fundamentos daciÊncia da religiÃo · 2019. 11. 28. · fundamentos daciÊncia da religiÃo (paulo...

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FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO (Paulo de Tar50) JOSÉ ARNÓBIO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA Percorrendo a cidade e considerando os monumentos do vosso culto, encontrei um altar também com esta inscrição: 'A um Deus Desconhecido'. O que adorais sem o conhecer, eu vo-Lo anuncio! Introdução o objetivo deste artigo é analisar os aspectos científi- cos fundamentais da religião. Mostraremos os pontos cruciais que fazem a religião ser vista com desconfiança pela menta- lidade científica do Ocidente, bem como alguns equívocos epistemológicos que impedem a percepção da religião ou espiritualidade num sentido pragmático e não sectário. Talvez seja contraditório falar de uma ciência espi ri- tual, pois a concepção largamente difundida considera que a religião jamais poderá ser apresentada como um campo de conhecimento estruturado. Uma vez que Jesus Cristo, no entanto, afirmou "em verdade, em verdade te digo, dizemos o que sabemos, e damos testemunho do que virnos'", deve- mos iniciar uma investigação para descobrir se ela pode me- recer uma abordagem científica. SeJesus asseverou que falava o que conhecia por experiência, significa que suas asserções, mesmo aquelas de caráter metafísico, descenderam de uma base de saber real, onde deve ele ter "visto" o que ensi nava. O pensamento ocidental não logrou êxito em encon- trar a chave para acessar essa base de saber real sobre a qual a religião se sustenta, incapaz, por isso, de superar uma apre- ciação meramente especulativo-dogmática da espi ritual idade. Por outro lado, a visão caricaturada do ocidental sobre a reli- gião do Oriente tem impedido uma aproximação potencial- mente fecunda ao método seguro de acesso a esse saber, amplamente dominado por Jesus Cristo. Aproximar o pensa- mento filosófico do Ocidente ao pensamento místico do Oriente é o caminho para o entendimento da religião en- quanto ciência, como demonstraremos a segui r. 1 Bíblia Sagrada, Livro de João, Capítulo 3, verso I l. 271

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  • FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO

    (Paulo de Tar50)

    JOSÉ ARNÓBIO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

    Percorrendo a cidade e considerando os monumentosdo vosso culto, encontrei um altar também com estainscrição: 'A um Deus Desconhecido'. O que adoraissem o conhecer, eu vo-Lo anuncio!

    Introdução

    o objetivo deste artigo é analisar os aspectos científi-cos fundamentais da religião. Mostraremos os pontos cruciaisque fazem a religião ser vista com desconfiança pela menta-lidade científica do Ocidente, bem como alguns equívocosepistemológicos que impedem a percepção da religião ouespiritualidade num sentido pragmático e não sectário.

    Talvez seja contraditório falar de uma ciência espi ri-tual, pois a concepção largamente difundida considera que areligião jamais poderá ser apresentada como um campo deconhecimento estruturado. Uma vez que Jesus Cristo, noentanto, afirmou "em verdade, em verdade te digo, dizemoso que sabemos, e damos testemunho do que virnos'", deve-mos iniciar uma investigação para descobrir se ela pode me-recer uma abordagem científica. SeJesusasseverou que falavao que conhecia por experiência, significa que suas asserções,mesmo aquelas de caráter metafísico, descenderam de umabase de saber real, onde deve ele ter "visto" o que ensi nava.

    O pensamento ocidental não logrou êxito em encon-trar a chave para acessar essa base de saber real sobre a quala religião se sustenta, incapaz, por isso, de superar uma apre-ciação meramente especulativo-dogmática da espi ritual idade.Por outro lado, a visão caricaturada do ocidental sobre a reli-gião do Oriente tem impedido uma aproximação potencial-mente fecunda ao método seguro de acesso a esse saber,amplamente dominado por Jesus Cristo. Aproximar o pensa-mento filosófico do Ocidente ao pensamento místico doOriente é o caminho para o entendimento da religião en-quanto ciência, como demonstraremos a segui r.

    1 Bíblia Sagrada, Livro de João, Capítulo 3, verso I l .

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  • ross ARNÓBIO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

    Mito, Dogma, Senso Comum e Mistério

    Quando os gregos começaram a se perguntar pelofundamento de todas as coisas (arché) estavam dando osprimeiros passospara o desenvolvimento do conhecimentocientífico. Buscavam esses primeiros cientistas ou filóso-fos, pois não havia distinção entre Ciência e Filosofia, umcaminho que os levasse com segurança do mito ao pensa-mento crítico, organizado e apresentado de acordo com cri-térios racionais, buscando apoio não mais em metáforasextraordi nárias, maspor meio da elaboração de argumentoscom pretensão a uma coerência própria. Alegoria não pos-sui determinação, é acrítica, não aprecia a linearidade dosfatos, nem sua precisão, e extrapola a dimensão espaço-tempo; "0 mito não serve como fundamento para nenhumconhecimento" (ALMEIDA, 2002, p. 28). Na manifestaçãofantasiosa não há uma correspondência entre a imaginosanarrativa romântica e a realidade objetiva inexoravelmenteimposta. Enquanto a narrativa fantástica parece potente paraexplicaras causas primeiras, é completa sua falência natentativa de superar os Iimites anotados pela realidade fática.A razão crítica pretendia superar uma basede conhecimen-to que não lhe dava suporte para o domínio de forças inade-quadamente explicadas pela expressão mítica. O objetivoera "dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo sa-ber" (ADORNO, 1985, p. 19).

    Tal meta não constituiu empresa de simples opera-ção. Somente no sécu10 XVII, a Ciência logrou separar-seda Filosofia, estabelecendo um método próprio. Essaépocaassisteao início da derrocada de uma teologia que domina-va completamente o que se conhecia como ciência e a su-bordi navaao poder vigente, capaz de impor uma cosmovisãobaseadanuma interpretação dogmática das escrituras. Paraa Teologia cristã, que dirigiu os caminhos da Ciência naIdade Média até o século XVII, a fé constituía o substratosubordinador da racional idade, fora da qual o conhecimen-to não possuía validade. Não existia tampouco um métodopara determinação da fé, sendo ela supostamente originadada revelação divina, privilégio de alguns poucos homens,cuja legitimidade era igualmente fundamentada na fé. Tais

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    homens cheios de fé não recorriam à demonstração objeti-va dos fenômenos, nem à vai idação racional dos argumen-tos, masdependiam da autoridade para impor suasverdades,criadas com fins de preservação do poder.

    Seasreligiões que conhecemos são herdeirasde tradi-ções que remontam ao mito e ao dogma, como poderiamseus ensinamentos possuir pretensão de cientificidade? Ocommom sense religioso, marca, neste nosso tempo, a abor-dagem do Sagrado. Se um fenômeno é estranho e fora docomum, se carrega aura de mistério e está relacionado aeventos que envolvem conceitos não alcançados pela Ciên-cia, tais fenômenos são, por consegui nte, considerados deordem espiritual. "Creio porque é absurdo", famosa expres-são de Tertuliano, marca o que se chama comumenteespiritualidade. Seé absurdo o que sedeve crer, então qual-quer absurdo é útil para que se creia cegamente. Servidoestá o prato da religião do Ocidente, temperado pelodogma, pelo mito e pelo mistério. Eis, entretanto, o queensinaram os cientistas do Oriente, tal como Buda assinalou:

    Não acrediteis em coisa alguma pelo fato de vos mos-trarem o testemunho escrito de algum sábio antigo;Não acrediteis em coisa alguma com base na autorida-de de mestres e sacerdotes; Aquilo, porém, que se en-quadrar na vossa razão, e depois de minucioso estudofoi confirmado pela vossa experiência, conduzindo aovosso próprio bem e ao de todas as outras coisas vivas;A isso aceitai como verdade; Edaí, pauta i vossa condu-ta!. (apud ARORA,1999, p. 17).

    Desde um ponto de vista científico, o aspecto "ab-surdo" ou misterioso do Sagrado é o convite à pesquisadele, para que sedesvele, tal como o conhecimento científi-co, de qualquer campo de estudo. O culto ao mistério comoum fim desvirtua o fim original da busca, o próprio Sagrado,que se perde na escuridão de uma impenetrabi lidade eter-na, causae resultado de mito e dogmaque se retroalimentamindefinidamente. O cientista da espiritualidade, porém,afirma que seu objeto de pesquisa é cognoscível. Aos gre-gos, cultores do mito e do misterioso, Paulo de Tarso acen-tua convictamente: "Percorrendo a cidade e considerandoos monumentos do vosso culto, encontrei um altar também

    PERGAMUM 273UFC/BCCE

  • JOSÉ ARNÓBIO AlBUQUERQUE DE OLIVEIRA

    com esta inscrição: 'A um Deus Desconhecido'. O queadorais sem o conhecer, eu vo-lo anunciol'".

    Equívocosda Mentalidade Científica do Ocidente

    A falta de entendimento dos próprios religiosos so-bre os fundamentos da espiritualidade conforme ensinadospor aqueles que a conheciam a partir de uma base segura,como JesusCristo, forjou a atitude cômoda de muitos cien-tistas e filósofos, que preferiram relegar o conhecimentoespi ritual como de tercei ra classe, pois, estando a fé repre-sentada fora de alcance dos critérios científicos, não haviapossibi lidade de uma apreciação crítica por parte da menta-lidade inquiridora. Um conto sufista' ilustra bem esseequí-voco da mentalidade científica ocidental perante ocon heci mento espi ritual:

    Alguém viu Nasrudin procurando alguma coisa no chão.'O que é que você perdeu, Mullá?', perguntou-lhe.'Minha chave', respondeu o Mullá.Então os dois se ajoelharam para procurá-Ia.Um pouco depois, o sujeito perguntou:'Onde foi exatamente que você perdeu essa chave?''Na minha casa', respondeu o Mullá.'Então por que você está procurando por aqui?''Porque aqui tem mais luz' (NASRAL-DIN, 1994, p. 57).

    Hipnotizada pela Teologia e pelo dogmatismo, amentalidade científica ocidental busca compreender aespiritual idade a partir da claridade dos seus paradigmas,levando ao estabelecimento de uma pseudodiferenciaçãoentre ciência e religião, ao não encontrar similaridade entreos princípios da ciência que domina e os fundamentos deum campo de estudo ignorado. Evitando admitir a prioriqualquer possibilidade de uma abordagem científica da re-ligião, a mentalidade ocidental não foi capaz de cogitá-Iacomo uma ciência com parâmetros próprios". Uma vez que

    2 Bíblia Sagrada, Livro dos Atos dos Apóstolos, Capítulo 17, verso 23.3 O sufismo é a corrente mística do islamismo.4 "Hurne, por sua crítica lúcida, possibilita um progresso decisivo para afilosofia. Mas causa, sem responsabilidade de sua parte, um real perigo,porque esta crítica suscita um 'medo da Metafísica' errado, por realçar

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  • FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO

    conclusões sobre ciências humanas não podem ser obtidasnum laboratório de Química, por que as conclusões sobreespiritual idade poderiam ser estabelecidas a partir dosparâmetros da Filologia ou da Hermenêutica? Ciências so-ciais diferem, evidentemente, das Ciências naturais, que,com evidência semelhante, diferem da Ciência da religião,exigindo cada uma delas uma metodologia singular.

    Disse ParamahansaYogananda:

    Um físico cético tem o direito de expressar sua opi-nião, mas continua sendo apenas uma opinião, nãoum fato. Na ciência física, certos procedimentos de-vem ser adotados e seguidos, para provar a verdade dequalquer teoria. Os micróbios são invisíveis a olho nu;é preciso usar um microscópio para detectar sua pre-sença. Se uma pessoa se recusa a olhar pelo microscó-pio, não se pode dizer que tenha testado cientificamentea teoria de que os germes estão ali. Sua opinião, por-tanto, não tem valor, visto que não observou os critéri-os prescritos para chegar à verdade da teoria. O mesmose dá com assuntos espirituais. O método foi descober-to, as regras estabelecidas e o resultado está à disposi-ção de qualquer um que esteja bastante interessadopara experimentar. No mundo ocidental, por falta deum tratamento científico à lei espiritual, o valor dareligião foi profundamente subestimado como fatorvital na vida do homem, e as doutrinas espirituais sãoaceitas ou rejeitadas, com base apenas em inclinaçõespessoais e não como decorrência da investigação cien-tífica. (2001, p. 210).

    Equívocos pueris na abordagem das coisas espi ritu-ais são causas freqüentes de conclusões ambíguas. É co-mum o julgamento da falta de cientificidade da religião, aoseobservar os procedimentos de seguidores fanáticos, igno-rantes dos fundamentos espirituais, e não a fonte onde elafoi elaborada, isto é, nos ensinamentos daqueles espiritua-listasprofundos, conhecidos como avatares,tais como JesusCristo, Sidarta Gautama, Bhagavam Krishna, ParamahansaYogananda e alguns outros poucos cientistas espirituais que

    um vício da filosofia empírica contemporànea. Este vício corresponde aooutro extremo da filosofia nebulosa da antiguidade, quando ela preten-dia poder dispensar os dados sensíveis, ou até mesmo desprezá-tos"(EINSTEIN,1981, p. 49).

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    mergulharam a consciência com tal profundidade nessecampo de conhecimento, que podiam seguramente afirmar:"dizemos o que sabernos'". Buscar as evidências daespiritualidade observando-se o proceder do religioso ordi-nário seria como pesquisar os fundamentos da Matemáticana criança que acabou de escrever 2 + 2 = 5, não emPitágoras, Newton e Gauss.

    Como Foi Estabelecida a Ciência da Religião

    Foram os cientistasespirituais da índia antiga - rishis-os fundadores do que chamamos aqui de ciência da reli-gião. Como puderam os rishis alcançar conclusões sólidasa respeito do Espírito, Deus, se os elementos da Metafísica,ou conhecimento espiritual, estão abstraídos do campo daexperiência sensível?

    Como passo inicial, fecharam os olhos para interrom-per o contato imediato com o mundo e a matéria, demodo a poderem concentrar-se mais plenamente emdescobrir a Inteligência subjacente a ela. Pelo uso darazão, compreenderam que não poderiam contemplara presença de Deus no seio da natureza por meio daspercepções ordinárias dos cinco sentidos. Assim, co-meçaram a tentar senti-to dentro de si mesmos, pormeio da concentração cada vez mais profunda. Acaba-ram descobrindo como desligar os cinco sentidos, des-se modo afastando por completo, temporariamente, aconsciência da matéria. O mundo interior do Espíritocomeçou a abri r-se. Deus fi nal mente revelou-Se a essesseres magníficos da índia antiga que persistiram firme-mente nessas investigações internas. (YOGANANDA,2001, p. 6).

    Esseprocesso,iniciado pela meditação, e aprofundadopor meio de outras técnicas, como kriya yoga, abre os por-tais de mistérios que seesvaecem por meio do acessocons-ciente a verdades inatingíveis pela experiência sensível.Durante a prática meditativa, o fluxo da energia vital, nor-malmente di rigida para o exterior através dos sentidos, éredirecionada para o interior, acalmando o funcionamento

    5 Bíblia Sagrada, .Livro de João, Capítulo 3, verso 11.

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    dos órgãos vitais e do sistema nervoso. Não afetada pelosdistúrbios do corpo, nem pela agitação dos pensamentos, aconsciência, nesse estado profundo, é capaz de reconhecer-se como Ser, Se/f, naturalmente conectado à consciênciado Ser Universal, Deus.

    Nesse estado, diz-se que a consciência alcançou auto-realização, que quer dizer "realização do Ser". No portugu-ês, o prefixo "auto" cria um sentido equivocado para o termo,dando a impressão de que sign ifica real ização por si mes-mo. O termo inglês "Self-realization" expressa melhor aidéia de "realização do Ser", pois se pode dizer em inglês"the Self", "o Ser", mas nunca se diz em português "o auto",o que nos obriga a apelar para "o Self" ou o "Eu Superior"."Auto-Realização", portanto, significa "realização em Deus",isto é, Deus tornado real, pois o Ser de um ente percebeusua plena identificação com o Ser do Universo, tornandoviva a palavra "Deus criou o homem à sua irnagern'". Nasescrituras cristãs, o "Self" ou Ser é chamado de "Alma".Quando, em meditação, o praticante alcança esse estadoprofundo, diz-se que atingiu o samadhi. Aí, a pequena cons-ciência comunga com a grande Consciência do universo ecom ela se identifica, sendo capaz de desvendar mistériosinsondáveis aos órgãos dos sentidos, mesmo quando muni-dos das melhores ferramentas.

    Os grandes videntes, uma vez que experimentaram arealização das verdades não alcançadas pelas ciências ordi-nárias, puderam estabelecer os fundamentos da ciência su-perior do conhecimento de Deus, chamada de yoga, eelaborar uma pedagogia para qualquer aspirante ao conhe-cimento dessa ciência, baseando sua metodologia não emdogmas, mitos ou controvérsias intelectuais, mas na experiên-cia pessoal, podendo desse modo afirmar: "damos teste-munho do que vimos:". Todos aqueles que são capazes dealcançar esse mesmo estado de consciência presenciam aVerdade Única que cria e sustenta a Ordem Universal, oque inclui, por conseguinte, o conhecimento sobre a natu-reza da mente e da matéria. Essa ciência, mesmo quando

    6 Bíblia Sagrada, Livro do Gênesis, Capítulo 1, verso 27.7 Bíblia Sagrada, Livro de João, Capítulo 3, verso 11.

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    expressaem diferentes roupagens externas,aparece na men-sagem de outros pesquisadores nascidos fora da índia, emoutras eras, como os profetas e santos da Bíblia, o que im-plica perfeita semelhança entre seusensinamentos: "pontopor ponto eu comparei a mensagem e os fundamentos daBíblia e das EscriturasHindus, e encontrei apenas harmoniaentre eles" (YOGANANDA, 2004, p. XXV).

    Em um festival religioso, Kumbha MeIa, ocorrido naíndia em janeiro de 1894, na cidade de Allahabad, o mes-tre indiano Swami Sri Yukteswar, expressando angústia pe-rante a religiosidade descoordenada das multidões, atraídaspelo alarido dos rituais e festas populares, considerou queo espírito científico dos ocidentais indicava uma potencialreceptividade a novos paradigmas espirituais.

    Há homens vivendo em regiões distantes, na Europa eAmérica, que superam em inteligência a maioria dosdevotos aqui presentes, professando diferentes credose ignorando o real significado de meias como esta. Elesestão aptos para o contato profícuo com os mestres daíndia, pelo menos no que concerne à inteligência. En-tretanto, estão esses intelectuais, em muitos casos,engajados ao materialismo. Alguns deles, embora fa-mosos por suas investigações nos reinos da Ciência eda Filosofia, não reconhecem a unidade essencial nareligião. Os credos que professam constituem barrei-ras que ameaçam separar a humanidade para sempre.(YUKTESWAR, 1990, p. 5).

    Depois desseevento, Sri Yukteswar escreveu o livroThe Holy Science, onde apresentou a ciência da religiãocomo ensinada pelos rishis, a partir da exposiçãocomparativa entre os fundamentos da filosofia Sankya eo livro do Apocalipse. O objetivo era mostrar a unidadeessencial de todas as grandes religiões, a harmoniasubjacente a todas elas, e que há apenas um método parainvestigação do mundo exterior e da substânciatranscendental que o manifesta.

    Foi o seu principal discípulo, Paramahansa Yoga-nanda, incumbido de trazer a ciência da religião para oOcidente e ensinar as técnicas práticas de realização dasmensagens dos avatares de todos os tempos aos cientistasocidentais, já afeitos à abordagem estruturada e metódica

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    do conheci mento. "As experiências de que falo são cienti-ficamente atingíveis. Seseguir as leis espirituais, o resultadoé garantido. Seo resultado não vier, a falha está no esforço"(YOGANANDA, 2001, p. 51). Mediante um programa pe-dagógico completo e detalhado, Paramahansa Yoganandadisponibilizou ao Ocidente as mesmastécnicas para o des-pertar da consciência superior, como ensinadas pelos maiseminentes sábios da índia em seuseremitérios, estando dis-ponível a qualquer pessoa interessada no aprofundamentoda ciência da religião, quando poderá verificar por si mes-ma os fundamentos daquele saber real dos avatares.

    À medida que a mentalidade humana mais e maiscompreende a atitude científica, sobretudo pela experiên-cia dos seus benefícios na vida cotidiana, mais exigente elase torna em relação ao que a religião deve lhe oferecer. Ébastante conhecido o fenômeno de afastamento da religiãodas pessoasde forte mentalidade científica, como os povoseuropeus, ou em determinados grupamentos de muitos ou-tros lugares. ParamahansaYogananda anteviu essefenôme-no, quando disse:

    a tendência geral será afastar-se das igrejas, onde as pes-soas vão só para ouvir sermões, e trocá-Ias por escolas elugares tranqüilos, onde irão meditar e realmente en-contrar Deus. (YOGANANDA, 2001, p. 387).

    A meditação é um dessesmodos de experiência pes-soal, quando o praticante, livre de qualquer mediaçãointelectual, própria ou de terceiros, pode comprovarempiricamente a própria transcendentalidade essencial e,falseando conceitos teórico-metafísicos, então considera-dos revelação pura de Deus ou extraordinárias deduçõesintelectivas, compreender que tal conhecimento, como dis-se Hume, não passava de "sofistaria e ilusão que deve serlançada ao fogo" (apud POPPER,2003, p. 36). Depois deuma experiência mística, Tomás de Aquino, respondendoaos apelos de seu secretário para a urgência de concluir suafamosa obra, a Summa Teologiae, respondeu: "coisas taisme foram reveladasque agora tudo quanto escrevi surge aosmeus olhos como não valendo mais do que palha" (apudYOGANANDA, 1999, p. 207).

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  • JOSÉ ARNÓBIO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

    Conclusão

    Busque Deus por amor a Ele próprio. A percepçãosuprema é senti-Lo como Bem-Aventurança brotandode suas infinitas profundezas. Não anseie por visões,fenõmenos espirituais, nem por experiências emocio-nantes. O caminho para o Divino não é um circo!(PARAMAHANSA YOGANANDA).

    Um dos erros mais funestos da consciência religiosatradicional é tratar seus profetas e avatares como seres queexigem permanente adoração e louvor, enquanto, comoda-mente, espera que forças extraordinárias do além possamlhe salvar de todo tipo de aflição e dificuldades, geralmen-te criadas por si mesma. Grande parcela da humanidadeatual relaciona-se com as coisas espirituais com a mesmaatitude dos supersticiosos povos antigos e medievais, guiadapelo interesse da magia, fenômenos paranormais, transfor-mação miraculosa das condições existenciais, "preocupa-ção em relação aos acontecimentos da vida, e da incessanteesperança e medo que influenciam o espírito humano"(H UME, 2005, p. 31).

    Nas últimas duas décadas, o voga tem-se expandidomuito no mundo inteiro. Entretanto,o significado realdo voga ainda não foi compreendido por muita gente.Para as pessoas mal ou pouco informadas, o voga é vistocomo politeísmo, satanismo, misticismo, magia, supersti-ção, acrobacia, faquirismo ete. Por outro lado, para osmuito entusiastas, voga é uma panacéia e uma soluçãopara todos os tipos de problemas de toda e qualquer natu-reza. Essasduas interpretações estão muito distantes doverdadeiro significado do voga. (ARORA, 1999, p. 55).

    A ioga atende todos os critérios de uma ciência esubjaz à mensagem dos avatares da humanidade, nascida dodomínio consciente de um saber real, acessível e verificávelpor qualquer pessoa. O significado de religião e de ioga é omesmo, carregando ambos os termos um sentido de religação,união, ao mesmo objetivo superior: a Bem-Aventurança Su-prema. O fato de a ioga aparecer neste trabalho como a de-nominação para a ciência da religião não significa desprezoà espiritualidade ocidental, pois a mensagem dos profetas da

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  • FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO

    índia possui, rigidamente, a mesma correspondência com amensagem dos profetas da Bíblia.

    Carl Sagan lamentou o alcance hipnotizador das su-perstições e das pseudociências, que transforma as pessoasem vítimas inocentes da credulidade. Ao afirmar, porém,que "as mentes dos cientistas estão abertas ao explorarmundos novos" (SAGAN, 1996, p. 71), mostrou a atitudecientífica verdadeiramente coerente que, se praticada, de-veria implicar abertura ao conhecimento do Sagrado e umapesquisaconsistentena di reçãodaquela mesmabasedesaberdos avatares, fontes lídimas da verdadeira religião.

    Sempre que mencionamos a ciência da religião, nãoestamos nos referindo à religião "cientificizada", mas àreligião compreendida com atitude científica. Os funda-mentos da ciência da religião tratados neste artigo possu-em métodos próprios, sem relação com os métodos dasciências naturais. A ciência da religião não está baseadaem conspirações interplanetárias", tampouco nos princí-pios da Física Quântica ou da Teoria da Complexidade. Acontribuição do Tao da Física, de Fritjof Capra, consistiunuma apresentação coerente e profunda das possibilida-des de um campo de experiência, já dominado pela Filo-sofia oriental, para uma ciência que se viu diante dasfronteiras da matéria. Eliminando a desconfiança naturaldo pensamento racional em relação à espiritualidade, otrabalho de Capra encoraja a mentalidade científica oci-dental ao mergulho gradual na ciência da religião. A inicia-

    I ção à mística, orientada pela antiqüíssima ioga,proporciona ao cientista moderno o vislumbre de respos-tas que o método das ciências modernas, inclusive a Físi-ca Quântica, não pode dar. "A filosofia das tradiçõesmísticas, também conhecida como 'fi losofia perene', pro-porciona a mais consistente base fi losófica às nossas mo-dernas teorias científicas" (CAPRA, 2000, p. 18). Essaé aaplicação que a ciência da religião pode oferecer aos pes-quisadores das ciências da natureza.

    8 "Os risbis, cujas mentes eram receptáculos puros para receber as divinasprofundezas dos Vedas, foram membros da raça humana, nascidos nesteplaneta e não em outro" (YOGANANDA, 1999, p. 534).

    F-[í'GAMUMUFC/BCCE

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  • ross ARNÓBIO ALBUQUERQUE DE OLIVEIRA

    Elanão possui, contudo, objetivos utilitaristas, comoa descoberta dos segredosdo átomo, saúde física, magiasoucura de doenças. Essasbenessessão flores à margem do ca-minho da pesquisa pela Realidade Última, origem, sustentá-culo e fim de todas as coisas criadas, objetivo declaradoconhecido pelos avatares e, através deles, declaradoconhecível aos seres humanos. No cotidiano, a ciência dareligião fala ao coração mediante os acontecimentos maissimples. Habituado a comungar com Deus, por meio da ex-periência pessoal incomparável da meditação, o pesquisadorespiritual aprende a vê-Lo em toda parte; em todos os tem-plos e igrejas; e em todas as pessoas.A Essênciado universomanifesta-Se a ele de forma evidente, mesmo que os outrosvejam apenas os fatos e objetos corriqueiros de sempre. Oafã da vida agitada é ressignificado pela memória sempreviva do contato real com o Infinito, quando novo contenta-mento, outra alegria e profunda paz tornam-se os di rigentesde novas perspectivas, renovada maneira positiva de ver ejulgar o mundo e as pessoas- o Paraísoem plena vida.

    o romance mais sublime é com o Infinito. Você nãofaz idéia de como a vida pode ser bela [... ] Quando, derepente, você descobre Deus em toda parte, quandoEle vem, fala com você e o guia, o romance do amordivino começou. (YOGANANDA, 2001, p. 455).

    "A ioga é exata e científica. Ioga significa união daalma com Deus, por meio de métodos gradativos, com re-sultados específicos e conhecidos. Ela eleva a prática dareligião acima das diferenças dogmáticas" (YOGANAN DA,2001, p. 49). Mostrar o mapa, porém, não é o mesmo quemostrar o território. Em um nível, a ciência da religião serefere a um conjunto de saberesorganizados e estruturadosnuma metodologia que conduz o praticante, de forma segu-ra, até a porta de acessoao Sagrado. O resto é por conta deexperiências individuais, pois a experiência mística é únicapara cada praticante. Em outro patamar ainda mais profun-do, mesmo a experiência mística em si pode ser acompa-nhada por um guru? fidedigno.

    9 Guru é o mestre espiritual que orienta o discípulo ao conhecimento daVerdade, dando a ele a sadhana, disciplina ou pedagogia espiritual.

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    A busca por essabasede conhecimento superior nãoestá restrita a certa classede pessoas,nem é necessárioaban-donar a vida normal, negar o mundo ou praticar penitênciasextenuantes para torná-Ia real. O objetivo da ciência dareligião "pode ser alcançado pelo monástico de um eremi-tério ou pelo chefe de família vivendo no mundo"(YOGANANDA, 2000, p. 233) e, perseguindo a idéia deCarl Sagan, não é apenas para crentes, mas também paraateus transformados em cientistas, saudavelmente duvidan-do, mas sem negar o Sagrado de forma a priori. Ela é sim-ples e natural, adaptando-se facilmente à mentalidaderacional-analítica ou à devocional-contemplativa, incom-patível, tão-somente, com o caráter acomodatício.

    Referências Bibliográficas

    BíBLIA SAGRADA, Edição Claretiana. São Paulo: EditoraAve Maria, 1979.ALMEIDA, Custódio Luis S. de. Hermenêutica e dialética:dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto Ale-gre: EDIPUCRS, 2002.ADORNO, Theodor e Horkheimer, Max. Dialética do es-clarecimento. Rio de lanei ro: Zahar Editores, 1985.ARAN HA, Maria Lúcia de Arruda e MARTI NS, Maria Hele-na Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo:Editora Moderna, 1993.ARORA, Harbans Lal. A ciência moderna à luz do yogamilenar. Rio de Janeiro: Nova Era, 1999.CAPRA, Fritjof. O tao da física. 20. ed. São Paulo:EditoraCultrix, 2000.HUME, David. História natural da religião. São Paulo: Edi-tora UNESP, 2005.NASR AL-DIN, Khawajah. Histórias de Nasrudin. SãoPaulo:Edições Dervish, 1994.POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo:Editora Cultrix, 2003.SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: aciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1996.

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  • JOSÉ ARNÓBIO AlBUQUERQUE DE OLIVEIRA

    YOGANANDA, Paramahansa.A eterna busca do homem.LosAngeles: Self-Realization Fellowship, 2001.

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    ___ o The divine romance, second edition. LosAngeles:Self-Realization Fellowship, 2000.___ o The second coming of Christ - The resurrection ofthe Christ within Vou - a revelatory commentary on theoriginal teachings of Jesus. Los Angeles: Self-RealizationFellowship, 2004.YUKTESWAR, Swami Sri. The Holy Science, 8th ed. LosAngeles: Self-Realization Fellowship, 1990.

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