1983), quando discorre sobre o conceito de campo, salienta que a luta entre esses

antagonistas pressupõe um acordo mínimo sobre o que merece ser disputado,

produzindo a crença no valor dessa disputa. Ainda segundo o autor, a estrutura do

campo é um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições

engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital específico que,

acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as suas estratégias. Dentro dessa

relação de força, os agentes que monopolizam o capital específico, mais ou menos

completamente, tendem a estratégias que visam à manutenção da ordem

estabelecida, agindo, frequentemente, com intransigência em relação às mudanças.

Inversamente, os agentes que possuem menor volume de capital tendem a

estratégias de subversão e rompimento, respeitando certos limites. Todos os

agentes engajados em determinado campo possuem certos interesses comuns.

Entre estes, o principal consiste na existência do próprio campo.

No caso das assistentes sociais e dos cadastradores, fica evidente o espaço

e o papel por eles desempenhado, já que são fundamentais para o funcionamento e

a execução do PBF, ainda que tenham distintas atribuições.

Ao analisarmos a estrutura do PBF, como será mostrado posteriormente, os

agentes na “ponta” são os intermediários para que as pessoas possam ter acesso

ao benefício e aos demais programas sociais. Porém, até chegarmos à execução do

PBF na “ponta”, existe um sistema que se inicia na gestão federal, que articula e

coordenada todas as partes do programa.

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59

2 SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL, PROGRAMAS SOCIAIS E O BOLSA

FAMÍLIA

Este capítulo traça um panorama histórico sobre o sistema de proteção social

e os programas sociais até a implementação e execução do PBF. O objetivo é

descrever a área social no Brasil, seus avanços e sua articulação com o Bolsa

Família. Ou seja, como se constitui o sistema de proteção social brasileiro?; quais

programas foram criados com o objetivo de combater a pobreza e a desigualdade?;

que programas de transferência de renda antecederam o PBF?; quais as

características e critérios de inclusão do PBF? Com isso, busca-se compreender os

avanços ocorridos e o progressivo ingresso de ações de combate à pobreza e à

desigualdade na agenda de políticas sociais do país, e como as experiências

anteriores ao PBF auxiliaram na sua elaboração até chegarmos na execução da

“ponta” do programa.

2.1 O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL BRASILEIRO E A IMPLEMENTAÇÃO DO

PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA

Por sistema de proteção social entende-se “formas institucionalizadas que

todas as sociedades humanas desenvolvem para enfrentar vicissitudes de ordem

biológica ou social que coloquem em risco parte ou a totalidade de seus membros”

(SILVA et al., 2008, p. 17), tendo como um dos traços definidores a transferência de

recursos, “seja sob a forma de esforço ou trabalho, seja sob forma de bens e

serviços, ou sob forma de dinheiro” (SILVA et al., 2008, p. 17-18). Os autores

descrevem ainda que,

Na história recente das sociedades ocidentais, podemos observar tal transferência, que se faz sob as formas de distribuição ou redistribuição de

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60

recursos, tem por orientação três fundamentos: a tradição, o mercado ou a autoridade política (Estado). A forma predominante no mundo atual é aquela que tem a participação do Estado como provedor, produtor, gestor e regulador das transferências de recursos destinados à proteção social, sem que a tradição e o mercado deixem de estar presentes de maneira mais ou menos acentuada (SILVA et al. 2008, p. 18).

No Brasil, segundo Cohn (2000, p. 387), durante as três primeiras décadas do

século XX até a Revolução de 1930, a questão social no país foi pensada como um

“fenômeno excepcional demandando iniciativas pontuais do Estado e sob larga

responsabilidade da filantropia (das elites que dispunham de recursos para tanto)”.

Desse modo, o início de um sistema de proteção social surge entre 1930 e 1943.

Trata-se de um período de grandes transformações socioeconômicas, marcado pela

passagem do modelo agroexportador para o modelo urbano-industrial (SILVA et al.,

2008), que causou uma migração para os centros urbanos. Nesse período, também

foram criadas leis de proteção do trabalhador: decretou-se a jornada de oito horas

para trabalhadores do comércio e da indústria (1932); regulamentou-se o direito a

férias (1933-1934); instaurou-se a primeira lei que fixou o salário mínimo para todo o

país (1940); fundou-se a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criada em 1º de

maio de 1943 pelo Decreto-Lei n.º 5.452 e sancionada pelo presidente Getúlio

Vargas, durante o período do Estado Novo (1937-1945)61; e deu-se início, ainda, a

medidas para promover e criar um sistema educativo (FAUSTO, 2002).

Em 1966, ocorreu a extinção dos Institutos de Aposentadorias e Pensões

(IAPs)62, seguida da criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que

passou a concentrar os planos previdenciários de todos os trabalhadores formais

61 A CLT unificou toda a legislação trabalhista então existente no Brasil, sendo um marco por inserir,

de forma definitiva, os direitos trabalhistas na legislação brasileira (FAUSTO, 2002). 62 A previdência social no Brasil deu seus primeiros passos com a Lei Elói Chaves, de 1923, que criou

as Caixas de Aposentadorias e pensões (CAPs). Em 1930, o presidente Getúlio Vargas reestruturou e substitui as CAPs pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que eram autarquias de nível nacional centralizadas no Governo Federal. Dessa forma, a filiação passava a ocorrer por categorias profissionais, diferentemente do modelo das CAPs, que se organizavam por empresas.

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urbanos brasileiros. Em 1970, conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(IPEA) (2010), os demais trabalhadores − rurais, autônomos e domésticos – também

foram incluídos no sistema. Embora o sistema público de proteção social tenha

sofrido evidentes avanços, manteve-se, até a década de 1960, segmentado e

excludente, deixando de fora a maior parte da população. Assim, até os anos 1960-

1970, o sistema continuava organizado e funcionando apenas para os trabalhadores

formalmente ocupados, de modo a excluir o restante da população. Portanto, a

intervenção do Estado no sistema de proteção social não contributivo, na década de

1960, era residual, não havendo praticamente programas sociais. As iniciativas

nesse sentido eram, em maior parte, desenvolvidas por intermédio do setor privado

baseavam-se nos princípios da caridade e filantropia (IPEA, 2010).

Assim, não obstante a presença da Legião Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942, e da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (Funabem), fundada em 1964, e a instituição da Renda Mensal Vitalícia (RMV), em 1974, persistiu a ausência da responsabilidade estatal na organização de uma política de assistência social, reduzindo-se sua atuação nesse campo praticamente ao apoio financeiro às entidades privadas. Quanto às ações operadas por aquelas instituições, resta salientar seu caráter fragmentado, não raras vezes permeado por injunções políticas e clientelistas (IPEA, 2010, p. 80).

Nas décadas de 1970 e 1980, o sistema de proteção social avançou sob a

orientação do Governo Militar como uma espécie de compensação à repressão e ao

controle social impostos (SILVA et al., 2008). Mesmo assim, conforme Silva et al.

(2008), houve a partir de meados da década de 1970 a rearticulação da sociedade

civil e a eclosão dos denominados “novos movimentos sociais”, os quais foram

assimilados pela Constituição Federal de 1988, “com a instituição do conceito de

Seguridade Social que incorporou a Assistência social, junto com a Previdência

Social e a saúde, enquanto políticas constitutivas da Seguridade Social no país” (p.

26). A partir da Constituição de 1988, como mencionado anteriormente, a

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62

assistência social é reconhecida como direito social e responsabilidade pública, dentro de uma perspectiva mais ampla de proteção social: a seguridade social. Ficou, desde então, formalmente assegurado o direito a seus serviços e benefícios a quem deles necessitar, independentemente de qualquer contribuição prévia. Sob as novas determinações constitucionais, a política de assistência social passou a organizar sua implementação sob dois pilares: a oferta de serviços e a concessão de benefícios monetários (IPEA, 2010, p. 78).

Do ponto de vista conceitual, a política social pode ser compreendida como

tendo duas dimensões. A primeira envolve medidas de proteção social, destinadas a

“reduzir e mitigar riscos e vulnerabilidades a que qualquer indivíduo está exposto

numa sociedade de mercado, tal como o de não poder prover o sustento próprio e o

da família por meio do trabalho, seja por velhice, morte, doença ou desemprego”

(IPEA, 2010, p. 78). Assim, as políticas de proteção social compreendem aquelas

alusivas às áreas de previdência social, saúde e assistência social. Já a segunda

dimensão se refere mais propriamente à ideia de promoção social e “diz respeito às

ações destinadas a garantir a todos os indivíduos de uma população as mesmas

oportunidades” (IPEA, 2010, p. 78).

Quanto aos programas de transferência de renda no Brasil, historicamente,

estes se apresentam como formas de proteção social. Segundo Silva et al. (2008, p.

93), a primeira discussão sobre um programa de transferência de renda no Brasil

surge em 1975, quando o economista Antônio Maria da Silveira publicou o artigo

“Redistribuição de Renda”, em que expunha a proposta de uma gradativa extinção

da pobreza por meio da intervenção governamental. A ideia era fundamentada no

Imposto de Renda Negativo (IRN), de autoria do economista norte-americano Milton

Friedman. O IRN foi proposto por Friedman em seu livro “Capitalismo e Liberdade”

(1962). Segundo Paes e Siqueira (2008, p. 594), o IRN

é um instrumento de política social que garante aos cidadãos beneficiados um valor mínimo de renda em dinheiro, e por isso é comumente

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63

denominado Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM). Caso a renda do cidadão não alcance o mínimo determinado, ele recebe um complemento financeiro para que sua renda atinja aquele patamar. Os recursos para a concessão dos benefícios podem vir de rubricas específicas do orçamento público destinadas ao programa ou da realocação de outros gastos (sociais ou não).

Consistiria, desse modo, em um “programa governamental direcionado para o

indivíduo pobre e não enquanto membro de um grupo determinado (ocupacional,

salarial, etário, etc.) com implantação progressiva, iniciando pelas pessoas mais

idosas até atingir os mais novos” (SILVA et al., 2008, p. 93-94). A proposta de

Silveira (1975) influenciou as ideias de Bacha e Unger (1978), que igualmente

conferem importância à redistribuição de renda mediante uma complementação

monetária, esta também baseada no IRN, conforme expõem Silva et al. (2008). Para

Bacha e Unger (1978), o PGRM teria como objetivo fornecer às famílias brasileiras

uma renda monetária que correspondesse, pelo menos, ao valor do salário mínimo

no centro-sul do país e que surgiria a partir um sistema de IRN. Segundo estes

autores, tais ideias inspiraram a proposta do senador Eduardo Suplicy de um

programa de renda mínima em 1991. Suplicy, ao relatar sobre a criação do projeto

de lei “Renda Mínima”, citou dois estudos que o ajudaram a dar materialidade à

proposta: “Um projeto para o Brasil”, escrito por Celso Furtado em 1968, e “Moeda e

Redistribuição de Renda”, escrito por Antônio Maria da Silveira em 1975. O projeto

de lei apresentado por Suplicy no Senado Federal buscava beneficiar, sob a forma

de IRN, todas as pessoas residentes no país maiores de 25 anos que tivessem

rendimentos brutos mensais inferiores a 2,5 vezes o salário mínimo da época

(WEISSHEIMER, 2006).

No início dos anos 1990, o país passou por um período de crise política com o

processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, ao mesmo tempo

que a fome e a pobreza foram colocadas na agenda pública. Nesse contexto,

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destaca-se a “Campanha Nacional da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria

e pela Vida”, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza (o Betinho) e incorporada

pelo governo do presidente Itamar Franco, em 1993, com o nome de “Plano de

Combate à Fome e à Miséria”. Em 1993, o IPEA divulgou o estudo intitulado “Mapa

da Fome”, mostrando que havia no Brasil 32 milhões de pessoas nesta condição.

Esses dados incentivaram a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar

(CONSEA), então composto de oito ministros e 21 representantes da sociedade civil,

cuja principal atribuição era a de coordenar a elaboração e implantação do Plano

Nacional de Combate à Fome e à Miséria. Naquela época, ganhou força a ideia de

que o combate à fome era um problema de governo e uma questão estratégica que

necessitava de ações pensadas de forma intersetorial, envolvendo diferentes níveis

de governo e a sociedade. (VALENTE, 2002).

No ano seguinte, em 1994, inicia-se um processo de estabilização da moeda

nacional com o Plano Real63. Em 1995, primeiro ano de governo do presidente

Fernando Henrique Cardoso, a prioridade era manter a estabilidade econômica,

momento em que o Plano de Combate à Fome e à Miséria foi substituído pelo

Programa Comunidade Solidária64, criado pelo Decreto n.º 1.366, de 12 de janeiro de

1995. Esse programa esteve vinculado à Casa Civil da Presidência da República e

foi presidido pela antropóloga Ruth Cardoso, então primeira-dama do país. Com a

criação da Comunidade Solidária, foram extintos a Legião Brasileira de Assistência

Social (LBA), o CONSEA, o Ministério do Bem-Estar Social (MBES) e o Centro

63 O Plano Real foi um programa econômico criado em 1994 pela Medida Provisória n.º 434, no

governo do presidente Itamar Franco. O plano tinha como objetivo principal o controle da inflação. O ministro da Fazenda na época era Fernando Henrique Cardoso, que foi eleito presidente da República em 1994 e reeleito em 1998. 64 Segundo Peres (2005, p. 1), “O Comunidade Solidária sobreviveu ao fim do governo FHC (2002).

Em janeiro de 2003 passou a ser vinculado ao Ministério da Segurança Alimentar”. Durante o ano de 2003, o programa foi gradativamente sendo desarticulado no interior do Governo Federal e substituído pelo “Fome Zero”.

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Brasileiro para a Infância e a Adolescência (CBIA). No lugar dos órgãos de

assistência social extintos, foi criada a Secretaria de Assistência Social (SAS) do

Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) (PERES, 2005).

O Programa Comunidade Solidária visava à articulação e interlocução entre o

Estado e a sociedade civil, assim como à implementação de programas sociais em

municípios mais pobres do país, buscando a integração entre Município, Estado e

Governo Federal. Para selecionar os munícipios mais pobres, foram usados como

referências dois trabalhos: “Identificação das Áreas de Pobreza no Brasil”, produzido

pelo IBGE (1995), e “Mapa da Fome”, elaborado pelo IPEA (1993). No período entre

1995 e 1998, 1.369 municípios foram alvo da ação prioritária do programa (DEL

PORTO, 2011).

Ao longo da década de 1990, segue o debate sobre as ações de

transferências de renda, abarcando, por exemplo, a introdução da unidade familiar

no lugar do indivíduo como beneficiário e a vinculação do benefício com a educação,

tornando obrigatórios o ingresso e a frequência das crianças na rede de ensino

(ROCHA, 2009; SILVA et al., 2008). Em 2001, no segundo mandato do governo de

Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), são criados programa federais, com

implementação descentralizada em municípios (SILVA et al., 2008). Entre eles,

estava o Bolsa Escola65, programa administrado pelo Ministério da Educação (MEC),

que funcionava transferindo recursos para a manutenção das crianças nas escolas.

Para receber a bolsa de R$ 15 concedidos a cada criança ou adolescente, era

preciso apresentar frequência escolar de no mínimo 85% e possuir renda inferior a

65 Criado pela Lei n.º 10.219, de 11 de abril de 2001.

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R$ 90 (valor exigido em 2001)66. Surgiu nessa época, também, o programa Auxílio

Gás ou Vale Gás67, administrado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), garantia

o auxilia financeiro de R$ 15, a cada dois meses, para famílias que apresentavam

renda de no máximo meio salário mínimo para que pudessem comprar o gás de

cozinha. O programa atendia a famílias que já eram assistidas pelo Bolsa Escola e

por outros programas que integravam a chamada Rede de Proteção Social. No

programa Bolsa Alimentação68, coordenado pelo Ministério da Saúde (MS), o

ingresso das famílias é realizado por meio dos municípios – cada família cadastrada

recebia a importância mensal de R$15 por beneficiário, até atingir o limite de três

Bolsas Alimentação, ou seja, R$ 45, e o dinheiro era pago por meio de cartão

magnético em pontos de atendimento da Caixa Econômica Federal (CEF). A Bolsa

Alimentação tinha duração de seis meses e poderia ser renovada por mais seis

meses, desde que o responsável pelo recebimento do benefício cumprisse

condicionalidades na área da saúde (pesar e medir as crianças mensalmente, seguir

o calendário de vacinação e, no caso de gestantes, realizar o pré-natal)

(BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE, 2016). Em todos esses programas, o dinheiro

já possuía um fim predeterminado − compra de material escolar, de gás e de

alimentos −, sendo proibido seu gasto com outros produtos. Portanto, além das

condicionalidades, havia ainda o “controle” do dispêndio do benefício.

A partir de 2003, nos primórdios do governo do presidente Luiz Inácio Lula da

Silva, teve início um processo de unificação de programas nacionais de

transferência de renda espalhados por vários ministérios. O processo de unificação

desenvolveu-se até 2007, quando foi concluída a migração dos principais programas

66 Em 1995, foram criados o Bolsa Educação no Distrito Federal pelo governador Cristovam Buarque

e o Bolsa Escola na cidade de Campinas pelo prefeito José Roberto Magalhães Teixeira. 67 Criado por meio do Decreto n.º 4.102, de 24 de janeiro de 2001. 68 Criado pela Medida Provisória n.º 2.206, de 06 de setembro de 2001.

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para o Bolsa Família (SILVA; LIMA, 2010). Entretanto, até findar a unificação dos

programas, outros processos da área de assistência social foram importantes para a

unificação e implantação do PBF, entre eles a criação, em 2004, do MDS69. Esse

ministério se tornou responsável pelas políticas nacionais de desenvolvimento

social, de segurança alimentar e nutricional, de assistência social e de renda de

cidadania no país e, também, por gerir o FNAS.

É de responsabilidade do MDS a missão de coordenar, supervisionar,

controlar e avaliar a execução dos programas de transferência de renda, bem como

coordenar a PNAS e o SUAS. Com o MDS sendo responsável pelos programas de

transferências de renda, o Governo Federal oficializou e regulamentou, em 2004, por

meio da Lei n.º 10.836 e do Decreto n.º 5.209, o PBF70, que veio a se tornar o carro-

chefe da política social do Governo Federal. O PBF passou a ser integrado no

âmbito do “Fome Zero”71, programa este orientado pelos objetivos de combater a

fome, a pobreza e a desigualdade por meio de transferência de benefícios

financeiros associados ao acesso a direitos sociais básicos e de promover a

inclusão social (SILVA; LIMA, 2010).

Segundo Paiva, Falcão e Bartholo (2013), o PBF, no período de 2003 a 2004,

foi marcado pelo incremento de cobertura baseado na migração das famílias já

beneficiárias e nas primeiras concessões de benefícios para famílias que ainda não

recebiam transferência de renda. Esse período também foi caracterizado pelas

fragilidades iniciais da construção do Cadastro Único (CadÚnico). O cadastro, que

69 O MDS teve como ministros: Patrus Ananias de 2004 a 2010; Marcia Lopes de março a dezembro

de 2010; e Tereza Campello, de 2011 a maio de 2016. 70 O PBF foi criado pela Medida Provisória n.º 132, estabelecida em 20 de outubro de 2003 e

convertida em Lei em 2004. 71 Os principais programas do Fome Zero são: Bolsa Família, Programa de Aquisição de Alimentos

(PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura familiar (Pronaf) e Restaurantes Populares (SILVA; LIMA, 2010).

Page 70: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

68

havia sido criado em 2001 no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso,

estava desatualizado, contendo dados incompletos das famílias, algo que começou

a mudar a partir da descentralização da gestão com a adesão dos municípios ao

PBF.

O período seguinte, de 2005 a 2006, foi marcado pela institucionalização do papel dos entes federados na gestão do programa, com a assinatura de termos de adesão por todos os municípios brasileiros e a criação do Índice de Gestão Descentralizada (IGD); pela edição de um conjunto de normas sobre a concessão e pagamento de benefícios e ao acompanhamento de condicionalidades (em articulação com o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde); e pela remodelagem implementação do acompanhamento de condicionalidades. Foi também um período de significativa expansão do número de famílias atendidas pelo programa, possibilitada não só pela existência de uma ampla rede de pagamentos, operada pela Caixa Econômica Federal, mas também pela evolução na qualidade e cobertura do cadastro Único (CadÚnico). Com a articulação entre o MDS e os municípios, o percentual de cadastros válidos saltou de 31% para 92% entre março de 2005 e outubro de 2006 (PAIVA; FALCÃO; BARTHOLO, 2013, p. 30).

Se, por um lado, com a criação do MDS, as políticas públicas72 da área social

ficaram sob o mando do ministério, por outro lado, a busca de adesão e colaboração

dos municípios para efetivação do PBF tornou-se essencial. Conforme assinalam

Silva et al. (2008), a partir de 2003, o Governo Federal estabeleceu mudanças

qualitativas (além de quantitativas) na construção de uma política pública de

transferência de renda de abrangência nacional, o que somente foi possível, como

relatado, a partir de experiências anteriores, assim como pelo aprimoramento que o

programa foi recebendo ao longo dos anos.

72 Segundo Souza (2006, p. 25), não existe uma única definição sobre o que seja política pública, mas

é possível resumi-la “como o campo de conhecimento” que busca, ao mesmo tempo, “colocar o governo em ação” e/ou “analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente)”. Assim, do ponto de vista teórico-conceitual, “a política pública em geral e a política social em particular são campos multidisciplinares, e seu foco está nas explicações sobre a natureza da política pública e seus processos” (SOUZA, 2006, p. 6).

Page 71: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

69

2.1.1 O Programa Bolsa Família

Os aspectos históricos da implementação de políticas sociais descritos até

aqui ajudam a entender o processo de criação e formatação do programa de

transferência de renda com condicionalidades, o PBF. Passados mais de dez anos

do Bolsa Família, já é possível avaliar os impactos do programa. Nesse período,

houve reconhecimento internacional por meio de prêmios73, visitas e consultas de

outros países para conhecer o programa, além de uma quantidade significativa de

artigos74, dissertações, teses e livros analisando e descrevendo o programa, tais

como os estudos de Weissheimer (2006), Silva e Lima (2010), Bichir (2011), Rego e

Pinzani (2013), Campello e Neri (2013) − os dois últimos são livros lançados em

2013 quando o PBF completou dez anos.

O livro organizado por Campello e Neri75, “Programa Bolsa Família: uma

década de inclusão e cidadania”, elaborado pelo MDS e IPEA, em comemoração

aos dez anos do programa, apresenta uma seleção de artigos que analisam a

contribuição do Bolsa Família para as políticas sociais, o perfil das famílias pobres e

os impactos do programa e realizam uma reflexão sobre os desafios e as

perspectivas para o futuro. Alguns autores dos artigos utilizam, para produzir suas

análises e reflexões, dados do CadÚnico do Governo Federal. Os números

apresentados no livro também ajudam a desconstruir determinados mitos sobre o

programa, tal como o de que o PBF acomodaria as famílias, desestimularia o

73 Em 2013, o PBF ganhou o prêmio internacional Award for Outstanding Achievement in Social Security da Associação Internacional de Seguridade Social (ISSA), em reconhecimento ao combate à pobreza. Segundo o MDS (2015a), de 2011 a 2016, 455 delegações de 107 países visitaram o ministério em busca de informações sobre as estratégias de diminuição da desigualdade e da pobreza, sendo os países da África, da América Latina e do Caribe os que mais enviaram representantes ao Brasil.

74 A Revista de Ciências Sociais Política e Trabalho, em seu n.º 38 (2013), por exemplo, organizou um dossiê sobre os dez anos do PBF.

75 Tereza Campello – ministra do MDS (2011-2016); Marcelo Neri – presidente do IPEA (2012-2014).

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70

trabalho e aumentaria a taxa de fecundidade76 entre os mais pobres, pois passariam

a ter mais filhos para ter acesso a um volume maior de recursos. Os números

trazidos à tona mostram, contudo, um panorama diferente: em relação à ocupação,

à procura de emprego e à jornada de trabalho, os índices são praticamente os

mesmo entre beneficiários e não beneficiários. No que se refere à taxa de

fecundidade, os índices demonstram que não houve aumento entre as beneficiárias,

apontando uma tendência no Brasil ao declínio da taxa em todas as classes sociais,

bem como uma redução maior dessa taxa justamente entre os mais pobres

(CAMPELLO; NERI, 2013).

Já o livro “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania”, escrito

por Rego e Pinzani, traz uma reflexão sobre a complexidade do tema da pobreza a

partir de uma análise teórica e de dados empíricos extraídos de entrevistas

realizadas com mulheres em diferentes regiões do Brasil escolhidas por serem

tradicionalmente as “mais desassistidas do Estado brasileiro” – sertão nordestino,

zonas litorâneas, periferias e zonas rurais. Os autores, no que se refere ao

recebimento do benefício, argumentam que a “renda regular em dinheiro é um

importante instrumento de autonomia individual e política” (REGO; PINZANI, 2013,

p. 191-192), visto que o dinheiro do Bolsa Família, em vários casos, era o único

rendimento monetário recebido pelas mulheres e, portanto, a primeira experiência

regular com dinheiro, o que ajudaria na libertação da opressão conjugal e na

superação da “cultura da resignação” (marcada pela aceitação da fome e das

doenças ligadas à pobreza).

Nos mais de dez anos do Bolsa Família, muito se debateu sobre o papel do

76 Entre as beneficiárias com renda domiciliar per capita de até R$ 77, a fecundidade caiu de 5,1 filhos

para 3,6 no período de 2000 a 2010 (PATRÍCIO, 2012).

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71

programa, suas conquistas e seus desafios. Em 2010, com a eleição da presidenta

Dilma Rousseff, o PBF manteve-se como a principal política de transferência de

renda com condicionalidades. Porém, era apontada a necessidade de realizar

ajustes e de ampliar o programa. No primeiro ano do seu mandato, em 2011, foram

anunciadas novas ações e a expansão do número de famílias atendidas pelo

programa, que passou a fazer parte, então, do plano “Brasil Sem Miséria” (BSM)77, o

qual tem como objetivo retirar da extrema pobreza famílias que vivem com renda per

capita igual ou inferior a R$ 70 por mês. Entre as ações anunciadas, estão a “Busca

Ativa”, cujo foco é encontrar famílias que não estão cadastradas e que, portanto, não

recebem nenhum tipo de benefício social. A Busca Ativa prioriza famílias

pertencentes a povos e comunidades tradicionais ou a grupos específicos da

população78, que, quando localizados, são encaminhados aos serviços da rede de

proteção social, que inclui o Bolsa Família. A fim de executar essa ação, foram

firmadas parcerias com outros ministérios para auxiliar na busca e identificação das

famílias, principalmente em locais de difícil acesso.

Outra ação, criada em 2012, foi o “Brasil Carinhoso I”, com o objetivo de

beneficiar as famílias que tenham pelo menos um filho com idade entre zero e seis

anos por meio de um complemento adicional ao valor do Bolsa Família. Criou-se,

também, o “Brasil Carinho II”, com o mesmo objetivo, porém destinado às famílias

com crianças e adolescentes entre sete e 15 anos. Houve, ainda, a ampliação do

limite de beneficiários de três para cinco filhos. Essas ações geraram um aumento

77 O Plano BSM foi organizado em três eixos: um de garantia de renda, para aliviar imediatamente a

situação de extrema pobreza; outro de acesso a serviços públicos, para melhorar as condições de educação, saúde e cidadania das famílias; e um terceiro de inclusão produtiva, para aumentar as capacidades e as oportunidades de trabalho e geração de renda entre as famílias mais pobres (MDS, 2015a). 78 Foram priorizadas famílias indígenas, quilombolas, extrativistas, assentadas pela Reforma Agrária,

atingidas por empreendimentos de infraestrutura, catadoras de materiais recicláveis e em situação de rua.

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72

no número de famílias cadastradas e beneficiadas pelo programa79.

Com a reeleição da presidenta Dilma Rousseff em 2014, os investimentos no

PBF permaneceram. Em 2015, segundo dados do MDS (2015a), foram destinados

27 bilhões de reais do orçamento do MDS80 para o programa, e, até setembro do

mesmo ano, 13.971.124.00 famílias foram contempladas, recebendo um benefício

médio de R$ 163,57. A estrutura e a gestão do PBF também foram mantidas, e,

embora a gestão do programa esteja vinculada ao Governo Federal por meio do

MDS, a Lei n.º 10.836 de 2004, no seu artigo 9º, prevê o controle e a participação

em âmbito local, por meio de um conselho ou comitê instalado pelo Poder Público

Municipal. Dessa forma, o MDS, para administrar o PBF, possui uma gestão em

parte descentralizada, permitindo à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos

municípios o compartilhamento dos processos de tomadas de decisão do Bolsa

Família, criando bases de cooperação para o combate à pobreza e à exclusão

social. Para averiguar a qualidade de gestão do Bolsa Família nos níveis estadual e

municipal, o MDS utiliza o Índice de Gestão Descentralizada (IGD), que leva em

conta a eficiência na gestão do programa. As informações obtidas são utilizadas pelo

MDS para o repasse de recursos a fim de aperfeiçoar as ações de gestão. Além

desses instrumentos que fiscalizam a gestão do programa, o MDS ampliou o

CadÚnico. A gestão municipal do PBF, por meio dos CRAS81, é responsável pela

79 Para aprofundamento dos índices gerados pela ampliação do PBF, consultar relatório do plano

Brasil Sem Miséria, disponível no link www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/brasil_sem_miseria. 80 O orçamento do MDS em 2015 foi de 33 bilhões de reais (MDS, 2015a). 81 No Rio de Janeiro, os CRAS são vinculados à SMDS e funcionam como porta de entrada para as

famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. Os CRAS são responsáveis, entre outras atribuições, pelo encaminhamento das famílias para a rede de assistência social da Prefeitura, que inclui vários programas sociais, entre eles o PBF. Os CRAS estão ligados à Coordenadoria de Desenvolvimento Social (CDS), cuja competência é participar do planejamento de programas e projetos a serem realizados na sua área de abrangência; implementar a política regional de assistência; realizar pesquisas; e coordenar, supervisionar e avaliar a execução de todas as ações de desenvolvimento social. Na cidade do Rio de Janeiro, existem dez CDS e 47 CRAS, sendo estes últimos responsáveis por vários bairros.

Page 75: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

73

identificação e pelo cadastro das famílias, o que demonstra a importância da

execução do programa e dos atores que participam desse processo.

2.1.2 O Bolsa Família e as condicionalidades

O PBF, desde a sua criação em 2003, foi sendo modificado, sem perder,

contudo, o princípio da transferência de renda com condicionalidades e da

autonomia dos beneficiários quanto ao gasto do dinheiro. Os programas de

transferências de renda com condicionalidades são aqueles que atribuem uma

transferência monetária a um componente compensatório (educação, saúde e

trabalho) (SILVA et al., 2008). E entenda-se por compensatório as condicionalidades

exigidas dos beneficiários pelos programas de transferência de renda, como, por

exemplo, frequência escolar das crianças, acompanhamento pré-natal e vacinação

das crianças que, quando não cumpridas, levam à suspensão do benefício (ROCHA,

2009).

As condicionalidades do PBF voltam-se às áreas de educação e saúde.

Quanto à educação, cabe ao beneficiário matricular crianças e adolescentes de seis

a 15 anos em estabelecimento regular de ensino; e garantir a frequência escolar de

no mínimo 85% da carga horária mensal do ano letivo, informando sempre à escola

casos de impossibilidade do comparecimento do aluno à aula e apresentando a

devida justificativa. Em relação à saúde, é de responsabilidade dos beneficiários:

para gestantes e nutrizes, inscrever-se no pré-natal e comparecer às consultas na

unidade de saúde mais próxima da residência, portando o cartão da gestante, de

acordo com o calendário mínimo do MS, e participar das atividades educativas

ofertadas pelas equipes de saúde sobre aleitamento materno e promoção da

alimentação saudável; e, para os responsáveis pelas crianças menores de sete

Page 76: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

74

anos, levar a criança às unidades de saúde ou aos locais de vacinação e manter

atualizado o calendário de imunização, conforme diretrizes do MS; levar a criança às

unidades de saúde, portando o cartão de saúde da criança, para a realização do

acompanhamento do estado nutricional e do desenvolvimento e de outras ações,

conforme calendário mínimo do MS (MDS, 2015b).

A imposição de condicionalidades às famílias do programa foi criada com o

propósito de reduzir a desigualdade e a pobreza. Mesmo que as áreas da saúde e

da educação apresentem problemas de estrutura e qualidade, os índices expostos

sobre os resultados das condicionalidades demonstram que estas têm cumprido sua

função: mais crianças na escola, aumento do número de crianças alfabetizadas e

vacinadas, baixa mortalidade infantil etc. (MEDEIROS; BRITTO; SOARES, 2007).

Contudo, quando deixamos os números de lado e passamos a estudar a visão das

pessoas beneficiárias pelo programa, outros resultados aparecem, tais como os

apresentados na pesquisa de Pires82 (2013a), que expõe outro aspecto das

condicionalidades na área da educação. Segundo esse autor, as condicionalidades

“podem ser vistas como instauradoras de uma relação de troca e reciprocidade entre

os beneficiários dessa política e o Estado” (PIRES, 2013a, p. 512). Em uma

perspectiva mais ampla, Pires salienta que as condicionalidades, na educação, “não

devem se restringir somente aos seus efeitos práticos em termos de frequência

escolar ou ganhos de escolaridade, mas também aos seus efeitos simbólicos,

notadamente, o fortalecimento dos sentimentos de pertencimento e reconhecimento

sociais” por parte dos recebedores do programa (2013a, p. 513). Trata-se de uma

relação e de um vínculo que se fortalece no que denominamos, neste estudo, de

82 Pires (2013) desenvolveu uma pesquisa entre 2008 e 2010 na cidade de Campinas, em que

entrevistou 22 pessoas participantes do PBF, com o objetivo de compreender a visão dos próprios beneficiários em relação a esta política de transferência de renda e às condicionalidades na área da educação.

Page 77: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

75

“ponta” da gestão do PBF. Porém, antes de analisarmos a relação na “ponta” do

programa, cabe mencionar que as condicionalidades são a contrapartida dos

beneficiários em relação ao recebimento do benefício, ou seja, uma forma de

“dádiva”. Esta, na concepção de Marcel Mauss (2003), tem um sentido amplo,

incluindo não somente presentes, mas também visitas, festas, heranças e esmolas,

de modo que a vida social é formada pelo constante dar-receber-retribuir,

consistindo em obrigações universais, mas organizadas de modo particular.

Ao analisarmos o circuito da dádiva do PBF, este se apresenta de distintas

maneiras. Na relação direta entre os beneficiários e a gestão federal do programa, a

troca é estabelecida pelo pagamento do benefício e pelo cumprimento das

condicionalidades, uma ligação que se materializa a partir do que é dado (dinheiro) e

do que é retribuído (condicionalidades). A transferência de renda sem a

contrapartida das condicionalidades poderia ser vista somente como uma lógica

“mercantilista” para o combate à pobreza, em que se dá o dinheiro ao beneficiário,

que o utiliza sem criação de vínculo ou contrapartida. Dessa forma, o Estado poderia

ser visto como um substituto da dádiva, reduzindo a desigualdade e devolvendo a

dignidade a parte da população (GODBOUT, 1999). Conforme o Godbout (1999, p.

65), “o desenvolvimento do Estado previdenciário foi visto muitas vezes como um

substituto para a dádiva, substituto que reduz as injustiças e devolve a dignidade,

em oposição aos sistemas anteriores de redistribuição baseados na caridade”.

Entretanto, o PBF, ao estabelecer a contrapartida, propicia a criação de

vínculos entre as partes, vínculos que são fortalecidos na “ponta” do programa a

partir da relação entre as assistentes e os beneficiários. No CRAS, a ligação entre

as assistentes sociais e os beneficiários e as formas de dar e retribuir são

estabelecidas de outra maneira: são as assistentes que acompanham as famílias e

Page 78: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

76

assim percebem suas dificuldades e necessidades particulares. Na “ponta” do

programa, fica evidente o “valor de vínculo”, que “é outra coisa que não o valor de

troca e o valor de uso” (GODBOUT, 1999, p. 201). O “valor de vínculo” é o valor

simbólico que se junta à dádiva, sendo ligado ao que circula em forma de dádiva

(GODBOUT, 1999). A relação entre as assistentes sociais e os beneficiários é

alimentada pelos vínculos sociais e marcada por afinidades e confiança. Portanto, é

no CRAS que os critérios do PBF para ser ou permanecer beneficiário podem ser

“alterados”, criando, assim, maneiras distintas das regras estabelecidas pelo

programa.

2.2 INSIDERS E OUTSIDERS DO BOLSA FAMÍLIA: CRITÉRIOS, NÚMEROS E

CADASTROS

Para ter acesso ao Bolsa Família, as famílias devem atender algumas

condições que incluem a renda per capita de até R$ 154 e a apresentação de

documentos para o cadastramento, motivo pelo qual a obtenção do benefício pode

levar algum tempo. Entretanto, nem todas as famílias que solicitam o PBF são

atendidas, uma vez que a demanda pelo benefício é maior que os recursos

disponíveis. Ou seja, o número de famílias cadastradas que requer o benefício é

superior ao número de famílias atendidas.

Os dados apresentados pelo MDS mostram que no Brasil, em 2015, existiam

27.325.069 famílias inscritas em programas sociais, das quais mais de 13 milhões

receberam o benefício do PBF. O restante das famílias cadastradas não se

enquadra no perfil do PBF, podendo, entretanto, acessar os demais programas

sociais ou, ao adequar-se ao perfil, aguardar o ingresso no programa. Os dados do

PBF indicam que a maioria das famílias se encontra na faixa de renda per capita

Page 79: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS/FGV-RJ CENTRO DE PESQUISA E

77

menor que a mínima exigida, de até R$ 77. Em números exatos, a distribuição das

famílias cadastradas conforme a renda per capita mensal declarada indicava que:

12.335.278 tinham renda per capita familiar de até R$ 77; 4.268.713 possuíam renda

per capita familiar entre R$ 77 e R$ 154; 6.357.302 apresentavam renda per capita

familiar entre R$ 154 e meio salário mínimo; e 4.363.776 tinham renda per capita

acima de meio salário mínimo.

No que se refere à cidade do Rio de Janeiro, que abriga 6.476.631 habitantes

(IBGE, 2015) e constitui o local desta pesquisa de acordo com o MDS, existiam, em

2015, 493.178 famílias cadastradas. Destas, 192.286 tinham renda per capita

familiar de até R$ 77; 97.038 apresentavam renda per capita familiar entre R$ 77 e

R$ 154; 114.446 possuíam renda per capita familiar entre R$ 154 e meio salário

mínimo; e 89.408 tinham renda per capita acima de meio salário mínimo. Em

setembro de 2015, 247.992 famílias receberam o benefício, representando uma

cobertura de 84,5% da estimativa de famílias pobres do município, com um benefício

médio no valor de R$ 141,5583.

Em Copacabana e Ipanema, bairros em que se localiza a favela do Pavão-

Pavãozinho, havia, no ano de 2015, 3.589 famílias cadastradas, das quais 1.814

recebiam o benefício84. Na favela do Pavão-Pavãozinho, dados recentes informam

haver aproximadamente 26585 famílias beneficiárias, das quais 122 se encontram em

situação de extrema pobreza (CRAS, 2016). Segundo estimativas do CRAS (2015),

o perfil dos beneficiários indica que a maioria é mulher, com idade entre 30 e 39

83 Relatório do PBF da cidade do Rio de Janeiro, setembro e dezembro de 2015. Os números

referentes ao PBF alteram-se todos os meses, havendo uma intensa dinâmica, uma vez que famílias entram e saem do programa por variados motivos. Todavia, o montante total de famílias beneficiárias tem se mantido em torno dos 13 milhões (MDS, 2015b). 84 Dados fornecidos pelo CRAS São Sebastião em 2015. 85 Os dados referentes ao número de famílias são de junho de 2016. Em 2015, houve troca da coor-

denação do CRAS, o que dificultou a obtenção de alguns dados referentes ao ano em questão.

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78

anos, ensino fundamental incompleto, dois a quatro filhos e renda proveniente de

trabalho no mercado informal.

2.2.1 As famílias beneficiárias: o “ideal” e o real

A partir dos critérios do PBF, pode-se afirmar a existência de um perfil “ideal”

de família a ser beneficiada pelo programa, cujo principal critério é a renda per

capita. Contudo, como se apresentam as famílias “na ponta”, no momento da

realização cadastral no PBF? Que arranjos são elaborados para que sejam incluídas

no programa? Do ponto de vista “formal” do programa, a concepção de família86

adotada pelo PBF está baseada no número de pessoas que compartilham o mesmo

domicílio, havendo ou não laços de consanguinidade. O critério é fundamentado na

ideia de família assumida em pesquisas pelo IBGE, que restringem o escopo da

família ao grupo domiciliar. Assim, nos censos demográficos e em outras pesquisas

domiciliares, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua

(PNAD), o alcance máximo de uma família vai até os limites físicos da moradia. Uma

mesma família (definida pelos laços de parentesco e de ajuda mútua) que ocupe

dois domicílios é contabilizada, assim, como duas famílias (ALVES, 2005).

A escolha pelo critério do compartilhamento do domicílio justifica-se com base

nas dificuldades que um programa das dimensões do Bolsa Família teria para

estabelecer e contabilizar outras formas de composição familiar. Além disso, tal

escolha permite que beneficiárias tendo sob sua guarda filhos (crianças ou

86 Segundo Sarti (1992), a Antropologia contribui para o conceito de família, uma vez que

desnaturaliza tal conceito e não considera a existência de um modelo universal. “O parentesco e a família tratam dos fatos básicos da vida: nascimento, acasalamento e morte. A família como o grupo social concreto e o parentesco como a forma estrutural” (SARTI, 1992, p. 75). A concepção de família deve, assim, ser pensada como uma totalidade articulada, em que seus elementos podem ser combinados de diferentes maneiras, dentro de uma estrutura mais ampla.

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79

adolescentes) de outra pessoa possam cadastrá-los e receber o benefício. Esse é o

caso de Laura, por exemplo, moradora do Pavão-Pavãozinho, que ficou com a

guarda dos filhos de uma vizinha que não possuía condições de sustentá-los. Ao

ganhar a guarda das crianças, ela pode incluí-las no seu cadastro do programa e

receber os respectivos valores advindos do benefício.

Contudo, a concepção de família a partir da unidade domiciliar pode ser

“burlada” para fins da contabilidade da renda per capita, ou seja, permite omitir ou

incluir moradores do domicílio, estratégia usada para a obtenção do benefício por

algumas famílias. A “estratégia de inclusão” é utilizada quando o beneficiário possui

um trabalho formal e, como não pode mudar o valor que consta na carteira de

trabalho, aumenta o número de moradores do domicílio. Algumas mulheres, que são

a maioria na titularidade do PBF87, no momento em que fornecem as informações

sobre os residentes do domicílio, não declaram o cônjuge/companheiro. Essa

estratégia somente será descoberta com as visitas das assistentes ao domicílio.

Segundo uma assistente social,

[...] é comum as mulheres esconderem o companheiro, a gente somente consegue ter certeza quando vai na casa. Outro dia fui na casa de uma mulher que não havia incluído o companheiro, e foi ele quem me atendeu. Isso acontece também porque às vezes elas [mulheres] não ficam muito tempo com o companheiro, eles vão e vêm ou ele tem uma renda e ajuda pouco, não dá dinheiro algum. O que posso dizer é que tem o perfil do que deve ser para o programa [PBF] e a vida real que a gente lida aqui.

Seguindo a lógica da família do PBF, caracterizada pelo domicílio e pela

renda per capita, as beneficiárias, além de omitirem o companheiro, não consideram

“da família”, para fins cadastrais, outros moradores da casa, mesmo que haja laços

87 Segundo o Relatório do PBF Brasil (2015), 93% dos titulares do programa são mulheres, algo

incentivado pelos gestores do programa.

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80

consanguíneos. Isso ocorre porque, embora compartilhem do mesmo domicílio,

cada membro é responsável pelo sustento de seus filhos, de forma que apenas os

gastos comuns podem ser divididos. Ou seja, ao mesmo tempo que há uma rede de

proteção familiar, já que um parente dificilmente se nega a acolher alguém da

família, há tensões, conflitos e escassez de dinheiro. Nesse contexto, morar com um

familiar não significa que tudo é compartilhado, principalmente em termos de

dinheiro. O mais comum nas narrativas das beneficiárias é o “morar de favor”,

situação em que elas devem ser responsáveis pelas suas despesas. As famílias de

Gerusa e Gabriela ilustram bem essa questão. Gerusa, 45 anos, separada e sem

trabalho formal, residia na casa do irmão, segundo ela, “de favor”, juntamente com

os dois filhos. O caso de Gabriela, 25 anos, manicure e mãe de uma menina, é

similar: morava “de favor” na casa da avó, mas era responsável pelo sustento da

filha.

Eu moro com meu irmão de favor, ele deixa eu ficar, mas sou eu que dou de comer para meus filhos. Sou eu quem dá tudo que eles precisam, meu irmão não ajuda em nada os meninos. Eles dependem do que eu ganho para viver. Se eu colocar ele [irmão] no Bolsa Família, aí não vou receber nada. O dinheiro é só para meus filhos e eu (Gerusa).

Minha avó deixou eu e minha filha morarmos com ela, moro de favor. Se ela não quiser mais, eu tenho que sair. Ela é aposentada, mas não dá nada. É avó, família, mas cada uma por si com o dinheiro e despesas. Tenho que comprar comida, roupas [...] para minha filha e ajudo a pagar luz. Pelo menos não pago aluguel. Por isso, no Bolsa Família é eu e a minha filha (Gabriela).

Nos dois casos, são registrados no cadastro (on-line) somente as

beneficiárias e seus filhos, de modo que o benefício é calculado de acordo com essa

composição. No item sobre a moradia, aspectos (físicos) acerca do imóvel e do

acesso a serviços de água, luz etc. são informados. Existe, ainda, outra forma de

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81

registro, em papel, que é preenchido pela assistente social. Trata-se do “Prontuário

SUAS”88, instrumento criado pelo SUAS para padronizar, organizar e acompanhar os

atendimentos das famílias. No prontuário, fica registrado que as beneficiárias

residem “de favor” na casa do irmão e da avó, sendo este arquivado no CRAS,

juntamente com os demais documentos da família.

Entre o que é considerado “formal” pelo PBF e os arranjos que são

elaborados pelas beneficiárias, mesclam-se elementos que, dependendo do

contexto, podem ser informados ou omitidos. Todo o processo de inclusão e

exclusão no PBF cria, assim, uma fronteira entre o sistema que estabelece critérios

“formais” e outros “arranjos” que são “informais”. É nessa fronteira que os atores

sociais – beneficiários, assistentes sociais e gestores do PBF – adaptam-se e

articulam-se. Fica evidente a existência de um perfil de família “ideal”, baseado nos

dados do cadastro, e de família “real”, um “grupo social concreto” com estruturas e

elementos mais amplos (SARTI, 1992). Embora o cadastro do programa apresente

uma lista de informações, que será descrita a seguir, sobre as famílias a serem

contempladas pelo benefício, tal lista não consegue captar as estratégias e relações

que acontecem no cotidiano do CRAS.

2.2.2 O Cadastro Único e os benefícios do Programa Bolsa Família

O perfil das famílias contempladas pelo benefício, como descrito, é traçado

pelos dados cadastrados no CadÚnico, que classifica as famílias em pobres e

extremamente pobres. O CadÚnico é um instrumento que identifica e caracteriza as

famílias de baixa renda e permite conhecer a sua realidade socioeconômica,

88 O prontuário é divulgado pelo SUAS como um auxílio aos CRAS. Cabe salientar que parte das

informações solicitadas no prontuário corresponde às informações que são solicitadas anualmente pelo Censo SUAS, este já detalhado anteriormente.

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82

trazendo informações de todo o núcleo familiar, desde as características do domicílio

às formas de acesso a serviços públicos essenciais. O CadÚnico teve início em

2001 no governo de Fernando Henrique Cardoso e sofreu modificações no governo

do presidente Lula, quando foi unificado o gerenciamento de diversos programas.

De acordo com Bichir (2011, p. 105), no governo do presidente Fernando

Henrique Cardoso, a coleta de dados e o registro dos beneficiários eram realizados

pelos municípios, enquanto que a manutenção e operação do banco de dados ficava

a critério da gestão federal. Na época, a supervisão do cadastro era de

responsabilidades da Secretaria de Estado da Assistência Social (SEAS), que

posteriormente foi incorporada ao MDS, o qual passou a “coordenar, acompanhar e

supervisionar a execução” do CadÚnico. Uma das modificações, a partir de 2003, no

CadÚnico diz respeito à atualização dos dados cadastrais dos beneficiários, que se

tornou obrigatória para as famílias a cada 24 meses. Nesse sentido, quando uma

família deixa de comparecer ao CRAS para atualizar os dados do cadastro por mais

de 24 meses, o benefício é bloqueado e posteriormente suspenso89. Dessa forma, a

atualização do CadÚnico funciona como um mecanismo de controle e fiscalização

dos beneficiários, o que não impede que as famílias, mesmo atualizando o cadastro,

omitam informações e assim permaneçam recebendo o benefício. Há, também, os

que fazem questão de informar que não necessitam mais do benefício quando a

renda da família aumenta. Paula, moradora do Cantagalo, foi ao CRAS atualizar o

cadastro e informou não precisar mais do benefício:

[...] Meu marido está trabalhando de carteira assinada. Não precisamos mais do Bolsa Família. A carteira de trabalho dele tá aqui [...] pode colocar o valor certo do salário. Se um dia a gente precisar, eu volto.

89 Em 2015, 19.146.753 famílias atualizaram o seu cadastro.

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83

No CadÚnico, são registradas informações acerca da moradia, da

composição familiar, da qualificação escolar e profissional dos membros do

domicílio, das despesas, da renda mensal por pessoa do domicílio, do número de

integrantes, do total de crianças e adolescentes de até 17 anos, da existência de

gestantes, do acesso a serviços públicos de água, energia elétrica e saneamento

básico, da situação no mercado de trabalho e da vinculação a programas sociais

(BICHIR, 2011). Os dados alusivos ao responsável pelo domicílio constituem as

bases para a geração do Número de Identificação Social (NIS), que é um número

atribuído a todo cidadão que procura algum tipo de assistência estatal. Uma vez

gerado o NIS, o cidadão está apto a integrar, de acordo com a renda, programas

sociais como o Bolsa Família ou a realizar solicitações como isenção de taxas em

concursos públicos e de tarifa social de energia elétrica etc. O CadÚnico possui três

partes básicas, expostas a seguir no Quadro 2.

Quadro 2 – Composição do CadÚnico

Identificação da pessoa (gera o NIS)

Identificação do endereço

Caracterização socioeconômica

Nome completo Composição familiar (número de pessoas, gestantes, idosos e

portadores de deficiência)

Nome da mãe Características do domicílio (número de

cômodos, tipo de construção, água, esgoto

e lixo)

Data de nascimento Qualificação escolar dos membros da família

Município de nascimento Qualificação profissional e situação no mercado de

trabalho

Algum documento de emissão nacional (CPF ou

Título de Eleitor)

Rendimentos e despesas familiares (aluguel,

transporte, alimentação e outros)

Fonte: elaboração própria.

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84

A partir das informações fornecidas pelo CadÚnico, são estabelecidos os

valores dos benefícios. Todos os benefícios são pagos mensalmente (figura12) por

meio de cartão magnético90 bancário fornecido pela CEF, que contém o nome do

responsável e o NIS.

Figura 12 – Calendário de pagamento do PBF

Fonte: MDS (2015b).

Os benefícios pagos91 pelo PBF são variáveis, e o montante que cada família

recebe está baseado nos dados fornecidos no cadastramento. O PBF possui os

seguintes tipos de benefícios: Benefício Básico (R$ 77) – concedido apenas às

famílias extremamente pobres com renda mensal per capita de até R$ 77; Benefício

90 Os benefícios do Bolsa Família são pagos mensalmente, seguindo um calendário nacional. As

datas de pagamento são definidas de acordo com o último número do NIS impresso no Cartão Bolsa Família. Para um cartão com NIS terminado em 5, por exemplo, o saque poderá ocorrer a partir do quinto dia do calendário oficial de pagamentos (MDS, 2015a). 91 Em junho de 2016, os benefícios do Bolsa Família deveriam ter tido um aumento de 9%, conforme

anunciado pelo governo de Dilma Rousseff. Porém, o governo interino de Michel Temer não concedeu o aumento em junho e, posteriormente, comunicou o aumento de 12,50% a ser pago a partir de julho de 2016. O benefício básico passará, assim, de R$ 77 para R$ 85, e os benefícios variáveis passarão de R$ 35 para R$ 39 e de R$ 42 para R$46. A renda per capita para solicitar o Bolsa Família será de R$ 170.

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85

Variável de zero a 15 anos (R$ 35) – concedido às famílias com crianças ou

adolescentes de zero a 15 anos de idade; Benefício Variável à Gestante (BVG)92 (R$

35) – concedido às famílias que tenham gestantes em sua composição, sendo o

pagamento é feito em nove parcelas consecutivas, desde que a gestação tenha sido

identificada até o nono mês – cabe salientar que a identificação da gravidez é

realizada no Sistema Bolsa Família na Saúde, uma vez que o CadÚnico não permite

identificar as gestantes; e Benefício Variável Nutriz (BVN) (R$ 35) – concedido às

famílias que tenham crianças com idade entre zero e seis meses em sua

composição, sendo pago em seis parcelas mensais consecutivas, desde que a

criança tenha sido identificada no CadÚnico até o sexto mês de vida.

Os benefícios variáveis descritos são limitados a cinco por família, mas todos

os integrantes da família devem estar registrados no CadÚnico. Há, ainda, o

Benefício Variável Jovem (BVJ) (R$ 42) – concedido a famílias que tenham

adolescentes entre 16 e 17 anos, mas limitado a dois benefícios por família; e o

Benefício para Superação da Extrema Pobreza (BSP) – cujo cálculo varia de caso a

caso e é transferido às famílias do PBF que continuem em situação de extrema

pobreza mesmo após o recebimento dos outros benefícios. O cálculo é realizado da

seguinte forma: soma-se a renda total da família com os benefícios recebidos do

PBF; o valor é dividido pelo número de pessoas da família; se o resultado for menor

que R$ 77, a família tem direito ao BSP93. Esse benefício é calculado de modo a

garantir que as famílias ultrapassem o limite de renda da extrema pobreza (MDS,

2015a).

92 O BVG e o BVN foram criados em 2011. 93 O BSP é calculado em intervalos de R$ 2, de modo que o valor final do BSP é arredondado para

que seja um múltiplo de dois. Por exemplo, se o resultado final da conta tiver dado R$ 150,50, o valor final do BSP será de R$ 152 (MDS, 2015a).

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86

O CadÚnico, nos moldes que vem sendo gerenciado, procura traçar um mapa

representativo das famílias mais pobres do país e, assim, criar políticas sociais que

possibilitem acabar com a pobreza. Quando saímos das questões “formais” do

cadastro e entramos no cotidiano do CRAS e na vida dos beneficiários, ficam

evidentes alguns limites do CadÚnico, já que as demandas e necessidades são mais

amplas e que a relação entre os agentes sociais envolvidos (assistentes sociais e

beneficiários) estabelece-se para além das regras do PBF.

2.2.3 O cotidiano no Centro de Referência de Assistência Social: demandas,

atendimentos e histórias

Nos atendimentos do CRAS pesquisado, as histórias de vida dos moradores

misturam-se às demandas sociais, o que inclui a busca pelo PBF. As assistentes

sociais trabalham como intermediárias entre beneficiários e gestores, tentando

atender às demandas de quem procura a rede de assistência social e, ao mesmo

tempo, devendo cumprir as regras e leis necessárias para acessá-las. Durante as

observações no CRAS, foi possível vivenciar, juntamente com as assistentes sociais,

as histórias de vida das pessoas que por lá passavam. Durante os atendimentos,

permanecia na sala com a assistente social, que explicava quem eu era e qual era o

meu propósito. A maioria não se importava com a minha presença − em apenas uma

ocasião, precisei me retirar, pois a mulher que seria atendida solicitou sigilo da

conversa; e, em outro momento, uma beneficiária do Bolsa Família perguntou se o

que eu estava anotando era sobre ela, algo que me fez parar as anotações

imediatamente, momento em que a assistente social enfatizou que eu estava

realizando uma pesquisa. Com o tempo, a minha presença tornou-se familiar e

passei a ser vista como “alguém do CRAS”, o que facilitou minha circulação pelo

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87

local.

O cotidiano no CRAS era tranquilo, e a maior movimentação ocorria na parte

da manhã e após as 15 horas. Contudo, dois episódios relacionados ao PBF

movimentaram, além do normal, o CRAS. O primeiro foi motivado por uma

reportagem sobre o PBF em um canal de televisão, que informava acerca da

necessidade de atualização do cadastro. Após a exibição da reportagem, o CRAS

recebeu um grande número de beneficiários para atualizar o cadastro. O outro

momento foi em 2013, quando circulou um boato de que o PBF iria acabar, situação

em que o CRAS ficou cheio de mulheres buscando informações e o telefone não

parou de tocar.

A dinâmica dos atendimentos no CRAS iniciava pela atendente que ficava na

recepção. Quando alguém chegava ao CRAS, era preciso informar à atendente qual

a finalidade de sua vinda, ou seja, o que estava buscando ali. De acordo com a

demanda, os solicitantes aguardavam serem chamados ou eram encaminhados à

assistente social em uma sala, denominada de “sala de atendimento”. Algumas

mulheres beneficiárias do PBF que já conheciam o funcionamento do CRAS e as

assistentes sociais, ao chegarem ao local, perguntavam quem estava atendendo ou

pediam para falar com a assistente que acompanhava o seu caso.

Como o número de assistentes era reduzido, algo que prevaleceu durante

todo o período de realização desta pesquisa, as tarefas eram divididas de acordo

com o dia da semana e com as demandas do CRAS. Além do trabalho de

atendimento, as assistentes precisavam preencher relatórios, participar de reuniões,

efetuar visitas às famílias assistidas pelo CRAS e responder por escrito ofícios de

outras secretarias e conselhos tutelares. A maior parte das demandas era referente

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88

às famílias beneficiárias do PBF, mas havia outras solicitações. Este era o caso de

Dalva, que ocupava uma casa de madeira situada em uma área de risco na parte

alta do Pavão-Pavãozinho, conhecida como “Vietnã”. A casa já havia sido marcada

em 2012 pela Defesa Civil como área de risco; entretanto, a família permanecia no

local. A assistente social que acompanhava a família enviou um ofício à Secretaria

Municipal de Habitação e Cidadania (SMHC), solicitando uma solução. A SMHC, em

resposta ao ofício, declarou que, como a família já havia sido notificada do risco e

mesmo assim permanecia no local, o responsável pelo domicílio deveria assinar um

documento de que estava ciente dos riscos. Segundo a assistente social, toda a

troca de ofícios foi “inútil, uma tremenda burocracia. A Defesa Civil cobra da gente,

cobramos da Habitação e nada. A verdade é que a maioria dos administradores

públicos não vê pessoas, mas apenas uma burocracia que deve ser cumprida”. Na

mesma semana, Dalva, a moradora da casa, foi até o CRAS assinar o documento.

Na ocasião, ela informou que não tinha como se mudar do local e que ficaria

aguardando uma solução, pois tinha esperança de ser “sorteada” para o Programa

Minha Casa Minha Vida. A assistente social cumpriu todo o protocolo exigido pela

SMHC e, após o atendimento, preencheu o relatório e anexou o documento

assinado, enviando o material à Secretaria. Nas palavras da própria assistente:

“agora envio toda a papelada de volta e vai ficar por isso mesmo, mas preciso fazer

o procedimento. Se não o fizer e algo acontecer, posso ser responsabilizada,

processada. Nem sempre dá para ajudar como gostaria”.

As assistentes, em várias ocasiões, ficavam na fronteira entre o que deveria

ser feito e a busca por uma solução diferente daquelas oferecidas pela parte

jurídica/legal. As necessidades das pessoas, beneficiárias ou não do PBF, eram

justificadas e/ou se misturavam aos acontecimentos cotidianos – brigas, separações,

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89

perdas do emprego, tragédias pessoais etc. As assistentes ouviam os casos e, se

não havia como resolvê-los, orientavam a busca de auxílio. A esse respeito, pode-se

citar o caso de Renato, que procurou o CRAS para solucionar o problema de partilha

da casa com o irmão após a morte da mãe. O morador conta que a mãe faleceu e

que o irmão mais novo vendeu uma parte da casa (um dos cômodos anexo à casa)

e queria ficar com todo o dinheiro, além de residir no restante do domicílio. Ele

perguntou, então, para a assistente social se havia algum documento que o CRAS

pudesse fornecer a fim de dar queixa do irmão. A assistente social orientou-o a

procurar a Defensoria Pública, uma vez que no CRAS não havia como solucionar o

impasse. Entretanto, o morador permaneceu na sala e contou toda a história da

família, que foi ouvida pacientemente pela assistente. Quando o morador percebeu

que nada poderia ser feito pela assistente social, levantou-se, agradeceu e foi

embora.

Em outro atendimento, Rosangela, moradora da Ladeira dos Tabajaras

(localizada em Copacabana), informou que realizara o cadastro para o recebimento

do PBF há três meses e que gostaria de verificar se já havia algo para receber.

Enquanto a assistente social verificava a situação94, a moradora relatou que já

recebera o benefício em 2011, época em que o perdeu porque não realizou a revisão

cadastral. Expôs, ainda, que estava passando por dificuldades − era separada, tinha

vários problemas de saúde (depressão, pressão alta e colesterol), e tinha feito uma

extensão da rede de energia da casa da vizinha por sua energia elétrica ter sido

cortada. Portanto, era urgente ter mais uma fonte de renda: o único dinheiro que

possuía para sobreviver era oriundo da realização de faxinas e destinava-se a

sustentar a filha, o neto de dois anos e um genro, que, segundo a moradora, não se

94 As assistentes sociais acessam o cadastro no site do MDS, de uso restrito, usando a sua senha

(individual) e o número do NIS dos beneficiários.

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90

sentia na obrigação de sustentar a sua filha, pois “ora estava com ela, ora não”.

Descreveu, então, a briga com o genro para que ele pagasse a conta de R$ 56 de

luz. A assistente social orientou-a a efetuar o pagamento da conta e, posteriormente,

solicitar a tarifa social de energia elétrica, informando que o benefício do PBF ainda

não havia sido concedido e solicitando que retornasse no final do mês para uma

nova verificação.

Em outro atendimento, Berenice, uma moradora do Pavão-Pavãozinho,

chegou ao CRAS nervosa e ansiosa, solicitando para a assistente social uma

declaração que informasse as condições sociais em que ela e a família viviam. O

objetivo era obter junto ao munícipio de origem, situado no interior no estado do

Ceará, uma passagem de volta. Nessa ocasião, Berenice declarou: “Olha, eu falei

com a prefeitura e eles pagam as passagens, mas preciso de um papel que diga

como estamos vivendo aqui. Por favor, estou de favor na casa do meu irmão, não

quero mais viver aqui”. A assistente social informou que não seria possível atender

tal pedido, uma vez que ela e a família não estavam sendo acompanhadas pelo

CRAS, de modo que as condições socioeconômicas da família eram desconhecidas.

A moradora contou, então, a sua história: era do interior do Ceará e veio ao Rio de

Janeiro em busca de melhores condições de vida. Descreveu que há três meses ela,

o marido e as duas filhas estavam residindo no Rio de Janeiro, mas não conseguiam

emprego e dependiam “da ajuda do irmão e de conhecidos”. Enfatizou várias vezes

que a situação estava difícil e que gostaria de retornar à sua cidade, na qual possuía

casa para morar e, apesar dos problemas, nunca havia passado necessidade como

no Rio de Janeiro, momento em que começou a chorar. A assistente buscou um

copo de água e explicou novamente por que não poderia fornecer a declaração;

entretanto, a moradora continuou chorando e pedindo “por favor”. Depois de alguns

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91

minutos, a assistente concordou e redigiu uma declaração, informando que a

moradora estava residindo na cidade do Rio de Janeiro com sua família e que não

possuía condições financeiras de comprar a passagem de retorno para o Ceará.

Berenice parou de chorar, agradeceu o gesto várias vezes, pegou a declaração e foi

embora. Após a saída da moradora, a assistente comentou sobre o conteúdo da

declaração: “Informei as condições gerais da família, pois não posso me

comprometer, afinal não conheço a família e o documento tem o meu nome. É difícil,

dá pena; às vezes as pessoas precisam desabafar”.

Os comentários das assistentes sociais após os atendimentos não eram

comuns, mas houve momentos com uma forte carga emocional que nos

sensibilizava. O caso de Tania, 47 anos, foi um desses momentos. Ela apareceu no

CRAS em busca de informações sobre o BPC para seu filho, que era deficiente

auditivo. Tania relatou que o rapaz estava com 25 anos, não conseguia trabalho

porque havia feito “coisas erradas”, “pequenos furtos”, e foi preso; porém o juiz,

analisando o caso dele, achou melhor soltá-lo e solicitar uma pena de prestação de

serviços sociais. Ela descreveu, também, a sua “batalha” para dar uma vida melhor

ao filho desde que este nasceu: trabalhou como doméstica e iniciou vários cursos

para mudar de profissão, porém “fracassou”: “Eu tentei, tentei dar uma vida melhor,

estudar para mudar de vida, mas não aguentei. Acordava às 5h da manhã,

trabalhava o dia inteiro, às 18h ia para o curso e chegava em casa tarde. Mas não

aguentei, fracassei na vida”. Enquanto Tania falava sobre o seu “fracasso” na

tentativa de mudar de vida, chorava muito. A assistente social ouviu, buscou água e

tentou consolá-la: “não considere um fracasso, a gente faz o que pode”. Diante

disso, a mulher acalmou-se, ouviu as informações sobre o BPC e agradeceu a

paciência da assistente e por esta ter ouvido seu desabafo.

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92

Houve, ainda, atendimentos de pessoas moradoras do “asfalto”95, como o de

Joana, uma mulher com idade entre 30 e 35 anos, que residia em Ipanema. A

solicitação era por cursos técnicos gratuitos e/ou bolsa de estudos em alguma

Instituição de Ensino Superior. Ela explicou que era casada, tinha um filho pequeno

e morava com os sogros. Teve um café no centro do Rio de Janeiro e uma boa

renda, mas havia perdido tudo em 2011, quando explodiu um restaurante que ficava

no prédio onde se localizava sua cafeteria96. Desde então, vivia da ajuda de

familiares, mas precisava recomeçar e arrumar um emprego, pois a situação estava

difícil. A assistente descreveu os cursos disponíveis e enfatizou que primeiro era

preciso obter o NIS e cadastrar-se no CadÚnico para ter acesso aos benefícios.

Mesmo sem a assistente social falar sobre o PBF, Joana mencionou que não

precisava do Bolsa Família, pois seu único interesse consistia nos cursos. Ela foi,

então, encaminhada à sala do cadastro para obter o NIS e depois foi embora.

Em outro atendimento, Mário, um homem de 54 anos, vestido de maneira

formal (calça e camisa social), veio com o mesmo propósito, ou seja, cursos. Estava

interessado em se candidatar a uma bolsa do programa “Banco Carioca de bolsa de

estudos”97. Mencionou que trabalhou durante anos como gerente das Lojas

Americanas em Copacabana, bairro em que também residia; entretanto, ficou

doente, foi demitido, estava há seis meses desempregado e queria, agora, qualificar-

se profissionalmente e talvez mudar de área de trabalho. A assistente informou que

95 O termo “asfalto” é aqui usado no mesmo sentido que os moradores da favela dão a ele, ou seja, o

que não está no morro ou a ele pertence. Nesse caso, refiro-me a pessoas que moram nos bairros da Zona Sul, mas não residem na favela, ainda que estejam próximos a ela. 96 O episódio foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação em 2011. A explosão foi

ocasionada por um vazamento de gás em um restaurante, que estava localizado no térreo de um prédio de 13 pavimentos que abriga residências e estabelecimentos comerciais, situado próximo à esquina das ruas da Carioca e Visconde de Rio Branco, na altura da Praça Tiradentes. Houve mortos e feridos. 97 Universidades particulares do Rio de Janeiro fornecem bolsas integrais, em alguns cursos

superiores, para indivíduos de baixa renda. O programa é coordenado pela SMDS, e as inscrições e seleções são feitas por intermédio dos CRAS.

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93

as inscrições foram encerradas para o aquele ano, orientando-o a se cadastrar e

aguardar a próxima oportunidade.

Dos atendimentos realizados com os moradores do “asfalto” da Zona Sul,

nenhum solicitou o benefício do Bolsa Família nem as assistentes fizeram qualquer

menção ao programa. Parecia haver uma percepção de que estes não precisavam

do benefício, talvez por não serem moradores da favela e também pela aparência e

pelo comportamento, que inclui a maneira como estavam vestidos e como se

expressavam98.

No entanto, o atendimento mais frequente no CRAS era de beneficiários do

PBF, principalmente daqueles que tinham seu benefício bloqueado por não

atenderem à condicionalidade da educação – frequência escolar. O controle da

frequência escolar é feito por um cartão que as crianças devem passar ao chegarem

à escola. O sistema eletrônico gera, então, um relatório que é enviado pelas escolas

às Secretarias de Educação municipais ou estaduais99. Quando a criança possui

baixa frequência, o benefício é bloqueado, podendo ser desbloqueio somente

quando o titular do benefício comparece ao CRAS, justifica o porquê das faltas e

apresenta uma declaração de frequência fornecida pela escola.

Com a possibilidade de as assistentes sociais desbloquearem o benefício, o

processo tornou-se mais rápido, auxiliando principalmente as famílias em situação

de extrema pobreza. Foi o caso de Rosileia, moradora do Pavão-Pavãozinho. O

98 O que remete à percepção das assistentes do que é “ser pobre” e à associação entre favela e

pobreza. Os moradores que não residem na favela não são considerados “pobres”. Retornarei a essa discussão no capítulo três. 99 A coleta e o registro da frequência escolar dos estudantes cuja família participe do PBF envolvem

estratégia de articulação e mobilização, sob a coordenação do MEC, em parceria com as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. Para isso, foi criado um sistema – “Sistema Presença” – em que são registradas as informações referentes à frequência. Informações disponíveis em <file:///C:/Users/Ultrabook/Downloads/guia-de-orientacao-motivos-baixa-frequencia.pdf> (MEC, 2015).

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94

benefício foi bloqueado por baixa frequência escolar da filha. Ao apresentar a

declaração de presença fornecida pela escola, justificou que a filha por várias vezes

não passou o cartão na chegada à escola, apesar dos seus avisos.

Nos atendimentos, dependendo das condições da família, as assistentes

sociais realizavam o desbloqueio no mesmo instante. O critério para efetuar ou não

o desbloqueio passava pelo conhecimento sobre as condições de vida que as

assistentes possuíam acerca da família beneficiária. Havia as famílias que já tinham

“intimidade” e eram acompanhadas há mais tempo, e as que eram desconhecidas,

sendo apenas um “número no cadastro”. No caso destas últimas, mesmo quando o

benefício era desbloqueado, tal fato somente era informado pela assistente social no

retorno do beneficiário ao CRAS. Esta consistia em uma estratégia da assistente

para realizar o acompanhamento, principalmente das famílias que eram reincidentes

no bloqueio do benefício.

Embora a dinâmica que se estabelece no CRAS no que diz respeito ao

cadastramento siga, primeiramente, os requisitos estabelecidos pela gestão federal,

existem, a partir da relação entre a assistente social e os beneficiários, outros

critérios “paralelos” e “informais”. Portanto, o fato de ser um insider ou outsider do

programa está baseado, também, nas relações construídas na “ponta” da gestão do

PBF. As assistentes sociais trabalhavam como intermediárias da “dádiva”,

estabelecendo a ponte entre o Estado e o beneficiário, podendo, contudo, criar

outras regras e formas de contrapartida. O empoderamento das assistentes sociais

oriundo da permissão de desbloquear o benefício originou um modo particular de

troca. Nesse sentido, os atendimentos no CRAS demonstravam a existência de

operações “formais” que precisavam ser seguidas, mas também de modos

“particulares”, que incluíam relações de troca, reciprocidade e confiança: um “ciclo

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95

de dons e contradons instaurados que produziam um compromisso, alianças entre

os parceiros uma vez que envolve sentimentos” (PIRES, 2013a, p. 525). Nos

atendimentos, como descrito anteriormente, havia uma fronteira entre o que deveria

ser feito e o que poderia ser feito, indicando maneiras distintas do “dar-receber-

retribuir”. O que deveria ser feito se situava na dimensão legal/jurídica e universal do

PBF, no sentido de que, para ser beneficiário do programa, é preciso cumprir as

exigências impostas. Já o patamar do que poderia ser feito pressupunha dimensões

morais e intervenções sobre as regras (isto é, sobre aquilo que é “legal”), “fazendo o

que se pode”, pois a justificativa recaía sobre a necessidade dos mais pobres, o que

“legitimava”, por vezes, as assistentes sociais a auxiliarem os beneficiários a

“navegar” pelo sistema, orientando a melhor forma de ter a sua demanda atendida

ou mantida. Esta forma de agir contribuía para o cumprimento das condicionalidades

ou para o retorno ao CRAS para o acompanhamento exigido após o desbloqueio, ao

mesmo tempo que individualizava e particularizava o atendimento.

2.2.4 Os atendimentos no Centro de Referência de Assistência Social: entre o

público e o privado

A partir dos atendimentos, é visível o “baralhamento” entre o público e o

privado, na medida em que as assistentes sociais, com o objetivo de auxiliar, entram

na vida privada de algumas famílias, principalmente daquelas em situação de

extrema pobreza, que são frequentemente acompanhadas pelas assistentes sociais.

O mesmo ocorre no sentido oposto: as famílias expõem seus problemas privados e

suas condições de vida para receberem o benefício ou a ajuda social. Há, assim,

uma fluidez das fronteiras entre o que é público e privado e as formas como estas

são articuladas pelos agentes sociais envolvidos, assim como para estabelecer as

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96

regras que determinam se uma família é ou não beneficiária:

É complicado, tem a necessidade das famílias e o dinheiro é importante. Por outro lado, tem regras e o controle sobre as famílias é cobrado pelo governo, tem dinheiro público, e para isso acabamos entrando na vida particular. Elas vêm aqui [beneficiárias], têm companheiro, mas ele não ajuda, não trabalha, problemas com filhos adolescentes, doença [...] elas contam toda a vida e algumas dizem: “pode ir lá em casa e perguntar para os vizinhos”. Para receberem o dinheiro é preciso “abrir” toda a sua vida. Às vezes, é difícil, somos uma espécie de salvação para muita gente, nos tornamos “íntimas” (Assistente Social).

Segundo Lyra (1999, p. 3), a fronteira entre o público e o privado é instigante

no Brasil, porque sugere enfoques e questionamentos diversos dependendo da

forma como essas dimensões são interpretadas. Para a autora, estes podem ser

“concebidos como campos de atuação do poder do Estado e dos grupos sociais de

dominação político-econômica, assim o enfoque é dado à problemática da ordem

privada escravista em confronto, ou complementar, com a ordem pública

estabelecida” (LYRA, 1999, p. 3). No entanto, “quando concebidas como esferas de

atuação dos indivíduos em sociedade e manifestações de intimidade da vida

cotidiana, o enfoque é dado ao processo de transformação das relações sociais e

políticas levando-se em conta o caráter privado e cultural dos indivíduos na definição

do espaço público” (LYRA, 1999, p. 3-4). No Brasil, conforme Botelho (2011, p. 420),

o “baralhamento” entre o público e o privado é visto como uma marca desde a

colonização portuguesa e por isso constitui uma das “construções intelectuais mais

recorrentes no seu pensamento social”. Ainda de acordo com Botelho (2011, p. 421),

o privado no pensamento social brasileiro tem sido geralmente associado “aos

círculos primários, sobretudo a família de matriz patriarcal” e aponta esta como “a

agência principal de coordenação da vida social”, por meio da qual o privado foi se

estendendo ao público.

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O mesmo já havido sido referido nas obras de Gilberto Freyre. Em “Sobrados

& Mucambos” (2002), o autor descreve a família “sob a forma patriarcal, ou tutelar”

como uma das grandes forças permanentes no Brasil. Em torno da família, segundo

o autor, os principais acontecimentos brasileiros giraram durante quatro séculos, de

modo que permaneceu apesar das mudanças ocorridas na vida social quando esta

passa do meio rural para o meio urbano. Botelho (2011, p. 422) faz referência à obra

de Gilberto Freyre ao mencionar que a decadência do patriarcado rural não implicou

o desaparecimento total do seu poder nem o rompimento da interpenetração entre o

público e privado, ainda que “as relações entre esses domínios tenha se alterado

mediante ao peso relativo que as instituições públicas passaram a assumir”. Sergio

Buarque de Hollanda (2002) afirma que o brasileiro se criou dentro de um núcleo

familiar acentuadamente patriarcal e trouxe para o meio público esses traços que o

fizeram indivíduo. Nesse contexto, destaca-se sua dificuldade de desvincular-se dos

laços familiares a partir do momento em que se torna um cidadão: ele leva consigo

essa forma de tratamento “cordial”, em que precisa criar uma intimidade com

aqueles que se relaciona. Tal elemento era observado no CRAS durante a

atualização dos dados do cadastro por parte dos beneficiários − quando a renda per

capita da família ultrapassava o limite estabelecido pelo programa e era originada do

trabalho formal (carteira assinada), a assistente social orientava os beneficiários, em

alguns casos particulares, a não realizarem a atualização das informações. Ou seja,

os beneficiários eram orientados a deixar o cadastro desatualizado até que o próprio

sistema do CadÚnico bloqueasse ou excluísse o benefício, um processo que,

segundo a assistente, poderia levar alguns meses, de modo que a família

continuaria a receber o dinheiro. Luíza, uma das beneficiárias, trouxe a carteira de

trabalho do marido para atualização do cadastro. Este havia conseguido um

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emprego formal que fazia com que renda per capita familiar ultrapassasse o limite do

PBF em R$ 30 (o valor do benefício da família era de R$ 104). Nessa ocasião, a

beneficiária foi orientada pela assistente social a não atualizar os dados. Segundo

Luíza, o dinheiro do Bolsa Família pagava a creche de sua filha: “Sem este dinheiro

não dá, como eles [referindo-se ao Governo Federal] acham que eu não sou pobre,

mas ela (assistente) me conhece, sabe que preciso”.

Para as famílias que vivem do trabalho informal (sem carteira assinada), o

cálculo da renda é feito pela renda declarada100, caso em que o titular do programa

declara a renda da família e assina um documento afirmando a veracidade de tal

informação. Novamente, em alguns casos, a assistente aconselhava a informar um

valor menor que o recebido. Lúcia, mãe de dois filhos, que era separada e morava

com a mãe, por exemplo, tinha uma renda familiar que provinha do seu trabalho

como faxineira e da venda de bolos e doces que sua mãe realizava na porta de

casa. A renda per capita da família ultrapassava o limite, motivo pelo qual a

assistente orientou Lúcia a informar um valor menor para continuar a receber o

benefício de R$ 147. Antes de encaminhá-la para a atualização do cadastro, a

assistente reforçou a orientação e perguntou: “Qual a renda da família?”. Lúcia

respondeu o valor correto, e a assistente corrigiu: “Não, a sua renda é o valor que

você escreveu na declaração. É isso que você deve dizer se não quer perder o

benefício”.

As assistentes que por vezes auxiliavam nessa prática justificavam a ação

pela falta que o dinheiro faria no orçamento da família, mesmo com o aumento da

renda, baseando-se na história de vida daquelas pessoas. Segundo uma das

100 O titular do programa deve escrever e assinar um documento informando qual é o rendimento da

família. Este documento é anexado ao prontuário da família.

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assistentes, embora os valores sejam pequenos, quando as famílias deixam de

receber o benefício, isso pode implicar, por exemplo, uma luz que não será paga:

“Somos nós que tratamos todos os dias com quem precisa, é difícil ter que excluir

gente que necessita. Vão viver de quê? Mas isso não é “legal”, por isso tem que

ter confiança”. Em nenhum momento, os procedimentos dos atendimentos foram

informados ou “denunciados” pelos beneficiários. Ao contrário, as assistentes sociais

que mais “auxiliavam” eram as “preferidas” dos beneficiários para o atendimento,

porque “elas sabem quem precisa”.

Eu gosto muito da [...] ela é educada, gentil e entende os nossos problemas, sabe que a gente precisa. Se não fosse ela, minha família teria mais dificuldades. Eu digo para ela “você é um anjo”. Já aquela outra [...] não suporto, tem muita má vontade de ajudar (Liliane).

Gosto de duas assistentes, elas são atenciosas e ajudam a gente que precisa. Eu ligo para saber quem está atendendo no dia, conforme eu vou (Maria).

Em toda a relação construída na “ponta” do PBF entre assistentes sociais e

beneficiários, há uma dinâmica que somente é compreensível ao observarmos o

cotidiano do CRAS. O programa, como foi exposto, desde a sua criação e execução,

busca formas de controle sobre quem trabalha na “ponta” e quem recebe o

benefício. Entretanto, os beneficiários e as assistentes sociais estabelecem suas

próprias percepções sobre as regras e os critérios, criando um universo “paralelo”

que fica no limiar entre o “formal” (regras do programa) e o “informal”.

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3 O BOLSA FAMÍLIA: FAMÍLIAS, POBREZA, DINHEIRO E CONSUMO

Nos capítulos anteriores, apresentaram-se a trajetória de pesquisa e o início

do PBF até a sua execução na “ponta” (gestão municipal), analisando a relação

entre as assistentes sociais e os beneficiários. Neste capítulo, a pretensão é

descrever e analisar o cotidiano de três beneficiárias e suas famílias a partir do

consumo e dos significados do dinheiro oriundo do PBF.

3.1 O UNIVERSO DA PESQUISA

No Brasil, os estudos que envolvem populações de baixa renda, como as

pessoas beneficiárias do PBF, têm buscado desvendar aspectos relacionados à

violência, à família, ao gênero, ao parentesco, à identidade, entre outros. Como

exemplo, podem-se citar pesquisas como a de Sarti (1996) com famílias de baixa

renda em São Paulo; de Fonseca (2000) com moradores de uma “vila” de Porto

Alegre; de Zaluar (1994) com moradores do conjunto habitacional “Cidade de Deus”

do Rio de Janeiro; de Caldeira (1984) em um bairro da periferia de São Paulo; e,

mais recentemente, de Motta (2014), que descreve os elementos que “modulam” a

economia em uma favela da Zona Norte do Rio de Janeiro a partir da noção de

casa; e de McCallum e Bustamente (2012), que analisam a construção do cotidiano

e de parentesco e as diferenças de gênero a partir da categoria de casa em um

bairro popular da cidade de Salvador.

Nas trajetórias a serem descritas das mulheres beneficiárias do PBF e de

suas famílias também são observadas algumas dessas categorias. Entretanto, o que

se revela é o universo dessas famílias com base no modo de provisão (consumo),

no dispêndio e nos significados atribuídos ao dinheiro recebido por meio do PBF,

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assim como as questões morais que cercam o consumo, uma vez que o dinheiro

provém de um programa de transferência de renda público, sendo seu destino

definido pelas próprias famílias. Trata-se, assim, da autonomia e liberdade dos

indivíduos de baixa renda em contraponto a certa tutela sobre essas populações

pobres, não somente no que diz respeito ao gasto do dinheiro recebido pelo

programa, mas também no que concerne a uma visão de certos setores da

sociedade que julgam haver uma falta de capacidade desses grupos de decidir o

que é melhor para suas vidas, bem como uma falta de aptidão para romper com a

pobreza. Diante disso, questiona-se: como estas famílias, no dia a dia, consomem e

como percebem e lidam com os “olhares moralizantes” sobre o seu consumo? Quais

as definições de pobreza que recaem sobre as famílias beneficiárias e os moradores

da favela? Que significados têm o dinheiro advindo do PBF?

O consumo101, neste estudo, é entendido como um fenômeno ativo constante

no cotidiano dos indivíduos que desempenha um “papel central como estruturador

de valores que constroem identidades, regulam relações sociais, definem mapas

culturais”, segundo a perspectiva de Rocha (2004, p. 8). Douglas e Isherwood

(2004), em um estudo clássico que lançou as bases para se falar em uma

antropologia do consumo, expõem que a literatura profissional sobre o consumo

tende a supor que as pessoas compram bens com dois ou três objetivos e

propósitos restritos: bem-estar material, bem-estar psíquico e exibição. Segundo os

autores, o consumo deve ser trazido para o âmbito do processo social e, assim,

deixar de ser visto como um resultado ou um objetivo do trabalho. Ou seja, o

consumo precisa ser reconhecido “como parte integrante do mesmo sistema social

101 O conceito de consumo deve ser ampliado para além da aquisição de bens ou reprodução física

ou biológica, sendo visto como mediador de relações sociais, que é capaz de conferir status, distinguir-nos, fazer-nos sentir pertencendo a um grupo, estabelecer fronteiras, construir e fortalecer identidades e subjetividades etc. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004).

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que explica a disposição para o trabalho, ele próprio como parte integrante da

necessidade social de relacionar-se com outras pessoas, e de ter materiais

mediadores para essas relações” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p. 26). Isso

significa compreender os bens, o trabalho e o consumo como totalidades do

esquema social, bem como o dinheiro e seus significados – o dinheiro oriundo do

PBF deve ser entendido como um “dinheiro especial” que é moldado por diferentes

redes de relações sociais (ZELIZER, 2003), pelas condições de vida de cada família

e pela forma como se dá a vida no lugar em que vivem, seja na cidade, no bairro ou

na favela (CALDEIRA, 1984).

3.2 TRÊS HISTÓRIAS: AS BENEFICIÁRIAS E SUAS FAMÍLIAS

Falar sobre o PBF a partir das três mulheres participantes deste estudo e de

suas famílias é contar um pouco acerca de suas trajetórias e histórias de vida.

Segundo Lewis (1961), que pesquisou a pobreza no México com base em cinco

famílias102, ao descrever uma família, vemos seus indivíduos conforme vivem e

trabalham juntos. Em suas palavras, “en lugar de verlos como promedios o

estereotipos implícitos en los informes sobre patrones culturales” (1961, p. 18).

Ainda segundo o autor: “Nos ayuda a ilegar más allá de la forma y estructura de las

realidades de la vida humana [...]” (LEWIS,1961, p. 18).

No caso das famílias beneficiárias foco deste estudo, foram três anos de

convivência, visitas e conversas. Saliento que, embora as famílias acompanhadas

tenham em seu núcleo a figura masculina, foi na trajetória das mulheres que a

observação se concentrou, uma vez que estas são as beneficiárias do programa,

102 As famílias participantes deste estudo foram: Martínez, Gómez, Gutiérrez, Sánchez e Castro (LEWIS, 1961).

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responsabilizando-se pelos filhos e pela organização da casa. A figura masculina

aparece, assim, como provedora ou ocupando o papel de pai dos filhos, quando este

não contribui para o sustento da casa.

Durante todo o período de pesquisa, conheci poucos homens beneficiários do

programa (titulares do programa) e nenhum disposto a participar da pesquisa, pois

sempre mencionavam a necessidade de trabalhar. Ainda que não tenha sido

proposital, as três famílias acompanhadas são constituídas de casais heterossexuais

e com filhos. Cada uma das famílias reside em um domicílio, não havendo

compartilhamento deste com outros parentes. Foram acompanhadas as famílias

Silva, Siqueira e Cardoso103, todas residentes na favela do Pavão-Pavãozinho, mas

com perfis socioeconômicos distintos. Seguindo os critérios do PBF, baseados na

renda per capita, a família Silva está no perfil de extrema pobreza, pois possui uma

renda per capita inferior a R$ 77. Já as outras duas famílias são classificadas como

pobres, possuindo uma renda per capita de até R$ 154.

A primeira beneficiária que conheci no CRAS foi Maria Silva. Era uma manhã

quente de novembro (2012), e eu estava acompanhando o atendimento de uma

assistente social. Eis que entram Maria e seus cinco filhos. O mais velho (João)

tentava controlar os mais novos enquanto Maria conversava com a assistente social.

As meninas estavam de vestido e com laços de fita nos cabelos; os meninos, com

bermuda, camiseta e tênis, ou seja, toda a família estava “arrumada”. Depois do

atendimento, Maria foi até a Clínica da Família, e, quando saiu, conversei com ela

na sala de espera do atendimento. Trocamos telefone, e combinei de visitá-la. Na

manhã seguinte, cheguei à favela e liguei para Maria, identificando-me e

perguntando como deveria fazer para chegar à sua casa. Ela informou, então, que

103 Os sobrenomes e nomes das famílias foram alterados.

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iria descer até o acesso ao plano inclinado para me buscar. Após aproximadamente

25 minutos, apareceu Maria com a filha mais nova no colo. Desculpou-se pela

demora, causada pela necessidade de dar banho na menina. Começamos a subir as

escadas íngremes em direção à sua casa. Chegamos a um pequeno cômodo que

não possuía janela − a única ventilação do domicílio ocorria por meio da porta.

Como não havia lugar para sentarmos dentro da casa, abancamo-nos na escada do

lado de fora. Maria ofereceu-me café, e começamos a conversar. Ela se mostrava

feliz com meu interesse sobre sua história de vida e a história de sua família. Como

estávamos na escada que dava acesso a outras casas, à medida que as pessoas

iam passando, Maria apresentava-me como sua amiga e, por vezes, mencionava o

CRAS, local em que me conheceu.

Enquanto conversávamos, uma vizinha passou para deixar uma sacola com

roupas para as crianças e também um saco com pães. Nesse mesmo dia, conheci

outras duas mulheres beneficiárias do PBF. Uma delas, Kátia, residia na divisa das

favelas do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, tinha uma filha, fruto de um

relacionamento anterior, e estava grávida de um menino do atual companheiro. Kátia

confirmou que recebia o benefício, comentando que com ele pagava a creche da

filha. Conheci também Sandra, vizinha e amiga de Maria e também beneficiária do

PBF. Sandra era dona de casa e mãe de três filhos, dois do seu atual companheiro.

A história de vida destas mulheres e de suas famílias me permitiu conhecer um

pouco mais sobre o cotidiano, o estilo de vida, o gosto, a importância do dinheiro

vindo do benefício e os aspectos relacionados ao consumo.

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3.2.1 A família Silva: Maria

A família de Maria é composta de dois adultos (Maria e Carlos) e cinco

crianças (João, com nove anos; Maria Clara, com sete anos; Victoria, com cinco

anos; Vitor, com cinco anos; e Sara, com três anos104 – Victoria e Victor são

gêmeos). Maria é a titular do PBF, e sua história de vida é repleta de dificuldades e

privações: uma mulher de 32 anos, negra, de estatura pequena, que estudou até a

quarta série e veio da Paraíba (“da roça”, interior do estado) para o Rio de Janeiro

aos 12 anos de idade para trabalhar em uma “casa de família” na Vila Militar em

Deodoro. A sua vinda para o Rio de Janeiro foi intermediada por uma prima (também

da Paraíba) que morava em Niterói. O casal para quem veio trabalhar pagou sua

passagem de ônibus:

A viagem foi horrível, não conhecia nada, minha mãe foi pedir autorização no juiz para eu viajar, era de menor. Quando cheguei, eles [o casal] estavam me esperando na rodoviária. Aí me levaram para casa deles na Vila Militar. Achava que minha vida no Rio seria boa, diferente, mas não foi (Maria).

Segundo Maria, na casa em que trabalhou, moravam o casal e uma filha. O

marido, militar, ficava o dia todo no quartel; a filha de 22 anos fazia faculdade e

também passava o dia fora; a mulher era quem permanecia em casa. Maria relata

que, com 12 anos de idade, era quem executava todas as tarefas domésticas da

casa:

A casa era muito grande, três quartos, dois banheiros e ainda tinha dois cachorros. Eu fazia todo o serviço, acordava às 5h da manhã, limpava fora e dava banho nos cachorros, às 6h colocava o café na mesa e depois limpava a casa, passava roupa... Eu terminava tudo perto da meia-noite. A mulher era muito ruim comigo, só não me batia, mas não podia sair, não

104 As idades aqui mencionadas remontam ao final de 2015.

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tinha folga, não deixavam eu ligar para minha irmã [irmã mais velha que residia no Bairro de Bonsucesso, Rio de Janeiro] e não pagavam nada. Só davam de comer e de morar (Maria).

Diante desse contexto, permaneceu trabalhando lá por um tempo e resolveu

“fugir”. Maria descreve que um dia acordou bem cedo, arrumou suas coisas em três

sacolas e saiu da casa. Caminhou por duas horas até parar em um bar:

Não tinha para onde ir e estava cansada. O dono do bar perguntou o que estava fazendo andando sozinha. Aí ele me ajudou a ligar para minha irmã que morava em Bonsucesso. Ela veio me buscar e fui morar com ela (Maria).

As narrativas de Maria sobre a sua vida não seguiam uma cronologia exata,

mas ela fazia questão de enfatizar o que mais a marcou, principalmente após a

“fuga” da “casa de família”. Nessa época, quando foi morar com a irmã no bairro de

Bonsucesso, Zona Norte do Rio de Janeiro, logo conseguiu um emprego como

doméstica em Copacabana:

Através da minha irmã, fui trabalhar na casa de uma mulher em Copacabana. Essa pessoa foi muito boa para mim. Eu fazia todo o serviço da casa, mas ela dava casa, de comer e pagava um salário, fiquei mais de dois anos com ela. Aprendi muito e fui bem tratada, mas aí quis sair, sabe como é, queria me diverti, sair e ela entendeu (Maria).

Após sair do trabalho em Copacabana, com 15 anos, começou a fazer faxina

para ganhar dinheiro. Entretanto, gastava tudo com “farra”, só queria “se divertir”.

Envolveu-se com um traficante, saiu da casa de sua irmã (em Bonsucesso) e foi

morar com ele em uma favela na cidade de Duque de Caxias: “Eu era a segunda

mulher dele. Ele tinha esposa e filhos, fiquei sabendo depois. Mas gostava dele e

aceitei”. No início do relacionamento com o companheiro, Maria relata que tinha tudo

que queria: roupas de marca, boa casa etc. − “Eu era ‘cocota’, só usava roupas de

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marca, ele me dava tudo que eu queria”. Mas depois começaram os maus-tratos e

as agressões cometidas pelo companheiro. Depois da última agressão sofrida, com

a ajuda de uma amiga, resolveu mudar-se da favela de Caxias para a favela do

Pavão-Pavãozinho em Copacabana:

Ele tinha ciúmes, e disseram que eu estava traindo ele. Ele chegou na casa e me bateu muito. Fiquei sem poder me mexer. A mulher dele veio me ver, ficou com pena e cuidou de mim. Quando fiquei melhor, peguei o pouco que tinha e fugi com ajuda de uma amiga que me deu abrigo aqui. Algum tempo depois, me disseram que a polícia matou ele (Maria).

Ficou morando no Pavão-Pavãozinho, “de favor”, na casa de uma amiga.

Começou a estudar e concluiu a quarta série primária. Nos finais de semana,

visitava sua irmã em Bonsucesso, local em que conheceu o pai do seu filho mais

velho. Quando ficou grávida, foi morar com ele na casa da sogra (também em

Bonsucesso). A relação não deu certo − ela era muito ciumenta, e ele só queria

“curtir com os amigos”. A sogra era quem ajudava nas despesas com o filho, mesmo

depois da separação. Com o filho ainda pequeno, retornou para a favela do Pavão-

Pavãozinho, época em que a sogra pagava o aluguel e as demais despesas, mas,

após seu falecimento, a situação ficou difícil, e Maria teve de ir a um abrigo público

com o filho:

Ela [sogra] era muito boa pra mim, ajudava em tudo. Depois que ela morreu, a vida ficou bem difícil. Até para um abrigo eu fui com meu filho. Lugar horrível, quiseram até tirar meu filho de mim, nunca mais volto para um lugar desses (Maria).

Maria relata, ainda, que praticou de tudo na vida até conhecer seu

companheiro (Carlos, 34 anos), que era vendedor ambulante (de queijo coalho) na

praia de Copacabana − na época, Maria entregava propaganda de uma lanchonete

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pela praia. Juntos, tiveram quatro filhos, três meninas e um menino. Quando eu a

conheci no CRAS, a filha mais nova, Sara, estava com menos de um ano e muito

doente. Depois de um tempo de pesquisa, mencionou que a filha era HIV positivo,

assim como ela. Na ocasião, Maria estava se tratando de uma tuberculose, e a filha

vinha sendo acompanhada pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF)105. Da Clínica da

Família situada na favela recebiam os remédios e demais acompanhamentos

necessários. Durante a pesquisa de campo, Sara esteve internada no IFF por três

vezes, tendo a última internação durado dois meses. O hospital somente deu alta a

Sara quando a família se mudou para outra casa, pois aquela onde moravam foi

considerada um local insalubre para alguém viver, principalmente para crianças.

Durante a internação de Sara, uma rede de proteção formou-se para mudar a vida

da família. Embora Maria sempre frisasse que os filhos eram sua prioridade, na

prática havia dificuldades para manter os cuidados necessários, como alimentação,

vestuário e educação. Para justificar os cuidados com os filhos, reclamava que

vizinhos e “outras” pessoas falavam mal dela − “dizem que eu não cuido direito dos

meus filhos”.

Para realizar a mudança do local onde residiam, Maria recebeu ajuda de uma

ONG e de uma igreja evangélica, ambas localizadas na favela. Conseguiram uma

casa em melhores condições, a doação de alguns móveis e o pagamento de dois

meses adiantados do aluguel. As assistentes sociais do IFF e do CRAS

acompanharam toda a mudança da família para a nova casa. Os médicos do IFF

liberam Sara somente quando as assistentes sociais garantiram que a família estava

em outro domicílio. A antiga casa (local onde iniciei as visitas à família no final de

105 O Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF),

unidade de assistência, ensino, pesquisa e desenvolvimento tecnológico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi reconhecido em 2006 como hospital de ensino e em 2010 como centro nacional de referência pelo MS e pelo ME. O Instituto localiza-se no bairro do Flamengo, Zona Sul (IFF, 2016).

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2012) possuía somente um cômodo muito pequeno sem janela, com um banheiro

sem chuveiro − o banho era realizado por meio de um balde na parte externa da

casa. Existia apenas uma porta pela qual entravam a claridade e o ar. Na parte

interna do cômodo, havia um beliche com dois colchões, um fogão de quatro bocas,

uma pia pequena, uma mesa de canto com uma televisão e uma geladeira que não

funcionava e servia como armário para roupas e outros objetos. A família não tinha

como armazenar alimentos perecíveis, de modo que tudo que era comprado tinha de

ser consumido em um curto período de tempo.

Quando o marido deixou de ser vendedor ambulante na praia, as “coisas

pioraram”. Ele passou a ser usuário de drogas, e as dificuldades para conseguir

trabalho tornaram a vida da família mais penosa. Segundo Maria, o marido nunca

teve um trabalho formal, era analfabeto e só conseguia realizar pequenos “bicos”

como carregador ou ajudante de alguma obra na favela. Maria, eventualmente,

realizava alguma faxina, porém tinha dificuldades para encontrar alguém com quem

deixar as crianças − o companheiro, mesmo permanecendo em casa, raramente

ficava responsável por cuidar das crianças.

A única renda certa da família era oriunda do benefício do Bolsa Família e

girava em torno de R$ 360, o que permitia pagar o aluguel de R$ 250 da nova casa.

Sem o PBF e a ajuda de vizinhos, da igreja e de ONGs, Maria relata que seria muito

complicado manter os filhos. A família recebia cestas básicas, o que supria em parte

as necessidades relacionadas à alimentação. As cestas eram doadas pelas igrejas

católica e evangélica; a cesta proveniente da igreja católica foi suspensa durante o

período da pesquisa, devido, conforme Maria, a “fofocas” ao padre de que ela

estava, certo dia, bebendo cerveja e de havia deixado os filhos em casa:

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Foi fofoca, disseram que eu estava bebendo. Eu às vezes saio com amigos, e a gente bebe uma cerveja. Não se pode fazer nada? Aí disseram que eu não estava cuidando dos meus filhos. Eu cuido deles, mas às vezes me divirto (Maria).

Se, por um lado, a família de Maria, devido à situação de pobreza e ao

número de crianças pequenas, sensibilizava os moradores da favela e as demais

redes de auxílio, por outro, o comportamento do casal, e principalmente de Maria106,

era constantemente vigiado e criticado. Tal conduta se somava a alguns hábitos de

consumo, como comprar bebidas alcóolicas e/ou gastar dinheiro em bar, além dos

“problemas” com droga do marido. Nunca presenciei tal comportamento, mas ouvia

comentários de que o casal saia para beber em algumas noites.

A família de Maria ficava constantemente no limiar entre o “bom” e o “mau”

pobre. Algumas vezes, eram vistos como “coitadinhos”, prontos para receberem

ajuda e agradecerem pela “dádiva” (auxílios), gerando obrigações de ordem moral,

já que não existe “dádiva” sem expectativa de retribuição (MAUSS, 2003). Assim,

enquanto “pobres” que recebem o auxílio, deveriam manter o comportamento

esperado, ou seja, contraprestação, para com aqueles que estavam os auxiliando.

Existe, por parte de algumas pessoas que auxiliam, a expectativa de que quem

recebe a ajuda retribua agradecendo, mas principalmente que seja o “bom pobre” –

cuide da família, estude e trabalhe, demonstrando que é um “pobre que luta e

batalha” no cotidiano. Caso contrário, são considerados “preguiçosos”, que não

fazem nada para mudar a sua condição de vida, pois preferem viver de “esmolas” a

trabalhar. A crítica acerca do “pobre não trabalhador” recaía sobre Carlos, que, como

o “homem da casa”, deveria ser o provedor; já sobre Maria havia a expectativa de

106 Recai sobre as mulheres a responsabilidade de cuidar dos filhos e da casa, sendo, ao mesmo

tempo, as detentoras da moral da família. Para maiores detalhes sobre essa questão, conferir DaMatta (2001).

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que ela responsabilizasse pelo âmbito doméstico, o que inclui o cuidado com os

filhos. Essa questão sobre os papéis esperados do homem e da mulher, bem como

sobre a honra e a moral familiar, já foram estudadas por Fonseca (2000) e Sarti

(1996). Embora esse comportamento “esperado” não seja exclusivo das classes

menos favorecidas, fica evidente o preconceito, isto é, um etnocentrismo social, que

recai sobre os mais pobres. No caso de famílias beneficiadas pelo PBF, o

preconceito ganha mais força, pois estas recebem um dinheiro proveniente do

governo, o que acarreta todos os tipos de críticas quando a família possui uma

imagem de “mau pobre”.

Apesar da vigilância que a família de Maria por vezes sofria de quem os

ajudava e do PBF107, a família procurava corresponder às expectativas, pois a ajuda

e o dinheiro eram fundamentais para sua sobrevivência. O dinheiro do PBF permitia,

por exemplo, que obtivessem crédito com comerciantes locais. Um dos mercadinhos

da favela, perto da casa de Maria, anotava algumas compras da família, que

giravam em torno de R$ 100 por mês. O valor era, dentro do possível, sempre

quitado. Outra prática era a troca de alimentos, realizada com itens da cesta básica

que recebiam, pois nem todos os produtos da cesta eram do agrado da família.

Maria não gostava da marca do café, e os filhos, do macarrão. Sempre que o dono

da venda concordava, ela trocava os itens que recebia por outros produtos ou por

outras marcas:

A cesta básica ajuda muito, mas tem algumas coisas muito ruins. O café, só gosto do Pilão108. O macarrão que vem às vezes tem gosto de farinha,

nem lembro a marca, tem verde no pacote. Quando seu [...] deixa, eu troco as coisas na venda dele. O Pilão é mais caro, mas aí pago a

107 A vigilância do PBF a que me refiro consiste no cumprimento das condicionalidades (na área da

saúde e educação) e nos acompanhamentos das assistentes sociais. 108 Marca de café.

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diferença quando tenho dinheiro. Eu só tomo café Pilão, não gosto de outro, mas na cesta vêm só umas marcas ruins, dou um jeito de trocar. Troco também o macarrão. Sempre vem arroz e arroz rende bastante, então troco o arroz pelo feijão ou outra coisa que precisamos (Maria).

A troca de alguns produtos da cesta básica era uma das estratégias da família

para obter uma maior variedade de alimentos, uma vez que os recursos financeiros

eram escassos. O crédito que a família conseguia com comerciantes locais também

tinha sua importância no cotidiano, algo que somente era possível porque Maria era

beneficiária do PBF109. Sem o benefício, a família não teria esse crédito, pois não

possuía outra fonte de renda “certa”. O dono da venda supracitada sabia que Maria

era beneficiária e fornecia alimentos a crédito, formando uma relação de confiança

que a família procurava manter:

Sempre que recebo o Bolsa Família, primeiro pago o aluguel e depois vou acertar com o seu [...]; se falta dinheiro; digo que pago o restante no mês que vem. Ele aceita, sabe que eu pago. Quando entra dinheiro extra, vou lá e pago. Ele é bom, às vezes dá bala paras as crianças (Maria).

Mesmo com a possibilidade de ter acesso a serviços financeiros110

aparentemente simples, como conta bancária, poupança e microcréditos, criados

pelo Governo Federal111 e dirigidos especificamente para grupos de baixa renda112,

109 A pesquisa de Rego e Pinzani (2013) descreve a importância de ser beneficiária do PBF para a

obtenção de crédito em mercados e lojas onde habitualmente a família realiza suas compras. 110 Neri (2014) analisa o acesso de segmentos mais pobres, em especial dos beneficiários do PBF, a

instrumentos financeiros básicos, tratando, sobretudo, da poupança, tendo em vista as perspectivas e motivações das famílias. O objetivo principal do autor é o subsídio à formulação de políticas públicas de inclusão financeira. Segundo Neri (2014, p. 739), o PBF tem como um “efeito colateral o maior acesso desse grupo a serviços financeiros. Nesse sentido, o Bolsa Família, mais do que uma porta de saída da pobreza, figura como porta de entrada em segmentos mais sofisticados do mercado financeiro”. 111 Em 2009, o Governo Federal lançou o projeto de “Inclusão Bancária” dos beneficiários do Bolsa

Família. O programa possibilita que beneficiários do PBF tenha acesso a uma conta bancária. Para abrir a conta, é exigido apresentação apenas do CPF e do cartão do Bolsa Família. A conta bancária possibilita que beneficiário receba o dinheiro do programa diretamente na conta corrente na CEF e que tenha acesso a serviços financeiros como microcrédito, poupança e seguros. A conta é isenta de taxas e dá direito a quatro saques por mês sem taxa, mas não concede direito a talão de cheques. 112 Estudos sobre a inclusão financeira do segmento de baixa de renda são realizados por Mattoso

(2005), Müller (2012) e Müller e Soares (2012).

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113

cabe referir que a família de Maria não utilizava qualquer um desses serviços. Como

o dinheiro já se encontrava quase totalmente comprometido, este era sacado

totalmente da conta. O pouco dinheiro “extra”, não proveniente do Bolsa Família,

que a família ganhava era quase todo gasto no comércio local; raramente Maria

realizava compras em supermercados, mas, quando o fazia, ia ao supermercado

Mundial113 de Copacabana, considerado mais barato:

Outro dia fiz uma faxina, aí fui no Mundial [supermercado] aqui de Copacabana comprar umas misturas e coisas diferentes. [...] requeijão, biscoito recheado, iogurte, queijo [...] lá é mais barato que o Zona Sul [supermercado]. Mas só vou quando vem um dinheirinho de alguma faxina ou bico do Carlos, se não a gente pega tudo por aqui mesmo (Maria).

As refeições da família eram de responsabilidade de Maria, que cozinhava

uma vez por dia, sempre no almoço. A base da alimentação era feijão com arroz e

macarrão temperado com molho vermelho, alimentos que vinham na cesta básica.

As condições precárias da moradia dificultavam a preparação de alimentos quentes.

Em 2013, quando a família se mudou para a nova casa, Maria estava muito

feliz. A moradia também possuía somente um cômodo, porém maior que o anterior e

com uma janela que deixava o ambiente mais arejado e um banheiro com chuveiro.

Maria enfatizava: “casa nova, tudo novo”. Logo que se mudaram, ela me convidou

para ir visitá-la e, feliz, mostrou todos os móveis que ganhou − um fogão de quatro

bocas, um armário de metal, dois colchões (casal e solteiro), uma geladeira

(funcionando), uma mesa e uma televisão (a antiga havia quebrado na mudança). A

preparação dos alimentos ficou, então, mais fácil, e, com a geladeira, podiam

armazenar alimentos perecíveis. Os dois meses de aluguel adiantados, que foram

113 Diversos moradores do Pavão-Pavãozinho citavam o Supermercado Mundial como o mais barato

para realizar compras em Copacabana.

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114

pagos pela ONG, ajudaram muito no orçamento da família e permitiram que o

dinheiro fosse gasto com outras coisas. Nesse período, Maria fez uma festa de

aniversário para uma das filhas e melhorou a alimentação da família.

Na nova moradia, tornou-se possível, durante as visitas, sentarmo-nos na

parte interna da casa, em função do maior espaço disponível. O ambiente da antiga

moradia era muito pequeno, e sempre que a visitava nos sentávamos na escadaria

do lado de fora.

Com a mudança para o novo domicílio, na época, a filha Sara retornou para

casa após dois meses de internação no IFF. Ela estava mais robusta e havia

ganhado peso. Maria conseguiu vaga na creche Solar Menino de Luz para o filho

Vitor (na época com três anos), e o mais velho ia para a escola na parte da tarde.

Para não perder o benefício do Bolsa Família, Maria mantinha os filhos na

escola e ia com frequência à Clínica da Família para o acompanhamento da saúde.

Mantinha contato com sua irmã em Bonsucesso e era por seu intermédio que

recebia notícias do restante da família, que ainda morava na Paraíba. Maria sempre

fazia questão de dizer que sua família eram seus filhos e que por eles faria qualquer

coisa. Teve alguns desentendimentos com o companheiro e falava em separação;

porém, pensava nos filhos e no fato de ele não ter ninguém nem lugar onde morar.

Um desses desentendimentos foi deflagrado pelo dinheiro do Bolsa Família recebido

no período em que Sara estava hospitalizada. Maria precisava ir até o hospital ver a

filha e delegou a Carlos a tarefa de sacar o benefício. Quando Maria retornou para

casa do hospital, recebeu de Carlos o cartão e um valor inferior ao que normalmente

angariava do programa sob a justificativa do companheiro de que aquele era o

dinheiro que estava na conta. Na manhã seguinte, Maria foi até o CRAS verificar por

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115

que o valor pago havia sido menor que o habitual. Ela ouviu da assistente que o

benefício não havia sido alterado e que seu marido devia ter gasto o restante

dinheiro. Depois daquele dia, Maria nunca mais deixou que Carlos recebesse o

benefício.

Falou algumas vezes em ir embora do Pavão-Pavãozinho; porém, ressaltava

que conhecia todos ali e que precisava da ajuda que recebia na favela. As coisas

durante um tempo permaneceram estáveis, e tudo parecia correr muito bem, embora

as condições de vida da família fossem bastante difíceis, e continuaram sendo,

durante toda a pesquisa.

3.2.2 A família Siqueira: Sandra

Sandra Siqueira é beneficiária do PBF e reside com sua família próxima à

antiga casa de Maria, o que facilitou meu acesso a essa família. Na minha primeira

visita à sua casa, fui levada por Maria. Sandra estava arrumando seus filhos para a

escola. Entramos e sentamo-nos em cadeiras de plástico. Sandra explicou que, na

noite anterior, houve um culto religioso, motivo pelo qual estavam ali as várias

cadeiras. A casa da família era de alvenaria e continha uma sala, um quarto, um

banheiro e uma pequena cozinha. Na entrada da casa, havia uma porta com uma

grade e, ao lado, uma janela que deixava a sala iluminada e arejada.

A sala possuía poucos móveis – algumas cadeiras de plástico, um armário de

cozinha que tinha algumas portas quebradas e que era usado para guardar roupas e

brinquedos, um tapete com almofadas, uma televisão, uma mesa de canto e uma

geladeira duplex (modelo antigo). Durante algum tempo, permaneceu no canto da

sala uma estrutura de carrocinha de venda de alimentos, pois Sandra pretendia ter

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116

um “negócio de vendas na praia”, ideia que nunca se concretizou e que, com o

tempo, foi descartada. O quarto não tinha janela e era dividido por uma cortina: de

um lado, havia dois colchões de solteiro, nos quais dormiam as crianças; e do outro

lado, um colchão de casal e um ventilador. Na cozinha, havia uma pia com um

armário suspenso, um fogão de quatro bocas, uma máquina de lavar roupas e

alguns eletrodomésticos. Ao lado da cozinha, havia uma porta que dava acesso ao

banheiro, dotado de uma pequena pia e um espelho logo acima, um vaso sanitário e

um chuveiro elétrico. A família era composta de dois adultos (Sandra e José) e três

crianças (Joaquim, com 14 anos; Pedro, com 11 anos; e Beatriz, com cinco anos114 −

os dois menores são filhos de José). Sandra é uma mulher de 39 anos, de cor

branca e de estatura média, que estudou até a quinta série. Era moradora da cidade

de Duque de Caxias e mudou-se para a favela do Pavão-Pavãozinho há uns 17

anos, onde teve seus três filhos. Não falava sobre o pai do seu primeiro filho,

mencionando apenas que foi um relacionamento que não deu certo e que nunca

mais o viu. Relatou que seus pais eram falecidos e que, embora tivesse dois irmãos

e uma irmã, mantinha contato somente com a irmã. Para viver, trabalhava como

faxineira. Entretanto, como, quando ficou sozinha com o filho pequeno, o dinheiro

que ganhava não era suficiente para sustentá-lo, começou a se prostituir. Em uma

das tardes que a visitei, contou sobre o período que trabalhou como prostituta.

Descreveu que foi por meio de uma moradora do Pavão-Pavãozinho que conheceu

a “Vila Mimosa”115, onde começaria a trabalhar:

A vida estava difícil, as faxinas não davam para sustentar meu filho e eu sem estudo com filho pequeno. Aí, uma moradora me falou da Vila. Fui uma vez com ela e comecei a frequentar. Ganhava mais que fazendo faxina. Vi de tudo lá, até “madame” que queria ver como era. Não tenho

114 As idades aqui mencionadas remontam ao final de 2015. 115 Área de prostituição do Rio de Janeiro.

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117

vergonha de contar, me sustentou (Sandra).

O trabalho como prostituta durou algum tempo, período em que conheceu seu

atual companheiro José, um homem de 42 anos, com ensino primário completo, que

veio do estado do Ceará para tentar “a vida no Rio”. Trabalhou como pedreiro na

construção civil até conseguir um emprego com carteira assinada como ajudante de

cozinha em uma pizzaria de Copacabana. Os dois conheceram-se em um bar na

favela e logo decidiram morar juntos:

Nos conhecemos no bar perto da padaria. Já tinha visto ele lá até que ele veio conversar comigo. Eu ainda trabalhava como prostituta e contei, ele já sabia. Depois de um mês falou para morarmos juntos e eu fui (Sandra).

A casa onde Sandra e seu filho foram morar era de José. Mesmo depois de

estarem vivendo juntos, Sandra continuou na prostituição, pois era a maneira que

tinha para ganhar dinheiro. Quando ficou grávida, o companheiro solicitou que ela

parasse de se prostituir e não retornasse mais à Vila. Sandra largou, então, a

prostituição e passou a cuidar da casa e dos filhos. Quem sustentava a casa era

José, mas Sandra expressava em nossas conversas a vontade de trabalhar, ou seja,

de ter um emprego ou algum “negócio de vendas na praia”. O único rendimento

“seu”, em torno de R$ 183, era oriundo do PBF. Com esse dinheiro, “se virava” e

comprava roupas para ela e os filhos, principalmente para a filha menor. As roupas

eram compradas em pequenas lojinhas na favela ou em lojas “populares” de

Copacabana:

Aqui tem a loja da [...] eu compro alguma coisa lá, pois posso parcelar. Para os meus filhos que já estão mais crescidos, quando dá, compro em lojas de Copacabana, tem coisas mais baratas. Outro dia, um pediu uma bermuda da marca de surfista, ah não, não dá (Sandra).

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118

Sandra também gastava o benefício com produtos de beleza, como tinta para

cabelo e esmalte. Em uma das vezes que resolveu pintar de loiro os cabelos, pediu

a ajuda da irmã para fazer isso em casa, pois considerava muito caros os preços do

salão. Até chegar à cor que Sandra queria, foram gastas três caixas de tinta para

cabelo: “Deu um trabalho, e gastei três caixas de tinta, mas ficou bonito, ainda bem

que tenho o dinheiro do Bolsa [...]. A minha irmã me ajudou, sozinha não dá para

fazer. O meu marido gostou muito”.

A maioria das compras da família era feita na favela, o que incluía alimentos.

A facilidade de não precisar “descer até o asfalto” constituía uma das motivações

para realizar compras na própria favela. Algumas vezes, a família comprava em

supermercados de Copacabana, como o Mundial e o Pão de Açúcar − “Comprar

aqui é mais fácil principalmente aquelas coisas do dia a dia. Descer e subir com

compras cansa. Aqui é fácil, vai até ali e já volta. Subir e descer do moro não é fácil;

em dias quentes, então, é horrível”.

O companheiro costumava deixar o dinheiro para as pequenas compras de

alimentos do cotidiano. Sandra cozinhava no almoço, principalmente se o marido

estava em casa. Eventualmente, o dinheiro do benefício era gasto com alimentação,

sobretudo para comprar lanches e doces para os filhos.

Embora Sandra mencionasse que o dinheiro do PBF fosse “seu”, às vezes,

sentia-se incomodada com o recebimento do benefício, pois considerava isso

humilhante principalmente porque precisava dar a contrapartida por meio das

condicionalidades:

Eu recebo o Bolsa Família, mas acho humilhante. Preferia trabalhar, ainda vou voltar a trabalhar ou botar venda de alguma coisa. Meus filhos estão

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119

na escola, mas isso ser uma obrigação!? Ter que dar satisfação da nossa vida, não gosto (Sandra).

No final de 2013, indicada por sua irmã, Sandra conseguiu um emprego de

faxineira em uma academia de ginástica no bairro de Botafogo, onde passou a

trabalhar das 14 às 22 horas, ganhando, para isso, um salário mínimo. Quando

começou a trabalhar, usou parte do dinheiro do benefício para adquirir um notebook,

que foi comprado em prestações com o cartão de crédito do companheiro. Porém,

enfatizava que era ela quem pagava as prestações:

Comprei o computador para as crianças e pra mim, eles pediram, e aí, como estou trabalhando, resolvi comprar. O José foi comigo na loja, e fizemos em 12 vezes no cartão dele, mas sou eu que pago. A prestação dá quase o valor do Bolsa, R$ 127; é uma garantia que vou pagar se perder o emprego (Sandra).

Com o salário que ganhava na academia, passou a ajudar nas despesas da

casa e comprou uma nova televisão. Frisava que era importante para que os filhos

ficassem em casa na parte da tarde quando saía para trabalhar. Pela manhã, os

filhos iam para a escola e, à tarde, o mais velho ficava responsável por cuidar da

filha menor. Assim como acontecia na família de Maria, Sandra era a responsável

por cuidar da casa e dos filhos, mesmo após conseguir o emprego. Seu

companheiro não tinha o mesmo horário de trabalho todos os dias, pois os turnos

eram alternados pela pizzaria.

Em 2015, Sandra perdeu o emprego, ocasião em que ficou triste,

mencionando a importância do dinheiro, de não depender do marido e das melhorias

de vida que o seu salário proporcionava à família. Durante o período em que esteve

empregada, o benefício do PBF continuou a ser pago, apesar de a renda per capita

ter ficado acima do limite estabelecido pelo programa. Essa situação se explica pela

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120

não atualização do seu cadastro − como no período em que Sandra esteve

empregada não precisou realizar a revisão cadastral, sua renda no sistema

continuou a mesma informada anteriormente. E Sandra estava entre as beneficiárias

que omitiam a existência do companheiro, prática já descrita, de forma que o salário

de José nunca foi computado na renda per capita da família.

A família de Sandra não sofria a mesma vigilância que a família de Maria,

pois, como não recebia auxílio dos vizinhos e de ONGs, não estava entre as famílias

em situação de risco social que deveriam ser acompanhadas pelo CRAS. Além

disso, o companheiro de Sandra tinha um trabalho formal, sendo considerado um

“pobre trabalhador” e “batalhador”, o que também os protegia da vigilância. Ou seja,

como “pobre trabalhador”, saia de casa todos os dias para trabalhar, o que às vezes

incluía os finais de semana, garantindo, assim, o sustento de sua família e

cumprindo seu papel de provedor116. A sua imagem de homem “batalhador” estava

baseada na sua vinda ao Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida –

apesar da escolaridade baixa, conseguiu um emprego com carteira assinada e

comprou uma casa, demonstrando que soube superar as condições de vida

adversas (SOUZA, 2010; CALDEIRA, 1984; ZALUAR, 1994).

O passado de Sandra como prostituta raramente era comentado pelos

vizinhos, pois, cuidando dos filhos, ela havia se tornado uma mãe de família.

Entretanto, no período em que permaneceu empregada, teve problemas com seu

filho mais velho, pois este, segundo ela, começou a andar com meninos envolvidos

com o tráfico. Alguns comentários dos vizinhos sobre o fato de o filho estar envolvido

com “más companhias” faziam alusão ao passado de Sandra – “filho de quem é,

116 Motta (2014) descreve o valor moral atribuído a alguns homens por serem os provedores do

“dinheiro da casa”, dinheiro este que garante o pagamento das despesas familiares.

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algum dia ia dar problema”; “coitada, já passou por tanta coisa e agora o filho”.

Como a responsabilidade para com o filho era sua, precisava ir atrás do menino

quando algum vizinho contava que ele estava com traficantes ou “sumia” de casa.

Várias vezes, relatou a vontade de ir embora da favela, devido às “companhias do

filho” e à “má fama” atribuída a ela em virtude da situação do filho. A preocupação de

Sandra é algo presente em comunidades onde existe tráfico. Motta (2014),

pesquisando uma favela da Zona Norte carioca, descreve a preocupação das mães

de as “más companhias” influenciassem seus filhos e de que seus estes fizessem

“coisas erradas”. Elas buscam, assim, conciliar o cuidado dos filhos com um trabalho

próximo de casa para poder vigiá-los:

É difícil trabalhar e ficar de “olho” no Joaquim. Ele era um menino que estudava e agora fica andando com esses meninos que fazem coisas erradas. Já tem gente falando, aí já falam que eu era prostituta. O José não quer saber, aí vou eu atrás dele. Tenho medo que leve o outro também [referindo-se ao seu outro filho] (Sandra).

Em um dos dias que a visitei, ela relatou que encontrou Joaquim fumando

maconha na companhia de outros garotos na laje de uma casa. Quando perdeu o

emprego, passou a controlar o filho mais de perto. Lamentava que o dinheiro do

trabalho fizesse falta, mas ainda contava com o PBF e, estando em casa, podia

cuidar melhor dos filhos. Entretanto, Sandra demonstrava certa insegurança quanto

à união com o companheiro, como se tivesse receio de que, a qualquer momento,

ele fosse embora, apesar de terem filhos e estarem juntos há anos. Falava bastante

da importância de ter um emprego e um dinheiro “seu”.

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3.2.3 A família Cardoso: Kátia

Conheci Kátia durante a primeira visita na casa de Maria. Assim, antes

mesmo de frequentar sua casa, conversamos várias vezes, pois ela ia com

frequência à casa de sua mãe, que era vizinha de Maria.

Naquele momento, as conversas versavam basicamente sobre seu

companheiro, que tentava convencê-la a se mudar para uma casa na Zona Oeste do

Rio de Janeiro. Ele argumentava que a casa seria maior e teria mais espaço, além

de seu aluguel seria mais barato que o da quitinete em que residiam. A resposta da

Kátia era “não”, pois queria permanecer perto da mãe e do lugar onde cresceu e

estavam seus amigos: “Ele acha que vai me tirar daqui, mas não saio. Cresci aqui,

conheço tudo e todos. Vou fazer o quê no fim do mundo? Sem conhecer ninguém

[...] prefiro uma casa menor, mas aqui”.

A família permaneceu na favela, morando na quitinete, que se localizava em

um prédio pequeno de dois andares, situado na divisa entre o Pavão-Pavãozinho e

Cantagalo. A quitinete da família ficava no segundo andar (de frente para a rua),

sendo preciso subir dois lances de escada.

Na entrada do apartamento, havia um pequeno corredor que dava acesso ao

banheiro, o qual possuía uma pia com uma pequena bancada, um vaso sanitário e

um chuveiro elétrico separado por uma cortina de plástico. A cozinha era separada

da sala/quarto por uma pia, um fogão, um balcão, um armário e uma geladeira. A

sala/quarto era ampla e contava com alguns móveis. No chão, havia lajotas e um

tapete; as paredes eram pintadas de branco; e na janela, havia uma cordinha de

tecido na cor bege. Próximo à janela, ficava um sofá-cama preto que à noite virava a

cama do casal; ao lado, havia um berço branco com gavetas, uma pequena poltrona

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123

marrom e um colchão de solteiro onde dormia a filha de Sandra e que durante o dia

ficava encostado na parede. Em outro canto do apartamento, ficava uma mesa com

quatro bancos e um guarda-roupa de duas portas. Kátia orgulhava-se de morar em

um lugar em que tudo “era novo”, dizia ela referindo-se ao prédio e ao aspecto do

apartamento:

Aqui é bom, tem vista, entra vento. É pequeno [apartamento], mas tudo novo e arrumado. Não conseguiria morar fora daqui como o Pedro queria, mesmo com casa maior. Aqui a gente tem família, amigos [...] tudo é mais fácil na Zona Sul. Ele desce e logo tá na praia trabalhando, imagina pegar ônibus todo o dia para trabalhar! (Kátia).

A família Cardoso era composta de dois adultos (Kátia e Pedro) e duas

crianças (Maria Eduarda, com seis anos; e Miguel, com dois anos117). Kátia era a

mais jovem das três mulheres acompanhadas nesta pesquisa. Com 26 anos, relatou

que nunca trabalhou, mas já fez “bicos” como babá e estudou até a oitava série.

Quando a conheci, estava grávida do seu segundo filho, hoje com dois anos e meio.

Sua mãe, empregada doméstica, e seu pai (já falecido), pedreiro da

construção civil, tiveram três filhos: Kátia é a mais nova e a única que reside na

favela do Pavão-Pavãozinho. Até ficar grávida do seu segundo filho, ela e sua filha

mais velha, fruto de um relacionamento anterior, moravam com a mãe. Era a mãe

que as sustentava, uma vez que o único dinheiro “seu” era oriundo do benefício do

PBF, que na época era de R$ 112. Kátia conta que a mãe sempre trabalhou como

empregada doméstica “na casa de família” em Copacabana e que o pai “trabalhava

duro” para não faltar nada em casa. Dizia ser a mais “apegada” à sua mãe e a que

realmente se preocupa; por isso, mesmo depois de ir morar com Pedro, sempre a

visitava e “olhava” a casa e o cachorro, uma vez que sua mãe retornava somente à

117 As idades aqui mencionadas remontam ao final de 2015.

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noite e às vezes dormia na casa em que trabalhava. Relata, ainda, que poderia ter

estudado mais; porém, queria sair e divertir-se. Quando engravidou da sua filha,

deixou de estudar e passou a ficar em casa cuidando dela. Assim que a filha ficou

um pouco maior, colocou-a na creche e arrumou um emprego como babá, mas não

conseguiu se adaptar à rotina de trabalho:

Trabalhei seis meses como babá em Ipanema, mas não gostei. Era muito puxado, queriam que eu ficasse 24 horas disponível e às vezes em final de semana. Eles pagavam a mais pelo final de semana, mas não dava para aguentar e tinha ainda que deixar minha filha com a minha mãe ou pagar alguma vizinha. Aí pedi para sair. Depois fiz alguns bicos cuidando de crianças aqui da favela, mas era diferente porque elas ficavam na minha casa e as mães me pagavam. Foi assim até eu conhecer meu marido e ir morar com ele (Kátia).

Seu companheiro Pedro, um homem de 30 anos, trabalhava como vendedor

de milho na praia de Copacabana, havia estudado até a quinta série e, assim como

Kátia, cresceu no Pavão-Pavãozinho. Durante a pesquisa, nas poucas vezes que o

encontrei em casa, mostrava-se sempre simpático e falava que estava de saída,

pois tinha de trabalhar. Kátia nunca soube informar quanto o companheiro ganhava,

mas enfatizou que ele sustentava a casa e sempre dava dinheiro quando ela

precisava: “Ele nunca falou quanto ganha, já perguntei, mas ele não fala. Sabe como

é, coisa de homem. Em casa tenho tudo, não deixa faltar nada”. Para Kátia, o que

importava era ter um companheiro trabalhador, que não deixasse faltar nada em

casa e que a tratasse bem: “Ele sabe se não for bom pra mim eu volto para casa da

minha mãe”.

O benefício do PBF, após o nascimento do filho e sua inclusão no cadastro,

era de aproximadamente R$ 182. Kátia considerava esse valor como “seu” dinheiro,

de modo que não precisava pedir ao marido autorização para usá-lo nem prestar

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contas sobre como o gastava. Com o nascimento do filho, Kátia era cercada de

cuidados pela mãe e pelo marido. Sua mãe ia ajudá-la nos cuidados com o recém-

nascido, e o marido comprava, dentro das possibilidades, tudo que ela pedia para o

bebê: “Desde que nosso filho nasceu, ele compra tudo que eu quero. O berço fui

escolher na loja, é novinho, as roupinhas comprei na lojinha da Dona [...] ela deixou

pagarmos um pouco por mês”.

Entre as famílias acompanhadas, a de Kátia parecia ser a mais estruturada

afetiva e financeiramente. Os laços entre o casal fortaleceram-se com o nascimento

do filho. Apesar de o trabalho de Pedro não ser formal, a família parecia ter uma

estabilidade financeira e conseguia pagar as despesas com alimentação e moradia,

o que incluía o aluguel. A família não tinha cartão de crédito ou conta bancária, mas

usava o cartão da mãe de Kátia para fazer compras como o berço do bebê e outros

móveis da casa − “A minha mãe empresta o cartão dela quando precisamos comprar

alguma coisa mais cara como móveis. O Pedro sempre paga, e ela não se importa.

Mas usamos só quando precisamos”.

Quando conheci Kátia, ela falou que gastava o dinheiro do PBF para pagar a

creche de sua filha. Posteriormente, mencionou que era para as suas “bobagens” e

as da filha, tais como doces, acessórios e uma “roupinha”: “Ah, sabe, sempre tem

uma bobagem que a gente olha e quer comprar. Um doce, a Juliana adora doces,

uma boneca ou brinquedo baratinho, um batom, um creme, roupinha barata, essas

bobagenzinhas”. O marido não perguntava sobre o dinheiro do benefício nem se

importava com o modo como era gasto. Na última vez em que Kátia realizou a

atualização do cadastro, ainda não estava vivendo com Pedro, motivo pelo qual ele

não foi incluído no sistema. No seu cadastro, incluiu somente ela e a filha e informou

que morava com a mãe “de favor”, tornando-se, dessa forma, beneficiária do PBF.

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126

Com a gravidez e a realização do pré-natal por meio da Clínica da Família, passou a

receber o BVG no valor de R$ 35, aumentando, assim, o valor do benefício. Com o

nascimento de Miguel, foi até o CRAS para incluí-lo no cadastro118 e informou sobre

o companheiro, não alterando, contudo, a renda, já que Pedro não possuía uma

renda formal.

Já tinha realizado o recadastramento, aí fui só para incluir o Miguel, e perguntaram do pai. Falei que tava vivendo com ele, mas que ele não tinha trabalho com carteira. Eles incluíram o meu filho e disseram para eu voltar com a identidade do Pedro para incluí-lo no cadastro. Ainda não fui lá. Mas vou qualquer dia (Kátia).

Após alguns meses da inclusão do filho no cadastro, ela passou a receber os

valores referentes a Miguel. Kátia não sabia como os valores eram calculados,

somente que o benefício tinha aumentado. O desconhecimento de Kátia sobre como

era calculado o valor a ser pago era algo comum entre as famílias beneficiárias do

PBF, fator que gerava reclamações e pedidos por explicação somente quando o

benefício era diminuído. Algumas vezes, tentei explicar sobre os benefícios variáveis

e os valores a eles destinados, mas, mesmo assim, Kátia achava o cálculo confuso

− o mais importante para ela era que estava recebendo o dinheiro. A forma como

gastava o benefício não era “vigiada”, pois a família não solicitava ou recebia ajudas

sociais de ONGs e/ou de vizinhos. No CRAS, a família também não estava incluída

entre as famílias que deveriam ser acompanhadas. Kátia cumpria as

condicionalidades relacionadas à área da saúde: levava os filhos para serem

acompanhados na Clínica da Família.

As compras relacionadas à alimentação eram realizadas com o dinheiro do

118 Com a inclusão do filho, Kátia passou a receber mais um BVJ, de R$ 35 e um BVN, também de R$

35.

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127

companheiro; o dinheiro do benefício, como relatado, era seu e dos filhos.

Eventualmente, Kátia comprava pequenas coisas como pão e leite. As compras do

dia a dia eram feitas na favela, e uma vez por mês Kátia e o marido realizavam

compras “maiores” em supermercados de Copacabana: “As compras do dia a dia eu

faço aqui, mas as maiores, arroz, feijão, massa e alguma coisa de carne [...] vamos

até o supermercado em Copacabana”.

Kátia era a responsável por cuidar da casa e dos filhos, e o marido cumpria

seu papel de provedor da família, o que gerava uma estabilidade e uma rotina que

dificilmente era desfeita. O companheiro saía pela manhã para trabalhar na praia e

voltava, algumas vezes, para almoçar em casa, seguindo novamente para o

trabalho. Kátia fazia o almoço, cuidava dos filhos e da casa e, à tarde, levava a filha

para a creche. Em algumas tardes, recebia a visita de amigas ou ia até a casa de

sua mãe para “dar uma olhada”, momento em que encontrava com amigas e

vizinhas no caminho e parava para conversar. Ao contrário das outras duas

beneficiárias, Maria e Sandra, Kátia não expressava preocupação em trabalhar para

ganhar o “seu dinheiro” e ajudar com aas despesas, e seu companheiro enfatiza que

ela não precisava fazer isso.

3.2.4 Três histórias: algumas comparações

As três famílias acompanhadas apresentavam um cotidiano que era moldado

pelas suas condições de vida. As três mulheres beneficiárias tinham em comum as

atribuições do cuidado com a casa e os filhos e, como moradoras da mesma

comunidade, compartilhavam dos códigos que remetiam à moral e à honra feminina

relacionada ao espaço da casa, em contraponto à imagem masculina de que o

homem deveria ser o principal provedor da família. Tal questão também é percebida

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128

por Fonseca (2000) em uma vila de Porto Alegre, na qual a honra familiar entre os

homens se expressava por meio da procriação e da forma de provimento da sua

família (proteção). A honra feminina, segundo a autora, contemplava quase que

exclusivamente a vida doméstica, isto é, cuidar bem dos filhos e ter a sua família,

motivo pelo qual ser mãe era um atributo importante. A imagem do homem e da

mulher fortemente ligada à família demonstra as dificuldades que ambos possuem

de afirmação individual, uma vez que as obrigações em relação a seus familiares

devem prevalecer sobre os projetos individuais (SARTI, 1996)119.

A família de Maria era a que mais sofria por não corresponder à imagem de

família esperada por quem vivia no Pavão-Pavãozinho. O marido não trabalhava e

tinha envolvimento com drogas, estando, portanto, distante da figura do homem

trabalhador e provedor, enquanto que ela era constantemente acusada de

negligenciar o cuidado com os filhos. Sandra, por sua vez, possuía a “blindagem” da

imagem do marido trabalhador e provedor da família, mas seu passado como

prostituta e o problema do filho com as “más companhias” tornavam sua figura de

“boa dona de casa e mãe” instável perante os vizinhos. Já a família de Kátia era a

única que não recebia qualquer repreensão sobre seu comportamento. Kátia era

considerada “boa” mãe e esposa, e seu marido era “bem visto”, uma vez que

sustentava a casa e cuidava da família.

As demandas quanto ao papel de mães e esposas ocupavam um grande

espaço na vida dessas mulheres. Os momentos com atividades de lazer raramente

estavam desvinculados dos filhos e companheiros, e o “tempo livre” dos afazeres

domésticos era desfrutado geralmente à tarde, já que pela manhã o almoço

119 Sarti (1996) pesquisa famílias de baixa renda em São Paulo, procurando descobrir com base em que

categorias morais elas se organizam, interpretam e dão sentindo a seu lugar no mundo. A esse respeito, ver

também Fonseca (2000).

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129

precisava ser preparado.

No horário do almoço, o movimento na favela era de crianças voltando da

escola ou indo para lá e de pessoas transitando em função do almoço120. Os bares

que serviam almoço ficavam movimentados, assim como os locais que vendiam

lanches.

Na parte da tarde, o mais comum entre as mulheres que não trabalhavam fora

de casa era visitar ou receber amigas e familiares para conversar; além disso,

algumas vezes, iam à praia. As idas à praia ocorriam em dias muito quentes,

momentos em que as beneficiárias estavam sempre acompanhadas dos filhos, dos

familiares e/ou das amigas. Uma das preocupações nessas ocasiões era levar o

lanche para as crianças e ter algum dinheiro para gastar – “Ah, quando a gente vai à

praia, tem que ter um dinheiro. As crianças sempre pedem um picolé, um milho e pra

gente uma cervejinha né. Ir com criança sem dinheiro prefiro ficar em casa”

(Sandra).

Em um dia quente de verão, pude acompanhar Kátia e duas amigas com os

filhos em sua ida à praia de Copacabana. As duas amigas, Cristiane e Maria José,

moravam no Cantagalo. Kátia e eu fomos à praia antes e esperamos por elas em um

ponto combinado. Kátia, com a ajuda do marido (que estava trabalhando próximo

dali), preparou o local na areia com duas barracas e toalhas para as crianças. As

duas amigas chegaram em torno das 15 horas com os filhos e sacolas com comidas

para o lanche (havia biscoitos, bolo e suco). Maria José era a mais velha das três,

estava no segundo casamento e tinha quatro filhos com idades distintas. O atual

120 Havia uma circulação de pessoas que voltavam para almoçar em casa, de forma que alguns

estabelecimentos fechavam para o almoço, como é o caso do salão de beleza, que fechava das 12h às 13h30min para que as mulheres que lá trabalhavam pudessem ir para casa “cuidar” do almoço da família. Também havia nesse momento do dia vendedores de “quentinhas” (porções de comida armazenadas em embalagens de alumínio ou isopor) realizando entregas pela comunidade.

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companheiro trabalhava na construção civil e era pai de um dos seus filhos. Ela

comenta que esperou receber o Bolsa Família para trazer os filhos à praia:

Na próxima semana, vai começar as aulas, e eles não saíram de casa para passear. Aí começa a aula e não tem nada para contar para os coleguinhas e professora. Resolvi vir com eles para a praia, por isso te liguei Kátia [...]. Recebi ontem o dinheiro do Bolsa, aí dá para vir e pagar alguma vontade deles [filhos], sabe como é criança e para gente também (Maria José).

A outra amiga de Kátia, Cristiane, tinha dois filhos e trabalhava realizando

faxinas. Seu companheiro era vendedor em uma farmácia. Cristiane não era

beneficiária do PBF, mas relata que fez a solicitação, não tendo sido contemplada −

“Eu solicitei lá no CRAS, mas não veio ainda. A assistente disse para eu aguardar”.

Durante toda a tarde na praia, apesar dos vários pedidos das crianças, Maria José

comprou apenas dois picolés que foram divididos entre os seus quatro filhos,

enquanto que Kátia e Cristiane compraram duas latas de cerveja cada uma e

dividiram entre todas nós121, além de sorvete para seus filhos. Durante a tarde, as

crianças pediram para que as mães comprassem refrigerante, milho, mate etc.,

ouvindo sempre “não”, “não dá”, “vocês têm lanche na sacola”. Em um momento,

seus pedidos tornaram-se uma brincadeira entre elas, que solicitavam a compra e,

rindo, corriam até o mar.

As outras duas beneficiárias, Maria e Sandra, iam pouco à praia; porém,

como eram muito amigas, constantemente se reuniam na casa de Sandra. Lá

passavam algumas tardes conversando, e às vezes apareciam outras amigas e

vizinhas. No período em que Sandra esteve empregada, as idas de Maria

aconteciam pela manhã. Quando Sandra comprou o notebook, este se tornou um

121 Nesse dia, fui como “convidada” e não queriam que eu pagasse nada. O lanche foi trazido para as

crianças, mas era suficiente para os adultos também.

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131

atrativo não apenas para a família de Sandra, mas também para as amigas.

Algumas, entre elas Maria, criaram perfis na rede social (Facebook) e pediam para

ver o e-mail no computador. Sandra atendia a todas e solicitava a ajuda do filho mais

velho quando não sabiam alguma informação. O computador, por um tempo, ganhou

centralidade nas conversas, uma vez que comentavam sobre os perfis e as

postagens nas redes sociais.

Enquanto beneficiárias do PBF, algo comum às três famílias era serem

consideradas pobres segundo os critérios do programa. Mesmo com diferenças de

renda e de acesso a bens e serviços, em se tratando da busca pelo benefício, o fato

de ser moradora da favela, em um primeiro momento, já credenciava a “solicitante” a

ser cadastrada no CadÚnico. A relação entre favela e pobreza era construída quase

que automaticamente pelos agentes que trabalhavam no CRAS. Entretanto, os

moradores da favela Pavão-Pavãozinho nem sempre tinham essa percepção, ou

seja, ser morador da favela não era sinônimo de “pobreza” nem os credenciava a

serem beneficiários do PBF, o que demonstra haver uma pluralidade de percepções

e critérios a respeito do tema da pobreza, assim como diferenças sobre quem

“precisava” e “merecia” ser beneficiário do PBF.

3.3 “POBREZA”: CRITÉRIOS E SIGNIFICADOS

No que se refere ao PBF, desde a sua criação, os termos “pobreza” e

“extrema pobreza” são citados e certamente não são termos novos. Ao analisar

estudos e programas de transferências de renda, realizados em outros contextos e,

por vezes, com objetivos distintos, percebe-se que esses termos aparecem sempre

como fazendo referência a algo a ser superado. Dessa forma, verifica-se a produção

de grande massa de dados estatísticos que buscam identificar e medir os índices de

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pobreza (NEDER, 2006; NERI, 2011). Essa realidade construída a partir dos

números é importante e necessária, mas representa também poder, pois estes

podem legitimar acessos e intervenções nas áreas das políticas públicas

(DESROSIERES, 2010). Por isso, é preciso considerar que o olhar sobre o problema

da pobreza não é neutro: existem conflitos, disputas (inclusive pelos termos e

conceitos) e jogos. Isso fica evidente ao buscar na literatura os vários índices

utilizados para medir a pobreza. Neri (2010) salienta, por exemplo, que há medidas

de pobreza, com muitas dimensões, que levam em conta elementos como

saneamento básico e eletricidade e outras medidas mais simples, com uma única

dimensão, formada quase sempre pela renda.

Para autores como Rocha (2007), não existe uma definição “inequívoca” de

pobreza − o ponto de partida para a discussão sobre o tema seria uma explicação

conceitual, que depende basicamente do padrão de vida e do modo como as várias

necessidades do ser humano são atendidas em determinadas sociedades. Nesse

sentido, segundo a autora, “determinar quem é pobre numa dada sociedade é definir

uma lista de bens e serviços básicos necessários à sobrevivência” (ROCHA, 2007,

p. 45).

A Organização das Nações Unidas (ONU) e o Banco Mundial relacionam a

pobreza à renda e fixam como linha da pobreza o valor de U$ 1 por pessoa ao dia.

Apesar da vantagem de simplicidade da medida de U$ 1 por dia, argumenta-se que,

ao focar somente a renda, estaríamos reduzindo o debate sobre a pobreza.

Certamente, o nível de renda é relevante, porque determina o poder de compra das

pessoas e se elas dispõem do suficiente para se alimentarem. Entretanto, a

elevação da renda nem sempre implica melhor acesso a serviços básicos como

saúde, educação, entre outros. Sendo assim, há ampla margem para definir os

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critérios de pobreza, o que cria, segundo Sen (2000), a necessidade de uma visão

multidimensional sobre pobreza e privações. Com base nessa perspectiva, um grupo

de pesquisadores, intitulado The Oxford Poverty and Human Development Initiative

(OPHI), com o apoio das Nações Unidas, após uma pesquisa em mais de 100

países, criou um indicador chamado Indicador Multidimensional de Pobreza (IMP).

Esse indicador, segundo Rattner (2010), procura construir um retrato da pobreza

baseado na fração de lares familiares que carecem de certos bens e serviços

básicos (avaliando, por exemplo, se o piso da casa é feito de cimento, terra batida;

se há banheiro privativo; se há eletricidade etc.). Tal indicador é, também, formado

de perguntas que se referem à educação e à situação de saúde. Rattner (2010, p.

76) salienta, ainda, que não há uma unanimidade quanto às formas e aos resultados

de determinar a pobreza e que uma definição simples seria “pessoas que não têm o

‘suficiente’ para levar uma vida digna” (grifo do autor). Diante disso, é preciso

estabelecer, também, o que é esse suficiente, quais são os bens e serviços que o

caracterizam e quem deve definir essas questões − pesquisadores, governos ou

agências internacionais. Nesse sentido, de acordo com o autor, essas são questões

bem mais complexas, motivo pelo qual talvez os próprios pobres devessem ter a

última palavra sobre suas condições e suas expectativas acerca da pobreza.

3.3.1 “Ser pobre”, “precisar” e “merecer” o Bolsa Família: significados e

critérios presentes no Pavão-Pavãozinho

Nas observações realizadas no CRAS, na convivência com as famílias e na

circulação pela favela, tornou-se perceptível que os significados sobre “ser pobre”

eram, em parte, distintos dos critérios estabelecidos pelo PBF. Ao falarmos sobre as

favelas e seus moradores, é preciso ter ciência de que este não é um local

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homogêneo, pois possui diferenças internas (SILVA, 2011). Valladares (2005) critica

uma visão excessivamente homogeneizadora das favelas e salienta que, em um

estudo realizado a partir dos dados do censo, percebe-se uma heterogeneidade nas

favelas e em seus moradores que poucas vezes é visualizada pela sociedade

carioca. Algumas dessas diferenças são notadas nos significados e critérios que os

moradores atribuíam à pobreza e ao que é ser pobre.

No Pavão-Pavãozinho, os relatos sobre “ser pobre” passavam pela renda,

mas iam além desse critério. A distinção entre os moradores com “mais condições” e

os “pobres” era relacionada à posse de certos bens, como carro e eletrodomésticos,

mas também às condições da moradia e de vida, às características do trabalho, à

escolaridade e ao recebimento de alguma forma de assistência social. A esse

respeito, Silva (2011) descreve a existência de uma “burguesia favelada”, quando se

refere ao acesso a recursos internos – econômicos e políticos. No Pavão-

Pavãozinho, era mais evidente certa “burguesia favelada” associada principalmente

ao consumo de bens e serviços, sendo estes entendidos conforme propõem

Douglas e Isherwood (2004), para os quais os bens são usados como marcadores

sociais e categorias de classificação122. Miller (2012) auxilia na compreensão sobre a

posse de certos bens e seus significados ao afirmar que as pessoas se expressam

por meio das suas posses e que, por extensão, essas posses “falam” sobre as vidas

das pessoas.

Em reuniões da Associação de Moradores, nas quais eram discutidas as mais

variadas demandas da comunidade, surgiam algumas distinções entre os moradores

que determinavam quem eram os “pobres” da favela. Entre essas, pode-se citar a

122 Segundo Douglas e Isherwood (2004, p. 123), “Os bens são dotados de valores pela concordância

dos consumidores”. Ou seja, cada indivíduo é uma fonte e está no esquema de classificação cujas discriminações ou inclusões está ajudando a estabelecer.

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necessidade de um estacionamento para que os moradores pudessem estacionar

seus carros. Estes justificavam a sua solicitação afirmando que a favela havia

mudado e que seus moradores podiam comprar um carro, por exemplo. Para

Jussara, que trabalhava em dois hospitais e havia comprado um carro123, o

estacionamento era importante:

Antes era possível deixar na rua [...], mas agora está proibido e não temos mais como estacionar. É preciso utilizar um dos espaços disponíveis na entrada para construir um estacionamento. Aqui tem várias pessoas que têm carro. Eles [referindo-se à prefeitura do Rio de Janeiro] acham que aqui todo mundo é pobre e ninguém tem carro; temos que ter os mesmos direitos dos moradores do asfalto (Jussara).

Em outra ocasião, um grupo reivindicou nova prioridade para a comunidade,

uma solução para o descarte do lixo, já que existia uma grande quantidade

espalhada pelas ladeiras − “Precisamos achar uma solução para o descarte do lixo

em toda a comunidade. Quem mora mais no alto, precisa ter o serviço e se educar.

Pobreza igual a lixo não deve existir”. A culpa pelo excesso de lixo na comunidade

foi atribuída à falta de educação dos “outros” moradores, principalmente dos que

residiam nas partes mais altas da favela, ou seja, “dos pobres da favela”124.

Outra moradora, Antônia, acrescentou que, além do lixo espalhado em partes

da favela, não ter um banheiro “decente” em casa era um sinal de muita pobreza e

colaborava para a sujeira:

Olha, gente, comida sempre se dá um jeito, mas moradia sem banheiro e água é complicado. Como faz com a higiene e cuidado e limpeza da casa? Não dá, fica que nem bicho. Tenho vizinho que pede para usar o

123 A moradora justificava que havia comprado o carro para poder se deslocar entre seus dois

empregos e que o mesmo tinha sido adquirido à prestação. 124 Valladares (2005) discorre como, ao longo do século XX, foi sendo percebido e construído um

saber sobre a favela, além de uma imagem negativa associando o local e seus moradores à pobreza, à sujeira, à malandragem etc.

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banheiro lá de casa, eu deixo, mas é triste ver essa pobreza, não ter um “teto” decente (Antônia).

O que foi descrito pela moradora se passava com a família de Maria (Silva) no

primeiro domicílio em que residiram. O banheiro era precário e sem chuveiro, de

modo que a família realizava a higiene pessoal com um balde de água no pequeno

espaço em que seria o banheiro ou, no caso das crianças, na parte externa da casa.

Algumas vezes, Maria pedia para usar o chuveiro da casa de Sandra. Tal realidade

se modificou somente quando a família se mudou para o outro domicílio.

No que tange aos moradores das favelas, as questões relacionadas à

moradia precisam ser destacadas, por ser este um indicador de pobreza. Para os

moradores do Pavão-Pavãozinho (beneficiários ou não do Bolsa Família), as

características da construção da casa e do local em que esta se situa na favela

indicavam quem eram os “pobres”. A partir de relatos e observando a geografia da

favela, ficava evidente que as famílias mais pobres possuíam moradias de madeira

localizadas nas áreas mais altas e de difícil acesso, conhecidas como “Caranguejo”

e “Vietnã”. Além das construções precárias, o acesso às casas pelas escadas

estreitas e íngremes, por vezes, impedia a entrega de compras e correspondência.

Segundo Nádia, moradora adjacente ao “Caranguejo” e beneficiária do Bolsa

Família, quanto mais próximo do “asfalto”, mais caro ficava a casa: “Quem é pobre

como eu não tem condições de descer; estou esperando me chamarem para um

apartamento do PAC. Aqui é área de risco, então devo ir morar nos apartamentos.

Por enquanto vou ficando por aqui”.

Os moradores que teriam o direito a ocupar os apartamentos construídos PAC

eram os que estavam em áreas de risco ou que foram removidos de suas casas

para o alargamento da rua principal de acesso às favelas do Pavão-Pavãozinho e

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Cantagalo. Entretanto, como não havia unidades habitacionais para todos os

moradores das áreas de risco, as casas marcadas pela Defesa Civil continuavam

sendo ocupadas pelos moradores. Outra possibilidade, para quem residia em área

de risco no Pavão-Pavãozinho, era ser contemplado com unidades do PAC em

regiões mais distantes da Zona Sul. Porém, a maioria não aceitava e preferia

permanecer como moradora da Zona Sul. Ser morador de uma favela da Zona Sul,

além de manter os laços afetivos já formados, implicava facilidade de acesso a

serviços (água, luz e coleta de lixo), a políticas sociais e ao transporte, proximidade

da praia, o que propiciava lazer, e, em alguns casos, melhores condições de

trabalho e renda125. Estes foram os argumentos usados por Kátia para convencer o

companheiro a permanecer no Pavão-Pavãozinho, mesmo que a moradia da família

fosse menor e o aluguel mais caro que em outra região da cidade. Ir morar em outro

local era algo que Kátia não queria − “Eu vou ficar aqui para sempre, não saio”.

Outra moradora, Raimunda, descreveu as motivações para permanecer na Zona

Sul: “[...] minha vida está aqui, trabalho perto, desço e logo estou na praia no final de

semana. Como vou trabalhar morando longe? Prefiro pagar aluguel e, enquanto der,

fico”. Seu Bento, também morador do Pavão-Pavãozinho relatou,

Moro aqui mais de 20 anos, já morei um tempo na Zona Norte. Para lá não volto não, aqui [Zona Sul] é tudo melhor e mais seguro. Sou ajudante em uma barraca na praia, se morasse na Zona Norte nunca que iam me dar trabalho, tem custo. Imagina ficar um dia todo trabalhando na praia e depois ter que pegar ônibus e metrô e ir para Zona Norte.

Para os moradores (beneficiários ou não do PBF), o fato de terem a sua rede

125 Lefebvre (2001) auxilia na compreensão da relação dos moradores com o local de domicílio e da

resistência em se mudar. Segundo o autor, o espaço é construído pelas pessoas; estas são sujeitos da sua história, atuando como alguém que reproduz, mas também que produz. Ou seja, as relações sociais não são uniformes no tempo e espaço, pois dependem da realidade a que são submetidas. Nesse sentido, o espaço contém as relações sociais e nelas está contido (LEFEBVRE, 2001).

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de proteção e certas facilidades tornava difícil a mudança para locais mais distantes,

mesmo que seu domicílio fosse precário, pequeno ou localizado em áreas de risco.

Os mais pobres tinham, assim, maior dificuldade de continuar residindo na Zona Sul,

principalmente em função dos preços das moradias e dos aluguéis terem subido nos

últimos tempos126. A origem do aumento foi atribuída pelos moradores à

implementação da UPP e ao evento da Copa do Mundo de 2014, que teria atraído

outro “tipo de morador” para a favela e excluído seus moradores “antigos”127.

Maria e sua família eram um exemplo da dificuldade de permanecer na favela.

Com a alta dos preços, foi difícil achar um local adequado e a um preço que eles

pudessem pagar. O problema foi resolvido com a ajuda de pessoas da sua rede de

proteção. Mesmo assim, o valor que possuía para destinar ao aluguel permitiu a

locação somente de um pequeno cômodo.

As questões referentes à pobreza e ao PBF surgiam principalmente quando o

assunto consistia nos critérios de quem “precisava” e era “merecedor” do benefício.

Para os moradores, existiam famílias que não precisavam do benefício, mas que o

solicitavam mesmo assim. Para parte desses moradores, somente as pessoas mais

pobres da favela “precisavam” e, portanto, deveriam ser beneficiárias do PBF. Ou

seja, receber o benefício era para eles sinônimo de pobreza; entretanto, morar na

favela não credenciava as pessoas automaticamente a receberem o dinheiro do

programa. Para isso, fazia-se necessário avaliar a condição “de vida da família”, e

não somente a renda informada, o que ocasionava algumas divergências sobre os

critérios para definir a “pobreza” e as críticas às estratégias de que se valiam

126 Entre os anos de 2010 e 2014, segundo relatos de moradores, algumas famílias foram embora da

favela. Para os que permaneceram, restou pagar o aluguel mais caro, dividir o domicílio ou ainda morar “de favor” com algum parente. 127 Sobre a pacificação e os megaeventos e seus impactos no Rio de Janeiro, ver: Leite (2015) e

Oliveira (2015).

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algumas famílias para se tornarem beneficiárias.

Havia moradores que viam o número de filhos128 e a falta de um planejamento

familiar como uma estratégia das mulheres para aumentarem o número de

benefícios recebidos, fator que era entendido como “coisa de pobre”. Nas palavras

de Fernanda, moradora do Pavão-Pavãozinho, “Essas meninas não querem estudar

e trabalhar, o governo dá Bolsa, aí elas fazem filhos para ganhar mais dinheiro.

Coisa de pobre acostumado a receber tudo de graça”. Em falas como a de

Fernanda, emergia a dualidade da imagem do “bom” e do “mau” pobre, “do

trabalhador” e do “vagabundo”, “do honesto” e do “desonesto”. Assim, não bastava

que a família, em virtude de sua situação socioeconômica, “precisasse” do benefício.

Era necessário também ser “merecedora”, e, para isso, deveria ter um

comportamento adequado, ou seja, ser um “pobre honesto e batalhador”. As

múltiplas narrativas e situações do cotidiano na favela demonstram a complexidade

sobre “precisar”, ser “pobre” e ser “merecedor” do benefício do PBF.

Segundo Jonas, outro morador, “somente as pessoas ‘muito pobres’ possuem

dificuldade para comprar comida e essa gente, sim, precisa do Bolsa Família”. Para

Flaviana, uma beneficiária do Pavão-Pavãozinho, a sua vizinha recebia o dinheiro do

Bolsa Família sem “precisar”, afinal ela era dona da casa (casa própria) e recebia

aposentadoria, e o marido trabalhava. Flaviana enfatizava: “Eu, sim, preciso, não

tenho renda certa e pago aluguel, sou pobre, mas não miserável; comida não falta,

mas sem o benefício teria dificuldade de pagar a luz e outras contas”. Dona Lourdes,

outra beneficiária, fazia o mesmo comentário sobre uma vizinha: “Ela não precisa do

Bolsa, tem dinheiro no banco e paga plano de saúde [...]. Eu, sim, sou pobre, tenho

128 Os moradores desconheciam a existência do limite de cinco filhos por família para o recebimento

dos benefícios.

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só o cartão do Bolsa e, se fico doente, vou no SUS”.

No caso da família de Maria, uma das famílias acompanhadas, entre os

vizinhos ninguém questionava sua pobreza ou o fato de ganhar o benefício. Havia

um consenso de que a família era pobre e suas condições de vida indicavam isso

(tipo e características da moradia, ausência de emprego e renda formal e

dificuldades de manter os filhos). Contudo, como já descrito, o que as pessoas que

conheciam a família questionavam era o comportamento do casal.

Entre os moradores (beneficiários ou não do PBF) que conheciam as famílias

de Sandra e Kátia, os comentários versavam sobre a real necessidade de

receberem o dinheiro do programa, uma vez que existiam pessoas que “precisavam”

mais do benefício129:

O marido dela [referindo-se à Sandra] tem emprego com carteira e deve ganhar vale-refeição e outras coisas do trabalho, ela começou a trabalhar. Não precisa do dinheiro, tem gente que precisa do Bolsa para viver mesmo, é pobre mesmo. (Vizinha de Sandra e não beneficiária do PBF).

Não acho certo, não. Antes, quando era ela e a filha, tudo bem. Mas agora tem o marido para sustentar. Devia deixar para outra que precisa mais (Vizinha de Kátia).

Para os beneficiários do Bolsa Família, o argumento para serem

“merecedores” do benefício recaía, também, sobre o “precisar” e o “ser pobre”, algo

que acontecia sempre que eram questionados se realmente “precisavam” do

benefício. Em relação às famílias Siqueira e Cardoso, as beneficiárias omitiram a

existência dos seus companheiros e declararam uma renda familiar menor que a

129 Se, por um lado, havia a preocupação de não especificar em que era gasto o dinheiro do benefício,

por outro lado, as beneficiárias não omitiam o fato de receberem o benefício. Durante a pesquisa, várias vezes me foram apresentadas mulheres que, após falarem o seu nome, mencionavam: “ela também recebe o Bolsa Família”.

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recebida para serem incluídas no programa. Quando questionadas sobre a

necessidade do benefício, ambas respondiam que precisavam, atribuindo o

recebimento à sua condição de pobre:

O meu marido sustenta a casa, mas somos pobres, e eu preciso de um dinheiro meu. Ele [dinheiro] ajuda muito. Tem gente que precisa mais, mas elas recebem também e bem mais que eu. Olha o caso da [...] ela precisa mais e por isso recebe o dobro. É justo (Sandra).

Enquanto pagarem, eu vou pegar. A gente é pobre, tenho coisas boas em casa, mas moramos em um lugar pequeno e alugado. O dinheiro do Bolsa ajuda com as coisas minhas e da minha filha; assim, meu marido economiza. Quem sabe um dia a gente compra uma casinha (Kátia).

Não havia, dessa forma, um consenso sobre quem “precisava” e deveria ser

“merecedor” do programa, o que indica uma flexibilidade para definir essas

categorias por parte de quem gere o programa na “ponta” (no CRAS)130 e

principalmente por parte dos moradores (beneficiários ou não do Bolsa Família). Tal

característica se deve ao fato de que, no universo de pessoas atendidas pelo

programa, não havia um único perfil, sendo as carências e dificuldades das famílias

múltiplas e os impactos do benefício no seu cotidiano variados.

3.4 CONSUMO E DINHEIRO: O BÁSICO, O SUPÉRFLUO E AS QUESTÕES

MORAIS

Nos estudos sobre consumo, percebem-se distinções que são feitas em

relação ao mundo da produção (trabalho) e à forma como são gastos os recursos

130 Cabe mencionar que o “precisar” também é constantemente evocado no discurso dos gestores do

PBF no âmbito federal. A iniciativa do “Busca Ativa” visava atingir uma população que estava fora do programa, mas que “precisa” do benefício. Mais recentemente, o ministro interino, Osmar Terra, do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) gravou um vídeo anunciando que haverá um “pente fino” no cadastro dos beneficiários com o objetivo de “focalizar nas pessoas que realmente precisam” do programa.

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adquiridos, estabelecendo hierarquias e algumas de ordem moral, que estão de

acordo com os padrões culturais da sociedade. Trata-se, também, da diferença

ideológica e classificatória que se pode estabelecer entre produção e consumo131.

Porém, como apontam Barbosa e Campbell (2006, p. 21), na sociedade

contemporânea o valor do trabalho é moralmente superior ao do consumo: “Não

trabalhar é um estigma, enquanto não consumir é uma qualidade, moralmente

superior ao seu inverso”. Segundo os autores, “ninguém se culpa pelo trabalho que

realiza, só pelo que deixou de fazer”, mas o consumo, especialmente daquilo

considerado como bens supérfluos, é passível de culpa (BARBOSA; CAMPBELL,

2006, p. 21). Cria-se, assim, uma hierarquia das necessidades, distinguindo as

básicas das supérfluas. Entretanto, como defini-las e estabelecê-las em termos

universais? Se analisarmos as necessidades do ponto de vista cultural, pode-se

estabelecer que as necessidades básicas consistem naquelas consideradas

“legítimas” e cujo consumo não nos suscita culpa, pois podem ser moralmente

justificadas como o mínimo necessário para reprodução física. Já as necessidades

supérfluas podem ser definidas como dispensáveis, requerendo, portanto,

justificativas e retóricas de legitimação moral que as enobreçam e diminuam nossa

culpa – trata-se da conversão do bem supérfluo em algo moralmente aceitável por

meio de certas estratégias. Com essa lógica, a compra de certos bens mostra-se

mais complexa, pois não basta que o “objeto” esteja disponível no mercado e que as

pessoas tenham dinheiro para adquiri-lo; é preciso que o seu consumo seja

justificado. Assim, justificamos a compra uma como forma de economizar (liquidação

e oportunidade), como um ato de afeto e “amor” para com as pessoas queridas

(familiares e amigos) (MILLER, 2002) ou, ainda, como uma compensação pelo

131 Rocha (2004) também ressalta as visões negativas acerca do consumo, o qual, segundo ele, é

frequentemente responsabilizado ou associado aos chamados problemas sociais.

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esforço e trabalho − “eu mereço, vou me dar de presente, eu trabalho tanto”.

Criamos, então, um eixo compensatório em que a dedicação ao trabalho e o senso

de economia e oportunidade, entre outros valores moralmente legítimos, neutralizam

a falta de legitimidade da “compra supérflua” (BARBOSA; CAMPBELL, 2006).

O discurso moralizante em relação ao consumo e o debate sobre o que vem a

ser uma necessidade básica ou supérflua atingem especialmente as camadas mais

pobres da população. Portanto, quanto mais desprovido de recurso for um grupo ou

uma população, mais se espera − e facilmente se justifica − que estes gastem com

alimentação e com itens culturalmente considerados necessários para sua

sobrevivência básica.

O julgamento sobre como e com o que se gasta o dinheiro passa por critérios

estabelecidos por outros grupos, geralmente com maior poder aquisitivo, fator que

se acentua quando o consumo é realizado com recursos provenientes de programas

como o Bolsa Família. O benefício, como mencionado, consiste em um dinheiro

público que, entretanto, é dispendido no âmbito privado, cabendo seu destino

unicamente a quem o recebe. Se os programas anteriores de transferência de renda

no Brasil, como Bolsa Escola e Auxilio Gás, tinham uma finalidade certa, o mesmo

não acontece com o dinheiro do PBF132, o que torna o benefício do Bolsa Família um

“dinheiro especial”, pois as famílias, ao recebê-lo, ressignificam esse valor e dão a

ele sentidos diferentes (ZELIZER, 2003; EGER, 2013). Para algumas beneficiárias,

este é “um dinheiro só seu”, enquanto que, para outras, é “um dinheiro que ajuda a

gente a viver”, um “dinheiro para meus filhos”, um “dinheiro que preciso” ou o “único

dinheiro certo do mês”.

132 Na Lei n.º 10.836, de 09 de janeiro de 2004, responsável pela criação do Bolsa Família, não existe

nenhuma restrição ou indicação de como o dinheiro deve ser gasto pelos beneficiários.

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As pesquisas de Eger (2013) e Rego e Pizani (2013) relatam a importância do

benefício para as mulheres, principalmente no que se refere à autonomia do seu

dispêndio. Mesmo que o benefício não permita uma mudança de vida, ele faz com

que a beneficiária se apodere e possa fazer escolhas no emprego do recurso.

Entretanto, não se pode desconsiderar que o uso do dinheiro é influenciado por

fatores como a vida social e a condição feminina (REGO; PIZANI, 2013). Segundo

Zelizer133 (1989 apud REGO; PIZANI, 2013, p. 198), existe uma moralidade das

despesas domésticas de acordo com a qual certos usos seriam considerados “mais

legítimos do que outros para as famílias, principalmente o uso deles pelas

mulheres”. Mesmo com restrições financeiras, cada beneficiária criava estratégias de

consumo e buscava empregar o dinheiro conforme suas necessidades. Se a maioria

das beneficiárias menciona, primeiramente, usar o dinheiro para comprar comida e

“coisas para as crianças”, algo moralmente aceitável, posteriormente aparecerem

outras compras134. Esse é o caso de Sandra, que comprou um computador, e de

Kátia, que empregava o dinheiro com o que considerava “bobagens” para ela e os

filhos. Todas as beneficiárias afirmavam comprar doces, biscoitos e refrigerantes,

itens considerados uma manifestação de afeto e carinho para com os filhos e,

portanto, justificados. Os companheiros também eram contemplados com comidas

preferidas. Os agrados de Kátia e Sandra para os companheiros eram uma forma de 133 Zelizer (2009, p. 140) menciona, também, que o discurso moral acerca do dinheiro entende este

como “a raiz de todo mal”, apontando-o como o responsável pelo mau comportamento que tem a ganância como consequência. 134 Na pesquisa realizada sobre o PBF na cidade de Canoas, Rio Grande do Sul, as beneficiárias

inicialmente relatavam que compravam comida e roupas para as crianças. Posteriormente, foi observado que o recurso era empregado em bens como televisão, videogames e eletrodomésticos. No caso da televisão, esta foi comprada ou, nos termos da beneficiária, “tirada” em prestações no valor do benefício; sua justificativa para a compra era manter “as crianças dentro de casa” na sua ausência. Quando o benefício era gasto com comida, os tipos de alimentos mencionados pelas famílias eram sempre os considerados “saudáveis” (frutas e verduras) algo incentivado por algumas assistentes sociais. Entretanto, no cotidiano, observava-se que compravam cachorro-quente, biscoitos e salgadinhos como forma de “agrado” ou “presentinho” para os filhos (LAVRA PINTO; PACHECO, 2009). As pesquisas mencionadas (MILLER, 2002; LAVRA PINTO; PACHECO, 2009), embora realizadas com grupos e lugares distintos, possuem certa universalidade no que remete ao consumo como sinal de afeto, agrado, carinho ou presente.

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contrapartida, ou seja, de retribuição pelo sustento da casa:

Às vezes, compro uma cervejinha e faço uma comida que ele gosta; afinal, a gente tem que agradar o marido (Kátia).

No final de semana, sempre cozinho para ele [companheiro]. Ele adora meu escondidinho de carne seca, aí eu faço. O seu [...] do mercadinho perto da padaria tem carne seca bem boa, pego dele (Sandra).

O consumo de certos bens e principalmente de alimentos expressava a

relação entre as mulheres e seus filhos ou, ainda, entre as mulheres e seus

companheiros. Na obra “Teoria das Compras”, pesquisa realizada com famílias em

um bairro de Londres, Miller (2002) explica como as compras de abastecimento do

lar são meios de expressão dos afetos que envolvem o responsável por realizar tais

compras e seus familiares. Para Miller (2002, p. 162), o propósito do comprar não é

“tanto comprar as coisas que as pessoas querem”, mas lutar para continuar se

relacionando com as pessoas que querem as coisas.

No caso das famílias beneficiárias, além dos agrados e “presentinhos”, havia

uma preocupação em justificar o emprego do dinheiro. Era comum existir, assim,

certa tutela e vigilância das pessoas que faziam parte da rede social que auxiliavam

as famílias mais pobres, como se estas não fossem capazes de realizar escolhas

adequadas para suas vidas. A família de Maria era, entre as famílias pesquisadas, a

que sofria uma “vigilância” no emprego do dinheiro. No entanto, Maria era a que

tinha pouca possibilidade de gastar o dinheiro do benefício com “bobagens” e nunca

expressou que o benefício fosse um “dinheiro seu”. O valor recebido era destinado

para manter sua família, servindo como um “dinheiro da casa” que era usado para

pagar o aluguel e ajudar na compra de alimentos e, eventualmente, possibilitava

realizar um “agrado” aos filhos (doces e biscoitos) (MOTTA, 2014). A família de Maria

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nunca comprometeu a renda com bens como televisão, móveis etc. − estes eram

adquiridos por meio de doações. Os poucos recursos disponíveis, como já relatado,

dificultavam o acesso a serviços financeiros que possibilitariam a aquisição de algum

bem.

Houve uma única vez em que Maria usou o “dinheiro da casa” com algo que

estava fora do consumo habitual da família, uma festa de aniversário para uma das

filhas. Naquele período, circulou um boato de que o PBF acabaria. Diante disso,

Maria tomou a decisão de fazer uma festa de aniversário, já que este seria o último

pagamento que receberia. Ela se dirigiu até o banco e sacou todo o dinheiro que

seria empregado na festa de aniversário:

Disseram que o Bolsa Família ia acabar, e eu acreditei. Fui no banco, o pagamento já estava lá. Então peguei o dinheiro e, como tinha sido aniversário da minha filha, resolvi dar uma festinha. Eles [filhos] sempre pediam, e eu não podia dar; aí pensei, já que é o último dinheiro, vamos gastar para fazer eles felizes, ia acabar mesmo, era a última chance. Comprei bolo, uma vizinha me ajudou a fazer os docinhos, balões [...] uma beleza. Meus filhos se divertiram muito, chamei os amiguinhos. Alguns vizinhos comentaram “ah tá podendo”, “tá sobrando”. Gente fofoqueira. Só porque a gente é pobre não pode ter festa? E depois descobri que não era verdade, que o Bolsa não ia acabar; menina, me deu uma culpa. Ainda bem que estava pago dois meses de aluguel. Mesmo assim, faltou dinheiro para o resto do mês, mas pelo menos meus filhos ficaram felizes. Hoje não faria mais isso, não (Maria).

Durante a festa, Maria sentia-se feliz por ter agradado aos filhos, mas também

se sentia culpada. O dinheiro fez falta para as despesas da família, e ela ficou com

receio de perder a ajuda que ganhava na favela, uma vez que recebeu críticas de

alguns vizinhos sobre o valor gasto na festa. Se o pagamento do benefício fosse

realmente o último, a “prestação de contas” e a contrapartida para os vizinhos ou

para quem mais a ajudava não seriam mais necessárias; afinal, o benefício estava

acabando e, portanto, o “presentinho” e o “ato de amor” para os filhos justificavam-

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se. O episódio da festa dos filhos de Maria evidencia que o dinheiro não está isento

dos efeitos sociais e culturais, tornando o benefício do Bolsa Família um “dinheiro

especial”. O dinheiro, na visão de Zelizer (2003), torna-se “especial” quando seus

significados são determinados por relações sociais de poder, por questões de

gênero e idade ou, ainda, pelas classes sociais que influenciam a sua utilização.

As outras beneficiárias, Kátia e Sandra, empregavam o benefício com mais

“liberdade”. No cotidiano, o dinheiro do Bolsa Família funcionava para as duas como

um “dinheiro seu”, que não era necessário para as despesas domésticas, o que

tornava o benefício um “dinheiro invisível” no ambiente privado, uma vez que os

companheiros não tinham acesso nem questionavam como era despendido

(ZELIZER, 2003). O “dinheiro invisível”, nos termos da autora, diz respeito às

inúmeras estratégias que as mulheres utilizam, no âmbito familiar, para ter um

“dinheiro seu”, que possa ser gasto com despesas pessoais. No caso das famílias

pesquisadas, em função das condições econômicas, o benefício do PBF pode

tornar-se um “dinheiro invisível”, ou seja, um “dinheiro seu”, o que não implica,

contudo, que ambas não comprassem “coisas para casa”, mas a maioria dos gastos

com o benefício era para coisas pessoais.

O dinheiro proveniente do PBF ganhava, assim, vários sentidos, sendo, por

isso, um “dinheiro especial”. Para quem recebia o benefício, conforme os destinos

dados a ele, poderia significar um “dinheiro da casa”, um “dinheiro invisível” e/ou um

“dinheiro meu”. Para os não beneficiários, esse valor era visto como um “dinheiro de

pobre” que aos pobres deveria ser destinado, ou seja, para as pessoas/famílias que

“precisavam” por não terem condições de se manterem.

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No que tange ao consumo135 entre as famílias acompanhadas, os ganhos e

certo estilo de vida impunham limites não somente ao que era adquirido para comer

e vestir, mas também aos locais onde seriam realizadas as compras. Morar em uma

favela da Zona Sul significava para as famílias ter facilidades como transporte, lazer

e trabalho; porém, o custo de vida era considerado mais alto que em outras partes

da cidade. Portanto, como mencionado pelas beneficiárias, comprar na favela era

facilitado pelo acesso aos locais de compra, ao crédito e aos preços mais baratos, o

que acabava por restringir o consumo das famílias quando realizavam compras no

“asfalto”. Da mesma forma, a localização da casa nas partes mais altas da favela,

com subidas íngremes, podia tornar-se um problema para obterem a entrega de

objetos como móveis e eletrodomésticos:

Quando comprei o berço do Miguel e falamos que era para entregar aqui no Pavão-Pavãozinho, já nos olharam e perguntaram: “que parte?”. Aí falamos que tinha como entregar porque o caminhão podia subir próximo de onde morávamos. Mesmo assim, cobraram mais caro, eu tenho certeza. Quando a gente fala que mora na favela, já te olham e pensam: “pobre”, e que não tem como chegar na casa da gente (Kátia).

Os relatos sobre as dificuldades de obter entregas de produtos em algumas

partes da favela eram comuns. Ser um consumidor e residir na favela remetia à

imagem do senso comum de pobreza, de difícil acesso e de violência. As

dificuldades e imagens associadas à favela obrigavam, por vezes, os moradores a

criarem outras estratégias para ter um produto, assim como a criarem um novo

serviço para esse fim.

Quando a loja não realizava a entrega do produto no domicílio, às vezes, os

135 Embora as famílias acompanhadas tivessem um estilo de vida comum relacionado a determinados

hábitos de consumo e padrões de comportamento, isso não significa que tais hábitos e padrões eram compartilhados por todos os moradores da favela.

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familiares acabavam auxiliando, mas, quando não era possível contar com um

parente ou amigo, outra solução era dada. Umas das estratégias a que os

moradores do Pavão-Pavãozinho recorriam era o trabalho conhecido como “burro

sem rabo”136. Os “burros sem rabo” eram moradores da própria favela que prestavam

o serviço de entrega dos mais variados produtos em toda a favela137. Alguns ainda

auxiliavam pessoas idosas e com necessidades especiais que tinham dificuldades

para chegar a suas casas. Além do serviço como carregadores, eles também

realizavam a venda de objetos (móveis e eletrodomésticos) provenientes de

moradores que não os queriam mais e, por isso, descartavam-nos138.

Quando ficou sem geladeira, Maria tentou comprar uma usada com um

desses trabalhadores. A geladeira prometida à família por meio de doação estava

demorando. Assim, Maria foi ver a geladeira que estava para vender no “ponto”139 na

entrada da favela (Figura 13 e 14). Porém, achou que muito cara acima das suas

possibilidades, mesmo podendo parcelar, e desistiu − “O seu [...] ficou louco, queria

R$ 300 por geladeira usada e antiga, não dá para comprar. Vou esperar que vão

conseguir uma de doação”.

136 “Burro sem rabo”, homens eram contratados para carregam móveis, eletrodomésticos e em alguns

casos pessoas (idosos, pessoas com necessidades especiais) para as partes mais altas da favela. Os “burros sem rabo” também prestavam serviço de entrega para algumas lojas na favela. Para um melhor detalhamento, ver artigo de Corrêa e Lavra Pinto (2015). 137 No Pavão-Pavãozinho havia um morador, bastante conhecido, que era o “burro sem rabo”. Quase

todos os serviços de entrega e venda de móveis e eletrodomésticos usados era realizado por ele. 138 O descarte de móveis e eletrodomésticos era realizado pelos moradores da favela, mas também

pelos moradores prédios e condomínios do “asfalto” localizados nos bairros de Copacabana e Ipanema. Quando um morador não queria mais o bem, oferecia ao “burro sem rabo”; se este se interessasse, buscava e colocava para vender no seu “ponto”. Para um melhor detalhamento sobre o assunto, ver artigo de Corrêa e Lavra Pinto (2015). 139 “Ponto” significa aqui o local na favela onde são expostos móveis e eletrodomésticos usados para

venda.

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Figuras 13 – “Ponto” de venda de móveis e eletrodomésticos no Pavão-Pavãozinho

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2014).

Figuras 14 – “Ponto” de venda de móveis e eletrodomésticos no Pavão-Pavãozinho

Fonte: Michele de Lavra Pinto (2014)

Apesar de pessoas como Maria eventualmente reclamarem de algum preço

praticado, a garantia da entrega em casa, assim como o parcelamento, atraía os

moradores. Foi o que motivou Sandra a comprar uma máquina de lavar usada: “Fui

até o seu [...] olhei a máquina, parecia nova. Ele fez parcelado em três vezes e

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151

entregou aqui em casa, sem preocupação de como vai fazer para entregar. E foi no

mesmo dia”. Essas facilidades eram compartilhadas por outros moradores − além

das motivações já descritas para comprar o produto e/ou utilizar o serviço, permitiam

o estabelecimento de uma relação mútua de confiança.

As práticas de consumo, realizadas principalmente na favela, pelas famílias

acompanhadas envolviam questões econômicas, uma vez que ter uma renda

facilitava o acesso a determinados bens e garantia a subsistência. Porém, não é

possível compreender o consumo dessas famílias apenas pela variável da renda. As

práticas e estratégias de consumo de determinados bens pelas famílias

demonstravam a existência de relações sociais envolvidas nesse âmbito − relações

entre beneficiárias que dividiam alimentos e objetos como computador; entre

beneficiárias e sua família, por meio da compra de doces para os filhos e da

preparação de alimentos para seus companheiros; e entre beneficiárias e demais

moradores, relação essa que assegurava ajuda e, ao mesmo tempo, ocasionava

vigilância quanto às famílias.

Nesse sentido, com base nas relações sociais, torna-se possível afirmar que

o consumo pode ser entendido como uma forma de comunicação entre as pessoas,

em que os objetos atuam como mediadores ou indexadores desse processo

interativo: os bens são comunicadores. A frase “as mercadorias são boas para

pensar” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p. 108) resume de maneira clara a ideia

de que os objetos que nos circundam servem para produzir sistemas classificatórios

a partir dos quais os grupos sociais estabelecem relacionamentos e demarcam

fronteiras e diferenças entre si.

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152

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do trabalho, foram demonstradas as mudanças e adaptações que o

PBF passou até chegar à sua atual estrutura. Os avanços ocorridos na área da

assistência social com sua institucionalização a partir da Constituição Federal de

1988 e a progressiva de ações de combate à pobreza e à desigualdade na agenda

de políticas sociais colaboraram para que programas de transferência de renda

como o Bolsa Família pudessem ser implementados. A partir do PBF, ficou

estabelecida uma nova forma de atuação na área das políticas sociais,

principalmente no que tange à transferência de recursos monetários para a

população em situação de pobreza. O dispêndio do dinheiro pelos beneficiários

passou a não ser mais previamente determinado como ocorria em programas

anteriores, a exemplo do Vale Gás e Bolsa Escola.

Ao analisarmos o PBF em um grande centro urbano como a cidade do Rio de

Janeiro, fica evidente a heterogeneidade da população assistida pelo programa.

Entretanto, ao estabelecermos uma favela, Pavão-Pavãozinho, e o respectivo CRAS

ao qual esta se vincula como locais de estudo desta etnografia, foi possível

visualizar mais claramente as dinâmicas e relações que acontecem no que

denominamos de “ponta” da gestão municipal.

A circulação e a observação nos dois locais em que o PBF se encontrava

presente possibilitaram conhecer as articulações em torno do programa no ambiente

público (CRAS) e privado (casa dos beneficiários) e seu baralhamento. Dessa forma,

entre os espaços mencionados, demonstramos a existência de uma fronteira − um

espaço limiar, em que as regras oficiais do programa se misturam às demandas

particulares dos beneficiários, estabelecendo, assim, novas estratégias e dinâmicas

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153

no que chamamos de “ponta” do PBF. Logo, é possível afirmar que o PBF funciona

por meio de regras formais − determinadas pelo próprio programa e coordenadas

pelo MDS − e informais − construídas nos CRAS a partir da dinâmica e da relação

entre os beneficiários e as assistentes sociais e, por isso, sujeitas às

particularidades locais. Desse modo, as regras formais e informais fazem o todo do

PBF, e o todo do programa faz as partes.

Portanto, levando-se em conta o que foi descrito e observado, tornar-se um

beneficiário passa por regras oficiais do programa, em que a renda per capita é o

principal critério, mas, também, por estratégias dos beneficiários e, em alguns casos,

pelo auxílio das próprias assistentes sociais. Assim, o que esta pesquisa constatou é

que as regras para ser um insider ou outsider do programa podem ser burladas

quando os beneficiários ficam cientes do critério da renda per capita, criando

estratégias como a da “renda menor”, ou seja, informando uma renda familiar inferior

que a recebida a fim de garantir sua inclusão. Há, ainda, as estratégias de

“exclusão” ou de “inclusão” de moradores do seu domicílio, em que se omite um

morador – esta é a mais praticada entre as mulheres beneficiárias, principalmente se

o companheiro possuir um trabalho formal, uma vez que o valor que consta na

carteira de trabalho não pode ser alterado – ou se inclui alguém no cadastro – caso

que acontece quando o beneficiário informa a existência de moradores que não

residem no mesmo domicílio, geralmente um parente, a fim de que a renda per

capita diminua.

No que diz respeito ao auxílio praticado pelas assistentes sociais, esse

ocorria principalmente quando a família beneficiária poderia perder o benefício por

ter saído do perfil de renda estabelecido. Nesse sentido, o conhecimento que a

assistente possuía sobre as carências e necessidades da vida familiar acabava

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154

contribuindo para que o benefício não fosse momentaneamente suspenso. Entre os

mecanismos de ajuda, o mais empregado era a informação da “renda menor”, o que

somente valia, contudo, para as famílias sem um rendimento oriundo do trabalho

formal. A outra maneira de as assistentes sociais auxiliarem consistia em orientar o

beneficiário a não realizar a atualização cadastral quando a renda per capita havia

ultrapassado o limite exigido pelo programa. Desse modo, a família continuaria

recebendo o benefício por um tempo, sem a garantia, entretanto, de que este fosse

bloqueado ou suspenso no futuro.

Em virtude dos fatos observados, entendemos que o papel das assistentes

sociais como intermediárias entre os beneficiários e o PBF é essencial na dinâmica

da execução na “ponta” do programa. Dessa forma, é possível afirmar que as

assistentes trabalham como intermediárias da “dádiva”: são elas que mediam e

orientam, na “ponta” do programa, o “dar e retribuir”. Assim sendo, se o objetivo da

pessoa for ser incluído no programa para receber o dinheiro ou se for permanecer

como beneficiário, são as assistentes sociais que mediam esse processo. Logo, as

assistentes sociais são sempre as mediadoras, independente das diferentes formas

em que a dádiva se apresente para os beneficiários do PBF.

Diante disso, verificamos que toda essa dinâmica e relação “informal” que

acontecem na “ponta” somente são possíveis pela determinação, por parte do PBF,

da renda per capita como o principal critério de inclusão e exclusão. Ao estabelecer

o critério da renda, o programa busca atingir a população que considera pobre e

que, portanto, mais “precisa” do benefício. Dessa maneira, o programa acaba por se

ancorar em um critério unidimensional de pobreza, determinando que os pobres e

extremamente pobres estão inclusos na faixa de renda per capita entre R$ 77 e R$

154, respectivamente. A renda per capita certamente se mostra uma variável

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155

elementar na construção da fronteira da pobreza. Entretanto, ao analisamos os

critérios estabelecidos pelos moradores da favela (beneficiários ou não do PBF) e

pelas assistentes sociais, fica evidente a incorporação de outras variáveis. Embora a

renda seja uma dimensão observada, a ela somam-se as características da moradia

e de sua localização na favela, do trabalho e do acesso a serviços essenciais como

água e luz, bem como o recebimento de alguma forma de assistência social etc.

Portanto, compreendemos que a noção de pobreza para os moradores da favela

(beneficiários ou não) e para as assistentes sociais está ancorada em critérios

multidimensionais, o que acaba por acarretar divergências sobre quem “precisa” e

“merece” ser beneficiário do PBF. O único consenso observado na pesquisa a esse

respeito é que os mais pobres deveriam ser os beneficiários do PBF; contudo, sobre

a noção de pobreza havia distintas visões.

Quando ingressamos no universo das três famílias acompanhadas na favela

do Pavão-Pavãozinho, revelamos o que se passa com os beneficiários do programa

no ambiente privado e sua relação com o dinheiro do programa e com as formas

como este é empregado, ou seja, consumido. Percebemos, assim, que a família

Silva não recebia críticas por ser beneficiária, já que havia uma concordância entre

os moradores e assistentes acerca do fato de que seus membros eram

extremamente pobres. As outras duas famílias, Siqueira e Cardoso, ao contrário,

recebiam críticas por não “precisarem” do benefício. Essas duas percepções sobre

as três famílias produziam vigilâncias distintas, o que acabava influenciando as

formas de empregarem o dinheiro e os significados que eram dados a este.

A partir das observações, constatamos que as famílias em situação de

extrema pobreza, como a família Silva, são consideradas pobres a partir dos critérios

“formais” do programa – renda per capita − e “informais” dos moradores da favela

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(moradia, trabalho etc.). Entretanto, sofrem uma “vigilância da pobreza”, baseada em

um discurso moralizante sobre o que e como consumir. A família Silva era

constantemente criticada toda vez que não gastava o dinheiro com o que fosse

considerado “básico” para sua sobrevivência, uma vez que o dinheiro recebido do

PBF deveria ser sempre um “dinheiro da casa” (ZELIZER, 2003; MOTTA, 2014).

As outras duas famílias, Siqueira e Cardoso, não sofriam a mesma vigilância,

de modo que o dinheiro recebido do programa não possuía um significado coletivo,

como no caso da família Silva, isto é, o significado de “dinheiro da casa”. O seu

dispêndio era, assim, definido pelas titulares do benefício, Sandra e Kátia, que o

consideravam um “dinheiro seu” ou, nos termos de Zelizer (2003), um “dinheiro

invisível”. A única crítica recaia sobre se elas “precisavam” do benefício, motivo pelo

qual tinham certo cuidado quando o gastavam.

Se, por um lado, o dinheiro proveniente do programa não permite que a

situação socioeconômica das famílias beneficiadas seja alterada, por outro lado,

podemos afirmar que o benefício gera um alívio na vida de algumas famílias,

empoderando-as enquanto consumidores no sentido de poderem realizar escolhas

sobre o emprego do dinheiro, apesar dos olhares moralizantes.

Ao analisarmos o PBF a partir da “ponta” da gestão municipal, foi possível

termos uma dimensão de todo o processo do programa e, principalmente, conhecer

as pessoas que dele fazem parte, quem executa o programa e de que maneira isso

é feito, quem é beneficiado e as formas como são articuladas as relações entre os

envolvidos. Pesquisar sobre PBF é, desse modo, desvendar os diversos aspectos

de uma sociedade, as formas de preconceito com as populações mais pobres, os

modos de consumo, os significados atribuídos ao dinheiro e as relações que se

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constroem entre os beneficiários e não beneficiários (assistentes sociais, vizinhos,

governo etc.). Trata-se, assim, de conferir “carne e osso” a quem está executando o

programa ou por ele sendo beneficiado.

O resultado do PBF, em mais de dez anos de existência, propicia

vislumbrarmos seus ganhos no combate à pobreza e à desigualdade, mas também

suas dificuldades para superá-las. Embora o período de realização da pesquisa

(2012-2015) não tenha abarcado o momento político atual, ao finalizarmos o

trabalho, cabe mencionar que o futuro do PBF se mostra um tanto incerto. O

governo interino de Michel Temer trouxe mudanças ao MDS, que passou a se

chamar Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), sinalizando que o

programa será revisto, embora não se saiba, ainda, o que exatamente será alterado.

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158

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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