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Direito FUNDAMENTOS ANTROPO LÓGICOS & SOCIO LÓGICOS Maria Luisa Scardini SUPLEMENTOS Série Bibliográfica

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Direito

F U N D A M E N T O S

ANTROPOLÓGICOS& SOCIOLÓGICOSMaria Luisa Scardini

S U P L E M E N T O S

Série Bibliográfica

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Jouberto Uchôa de Mendonça

Reitor

Amélia Maria Cerqueira Uchôa

Vice-Reitora

Jouberto Uchôa de Mendonça Junior

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Superintendente Acadêmico

Eduardo Peixoto Rocha

Diretor de Graduação

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Projeto Grá icoAndira Maltas dos Santos Edivan Santos Guimarães

S285f Scardini, Maria Luisa.

Fundamentos antropológicos e sociológicos: suplemento: direito. / Maria Luisa Scardini. – Aracaju : UNIT, 2010.

20 p. : il.

ISBN 978-85-7833-013-2

Inclui bibliografia

1. Direito. I. Universidade Tiradentes (UNIT). Núcleo de Educação à Distância - NEAD. II. Título.

CDU: 34

Impressão:Grá ica Gutemberg

Telefone: (79) 3218-2154E-mail: gra [email protected]

Site: www.unit.br

Banco de Imagens:Shutterstock

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S U P L E M E N T O

DO TEMA 04D I R E I T OMaria Luisa Scardini

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Suplemento

Tendo iniciado seus estudos sobre as ciências sociais, será que você ainda se pergunta sobre qual a necessidade dessa disciplina para sua formação?

No conteúdo sobre Direito, incluído no texto bá-sico da disciplina, a abordagem é bem precisa quanto à relação entre sociedade e normas, com ênfase na regula-ção necessária à convivência humana, prevenindo e solu-cionando conflitos. Lá você leu um texto explicativo sobre a concepção durkheimiana de Direito nascida das normas de ordem moral.

É hora de avançar mais um pouco.Aliás, é bom lembrar que, ao lado de Karl

Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920), Émile Durkheim (1858-1917) é um de três clás-sicos da Sociologia1.

Cada um desses autores, com sua respecti-va teoria e método, ofereceu relevante contribuição à Sociologia do Direito, de modo que a maioria dos estudos contemporâneos ainda é influenciada pelas categorias explicativas que forjaram para explicar a socie-dade capitalista.

O objetivo, neste texto suplementar, é o de aprofundar um pouco a análise de algumas dessas categorias, para que você venha a compreender

1 Norberto Bobbio (2000, p. 130-131) afirma que clássicos

são os autores autênticos e únicos intérpretes do seu tempo, cuja obra

continua atual e útil para explicar e compreender a realidade social .

A ANTROPOLOGIA E A SOCIOLOGIA EM ALGUMAS DE SUAS ESPECIFICIDADES

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Fundamentos Antropológicos e Sociológicos6

como cada corrente sociológica traz implicações e consequências para o Direito. Assim, podemos dizer: a cada modo de explicar a sociedade, um modo de conceber o Direito.

Estou a falar aqui do olhar sociológico.Sabemos ainda que o Direito não se limita a

princípios abstratos, mas se manifesta concretamente na realidade prática e, assim, atinge pessoas, grupos, co-munidades, diferentemente. É onde entra o olhar da Antropologia, elevada à categoria de ciência ao lado da Sociologia, no século XIX.

Embora se diferenciem quanto à abordagem e método, ambas estudam a sociedade. Enquanto a Socio-logia privilegia uma visão de conjunto, a Antropolo-gia estuda o homem, como um ser biológico, social e cultural. Afinal, sabemos que é impossível estudar o ser humano sem levar em conta o direito vigente, sem levar em conta aquilo que lhe é justo, que lhe é de direito para viver com dignidade e desenvolver-se plenamente.

Logo mais você vai entender o que quero dizer com tudo isso. Por ora, apresento a ordem lógica que pretendo seguir.

Serão quatro tópicos.Utilizarei os três primeiros para tratar, separada-

mente, de cada um dos clássicos da Sociologia, com ênfase no entendimento da sociedade e do Direito em cada teoria. Visando ilustrar a exposição, abordarei questões de or-dem empírica, ou seja, conforme a realidade obser-vável, prática, onde a teoria pode ser aplicada.

Reservei a última parte para abordar especifi-camente a Antropologia Jurídica, problematizan-do um pouco a questão do universalismo e relati-vismo no campo do Direito, tema bastante relevante no mundo globalizado.

Podemos começar?

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1.1 Émile Durkheim e o Direito como instituição de controle social

Em 1887, precisamente em Bordeaux, na França, Émile Durkheim dava aula inaugural no Curso de Ciências Sociais, primeiro curso de Sociologia criado nas universidades francesas. Na ocasião, frente a uma platéia atenta de um grande número de jovens, discursava sobre a ciência recém-nascida, deixando claro que não se tratava de algo acabado, mas de algo que estava por se fazer.

Falando da ciência enquanto tal, as palavras que Durkheim dirigiu na-quela oportunidade aos estudantes de Direito atestam porque ele seria conside-rado “um clássico”, passados mais de 100 anos. Disse ele:

[...] os melhores espíritos reconhecem hoje que o estudante de direito não deve ficar restrito aos estudos de pura exegese. [...]. É nas próprias entranhas da sociedade que o direito se elabora, limitando-se o legis-lador a consagrar um trabalho que foi feito sem ele. É preciso, pois, ensinar ao estudante como o direito se forma sob a pressão das ne-cessidades sociais, como se fixa pouco a pouco, por que graus de cris-talização ele passa sucessivamente, como ele se transforma. É preciso mostrar-lhe, em termos práticos, como nasceram as grandes institui-ções jurídicas, tais como a família, a propriedade, o contrato, quais são suas causas, como elas variavam e como provavelmente variarão no futuro. Só então, deixará de encarar as fórmulas jurídicas como espé-cies de sentenças, de oráculos, cujo sentido, algumas vezes misterioso, precisa adivinhar; saberá determinar seu alcance, não segundo a in-tenção obscura e muitas vezes inconsciente de um homem ou de uma assembléia, mas segundo a própria natureza da realidade. (Durkheim, 1985, p. 68-69).

Pode-se dizer que, com esse discurso, Durkheim inaugurou não só a So-ciologia, como também o ramo da Sociologia do Direito, mais precisamente a chamada Sociologia Jurídica2, disciplina que com essa denominação integra o currículo do Curso de Direito no Brasil desde 1994, quando se tornou obrigatória. Cabe lembrar que, além de compor o currículo, o conteúdo da disciplina já vem

2 A denominação da disciplina é objeto de polêmica para alguns autores que diferenciam Sociologia do Direito de Sociologia no Direito (a Jurídica). Para maior esclarecimento, consulte na biblioteca da UNIT: BARSALINI, Glauco; LEMOS FILHO, Arnaldo. Sociologia jurídica ou sociologia do Direito? In: LEMOS FILHO, Arnaldo e outros autores (org). Sociologia geral e do direito. Campi-nas: Editora Alínea, 2005, p. 137-144.

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Fundamentos Antropológicos e Sociológicos8

sendo exigido em provas como a do ENADE3 e em concursos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional, conforme Resolução recente (maio/2009) do Conselho Nacional de Justiça.

As palavras proferidas por Durkheim em fins do século XIX revelam visão bastante arrojada para um autor que foi considerado um “conservador”, dada sua ma-nifesta preocupação com a manutenção e a preservação da sociedade capitalista que, segundo ele, sofria de uma fragilidade moral, conforme você aprendeu no início des-sa disciplina. Aliás, foi por esse motivo que Durkheim denominou a jovem ciência de ciência da moral, à qual caberia restabelecer o estado normal, de saúde, na sociedade que se apresentava doente.

Ciente da dinâmica social, no entanto, Durkheim já previa as trans-formações da família em seu discurso. Afinal, estudar “como nasceu a família, como variou e como variará no futuro” requer investigar a que necessidades sociais essa instituição corresponde enquanto fato social, sabendo que um fato social tem origem em outros fatos sociais. Desse modo, é possível entender como a família vem se transformando em função da liberação femi-nina, da infidelidade dos casais, da existência de filhos fora do casamento e da regularidade das uniões homoafetivas.

Tais transformações no âmbito das relações afetivas e familia-res têm exigido alterações no Direito de família, um dos ramos jurídicos que mais tem sofrido mudanças nos últimos tempos.

A propósito, passemos ao modo como Durkheim explicou a sociedade da sua época. Dessa explicação, resulta a concepção que esse autor tinha do Direito.

Inicialmente, é preciso explicar que ele considerou o Direito como símbolo visível da solidariedade social. A solidariedade é entendida aqui como coesão social, ou seja, como os laços que unem os indivíduos em socie-dade. Mas, você poderia perguntar:

- O que acontecia com essa solidariedade, na Europa, emfins do século XIX?O processo acelerado de urbanização, resultante da industrialização,

provocara o aumento da densidade material e moral da sociedade. Isso

3 O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), que integra o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), tem o objetivo de aferir o rendimento dos alunos dos cursos de graduação em relação aos conteúdos programáticos, suas habilidades e competências.Verifique na parte de Formação Geral da última prova aplicada no Curso de Direito: http://public.inep.gov.br/enade2009/DIREITO.pdf

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quer dizer que muitas pessoas passaram a disputar um mesmo espaço físico, tendo que se relacionarem umas com as outras.

Imagine o que era viver assim:

Em meados do século 19, em Manchester, 60.000 pessoas viviam em pá-tios e 40.000 em porões. Em 1.500 destes porões, três pessoas dormiam numa mesma cama; em outros 738, quatro que descansavam em um só colchão, e nos demais 281, cada cama era compartilhada por cinco pes-soas. Uma espécie de tina esvaziada pelas manhãs era usada como pri-vada. Para um de seus distritos havia 33 tinas servindo a 7.000 pessoas. (ROSEN apud QUINTANEIRO, 2002, p. 24-25).

Observando a intensidade dos problemas sociais da sua época (será que isso mudou muito?), Durkheim distinguiu a lei da divisão do trabalho social como uma lei natural de sobrevivência da sociedade. A divisão do trabalho se manifestava na especialização funcional que, por sua vez, deveria gerar um novo tipo de solidariedade social: a solidariedade orgânica4, o que nem sempre ocorreu. Na verdade, com o individualismo crescente, muitas das regras coletivas deixaram de ser acatadas, produzindo o que esse autor cha-mou de anomia, como sendo o fracasso da solidariedade orgânica.

Nasce dessa análise a condição de desviante, de modo que fenômenos tais como o crime e a violência até hoje são explicados como desvios ou disfun-ções. Nesse aspecto, para controlar a anomia, nada melhor do que instituições tais como: a família, a escola e o Direito, na sua função de controle coercitivo da ordem social.

Tratando da exacerbação do individualismo na sociedade contemporânea, é possível refletir, portanto, sobre o modo como vêm se afrouxando os laços na família e na escola, provocando fenômenos tais como a drogadição e o bullying. Bem como pode-se entender a necessidade de um poder regulador de ordem mo-ral, cuja coerção os indivíduos aceitam, ou se vêem na obrigação de aceitar, tanto através de sanções legais, sob a forma de leis, como de sanções espontâneas, que afloram da sociedade, conduzindo nosso comportamento.

Nesse sentido, as normas jurídicas seriam aquelas mais necessárias, fundamentais à manutenção da ordem.

4 A solidariedade orgânica, da sociedade industrial, contrastava com a solidariedade mecânica da sociedade pré-capitalista cuja fonte tinha por base a cultura e o estilo de vida comum.

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A ocasião é oportuna para lembrar análise bem instigante de Durkheim sobre a função da pena. Segundo ele, o crime é um fato social normal, pois não existe uma sociedade sem que esse exista. A partir dessa constatação, as-severa que a medida punitiva, em princípio um remédio para o “mal” do crime, serve, principalmente, para mostrar que a sociedade deve manter-se unida em torno de valores fundamentais. Para esse autor, não basta penalizar o crimino-so. É preciso provocar a indignação das pessoas corretas e honestas, cabendo à pena a função de restaurar a consciência coletiva.

Temos observado a indignação da opinião pública brasileira quanto à im-punidade de muitos crimes, através da inexistência ou da não aplicação da pena conforme requer a consciência coletiva. Reflita sobre isso e colo-que suas reflexões no fórum do AVA. De que modo essa realidade afeta o Direito?

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1.2 Max Weber: a importância da ordem legítima e o direito subjetivo

À noção de que a sociedade precede e se impõe aos indivíduos, apren-dida com Durkheim, é preciso acrescentar que as pessoas aderem às imposições sociais porque é do seu interesse, inclusive para poder viver e sobreviver em sociedade. Senão, vejamos.

Quem é capaz, por exemplo, de não aderir ao uso do computador, da Internet, do celular? Quem sobrevive sem tais recursos da modernidade?

Como vimos falando aqui sobre “olhar antropo-sociológico”, deixemos de lado os “óculos de Durkheim”, para passarmos a enxergar o modo como os indivíduos aderem ao que se lhes impõe. Quais os motivos? Quais as ra-zões? Quem pode saber?

Em princípio, somente cada indivíduo, na sua subjetividade mais íntima. E olhe lá! Quanta gente nem tem consciência de que age, por esse ou aquele motivo?

Será que isso pode ser aplicado às normas jurídicas? Reflita comigo. Em quantas situações e circunstâncias, em nosso dia a

dia, se abrem possibilidades para que cada um de nós aja conforme as normas positivadas, ou à revelia delas! Ou diga que você nunca colou numa prova? Ou viu alguém colar, e ficou quieto(a)? Ou, pior, quantos motoristas insistem em dirigir embriagados e nem se importam com a Lei Seca?

Nem sempre a ação “fora da norma” de um, dois ou mais indivíduos muda as coisas. Mas, às vezes, sim.

Tratando da área que nos interessa, foi o que aconteceu com a Lei do Divórcio, o reconhecimento da união estável e a proibição de designações dis-criminatórias relativas à filiação. Previstas na Constituição Federal de 1988, essas “normas” foram regulamentadas por legislação específica e incorporadas no novo Código Civil. É o que se prevê acontecerá com a união de pessoas do mesmo sexo, já comum na realidade social, mas que ainda demanda proteção jurídica mais específica.

É fácil perceber como isso acontece. Ações de alguns indivíduos vão se reproduzindo, se repetindo na ação de outros indivíduos, até se estenderem à sociedade mais ampla, como prática regular. Assim, deslegitima-se o que estava posto e se legitima uma nova ordem, o que vai se fazendo nas

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“entranhas da sociedade”, conforme as palavras proferidas por Durkheim em 1887. Lembra?

Usando com cuidado os “óculos de Weber”, é possível enxergar que há um limite para a ordem objetiva do direito positivado. É a probabili-dade ou não do seu reconhecimento como justo, o que se dá no campo da sub-jetividade das ações individuais, objeto da Sociologia Compreensiva.

Por isso, quando se fala em ordem jurídica conforme a teoria weberia-na, é preciso investigar o ser (o que de fato ocorre) em relação ao dever-ser (a norma). Ou seja, é preciso observar se os indivíduos que integram a sociedade consideram subjetivamente como válida uma determinada ordem e orientam por ela sua conduta (WEBER, 2005).

Nesse aspecto, a grande contribuição da Sociologia Compreensiva está em tratar a sociedade a partir da sua construção mediante uma rede de (rel)ações individuais. O Direito, portanto, não está objetivamente ga-rantido, mesmo quando existe um aparelho coativo pronto a agir, através do Estado, entendido por Weber como a instituição que detém o monopólio legítimo da força.

De acordo com a teoria weberiana, por exemplo, a consideração sociológica do direito deve dar conta tanto das ações dos indivíduos que seguem, como daqueles que burlam a norma jurídica. Assim, se para um advogado é essencial saber como a lei considera certo tipo de criminoso, para um advogado atento à Sociologia Compreensiva, é igualmente importante ver como o criminoso considera a lei, quando se propõe a transgredi-la.

Por isso, o conceito de legitimidade5 é central na classificação de Max Weber sobre os tipos de dominação.

Comecemos por entender a diferença entre poder e dominação. En-quanto o primeiro significa a possibilidade de mandar, o segundo indica a pro-babilidade de que esse mando seja obedecido, o que implica em saber a que se deve a obediência.

Weber identificou diferentes fundamentos da obediência para classificar os três tipos de dominação: tradicional, com base no mero costu-me de fidelidade a um senhor; carismática, a partir de uma efetiva admira-ção por dotes pessoais de um líder; e legal, quando a origem da legitimidade

5 A legitimidade existe quando existe consenso entre os membros de uma sociedade para aceitar a autoridade vigente, sem necessidade de se recorrer à força física.

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está na existência de um estatuto, de uma regra formal. Nesse último tipo, o mandato reside no cargo e não na pessoa que o ocupa. Será que isso lhe faz lembrar alguém?

Como obra da racionalidade humana, o Direito constitui um instrumento essencial para a organização burocrática do Estado, sen-do utilizado muitas vezes em função de interesses de grupos de pressão. Por esse motivo é que Weber, ao contrário de Durkheim, considera o Direito sepa-rado da Moral6.

Quando se trata de aplicar a tipologia da dominação legítima de Weber, a realidade brasileira continua sendo um desafio para qualquer cientista social. Como compreender a legitimidade da lei num país onde muitos ainda ousam afirmar: “Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei!”? O antropólogo Ro-berto DaMatta tem se dedicado a estudar o tema. Em seu livro O que faz o brasil, Brasil?7 analisa o chamado jeitinho brasileiro que se expres-sa na frase costumeira: “você sabe com quem está falando?”.

Pesquise mais sobre o “jeitinho brasileiro”. Reflita sobre de que forma ele faz com que determinadas leis “não peguem”. Troque idéias com seus colegas no fórum do AVA.

6 O Direito associado ao Estado, como obra da racionalidade humana, acabou transformado em simples técnica. Essa suposta neutralidade acaba por aumentar a dis-tância entre teoria e prática no Direito. Leia sobre essa defasagem em: BOBBIO, Norber-to. Direitos do homem e sociedade. In: A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 67-83.

7 Consulte a obra do autor na Biblioteca da UNIT.

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1.3 Karl Marx e o Direito como instituição supere-strutural

Sendo o primeiro dos clássicos na cronologia, já que nasceu e morreu antes de Durkheim e Weber, é bom explicar porque deixei para apresentar Marx por último. Afinal, olhar a sociedade com os “óculos” do autor da teoria da luta de classes8 nos fará enxergar coisas que ainda não vimos.

A teoria marxista foi incorporada à Sociologia como sendo a Sociolo-gia crítica da ordem e, no ramo da Sociologia Jurídica, inspirou a crítica do Direito e das instituições jurídicas.

Vejamos o que significa isso.Segundo Marx, uma sociedade é feita de relações não apenas sociais,

mas de relações vinculadas à produção da existência material neces-sária à sobrevivência humana9. A questão fundamental é: como se dão essas relações numa sociedade capitalista?

Há aqueles que são proprietários dos meios de produção e há outros que trabalham para os proprietários, vendendo a sua força de tra-balho, mediante um salário. As relações entre esses grupos com interesses muitas vezes divergentes, em que um explora o trabalho do outro10, po-dem gerar tensão e conflito.

As relações de produção (exploração) residem na base da sociedade capitalista, na chamada infraestrutura. Para garantir a manutenção dessa realidade de exploração, é preciso que exista “algo” que possa legitimá-las (tratamos a pouco de “legitimidade”), no nível da superestrutura. Chegamos agora a uma categoria muito peculiar, própria dessa teoria. Falo de ideologia.

De acordo com a teoria marxista, ideologia é um dos meios usados pelas classes dominantes com a finalidade de fazer aparentar seus interesses como interesses coletivos, construindo sua hegemonia de classe. Sem re-

8 Para Karl Marx (1818-1883), a história das sociedades é a história das lutas de classe, da “exploração do homem pelo homem”. No feudalismo, os servos teriam sido oprimidos pelos sen-hores. No capitalismo, a classe operária seria oprimida pela burguesia.

9 Esse modo de pensar representa o método do materialismo histórico.

10 A base dessa exploração está na chamada mais-valia, que consiste na diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o salário que lhe é pago, resultando no lucro, essencial à ma-nutenção do sistema capitalista.

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querer o uso da repressão através da força, a ideologia torna-se um instrumento de reprodução do status quo da sociedade.

No campo de Direito, uma constatação inegável dessa realidade é o postulado de que “todos são iguais perante a lei”. Afinal, não pode existir igual-dade onde existe a propriedade privada dos meios de produção11. Um exame mais cuidadoso permite constatar como o Direito “age” no sentido de na-turalizar a desigualdade social, de modo que pensemos que o que está aqui, agora, sempre foi assim. Ao que se chama de “Estado de Direito”, caberia per-guntar: - Direito de quem? Conseguido como? Em que circunstâncias? À custa de quem? (GUARESCHI, 2005, p. 25).

As respostas a essas perguntas sugerem que a lei pode não ser neu-tra, mas que atenda a interesses, valores de alguém geralmente mais poderoso econômica e politicamente. Se considerarmos que, em nosso país, apenas cerca de 10% da população na faixa etária de 25 a 34 anos possui nível superior, a lei da “prisão especial” constitui um bom exemplo do benefício dado por uma classe a ela mesma.

O documentário Justiça (2004), de Maria Augusta Ramos, constitui uma boa amostra da realidade do sistema prisional brasileiro. Visite o site: http://www.justicaofilme.com.br e depois assista ao filme. Vale a pena!

Na perspectiva marxista, o chamado Estado de Direito está longe de promover igual acesso à justiça por parte de todos os indivíduos. Há uma acen-tuada distância entre garantias de ordem democrática e sua efetiva realização prática. Não é preciso ir muito longe para enxergar que a igualdade de direi-tos prevista na Constituição Brasileira não contempla um enorme contingente de indivíduos privados de quaisquer direitos, de modo que é comum ouvir que muitas pessoas não têm sequer “direito a ter direitos”.

11 Um exemplo bastante ilustrativo sobre essa desigualdade é encontrado na noção de tra-balhador “livre”, no capitalismo. Pela necessidade, o trabalhador na verdade não tem escolha. No mercado neoliberal, continua dependente de regras comandadas pelos proprietários de capital material e financeiro.

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Essa ligeira análise aponta para as possibilidades de um “outro Di-reito”, de modo que se amplia o objeto da Sociologia Jurídica para além da eficácia/ineficácia do direito positivo enquanto tal.

Muitas vezes, a inoperância do Estado em garantir direitos a uma grande maioria de excluídos favorece o surgimento de outras esferas nor-mativas, caracterizando o chamado pluralismo jurídico. Em oposição ao conceito de monismo jurídico, segundo o qual só tem validade as leis postas pelo Estado, o pluralismo jurídico sustenta a ideia de que existem várias normas válidas provenientes de “centros de poder” diferentes, aplicáveis a uma mesma situação. Quantas vezes, por exemplo, as pessoas seguem normas religiosas, desprezando as normas do Estado? Ou, moradores dos morros do Rio de Janeiro, obedecem a normas ditadas pelos traficantes? E presidiários, se submetem à “lei” de facções criminosas?

No âmbito do pluralismo jurídico, tem se desenvolvido o chamado Movi-mento do Direito Alternativo.

Leia o artigo “Visões alternativas do direito no Brasil, de Ricardo Guanabara, disponível no AVA para download. Identifique e caracterize as duas corren-tes: a do “uso alternativo do Direito” e a do chamado “direito achado na rua”. Comente com seus colegas no fórum do AVA.

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1.4 Direitos humanos: universalidade x relativismo à luz da Antropologia

Depois de falar em “tantos olhares” na Sociologia, não poderia deixar de tratar do olhar sobre o Direito a partir de um lugar bastante particular, o do antropólogo. Por que digo isso?

Encerrei o tópico anterior me referindo à noção de pluralismo ju-rídico. É preciso destacar que existe pluralismo jurídico porque existe pluralismo cultural e que este é objeto de estudo da Antropologia desde as suas origens, conforme você estudou no início da disciplina.

Considerando a cultura como foco por excelência da Antro-pologia, você aprendeu a diferenciar etnocentrismo de relativismo. Es-ses dois conceitos acompanharam a transformação no modo de considerar e compreender a diversidade de padrões culturais encontrados em diferentes sociedades.

A atitude relativista consiste no entendimento de que não há cultu-ras melhores ou piores, mas apenas diferentes, e que variam no tempo e no espaço. Foi essa abordagem - do relativismo cultural – que possibilitou o de-senvolvimento da Antropologia Jurídica com foco no pluralismo jurídico.

Compreendendo normas jurídicas diferentes regulando a mes-ma situação numa mesma sociedade, o pluralismo jurídico tem origens remotas, mas se intensificou bastante com a globalização.

A aproximação de culturas, às vezes bem diferentes, tem gerado debate bastante polêmico no campo do Direito, problematizando a impossibilidade de se compatibilizar a universalidade dos direitos humanos com o pluralis-mo cultural presente nas sociedades contemporâneas.

Nesse aspecto, a oposição entre etnocentrismo e relativismo tem sido insuficiente, uma vez que a radicalização do relativismo acaba por gerar outro etnocentrismo. A proteção e a preservação dos valores de minorias, por exemplo, podem acabar resultando numa posição condescendente com costu-mes que atentam contra a dignidade do ser humano.

Assim, será que temos que aceitar qualquer costume, por mais violento que seja, na medida em que faz parte de “outra cultura”? Não podemos con-denar práticas de genocídio, infanticídio, canibalismo, escravidão, tortura, só porque são práticas de “outros povos”?

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Fundamentos Antropológicos e Sociológicos18

A evidência de tais “fatos” continua colocando à prova a universalidade dos direitos humanos, de modo que é preciso estabelecer um diálogo inter-cultural, sem legitimar a desigualdade no que diz respeito à dignidade fundamen-tal do ser humano que, na verdade, todos nós compreendemos qual seja.

Como você pode ver, o próprio “relativismo é relativo”. É por isso que o antropólogo Clifford Geertz (1926-2006) propõe que se estude a diversida-de cultural “dentro das fronteiras de um ‘nós’”, entendendo que estar no mundo do outro significa estar também no seu (GEERTZ, 2001, p. 68-85).

Sugiro que assista ao filme Babel (2006). Retrata como uma mesma tragédia produz uma diversidade de conflitos a partir do choque entre culturas diferentes.

A frase do sociólogo português contemporâneo, Boaventura de Sousa San-tos, expressa essa ideia no âmbito do Direito, foco central de nossa abordagem:

Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza. Te-mos o direito a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracte-riza (SANTOS, s/d).

Creio que, antes de finalizar, cabe citar mais uma parte do discurso do clássico com que iniciei este texto suplementar: “Se, portanto, as sociedades são o que delas fazemos, não há porque nos perguntarmos o que elas são, mas em que deve-mos torná-las.” (DURKHEIM, 1985, p. 49).

A atualidade de palavras ditas há mais de 100 anos pode ser encon-trada em entrevista recente do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em que se refere ao seu papel enquanto cientista social:

Não acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de uma “socieda-de perfeita”, mas acredito numa “boa sociedade” – definida como aque-la que se recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa e não estar fazendo o suficiente para se tornar melhor. (PALLARES-BURKE, 2003)

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Pois é. Iniciei este texto, indagando-lhe sobre seu conhecimento sobre a ne-cessidade dessa disciplina na sua área de formação. Durante a abordagem, procurei auxiliar você a compreender de que modo o olhar antropo-socioló-gico pode ser útil a um “operador” do Direito e áreas afins.Agora, pergunto: O que você considera que aprendeu aqui e que pode torná-lo um profissional, um cidadão e uma pessoa melhor?

Discuta a respeito com seus colegas no fórum do AVA.

Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. São Paulo: Campus, 2000.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Atos normativos. Resolução 75, de 12 de maio de 2009. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/infojuris/atos/4_RESOLUCOES/index.html. Acesso em 14 jan. 2010.

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DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.

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ANTROPOLÓGICOS& SOCIOLÓGICOSMaria Luisa Scardini

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