fundamentos da antropologia e a...

24
2 unidade OS FUNDAMENTOS DA ANTROPOLOGIA E A COMPREENSÃO DAS RELAÇÕES ENTRE CULTURA E EDUCAÇÃO Seção IV A cultura como base para a compreensão do homem moderno. Seção V Ver através do outro: a experiência etnográfica. Seção VI Diferença e diversidade: o elogio da alteridade.

Upload: vokhanh

Post on 08-Feb-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

2unidade

OS FUNDAMENTOS DA ANTROPOLOGIA E A COMPREENSÃO DAS

RELAÇÕES ENTRE CULTURAE EDUCAÇÃO

Seção IV A cultura como base para a compreensão do

homem moderno.Seção V Veratravésdooutro:aexperiênciaetnográfica. Seção VI

Diferença e diversidade: o elogio da alteridade.

• Seção IV: apresentar a relevância do conceito de

cultura para a construção teórico-metodológica da

Antropologia e da Educação.

• Seção V: refletir sobre o trabalho da etnografia

para a consolidação das abordagens antropológicas

contemporâneas.

• SeçãoVI: refletir sobre a alteridade comoprincípio

fundador das posturas antropológicas e pedagógicas.Obje

tivos

OS FUNDAMENTOS DA ANTROPOLOGIA E A COMPREENSÃO DAS RELAÇÕES ENTRE

CULTURA E EDUCAÇÃO

seções 4 5 6

45PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

4

SEÇÃO IVA CULTURA COMO BASE PARA A COMPREENSÃO DO

HOMEM MODERNO

Afirmamosanteriormentequeoconceitodeculturaéumdos

elementos de ligação entre a Antropologia e a Educação. À medida

que o pensamento social, na modernidade, ocupou-se em definir

a cultura como conceito através do qual se compreende de forma

sistemática o ser humano, em suas relações com a natureza e a

sociedade,tantoaAntropologiaquantoaEducaçãoavançaramnos

seus desenvolvimentos teóricos.

Natentativadeprecisaroconceitodecultura,aAntropologia

conseguiucatalogarmaisde150definiçõesdiferentesparaotermo.

Foram criadas várias escolas de pensamento antropológico que

desenvolveram suas teorias culturais, entre as mais importantes

estão: o evolucionismo, o difusionismo, o estruturalismo, o

estruturalismo-funcional e o personalismo cultural. Dadas as

diferentes e divergentes abordagens do conceito de cultura destas

escolas, o debate mais recente da Antropologia, segundo Kuper

(2002), busca se amparar na compreensão de que a cultura é

um sistema simbólico através do qual a espécie humana produz

significadoseorganizaossentidosdasuaexistência.Destaformaa

Antropologia,enquantociência,buscaavançarenquantocampodo

conhecimento sobre o homem e a cultura.

46 Módulo 2 I Volume 1 EAD

A cultura como base para a compreensão do homem moderno.Antropologia e Educação

Dopontodevistadasteoriasdaeducação,odebatesobreo

homemeaculturaproduziudiferentesteoriassobreosprocessosde

ensino e aprendizagem.Muitos pensadores contribuírampara esta

discussão, merecendo destaque as teses defendidas por Comênio

no século XVII e Rousseau no século XVIII. Para o primeiro, o

papel da educação era levar o homem ao conhecimento das coisas

atravésdaorganizaçãosistemáticadosconteúdosdeaprendizagem.

Para Rousseau, o trabalho

da educação era despertar a

criança para o conhecimento,

a partir das suas visões de

mundo enquanto criança. Em

que pesem as diferenças de

concepções pedagógicas entre

adidáticapropostaporComênio

e os princípios pedagógicos

da formação social da criança

propostosporRousseau,ambos

tomam a sociedade e a cultura

de suas épocas como cenários da

educação.

No Brasil, várias foram

as influências do pensamento

europeu e do pensamento

americano sobre educação e

cultura. Contudo, é, a partir

dos trabalhos desenvolvidos por

ÁlvaroVieiraPintoePauloFreire,

que Antropologia e Educação

vão encontrar um campo fértil

de proposições conceituais e

metodológicasparaumareflexão

profunda sobre as relações

intrínsecasda culturaedavida

social na formação humana.

Segundo Gadotti (2006), as

contribuições teóricas deÁlvaro

Vieira Pinto para a educação

foram decisivas para a compreensão da radicalidade antropológica

dosprocessoseducativos, istoporque,paraesteautor,aeducação

tem como tarefa situar a presença humana na história e destacar

o seu papel na transformação da sociedade. Paulo Freire, por sua

Difusionismo:correntedopensamentoantropológicoquedefendeaideiade

que a cultura é umprocesso dinâmico cuja origemestá relacionada através

dastrocasculturaisentrepovosdediferentestradições.Contestaomodelode

evoluçãocultural linear,defendidopelosevolucionistas,ebuscacompreender

aevoluçãocultural comoumprocessomultilinear.Muitasdesuas idéiassão

baseadas nas teorias de Franz Boas, considerado um dos precursores do

métodoetnográfico.

Estruturalismo: teoria da cultura que busca compreender amaneira como

os fenômenos sociais se estruturam originando formas de pensamento e

linguagemquecompõemossignificadosdasaçõeshumanas.Entreosnomes

mais conhecidos desta tendência encontra-se o antropólogo francês Claude

Lévi-Strauss.

Estruturalismo-funcional: teoria que tem origem entre os antropólogos

britânicos,herdeirosdasteoriasfuncionalistasdaculturadeMalinowisk.Esta

corrente de pensamento indica a importância de se interpretar as estruturas

sociaisdeduzindoasfunçõessociaisqueosindivíduoscumpremnaexperiência

da vida comum. A cultura seria a dimensão de articulação dos papéis sociais

entreosindivíduos.

Evolucionismo: é considerada uma das primeiras escolas de pensamento

socialsobreacultura.TementreosseusrepresentantesLewisHenryMorgan,

antropólogo americano responsável pelos primeiros estudos sobre o parentesco

entreosIroqueses,nosEstadosUnidos.Entreasprincipaisformulaçõesdesta

escoladepensamentoestáabuscapordefiniçõesdeleissociaisatravésdas

quais o homemproduz cultura. Concebe a cultura comoumprocesso social

evolutivo linear,ouseja,grupossociais consideradosmaissimplesestãoem

escala cultural inferior aos considerados grupos sociais complexos.

Personalismo-cultural: corrente de pensamento teórico sobre a cultura

que temorigemnosEstadosUnidos.Entreosseusmais importantesnomes

encontram-se as antropólogas Ruth Benedict e Margareth Mead. Ambas

defendematesedequetodopovopossuiumapersonalidadeculturaldebase,

essa personalidade é transmitida por herança cultural para os indivíduos.

Suas teorias foram influenciadaspelapsicologiae influenciaramapedagogia

americana.

Simbólico: expressão derivada da palavra símbolo de origem grega que

significa agregação de sentido. Utilizamos a expressão sistema simbólico

para interpretar o conjunto de palavras, gestos e convenções sociais que

constituem os contextos de vida da espécie humana em suas mais diferenciadas

ambientações.

SAIBA MAIS

47PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

4

vez, mostrou a importância da ‘antropologia da palavra’ para a

compreensãodaeducaçãoenquantoumatopolítico.

Oquequeremosdizerquandoindicamosuma‘antropologia da

palavra’paradefinirarelaçãoentreeducaçãoeculturanopensamento

de Paulo Freire?

Vejamos duas das mais importantes teses defendidas por

Paulo Freire: a leitura do mundo precede a leitura da palavra; o ato

de ensino exige o diálogo com a realidade daqueles que aprendem.

As duas proposições aparecem nos mais diferentes momentos do

desenvolvimento teórico do pensamento de Freire. Elas indicam a

importância da palavra como dimensão fecunda da cultura, capaz

deformaretransformarasaçõeshumanas.Paraesteautor,nãoé

possívelpensaraeducaçãosemumacompreensãoradicaldarelação

entre os indivíduos e a cultura. Educar é um exercício crítico de:

pensar a palavra, as condições sociais em que os humanos dizem

a palavra, e o desafio de transformar realidades de submissão do

homem pelo próprio homem através da palavra.

A partir destas contribuições, podemos inferir que tanto do

pontodevistadaAntropologiaquantodopontodevistadaEducação,

a cultura é uma dimensão viva e profunda das relações entre os

indivíduos,anaturezaeavidaemsociedade.Éatravésdaconstrução

simbólicadesignificadosparasuaspráticasesaberesqueaespécie

humanaconsolidaasuavidaemgrupo,produzdiferentesformasde

organização social e se expande numa diversidade ascendente do

ponto de vista cultural. O trabalho do pensamento e da linguagem

nãopodeserdissociadodocontextoemqueéproduzidoe,desta

forma, os humanos criam diferentes e diversas formas de ensinar

e aprender. Nesta perspectiva, a Antropologia busca interpretar e

compreenderosdiferentessistemassimbólicosemqueoshumanos

produzemseuscontextosdevivências,enquantoaEducaçãobusca

aprofundarasrelaçõesqueosindivíduosestabelecemdentrodestes

sistemas,bemcomoentreessessistemas(compreendendoaquique

diferentes grupos sociais interagem uns com os outros). Sob esta

ótica,educarécompreenderasrelaçõesentreconhecimentoevida

emsociedadeetransformarculturalmenteestasrelações,produzindo

novossignificadosparaaquelesqueaprendeme,porquenãodizer,

paraaquelesqueensinam.

48 Módulo 2 I Volume 1 EAD

A cultura como base para a compreensão do homem moderno.Antropologia e Educação

ATIVIDADE

• Organizesuasdúvidassobaformadeperguntasetenterespondê-las.• Através do pensamento e da linguagem a espécie humana utiliza

símbolosparaaexpansãodassuas formasdecomunicação.Comenteesta afirmação a partir dos conhecimentos que você desenvolveu atéaqui.

• Qual a importância do conceito de cultura para o desenvolvimento da Antropologia e da Educação na modernidade?

• Aeducaçãoéumprocessocultural,namedidaemqueatravésdelaaspessoasestabelecemrelaçõesentresiecomoutrosseresvivos.Ela(aEducação)étambémumprodutocultural,namedidaemqueestabelecepráticasespecíficasdeensinoeaprendizagem.Comenteestaafirmação.

• VocêconheceopensamentodeÁlvaroVieiraPintoePauloFreire?Oquesabe a respeito destes pensadores?

Numa entrevista concedida à Revista Nova Escoladosmesesdejaneiro/fevereirodoanode2004,aantropólogagaúchaAnaLuizaCarvalhodaRochafala sobre a importância da Antropologia para a Educação. Vejamos a seguiralgumasdassuasobservaçõesparacompreendermosaimportânciadestaáreadoconhecimento no campo da educação.

“Nova Escola:Comoumantropólogoatuanaescola?Ana Luiza:Nossa funçãobásicaéobservarascaracterísticassocioculturaisdo serhumanoe refletir sobre elas.Comoele se comporta, se relacionaese organiza em sociedade.Minhas primeiras pesquisas nessa área visavamcompreenderporque integrantesdasclassespopularesdemorammaisparaser alfabetizados. Levantei informações sobre as condições de vida dessascomunidadesnaperiferiadePortoAlegreesobrearepresentaçãoqueaescolafazdelas.Nova Escola:Osestudosdeantropologiapodemajudararesolverumcasodedificuldadedeaprendizagem?Como?Ana Luiza:Duranteminhaspesquisas,percebiqueoseducadoresentenderiammuitassituaçõesque interferemnoaprendizadoseconhecessemumpoucodeantropologia.Issoporquepartedoqueseensinaemclasseosalunosjáaprenderamnacomunidadeemquevivem,aindaquenãotenhamconsciênciadisso.Muitosdessesaprendizadosprecisamserdesconstruídos.Fuisolicitadapararesolveroproblemadeumaprofessoraquenãoconseguiaformarequipes,por causa de brigas. Isso refletia no desenvolvimento dessas crianças quetinhamdificuldadesdeaprendizagem.Nova Escola: Conhecer a realidade em que vivem os estudantes ajuda oprofessor a ensinar melhor?

LEITURA COMPLEMENTAR

49PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

4

Ana Luiza:Semdúvida.Muitagentepensaqueaorigemsocialéumobstáculonaturalparaaaprendizagem.Masclassespopularessão formadasporumadiversidade enorme de culturas, valores e etnias. É impossível tirar umaconclusão e generalizar. Com a pesquisa, a professora gaúcha descobriu averdadeiraorigemeaformaçãodaturmaparaaquallecionava.Depossedasinformações,começouatrabalharcomeladeoutramaneira.”

A antropóloga indica a importância do contexto sociocultural da vida em comunidade para o educador compreender a diversidade dos seus educandos. Suas afirmações nosorientamàorganizaçãodeprocessosdeensinoeaprendizagemqueconsideremsaberesepráticas sociaisque já fazempartedavida sociocultural dos indivíduos comosquaiscompartilhamos a experiência da educação na escola.

Vamos tentar agora compreender dimensão simbólica da cultura do ponto de vista davisãodeescolaqueconstituímosnoprocessodeescolarização.ParaistovamoslerdoistrechosdeumpoemadeCoraCoralina:

A Escola da Mestra Silvina

Minhaescolaprimária...Escola antiga de antiga mestra.Repartidaemdoisperíodosparaamesmameninada,das8às11,da1às4.Nemrecreio,nemexames.Nemnotas,nemférias.Semcânticos,semmerenda...Digomal–semprehaviadistribuídosAlguns bolos de palmatória...A granel?Não,queaMestraeraboa,velha,cansada,aposentada.Tinhajáensinadoaumageraçãoantes da minha.

Agentechegava“-Bença,Mestra”.Sentavaembancoscompridos,escorridos,semencosto.Liaaltoliçõesderotina:Ovelhoabecedário,Lição salteada.Aprendia a soletrar.

Aohomenagearaescoladasua infância,CoraCoralinaconstróiumconjuntodesímbolosparanosapresentarocontextodesuasexperiênciasdeaprendizagem:adivisãodos grupos de estudantes entre os da ‘manhã’ e os da ‘tarde’,aautoridadedaMestrapelos‘bolos de palmatória’ e a ‘bença’comoformadecumprimento,asformasdeaprenderna‘lição salteada’ e no ‘soletrar’.Adescriçãodosmóveis,areferênciatemporaldaEscola Antiga e da Antiga Mestranosconvida,logonoiníciodotexto,aentrarnasmemóriasdaautorae,atravésdopoema,descobrirouniversoculturaldaescoladaMestraSilvina.Esteéumbomexemplodecomo,atravésdaspalavras,atribuímossignificadosparanossaexperiênciaedescrevemosumsistemasimbólicoqueproduzsentidoparanossasexperiênciasvividas.

50 Módulo 2 I Volume 1 EAD

A cultura como base para a compreensão do homem moderno.Antropologia e Educação

Apartirdosexemploscitados,produzaumtextoemquevocêdescreveuma das escolas emque você estudou, procurando destacar elementos quecompõemocontextodesteespaço.

ATIVIDADE

LEITURA RECOMENDADA

Assista ao filmeNenhum a Menos, de Zhang Yimou (1999). O enredo do filme retrata aexperiênciadeumajovemprofessoranumapequenaescolanointeriordaChina,natentativadegarantiraspresençasdetodososalunosnasaladeaula,ajovemprofessorasevêdesafiadaalidarcomasdificuldadessociaisdacomunidade.Umdosalunosfogedaescolaeaprofessorairápercorrerumlongotrajetoparatrazê-lodevolta.Outraboapedidaéouvir,lereinterpretara canção Língua, de Caetano Veloso; a letra damúsica nos remete à riqueza cultural dainfluêncialatinananossaformaçãocultural.

RESUMINDO

OconceitodeculturaestabelecerelaçõesteoriasepráticasentreaAntropologiaeaEducação.Compreendendoaculturacomoumsistemasimbólico através do qual a espécie humana produz pensamento elinguagem,apresençadoshumanosentreosdemaisseresvivosdanaturezasediferenciapelasuacapacidadedesignificarassuasações.

Além das diversas correntes do pensamento antropológico quebuscamconceituaracultura,nocampodopensamentopedagógico,Comênio e Rousseau buscaram compreender a educação de umpontodevistaantropológicoe,noBrasil, destacam-seos trabalhosdeintelectuaiscomoÁlvaroVieiraPintoePauloFreire,naabordagemantropológica dos processos educativos. É importante situar a cultura como um conceito antropológico epedagógico. Graças à capacidade humana de atribuir significadosparasuasações,avidaemsociedadeéresultantederegras,valores,práticasesaberesquetêmorigemnacultura.

51PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

5

A etnografia é uma prática de investigação de natureza

antropológica em que o pesquisador busca compreender a cultura

dopontodevistadosmembrosdacomunidadepesquisada.Através

doexercíciodaobservaçãoparticipante,oetnógrafobuscaregistrar

ossignificadosproduzidospelosseus informantesparasituaçõese

eventos da vida social em comunidade. Os primeiros registros são

feitosnodiáriodecampo(blocodeanotaçõesemqueopesquisador

descreve suas primeiras impressões sobre o grupo observado).

Posterior aos registros no diário de campo, o pesquisador elabora

descriçõesdocontextoobservado,desenvolvendosuasinterpretações

acercadasprincipaiscaracterísticasculturaisdopovooucomunidade

queestuda.OantropólogoamericanoCliffordGeertz(1989)define

este trabalho descritivo e interpretativo como uma descrição

densa.Oresultadofinaldestetrabalhosãotextosatravésdosquais

a Antropologia produz visibilidade de outras culturas, a partir da

experiênciadeconversaçãoentreoantropólogoeosindivíduosque

sãopesquisados.

SEÇÃO VVER ATRAVÉS DO OUTRO:

A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

52 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Ver através do outro: a experiência etnográficaAntropologia e Educação

As primeiras experiências de compreensão da cultura através

dopontodevistadosnativossãoreputadasaFranzBoaseBronislaw

Malinowski.Oprimeiroconviveucomosesquimósdoextremonorte

docontinenteamericano.Osegundo,comumacomunidadetribaldas

ilhasTrobriand,noPacíficoocidental.TantoBoasquantoMalinowski

viveram bastante tempo com estas

comunidades distantes e desenvolveram

teorias culturais após suas experiências em

campo. Seus trabalhos foram desenvolvidos

no início do século XX. Algumas de suas

teorias são questionadas pela Antropologia

na contemporaneidade, no entanto, a

iniciativa de ir a campo, conviver com os

grupos pesquisados, registrar observações

e tentar sistematizar teoricamente o

observado, inaugurou definitivamente uma

nova postura para a Antropologia.

Com a expansão dos meios de

comunicação e o conhecimento efetivo de

outrastradiçõesculturaisnãoeuropeias,os

antropólogos passaram a se ocupar do estudo

de suas próprias comunidades. O início da

etnografia ensinou o pesquisador a tornar

familiar aquilo que lhe parecia estranho em outras culturas (após

anosdeobservaçãoopesquisadorestavacadavezmaisfamiliarizado

com a cultura dos outros). O retorno à sua comunidade trouxe

para o etnógrafo o desafio de estranhar aquilo que lhe é familiar

(aopesquisargruposcomosquaismantémalgumafamiliaridade,o

pesquisadorbusca interpretardeoutra formaaquiloqueamaioria

das pessoas vê da mesma forma).

Aposturadebasedaetnografiapermaneceviva.Vereouvir

o mundo através dos outros é a atitude básica para o exercício

interpretativoemquearelaçãoentreofamiliareoestranhocompõe

aprincipalestratégiadepesquisanocampoantropológico.NoBrasil,

muitasdestaspesquisasdenaturezaetnográficaproduzem teorias

importantessobreavidaemcomunidadesindígenas,quilombolasou

mesmonaperiferiadasgrandescidades.Podemoscitar,atítulode

exemplo,aproduçãoteóricadeGilbertoVelho(1973),queestudouas

relaçõessociaisdeumgrupodemoradoresdobairrodeCopacabana,

no Rio de Janeiro (RJ). O trabalho deste autor é uma das principais

referências para o estudo de comunidades urbanas no Brasil.

AantropólogaClariceCohn(2005)dedicousuaspesquisasàs

SAIBA MAIS

Descrição densa: importante conceito da antropologia contemporânea desenvolvido pelo antropólogo americano Clifford Geertz. Para este antropólogo, a descrição dasculturas é o principal papel da etnografia, ao organizar assuasobservaçõesdeformadescritivaopesquisadorinterpretaaquiloqueviu,ouviuevivenciouemcampo.Neste sentido,adensidadedescritivaestánacapacidadequeopesquisadorterádeinterpretaraquiloquedescrevesemdissociarnaescritaoobservadodo interpretado.Estamodalidadedeescrita fazcomqueostextosantropológicosseaproximemdosgênerosliterários da crônica e do ensaio.

Comunidades distantes: noção utilizada pelaAntropologiaparadesignarospovospesquisadospelosprimeirosantropólogos.Oiníciodotrabalhoantropológico(como vimos na seção anterior) está vinculado ao colonialismo europeu pelomundo, os primeiros textosdesteperíodobuscavamassociaradistânciageográficaàs distâncias culturais que existiam entre diferentespovos no planeta. À medida que os antropólogos seaproximam mais de suas comunidades de pesquisa,as noções de proximidade e distância assim como defamiliareestranhovãoindicarorientações importantespara o deslocamento do antropólogo no processo da observaçãoparticipante,quandoopesquisadordevesemoverdentroeforadosgruposqueestuda.

53PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

5

criançasdacomunidadeindígenaXikrin,nonortedoPará(PA).Após

convivercomestacomunidadeindígena,aantropólogaconcluiuque

acriançaxikrinparticipaintensamentedavidaculturaldoseugrupoe

atuanaproduçãodaculturadentrodastradiçõesaquepertence.Uma

dasprincipaiscontribuiçõesdoseucampodepesquisaéaaplicação

da etnografia com crianças e a articulação da Antropologia com a

Educação.ApartirdostextosdeClariceCohn,podemoscompreender,

deformaconsistente,educaçãoeaprendizagemcomointerfacesdo

processo de construção sociocultural na vida em comunidade.

Natentativadeparticipardocontextoculturaldosindivíduos

queinvestiga,oetnógrafoelaborasuasteoriasapartirdoenvolvimento

intensocomoutraspessoas.Oquesepretendecomestapráticade

investigaçãoéchegaromaispróximopossíveldaexperiênciacultural

tal como ela é vivida pelas pessoas. Essa aproximação gera um

conhecimentoteóricoqueéfeitoapassoslentos,por‘impregnação

contínua’,comodefineLaplantine(2004),daíresultamconhecimentos

queorientampessoasnão‘iniciadas’nosgruposetemasestudados

pela antropologia a uma visão mais profunda e complexa dos contextos

culturais em vias de interpretação pela Antropologia.

No que diz respeito ao trabalho do educador, a etnografia

podeserum instrumentode formaçãoprecioso.Considerandoque

osprocessoseducativos,dentroeforadaescola,supõemaformação

de grupos e a troca cultural como pressupostos de trabalho, a

observação participante, o registro e a interpretação cultural dos

grupos envolvidos na experiência educativa, podem enriquecer o

desenvolvimentodasatividadesdeensinoeaprendizagem.Aotomar

para si a tarefa de conhecermelhor aqueles com quem pratica a

educação,oeducadorpodeaprenderpráticasesaberessociaisdos

seuseducandosecontextualizarsuasposturasdeensino,apartirdas

experiênciasdevidadaqueles comquempartilhaos seusespaços

educativos.

O legado da etnografia nos indica um movimento de

aproximação do pesquisador para transformar em teoria os

conhecimentosqueosseuspesquisadosaplicamnavidacotidiana.

O legado da educação nos indica a participação na vida em grupo

pelo educador como uma atitude de mediação entre conhecimentos

já estabelecidos teoricamente e conhecimentos já experimentados

navidacomumpelosindivíduos.Naaproximaçãocomaetnografia,

o educador poderá se inspirar nas suas contribuições tanto para

compreenderaabordagemdaculturapelaAntropologia,quantopara

investigar de forma mais profunda sua própria experiência em campo.

Aeducaçãopraticadaemsaladeaula,ouemqualquerespaçosocial

54 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Ver através do outro: a experiência etnográficaAntropologia e Educação

LEITURA COMPLEMENTAR

em que os indivíduos criam e recriam suas práticas e saberes de

vida,podeser,também,umainstiganteexperiênciadepesquisada

cultura como forma autêntica de manifestação das nossas vivências

cotidianas.

ATIVIDADE

• Organizesuasdúvidassobaformadeperguntasetenterespondê-las.

• Escolhaumtemapresenteemsuasvivênciassociais,organizeoseudiáriodecampo,

registresuasobservaçõeseexerciteaparticipaçãonoprocessodeobservação.

• Procure debater e refletir mais sobre o trabalho da observação participante na

construção do conhecimento.

Otextoqueseseguefoiretiradodeumartigoqueexpõepassagensdodiário de campo do antropólogo Hermano Vianna. Este antropólogo é um dosprincipaisestudiosossobremúsicaeperiferiaurbananoBrasil.Muitosdosseustrabalhos servem de roteiro para documentários do programa Fantástico,exibidoaos domingos pela Rede Globo de Televisão.

“Dia 9 de Junho de 2004

EntroemduaslojasoficiaisdediscosemCuiabá.Querofazerascoisasdentrodalei.Procuroosúltimoslançamentosdolambadãocuiabano,amúsicamaispopularnosbailesdasperiferiasurbanasdoMatoGrosso.Soutratadopelos vendedores com espanto ou com aquela cara de superioridade quesignificaalgoassimcomo‘nossoestabelecimentonãolidacomessasbaixarias,saiajádaqui’.Eraquasecomoseestivessetentandocomprarcoca-colanumalojaxiitadeprodutosorgânicos.

Perceboquenãoestãomeescondendonada:nãotemmesmolambadãoparavender.Ninguémcompraessetipodemúsicaemlojas.Claro:vouparaaquele camelódromoda beira do rio eme esbaldo – economizandomuitosreais–comospiratõesdeOsManinhos(VolumeVI–BailãoemMatoGrosso!),BandaRSom(OMelhordoLambadãodeMT–SeuProblemaéMuitoChifrenaCabeça),StilloPopSom(AoVivo),BandaRealSom(TeAmoDemais),MegaBoys(ABandadoMomento)eaindaasensacionalcoletâneadaCabanadaDudu.

AlambadachegouemCuiabátrazidapormato-grossensesqueforamtrabalharnosgarimposdaAmazônianosanos70e80.Pousandonocerrado,

55PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

5ATIVIDADE

elasemisturouaorasqueado,aosiririeàpolcaparaguaia(jádevidamenteeletrificada,soandocomoumrhythm and bluespantaneiro),edeunolambadão,quecontinuasuatrajetóriamutanteabsorvendoinfluênciasquedovaneirãogaúcho,daaxé musicedosertanejo,ouqualqueroutramúsicaquevenhaafazersucessorealmentepopularnoBrasil.Opúblicologoentendeuqueaquilonãoeraexatamente(ounãoeraapenas)umalambada.Percebeuqueestavaouvindo uma criação mato-grossense – e começou a dançar exatamente como fazianasfestastradicionaisdesiriri,“folclore”local,ondeopúblicofemininodominaeasmulherespodemdançaragarradinhas,derostocolado,girandosem parar pela pista de dança numa grande roda.

Pelos ingredientes da mistura, e também por essa apropriaçãopouquíssimo ortodoxa daquilo que é considerado ‘autêntico’,mesmo quemnuncaescutounadapodeperceberqueoresultadonãoéfeitoparaagradaros movimentos anti-baixaria (que muitas vezes são apenas movimentoselitistas, que pretendem doutrinar o povo a gostar de ‘qualidade’, definidaarbitrariamente – é claro – segundo concepções estéticas geralmentecaducas).Pena,paramimpelomenos,queoterritóriodolambadãosejaaindarestritivamente regional. Impossível compraressasmúsicas,oumesmomemanter informado sobre seus novos lançamentos, tanto no Rio de JaneiroquantonaInternet”.

Hermano Vianna, 2004.

Alémdedescreveroscenáriosdesuabuscapelolambadãomato-grossense,

o antropólogo interpreta a relação entre o oficial e o oficiosonacomercializaçãodemúsicasouvidasnaperiferia.Revelaaindaariquezadecombinaçõesdemelodiaquecompõeasofisticadacomposiçãodoshitsmusicaischamadosde‘periféricos’.Entreoutras conclusõesquepodemser retiradasdaspáginasdo seudiário, opreconceito social, muitas vezes, desconhece a engenhosa produção artísticapresentenamusicalidadedasperiferiasurbanasdopaís.

Reflitasobreaestruturadotextoapresentadoecombasenasanotaçõesdoseu

diáriodecampotenteorganizarumtextoqueexponhasuasinterpretaçõessobreum

dostemasdassuasobservações

56 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Ver através do outro: a experiência etnográficaAntropologia e Educação

RESUMINDO

A etnografia introduz, no início do século XX, uma nova postura na

abordagem da cultura. Suas contribuições interessam de um ponto de

vista particular à produção teórica da Antropologia. Interessam também à

Educaçãoàmedidaqueorientaacompreensãocontextualizadadosprocessos

socioculturais de formação humana.

O trabalho da observação participante e da descrição cultural contribui

para uma compreensão dos fenômenos antropológicos e pedagógicos numa

perspectiva dialógica. Á medida que produzem conhecimento, através da

etnografia,antropólogoseeducadoresofazemapartirdoencontroedatroca

culturalcomosgrupossociaiscomquetrabalham.

LEITURA RECOMENDADA

AssistaaofilmeZorba, O Grego,deMichaelCacoyanniseDemetriosLiappas.NeleumescritoringlêschamadoBasilfazamizadecomogregoZorbanailhadeCreta.Apartirdestaamizade,oinglêspassadeobservadoraparticipantedavidanapequenacomunidadegregaemqueoescritortorna-seproprietáriodeumamina.AcesseositeWWW.overmundo.com.br.Trata-sedeumdestinoeletrônico,noqualvocêvaiencontrarcontribuiçõesculturaisdeartistasdeváriaspartesdiferentesdopaís.

57PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

6

Historicamente, aAntropologia e aEducação se consolidam

comociênciasàmedidaqueproduzempráticasdeconhecimentodo

homem como um ser cultural. Teorias e métodos destas duas ciências

avançam quando sociedades de uma mesma cultura procuram

compreender de forma mais profunda como outras sociedades se

organizameproduzemseussaberesepráticascotidianas.Conhecer

e interagir com outro são atitudes fundamentais para a construção

e aplicação do conhecimento antropológico e pedagógico na

modernidade.

Considerandoque,dopontodevistacultural,umasociedade

ougruposocialémarcadopordiferençasinternasentreosindivíduos,

e que, no conjunto, tais diferenças produzem diversidades de

gênero,classesocial,etnias, religiosidade,enfim,umsemnúmero

deexpressõesdeidentidades e sociabilidades.Podemosafirmar

que, apesar da predominância de determinados padrões culturais,

ummesmo indivíduo é portador de referências pessoaismúltiplas

para situar-se no mundo.

Vejamososeguinteexemplo:antesdeiniciarasuajornada

de trabalho, o comerciário começa o seu dia entre familiares,

realizandoseusrituaisdomésticosdehigiene,alimentação,saudação

entreparentesevizinhos.Eleescolheasvestimentascomasquais

irá atender seus clientes no trabalho. A caminho da loja em que

irá cumprir suas funções como trabalhador, utiliza bens e serviços

disponíveisemsuacidadeparairaotrabalhocomotodososcidadãos

da localidade em que vive. Ao chegar ao trabalho, convive com

SEÇÃO VIDIFERENÇA E DIVERSIDADE:O ELOGIO DA ALTERIDADE

Alteridade:aquiloqueéprópriodooutro.Nolinguajaracadêmico a expressão tem origemnafilosofia,quandoos pensadores buscavam refletirsobreasdimensõesexistenciaisqueextrapolamosentido material da vida dos indivíduos.Nopensamentoantropológico,anoção

de alteridade serve para expressar a postura através daqualoantropólogotentacompreender a cultura do pontodevistadooutro,

daquelequeéinvestigado.Nocampopedagógico,otermobuscasignificarapropostadetomar como ponto de partida

para o processo educativo as experiências vividas pelos indivíduosqueparticipam

deste processo.

Identidade: a noção de identidadeéutilizadaemdiversos sentidos pelas

ciências humanas. Trata-sedeumtermoquebuscadefinirouproblematizaras

unidades de conceitos através dasquaisosindivíduossedefinemenquantoatores

sociais. Todas as tentativas deuniversalizaçãodeumdeterminado conceito de identidade,nocampodasciênciassociais,

têm sido contestadas na contemporaneidade,àluzdascontribuiçõesqueosestudossobre as diferenças culturais

oferecem para se compreender a diversidade sociocultural da humanidade. A ideia de queosindivíduosjánascemprontos do ponto de vista

cultural é refutada na maioria das correntes do pensamento

cultural contemporâneo. Prefere-secompreenderqueosindivíduosconstroemsuasidentidades na relação com outrosindivíduosecomo

complexodeobjetosculturaiscomosquaisconvive.

Sociabilidade: processo de formaçãosocialdosindivíduos.

No campo do pensamento social,osociólogofrancêsEmileDurkeimfoiumdosprimeiros a tratar deste

conceito,quandodescreveaexperiência de formação das sociedades tradicionais e das sociedades modernas através dos conceitos de solidariedade

mecânica e solidariedade orgânica. Suas teorias

contribuematéhojeparaareflexãosobreasformasdesocializaçãopresentesnas

mais diferentes experiências de vida social no planeta.

58 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Diferença e diversidade: o elogio da alteridadeAntropologia e Educação

colegas, chefes, clientes e toda uma diversidade de pessoas com

quem mantém relações de proximidade, que conhece à distância

ouquesequerimaginariaconhecer,senãotivessediariamenteque

trabalhar no local em que trabalha. Poderíamos seguir com este

exemplo pormuitas páginas,mas o que nos interessa émostrar,

que tanto do ponto de vista individual quanto do ponto de vista

social, a experiência cultural do homem émarcada pela diferença

epeladiversidade.Umamesmapessoapodeseroutradependendo

docontextoemqueesteja.Quantomaistomamosconsciênciadisto

maisrompemoscomarigidezdospadrõesculturaisquenosindicam

apenas um modelo de vida em sociedade.

Emmeadosdosanos80,umapesquisamostrouqueoslivros

didáticos que circulavam pelo Brasil padronizavam a imagem dos

indígenasbrasileiros.Praticamentetodososlivrosexpunhamomesmo

índio, a mesma oca, os mesmos arco e flecha. Convém ressaltar

queos traços físicosdosdesenhosdos índios,nos livrosdidáticos,

imitavamtraçosfísicosdoseuropeus.Dopontodevistadoprocesso

deescolarizaçãonopaís, isto terminouproduzindoa instituiçãode

dois modelos distorcidos e preconceituosos de sociedade praticados

pela escola a sociedade do eu e a sociedade do outro. Segundo Rocha

(1984), a sociedade do eu, representada pelos professores que

difundemosconhecimentosdoslivrosdidáticos,épretensiosamente

mais verdadeira e superior que a sociedade do outro (aquele que

se vê representado nas páginas do livro). O trabalho do autor é

umdospioneirosnaspesquisasdenaturezaantropológicasobrea

educaçãonoBrasiletentafazerumacríticaàformahomogeinizadora

comoasculturasescolarestratamasdiferençasculturaisnopaís.Ao

colocaroeueooutrocomomodelosantagônicos,atravésdoqual

umdeterminadocontextoculturalbuscasobrepor-seaooutro,Rocha

nos convida à leitura do livro didático e da escola com outros olhos.

Ver,ouvireinterpretarosoutrosqueestãodentroeforade

nós é uma forma de compreender a complexidade dimensional da

culturanasmúltiplasrelaçõesqueosindivíduosestabelecemconsigo

ecomoutraspessoas.Istoexigerupturasdecostumesquetendem

a naturalizar nossas ações. Exige ainda deslocamento das nossas

formasdepensaredizerpalavrascomasquaisproduzimossentidos,

para estarmos juntos uns-com-os-outros na vida em sociedade.

Exige a compreensão radical de que, no fundo, somosmúltiplos e

que, quando nos unificamos numa determinada postura diante do

mundo,ofazemosporidentificaçãocomoutrosindivíduos.Emoutras

palavras,poderíamosdizerque,paraviveremsociedade,sentimos,

agimos e pensamos em conformidade com a experiência de outras

59PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

6

pessoas em busca de sintonia social.

Ao compreender a sua condição social do ponto de vista cultural

aespéciehumanacriaumainfinidadedemodosdevida,superando

muitasvezesbarreirasbiológicas,geográficaseatémesmohistóricas

que estabelecem com rigidez certas condições de existência. O

neurologistaOliverSacks(2008)relata,na introduçãodoseu livro

Um Antropólogo em Marte,comotevequeaprenderaescrevercom

amãoesquerdaapósumacirurgianoombrodireito.Apesardeser

destro, ele teve que desenvolver habilidades como canhoto, bem

comoutilizarospésparamanipularpequenosobjetos.Boapartedos

seusestudosfoidesenvolvidacompessoasquepossuemdificuldades

e síndromes de caráter neurológico e que, em alguma medida,

convivemcomadoençadeformasocialmentesaudável.Esteúltimo

exemplonosconvida,maisumavez,acompreenderaAntropologia

eaEducaçãocomointerfacesdeumpensamentoemqueacultura

é uma dimensão profunda da construção simbólica que orienta os

indivíduosnavidaemsociedadeaexistiremcomoomesmoecomoo

outro,emsuasmaisdiversificadasformasdeconvíviosocial.

ATIVIDADE

• Organizesuasdúvidassobaformadeperguntasebusquerespondê-las.

• Crieoseudiário de campoeregistredescriçõesdesituaçõesemquedeterminados

padrõesculturaisdefinemsignificadosparasemelhançasediferençasnavidaem

sociedade.

Diário de campo: trata-se do principal instrumento de trabalho etnográfico. Poder ser uma caderneta,caderno,oublocodeanotaçõesemquevocêfaráoregistrodasobservaçõesdeumdeterminadogrupooucontextosocial.Éimportantedestacarodia,ahora,aspessoasenvolvidasnoprocessodeobservaçãoecaracterísticasambientaisdolocalemqueotrabalhofoidesenvolvido.Alémdetaisregistros,odiáriodecampocomportaasimpressõeseinterpretaçõespreliminaresdoobservador.Taiselementosservirãomaistardeparaaelaboraçãodotextofinal.

60 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Diferença e diversidade: o elogio da alteridadeAntropologia e Educação

LEITURA COMPLEMENTAR

OjornalFolha de São Paulodesábado,dia27dejunhode2009,publica,noseuCadernodeEsportes,umalongamatériaemquetentaexplicarcomoogoleiroTimHoward,titulardaseleçãodosEstadosUnidos,convivecomaSíndromede Tourette uma doença neurológica que provoca movimentos muscularesinvoluntáriosnocorpohumano.Otextodizoseguinte:

“Goleiro derrota doença e preconceito

Howard,titulardaseleçãodosEUA,éportadordasíndromedeTouretteejáfoiclassificadode‘retardado’naEuropa(dosenviadosaJohannesburgo)

Umdos heróis da histórica classificação dos EUApara a decisão daCopadasConfederações,ogoleiroTimHoward,30,sofredasíndromedeTourette,um distúrbio neurológico que tem como principal conseqüência provocarmovimentos involuntáriosdosmúsculosque,emcasosextremos,podemseespalhar por todo o corpo. Tudooquepoderiaatrapalharavidadeumgoleiro,mascomoqueHoward– autor de uma série de defesas decisivas na vitória norte-americana contra a Espanha, por 2 a 0, nas semifinais do torneio – consegue conviver comnaturalidade. Tanto que, entre os jogadores da seleção de seu país, foi um dos quechegarammaislongeemtermosdeclube–jádefendeuoManchesterUnitedehojeéotitulardogoldoEverton,outroclubedebastanteprestígioetorcidana Inglaterra. Preconceitoforteele,quenasceuemNovaJersey,sótevequandotrocouoseupaíspelaEuropa,háseistemporadas. Na época, os tablóides sensacionalistas ingleses chegaram a estamparmanchetesnalinhade“ManchesterUnitedquercontratargoleiroretardado”. Os primeiros sintomas da síndrome de Tourette apareceram em Howardquandoeletinhanoveanos.Naescola,eraridicularizadopeloscolegasdevidoaostiquesnervosos–noseucaso,osmaiscomunshojesãomovimentoscomalínguaepiscarfrenéticodosolhos. Parasecontrolarduranteosjogos,Howardusatáticasderelaxamento.Eleevita tomar remédios,porque,afirma, issopoderiaatrapalharseus reflexosdurante as partidas. Em uma entrevista concedida à televisão norte-americana, declarou queadoençanuncaoatrapalhounofutebol.SegundoHoward,eleconsegueseconcentrar nos jogos a ponto de a síndrome jamais ter interferido em seudesempenhoquandoestásobastraves. MesmosabendoqueasíndromedeTourettepoderiaatrapalharsuacarreira,elenuncaescondeuquesofriadela.Efezmais,virouumaespéciedeporta-vozda doença. ‘Existemuitopreconceitoe faltade conhecimentosobreosportadoresdasíndrome’,afirmouHoward,quenãoéoúnicoesportistaamericanoderenomequesofreucomela. JimEisenreich,porexemplo,jogoupor17temporadasnaligaamericanadebeisebolporquatrotimesdiferentesmesmosendoacometidopelodistúrbio,quenãofoiobstáculoparaqueMahmoudAbdul-Rauffosseescolhidonaterceiraposiçãodo‘vestibular’daligadebasqueteNBAem1990.”

Folha de São Paulo,sábado,27dejunhode2009.

61PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

6RESUMINDO

GraçasaoseuexcelentedesempenhocomogoleirodaseleçãodosEUAHowardvenceuopreconceitoeconvivedeformasaudávelcomasíndromedeTourette.Oseuexemplonosmostracomoavidaemsociedade,marcadaporrígidospadrõesculturais,impõedificuldadesparaoconvíviocomasdiferenças.O goleiro americano conheceu o preconceito na escola, teve que enfrentar opreconceitodosformadoresdeopiniãoeseafirmoucomumídolodofutebolnosEUAeInglaterra.

ATIVIDADE

Organize um álbum das diferenças, selecione histórias de pessoas e grupos

quetiveramquesuperarpreconceitosporapresentaremcaracterísticasfísicas,sociais,

étnicasouculturaisquenãocorrespondemapadrõessociais,busquedescrevê-lasde

formaresumida,comoseestivesseorganizandoumretratofaladodestacandoapenas

ascaracterísticasessenciaisdaquelesquesãodescritos.

LEITURA RECOMENDADA

ConheçaoMuseudaPessoa,umacervoeletrônicodehistóriasdevidadepessoasdosmaisdiferenteslugaresdopaís,oendereçoé:WWW.museudapessoa.net.AssistaaofilmeUmHeróidoNossoTempo,deRaduMilhaileanu.ContaahistóriadeummeninoetíopequeviveemumacampamentonoSudãoese fazpassarporumjudeupara fugirparaIsrael.Parasuanovaexperiênciadevida,teráqueinventarumnovomododevida,apartirdasuaexperiênciacomafamíliafrancesadejudeusqueoadota.

A alteridade é uma postura de base para a compreensão da diferença

e da diversidade do ponto de vista da Antropologia e da Educação. Ao

destacardiferençaediversidadecomocaracterísticasculturaisdavidasocial

aabordagemetnográficaconsideraocontextoemquecadaculturaproduz

seus saberes e suas práticas. Neste sentido, podemos pensar na cultura

de um ponto de vista singular: como dimensão simbólica constituinte das

significações com as quais produzimos sentidos para a nossa existência.

Podemos pensar, ainda, a cultura de um ponto de vista plural, à medida

queconsideramosquecadaindivíduoegruposocialpossuemseuspróprios

códigosdeidentificaçãocultural.

Ao reivindicarem a alteridade como pressuposto de construção das suas

elaborações teóricas emetodológicas, a Antropologia e a Educação levam

em conta as contribuições que saberes e práticas sociais oferecempara a

constituição de saberes e práticas acadêmicos.

62 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Diferença e diversidade: o elogio da alteridadeAntropologia e Educação

RESUMINDO A UNIDADE II

NatentativadedefiniçãodoconceitodeCultura,porvoltadoséculo

XIX, o pensamento social europeu deflagrou esforços para as construções

teóricas e metodológicas que, mais tarde, colocariam a Antropologia e

a Educação no campo das ciências sociais. São considerados autores de

origem da Antropologia: Lewis Henry Morgan (com a obra Ancient Society

de1877);EdwardBurnettTylor (autordePrimitive Culture,de1871)eSir

JamesFrazer(autordeThe Golden Bough,1890).Estesautorescontribuíram

para a formação do primeiro campo teórico da Antropologia conhecido como:

evolucionismo cultural. Na Educação, devemos a Comênio e Rousseau as

primeirasorientaçõesparaotratamentofilosóficodaformaçãohumanadeum

ponto de vista da cultura.

ComoadventodaEtnografia,noiníciodoséculoXX,pensaracultura

deixa de ser um trabalho de gabinete. Os primeiros antropólogos de campo

passam a conviver com nativos de outras culturas. A partir desta mudança de

rumos,derivamdiversasescolasdopensamentoantropológico:oestruturalismo

cultural,ofuncionalismo,oestrutural-funcionalismoeopersonalismocultural

destacam-se entre as principais tendências da abordagem antropológica da

cultura. Ver o mundo através dos outros se constitui no primeiro passo para a

aproximação dos antropólogos com outros povos.

A capacidade de tornar o estranhamento com as diferenças culturais

epensarahumanidadecomoumcomplexodediversasculturas,introduziua

alteridadecomoumprincípio teóricoemetodológicodo trabalhodecampo.

Alémdeveromundoatravésdosoutros,osantropólogosprocurampensar

aculturaatravésdasmúltiplasperspectivasquesituamospovosestudados

dentrodosseusmodelosorganizacionaisdevidasocial.

NoBrasil,ascontribuiçõesteóricasdeÁlvaroVieiraPintoePauloFreire

introduziramaculturacomodimensãobásicadaformaçãohumana.Devemos

aestesautoresapreocupaçãocomacontextualizaçãodaspráticasdeensino

eaprendizagemnosprocessoseducativos.

À medida que se desenvolvem novas reflexões sobre a cultura,

Antropologia e Educação aprofundam suas relações interdisciplinares,

avançando na construção de novos paradigmas de pensamento.

63PedagogiaUESC

Uni

dade

IISe

ção

6

RE

FE

NC

IAS

COHN,Clarice.Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,2005.

CORALINA,Cora.A Escola da Mestra Silvina. In: Poemas dos Becos deGoiás.SãoPaulo:Global,2006.

FREIRE,Paulo.Extensão ou comunicação.Trad.deRosiscaDarcydeOliveira.SãoPaulo:PazeTerra,1992.

GADOTI,Moacir.História das idéias pedagógicas. 8. ed. São Paulo: EditoraÁtica,2006.

GEERTZ, Clifford.A interpretação das culturas. Trad. de Gilberto Velho.RiodeJaneiro:LTC,1989.

JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. Goleiro derrota preconceito. CadernodeEsportes.DosenviadosaJohannesburgo.SãoPaulo:27dejunhode2009.

KUPER,Adam.Cultura: a visão dos antropólogos.Trad.deMirtesFrangedeOliveiraPinheiros.Bauru:EDUSC,2002.

LAPLANTINE,François.Aprender antropologia.Trad.deMarie-AgnèsChauvel.SãoPaulo:Brasiliense,2002.

___________________. A descrição etnográfica. Trad. de João ManuelRibeiro;SérgioCoelho.SãoPaulo:TerceiraMargem,2004.

LARAIA,RoquedeBarros.Cultura um conceito antropológico. Rio deJaneiro:JorgeZaharEditores,2002.

MAUSS,Marcel.Sociologia e antropologia. Trad. de Paulo Neves. SãoPaulo:CosaceNaify,2003.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de.O trabalho do antropólogo. São Paulo:Paralelo15:UNESPEditora,2000.

PINTO,Álvaro.Sete lições de educação de jovens e adultos. São Paulo:Cortez,2002.

REVISTANOVAESCOLA.Fala, Mestre!.SeçãoVocê,Professor.Edição169.SãoPaulo:jan./fev.de2004.

ROCHA,EverardoP.G.O que é etnocentrismo.SãoPaulo:Brasiliense,1984.

___________________ et al. Testemunha ocular. São Paulo: Brasiliense,1984.

SACKS, Oliver. Um antropólogo em marte. Trad. de Bernardo Carvalho.SãoPaulo:Cia.dasLetras,2008.

________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Suas anotações