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  • 7/29/2019 FSP2005-Crise e substrato

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    Resposta no pergunta: O pior da crise poltica j passou?

    Crise e substrato

    Fbio Wanderley Reis

    H um sentido banal em que a resposta pergunta da Folha deveria serpositiva. Essa resposta destacaria vrios fatos que tornam a crise menosdramtica, trazendo alvio ao governo e ao PT. O pas se cansa do jorroincessante de denncias e do espetculo das CPIs; as pesquisas sugerem aestabilizao na avaliao de Lula pelo eleitorado; um aliado de Lula preside

    Cmara dos Deputados, e as eleies no PT tm tambm desfecho satisfatriopara o governo; a economia vai bem, apesar da m notcia de agora quanto febre aftosa; e talvez se justifique a expectativa, que parece ser a do governo,de que a provvel renncia ou mesmo a cassao rpida dos parlamentaresligados ao valerioduto possa aplacar a opinio pblica e permitir algum tipo defecho para o processo deflagrado h meses.

    Mas essa avaliao envolve aposta cercada de incertezas. Para comear

    com algo que deve esclarecer-se em alguns dias, h o risco de surpresasjudiciais quanto aos processos na Cmara. O STF se tem mostrado reticente arespeito. Na hiptese de que, por exemplo, a deciso pendente quanto a JosDirceu lhe seja favorvel e impea sua cassao, que impacto teramos sobre aviabilidade da punio dos demais, e com quais efeitos sobre a opinio pblicae as presses que podem vir dela? Alm disso, o tdio que as CPIs vm

    produzindo no parece permitir que se exclua a possibilidade de novasrevelaes importantes, em particular sobre a questo crucial da origem do

    dinheiro do esquema desvendado (quem se veria atingido pelas revelaes arespeito?) e sobre o eventual envolvimento mais pesado de partidos deoposio em esquemas anlogos. Mesmo que se queira ver esta ltimaconjectura como convindo ao governo, bem claro o sentido em que elaaponta para o agravamento da crise.

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    Por outra parte, seria possvel salientar os estragos talvez definitivos jproduzidos pela crise em termos poltico-partidrios e de psicologia polticacoletiva. H, em primeiro lugar, o comprometimento das promessas contidasno ineditismo da construo institucional do PT e sua ligao com o

    simbolismo popular de Lula, com desdobramentos no plano do prpriosubstrato que crises como a atual encontram em nossas precariedades sociais edo desafio de super-las. Talvez em consequncia da combinao com afrustrao de altas expectativas criadas antes pela liderana tambmaparentemente especial de Fernando Henrique, a crise resulta em singulardesmoralizao da atividade poltica como tal aos olhos da populao. E fica a

    pergunta sobre o preo que deveremos pagar no processo poltico-eleitoral dofuturo, mesmo se admitidas hipteses propcias quanto s disposies dos

    atores mais importantes.

    Mas a ponderao principal diz respeito a uma face especial disso, emque as hipteses so menos propcias. parte o fato de que o pior, nosentido da pergunta, talvez tenha passado, o verdadeiro pior, quem sabe,

    justamente a possibilidade de que a crise passe, de algum modo, sem mais,ou sem muito mais. A imprensa tem falado do nimo de acomodao, ou depizza, produzido precisamente pelo possvel envolvimento de diferentes

    partidos nos provveis resultados de investigaes mais profundas e pelo riscode agravamento da crise. Isso afim, naturalmente, ao fato de que atlideranas gradas de perfis partidrios variados (presidente, ex-presidente,

    possvel futuro presidente, vice-presidente, j neste caso em tom casual egalhofeiro) se mostrem igualmente prontas a negar importncia ao crimeeleitoral e mesmo a se escudar nele (o trigo, o meu crime, que noimporta, pois o de todo mundo) para proteger-se de acusaes supostamentemais graves (o joio, o crime dos outros, este sim, crime de fato).

    Ora, essa ligeireza afim, por sua vez, cultura anmica e corrupta queopera difusamente no pas e festeja a esperteza (e como consequncia daqual o Brasil surge nas pesquisas, em escala mundial, como o campeo dadesconfiana interpessoal, em que nos percebemos todos como permanentescandidatos a otrios, quando no a vtimas de violncia). Ela esquece,

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    porm, a turvao que tende a resultar da transposio dos limites legais,empurrando as espertezas rumo a coisas mais sinistras.

    Sem dvida, preciso ser realista. Se h leis que so letra morta para

    todos, que se faam as reformas necessrias, quer no que ditam as leis, quernos mecanismos institucionais de controle. A crise atual pode representaroportunidade indita de reformas que alcancem o prprio plano da culturasubjacente e assim de fato peguem. Mas a condio que no se comece

    por tornar irrelevantes e inoperantes as normas que se acham em vigor. Poisisso no vir seno corroborar, justamente, as expectativas mais realistas enegativas de todos, agora intensificadas pela crise, e fazer que j nasam como

    provvel letra morta as novas normas que eventualmente se implantem.

    Folha de S.Paulo, 15/10/2005

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