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Políticas públicas de educação e as sensorialidades do lugar Elis de Araujo Miranda (Organização) RPPE Rede Políca Pública de Educação

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Políticas públicasde educação e as

sensorialidades do lugar

Políticas públicas de educação e as sensorialidades do lugar

Elis de Araujo Miranda(Organização)

Elis de Araujo M

iranda (Org.)

Parte I - SOBRE POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO

Fotografia e experiências didáticas transdisciplinaresElis de Araújo MirandaMaria Priscila Pessanha de CastroRosa Maria Alvarenga

Sistema de habitus: cultura e educaçãoGabriel Duarte CarvalhoElis de Araújo MirandaJosé Luis Vianna da Cruz

Educação e indústria petrolífera: a formação dos técnicos de nível médioAna Paula Rangel de AndradeRosélia Perissé da Silva PiquetElis de Araújo Miranda

Parte II - SOBRE AS SENSORIALIDADES NO LUGAR

Subjetividade e modernidade na obra poética de Mário QuintanaPriscila Viana AlvesElis de Araújo Miranda

Cinema e Educação: passividade e indiferençaJoilson Bessa da Silva

O coronel e o coronelismo: entre os meandros da Geografia, História e Literatura para a compreensão de uma categoria socialDaniele Correa Camara

Experiências identitárias no cotidiano da cidadeHelio dos Santos Passos

RPPERede Política Pública de Educação

Capa - Políticas públicas de educação e as sensorialidades do lugar.pdf 1 5/16/2017 11:07:27 AM

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Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR)

Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM)

Claudio Cezar Henriques (UERJ)

João Medeiros Filho (UCL)

Leonardo Santana da Silva (UFRJ)

Luciana Marino do Nascimento (UFRJ)

Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ)

Michela Rosa di Candia (UFRJ)

Olavo Luppi Silva (UFABC)

Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ)

Pierre Alves Costa (Unicentro-PR)

Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO)

Robert Segal (UFRJ)

Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ)

Sandro Ornellas (UFBA)

Sergio Azevedo (UENF)

Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)

Conselho EditorialSérie Letra Capital Acadêmica

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Elis de Araújo MirandaOrganizadora

POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO E AS SENSORIALIDADES NO LUGAR

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Copyright © Elis de Araújo Miranda (org.), 2017

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998.Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os

meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Letra CapitaL editora

Telefax: (21) 3553-2236/[email protected]

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

P829

Política pública de educação e as sensorialidades no lugar / organização Elis de Araújo

Miranda. - 1. ed. - Rio de Janeiro Letra Capital, 2017.

178 p. : il. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia e índice

ISBN: 978-85-7785-511-7

1. Ciência política. 2. Política pública. I. Miranda, Elis de Araújo.

17-41791 CDD: 320

CDU: 32

editor João Baptista Pinto

Capa Huriah Oliveira

projeto GráfiCo e editoração Luiz Guimarães

revisão Rita Luppi

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Sumário

Apresentação .......................................................................................7

parte i - SOBRE POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO .............9

Fotografia e experiências didáticas transdisciplinares .............11 Elis de Araújo Miranda Maria Priscila Pessanha de Castro Rosa Maria Alvarenga

Sistema de habitus: cultura e educação ......................................38 Gabriel Duarte Carvalho Elis de Araújo Miranda José Luis Vianna da Cruz

Educação e indústria petrolífera: a formação dos técnicos de nível médio .......................................................74 Ana Paula Rangel de Andrade Rosélia Perissé da Silva Piquet Elis de Araújo Miranda

parte ii - SOBRE AS SENSORIALIDADES NO LUGAR .............97

Subjetividade e modernidade na obra poética de Mário Quintana......................................................................99 Priscila Viana Alves Elis de Araújo Miranda

Cinema e Educação: passividade e indiferença. ....................113 Joilson Bessa da Silva

O coronel e o coronelismo: entre os meandros da Geografia, História e Literatura para a compreensão de uma categoria social ...........................................................132 Daniele Correa Camara

Experiências identitárias no cotidiano da cidade ...................154 Helio dos Santos Passos

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Apresentação 7

Apresentação

Os textos apresentados neste livro resultam do projeto inti-tulado “Política e Interação na Educação”, financiado pela Coorde-nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no contexto do Programa Observatório da Educação no Brasil, de-senvolvido ao longo de 2013-2016 sob a coordenação das professo-ras Tamara Egler, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urba-no e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR\UFRJ), e Claudia Werner, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (COPPE\UFRJ). Compu-seram ainda este grupo a professora Elis Miranda, da Universidade Federal Fluminense, de Campos de Goytacazes (UFF\Campos), e a professora Andrea Lapa, da Universidade Federal de Santa Catari-na (UFSC), compondo, dessa maneira, uma articulação em rede de quatro laboratórios de pesquisa, onde cada laboratório desenvolvia um subprojeto com a finalidade de proporcionar uma articulação entre universidade e escolas públicas cujo objetivo era aproximar professores da rede pública de ensino fundamental aos programas de pós-graduação e, assim, contribuir com uma melhor formação desses professores, e aproximar estudantes de graduação e de pós--graduação às realidades escolares de cada um dos municípios onde os laboratórios possuem relações de trabalho e, por fim, fazer com que todos os envolvidos pudessem compreender as relações entre escolas e cidades, onde cada escola pudesse produzir conhecimen-tos a partir das suas realizadas, mas relacionando-os às questões ou eventos ocorridos em outras escalas geográficas.

Esse contexto de articulação entre escolas e universidade se deu a partir das experiências de pesquisa e de ação promovidas pelo Laboratório de Pesquisa Cultura, Planejamento e Representa-ções Espaciais (LabCult), instalado na Universidade Federal Flumi-nense (UFF) de Campos dos Goytacazes, inserido no contexto do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão da Uni-versidades Federais (REUNI), cujo principal objetivo é a promoção

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8 Apresentação

do desenvolvimento regional. O LabCult atuou em articulação com outro programa financiado pela CAPES, o Programa de Iniciação à Docência (PIBID) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), em especial o PIBID em Física, coordenado pela professora Maria Priscila Pessanha de Castro, e os dois grupos aprovaram junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-tífico e Tecnológico (CNPq) o projeto intitulado “A produção foto-gráfica como instrumento didático interdisciplinar: uma interação entre a física, química, história, geografia e arte”, que passou a ser desenvolvido na Escola Estadual João Pessoa.

As coordenadoras e os bolsistas dos programas PIBID e Ob-servatório da Educação no Brasil (OBEDUC) passaram a atuar de maneira integrada, oferecendo oficinas, minicursos, trabalhos de campo para observar a cidade, além de atuarem coletivamente na produção fotográfica do patrimônio cultural e na produção dos ar-tigos para apresentação em seminários e na elaboração dos textos ora apresentados. Ressaltamos, portanto, que todos os artigos que integram este livro já foram publicados em anais de eventos científi-co-acadêmicos e reelaborados a partir das críticas e considerações.

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parte i SOBRE POLÍTICA PÚBLICA

DE EDUCAÇÃO

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Fotografia e experiências didáticas transdisciplinares1

Elis de Araújo MirandaMaria Priscila Pessanha de Castro

Rosa Maria Alvarenga

Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar as experiências didá-ticas realizadas a partir do fazer fotográfico. Essas experiências proporcionam momentos de discussão de conceitos e métodos de diferentes áreas do conhecimento que se realizaram ao longo de um ano letivo (2014) em uma turma de terceiro ano do curso de formação de professores do Colégio Estadual João Pessoa, na cidade de Campos dos Goytacazes, interior do Estado do Rio de Janeiro, tendo sido replicado em outras duas turmas em andamento, no ano de 2015. A professora Rosa Maria Alvarenga, bolsista do programa PIBID/Física/Uenf, é a responsável pela turma no momento das realizações das atividades, e a professora Giana Castro, que também atua no Colégio Estadual João Pessoa, participou com os estudantes do Projeto Ensino Inovador, foram grandes entusiastas e incentiva-

1 Este trabalho contou com a colaboração dos professores da Rede Pública de En-sino (bolsistas PIBD e OBEDUC/CAPES): Cláudia Oliveira Viana, Edvana Gon-çalves Teixeira e Silva, Elisabeth Soares Rocha, Gianna Castro de Azevedo, Giovana Maria Mangueira de Almeida, Joilson Bessa da Silva, Leonardo Vasconcellos da Silva, Raphael Neves da Conceição, Rosa Maria de Alvarenga, Leandro Oliveira e Thiago Muniz Barbosa; bolsistas OBEDUC/Polo Campos: Bruno Muniz Gomes, Daniele Corrêa Camara, Helio dos Santos Passos, Priscila Viana Alves; bolsistas PI-BID/Física/UENF: Carlos Eduardo Paiva Pereira Pires, Franciane do Nascimento Gomes, Laiz da Silva Tavares, Lara Stroligo de Oliveira Martins, Linneker Almei-da da Mota, Milena Viana Cavalcanti de Lima, Ralph Cruz Mateus, Ramon Silva Dantas, Thiago O. Moreira, Wilson Menezes de Matos Bernardo; bolsistas Jovem Talento (FAPERJ): Adrielle Barbosa, Anderson Mateus Faria Rangel, Letícia Go-mes, Letícia Ribeiro; outros colaboradores: André Luis Sandim, Claudinei Junior, Kaique Fumero, Thiago Serafim, e André Nunes. Foi apresentado originalmente durante o I SEMINÁRIO PIBID/SUDESTE E III ENCONTRO ESTADUAL DO PIBID/ES, dias 22, 23 e 24 de outubro de 2015, em Aracruz/ES.

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doras do projeto “Fotografia”. Importa ressaltar que essas experiên-cias fazem parte de uma interação entre pesquisadores da UFF e da UENF, bolsistas dos Programas OBEDUC/CAPES, PIBID/CAPES, e JOVEM TALENTO/FAPERJ, e professores da rede pública inseri-dos em dois programas da CAPES: OBEDUC e PIBID, integrados no projeto de divulgação científica financiado pelo CNPq intitula-do “A produção fotográfica como instrumento didático interdisci-plinar: uma interação entre a física, química, história, geografia e arte”. Vale ressaltar, ainda, a participação dos estudantes das turmas de Formação de Professores e das turmas do Programa Ensino Ino-vador, ambos do Colégio Estadual João Pessoa. Ao longo dos dois anos também foram realizadas oficinas de divulgação científica no Instituto Federal do Espírito Santo, campus de Ibatiba, e durante as Semanas de Ciência e Tecnologia (2014 e 2015) nas dependências das universidades UENF e UFF, nas dependências do Colégio Esta-dual João Pessoa, e durante o Festival Interuniversitário de Cultura (FESTFIC), realizado em Campos dos Goytacazes em outubro, cul-minado com uma exposição das fotografias produzidas no Centro Cultural Vila Maria (2015).

Todas as atividades ocorreram em formato de oficinas, onde em cada uma era proposto um tema para a realização dos exercícios de pensar/fazer/analisar as fotografias a partir do método artesa-nal e como articular esses exercícios aos diferentes conceitos advin-dos de variadas áreas do conhecimento. Assim, os exercícios con-sistem em etapas da produção fotográfica exigindo a discussão de fenômenos físico/químicos; de fenômenos geográficos, históricos e de fenômenos comumente explicados no campo das artes visuais, e ao final buscava-se articular esses conhecimentos demonstrando o significado de uma produção de conhecimento interdisciplinar a partir das orientações de Edgar Morin.

Assim, para cada fenômeno busca-se a definição de conceitos comumente tratados em momentos distintos na educação escolar formal e separados pelas disciplinas, mas que, com o fazer fotográ-fico, faz com que os bolsistas de iniciação à docência, professores e estudantes do ensino médio compreendam que a produção do conhecimento se faz de forma inter e transdisciplinar e que a divi-são do conhecimento em disciplinas ocorreu de forma autoritária e

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dificulta a compreensão dos fenômenos naturais e sociais e impede que se pense esses fenômenos relacionalmente, conforme nos orien-ta Pierre Bourdieu.

A seguir serão apresentados os exercícios e os conceitos en-volvidos em cada um deles, bem como os métodos de produção e os produtos criados. A criação de um produto em cada um dos exercícios é um passo importante, pois incentiva a produção do conhecimento a partir de um fazer articulado ao pensamento e ao método: articular o pensar ao organizar o pensamento, criar um método, selecionar os materiais a serem utilizados para, en-fim, produzir.

1. Os exercícios e os conceitos envolvidos

Partir do fazer pensar e seguir para o fazer fotográfico organi-zado em exercícios pode-se demonstrar como a produção do conhe-cimento se faz de forma articulada, indissociável e integrada. Após os exercícios, os estudantes de graduação e bolsistas dos programas PIBID e OBEDUC ministram aulas teóricas para tratar cada um dos conceitos que foram identificados em cada exercício. As atividades de exercícios práticos são alternadas com aulas expositivas teóricas e leituras do material didático proposto pelo professor responsá-vel pela disciplina ou um professor ministrando uma palestra sobre um dos temas. Com isso, demonstrávamos também a importância dos diálogos entre professores e estudantes de diferentes níveis de formação, criando um ambiente de produção do conhecimento ho-rizontalizado.

a) A história da fotografia e a fotografia na históriaAntes de iniciarmos os exercícios fotográficos práticos reco-

nhecemos a importância de apresentar aos estudantes do ensino médio a história da fotografia e a fotografia na história. Optamos em organizar uma palestra a partir da experiência sensorial com câmeras fotográficas antigas; com filmes fotográficos de rolo usa-dos nessas câmeras; com a manipulação de fotografias antigas reveladas em preto e branco; e com monóculos e slides. E a partir da exposição dos objetos os estudantes formulavam perguntas es-

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pontaneamente. Essas questões estavam relacionadas ao período histórico de cada câmera; como se fazia para fotografar com cada uma das câmeras; como se fazia para ter uma fotografia em preto e branco ou uma colorida; quanto tempo demorava para fazer cada fotografia.

A partir da manipulação dos objetos, elabora-se uma linha do tempo (Figura 1) relacionando a evolução técnica das câmeras fo-tográficas; o tipo de revelação usado para cada tipo de fotografia produzida e apresentamos uma fotografia produzida em cada pe-ríodo para assim associarmos aos períodos históricos mundiais; os grandes acontecimentos históricos como as guerras mundiais; as revoluções populares; as ditaduras no Brasil e em outros países na América Latina. Demonstrando para os estudantes a importância da imagem para a história e para se refletir sobre o presente e sobre o futuro da humanidade.

Uma das questões que surge nesse exercício é o valor que se deve dar aos objetos antigos. Os estudantes reconhecem nesses obje-tos o valor histórico e o valor do conhecimento envolvido na produ-ção de cada um desses objetos. Também passam a valorizar as foto-grafias antigas de suas famílias, pois reconhecem nessas fotografias as histórias de um lugar.

Após as perguntas buscava-se elaborar as respostas a fim de produzir uma linha do tempo das câmeras fotográficas e assim tratar sobre a história da fotografia e o tipo de fotografia que era produzido em cada um daqueles períodos históricos; as formas de impressão das imagens; os meios de divulgação e circulação das ima-gens, até chegar na era digital; e fazê-los refletir sobre como eles fotografam atualmente, como eles armazenam suas imagens, por quais meios eles fazem suas imagens circularem pelo mundo e a velocidade com que isso acontece. Pensar sobre o que fotografar, por que fotografar, se deve ou não divulgar tal imagem e por quais meios, passa a ser um ato de mais responsabilidade consigo e com os demais, visto que nem sempre o efeito a ser produzido por uma imagem disseminada por uma rede social foi previsto no momento da divulgação. O próximo exercício é a produção de câmeras escu-ras, levando à origem da fotografia.

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b) A produção das câmeras escuras artesanaisAs câmeras escuras artesanais são objetos de simples confec-

ção e servem, principalmente, para iniciarmos as discussões sobre a trajetória e o comportamento da luz. Um fenômeno físico que se constitui no princípio da fotografia, mas que também foi bastante difundido pelos pintores para suas pinturas de paisagens e de re-tratos. O exercício do olhar, como primeiro método da produção do conhecimento científico se constitui em um dos objetivos dessa etapa do projeto.

Para fazer uma câmera escura é necessário que haja uma folha de papel cartão na cor preta, uma lupa escolar (30mm), uma folha de papel vegetal, cola e tesoura. Com esses objetos é possível vi-sualizar o funcionamento de uma câmera fotográfica por dentro e visualizar a formação de uma imagem invertida, o que faz com que se aguce a curiosidade dos estudantes sobre como isso acontece.

Figura 1 ExERCÍCIO DO OLHAR COM AS CâMERAS ESCURAS ARTESANAIS.

Fonte: Elis Miranda – março/2013 – Primeira oficina de confecção de câmeras escuras para bolsistas PIBID e OBEDUC.

Após discutir sobre a importância do olhar para a produção do conhecimento científico, discutem-se os conceitos da física envolvidos, como a trajetória retilínea da luz, reflexão e refração. E discute-se a importância desse elemento para a produção artística e para a história

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da arte. Demonstra-se, com cenas do filme A moça do brinco de pérolas, a importância desse elemento para os pintores do século xVII. Sem a câmera escura teria sido possível Johannes Vermeer (1632-1675) pin-tar o seu quadro mais famoso, A moça do brinco de pérola?

Além de Vermeer, outros pintores do século xVII utilizaram esse recurso para a pintura de paisagens, de monumentos e de re-tratos. Marcando um momento da produção artística a partir de um novo método de pintar. Mas há autores, como David Hockney (2001), que acreditam que as câmeras escuras já vinham sendo usa-das desde o século xV, quando ocorreram mudanças nas pinturas, como o realismo das imagens, a profundidade de campo, a perspec-tiva, só possível com o uso de objetos ópticos auxiliares. A pintura O casamento de Arnolfini, pintado em óleo sobre madeira por Jan van Eyck em 1434, pode ser a obra exemplar para essa afirmação de Hockner2, onde as feições do casal podem ser consideradas fiéis aos sujeitos pintados.

O exercício a seguir serve para demonstrar como se pode dese-nhar com a luz quando se tem um papel que foi emulsionado com produtos químicos sensíveis à luz. Onde a luz é incidida diretamente ocorre um tipo de fenômeno, e quando a luz atravessa um objeto ocorre outro tipo de fenômeno. Mas a visualização desses fenômenos só é possível a partir de uma reação físico-química, ou seja, primeiro se expõe o papel à luz e depois leva-se esse papel aos banhos químicos.

c) Fotogramas e a distinção entre objetos transparentes, opacos e translúcidos O fotograma é uma forma de apresentar aos estudantes os

conceitos de transparência, opacidade e translucidez. Colocam-se os objetos sobre um papel fotográfico e incide-se luz em tempo suficiente para que a imagem desse objeto fique impressa no pa-pel. Até aqui o processo é físico. Após a exposição à luz leva-se esse papel ao banho em três bandejas com químicos preparados anteriormente: a) revelador; b) interruptor c) fixador; e por fim um banho em água corrente para a lavagem do papel e a retirada

2 TOMAZI, Carolina; SCHWARTZMANN, Saulo Nogueira. A projeção especular da imagem do artista e o jogo de enunciação. Revista Rumores, número 18, volume 9, julho-dezembro/2015.

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de qualquer vestígio químico que possa permanecer e continuar o processo de reação química do papel ao voltar ao contato com a luz e com o ar. Nesse exercício observa-se como se deu a passagem da luz sobre cada tipo de objeto, verifica-se o efeito sobre o papel quando a luz não atravessa nenhum objeto: onde não havia objeto o papel fotográfico torna-se preto e onde havia objeto as cores variam em uma escala de cinzas ao branco. E essa escala de cores nos dará as informações sobre a transparência, a opacidade e a translucidez do objeto.

O fotograma também pode ser usado em atividades artísticas, onde cada estudante pode produzir fotogramas utilizando flores e folhas que se encontram nos jardins próximos e, com uma fonte de luz qualquer, com efeitos de luz, sombra e penumbra, criar imagens únicas.

Outro ponto para a discussão a partir dos fotogramas é, com o auxílio de um professor de biologia, demonstrar as partes com-ponentes de uma flor, como as pétalas e pistilos; as origens de suas cores; demonstrar o lugar em que as flores armazenam seu pólen; fazer os estudantes provarem os pólens, os perfumes das flores e a textura das folhas.

Figuras 2 e 3 FOTOGRAMAS DAS FLORES.

Fotos: Elis Miranda (2015).

Após a demonstração do efeito da luz sobre o papel fotográ-fico, como a luz se comporta ao transpassar objetos transparentes, opacos e translúcidos, passamos para a demonstração da trajetória da luz a partir do próximo exercício.

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d) As câmeras fotográficas artesanais do tipo pinholeA confecção de câmeras artesanais do tipo pinhole teve por

objetivo principal disseminar as técnicas iniciais da fotografia, e como a fotografia é antes de tudo um fenômeno físico. Essa câme-ra consiste em uma lata de alumínio com tampa do mesmo mate-rial3. Primeiro, faz-se um furo na tampa de alumínio, com um pre-go; depois, cola-se um pedaço de alumínio (recortado de material reciclável) em frente a esse furo; faz-se um buraco com uma agu-lha4 nesse pedaço de alumínio recortado, para que seja permitida a passagem da luz por um orifício bem menor do que aquele feito pelo prego. Depois pinta-se a parte interna da lata usando tinta spray de cor preta e opaca, para que se crie o ambiente necessário para a formação da imagem no interior da câmera. Pronto, você já tem uma câmera do tipo pinhole.

Não é possível ter o controle sobre a imagem que se formará no interior dessa câmera, mas com a ajuda de uma câmera de celular é possível ter uma ideia do enquadramento do objeto a ser fotogra-fado. O auxílio do celular foi um recurso proposto pelas alunas do curso de formação de professores e depois usado por todos os par-ticipantes das oficinas.

Também é possível montar uma câmera pinhole em madeira ou em materiais encontrados na natureza, como uma cuia, também conhecida como cabaça. O procedimento é o mesmo para a lata, mas os resultados adquiridos são bem distintos daqueles produzidos com o uso da lata. Nas câmeras de madeira as imagens são mais bem definidas, com linhas mais retas. Na câmera de cuia o alcance é de um ângulo de 180º, como se estivesse usando uma lente do tipo grande angular.

3 Nas nossas oficinas recomendamos as latas de leite em pó Ninho por terem a tampa de alumínio e que são bem vedadas. Outros tipos de latas podem ser usados, desde que tenham a tampa de alumínio também. Outro recipiente que pode ser usado para fazer câmeras pinholes são os tubos de filmes de rolo. Mas devem ser apenas aqueles em cor preta com tampa igual. 4 A melhor agulha é a que acompanha a seringa usada para aplicar insulina. É uma agulha firme e seu diâmetro é apropriado para a distância focal da lata de leite Ninho.

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Figuras 4, 5, 6 e 7 MODELOS DE CâMERAS CONFECCIONADAS: CâMERA CUIA; CâMERA DE LATA; PINHOLE DE MADEIRA; CâMERA JUMBO.

Fotos: Elis Miranda (produzidas entre 2013 e 2015 em diferentes oficinas e apresentadas em distintos eventos).

Um conceito discutido durante a confecção das câmeras pinho-les foi o de distância focal, ou seja, a distância existente entre o furo (buraco da agulha) e o papel fotográfico. Os bolsistas Pipid/física demonstram, com uma fórmula matemática, como saber se aquela lata possui a distância focal necessária para a formação de uma ima-gem. Além dos conceitos de reflexão e trajetória retilínea da luz, uso de lentes do tipo convergente e divergente e os resultados obtidos com cada uma dessas lentes. Como os tipos de lentes e trajetória retilínea da luz já foram objetos de discussão quando foram confec-cionadas as câmeras escuras de papelão, os estudantes voltam para essa discussão a fim de sanar dúvidas ainda persistentes.

A câmera jumbo, como foi batizada a câmera de madeira onde é possível entrar no objeto e visualizar a trajetória da luz em seu in-terior, foi descrita como um momento mágico: os estudantes perma-neciam em seu interior para terem certeza de que não se tratava de mágica e sim de um fenômeno físico, onde a paisagem, as pessoas e os objetos aparecem de ponta-cabeça dentro da câmera jumbo.

Após a visualização da imagem no interior da câmera, passa-mos para o processo da montagem do laboratório de fotografia ar-

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tesanal, espaço imprescindível para a revelação das fotografias que viriam a ser feitas com o uso das câmeras confeccionadas.

e) Câmera lambe-lambeA câmera do tipo lambe-lambe teve inspiração no projeto de-

senvolvido no Afeganistão, disponível na web sob a denominação de Afegan Box Camera Project5. Segundo seus idealizadores, o uso dessa câmera no Afeganistão se constitui o único meio que a popu-lação tem em ter uma fotografia para documentos – sem os quais seria impossível obter um passaporte ou qualquer outro documento que seja obrigatório apresentar uma fotografia 3x4 ou 5x7.

No Brasil, as câmeras do tipo lambe-lambe foram amplamente utilizadas até a década de 1980 com esse mesmo objetivo, fazer fo-tografias para documentos. Entretanto, com a difusão dos filmes de acetato, do barateamento das câmeras tipo Kodak e da difusão de mé-todos de revelação de fotografia em cor, essas câmeras foram sendo substituídas por lojas especializadas em fotografias para documentos e foram, pouco a pouco, desaparecendo da paisagem urbana. Apenas algumas cidades pequenas guardavam um fotógrafo de lambe-lambe. Mas os fotógrafos envelheceram e morreram ou simplesmente muda-ram de profissão e essas câmeras desapareceram das ruas.

Figura 8 A CâMERA LAMBE-LAMBE NA SEMANA DE CIêNCIA

E TECNOLOGIA – 2014.

Foto: Elis Miranda.

5 Afegan Box Camera Project: disponível em http://www.afghanboxcamera.com/

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A ideia de produzir uma câmera do tipo lambe-lambe surgiu como um resgate da história da fotografia e também como um pro-jeto de criação artística de fotografias em lugares públicos. Assim o grupo aceitou o desafio e produziu uma câmera lambe-lambe, cuja primeira demonstração se fez na Semana de Ciência e Tecnologia de 2014 nas dependências da UFF/Campos.

Figura 9 A PRIMEIRA FOTOGRAFIA REGISTRADA COM A CâMERA

LAMBE-LAMBE. IMPRESSÃO EM PAPEL FOTOGRÁFICO.

Figura 10 FOTOGRAFIAS PRODUZIDAS A PARTIR DA CâMERA

LAMBE-LAMBE: FILMES ODONTOLóGICOS.

Fotos: Kaique Fumero, 2014 e 2015.

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22 parte i - SOBRE POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO

As primeiras fotografias da câmera lambe-lambe foram feitas em papel fotográfico. Entretanto, vimos que as imagens não saí-am nítidas. Buscamos outro suporte e encontramos a alternativa em filmes odontológicos, vendidos em lojas de produtos odonto-lógicos. Tais filmes produziam imagens nítidas, com profundida-de de campo e em tempo de exposição bem menor. Se ao usar papel precisávamos permanecer com o obturador aberto por 30 segundos, com os filmes odontológicos passamos a fotografar com dois segundos.

f) O laboratório fotográfico para revelação artesanal é precário para fotos em preto&branco A montagem do laboratório fotográfico consiste em um mo-

mento em que todos devem participar. Usualmente utilizamos um banheiro de pouco uso ou que esteja interditado. O banheiro é o melhor lugar por haver a necessidade de uso de água corrente. No Colégio Estadual João Pessoa há um laboratório de ciências natu-rais6 utilizados pelos professores de Química e Física.

Entretanto, para usar esse laboratório para a fotografia foi ne-cessário vedar todas as entradas de luz com plástico tipo blackout para garantir a segurança na manipulação do papel fotográfico, que é sensível à luz. O passo seguinte foi dispor as bandejas para receber os químicos para a revelação, interrupção e fixação.

Os químicos utilizados são comprados em lojas especializadas em material fotográfico. Esses químicos vêm em embalagens com o produto concentrado e devem ser diluídos em água com o controle da luminosidade do ambiente e da temperatura da água, seguindo as instruções da embalagem. A manipulação dos químicos, no mo-mento da diluição, só é feita pela coordenadora das oficinas, pois precisa haver cuidados com a inalação e o contato com a pele, de-vendo ser feita sempre com luvas e máscaras.

6 Esse laboratório foi construído com recursos da FAPERJ, em projeto coordenado pelo professor doutor Juraci Aparecido Sampaio quando ele colaborou com o Pro-grama de Iniciação à Docência (PIBID/Física/UENF), em 2012.

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Figura 11 LABORATóRIO FOTOGRÁFICO MONTADO NA UNIVERSIDADE

FEDERAL FLUMINENSE (UFF/CAMPOS).

Fotos: Elis Miranda (2014).

Após a diluição, colocam-se os químicos nas bandejas e realizam--se os testes com o papel fotográfico. O teste serve para saber se há ou não necessidade de diluir em proporções 1 para 9, no caso do revela-dor, e 1 para 6 no caso do fixador. Para o interruptor usamos uma co-lher de vinagre. A manipulação do papel junto aos químicos só pode ser feita com o uso de pinças para que não haja contato com as mãos, pois há riscos de reações e desencadeamento de processos alérgicos.

Outro equipamento importante para a montagem do laborató-rio é a luz vermelha, ou luz de segurança. Os bolsistas PIBID/Física explicam a composição da luz, o conceito de comprimentos de onda e o motivo pelo qual a luz vermelha é a única a ser utilizada no labo-ratório fotográfico. Utilizam a figura de um arco-íris para mostrar a composição da luz, o conceito de cor e ausência de cor; discutem a relação entre cores e absorção da luz.

A manipulação dos químicos para a revelação, a observação das reações dos químicos sobre o papel fotográfico só ocorre após a saída fotográfica, pois é importante que os estudantes vejam as imagens surgindo sobre o papel branco. Nesse momento da mani-pulação os estudantes se questionam sobre as reações que ocorrem

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quando o papel fotográfico é mergulhado no revelador e uma ima-gem submerge. Alguns estudantes perguntam se isso é mágica.

Os processos químicos são explicados quando os estudantes entendem que a fotografia é primeiro uma reação física e depois é uma reação química. Física é o momento em que a luz penetra para o interior da câmera e sensibiliza o papel fotográfico, mas sem os reagentes químicos não seria possível visualizar as imagens.

Nesse momento apresentamos diferentes processos químicos que foram estudados desde o fim do século xIx, e a evolução desses processos na medida em que os cientistas interessados nos proces-sos químicos estudam a produção dos seus antecessores, e só assim podem criar um novo conhecimento. Assim, discutimos a importân-cia dos clássicos em qualquer área do conhecimento e os estudantes entendem a importância da leitura e da pesquisa para a criação de novos equipamentos para qualquer área do conhecimento.

g) Saídas fotográficas e as imagens do patrimônioAs saídas fotográficas constituem um momento muito impor-

tante para a realização das atividades do projeto. Antecede a saída fotográfica uma palestra sobre o conceito de patrimônio e uma pa-lestra sobre os patrimônios da cidade de Campos dos Goytacazes, como uma preparação para o que fotografar.

Figura 12 MINISTRANTE DE PALESTRAS SOBRE PATRIMôNIO: PROFESSOR

LEONARDO VASCONCELLOS.

Foto: Elis Miranda (2014).

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Uma semana após as palestras e o incentivo para que os estu-dantes observem melhor a sua cidade e/ou as vilas dos distritos e possam identificar o que pode ser classificado como patrimônio e em que categoria se enquadra, se é um patrimônio natural, cultural ou arquitetônico e se acredita ser importante a preservação desses patrimônios, aí os estudantes passam a ter uma ideia sobre o que é interessante para ser registrado em fotografia.

Figuras 13 e 14 SAÍDA FOTOGRÁFICA PARA A ÁREA URBANA DE CAMPOS E PARA A BAIxADA CAMPISTA – REGISTROS COM PINHOLE.

Fotos: Elis Miranda (2014; 2015).

As saídas fotográficas aconteceram em diferentes momentos ao longo dos dois anos, com a finalidade de envolver todos os en-volvidos no projeto. Assim, realizamos saídas fotográficas com os estudantes OBEDUC e PIBID para que eles pudessem introspectar a importância desse momento para a realização do projeto; depois fizemos saídas fotográficas com cada uma das turmas do Colégio Es-tadual João Pessoa e em cada oficina realizada durante as Semanas de Ciência e Tecnologia (2014 e 2015), além da oficina ministrada durante o FESTFIC (2015).

Nas saídas fotográficas, um bolsista do programa OBEDUC rela-ta a evolução urbana de Campos e aponta os objetos geográficos sig-nificativos para cada momento histórico vivido na cidade e em cada um dos roteiros que foram feitos. Foram criados dois roteiros geo--históricos: a) um roteiro na área urbana da cidade, onde passávamos por pontos onde ainda é possível identificar objetos geográficos de tempos pretéritos ainda presentes na paisagem; e b) o roteiro para a região denominada Baixada Campista, onde encontram-se concentra-

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dos os objetos geográficos advindos dos períodos colonial (como as igrejas) e imperial (como as usinas, ferrovias e estações ferroviárias).

Na área urbana observa-se a abundância de estacionamentos nas áreas centrais e lembra-se o que o palestrante relatou sobre a de-molição de prédios tombados e que deram lugar a estacionamentos. O bolsista OBEDUC faz observações sobre o Mercado Municipal de Campos e discute o projeto e as noções de planejamento urbano e a importância da participação da sociedade nesses projetos que trans-formam o espaço urbano.

Na área da Baixada Campista observou-se a presença de ruínas dos objetos geográficos advindos do período em que a região vivia sob a economia açucareira. As ruínas de usinas e engenhos, as ruí-nas das estações ferroviárias e a presença, mesmo que em desuso, das linhas férreas.

Figuras 15, 16 e 17 RESULTADO DAS SAÍDAS FOTOGRÁFICAS – IMAGENS

COM AS PINHOLES.

Fotos: Estudantes do Colégio Estadual João Pessoa (2013; 2014; 2015).

Das imagens produzidas durante os trabalhos de campo foram selecionadas aquelas mais expressivas e significativas para a produção dos cartões postais de Campos dos Goytacazes e do livro de imagens do patrimônio arquitetônico e histórico desse município que guarda a memória de um período importante da formação territorial, econômi-ca, social e cultural do Brasil, mas que aos poucos estão desaparecendo para dar lugar a novos objetos sem os mesmos valores daqueles.

h) Preparação de químico para emulsionar papelAlém dos químicos produzidos industrialmente, usados nas re-

velações, o projeto também propôs a produção de químicos para a emulsão de papéis. Assim, discutimos os conceitos da Química e a evolução desse campo a partir da produção fotográfica.

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A descoberta e o aprimoramento de alguns processos químicos foram de vital importância para o processo fotográfico, e o desen-volvimento da fotografia, por sua vez, gerou aprimoramento do co-nhecimento químico. A emulsão de haletos7 combinados com com-postos de prata (AgNO3) foi a mais utilizada e difundida no mundo da fotografia. A velocidade da reação e a qualidade da imagem pro-duzida são os principais fatores para a grande difusão da emulsão de nitrato de prata. Porém, antes de se chegar a essa solução, a foto-grafia passou por vários processos, e alguns deles serão abordados nesse tópico, com evidência para a emulsão de compostos de prata.

Essa emulsão é obtida através da combinação de um haleto so-lúvel com uma solução neutra de nitrato de prata. O haleto, que pode ser de amônia ou potássio, tem a função de sensibilizar a solu-ção neutra. A adição de iodeto de prata potencializa a sensibilidade da mistura. A solução resultante é misturada com gelatina, e essa mistura dá origem a uma emulsão, o que possibilita ser aplicada sobre um suporte, geralmente uma película plástica, ou papel8. O rolo de filme 35mm é obtido através da aplicação da emulsão sobre a película, e o papel fotográfico é obtido aplicando-se a emulsão sobre o papel.

Após o ato fotográfico é preciso revelar a película. O processo de revelação consiste em remover a parte da emulsão que não foi sensibilizada e, posteriormente, fixar a parte que foi sensibilizada. No início do século xVII já se tinha conhecimento sobre o escure-cimento de alguns compostos de prata, e a contribuição de Angelo Sala impulsionou mais ainda esse conhecimento submetendo esses compostos a testes e analisando os resultados. Porém, concluíra que o escurecimento da prata se devia à ação do calor e não à luz.

Apenas no século xVIII essa hipótese é desconstruída, quando Johann Heinrich Schultz submete os compostos de prata a outros testes e conclui que o escurecimento da prata se deve à ação da luz. Os compostos de prata eram sensibilizados, mas havia o problema da fixação da imagem, pois, com o tempo a imagem toda era escu-recida. Thomas Wedgewood, em 1802, apresentou um “método de

7 Haletos são substâncias que contêm elementos halogênios (do grupo 17 da tabela periódica) em sua composição.8 VIEBIG. Tudo Sobre o Negativo, p. 16.

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copiar objetos em vidro pela ação da luz solar em nitrato de prata” (WEDGWOOD, 1802). Técnica conhecida como fotograma9. O pro-blema da fixação só foi resolvido com a descoberta do tiossulfato de sódio, conhecido como hipossulfito, descoberta que se atribui a Louis Jacques Mandé Daguerre10, e a ele se atribui também a inven-ção do daguerreótipo, apesar de que no Brasil, em 1832, Hercules Florence tenha obtido resultados de processos de fotografia, revela-ção e fixação muito semelhantes.

A invenção de Daguerre e Niépce era bem diferente do que entendemos hoje por fotografia. A começar pelo suporte: uma placa de cobre, o que impossibilitava que a fotografia fosse replicada. Essa placa de cobre era revestida por uma película de prata, e para sensi-bilizar o cobre a placa era inserida em um recipiente fechado onde a superfície que continha o cobre entrava em contato com vapores de iodo. A reação do vapor de iodo com a superfície de cobre gera como produto o iodeto de prata (AgI), que é sensível à luz. Essa placa fotossensível é inserida em uma câmara escura para que seja feita a fotografia.

No processo denominado de calótipo, ou talbótipo, o suporte usado era o papel, o que permitia que o negativo fosse reproduzido, porém a qualidade do positivo era muito inferior ao resultado do daguerreótipo; devido ao papel ser um material translúcido, a pas-sagem da luz é difusa, o que deixa os positivos com um aspecto sem foco, com os contornos pouco nítidos. Esse processo foi desenvolvi-do por Henry Fox Talbot em 1839.

Para a revelação do tipo chapa úmida, ou ambrótipo, a utili-zação do vidro como suporte e a emulsão formada por nitrato de celulose e iodeto solúvel sensibilizado com nitrato de prata supera a qualidade do daguerreótipo. A possibilidade de replicação dos positivos com ótima qualidade torna a ambrotipia a prática fotográ-fica mais utilizada. Sua invenção, em 1851, pelo escultor Frederick Scott Archer, foi aprimorada 20 anos depois pelo médico Richard L. Maddox que utilizou como suporte filmes de rolos e, como emulsão, gelatina seca de alta sensibilidade.

9 JORENTE; MADIO; SANTOS. Imagem, fotografia, imagem, p. 5.10 Fotografia, Manual Completo de Arte e Técnica, p. 11.

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A experiência do papel fotossensível artesanal nas oficinas foi possível de ser feita. Reproduzimos a feitura do papel fotográfico a fim de aprender um pouco mais partindo da experiência. Encontra-mos uma receita para isso no endereço: https://alternativafotogra-fica.wordpress.com/tag/emulsao-fotografica/. Seguindo as instru-ções, preparamos uma solução neutra de concentração de 12% de nitrato de prata. Em seguida preparamos a gelatina sensibilizante com gelatina comum incolor. Ao preparo da gelatina comum adicio-na-se 5g de cloreto de sódio e 2g de ácido cítrico. Quando a solução estiver homogênea é preciso mantê-la a uma temperatura entre 50 e 55ºC. O próximo passo deve ser feito em uma sala escura, comple-tamente vedada de luz.

Figuras 18 e 19 PREPARAÇÃO DA EMULSÃO ARTESANAL11.

Fotos: Elis Miranda (2015).

No escuro, a solução é adicionada à gelatina. A mistura causa a reação que formará o cloreto de prata, sensível à luz. É preciso que essa mistura permaneça em banho-maria na temperatura indicada acima durante 20 minutos para que os cristais de cloreto de prata se formem regularmente. Ao término desse tempo a emulsão já está pronta para ser aplicada no papel. Para se obter um resultado satis-fatório sugerimos que sejam aplicadas três demãos de emulsão em papel tipo canson com gramatura 300mg.

11 Agradecemos ao professor doutor Juraci Aparecido Sampaio pela doação dos químicos e pelo empréstimo do seu laboratório para a produção da emulsão ar-tesanal. Essa preparação também teve a participação da professora Elis Miranda (coordenadora OBEDUC/UFF) e do professor Thiago Muniz (Ucam-Campos).

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Figuras 20 e 21 FOTOGRAMAS: ExPERIêNCIA COM PAPEL EMULSIONADO

ARTESANALMENTE.

Fotos: Elis Miranda (2015).

Os experimentos com as emulsões químicas para sensibilizar os papéis ainda encontram-se em andamento. Ainda precisamos testar a eficácia desse papel para o uso em câmeras do tipo pinhole e para a con-fecção dos positivos. Não sabemos, ainda, se será possível reproduzir os positivos dos fotogramas aí demonstrados e das fotos feitas com as pinho-les. Outro teste a ser feito é a sensibilização de vidros e placas de cobre.

i) O positivadorApós a revelação das fotografias no laboratório, os estudantes

viam que as imagens apareciam no papel de forma invertida. Além de estarem de ponta-cabeça, as cores também estavam invertidas. Quando o objeto era branco, na imagem apareceria em preto e tudo que estava em preto, aparecia em branco. Explicamos que aquela imagem era denominada de negativo e que para visualizarmos as fotografias de forma nítida, precisávamos dos positivos.

Mas como poderia fazer os positivos das imagens em negativo? De duas formas: a) usando um scanner e tratar a imagem digitalmente; e b) fazendo o positivo por contato, de forma artesanal. Mas para fazer essa segunda forma precisaríamos de um objeto denominado positivador. E foi nesse momento que decidimos produzir o nosso próprio positiva-dor com o auxílio de um marceneiro profissional e com a participação dos bolsistas PIBID/Física que criaram o projeto do objeto.

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Figura 22 O POSITIVADOR.

Foto: Elis Miranda (junho/2014).

A partir da confecção do positivador os estudantes do ensino médio puderam preparar os positivos das imagens, sem, no entanto, abrir mão das tecnologias disponíveis, como o scanner e o celular, que também fotografava a imagem em positivo feita pelo scanner, apenas utilizando os recursos disponíveis nos aparelhos.

j) Soligrafia – a fotografia da trajetória do SolInspirados pelas experiências de um grupo denominado de

“Time in can”12 decidimos testar a técnica denominada de soligra-fia, técnica que consiste em registrar o deslocamento do Sol no céu durante semanas, podendo ser no mínimo duas semanas, mas pode permanecer em exposição por meses, indefinidamente. É uma téc-nica semelhante à da câmera pinhole; a diferença está no tempo de exposição e no processo de revelação. O tempo de exposição para obtenção de uma imagem com câmera pinhole pode ser de no mí-nimo 1 segundo, enquanto para a soligrafia o tempo de exposição deve ser de no mínimo duas semanas.

No que se refere à revelação, o processo da soligrafia (Figura 26) nos surpreendeu. Não há necessidade de revelar. Ao retirar o

12 Soligrafia: Time in can. Disponível em: https://www.amarilloverdeyazul.com/2012/11/viendo-pasar-el-tiempo-a-traves-de-una-lata/

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papel da câmera artesanal a imagem pode ser imediatamente visu-alizada. O papel fotográfico para fazer a soligrafia é o mesmo usa-do na câmera pinhole, papel fotográfico sensível à luz. Nós optamos por usar o papel industrial, mas ainda serão feitos testes com papel emulsionado artesanalmente com a emulsão produzida por nós.

Com a utilização dessa técnica e obtenção das imagens, pode-se trabalhar conteúdos disciplinares da Física e da Geografia. Da Física volta-se a discutir como se realiza a trajetória do Sol, pois é possível verificar na imagem a trajetória do Sol. E no que se refere ao con-teúdo da Geografia, discute-se as estações do ano, pois é possível realizar um registro da trajetória do Sol em cada estação do ano, o que possibilita demonstrar como, em cada estação, há uma mudan-ça na direção dessa trajetória do Sol, pois há uma mudança no eixo de inclinação da Terra.

Imagem 23 SOLIGRAFIA DO GRUPO PIBID/OBEDUC/CEJP

Fonte: Grupo PIBID/Física/UENF.

k) A literatura e suas interdisciplinaridadesA proposta de leitura do livro O menino e o palacete (1954), de

Thiers Martins Moreira, cuja narrativa é praticamente de dentro do Hotel Amazonas e descreve a paisagem da área central da cidade de Campos, propiciou fazer redações relacionadas ao momentos histó-

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ricos referenciados no romance, como a escravidão, declínio da eco-nomia açucareira, feminismo, entre outros; posteriormente, foi feito um levantamento dos lugares da cidade citados no livro, e posterior saída a campo com o intuito de registrar em imagens – com câmeras escuras do tipo pinhole – cada um dos lugares citados para podermos reconhecer as mudanças ocorridas na paisagem. O resultado foi a ela-boração de um mapa do romance, apresentado a seguir (Figura 15).

Figura 24 MAPA DO ROMANCE O MENINO E O PALACETE. FOTOGRAFIAS

EM PINHOLE DOS LUGARES CITADOS NO ROMANCE.

Após a leitura do romance saímos em grupos pela área da cidade retratada no livro. Depois de reconhecer que alguns lugares ainda existem, foram feitos registros fotográficos com câmeras pinhole. Os lugares citados foram: 1) o Hotel Amazonas; 2) a Igreja da Boa Morte; 3) a Catedral Santíssimo Salvador; 4) a Praça São Salvador e 5) o rio Paraíba do Sul e a Beira Rio. Percorrer o centro da cidade após ler o romance proporcionou aos estudantes a sensação de “andar dentro do livro no tempo de Campos antigo”, como declarou uma estudante.

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l) Mostra fotográfica com o resultado das fotografias de pinhole e soligrafiaA mostra fotográfica durante as semanas acadêmicas e a Sema-

na de Ciência e Tecnologia (2015) se constituirá na última etapa do projeto. Nesse momento os estudantes devem utilizar os recursos de informática para scannear as fotografias feitas em papel; depois devem criar uma imagem em positivo. Só após estarem em positi-vo é possível decidir sobre cortes na fotografia, sobre os efeitos de sombreamento, uso de filtros, todos os recursos necessários para deixar a imagem pronta para a impressão. Após imprimir, a discus-são sobre as legendas das fotografias, autoria e qual o suporte, será montada a mostra fotográfica.

A decisão sobre a mostra deve ser antecedida de uma visita guiada a uma mostra de fotografias e, se possível, o contato com o artista. Entretanto, em Campos não há nenhum espaço expositivo e os estudantes nunca visitaram uma mostra de fotografias. A al-ternativa foi pedir para os estudantes buscarem na web mostras de fotógrafos para que eles pudessem decidir sobre o suporte, o me-lhor lugar para expor, como divulgar, se possível, ver vídeos sobre artistas falando de suas mostras.

Decidiu-se pelo formato em foto-varal por ser mais barato, de fácil montagem e pela possibilidade de expor em diferentes lugares.

Figura 25 FOTO-VARAL.

Foto: Elis Miranda (2015).

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m) Cartões postais e as fotografias de patrimônio arquitetônicoOs cartões postais foram o ponto alto do projeto. A partir das

fotografias feitas com as câmeras escuras, foram produzidos mil jo-gos com quinze cartões postais distribuídos na cidade. Essa etapa do projeto teve que contar com a colaboração de um designer gráfico para a elaboração do projeto gráfico. Nessa etapa a participação do professor de artes em parceria com o professor de informática é fundamental, pois a técnica no domínio de programas de editora-ção e o conhecimento estético irá produzir um objeto de arte para a cidade. Esse material poderá ser objeto analítico em aulas futuras sobre a memória da cidade, estilos arquitetônicos, história urbana e as transformações pelas quais a cidade passa.

Considerações Finais

A partir da produção de imagens com esses métodos arcaicos de se fotografar, pudemos constituir um rico instrumento didático sob uma perspectiva multidisciplinar. Dentre os diversos métodos para a produção de imagem e visualização de imagem, podemos dar um destaque à câmera escura de papelão, e também um principal destaque para a câmera pinhole. A escolha pela utilização de tais câmeras se justifica pela facilidade de confecção e da ampla capa-cidade que esses instrumentos proporcionam para a discussão de conceitos científicos envolvidos. Além de possibilitar a inter-relação dessas áreas de conhecimento aparentemente tão distantes, pode-se também proporcionar a aproximação entre escola de ensino básico, ensino médio, com estudantes de graduação e professores universi-tários, criando um ambiente em que a produção do conhecimento se dê horizontalmente e não verticalmente de cima para baixo.

Acreditamos que a instalação de um projeto como esse em uma escola levará à integração de professores de diferentes áreas do co-nhecimento em favor da produção do conhecimento inter-trans-mul-tidisciplinar. Intuímos que para a realização desse projeto não há necessidade de dividir os grupos a partir de séries, mas a partir das habilidades dos estudantes, fazendo com que um aluno que tenha mais habilidade com a Física possa auxiliar os demais nas etapas que envolvem mais conhecimento dessa área, e assim os grupos podem

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aprender uns com os outros e o professor ser um orientador das leituras e do desenvolvimento das atividades e não um transmissor de conhecimento.

REFERêNCIAS

AUSUBEL, D. P. Aquisição e retenção de conhecimentos: uma perspectiva cognitiva. Lisboa, Paralelo, 1999.

HOCKNEY, David. Secret knowledge: rediscovering the lost techniques of the old masters. Londres: Thames and Hudson. 2001.

JORENTE, Maria José Vicentini; MADIO, Telma Campanha de Carvalho; SANTOS, Plácida

Leopoldina Ventura Amorim da Costa. Imagem, fotografia, imagem. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. Anais... São Paulo: USP, 2008.

LAVÉDRINE, Bertrand. (RE) Connaître et conserver les photophies anciennes. Paris: CTHS, 2013.

MANUAL COMPLETO DE FOTOGRAFIA. Sobre arte e técnica. Editora Abril, 1978.

MARIEN, Mary Warner. Photography: a cultural history. London: Prentice Hall, 2011.

TOMAZI, Carolina; SCHWARTZMANN, Saulo Nogueira. A projeção especular da imagem do artista e o jogo de enunciação. Revista Rumores, número 18; volume 9; julho-dezembro, 2015.

VIEBIG, Reinhard. Tudo sobre o negativo. 6ª edição. São Paulo: Editora Iris, 1997.

GATTINONI, Christian e VIGOUROUx, Yannick. La photographie anciene. Paris: Edition Scala, 2012.

Referências WEB:

AFEGAN BOx CAMERA

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https://www.youtube.com/watch?v=anYmwdNuy-g

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https://www.youtube.com/watch?v=bRFFcB_AKYI

Registros fotográficos das atividades desenvolvidas ao longo do projeto: disponível na página do Laboratório de Pesquisa Planejamento, Cultura e Representações Espaciais

https://www.facebook.com/Laborat%C3%B3rio-Cultura-Planejamento-e-Representa%C3%A7%C3%B5es-Espaciais-401144986693194/

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parte i - SOBRE POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO 37

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https://www.facebook.com/media/set/?set=a.587781061362918.1073741882.401144986693194&type=3

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Soligrafia. Disponível em: http://blamethealcohol.tumblr.com/post/16125758923/solarigrafia. Acesso em 30 jul. 2015.

Soligrafia, La fotografia Del Sol. Disponível em: http://www.metro951.com/2015/02/solarigrafia-la-fotografia-del-sol/. Acesso em 25 Jun. 2015.

EMULSÃO FOTOGRÁFICA. Disponível em: https://alternativafotografica.wordpress.com/tag/emulsao-fotografica/.

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Sistema de habitus: cultura e educação

Gabriel Duarte CarvalhoElis de Araújo Miranda

José Luis Vianna da Cruz

Introdução

Qual o papel da educação em uma sociedade dividida em clas-ses? A educação na sua forma institucionalizada nasce paralelamen-te ao surgimento da sociedade de classe. Diferentemente do proces-so educacional presente nas sociedades primitivas, onde a educação era desenvolvida junto ao próprio processo de trabalho feito de modo coletivo, o chamado comunismo primitivo (SAVIANI, 2007, p. 154). A institucionalização educacional, ou seja, o surgimento das escolas, nasce para atender às novas demandas que surgiram como resultado de processos históricos, tais como a apropriação privada da terra e o desenvolvimento da produção, na qual fez surgir a di-visão entre aqueles que detêm os recursos e os meios de produção e aqueles que, por não detê-los, dispõem apenas de sua força de trabalho. Logo, a educação bem como os sistemas educacionais se-guem as necessidades inerentes ao modo de produção capitalista e desempenham a função de reprodução da configuração societária que se constrói a partir das relações das diferentes classes que sur-gem com a incorporação do sistema de capital, inicialmente na sua forma mercantilista, passando pelo período industrial até chegar na sua fase flexível.

Segundo Émile Durkheim (1964):

A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine.

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Com base nesse conceito podemos identificar que a educação serve como mecanismo de doutrinação que têm como objetivo man-ter a ordem social já presente. O destino social, intelectual e fun-cional de um indivíduo inserido na sociedade sofre forte influência dos conceitos e prerrogativas das elites já estabelecidas, que ao se apropriarem de entidades e organizações públicas e privadas aca-bam por disseminar a ideia de imobilidade de classe, plantando, nas frações dominadas da sociedade, as raízes de um conformismo social. Em uma sociedade habitada por grupos dominantes e domi-nados, as instituições escolares, assim como outros mecanismos de perpetuação, igreja, mídia etc., são utilizados para passar adiante a lógica dominante e a visão de mundo daqueles que, por terem nasci-do em famílias privilegiadas econômica e culturalmente, carregam as facilidades dos “tipos diferentes de capitais” acumulados.

Ainda em relação às ideias de Durkheim (1989), observamos que o sistema educacional se impõe aos indivíduos de maneira irre-versível, fazendo com que os estudantes absorvam os costumes e os hábitos próprios do grupo ao qual faz parte. Faz nascer então no in-divíduo, além do ser individual, o ser social, que irá contribuir para a “harmonia” da vida em sociedade. Para o cumprimento dessa fun-ção o Estado desempenha papel importante e fundamental, serve como legitimador da cultura dominante, logo, tudo o que diz respei-to à educação, deve passar pelo seu juízo, de forma que mesmo as instituições de ensino, tanto públicas quanto privadas devem estar sob a orientação das políticas educacionais implementadas pelo go-verno vigente. A educação, mesmo por uma lógica de mercado, nun-ca deve deixar de ser ofertada pelo Estado de forma gratuita, pois que no contrário, em caso de uma política de total privatização da rede de ensino, a oferta desse serviço ficará suscetível às variações econômicas e ao poder aquisitivo das pessoas que poderiam deixar de consumir os serviços de educação, o que consequentemente afe-taria a oferta do mesmo. Logo, independentemente do seu caráter emancipador, ou perpetuador das relações de dominação social, a educação deve ser garantida de forma pública, sob pena de deixar de existir. Em relação ao tema envolvendo Estado e educação, Mo-chcovitch(1988), em seu livro Gramsci e a escola, citando as ideias de Vanilda Paiva, nos mostra que:

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A ideia da educação como dever do estado se difunde e se firma dentro deste processo de emancipação política e fortalecimento dos estados nacionais e da ordem burguesa; os enciclopedistas e os pensadores liberais arrancam a discussão relativa à educação das massas do plano religioso para o plano laico e estatal.

Portanto, superado o período da Idade Média, na qual a escola traz correlação forte com a Igreja, conclui-se que com o estabeleci-mento da burguesia como classe e grupo dominante na ordem ca-pitalista, os sistemas de ensino passaram a ser moldados de acordo com os interesses dessa classe. A educação, como afirma Durkheim (1989), ganha um caráter “múltiplo e Uno”, ao mesmo tempo em que suscita nos indivíduos as habilidades que a sociedade considera indispensável a todos, suscita também habilidades que um determi-nado grupo social particular (casta, classe, família, profissão) consi-dera igualmente indispensável.

A discussão da educação como um dos instrumentos importan-tes na manutenção do perfil societário das sociedades capitalistas se aprofunda quando abordamos seu caráter dualista. Se tomarmos como base a definição marxista de classe social, onde de um lado te-mos a classe burguesa, proprietária dos meios de produção, e de ou-tro a classe trabalhadora, essa visualização ganha ainda mais nitidez. Como afirma Saviani (2007, p. 157), a origem da escola na Grécia antiga, como sendo o lugar do ócio, sempre esteve relacionada ao trabalho intelectual e à preparação de novos dirigentes, temos então a primeira face da educação como sendo voltada para aqueles que “nasceram” para pensar e governar. A separação entre educação e trabalho se deu pela mudança na organização da produção: o pro-cesso educativo passou a ser realizado fora do processo produtivo e em função dessa divisão; assim, a divisão entre trabalho e educação reflete também uma outra divisão, aquela entre o trabalho intelectu-al e o trabalho manual.

A crítica ao caráter dual do sistema de ensino – que reserva um tipo de escola profissional para os trabalhadores e uma outra, com características de ciências e humanidades para a formação de novos dirigentes – se dá pelo fato de essa situação não fornecer sub-sídios suficientes para as classes populares reverterem sua situação de submissão econômica, cultural e política. Quanto a isso, Frigotto

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(2007, p. 1.131), em posse das ideias dos clássicos do pensamento social, político e econômico brasileiro, nos esclarece que podemos entender a educação como processo constituído e constituinte de um projeto dentro de uma sociedade dividida em grupos sociais desiguais, o que nos possibilita ainda compreender o porquê, por exemplo, do projeto da classe burguesa brasileira não fomentar a universalização da escola básica.

Na verdade, a razão de ser das instituições são justificadas pelas necessidades dos grupos dominantes, logo, as políticas de educação, a filosofia que é repassada no seio dessas instituições e a pedagogia implementada, depende sempre das necessidades do próprio siste-ma capitalista. A introdução das máquinas exigiu dos trabalhadores um nível mínimo de qualificação geral, que foi incorporado no cur-rículo da escola elementar básica. Todavia, além da operacionaliza-ção das máquinas era preciso também a realização de tarefas como manutenção, reparos, ajustes e desenvolvimento, o que demandava uma mão de obra com um conhecimento mais específico. Essa ne-cessidade foi suprida pelos cursos profissionais, organizados junto às empresas ou por intermédio dos sistemas de ensino, e voltados exclusiva e diretamente para atender às necessidades do processo produtivo. A partir daí o sistema de ensino se dividiu então, em es-colas de formação geral e escolas profissionais. A primeira, por não estar diretamente ligada à produção, privilegia os conhecimentos gerais (intelectuais), enquanto que os cursos profissionais, ligados diretamente à produção, focam nos aspectos operacionais e especí-ficos (SAVIANI, 2007, p. 159).

Em combate a esse modelo educacional, que contribui para a formação do “cidadão produtivo, submisso e adaptado as necessida-des do capital e do mercado” (FRIGOTTO, 2007, p.1131), é que Gramsci desenvolve suas ideias sobre a escola unitária, e formula sua crítica à lógica mercadológica aplicada à educação profissional. Ele defende a criação e o desenvolvimento de uma escola única, inicial de cultura geral, humanista e formativa, que daria aos filhos da classe trabalhadora as mesmas condições de intelectualidade da-queles que se encontram na posição de dominantes na sociedade (MONCHCOVITCH, 1988, p. 55). Portanto, Gramsci aparece como um dos principais críticos desse modelo educacional, de forma que

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suas ideias influenciaram boa parte dos acadêmicos e intelectuais brasileiros.

Poucos autores terão proposto uma argumentação, em termos de princípios, tão severa contra o ensino profissionalizante. Para Gramsci, a escola profissionalizante é uma forma imediatista de sujeitar a socialização das crianças e dos jovens, a formação dos homens, à lógica da produção, e portanto, à lógica do capital, o que resulta, nas sociedades capitalistas, enrijecimento das dife-renças sociais (MONCHCOVITCH, 1988, p. 55).

No Brasil, em uma economia subdesenvolvida, que se posicio-na de forma submissa em relação à divisão mundial do trabalho, os efeitos dessa dualidade geram abismos ainda mais profundos. Fri-gotto (2007), em posse das ideias de Caio Prado Júnior, aponta três fatores que reforçam a formação social desigual brasileira e impe-dem reformas estruturais. A primeira é o “mimetismo na análise da nossa realidade histórica, que se caracteriza por uma colonização in-telectual” que, sob os direcionamentos dados por organismos inter-nacionais que, principalmente na década de 1990, foram adotados pelo governo, acabaram por moldar o nosso sistema de ensino de acordo com as necessidades do capital. Em segundo está o endivi-damento externo e a forma como nossa burguesia se relaciona com essa dívida; e, por fim, a assimétrica e desproporcional força que existe entre o poder do capital e o poder do trabalho. As peculiari-dades da burguesia brasileira que se apropriam dos mecanismos de poder para manter a condição de desigualdade presente, deixam a situação ainda mais delicada, somando isso ao fato da existência ma-ciça do trabalho informal, da precarização do trabalho formal, e dos índices ainda significativos de analfabetismo, o futuro que se enxer-ga para a superação dessas questões no Brasil parece muito distante.

Portanto, a institucionalização da educação é, como foi de-monstrado acima, uma forma de garantir a grupos já estabelecidos a manutenção da posse do poder econômico, cultural e social.

Tendo em vista que dentro de uma sociedade de classe, as dife-rentes classes, ou frações de classe, estão em constante disputa pelo poder, é que Pierre Bourdieu (2012, p. 81) nos apresenta sua visão das instituições dizendo que a razão de existir de uma instituição

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(ou mesmo de uma medida administrativa), e dos efeitos sociais que elas produzem, não está na vontade de um indivíduo, ou até mesmo de um grupo específico, mas sim no campo de várias forças que, sendo antagônicas ou complementares, contribuem para fazer valer os interesses associados às diferentes posições, bem como ao habitus inerente aos indivíduos que compõem um grupo específico. Logo, a realidade das instituições são definidas continuamente pelas vonta-des e pelas lutas entre as diferentes forças na sociedade.

Acreditando que a questão do destino social dos indivíduos das diferentes classes tem repercussão para além da lógica econômica, e que a divisão das classes sociais em nossa sociedade vai além da visão marxista que apresenta uma divisão fundamental entre aque-les detentores do processo produtivo e dos que dispõem apenas de sua força de trabalho, é que tomaremos as ideias e as obras de Pier-re Bourdieu como fundamento teórico para o presente trabalho. Logo, é com o intuito de estender a discussão que envolve educa-ção, sistemas de ensino e classes sociais que o presente trabalho é orientado principalmente à luz das ideias desse autor que, com sua conceituação mais expandida de classe social, nos permite fazer uma análise mais detalhada das engrenagens que fazem funcionar o direcionamento escolar dos estudantes em interface com a classe ou fração de classe na qual eles estão inseridos. Para tanto, preten-demos neste capítulo nos aprofundar no universo proporcionado pelas obras de Bourdieu, buscando entender conceitos-chave que ao final nos possibilitará explicar quais as razões que influenciam determinado indivíduo a buscar um tipo de qualificação mais geral ou mais específica. Contudo, precisamos saber como os diferentes grupos se relacionam, como funcionam as relações entre dominan-tes e dominados, quais as estratégias são utilizadas pelos diferentes grupos para manter as suas posições no estrato social ou para al-cançarem posições mais altas na sociedade. Devemos também saber qual o peso de cada tipo de capital em relação ao campo no qual os indivíduos têm suas relações, e entender como o habitus presente em cada agente social contribui para definir as suas atitudes, seu comportamento, seus anseios, suas necessidades, e suas estratégias, sejam elas educacionais ou não, de sobrevivência nas relações entre os diferentes grupos na sociedade.

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1. Bourdieu e a Educação

Pierre Bourdieu, sociólogo francês, é autor de uma das princi-pais teorias a respeito da dominação entre os sujeitos e suas classes em uma sociedade. De origem campesina, e filósofo de formação, alcançou um dos postos mais altos do sistema de ensino francês ao assumir como docente, na École de Sociologie du Collège de Fran-ce, ocupando a cadeira de Filosofia. Sua mudança para a área da Sociologia se deu na Argélia, onde pesquisou os meandros das re-lações da sociedade argelina dando origem ao seu primeiro livro, A sociedade da Argélia (1958). Sua experiência pessoal como professor de uma das mais conceituadas instituições de ensino francesa, e o contraste entre a sofisticação dos meios acadêmicos de alto escalão e sua origem popular serviram de motivação para que desenvolvesse sua teoria a respeito do capital simbólico que serve como fator de distinção entre as classes e frações de classe.

Ao atribuir toda essa importância à dimensão simbólica ou cul-tural na reprodução das estruturas de dominação social, Bour-dieu rompe, antes de mais nada, com o economicismo, com a tendência a conceber a estrutura social e a posição dos atores no interior dela apenas com base na dimensão econômica. Con-trapondo-se a essa perspectiva, o autor enfatiza que a estrutura social se define em função do modo como se distribuem, em dada sociedade, diferentes formas de poder, ou seja, diferentes tipos de capital (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 48).

Para tanto, o autor define sua visão da ordem social de for-ma inovadora. Os conceitos que são desenvolvidos por sua teoria servem para definir uma nova forma de interpretar os fenômenos sociais provenientes das relações entre os agentes e o meio social no qual estão inseridos. Por isso, desde o início Bourdieu explica as re-lações sociais de forma original, que se afastam da visão objetivista da estruturação das ações sociais que prevê que a ordem social é definida exclusivamente por fatores externos aos sujeitos. A teoria objetivista desconsidera, então, as motivações individuais dos agen-tes, atribuindo toda e qualquer ação como sendo influenciada por elementos exteriores que agiriam de forma inflexível para determi-

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nar as condutas individuais das pessoas. Segundo Bourdieu, quanto à atuação no meio social, o indivíduo não ficaria sujeito apenas a forças que atuam de fora para dentro e, apesar de aceitar a existên-cia de estruturas objetivas como sendo independente da vontade dos agentes, ele acredita que essas estruturas são estruturadas por uma “gênese social dos esquemas de percepção de pensamento e de ação” (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 28). Ele nega, portanto, o determinismo e a estabilidade das estruturas e considera que elas sãos constituintes de um conjunto de disposições que servem para estruturar as ações e as práticas dos indivíduos (NOGUEIRA; NO-GUEIRA, 2004, p. 26). Por outro lado, Bourdieu também se afasta da visão subjetivista, por não considerar que a ordem social é deter-minada unicamente pelas ações conscientes e intencionais dos indi-víduos (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 21). As ações pessoais, segundo Bourdieu, não seriam definidas apenas pelo sujeito, mas por um sistema completo de relações deste com seu meio social de atuação e de origem. Logo, a teoria subjetivista não considera as influências do meio social na determinação das ações individuais, mas sim que a lógica dessas ações está na racionalidade dos atores (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 30).

Portanto, é tentando caminhar entre uma e outra teoria, bus-cando um caminho alternativo para determinar a ordem social que Bourdieu introduz o conceito de habitus, que será explorado ainda neste capítulo e servirá para explicar as condutas sociais dos agentes.

“Do marxismo, Bourdieu toma as ideias da luta pela domina-ção e da ‘consciência de classe’, que integra no conceito de habi-tus” (THIRY-CHERQUES, 2006, p.30), porém ao mesmo tempo se afasta do conceito marxista por não considerar as relações de classe apenas sob o aspecto econômico ou em relação à po-sição que os indivíduos ocupam quanto ao domínio dos meios de produção.

Mais do que um expoente na Sociologia e na Antropologia, Pierre Bourdieu se destaca na área de educação influenciando as práticas educacionais na medida em que sua explicação para as di-ferenças no desempenho escolar – que relaciona a origem social com o fracasso e o sucesso escolar – é, na análise de Nogueira e Nogueira (2004, p. 12), “uma resposta original, abrangente e bem

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fundamentada, teórica e empiricamente, para o problema das desi-gualdades escolares”.

Logo, é no desenvolvimento das ideias sobre os sistemas sim-bólicos, na distinção entre os indivíduos e as classes geradas a partir desse sistemas, na relação dos conceitos de campo e habitus, na defi-nição das classes sociais presentes em nossa sociedade, na definição dos sistemas de ensino como perpetuadores das relações de classe, e no desenvolvimento das teorias a respeito da desigualdade escolar que o presente capítulo pretende, ao final, servir como embasamen-to teórico que servirá para fundamentar a pesquisa e explicar como a situação de classe, bem como a origem social, servem como fator motivador para a definição da estratégia social que resultará na es-colha da carreira escolar e da instituição de ensino.

2. O conceito de habitus

O conceito de habitus foi a saída encontrada para o dilema en-tre os princípios objetivista e subjetivista. É, na verdade, a ligação entre essas duas teorias, visto que, renegando que as práticas sociais são estruturadas mecanicamente como prevê a teoria objetivista, e que, da mesma forma, essas práticas não são estruturadas pelo in-divíduo de forma autônoma, como fala a teoria subjetivista, temos que a estruturação das práticas sociais são fruto da posição social de quem as realiza. Logo, admitir a existência de um habitus de classe, significa dizer que as estruturas estariam interiorizadas pelos indiví-duos e que ao longo da vida foi sendo constituído um esquema de disposições que age de forma não estática para determinar as ações dos agentes frente às situações. O habitus é o princípio unificador e gerador das práticas além da incorporação da condição de classe do sujeito (BOURDIEU, 2007a, p. 97) e “exprime sobretudo a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanismo etc.” (BOURDIEU, 2012, p. 60).

É então um sistema de disposições que possibilita o agente agir, sentir, pensar e se comportar de forma específica, de acordo com seu grupo e ao mesmo tempo de forma individual. Portanto, o ha-bitus carrega a característica de ser ao mesmo tempo o resultado

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tanto da história do agente, acumulada de forma individual, como da acumulação da história coletiva de sua classe.

A posição de cada sujeito na estrutura das relações objetivas propiciaria um conjunto de vivências típicas que tenderiam a se consolidar na forma de um habitus adequado à sua posição social. Esse habitus, por sua vez, faria com que esse sujeito agisse nas mais diversas situações sociais, não como um indivíduo qual-quer, mas como um membro típico de um grupo ou classe social que ocupa uma posição determinada nas estruturas sociais. Ao agir dessa forma, finalmente, o sujeito colaboraria, sem o saber, para reproduzir as propriedades do seu grupo social de origem e a própria estrutura das posições sociais na qual ele foi formado (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 29).

O habitus é responsável pela naturalidade das ações produzidas pelos indivíduos e essa característica se dá pelo fato de que as es-truturas sociais são interiorizadas pelos agentes de tal forma que as ações são produzidas de maneira inconsciente e não intencional. O indivíduo não precisa pensar em como se comportar, pois a forma de lidar com as situações já está incrustada na sua forma de ser de-vido ao habitus de classe que o acompanha desde o seu nascimento. A internalização do habitus, adquirido pela interiorização das estru-turas sociais, é profunda o suficiente para tornar imperceptível a existência dessas estruturas. São portanto, “as rotinas corporais e mentais inconscientes, que nos permitem agir sem pensar. O produ-to de uma aprendizagem, de um processo do qual já não temos mais consciência e que se expressa por uma atitude ‘natural’” (THIRY--CHERQUES, 2006, p. 33).

Em O poder simbólico Bourdieu (2012, p. 82) chama a atenção para a formação histórica do habitus quando, por exemplo, diz que as pessoas, ao retirarem o chapéu para cumprimentar uns aos outros, acabam com esse simples ato reativando, sem saber, um sinal usa-do pelos homens de armas na Idade Média que, para manifestarem suas intenções pacíficas tinham o costume de retirar o elmo de suas armaduras. A acumulação histórica das estruturas sociais em alguns casos é tão arraigada que perpassa épocas diferentes e faz com que os costumes realizados hoje sejam fruto de várias gerações passadas.

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Apesar de o habitus ser um sistema de disposições estruturado de acordo com o meio social do agente de forma durável e estável, essa estabilidade contrasta com o seu caráter flexível. Os sujeitos, ao serem colocados diante de situações que diferem daquelas pe-las quais seu habitus foi formado, teriam uma margem de atuação independente, ou seja, poderiam, sem cair no princípio objetivista, ao mesmo tempo que estruturarem suas ações com base no siste-ma de habitus, serem “influenciados” pelas estruturas presente no momento da ação. A essa flexibilidade Bourdieu chama de “relação dialética”: “O habitus seria formado por um sistema de disposições gerais que precisariam ser adaptadas pelo sujeito a cada conjuntu-ra específica da ação” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 28). É ao mesmo tempo que um sistema estruturado (disposições duráveis e transferíveis), também um sistema estruturante (condicionam as práticas).

Logo, abordando a natureza flexível do sistema de habitus, o autor abre a possibilidade de, em alguns casos, alguns indivíduos, ao longo de suas vidas, adquirirem grande volume de capital que os desviem de sua posição na estrutura social. O habitus passaria a ser inadequado à condição social de um indivíduo, como, por exemplo, nos casos em que ele consiga atingir uma posição econômica que possibilite um aumento no seu poder aquisitivo e, mesmo assim, continue com uma tendência à contenção de gastos; ou, no con-trário, um indivíduo que diante de um declínio social e financeiro, mantenha os mesmos costumes, gostos e preferências de quando tinha uma condição financeira melhor. A esse fenômeno Bourdieu dá o nome de histeresis (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 55).

“O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adqui-rido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista), o habitus, a hexis, indica a disposição incor-porada, quase postural.” (BOURDIEU, 2012, p. 61.) É, na verdade, composto por três elementos básicos: o ethos, conjunto sistemático da composição da moral e dos princípios: a héxis, que atua na es-truturação corporal e postural adquirida durante a vida do sujeito (Aristóteles); e pelo eiodos, que é responsável por definir a maneira de pensar e de assimilar intelectualmente a realidade (Platão, Aris-tóteles) (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 33).

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Portanto, o habitus é o responsável por constituir a forma como percebemos, apreciamos, avaliamos e valorizamos o mundo, e, além disso, define nossa maneira de agir e nossa postura diante das situ-ações. Uma vez que a teoria do habitus se interliga com a do campo e vice-versa, ele forma um sistema de disposições que, relacionado a um determinado campo, influencia decisivamente na nossa percep-ção, reflexão e no nosso poder de decisão.

3. Tipos de capital

Para especificar os tipos de riqueza, de conhecimento e de bens adquiridos por um indivíduo, Bourdieu, se utiliza de uma analogia ao termo capital econômico, e denomina a cada tipo de elemento constitutivo do habitus como sendo um tipo diferente de capital. Basicamente temos a existência de quatro tipos de capitais: o capital econômico, o capital cultural, o capital social, o capital simbólico e à soma de todos esses é dado o nome de capital global. Quanto maior o volume desse capital, maior será também a posição social numa sociedade de classe.

As diferenças primárias – aquelas que estabelecem a distinção entre as grandes classes de condições de existência – encontram sua origem no volume global do capital (capital econômico, ca-pital cultural e, também capital social) como conjunto de recur-sos e poderes efetivamente utilizáveis: as diferentes classes (e fra-ções de classe) distribuem-se assim, desde as mais bem providas, a um só tempo, em capital econômico e cultural, até as mais desprovidas nestes dois aspectos. (BOURDIEU, 2007a, p. 108).

Capital econômico é o termo utilizado para se referir às rique-zas materiais cujos proprietários são os indivíduos. É, como o pró-prio nome indica, a capacidade financeira do agente e os bens que ele possui, tais como: imóveis, automóveis, artigos de luxo, obras de arte de alto valor etc.

A expressão capital cultural é, além do que parece, mais do que um acúmulo de conhecimentos intelectuais. Soma-se a isso a forma como as pessoas utilizam seus bens. É, na verdade, um jeito de ser, uma maneira de identificar e apreciar a cultura legítima, uma

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tendência à sofisticação que é adquirida dentro da família. É o fator preponderante para a formação do habitus dos indivíduos, e, princi-palmente na sua forma incorporada, é o elemento da herança fami-liar que mais influenciará na trajetória social do agente, incluindo a trajetória escolar (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 60).

Quanto ao capital social, temos o “conjunto de relações sociais (amizades, laços de parentesco, contatos profissionais etc.) mantidas por um indivíduo” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 51).

E por fim temos o capital simbólico que, em boa parte das ve-zes, tem relação estreita com a posse dos outros três tipos de capi-tais. Está relacionado à forma como o indivíduo é percebido pelos outros membros de uma sociedade; é o prestígio que ele possui em relação a um campo específico. Por exemplo, uma pessoa, mesmo depois de passar por uma redução financeira permanente, tendo alterada sua posição no estrato social, pode ainda continuar a ser visto como rico, graças à manutenção de “sinais exteriores de rique-za” que manterão seu capital simbólico, muito embora seu capital econômico tenha diminuído.

A teoria de Bourdieu ainda prevê outros tipos de capitais de acordo com o campo na qual o agente transita. Em um meio musi-cal, por exemplo, o conhecimento a respeito de novos artistas, das tendências fonográficas, ou mesmo do estudo erudito de um instru-mento, pode trazer uma série de vantagens para quem o possui; no caso do capital escolar, o volume desse capital pode ser percebido pela quantidade e qualidade de títulos acadêmicos que o indivíduo possui. Importante também é destacar que um determinado tipo de capital pode ser transformado em outro dependendo do investimen-to que se faz; logo o capital econômico pode ser transmutado em capital escolar se assim forem depositadas as riquezas materiais na aquisição de determinado título, ou o capital social pode ser trans-ferido em capital econômico com a realização de um casamento por interesses estritamente financeiros.

4. O conceito de campo

O termo campo é utilizado para determinar um espaço social no qual se produz um tipo específico de bem. Os diferentes tipos de

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campo presentes em nossa sociedade coexistem de forma sincrônica e independente; são como microcosmos, espaço onde os agentes que possuem um mesmo tipo de habitus se relacionam. Quanto mais as sociedades se desenvolvem, mais cresce também a divisão social do trabalho, e com isso faz nascer uma série de novos campos resul-tantes da autonomia que ganham certos tipos de atividades. Cada campo possui, então, o seu próprio objeto, que dentre os mais varia-dos podem ser ligados às artes, à política, à educação, ao esporte, à religião, à ciência etc., que terá um princípio de compreensão espe-cífico necessário para entender o jogo de forças que se faz presente nas disputas internas do campo.

Os campos também carregam características universais, comuns a todos eles. Suas propriedades são compostas por elementos como: o habitus específico, a estrutura, o consenso em relação à opinião entre seus integrantes, e pelas “leis que regem e regulam a luta pela dominação do campo” (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 36).

Pode-se descrever o campo social como um espaço multidimen-sional de posições tal que qualquer posição actual pode ser defi-nida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim nele, na primeira di-mensão, segundo o volume global de capital que possuem e, na segunda dimensão, segundo a composição do seu capital – quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjun-to das suas posses (BOURDIEU, 2012, p. 135).

A existência de um campo é determinada pela atuação dos agen-tes dotados de um habitus específico e das instituições que lutam para defender seus interesses nos quais investem seus capitais na manutenção das posições dentro desse espaço. Para que se consiga fazer parte de um campo é preciso que se tenha um montante de capital, que se fará necessário para pôr em prática as estratégias vi-sando à conquista de tais posições. Logo, essas disputas se traduzem “em uma luta que é tanto explícita, material e política, como travada no plano simbólico e que coloca em jogo os interesses de conser-vação (a reprodução) contra os interesses de subversão da ordem dominante no campo” (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 37).

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A existência dos campos na estrutura social explicaria, por exemplo, o fato de um indivíduo depositar um grande esforço em um trabalho que não tenha um retorno financeiro à altura do empe-nho exigido pela atividade. Isso acontece já que esse trabalho pode proporcionar um ganho específico, irredutível ao valor monetário. A isso, Bourdieu explica como sendo um “efeito da ilusão constituti-va da participação num campo” (BOURDIEU, 2012, p. 97), tornando o trabalho atrativo para o trabalhador mesmo em uma situação na qual ele é explorado.

Portanto, no estruturalismo desenvolvido por Bourdieu, um conceito está entrelaçado com o outro, o habitus se relaciona com o campo, na medida em que o primeiro é o responsável pelo funda-mento das ações dos agentes, enquanto que o segundo é a estrutura que contextualiza essas atuações sociais.

5. O poder simbólico e a distinção

Superando os aspectos meramente econômicos de dominação entre as classes temos, para além da visão reducionista das relações entre os grupos sociais, outros elementos que influenciam de forma também decisiva para determinar se um indivíduo pertence a um grupo ou outro dentro de uma sociedade.

O poder simbólico, de que fala Bourdieu, é aquele exercido por um sistema simbólico que funciona, como nos explica o autor em seu livro O poder simbólico (2012), como “instrumentos de conheci-mento e comunicação” que servem para determinar, de acordo com o campo específico, quem tem o capital cultural e social necessário para transitar em meio a lugares, ocasiões e eventos que em sua natureza servem antes de mais nada para distinguir os agentes que fazem parte desse círculo.

Nas palavras de Bourdieu (2012, p. 10):

Os Símbolos são os instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunica-ção (cf. Análise durkheimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fun-damentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a condição da integração moral.

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A ideia de uma sociedade de classe vai além de uma divisão bem definida entre grandes grupos de pessoas que se aproximam por sua situação de miséria ou de riqueza. Bourdieu expande o conceito de classe abrindo a possibilidade da existência de frações de classes que, além de sua situação econômica, têm no estilo de vida um dos princi-pais fatores de distinção. Em seu livro A economia das trocas simbólicas (2007b, p.14), o autor, utilizando as ideias de Max Weber, nos esclare-ce que, além das classes, temos os chamados “grupos de status”, que seriam definidos “menos por um ter e mais por um ser”; logo, mais do que possuir determinado bem, a maneira que se utiliza esse bem delimita de forma mais precisa as linhas para se definir dentro das classes, os grupos de status ou as frações de classe.

As possibilidades culturais que o indivíduo tem no seio fami-liar é o que irão determinar a que grupo ele fará parte, contribui-rão para formar a sua subjetividade – que influenciará nos gostos pessoais, na maneira de se vestir, de decorar a casa, nos produtos que irá consumir e também na maneira de consumir tais produtos. Essa perspectiva que nos possibilita perceber no vestuário, no mo-biliário e nos produtos e serviços consumidos o estilo de vida de um grupo, significa muito mais do que meras necessidades cultu-rais ou econômicas, mas servem, principalmente, para destacar um grupo específico, dando-lhes posição diferenciada no estrato social (BOURDIEU, 2007a, p. 75).

O acesso à cultura e à educação, ou a falta dele, continuará perpetuando no interior dos indivíduos o limite social onde ele está inserido e do qual não poderá ultrapassar. Os sistemas simbólicos cumprem, então, a função de garantir a dominação de uma clas-se sobre a outra, o que Bourdieu (2012, p. 11) chama de “violên-cia simbólica”. Servem, então, como instrumentos de legitimação da dominação na medida em que inculcam naqueles que ocupam as posições menos favorecidas a ideia de que a situação social na qual se encontram é impossível de ser modificada pelo simples fato de ocuparem tal posição na sociedade. O conformismo resultante do poder simbólico exercido sobre as classes populares geram sen-timentos e discursos que conseguimos perceber no dia a dia tais como: “As coisas funcionam desta maneira” ou “Desde que o mun-do é mundo tudo sempre foi assim”.

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“O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou menos que o exercem” (BOURDIEU, 2012, p. 7). Para que o sistema simbólico funcione como instrumen-to que exerça a imposição das relações de dominação entre as clas-ses, é necessário que a parte dominada não tenha clareza da sujeição a que se submete, que, diante da cultura dominante, não perceba que tal cultura é na verdade das classes dominantes, e que só é con-siderada uma cultura superior por representar essas classes. Logo, como interpreta Nogueira e Nogueira (2004, p. 35) “as produções simbólicas participam da reprodução das estruturas de dominação social, porém, fazem-no de uma forma indireta e, à primeira vista, irreconhecível”.

As frações dominadas são, acima de tudo, dominadas no cam-po da produção simbólica, e não conseguem vislumbrar de onde poderiam vir os instrumentos dos quais necessitam para expor seu próprio ponto de vista da sociedade. Ficam impossibilitados de rom-perem com a lógica dominante de produção cultural, e de rompe-rem com o resultado gerado a partir dessas relações que culminam numa cumplicidade das estruturas sociais e mentais necessárias para reproduzir continuamente a distribuição do capital simbólico (BOURDIEU, 2012, p. 152).

É preciso chamar a atenção para o fato de que apesar de em muitos casos as frações dominantes das classes se utilizarem dos sistemas simbólicos de forma intencional – onde por meio de seus “ideólogos conservadores”, artistas e intelectuais legitimam a sepa-ração entre os grupos com base na sua própria produção simbólica – há nos indivíduos das classes dominantes, assim como nas classes dominadas, uma sensação de perpetuidade natural das condições de classe e das relações de dominação entre esses grupos. De for-ma que, desde criança, se consegue perceber no ambiente escolar a distinção, resultado do capital cultural e social que carregam do berço. “A aquisição da cultura legítima pela familiarização insensí-vel no âmago da família tende a favorecer, de fato, uma experiência encantada da cultura que implica o esquecimento da aquisição e a ignorância dos instrumentos de apropriação” (BOURDIEU, 2007a, p. 10). O indivíduo cria um sistema de disposições para a apreciação

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de determinado tipo de arte, porém não consegue identificar de onde e como adquiriu essas predisposições, tendo a falsa sensação de que elas nasceram de forma natural dentro de si mesmo. Esse tipo de pensamento contribui ainda mais para o fortalecimento do senso comum de que uns nascem para se relacionar com a cultura erudita enquanto outros apenas para com a cultura popular.

Acreditar que os sistemas simbólicos e as ações provenientes desses símbolos são apenas manifestações que nada significam além delas mesmas é não enxergar o poder que esse sistema tem de ex-primir a posição social e de manter a lógica da distinção entre as pessoas de origens sociais distintas.

Os signos enquanto tais ‘não são definidos positivamente por seu conteúdo mas sim negativamente através de sua relação com os demais termos do sistema’, e por serem apenas o que os ou-tros não são, derivam seu valor da estrutura do sistema simbó-lico e, por esta razão, estão predispostos por uma espécie de harmonia preestabelecida a exprimir o ‘nível’ estatutário que, como a própria palavra indica, deve o essencial de seu ‘valor’ à sua posição em uma estrutura social definida como sistema de posições e oposições (BOURDIEU, 2007b, p. 17).

Portanto, a distinção é o capital simbólico, não importando qual a natureza desse capital (econômico, cultural, social etc.), quan-do percebido por um agente que adquiriu, desde sua infância, os recursos necessários para decifrar de forma natural os signos que apenas uma parcela da população tem condição de decifrar. Em ou-tras palavras, o gosto, que se cria a partir da incorporação desse sis-temas de disposições, define os homens e ao mesmo tempo funcio-na como um requisito de distinção da “verdadeira nobreza cultural.”

6. A distinção e as classes sociais

A divisão dos homens em classes é um fenômeno que tem como fator inicial a apropriação privada da terra. O fato de ser pro-prietário ou não daquilo que, até antes da revolução industrial, é considerado o principal meio de produção, foi o fator motivador da divisão da sociedade em duas classes fundamentais: a classe dos

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proprietários e a dos não proprietários. Essa divisão tem caráter ontológico já que desde a Antiguidade, tanto na Grécia como na Roma antiga observamos a existência de uma divisão dual formada por uma aristocracia, que detinha a propriedade privada, e por um outro grupo formado pelos escravos (SAVIANI, 2007, p. 155). Os efeitos dessa divisão transcenderam, de forma que o caráter domi-nante/dominado está presente mesmo hoje em uma sociedade que, devido à alta divisão das atividades, possui características que ex-pandem a divisão classista para a existência de no mínimo três clas-ses sociais. A dominação de um grupo sobre o outro tem sustenta-ção na existência de uma hegemonia construída ao longo da história que, segundo Gramsci, exerce dupla função na manutenção dessas relações, sendo a primeira a função de domínio e a segunda a fun-ção de direcionamento intelectual e moral que define a cultura legí-tima numa dada sociedade (MOCHCOVITCH, 1988, p. 20). Quanto a isso, Bourdieu acrescenta que o surgimento de uma cultura do-minante é fruto das disputas simbólicas presentes entre os grupos que investem seus capitais para defender seus interesses, buscando definir, então, o mundo social de uma maneira mais apropriada e a perpetuação da sua posição social. Logo, em relação à definição das classes e a maneira como elas se relacionam, percebemos um ponto de tangência entre as ideias de Gramsci e Bourdieu, já que Gramsci, mesmo considerando que num primeiro momento essa dominação tem caráter econômico – que segue a ideologia marxista de domi-nação do capital sobre o trabalho –, também defende a ideia de que a sustentação dessa dominação econômica somente é possível me-diante uma sujeição ideológica das classes subalternas, a partir da interiorização da ideologia dominante e da ausência de uma visão de mundo que permita a essa classe se apropriar dos meios de pro-dução simbólicos, e acabam por tirar a possibilidade de uma visão autônoma do mundo social. Como nos explica Mochcovitch (ano 1988, p. 13) na sua explanação sobre a ideologia gramscimiana, “as classes dominadas ainda estão presas ao senso comum, à religião, ao folclore. Não chegaram a uma visão de mundo que lhes seja própria e adequada às suas condições reais de vida”, e acrescenta explican-do que o senso comum, assim como a religião e as crendices con-tribuem para passar uma visão de mundo conformista, ocasional

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e desagregada, típica das classes subalternas. (MOCHCOVITCH, 1988, p. 14).

Bourdieu, em O poder simbólico (2012, p. 133), defende que a construção de uma teoria sobre o espaço social requer uma ruptura com a teoria marxista na medida em que refuta a hipótese da exis-tência de uma classe efetivamente mobilizada, e chama de “ilusão intelectualista” o fato de Marx considerar a classe teórica como uma classe real. Rompe principalmente com o economicismo que reduz o campo social e multidimensional unicamente ao campo econômi-co e que, por fim, desconsidera as lutas simbólicas presentes nos di-ferentes campos. O aspecto cultural teria o mesmo peso ou mais que o aspecto econômico na legitimação e reprodução das hierarquias sociais. “As hierarquias culturais reforçariam as divisões sociais na medida em que elas são utilizadas para classificar os indivíduos se-gundo o tipo de bem cultural que eles produzem, apreciam e conso-mem” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 40).

Ao mesmo tempo que Bourdieu considera a existência de três classes sociais, fazendo referência em suas obras às classes dominan-te, média e popular, os conceitos de habitus e campo levam à expan-são dessas classes, abrindo a possibilidade da existência de frações de classe. De acordo com essa lógica, temos em uma mesma faixa social diferentes grupos que por mais que possam ser considera-dos como pertencentes a uma dessas três classes, podem apresentar habitus diferentes justamente por pertencerem a campos de produ-ção simbólica diferentes. Na definição desses grupos, as variáveis primárias (capital econômico, capital cultural, capital social, capital escolar), ou variáveis provenientes da categoria socioprofissional, assim como as variáveis secundárias (etnia, idade, sexo etc.) têm peso diferenciado dependendo do campo em que atuam. É o capital objetivado (propriedade) e incorporado (habitus) que define a classe social e forma um sistema de propriedade que serve de fator expli-cativo para a posição ocupada pelo indivíduo em cada campo possí-vel (BOURDIEU, 2007a, p. 107). Em outras palavras, entendemos que dentro de um campo específico, uma pessoa, dependendo da quantidade do capital global que possui, se encontraria em uma po-sição alta, média ou baixa dentro desse espaço específico de produ-ção simbólica. É possível, por exemplo, a existência de duas pessoas

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que, apesar de serem classificadas como sendo pertencentes à classe popular, possuam, cada uma, um habitus diferente por estarem in-seridos em campos diferentes. Logo, temos que “uma classe social possui propriedade de posição”, que é relativamente independente das propriedades da própria classe, como, por exemplo, um certo tipo de prática profissional ou de condições materiais de existência (BOURDIEU, 2007b, p. 3).

A classe social não é definida por uma propriedade (mesmo que se tratasse da mais determinante, tal como o volume e a estrutu-ra do capital), nem por uma soma de propriedades (sexo, idade, origem social ou étnica – por exemplo, parcelas de brancos e de negros, de indígenas e de imigrantes etc. –, remunerações, nível de instrução etc.), tampouco por uma cadeia de propriedades, todas elas ordenadas a partir de uma propriedade fundamental – a posição nas relações de produção –, em uma relação de causa a efeito, de condicionante a condicionado, mas pela estrutura das relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma delas e aos efeitos que ela exerce sobre as práticas (BOURDIEU, 2007a, p. 101).

Então, quanto à classificação das classes, temos que considerar que, mais do que somente o volume total de capital, ela é determina-da pela sua integração numa estrutura social, logo recebe influência de vários elementos dentro dessa estrutura. Daí ser tão complicado fazer uma analogia entre situações de grupos sociais pertencentes à mesma classe social porém ligadas a estruturas diferentes. Os mem-bros da classe alta de uma cidade do interior podem não ser aceitos em um grupo de mesmo status social em uma cidade grande, jus-tamente por que apesar de ambos pertencerem às classes altas, o fato de viverem em cidades com características diferentes fazem as posições sociais serem estruturalmente diferentes, fazendo com que as atitudes e condutas dos indivíduos não sejam compatíveis apesar de partilharem certas características econômicas, sociais e culturais (BOURDIEU, 2007b, p. 6).

A trajetória social de um indivíduo tende a ser definida por seu habitus de classe, onde as pessoas pertencentes a um mesmo grupo social traçariam suas estratégias para satisfazer suas ambições de

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ascensão ou manutenção social de acordo com os anseios ineren-tes aos membros de sua classe. Essa trajetória coletiva é parte que integra o sistema de fatores constitutivos das classes. Há também a possibilidade de um membro desse grupo traçar uma trajetória individual e, nesse caso, sob influência de fatores coletivos (guerras, crises) ou fatores individuais (encontros, ligações amorosas, privilé-gios), se desviaria daquilo que se esperava. Quanto a isso Bourdieu (2007a, p. 105) explica que:

A afirmação de que os membros de uma classe que, na origem, dispunham de determinado capital econômico e cultural, estão voltados, com determinada probabilidade, a uma trajetória esco-lar e social que conduz à determinada posição, implica dizer, de fato, que uma fração da classe – que não pode ser determinada a priori nos limites do sistema explicativo considerado – está des-tinada a desviar-se em relação à trajetória mais frequente para a classe no seu todo, empreendendo a trajetória, superior ou inferior, que era mais provável para os membros de outra classe, e desclassificando-se, assim, pelo alto ou por baixo.

Tomando como regra a trajetória coletiva como sendo de uma relevância maior, na medida em que refletem o habitus de classe que acompanha a maioria dos indivíduos, podemos a partir daí, à luz das teorias elencadas até agora, na qual temos nas ideias de Pierre Bourdieu e Gramsci os principais aportes, traçar um perfil das clas-ses populares, classes médias e classes dominantes, quanto à forma que esses grupos se relacionam entre si e com a cultura dominante dentro da estrutura social.

As classes populares, como interpretou Maria Alice Nogueira e Cláudio M. Martins Nogueira, em seu livro Bourdieu e a educação (2004), são ligadas a uma lógica da necessidade e tem como carac-terística principal a busca pela sobrevivência. Por conta do pequeno volume de capital global que possuem, seu estilo de vida é marcado pelas “pressões materiais e urgências temporais” na qual exigem dos membros desta classe investir grande parte de sua energia para o suprimento de necessidades básicas. O resultado é que tal classe não consegue desenvolver um sistema de disposições capaz de se re-lacionar com desenvoltura com a cultura legítima, uma vez que essa

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cultura é legitimada por instituições (escola, igreja, mídia) controla-das por grupos dominantes e voltada para aqueles que possuem os códigos necessários para decifrá-la.

Em relação às classes médias, temos que sua situação de nem totalmente dominante e nem totalmente dominado, faz com que seus membros em primeiro lugar se esforcem para não serem con-fundidos com as classes populares e, em segundo, para diminuir a distância que as separam das posições dominantes no estrato social. A busca pela ascensão seria então a característica marcante dessa classe e influenciaria nas suas estratégias de superação de sua con-dição social (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 74).

Esse grupo, portanto, possui um habitus propenso à acumula-ção de capitais e para isso se submete a sacrifícios na contenção de gastos, visando o investimento sobretudo no mercado escolar, pelo qual acreditam estar a escada para a ascensão social que alme-jam. Logo, essa classe se priva de prazeres imediatos em benefício de seus projetos futuros, além de apresentarem um esforço grande para adquirir os sistemas necessários para o consumo da cultura dominante. Outra característica importante é o malthusianismo, que significa a tendência ao controle de fecundidade (NOGUEIRA; NO-GUEIRA, 2004, p. 77).

Por fim, a classe dominante, como já debatido, direciona seus esforços para a manutenção de sua posição na sociedade, e o faz criando ela própria os elementos constitutivos da cultura legítima, onde, por terem acesso a espaços nos quais os outros não adentram, acabam por utilizar os organismos públicos e privados para reforçar a lógica dominante. Existe dentro dessa classe ainda uma hierarquia, que se traduz numa divisão entre aqueles que são mais ricos em capi-tal cultural, mais propensos a direcionar seus investimentos num ca-pital escolar, e a outra parte, rica em capital econômico, que assume a posição dominante dentro da classe e que perpetuaria sua posição através de investimentos de manutenção de sua fortuna monetária.

É com base nessa divisão, que determina a posição de dominan-tes para uns e dominados para outros, que Gramsci, em um sentido de não conformação com a desigualdade entre essas classes e acredi-tando que a dominação começa pela via da sujeição ao pensamento e à prática da cultura legítima – que em outras palavras significa dizer

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que se estabelece por meio dos sistemas simbólicos –, propõe uma reforma intelectual e moral como meio de vencer a luta cultural es-tabelecida, ou seja, ele acredita que por meio da educação é possível elevar culturalmente as massas populares, criando novas formas de ver o mundo, superando o senso comum e com isso conseguir elevar a qualidade de vida das pessoas e dar a elas acesso a um estilo de vida mais próximo daquele que as classes dominantes usufruem.

A luta então seria no sentido de superar a forma como é usada a educação, que segundo o entendimento de Durkheim (1989) tem a função de socializar de forma metódica as novas gerações, socializa-ção esta que é feita de acordo com os preceitos da cultura dominan-te que entre outros mecanismos é promovido pelo sistema escolar.

7. O sistema de ensino

A institucionalização, fenômeno que colocou de forma aca-dêmica os conhecimentos que antes eram transferidos no próprio processo do trabalho, demandou uma reorganização das relações sociais. Em uma retrospectiva da história das instituições de ensino vemos que em sua gênese o seu objetivo era apenas a formação do pensamento intelectual, de forma que o conhecimento por trás da execução de tarefas braçais só passou a ser contemplado pelas insti-tuições educacionais quando surgiu a necessidade da indústria por um profissional com uma formação específica para atender deter-minados tipos de atividades, tais como manutenção, operacionaliza-ção e montagem de máquinas. Logo, foi com a chegada das máqui-nas que se “viabilizou a materialização das funções intelectuais no processo produtivo” (SAVIANI, 2007, p. 159).

Com o impacto da Revolução Industrial, os principais países as-sumiram a tarefa de organizar sistemas nacionais de ensino, bus-cando generalizar a escola básica. Portanto, à Revolução Industrial correspondeu uma Revolução Educacional: aquela colocou a má-quina no centro do processo produtivo; esta erigiu a escola em for-ma principal e dominante de educação (SAVIANI, 2007, p. 159).

Desde a Antiguidade a escola foi se constituindo como a for-ma principal e dominante de transferência de conhecimento e se

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tornou um forte instrumento de produção e reprodução da cultura legítima, que, em última instância, serve para promover a distinção entre as classes e as frações de classe. Logo, “do mesmo modo que a religião nas sociedades primitivas, a cultura escolar propicia aos indivíduos um corpo comum de categorias de pensamento que tor-nam possível a comunicação” (BOURDIEU, 2007b, p. 205). Comu-nicação essa que se desenvolve apenas em um determinado grupo, na medida em que, dependendo do curso no qual se está inserido, ou da instituição que frequenta, as ferramentas capazes de constituir um sistema de símbolos para que os discentes possam efetivamente se comunicar com o mundo são disponibilizadas de forma desigual e direcionadas de acordo com o interesse das classes dominantes, camufladas num discurso de desenvolvimento de habilidades ine-rentes ao ofício no qual o aluno está se formando.

Portanto, temos que as instituições são criadas e têm sua exis-tência definida pelo resultado das forças antagônicas próprias das lutas de classe. O cidadão fruto dessa escola será formado sob a perspectiva dos diversos grupos que compõe o estrato social, bem como da atuação desses grupos em seus campos. Os efeitos sociais previstos e imprevistos provenientes das práticas escolares são es-tabelecidos pelos interesses dos diferentes grupos advindos do seu habitus de classe. A escola também é, segundo Bourdieu (2007b, p. 211), uma formadora de hábitos, que criará nos indivíduos um siste-ma de disposições capazes de serem aplicadas nos diferentes campos, e, a isso ele chama de habitus cultivado.

Logo, para Bourdieu (2007b, p. 296), o sistema de educação é um conjunto de mecanismos institucionais que assegura a conserva-ção de uma cultura herdada do passado (DURKHEIM, 1989), per-petuando dessa forma a cultura que é mantida por gerações pelas classes dominantes. E acrescenta ainda que

Em suma, uma instância oficialmente incumbida de assegurar a transmissão dos instrumentos de apropriação da cultura domi-nante que não se julga obrigada a transmitir metodicamente os instrumentos indispensáveis ao bom êxito de sua tarefa de trans-missão, está destinada a transformar-se em monopólio das clas-ses sociais capazes de transmitir por seus próprios meios, quer dizer, mediante a ação de educação contínua, difusa e implícita,

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que se exerce nas famílias cultivadas (muitas vezes sem que o sai-bam aqueles que a exercem e aqueles que a recebem), os instru-mentos necessários à recepção de sua mensagem e necessários para assegurar a essas classes o monopólio dos instrumentos de apropriação da cultura dominante, e por esta via, o monopólio da cultura (BOURDIEU, 2007b, p. 307).

Em relação ao campo cultural, a chave da reprodução dessa cultura que perpassa várias gerações e faz a comunicação entre elas é o sistema escolar que, em outras palavras, organiza o pensamento da época, tornando-o compreensível para a atual geração. O sistema escolar é o único capaz de passar a cultura dominante e constituí-lo como habitus de pensamento comum.

A personalidade intelectual é vinculada às condições institucio-nais de sua formação. Na verdade, embora a escola seja apenas um agente de socialização entre outros, todo este conjunto de traços que compõem a personalidade intelectual de uma so-ciedade – ou melhor, das classes cultivadas desta sociedade – é constituído ou reforçado pelo sistema de ensino, profundamente marcado por uma história singular e capaz de modelar o espírito dos discentes e dos docentes tanto pelo conteúdo e pelo espírito da cultura que transmite como pelos métodos segundo os quais efetua esta transmissão (BOURDIEU, 2007b, p. 307).

Conclui-se que a escola, apesar de aparentemente ser vista como mecanismo para acabar com as diferenças sociais, na verdade contribui para perpetuar as relações de dominante e dominado na sociedade. Ela é, portanto, o meio mais dissimulado de transmissão da cultura, pois o faz sob uma aparência de neutralidade (BOUR-DIEU, 2007b, p. 296).

8. A classe social como fator determinante da carreira escolar

A disputa pela ascensão social ou pela manutenção do espaço que uma classe ocupa na sociedade é determinada pelas relações de força entre os grupos. A classe dominante, detentora dos meios de produção e reprodução dos bens econômicos e simbólicos, possui

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a prerrogativa de já ocupar o ápice da escala social e usufruir das benesses que a acumulação do seu capital econômico, cultural e social lhes proporciona. Assim como as frações de classe mais altas, as classes populares e médias também têm sua atuação determinada pelo habitus de classe e estipulam suas estratégias de acordo com suas necessidades coletivas. Isso não significa dizer que o grupo como um todo possui um conjunto de regras sistematizadas para definir sua trajetória, mas que cada pessoa, individualmente, pelo fato de pertencer a uma classe que ocupa determinada posição no estrato social, age de acordo com os objetivos que são comuns aos outros membros de seu grupo. A existência de indivíduos que acabam por traçar uma trajetória diferente da que se esperava sob a ótica da tra-jetória social de sua classe, tem um peso residual na definição e na existência indiscutível de um habitus coletivo.

Dentre os diferentes caminhos que se pode seguir para con-quistar melhores posições na sociedade, a educação é um dos mais utilizados, tendo em vista que, principalmente para as classes mé-dias, ela é vista como forma de aquisição de habilidades e titulações necessárias para acessar nichos sociais que exigem a posse de um robusto capital simbólico e econômico. A forma como as pessoas se relacionam com o sistema escolar depende da origem social que ele possui; logo, a necessidade de se tornar doutor, operário ou técnico, ou então, de se buscar uma profissão que supra as necessidades ma-teriais em detrimento daquela que promova uma visibilidade social por conta do status que carrega varia de acordo com a aspirações que se tem frente à escala social, e tal aspiração é determinada por uma trajetória coletiva, uma vez que o agente possui, sob a forma incorporada, o habitus de classe.

Quanto a isso, Bourdieu (2007a, p. 122) nos fala que cada clas-se possui uma estratégia de reprodução, como sendo um conjunto de práticas nas quais os indivíduos ou as famílias tendem, consciente ou inconscientemente, a exercer estratégias de reprodução com o objetivo de conservar ou aumentar seu patrimônio e, correlativa-mente, manter ou melhorar sua posição na estrutura das relações de classe. O autor nos esclarece que existem dois pontos fundamentais que definem tais estratégias: o primeiro relacionado ao volume do capital global que determinará a forma como o indivíduo reagirá

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frente às oportunidades objetivas de reprodução do grupo; e, em segundo lugar, o Estado, que é ator legitimador da estrutura social, utilizando as forças de suas instituições para definir a ordem socie-tária entre os diferentes grupos em disputa. Logo, os instrumentos de reprodução, institucionalizados ou não (costumes, justiça, mer-cado de trabalho, escola etc.), e sua relação com o patrimônio dos diferentes grupos sociais define a estratégia e o investimento a ser feito por cada grupo.

Considerando que o elemento motivador em relação à trajetó-ria escolar é o habitus de classe, Bourdieu nos explica que o acúmulo histórico das experiências de êxito ou fracasso dos membros de um grupo gera nos demais um conhecimento intuitivo a respeito dos objetivos que estão ou não ao alcance dos agentes que o compõem. A isso Bourdieu chama de “causalidade provável”, o fato de os indi-víduos incorporarem as chances de acesso a essa ou aquela posição levando em consideração as oportunidades e o capital global acu-mulado, que tornam certos caminhos mais rentáveis por oferecem menos riscos (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 63).

Portanto, em função do capital que possui e da dependência maior ou menor do título escolar, cada grupo adota seu tipo de es-tratégia diante da escola. Essa estratégia é incorporada pelo agente e faz parte de seu habitus familiar. Em relação ao mercado escolar, a associação da utilização do sistema de ensino com a trajetória so-cial nos leva a concluir que tal mercado é menos regulado e guiado pelas necessidades de produção das empresas do que se imagina, já que as exigências da reprodução do grupo familiar têm um peso decisivo na escolha das instituições, influenciando na direção merca-dológica que tomam essas instituições (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 67).

Outro elemento de destaque na escolha da carreira escolar é o peso do capital social na definição de tal estratégia na medida em que, dependendo da rede de contato que se tem, a aquisição de al-gumas informações a respeito de como funciona o mercado de tra-balho bem como de quais profissões oferecem mais oportunidades, ou em relação a quais cursos e quais instituições são mais valoriza-das, acabam por guiar os detentores desse tipo de conhecimento na escolha certa, evitando desperdício de capitais.

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Quanto às estratégias de cada grupo social, temos que as elites, exercendo seu papel dominante nas relações de força e seguindo a lógica da distinção, tendem a investir seus capitais prioritariamente na direção de uma acumulação econômica em detrimento de uma estratégia voltada para o mercado escolar, devido ao menor grau de dependência em relação a tais títulos acadêmicos. Os sujeitos per-tencentes às camadas mais altas optariam por uma carreira escolar mais significativa apenas sob forma de legitimar a posse do grande volume de capital econômico que possui; logo, as carreiras acadê-micas que conferem um status mais significativo socialmente são as primeiras opções por parte dessa classe, já que apenas o título de “doutor” lhes serviriam. Como, para esta classe, os investimentos escolares são pouco significantes para a manutenção da sua posição social, ou seja, o sucesso escolar dos seus membros não pesa muito para que suas famílias continuem na posição de dominação, eles não precisariam investir tão pesadamente na educação escolar de seus filhos em comparação a frações da classe média que têm sua posição garantida quase que exclusivamente pelos títulos escolares.

Bourdieu chama a atenção para o fato de que dentro desse gru-po existem duas frações de classe que lidam de forma diferente com a carreira escolar. Como nos esclarece Nogueira e Nogueira (2004, p. 82), há na classe dominante as frações mais ricas em capital cultu-ral (dominados), e as frações mais ricas em capital econômico (domi-nantes). “As primeiras seriam propensas a um investimento escolar mais intenso, visando o acesso ás carreiras mais longas e prestigiosas do sistema de ensino e as últimas tenderiam a buscar na escola, prin-cipalmente, uma certificação que legitimaria o acesso às posições de comando já garantidas pela posse de capital econômico.”

As classes médias, tendo em vista sua situação de nem total-mente dominante nem totalmente dominada, advinda em muitos casos da ascensão social das classes populares por meio da escola-rização, têm na busca pela superação da sua condição de classe sua principal característica. Isso faz com que sua relação com o sistema de ensino seja mais estreito, uma vez que a estratégia mais utilizada por esse grupo na busca de posições mais altas no estrato social é a estratégia escolar. Logo, o título acadêmico é muito importante para os indivíduos pertencentes a essa classe já que, na tentativa de

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se fazer cada vez mais à semelhança das classes dominantes, buscam nas carreiras acadêmicas o prestígio social capaz de suprir a falta do capital econômico. As classes médias, que possuem chances de ascensão objetivamente superiores em relação às classes populares, tendem a investir de forma pesada e sistemática na escolarização de seus filhos. As famílias já possuem um capital econômico que apesar de não ser grande como o das elites, já possibilitam o investimen-to acadêmico no qual acreditam que a transformação desse capital econômico em capital escolar é a chave para alcançar seus objetivos (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 76). O título escolar, além de carregar consigo um poder simbólico, é também juridicamente e socialmente garantido, e sobre este ponto explica Bourdieu em O po-der simbólico (2012, p. 148) que tal título se assemelha a um título de nobreza, na medida que um nobre não é apenas reconhecido como tal apenas por ser conhecido e célebre, mas por ser reconhecido por uma instância oficial e universal

O título profissional ou escolar é uma espécie de regra jurídica de percepção social, um ser-percebido que é garantido como um direito. É um capital simbólico institucionalizado, legal (e não apenas legítimo). Cada vez mais indissociável do título escolar, visto que o sistema escolar tende cada vez mais a representar a última e única garantia de todos os títulos profissionais, ele tem em si mesmo um valor e, se bem que se trate de um nome co-mum, funciona à maneira de um grande nome (nome de gran-de família ou nome próprio), conferindo todas as espécies de ganhos simbólicos (e dos bens que não são possíveis de adquirir directamente com a moeda). É a raridade simbólica do título no espaço dos nomes de profissão que tende a comandar a retribui-ção da profissão (e não a relação entre a oferta e a procura de uma certa forma de trabalho): sugere-se daqui que a retribuição do título tende a tornar-se autônoma em relação à retribuição do trabalho. Assim, o mesmo trabalho pode ter remunerações diferentes, conforme os títulos daquele que o exerce (titular/interino; titular/em exercício etc.). Dado que o título é em si mesmo uma instituição (como a língua) mais duradoura que as características intrínsecas do trabalho, a retribuição do título pode manter-se apesar das transformações do trabalho e do seu valor relativo: não é o valor relativo do trabalho que determina o

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valor do nome, mas o valor institucionalizado do título que ser-ve de instrumento o qual permite que se defenda e se mantenha o valor do trabalho (BOURDIEU, 2012, p. 148).

A força do título para as camadas médias seria grande o sufi-ciente para lhes garantir os alvarás da burguesia cultural. Na escolha de uma trajetória acadêmica, a opção por uma carreira de curso superior seria, sob essa ótica, mais rentável do que uma carreira técnica, já que traria consigo todo o peso simbólico de se tornar um bacharel, um doutor.

Portanto, na definição tácita do diploma, ao assegurar formal-mente uma competência específica (por exemplo, um diploma de engenheiro), está inscrito que ele garante realmente a posse de uma ‘cultura geral’, tanto mais ampla e extensa quanto mais prestigioso for esse documento; e inversamente, que é impossí-vel exigir qualquer garantia real sobre o que ele garante formal e realmente, ou, se preferirmos, sobre o grau que é a garantia do que ele garante. Este efeito de imposição simbólica atinge sua máxima intensidade com os alvarás da burguesia cultural: certo diplomas – por exemplo, aqueles que, na França, são atribuí-dos pelas Grand Écoles – garantem, sem outras garantias, uma competência que se estende muito além do que, supostamente, é garantido por eles, com base em uma cláusula que, por ser tácita, impõe-se, antes de tudo, aos próprios portadores desses diplomas que, deste modo, são intimados a assenhorar-se real-mente dos atributos que estatutariamente lhes são conferidos (BOURDIEU, 2007a, p. 28).

As classes sociais que ocupam posição mais baixa na socieda-de, ao observar a falta de êxito parcial ou total em relação aos seus membros que optaram por uma carreira escolar, passam intuitiva-mente a desconsiderar a trajetória escolar como sendo rentável. “Tendem assim a encarar a ascensão social menos como acesso a altas posições sociais e mais como possibilidade de evitar postos ins-táveis e degradantes, que não garantem uma vida com dignidade” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 71). O fato de essa classe não possuir os recursos econômicos, sociais e culturais capazes de deci-frar os códigos utilizados na aprendizagem acadêmica torna o retor-

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no do investimento muito incerto, e afasta as pessoas dessa classe de carreiras escolares longas como de cursos superiores, já que, em função de sua condição socioeconômica, as famílias não teriam con-dição de suportar tais custos.

Por fim, as classes populares, marcadas pelo imediatismo de suas necessidades materiais, teriam suas estratégias definidas pela percepção coletiva de que o investimento escolar não traria o re-torno financeiro que elas necessitam, portanto, os membros desses grupos dariam prioridades a carreiras que lhes inserem no mercado de trabalho em menos tempo e que resultam em um retorno mone-tário mais rápido, independentemente se tal profissão ou título lhes confere algum tipo de status. Em relação a isso nos explica Nogueira e Nogueira (2004, p. 72):

Em resumo, no caso das classes populares, o investimento no mercado escolar tenderia a oferecer um retorno baixo, incerto e a longo prazo. Diante disso, as aspirações escolares desse grupo seriam moderadas. Esperar-se-ia dos filhos que eles estudassem apenas o suficiente para se manter (o que, normalmente, dados os avanços nas taxas de escolarização, já significa, de qualquer forma, alcançar escolarização superior à dos pais), ou se elevar li-geiramente em relação ao nível socioeconômico alcançado pelos pais. Essas famílias tenderiam, assim, a privilegiar as carreiras escolares mais curtas, que dão acesso mais rapidamente à inscri-ção profissional.

9. Considerações finais: sobre a desvalorização do título escolar e sua relação com as classes

Apesar da importância do título acadêmico, sobretudo de cur-so superior – que, por carregar um valor simbólico na sociedade que se assemelha a um título de nobreza, seria o alvo das aspirações dos indivíduos pertencentes às classes médias emergentes e de fra-ções das classes altas em busca de legitimar sua riqueza material –, existem alguns fatores que podem desestimular a procura por carreiras escolares mais longas. Tal tema é tratado por Bourdieu em A distinção, nos capítulos “Uma geração enganada” (2007a, p. 135) e “A luta contra a desclassificação” (2007a, p. 142). As recen-

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tes desvalorizações dos títulos escolares, fenômeno que Bourdieu chama de “inflação dos títulos” – quando a demasiada produção de diplomas se torna maior em relação à criação de novos postos de trabalho –, é uma realidade no mundo contemporâneo e que se agravou com a mudança do modo de produção capitalista. Depen-dendo de como a economia de um determinado país se comporta, a busca por tais títulos pode não seguir a lógica do poder simbólico que eles carregam. O mercado de trabalho pode não estar receptivo a algumas carreiras, impedindo que um indivíduo consiga se man-ter economicamente com tal profissão. Em outras palavras, como explica Nogueira e Nogueira (2004, p. 65) “o retorno obtido por um diploma dependeria também do estado das relações – em cada momento histórico – entre o campo escolar e o campo econômico, o qual determina o grau de correspondência entre o diploma e os postos profissionais (cf. Bourdieu; Boltanski, 1998)”.

A transformação da distribuição dos cargos entre os diplomados que resulta, automaticamente, do número crescente de titulados faz com que, a cada instante, uma parcela dos diplomados – e, sem dúvida, antes de mais nada, os mais desprovidos dos meios herdados para valorizar os diplomas – seja vítima da desvaloriza-ção. As estratégias pelas quais os mais expostos à desvalorização esforçam-se em lutar – a curto prazo (no decorrer de sua própria carreira) ou a longo prazo (mediante as estratégias de escolari-zação dos filhos) – contra essa desvalorização constituem um dos fatores determinantes do número crescente de diplomados distribuídos que, por sua vez, contribui para a desvalorização. A dialética da desvalorização e recuperação tende, assim, a alimen-tar-se de si mesma (BOURDIEU, 2007a, p. 128).

Em relação às classes altas, tal fator de desvalorização dos diplo-mas pode não mudar significativamente a busca por certas carreiras, já que os membros dessa classe não se preocupam com o retorno fi-nanceiro que tal título lhes trará, além de que, os membros das clas-ses dominantes, detentores dos diplomas desvalorizados, normal-mente têm dificuldade de perceber e reconhecer a desvalorização dos seus diplomas (BOURDIEU, 2007a, p. 134). O retorno provável que um título proporciona a determinado indivíduo fora da esfera

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do mercado de trabalho pode também servir de fator motivador pela contínua procura de alguns cursos, uma vez que os diferentes mercados simbólicos, como o matrimonial por exemplo, pode ser o objetivo daqueles que buscam uma qualificação acadêmica.

Outro fator que contribui para manter e intensificar o investi-mento numa carreira escolar é o fato da inserção de novos grupos, que antes não tinham acesso significativo ao mercado escolar, na corrida e na concorrência dos diplomas. Com isso, as frações de classe que antes estavam garantidas por seu acesso exclusivo ao sis-tema de ensino, tiveram que intensificar seus estudos na direção de cursos de pós-graduação, no sentido de manter a raridade de seus títulos. A propagação da escolaridade se, por um lado, contribui para a inflação dos diplomas, por outro intensifica a procura por cursos que proporcionam títulos cada vez mais altos, como os de pós-graduação.

Por fim, deve-se destacar que as principais vítimas da desvaloriza-ção dos títulos são aqueles que não detêm diploma algum (na maior parte das vezes os membros das classes populares), na medida em que se cria um monopólio daqueles que possuem os títulos escolares no acesso aos postos de trabalho. As vagas nas empresas que até então eram abertas a não diplomados, passam a exigir um grau de escola-rização muito maior, prejudicando quem, por circunstâncias da sua realidade social e da falta de capital econômico, cultural e social, não conseguiu seguir uma carreira mínima que lhe desse condições de disputar um espaço no concorrido mercado de trabalho.

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Educação e indústria petrolífera: a formação dos técnicos de nível médio1

Ana Paula Rangel de AndradeRosélia Perissé da Silva Piquet

Elis de Araújo Miranda

Introdução

As recentes descobertas de petróleo na camada do Pré-sal evi-denciam o potencial do Brasil em se tornar um grande exportador desse insumo bem como de seus derivados. A região Norte Flumi-nense (NF) se destaca, nesse cenário, por ter municípios confrontan-tes com a Bacia de Campos, grande produtora nacional de petró-leo e gás natural. São grandes os impactos previstos na geração de emprego e de riqueza, na inovação tecnológica e na arrecadação de impostos (RAPPEL, 2011).

Com esse aumento na capacidade produtiva da atividade petro-lífera, o NF passa a demandar profissionais de vários níveis, incluin-do os técnicos de nível médio que atuam em empresas nacionais e multinacionais, operadoras e fornecedoras de bens e serviços. Dentre as áreas de atuação desses profissionais estão: manutenção, perfuração de poços, telecomunicações, contabilidade, operação, projetos, construção e montagem, química de petróleo, ambiental, informática, dentre outras (PETROBRAS, 2014a)2.

A qualificação dessa mão de obra é fundamental para esse mer-cado. Segundo a Organização Nacional da Indústria do Petróleo (ONIP), esse é o segundo maior empecilho à competitividade do setor, perdendo apenas para a elevada tributação no país (ONIP, 2010).

O mercado interno não tem conseguido absorver essa deman-da, sendo considerável o número de importações de equipamentos e mão de obra frente aos novos desafios que surgem. O setor pe-trolífero é um dos que lideram a emissão de vistos para estrangei-

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ros no país, representando 25% de todas as permissões de trabalho temporário e permanente, num total de 15 atividades econômicas distintas. Países como Noruega, Holanda, Estados Unidos e França enviaram para o Brasil cerca de 50 mil técnicos e engenheiros na área de petróleo e gás, entre os anos 2010 e 2012, período de muitos projetos ligados à infraestrutura para exploração no Pré-sal (MAR-QUES, 2013).

Para reduzir essa importação, são imprescindíveis investimen-tos na educação básica. Quanto à formação dos técnicos de nível médio, ganha destaque sua última etapa, o ensino médio, que faz interface com o meio produtivo.

No Estado do Rio de Janeiro essa etapa obteve os menores ín-dices, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A maior cidade do NF, Campos dos Goytacazes ficou, em 2011, em último lugar no ranking do estado e, em 2013, apresentou uma das piores médias entre os municípios fluminenses (BRASIL, 2014b).

O Ideb é um índice que varia de 0 a 10 e é calculado por dois parâmetros: o fluxo escolar e as médias de desempenho dos estu-dantes nas avaliações do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Avalia conhecimentos em Português e em Matemática, com-ponentes curriculares presentes nas provas para processo seletivo das empresas ligadas à indústria petrolífera (BRASIL, 2011).

A Matemática é uma disciplina estratégica para essa indústria por sua forte ligação com os conceitos da Física e com a tecnolo-gia. Além disso, relaciona-se à capacidade de raciocínio, de resolver problemas, de produzir argumentos, de ler e interpretar dados, de prever resultados, exigências desse mercado.

Em 2014, uma experiência desenvolvida no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) pela Coordena-ção do Ensino Médio mostrou um déficit na formação em Matemáti-ca de estudantes concluintes do ensino fundamental.

Aplicou-se, para todos os aprovados no processo seletivo para cursos técnicos integrados ao ensino médio na modalidade regular, um pré-teste com questões de Matemática básica abordando temas como operações com frações, unidades de medida, potenciação, ra-diciação, notação científica e regra de três.

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Foram realizadas oficinas com os alunos que não conseguiram obter um mínimo de 70% de aproveitamento em cada um dos tó-picos matemáticos apresentados no pré-teste. O resultado é preo-cupante visto que aproximadamente 97% dos alunos tiveram que frequentar esses encontros para tentar recuperar os estudos. É im-portante lembrar que esses estudantes passaram por um processo seletivo bastante disputado e correspondem a uma amostra já “fil-trada”, tanto da rede pública como da particular de várias cidades da região NF. A Tabela 1 traz o quantitativo dessa ação.

Tabela 1 INFORMAÇõES REFERENTES AO PRÉ-TESTE DE MATEMÁTICA

APLICADO EM 2014 NO IFFLUMINENSE CAMPUS CAMPOS CENTRO.

Fonte: Coordenação Adjunta da Diretoria de Ensino Médio do campus Campos Centro. Elaboração própria.

Justifica-se, assim, uma pesquisa voltada para a indústria petro-lífera e o ensino da Matemática que, nessa região, apresenta fragili-dades que comprometem a empregabilidade dos técnicos de nível médio nesse tipo de atividade.

O texto está estruturado em três seções, além da Introdução. Na primeira, são apresentados os resultados da pesquisa desenvol-vida, inédita na região NF, sobre as demandas matemáticas da in-dústria petrolífera. Outros aspectos da relação entre o mercado de O&G e as instituições de ensino e das contratações e demandas das fornecedoras são levantados. Na segunda seção, apresentam-se vá-rios programas voltados para a formação de mão de obra técnica de nível médio. Por fim, são feitas as considerações finais.

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1. A pesquisa

1.1 Objetivo e Metodologia No período de setembro de 2013 a junho de 2014, realizou-se

uma pesquisa com o objetivo de determinar as demandas matemá-ticas necessárias aos técnicos de nível médio que atuam no setor upstream da indústria petrolífera da Bacia de Campos3.

Foram feitas 38 entrevistas semiestruturados com: (i) traba-lhadores da Petrobras; (ii) recrutadores, supervisores e técnicos de empresas fornecedoras de bens e serviços; (iii) técnicos em educação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SE-NAI) e professores do IFFluminense; e (iv) instrutores de um centro de treinamento que atende aos trabalhadores da indús-tria petrolífera. Utilizou-se, também, a pesquisa documental em sites e ementas de cursos, acrescentando informações às obtidas nas entrevistas.

O número de participantes dos dois primeiros grupos foi de-finido a partir do estudo “Oportunidades e desafios da agenda de competitividade para construção de uma política industrial na área de petróleo: propostas para um novo ciclo de desenvolvimento in-dustrial”. Promovido pela ONIP, esse trabalho estabelece uma ca-racterização das principais atividades e processos da cadeia offshore, e outra da cadeia de fornecimentos de bens e serviços offshore (FER-NÁNDEZ y FERNÁNDEZ; MUSSO, 2011).

Foram consideradas para o primeiro grupo de entrevistados, os trabalhadores da Petrobras, áreas das três etapas (exploração, desenvolvimento e produção) do setor upstream da cadeia offshore. Já para o segundo grupo utilizou-se a cadeia de fornecimento offshore. O elo da cadeia selecionado foi o dos drivers por manter uma liga-ção mais próxima com o operador e desenvolver trabalhos de alto teor tecnológico. Selecionou-se, no mínimo, uma empresa para cada uma das categorias: sísmica, serviços de poços, apoio logístico, EPC (Engineering, Procurement and Construction) e estaleiros e instalações submarinas (Figura 1).

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Figura 1 CARACTERIZAÇÃO DA CADEIA DE FORNECIMENTO DE BENS E

SERVIÇOS OFFSHORE

Fonte: FERNÁNDEZ y FERNÁNDEZ; MUSSO (2010).

A pesquisa pautou-se no aspecto qualitativo e priorizou-se a dis-cussão do tema sob diferentes olhares em vez de discuti-lo com um grande número de pessoas. Além da presença de quatro grupos dis-tintos de entrevistados, o conhecimento matemático foi localizado em vários setores desse mercado, garantindo resultados abrangen-tes e significativos, já que a Matemática utilizada em serviço de po-ços difere da que é praticada no apoio logístico, e assim por diante.

O Quadro 1 traz o quantitativo das entrevistas.

1.2 A entrada dos técnicos na indústria petrolíferaSegundo os quatro grupos entrevistados, os técnicos estão

chegando à indústria petrolífera “robotizados”, ou seja, prepara-ram-se para uma determinada situação mas, se algo foge à norma-lidade, não sabem o que fazer, não têm capacidade analítica nem bom senso.

É válido lembrar que o conceito de competência profissional demanda a mobilização de valores, conhecimentos e habilidades para além dos problemas rotineiros. Espera-se que o técnico atue de forma eficaz diante do inesperado, explorando sua criatividade (BRASIL, 1999).

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Quadro 1 INFORMAÇõES SOBRE AS ENTREVISTAS REALIZADAS

Fonte: Elaboração própria.

Outro aspecto destacado são as questões comportamentais. Muitos chegam imaturos, sem vontade em aprender e com limita-ções quanto ao convívio em grupo.

Quanto à formação acadêmica, embora o número de certifi-cações apresentadas pelos técnicos tenha aumentado, esse fato não tem se traduzido na capacidade e na eficiência no trabalho. Em en-trevista, uma das recrutadoras relatou a dificuldade de um candida-to a uma vaga técnica: comentar, no período de dez minutos, sobre os assuntos mais relevantes de um curso que acabara de fazer, de dez meses de duração.

Os profissionais das instituições de ensino afirmaram que, a cada ano, percebe-se uma maior carência em assuntos de Matemá-tica básica. Essa é uma forte intersecção entre os grupos entrevista-dos: a necessidade de se ofertar uma Educação Básica de qualidade, que oportunize ao jovem uma real entrada no mercado de trabalho. Castro afirma: “Não há nada mais profissionalizante do que uma boa educação acadêmica. Entender o que está escrito, escrever, usar números, buscar informações e resolver problemas são conhecimen-tos supremamente úteis e versáteis” (CASTRO, 2009).

Em cursos abertos à comunidade, essa defasagem é ainda maior por contar com estudantes advindos de cursos técnicos de

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baixa qualificação. Além disso, as fornecedoras, que muitas vezes financiam esses cursos, contratam os alunos com maior rendimento, ficando cada vez mais difícil a inserção no mercado de trabalho de jovens com problemas na formação básica.

1.3 As demandas matemáticas da indústria petrolíferaOs grupos entrevistados citaram os conteúdos matemáticos ne-

cessários ao trabalho upstream na indústria petrolífera, bem como abordagens que deveriam ser praticadas nas aulas de Matemática a fim de valorizar aspectos dessa disciplina importantes para a indús-tria petrolífera.

1.3.1 Conteúdos de MatemáticaO uso de unidades de medida relacionadas a grandezas como

comprimento, vazão, volume e pressão é fundamental nesse merca-do. Em muitos casos, são utilizadas unidades inglesas ou americanas como polegada (in), barril de petróleo americano (bbl), galão por minuto (gpm) e barril por dia (bpd)4.

Num universo de tanta tecnologia, não é necessário que o téc-nico decore os fatores de conversão, pois as planilhas eletrônicas exercem essa função. Porém, o conhecimento das unidades, a com-paração entre elas e a noção de tamanho são fundamentais para se tomar decisões e agir rapidamente quando necessário. Plataformas da Petrobras trabalham com unidades diferentes das de outros for-necedores e operadoras internacionais. Assim, o técnico tem que estar habituado a fazer as conversões já que essa prática faz parte da rotina de trabalho.

Outro tema destacado foi a Geometria Espacial, em especial o cilindro, a esfera e o paralelepípedo, já que os reservatórios de ar-mazenamento e separação têm esses formatos. O cilindro se sobres-sai dentre os sólidos, pois além dos tanques, uma grande parte das bombas, da tubulação e das ferramentas são cilíndricas. Vale ressal-tar que, no processo de desativação e de abandono das atividades de produção, é preciso que se faça o cálculo do volume das tubulações cilíndricas que ligam a árvore, que está no fundo do mar, até as pla-taformas. O cálculo correto do volume nos tanques também garante segurança à unidade marítima, prevenindo-a de adernar.

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O estudo de vetores também foi citado para a compreensão do Cálculo Estrutural e de conteúdos da Física, como o sistema de forças em plano inclinado e com roldanas. Ainda na Geome-tria Analítica foi destacada a importância dos vários sistemas de coordenadas como as cartesianas, as geográficas e as polares, esta última utilizada na ancoragem de unidades marítimas e no posicio-namento de poços em que as unidades de comprimento e angular são necessárias.

O estudo de maior demanda e intersecção entre os entrevista-dos foi a leitura e a interpretação de gráficos e de mapas. Os gráfi-cos são utilizados para diferentes finalidades como o conhecimento sobre o perfil de um poço feito por meio da análise de inúmeras grandezas. A presença de jazidas comerciais de petróleo é confirma-da a partir da interpretação desses perfis.

O monitoramento do comportamento de grandezas, como pressão, temperatura, vazão, densidade e velocidade é feito por ima-gens gráficas contidas em equipamentos de alto teor tecnológico. Quanto às cartas topográficas, são necessários conhecimentos sobre escala, sistemas de coordenadas, curvas de nível dentre outros.

Outros temas matemáticos foram citados, a saber: operações numéricas, função polinomial do 1º.º grau, proporcionalidade, tri-gonometria, geometria plana, desenho geométrico, lógica booleana, noções básicas de Matemática financeira e cálculo diferencial. Cada tópico foi exemplificado com situações reais aplicadas em cada área de atuação do entrevistado.

1.3.2 Abordagens para a sala de aula O trabalho com a Matemática extrapola a aquisição de conhe-

cimentos nessa área e permite que o futuro técnico adquira compe-tências importantes para esse mercado. Foram citadas:

– A valorização do raciocínio, do cálculo mental e da estimativa.Embora o uso de calculadoras e de softwares sejam bem explo-

rados, muitas vezes é exigido do técnico rapidez de raciocínio frente a novas situações ou mesmo em reuniões. Estimativa de custos, de tempo, de ocupação de cargas em galpões, de produção diária de petróleo e sobre a resistência de materiais são feitas rotineiramente.

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Muitas vezes o cálculo envolve números elevados exigindo algorit-mos mentais bem sofisticados.

Ponte e Albergaria (2008) destacam que o cálculo mental é es-sencial para a interpretação das diferentes informações numéricas presentes no dia a dia como os diagramas, gráficos e tabelas expres-sos por meio de números inteiros, decimais, frações e percentagens além de serem importantes para a tomada de decisões fundamen-tadas.

– A importância da resolução de problemasOutro aspecto importante é a apresentação de situações-pro-

blema em vez de questões do tipo “Calcule”. Nesse tipo de trabalho resolvem-se problemas todo o tempo e vivenciam-se situações passí-veis a mudanças e a adaptações. Alguns entrevistados disseram que, mesmo em um ambiente automatizado, ocorrem erros e problemas com os equipamentos. Nesses casos, muitas variáveis devem ser con-sideradas na busca por uma solução. Valoriza-se, então, a aplicação de problemas contextualizados em que o técnico possa enfrentar situações novas, sendo capaz de modelá-las matematicamente.

Em relação à resolução de problemas, os Parâmetros Curricu-lares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) citam a aplicação de problemas contextualizados como uma importante estratégia de en-sino. Desenvolve a capacidade de raciocínio e amplia a autonomia e a capacidade de comunicação e de argumentação dos estudantes. Em confronto com novas situações-problema os alunos planejam etapas, estabelecem relações, verificam regularidades e fazem uso dos erros anteriores para buscar novas alternativas (BRASIL, 2000). É válido ressaltar que não se trata de exercícios de aplicação de téc-nicas matemáticas em que várias questões com passos análogos são resolvidas. É preciso desafiar o aluno com situações diferentes ou mais complexas (BRASIL, 2002).

– O uso de tecnologiasO técnico, no seu dia a dia, trabalha quase todo o tempo com

tecnologia. Do Excel a softwares modernos, o trabalho com equipa-mentos de alta precisão exige flexibilidade e competência técnica.

Um dos softwares utilizados em Geodésica é o Hydropo que,

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entre inúmeras funções, monitora o posicionamento de unidades marítimas e também possibilita o desenho de navios e de platafor-mas em escala5.

O uso de tecnologias no ensino da Matemática reforça a im-portância da linguagem gráfica e de novas formas de representação além de relativizar o papel do cálculo e da manipulação simbólica (PONTE; OLIVEIRA; VARANDAS, 2003).

O SENAI utiliza, nos cursos de Matemática Básica, jogos edu-cacionais on line, elaborados pela empresa inglesa Mangahigh. Se-gundo o professor responsável, por meio desses jogos são resolvidas questões de raciocínio lógico voltadas para áreas como desenho téc-nico e metrologia. O software permite ainda apreender quais são as maiores dificuldades dos alunos possibilitando ao professor desafiar cada um com exercícios na área de que mais precisa6.

Esses games cobrem conteúdos do segundo ano do ensino fun-damental até a terceira série do ensino médio, como geometria plana e espacial, equações do 1º. e do 2º. graus, transformações geométricas, operações numéricas, expressões numéricas, trigono-metria, teorema de Pitágoras, dentre outros. Também desenvolvem habilidades ligadas ao raciocínio estratégico, ao planejamento, à re-flexão, à estimativa e à rapidez de pensamento (FIRJAN, s/d).

O IFFluminense campus Macaé utiliza o software Geogebra nos cursos sobre trigonometria, no estudo das transformações gráficas de funções trigonométricas7.

Na opinião de Borba e Penteado (2003) os computadores de-vem fazer parte das atividades escolares da mesma forma como em outros domínios da atividade humana em que já estão presentes. Segundo esses autores, a alfabetização informática é tão importante quanto a alfabetização na língua materna e em Matemática.

1.3.3 Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino MédioOs PCNEM apresentam um novo perfil para o currículo esco-

lar apoiado em competências e habilidades. Propõem uma visão de ensino contextualizada, com incentivo à capacidade de pesquisa e de raciocínio em substituição à prática da memorização (BRASIL, 2000).

Os entrevistados assinalaram, dentre as 19 habilidades, aquelas

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que eram imprescindíveis a um técnico de nível médio na sua área de atuação na empresa. Os resultados mostram um destaque para a leitura, a interpretação e a utilização de representações matemáticas como gráficos, tabelas e expressões (Gráfico 1).

Gráfico 1 HABILIDADES MATEMÁTICAS INDICADAS NOS PCNEM

IMPORTANTES à ATUAÇÃO DO TÉCNICO DE NÍVEL MÉDIO NA INDÚSTRIA PETROLÍFERA.

Fonte: Elaboração própria.

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Num ambiente altamente tecnológico, em que vários proce-dimentos são automatizados, essas habilidades chamam a atenção, pois interferem diretamente na compreensão da realidade e na to-mada de decisões, em casos necessários.

1.4 A relação entre a indústria petrolífera e as instituições de ensinoSem perder sua especificidade, a pesquisa amplia o debate so-

bre as interfaces entre a indústria e a escola com o intuito de apontar outras questões referentes a esse elo.

Foram destacadas as seguintes ações:

– Aproximar profissionais do mercado de trabalho dos profis-sionais da área acadêmica. Essa aproximação envolve pesso-al de área técnica ou de recursos humanos. Pastore (2006) ressalta a importância dessa comunicação entre os que de-mandam e os que ofertam profissionais qualificados, citan-do exemplos de outros países em que o aluno divide o seu tempo de estudo entre instituições de ensino e empresas.

– Trabalhar com resolução de problemas, de forma contextu-alizada. Muitas questões podem ser elaboradas com a parti-cipação conjunta de profissionais do mercado e da escola.

– Realizar visitas de campo com professores e alunos. É preci-so conhecer o funcionamento da empresa “por dentro”.

– Realizar experimentos nos laboratórios das escolas.

Foi também reforçada a importância do “saber pensar” e do “saber argumentar”, tão necessários ao universo petrolífero. Segun-do alguns entrevistados, muitos técnicos chegam às empresas sem essa condição e, para resolver problemas bem simples, recorrem à regra de três, em vez de utilizar o bom senso ou mesmo o cálculo mental.

Também foi abordada a questão pessoal que independe do es-forço conjunto pela aproximação entre instituição escolar e merca-do. Alguns profissionais lembraram que há casos em que o técnico não é curioso nem interessado, acomoda-se na função e não procura se desafiar. São profissionais que trazem o conhecimento, mas não se arriscam na busca da inovação.

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Muitas parcerias são desenvolvidas entre a indústria do petró-leo e as instituições de ensino. Serão destacadas no texto aquelas que diferem dos tradicionais cursos técnicos que, há décadas, são oferecidos no SENAI e no IFFluminense.

Provas para estágio e emprego são realizadas por grandes em-presas como a Halliburton, Schlumberger, Oceaneering e Technip nas dependências do SENAI e do IFFluminense. Essas empresas promovem também palestras para alunos que estudam nos cursos técnicos com profissionais da área técnica e recrutadores.

O SENAI elabora avaliações de Matemática e Português para o processo seletivo de algumas fornecedoras. Atende também os alunos do Programa Jovem Aprendiz da Petrobras em uma de suas etapas de formação, a técnica. Oferece cursos de aperfeiçoamento para profissionais que já estão atuando nas empresas e que precisam aprender metodologias novas de trabalho, além de se manterem atualizados tecnicamente. Nesse caso, são aproveitados os próprios cursos da instituição e feitas adaptações.

Também são oferecidos cursos “customizados”, ou seja, pre-parados “sob medida”, cujas ementas são feitas conjuntamente por professores do SENAI e especialistas das empresas. Funcionam como cursos de qualificação, pós-médio, fechados para os funcioná-rios das empresas ou abertos para toda a comunidade.

No IFFluminense, esses cursos, em geral, possuem três etapas, a saber: (i) básica, com estudos em Matemática, Inglês, Português, dentre outros; (ii) intermediária, com estudos em Física, por exem-plo; e (iii) específica, em que o professor muitas vezes é um especia-lista da própria empresa.

Destaca-se nessa instituição o Programa Petrobras de Formação de Recursos Humanos e a pesquisa na área de exploração de petró-leo em águas profundas, feita em parceria com a COOPE/UFRJ, Cenpes/Petrobras, que tem como ação planejada a construção de uma câmara hiperbárica no campus Macaé (IFFluminense, 2011). A Petrobras e o IFFluminense também são parceiros na construção de um Laboratório para Ensaios de Cimentação de Poços de Petróleo nesse mesmo campus (IFFluminense, 2014b).

Anualmente, no campus Campos Centro do IFFluminense, ocorre a “Mostre-se”, um evento com mostra de tecnologias, equi-

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pamentos, workshops e palestras. A exposição oportuniza aos estu-dantes, profissionais e público em geral um maior contato com o mundo do petróleo e gás natural.

1.5 Programas, contratações e demandasAlgumas fornecedoras oferecem programas especiais de capa-

citação a recém-contratados. É a chamada formação acelerada com investimentos em cursos teóricos e práticos. Um tratamento dife-renciado oferecido aos jovens com bons currículos e que obtiveram melhor desempenho no processo seletivo da empresa.

Também é realidade para alguns estudantes, a entrada na in-dústria petrolífera sem a realização de provas para processo seletivo. O contrato é feito mediante as notas obtidas no ensino médio e cur-so técnico. Após a contratação, o aluno é admitido como estagiário, recebe treinamento teórico e prático na empresa e sua permanência depende da dedicação quanto à rotina de estudos. É válido ressaltar a importância da qualidade de ensino da Educação Básica, que irá garantir a entrada e a permanência dos jovens nesse mercado.

Foi observada por alguns entrevistados a demanda pela forma-ção na região NF de técnicos nas áreas de Geologia, Geomática, Geodésica, Geoprocessamento e Cartografia. Segundo eles, esses profissionais, em sua maioria, vêm dos estados de Minas e Espírito Santo.

2. Programas de formação de mão de obra para a indústria petrolífera

O governo federal e grandes empresas como a Petrobras têm elaborado programas que tratam especificamente da qualificação de profissionais técnicos de nível médio. Serão apresentados alguns desses programas sem qualquer tipo de análise quanto aos seus re-sultados.

2.1 Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec)Criado em 2011, o Pronatec tem como objetivo principal am-

pliar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica. Ou-

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tras metas são buscadas como: (i) expandir, interiorizar e democra-tizar a oferta de cursos de educação profissional técnica de nível médio e de cursos de formação inicial e continuada ou qualificação profissional presencial e a distância; (ii) construir, reformar e am-pliar as escolas que ofertam educação profissional e tecnológica nas redes estaduais; e (iii) aumentar a quantidade de recursos pedagó-gicos para apoiar a oferta de educação profissional e tecnológica (Brasil, 2012).

São oferecidos pelo programa três tipos de cursos:

– técnico, para quem concluiu o ensino médio, com duração mínima de um ano;

– técnico, para quem está matriculado no ensino médio, com duração mínima de um ano;

– formação inicial e continuada ou qualificação profissional, para trabalhadores, estudantes do ensino médio e benefici-ários de programas federais de transferência de renda, com duração mínima de dois meses (BRASIL, 2012).

Os cursos são gratuitos e oferecidos nas escolas públicas fe-derais, estaduais e municipais, nas unidades de ensino do SENAI, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) e Serviço Nacional de Aprendizagem em Transporte (SENAT), em instituições privadas de ensino superior e de educação profissional técnica de nível médio (BRASIL, 2012).

O IFFluminense disponibilizou em 2014, para 24 municípios do Estado do Rio de Janeiro, 430 vagas para cursos técnicos e 4.530 para os de formação inicial e continuada (IFFluminense, 2014a). Em Cam-pos dos Goytacazes, instituições do Sistema S como o SENAI, SENAC e SENAT também participam do programa ofertando cursos técnicos nas áreas de soldagem, eletrônica, petróleo e gás, segurança do traba-lho, logística, inglês básico, dentre outras (BRASIL, 2014a).

2.2 Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp)O Prominp foi criado em 2003 por meio de uma ação coorde-

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nada pelo Ministério de Minas e Energia e a Petrobras. Tem como objetivo ampliar a participação da indústria nacional no forneci-mento de bens e serviços tornando-a competitiva mundialmente (BRASIL, 2013a).

Para tal, estruturou-se um conjunto de projetos e de iniciativas com diferentes focos: (i) capacidade industrial e desempenho em-presarial; (ii) inovação e desenvolvimento tecnológico; (iii) instru-mentos de política industrial; e (iv) capacitação (BRASIL, 2013c). Este último envolve a qualificação profissional estruturada em 2006 pelo Plano Nacional de Qualificação Profissional (PNQP) que tem, como objetivo, qualificar profissionais com atuação nos diferentes segmentos da cadeia de suprimentos do setor de O&G. Oferece cur-sos gratuitos de nível básico, médio, técnico e superior em locais onde há investimento na área de petróleo e gás. Conta com duas vertentes: o aluno-público, escolhido por meio de processo seletivo público, e o aluno-empresa, por meio de empresas parceiras que podem selecionar conforme seu próprio quadro de funcionários (aluno-empresa contratado) ou pelo mercado (aluno-empresa recru-tado) (BRASIL, 2013b).

Outras ações foram impulsionadas pela necessidade da qua-lificação profissional, como o desenvolvimento de simuladores. A partir de convênios firmados entre a Petrobras e o SENAI fo-ram criados o Simulador de Controle de Lastro, o Simulador de Processos e Facilidades de Petróleo (AmbTrei) e o Simulador de Guindastes offshore, este último desenvolvido com tecnologia to-talmente nacional e instalado na cidade de Macaé/RJ. Com esse mesmo propósito desenvolveram-se sondas-escola para simular as principais atividades de profissionais que atuam em sondas de perfuração como o plataformista, o torrista e o sondador. Atu-almente o Instituto Federal de Mossoró/RN, o SENAI de Sal-vador/BA e o SENAI de Macaé/ RJ instalaram essas unidades (BRASIL, 2013b).

2.3 Programa Petrobras de Formação de Recursos Humanos (PFRH)No contrato de concessão para a exploração, desenvolvimento

e produção de petróleo e gás natural é determinado o investimento,

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por parte do concessionário, de 1% da receita bruta da produção dos campos em que é devida a participação especial, em pesquisa e desenvolvimento (IFFluminense, 2013).

Desde 2009, a Petrobras, em parceria com a Agência Nacio-nal de Petróleo (ANP), utiliza parte dessa verba no PFRH, que tem como objetivos ampliar e fortalecer a formação de recursos huma-nos para a indústria de petróleo, gás, energia e biocombustíveis, por meio da concessão de bolsas e da taxa de bancada (IFFluminense, 2013).

As bolsas são destinadas a estudantes de níveis técnico e su-perior (graduação, mestrado e doutorado), coordenadores e pes-quisadores. A seleção dos bolsistas, feita por meio de um edital, é de competência exclusiva das instituições de ensino conveniadas. O estudante selecionado deverá obter melhores resultados de par-ticipação nos estudos, desenvolver pesquisas e atividades ligadas às áreas de petróleo, gás, energia, meio ambiente e biocombustíveis e, ao final, apresentar os resultados dos trabalhos em uma Feira de Ciência e Tecnologia. Espera-se, com as bolsas, incentivar a perma-nência dos alunos em cursos técnicos, diminuindo a evasão escolar (IFFluminense, 2013).

A taxa de bancada destina-se às despesas relacionadas à melho-ria das atividades do programa, em especial àquelas que envolvem os laboratórios das instituições de ensino (IFFluminense, 2013).

O programa investe nas áreas de conhecimento que são estra-tégicas para a indústria de petróleo e gás, nas de apoio às atividades do setor e prioriza os estados em que a Petrobras tem maiores inves-timentos (BRASIL, 2013d).

Em janeiro de 2010, a Petrobras iniciou um projeto piloto com dois institutos federais: o Instituto Federal Fluminense (IFFluminen-se) e o Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) (IFFlumi-nense, s/d).

Até agora foram dois convênios assinados entre o IFFluminen-se, a Petrobras e a Fundação Pró-IFF que cuida da gestão e execução dos recursos. O primeiro, para o período 2010-2012, contou com 711 bolsas distribuídas em três campi e envolveu alunos ligados às áreas de Automação Industrial, Eletrotécnica, Mecânica, Química, Meio Ambiente, Eletrônica e Eletromecânica. O segundo, para o

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período 2013-2016, totaliza 1.246 bolsas e conta com alunos de oito campi distribuídos nas áreas citadas acima, acrescidas de Petróleo e Gás, Segurança do Trabalho, Eletrônica (naval) e Metalurgia (IFFlu-minense, s/d).

Os resultados das pesquisas feitas pelos alunos-bolsistas desse instituto são publicados na revista Bolsista de Valor, em dois volumes e mais de 100 artigos. Dentre os assuntos tratados estão a termogra-fia, a sustentabilidade, o uso de biocombustíveis e a perfuração de poços (IFFluminense, s/d).

2.4 Programa Petrobras Jovem Aprendiz (PPJA)Realizado com base na Lei nº. 10.097, de 19 de dezembro de

2000, e no Decreto nº. 5.598, de 1º de dezembro de 2005, o Progra-ma Jovem Aprendiz é uma iniciativa do governo federal que, desde 2005, promove a capacitação de jovens brasileiros aumentando suas chances de atuação no mercado de trabalho. Conta com a parceria de grandes empresas como a Petrobras, os Correios, entre outras (BRASIL, s/d)8.

O Programa Petrobras Jovem Aprendiz (PPJA) tem duração de dois anos, divididos entre cursos de formação básica, qualificação profissional e vivência na Petrobras com acompanhamento profis-sional (PETROBRAS, 2014b).

Para se inscrever no programa o jovem precisa estar em situação de vulnerabilidade social (a partir da renda familiar e do cadastro único do governo federal), ter de 15 a 21 anos, frequentar o sistema de ensino regular e residir no entorno das unidades da Petrobras. Possui todas as garantias de qualquer trabalhador brasileiro, como a carteira de trabalho assinada, recebimento de um salário mínimo, FGTS, vale-transporte e férias (PETROBRAS, 2014b)9.

A gestão, supervisão e acompanhamento do programa são fei-tos por instituições sociais conveniadas à Petrobras (PETROBRAS, 2014b). Na região da Bacia de Campos, a Fundação Valença Filho (Fundação CR3) é responsável pelo programa no período 2013-2015 e atende atualmente 850 alunos, num total de 11 municípios bene-ficiados, dentre Campos dos Goytacazes e Macaé (FUNDAÇÃO VA-LENÇA FILHO, 2013).

Em Campos dos Goytacazes o processo seletivo coordenado

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por essa fundação consta de uma avaliação de Matemática e de Por-tuguês. Depois de aprovados, os alunos fazem provas com caráter diagnóstico.

Na formação básica são ministradas aulas de Matemática, de Português, de introdução a profissões industriais, entre outros as-suntos. A ementa de Matemática consta de assuntos tradicionais do ensino médio como trigonometria, probabilidade, funções elemen-tares, sequências e progressões, sistemas lineares e geometria ana-lítica.

Ainda em Campos, a etapa de qualificação é feita no SENAI. Na vivência profissional os alunos são encaminhados para empresas indicadas pela Petrobras.10

3. Considerações finais

A formação de mão de obra para a indústria de petróleo e gás na região NF ocorre desde a descoberta dos primeiros poços na Ba-cia de Campos feita pela Petrobras na década de 1970.

Em aproximadamente 40 anos muitas transformações foram promovidas na indústria e na escola. Porém, percebe-se um descom-passo no ritmo dessas mudanças. No ambiente escolar elas são im-plementadas de forma lenta, ao contrário da indústria petrolífera que precisa prever e antecipar problemas e soluções.

No mundo produtivo, há um ritmo imposto pela necessidade e pelo aparato tecnológico. No meio educacional, é possível constatar que referências bibliográficas do fim do século passado possuem o mesmo conteúdo dos anos atuais, ou seja, em 15 anos um mesmo autor trata em seus trabalhos dos mesmos assuntos. Sinal de um novo tempo carregado de velhas ideias.

As novas demandas do mundo do trabalho exigem competên-cias para um trabalhador que pensa, critica, é autônomo em suas decisões, sabe trabalhar em grupo e se comunicar.

A pesquisa detectou conteúdos e metodologias que precisam ser revisitados ou postos em prática. Alguns temas como a leitura de gráficos e mapas, o uso do cálculo mental, das tecnologias e da resolução de problemas foram bastante citados e não constam no cotidiano da grande parte dos professores do ensino médio.

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Além da importância da Matemática, foi ponto comum em to-dos os discursos da pesquisa a necessidade de se ofertar uma Educa-ção Básica de qualidade, sem a qual não há como promover avanços na formação dos técnicos de nível médio.

O binômio educação–indústria petrolífera vem ganhando destaque com as ações do governo federal. Para garantir mais recursos orçamentários para essa área foi sancionada a Lei nº. 12.858, de 9 de setembro de 2013, que determina que 75% dos royalties do petróleo e 50% do Fundo Social do Pré-sal sejam usa-dos na educação.

Embora seja importante tal investimento, é necessário o seu bom uso para que o mesmo se reverta em benefício para a população e para a própria indústria do petróleo. A qualidade do ensino passa por uma discussão mais ampla, incluindo os objetivos que as instituições educacionais devem traçar na busca pelo desenvolvimento regional.

Num mercado exigente, que comporta a expressão Right the first time (Faça certo da primeira vez), é válido lembrar que: “Para um jovem entrar no mercado de trabalho, não basta ter diplomas; é preciso ter respostas. A empregabilidade depende da boa edu-cação: bom senso, lógica de raciocínio, criatividade, autonomia, capacidade de trabalhar em grupo e de educar-se permanentemen-te” (PASTORE, 2006).

Espera-se que o Norte Fluminense não desperdice essa nova oportunidade com as descobertas de petróleo no Pré-sal. É preciso fazer certo dessa vez.

NOTAS1 Este texto tem por base a dissertação de mestrado da primeira autora, Educação e trabalho: as demandas matemáticas da indústria petrolífera do Norte Fluminense defen-dida em 2014 na Universidade Cândido Mendes - Campos dos Goytacazes, sob a orientação da professora doutora Rosélia Piquet. Foi elaborada no âmbito do Pro-jeto “Política, tecnologia e interação social na educação” e financiada pelo Progra-ma Observatório da Educação no Brasil (OBEDUC/CAPES), sob coordenação das professoras Tamara Tânia Cohen Egler (IPPUR/UFRJ), Cláudia Werner (COOPE/UFRJ) e Elis de Araújo Miranda (CULT/PPG/UFF).2 Os técnicos de nível médio compõem o terceiro grupo da Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) do Ministério do Trabalho e Emprego (BRASIL, 2010).3 O setor upstream refere-se à exploração, desenvolvimento e produção.

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4 1 in = 25,4 mm; 1 bbl= 158,987 dm3; 1 gpm= 6,309 x 10-5 m3/s; 1 bpd = 1,840.131 x 10-6 m3/s. 5 Para maiores informações sobre o software Hydropro, consultar:

<http://construction.trimble.com/products/marine-systems/hydropro-software>.6 Os jogos estão disponíveis em: <http://www.mangahigh.com/pt-br/>.7 O software Geogebra está disponível em:<http://www.geogebra.org>.8 A Lei nº. 10.097 está disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10097.htm e o Decreto nº. 5.598, disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5598.htm.9 Na faixa etária de 15 a 21 anos e 11 meses são oferecidas vagas nas áreas adminis-trativas e na de 17 anos e 9 meses a 21 anos e 11 meses, vagas nas refinarias e em laboratórios de pesquisa (PETROBRAS, 2014b).10 As informações referentes ao Programa Petrobras Jovem Aprendiz em Campos dos Goytacazes foram obtidas em entrevista concedida à primeira autora no dia 23 de maio de 2014 pela coordenadora do programa no Polo Campos.

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parte ii SOBRE AS SENSORIALIDADES

NO LUGAR

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Subjetividade e modernidade na obra poética de Mário Quintana13

Priscila Viana Alves14

Elis de Araújo Miranda

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar a cidade na modernidade por meio de autores como Henri Lefebvre e dialogar com o filósofo Walter Benjamin. Essa interseção elucidará uma possível leitura so-bre as transformações no espaço urbano na cidade de Porto Alegre, no Sul do Brasil, a partir da leitura das poesias de Mário Quintana, orientado pela obra de Benjamin sobre Baudelaire.

Os poetas compreendem e sentem as transformações no espa-ço urbano claramente e eternizam-nas em sua obra. Compreende-se que a leitura simbólica do espaço não se opõe à leitura realizada pela ciência, pelo contrário, essas diferentes leituras podem solida-riamente ampliar o conhecimento de mundo dos sujeitos.

Mário de Miranda Quintana, poeta gaúcho, nasceu na cidade de Alegrete, a 30 de junho de 1906, e faleceu em 1994, em Porto Alegre. A capital gaúcha foi sua morada em grande parte de sua vida e suas experiências nessa cidade, como expressam seus po-emas. Pode-se afirmar que a obra de Mário Quintana retrata um encontro da Literatura e da Geografia, a literatura com a sua lin-guagem poética, e a Geografia, e com a descrição da Geograficidade (DARDEL, 2015) nas experiências poéticas em Porto Alegre, o seu lugar (TUAN, 2013).

13 Este artigo foi elaborado com recursos do Programa Observatório da Educação no Brasil – OBEDUC/CAPES (2013-2016).14 Graduada em Geografia no Instituto Federal Fluminense. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ. Discente do Progra-ma de Pós-Graduação em Geografia – PPG/UFF/Campos.

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1. A cidade na modernidade

O sistema capitalista engendra o espaço segundo os interesses de mercado e não tem compromisso em manter os laços afetivos dos sujeitos com o lugar. Como afirma Henri Lefebvre (1999, p. 27): “O espaço e a política do espaço ‘exprimem’ as relações sociais, mas reagem sobre elas”. Ou seja, o espaço se transforma conforme a sociedade em cada período histórico.

Diante da crise da sociedade urbana, Lefebvre dialoga com ar-gumentos a favor e contra a rua e a cidade. Para ele a rua é o lugar privilegiado da experiência e da interação social. A favor da rua ele elenca alguns argumentos tais como: a rua como lugar de encontro, a rua tem função informativa, tem função simbólica e lúdica, os acontecimentos revolucionários acontecem na rua. É no espaço de todos que se exprimem as necessidades pessoais. “A rua? É o lugar (topia) do encontro, sem o qual não existem outros encontros pos-síveis nos lugares determinados (cafés, teatros, salas diversas). Esses lugares privilegiados animam a rua e são favorecidos por sua anima-ção, ou então não existem” (LEFEBVRE, 1999, p. 29).

Na cidade moderna a experiência foi abolida pela lógica merca-dológica do capitalismo, e desse modo não há tempo para vivenciar o espaço urbano e fazer dele um lugar. Destarte, têm-se argumentos contra a rua: encontros superficiais, a lógica do lucro desenvolve-se na rua, lugar privilegiado da repressão, passagem solitária. Lefebvre fala de uma “colonização do espaço urbano” (1999, p. 31) por meio da publicidade. Isto é a apropriação privada do espaço coletivo.

A cidade inteira é apropriada pelo mundo da mercadoria, pois o valor de troca se sobrepôs ao valor de uso do espaço da rua. Os mercadores tornaram-se os mestres e não mais os sujeitos se apro-priam coletivamente do espaço, posto que este se tornou palco pri-vilegiado de compra e venda de objetos. Lefebvre afirma que,

o mundo da mercadoria desenvolve-se na rua. A mercadoria que não pode confinar-se nos lugares especializados, os mercados (praças...) invadiu a cidade inteira. Na antiguidade as ruas eram apenas anexos dos lugares privilegiados: o templo, o estádio, a ágora, o jardim. Mais tarde, na Idade Média, o artesanato ocupa-va as ruas. O artesão era, ao mesmo tempo, produtor e vendedor.

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Em seguida, os mercadores, que eram exclusivamente mercado-res, tornaram-se os mestres. A rua? Uma vitrina, um desfile entre as lojas. A mercadoria, tornada espetáculo umas para as outras. Nela, mais que noutros lugares, a troca e o valor de troca preva-lecem sobre tudo, até reduzi-lo a um resíduo (1999, pp. 30; 31).

Marshall Berman (1986), ao falar dos paradigmas do planeja-mento urbano do século xx, idealizado por Le Corbusier e seu “ho-mem novo” da modernidade, afirma que será o “homem do carro”. A rua, desse modo, não é mais do encontro dos sujeitos, mas sim dos passantes e consumidores que não mantêm relações perenes com o lugar.

Segundo Berman,

nessa rua, como na fábrica moderna, o modelo mais bem equi-pado é o mais altamente automatizado: nada de pessoas, exceto as que operam as máquinas; nada de pedestres desprotegidos e desmotorizados para retardar o fluxo. ‘Cafés e pontos de recre-ação deixarão de ser os fungos que sugam a pavimentação de Paris’. Na cidade do futuro, o macadame pertencerá somente ao tráfego (1986, p. 161).

Berman debate o ser humano na cidade moderna, lançado ao caos e que necessita sobreviver se adaptando a ele. É preciso moldar o corpo, mas também a sensibilidade para alcançar novos procedi-mentos para sobreviver, pois o novo tempo requer especificidades. O autor dá o exemplo de Baudelaire:

O homem na rua moderna, lançado nesse turbilhão, se vê reme-tido aos seus próprios recursos — frequentemente recursos que ignorava possuir — e forçado a explorá-los de maneira desespe-rada, a fim de sobreviver. Para atravessar o caos, ele precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se aos movimentos do caos, precisa aprender não apenas a pôr-se a salvo dele, mas a estar sempre um passo adiante. Precisa desenvolver sua habilidade em maté-ria de sobressaltos e movimentos bruscos, em viradas e guinadas súbitas, abruptas e irregulares — e não apenas com as pernas e o corpo, mas também com a mente e a sensibilidade. Baudelaire mostra como a vida na cidade moderna força cada um a realizar esses novos movimentos; mas mostra também como, assim pro-

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cedendo, a cidade moderna desencadeia novas formas de liber-dade. Um homem que saiba mover-se dentro, ao redor e através do tráfego (BERMAN, 1986, p. 154).

Lefebvre, ao falar de Le Corbusier, diz que este suprimiu a rua com a criação dos “novos conjuntos” e viu as consequências: “A ex-tinção da vida, a redução da ‘cidade’ a dormitório, a aberrante fun-cionalização da existência. A rua contém as funções negligenciadas por Le Corbusier: a função informativa, a função simbólica, a fun-ção lúdica. Nela joga-se, nela aprende-se”. (LEFEBVRE, 1999, p. 30).

A defesa da rua feita por Henri Lefebvre evidencia a impor-tância da cidade concebida como reunião, simultaneidade e do en-contro entre os sujeitos que habitam o espaço urbano. Para a trans-formação da cidade da mercadoria é necessária uma mudança na prática social, em que o espaço “lúdico”, “vivido” supere os espaços de troca e circulação. “A passividade dos que habitam, mas que po-deriam e deveriam ‘habitar como poetas’ (Holderlin)” (LEFEBVRE, 1999, p. 165) é o apelo que Lefebvre faz para todos os habitantes da cidade.

Kuster e Pechman falam da rua das multidões, que seria a rua do século xIx, que foi destruída pelo avanço do capitalismo e pelas reformas urbanas, que “matam” a rua enquanto palco da experiên-cia, o que resulta na perda da urbanidade, ou melhor, da identidade urbana. Para esses autores:

As ruas tomadas pela multidão do século 19 não têm espaço no perfil que o modernismo planeja para a nova cidade, cuja prioridade é a circulação dos automóveis. Dentro dos objetivos traçados por esse novo ordenamento, a setorização que dividia o espaço urbano entre residências, trabalho, lazer e circulação visava eliminar a mistura de atividades que o caracterizava até então, eliminando também a grande quantidade de pessoas que transitavam a pé nas ruas (KUSTER, PECHMAN, 2014, pp. 71, 72):

Os habitantes da cidade são, a partir do século xx, reduzi-dos a meros consumidores e transeuntes, não são mais sujeitos que vivenciam e apropriam-se politicamente da rua. A cidade ca-

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pitalista construída e remanejada segundo a lógica de circulação de lucro destrói a possibilidade de apropriação coletiva, o que desencadeia na repartição do espaço urbano. No entanto a arte pode ser um poderoso caminho de resgatar o brilho da cidade e da rua, pois ela pode ser apropriada por sujeitos que podem revelar seus encantos.

2. Experiências na cidade

Segundo Tuan (2013, p. 18) “[...] experiência é aprender, sig-nifica atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência, uma criação de sen-timento e pensamento”. Destarte, o espaço pode ser experienciado de diferentes maneiras, o que dependerá da forma que uma pessoa conhece e constrói a realidade por meio dos sentidos (visão, audi-ção, olfato, paladar e tato) e da forma com que se percebe, vivencia, sente, experimenta o mundo.

Habitar na cidade é uma arte “[...] deixando a representação, o ornamento, a decoração, a arte pode se tornar práxis e poiesis em escala mundial: a arte de viver na cidade como obra de arte” (LE-FEBVRE, 2006, p. 134). Isto quer dizer que o viver na cidade deve ser prazeroso e não perpassado por todo tipo de mazelas sociais. Todavia, a história do espaço no terceiro mundo é seletiva, isto é, o espaço é marcado pelas desigualdades de renda da sociedade.

As transformações mais enérgicas do espaço urbano na vida moderna podem ser percebidas pela arte, sobretudo pela litera-tura. “A manifestação das divisões de classe na cidade moderna implica divisões interiores no indivíduo moderno” (BERMAN, 1986, p. 148). A humanidade muda na medida em que a condi-ções materiais se alteram. Walter Benjamin afirma, ao se referir a Baudelaire, no início de sua trajetória poética, que ele desejava a conquista da rua:

Mais tarde, após abandonar, passo a passo, sua existência bur-guesa, a rua tornou-se para ele cada vez mais um refúgio. Mas na flanerie desde o início havia uma consciência da fragilidade desta existência. Na flanerie, a necessidade se faz uma virtude; o que

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mostra a estrutura característica da concepção do herói em Bau-delaire em todas as suas manifestações (BENJAMIN, 1975, p. 7).

Benjamin, em um trecho de Rua de mão única nomeado Sombras curtas, crítica a arquitetura do século xx, que diferente da arquitetu-ra do século xIx, apaga os vestígios dos sujeitos:

Pois os novos arquitetos obtiveram isso com o seu aço e vidro: criaram espaços onde não é fácil deixar vestígios. ‘Depois do que foi dito’ – escreveu Scheerbarte já há vinte anos – ‘pode-se muito bem falar de uma `cultura de vidro´. O novo ambiente de vidro transformará completamente o ser humano. E agora só resta de-sejar que a nova cultura de vidro não encontre oponentes em demasia’ (1987, p. 266).

Esse “ambiente de vidro” da modernidade condiciona a vi-vência dos indivíduos, pois modela segundo seus padrões as ações humanas. Desse modo, as relações sociais tornam-se ainda mais desgastadas, instáveis, em “choque”. “A vida urbana moderna é ca-racterizada pela colisão de sensações fragmentadas e descontínuas” (EAGLETON, 2011, p. 114).

Para Walter Benjamin (1989) o lugar privilegiado do flâneur são as ruas pelas quais ele percorre e vivencia o espaço da cidade. Ele compara o flâneur ao poeta Baudelaire, pois este era observador atento das transformações de Paris do limiar da modernidade.

Para Benjamin:

A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas qua-tro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das fir-mas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, ob-serva o ambiente. Que a vida em toda a sua diversidade, em toda a sua inesgotável riqueza de variações, só se desenvolva entre os paralelepípedos cinzentos e ante o cinzento pano de fundo do despotismo: eis o pensamento político secreto da escritura de que faziam parte as fisiologias (BENJAMIN, 1989, p. 35).

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O flâneur é um detetive, justificativa para a sua “indolência” de observador de tudo a sua volta, o que pode ser comparado ao ofício do artista, do poeta. Os sujeitos experimentam o espaço da cidade por meio de uma percepção apurada.

Para tal a flanerie oferece as melhores perspectivas. ‘O observa-dor — diz Baudelaire — é um príncipe que, por toda a parte, faz uso do seu incognito.’ Desse modo, se o flâneur se torna sem querer detetive, socialmente a transformação lhe assenta mui-to bem, pois justifica a sua ociosidade. Sua indolência é apenas aparente. Nela se esconde a vigilância de um observador que não perde de vista o malfeitor. Assim, o detetive vê abrirem-se a sua autoestima vastos domínios. Desenvolve formas de reagir convenientes ao ritmo da cidade grande. Capta as coisas em ple-no voo, podendo assim imaginar-se próximo ao artista (BENJA-MIN, 1989, p. 38).

Benjamin, sobre Baudelaire, diz que,

Fugindo dos credores, metia-se em cafés ou em círculos de lei-tura. Aconteceu de habitar dois domicílios ao mesmo tempo, mas, no dia em que o aluguel estava por vencer, pernoitava num terceiro, em casa de amigos. Vagueava, assim, pela cidade, que há muito já não era a pátria do flaneur (BENJAMIN, 1989, p. 44-45).

A arte tem a possibilidade de evidenciar as experiências huma-nas com o lugar, como colabora Tuan (2013, p. 200), “uma função da arte literária é dar visibilidade a experiências íntimas, inclusive às de lugar”. Sobretudo a literatura com alusão às pequenas coisas ao redor “que de outro modo passariam despercebidas” (TUAN, 2013, p. 200).

As expressões artísticas são meios pelos quais se apreende a realidade exterior. “A arte e a arquitetura buscam visibilidade. São tentativas de dar forma sensível aos estados de espírito, sentimentos e ritmos da vida diária. A maioria dos lugares não são criações deli-beradas, eles são construídos para satisfazer necessidades práticas” (TUAN, 2013, p. 204).

Desse modo, os laços afetivos e práticos que ligam o ser huma-

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no à Terra e seus conhecimentos teórico e simbólico são fundamen-tais para a interpretação do mundo. A geografia deve ser entendida como meio pelo qual a humanidade realiza a sua existência, o que significa afirmar que a geografia é o caminho, a “base a partir da qual a consciência se desenvolve [...]” (DARDEL, 2015, p. 48). A consciência humana tem a sua fundação e seu limite na Terra, assim a realidade geográfica humana é o lugar onde se está, onde a pre-sença humana se encontra.

O espaço urbano faz parte das experiências íntimas dos indi-víduos, todavia, essa experiência tem se tornado mais supérflua. As percepções dos sujeitos em relação as suas habitações e ruas que criam afetividade e o sentimento de lugar.

Para Tuan:

A rua onde se mora é parte da experiência íntima de cada um. A unidade maior, o bairro, é um conceito. O sentimento que se tem pela esquina da rua local não se expande automaticamente com o passar do tempo até atingir todo o bairro. O conceito de-pende da experiência, porém não é uma consequência inevitável da experiência (TUAN, 2013, p. 208).

As relações citadinas produzem significados que explicam a “cidade é um lugar, um centro de significados, por excelência. Possui muitos símbolos bem visíveis. Mais ainda, a própria ci-dade é um símbolo” (TUAN, 2013, p. 211). As ruas são o palco em que os sujeitos dão visibilidade para as suas manifestações afetivas.

Tuan afirma que a cidade-estado da Grécia antiga “era suficien-temente pequena para que todas as pessoas pudessem se conhecer pessoalmente” (TUAN, 2013, p. 215). Todavia “a moderna nação-es-tado é grande demais para ser assim experienciada. É preciso recor-rer a meios simbólicos para que a grande nação-estado pareça um lugar concreto – não apenas uma ideia política – pelo qual o povo possa sentir uma profunda afeição” (TUAN, 2013, p. 215). Assim, a moderna cidade necessita essencialmente dos aspectos simbólicos para ser experienciada.

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3. O poeta da cidade

Em sua poesia, Mario Quintana expressa sua experiência com a cidade de suas memórias e a cidade que se reconfigura na con-temporaneidade. Em sua obra os lugares que não existem mais são exaltados, a cidade atual produz no poeta melancolia e desilusão. Mario Quintana morava em hotéis, lugares coletivos, e se inspirava nas ruas, lugares de passagens, todavia não perdia sua experiên-cia pessoal, por isso mesmo era um flâneur. Para Benjamin “havia o transeunte, que se enfia na multidão, mas havia também o flâ-neur, que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade” (BENJAMIN, 1989, p. 50).

Merleau-Ponty corrobora,

Assim como a natureza penetra até no centro de minha vida pessoal, e entrelaça-se a ela, os comportamentos também des-cem na natureza e depositam-se nela sob a forma de um mundo cultural. Não tenho apenas um mundo físico, não vivo somente no ambiente da terra, do ar e da água, tenho em torno de mim estradas, plantações, povoados, ruas, igrejas, utensílios, uma si-neta, uma colher, um cachimbo. Cada um desses objetos traz implicitamente a marca da ação humana à qual ele serve (MER-LEAU-PONTY, 2011, p. 465).

No universo de Quintana, quem merece sua atenção é jus-tamente aquilo que no geral os indivíduos não dão valor e até mesmo nem pensam ser dignas de importância. O poeta ti-nha uma relação de intimidade e confiança com os objetos, os lugares e as coisas. Tudo se tornava poesia. Ele se apropria-va do espaço da rua como espaço de vivência e não somen-te de passagem. Ou seja, valorizava como único e particular o de e para todos. “A Rua da Praia é o meu chão e o meu céu” (CARVALHAL, 1985).

Edgar Morin revela sobre a poesia,

A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais que a literatura, leva-nos a dimensão poética da exis-tência humana. Revela que habitamos a Terra, não só pro-saicamente – sujeitos à utilidade e à funcionalidade – mas

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também poeticamente, destinados ao deslumbramento, ao amor, ao êxtase. Pelo poder da linguagem, a poesia nos põe em comunicação com mistério, que está além do dizível (MORIN, 2003, p. 45).

A poesia revela em sua subjetividade o que o poeta apre-ende do mundo vivido e experiencia pelo desvelamento dos encantos da cidade. Ele revela sua sensibilidade ao reconhecer as cores que pode ter uma cidade. As alterações no aspecto do espaço revelam a mudança da própria sociedade. Mario Quin-tana evidencia seu raciocínio geográfico desenvolvido e sua re-presentação do vivido examinado minuciosamente pela diferen-ciação dos espaços por detalhes singelos em sua estética e sua multiplicidade:

MagiasConheço uma cidade azul.Conheço uma cidade cor de ferrugem.Na primeira, há helicópteros pairando...Na segunda, espiam de seus esconderijos os olhos das [ratazanas...No entantoé a mesma cidadee,onde a gente estiver,será sempre uma alma extraviada em labirintos [escusosou, então, uma alma perdida de amor...Sim! por ser habitado por almasé que este nosso mundo é um mundo mágico...onde cada coisa – a cada passo que se dervai mudando de aspecto...de forma... de cor... Vai mudando de alma! (QUINTANA,1986, s/p).

O autor fala das transformações urbanas de Porto Alegre e a praça agitada como centro da metrópole gaúcha. Pode-se comparar o desenvolvimento industrial e a urbanização “situando” e “ambien-

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tando” o cenário da cidade. Ela é palco da modernidade, local onde “homens passam”, mas “nada veem”. Essa é a principal caracterís-tica do ser humano moderno que perdeu o sentido do flâneur. As mudanças provenientes da urbanização, isto é, o crescimento das cidades assustava o poeta e condenava ao desaparecimento muitos lugares outrora estimados. Acompanhou sua evolução e modifica-ção espacial de Porto Alegre, mas preservou afetivamente em sua memória a sua paisagem pretérita:

UrbanísticaPraça pública agitada. Pleno ventre da metrópole.A tarde vai morrendo, dolorosamente...E eu... eu esmoreço e me fanoLentamente, à feição de menina amorosa...Homens passam, no entanto, a todo pano,Homens que nada veem, positivos, e a rosaPudenda e nua da emoção e não amam...Beleza triste dos crepúsculos em prosa,Inutilmente, sobre o bruhahá urbano.

O alerta do poeta direcionado à “meninazinha” se estende aos habitantes da cidade que necessitam “alimentar” os olhos e as per-cepções com a crítica a estética. A paisagem como alimento para os olhos, ou seja, para a percepção, deve ser preservada em seu aspecto e não totalmente diluída pela transformação e metropolização das cidades:

Passeio suburbanoEncontrei uma meninaque me perguntou se era verdade que iam demolir [aquele belíssimo pé de figueira.Não, ela não disse belíssimo...Foi por uma questão de ritmo que acrescentei aqui [esse adjetivo inútil.Feliz de quem vive ainda no mundo dos substantivos:o resto é literatura...Sorri-lhe cumplicemente(e tristemente)porque me lembro que em meio ao quintal lá de casahavia uma paineira enorme

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(ultrapassava em altura o primeiro andar de meu [quarto) Quando florescia, era uma glória!Talvez fosse ela que impediu que meus sonhos de [menino solitáriotenham sido todos em preto-e-branco.Uma glória... Até que um diafoi posta abaixosimplesmenteporque prejudicava o desenvolvimento das árvores [frutíferas.Ora, as árvores frutíferas!Bem sabes, meninazinha, que os nossos olhos também [precisam de alimento (QUINTANA,1986, s/p).

A obra de Quintana está repleta de signos espaciais e poéti-cas acerca da cidade, Porto Alegre/RS e a sua rua, a Rua dos An-dradas, antiga Rua da Praia (localização do Hotel Magestic, lugar em que ele viveu até sua morte em 1994) é uma das principais referências do poeta na cidade. A consideração da experiência concreta de estar em casa em relação ao espaço, ou ainda, con-siderar o espaço como um sujeito em sua poesia são marcas da poesia de Mário Quintana.

Considerações finais

Henri Lefebvre debate a apropriação da cidade pela merca-doria, em que as ruas são abarcadas pelo consumo. A coloniza-ção da imagem da cidade pela publicidade, informação que está subordinada ao consumo, principalmente nos países subdesen-volvidos. A rua é palco em que a população pobre ganha o sus-tento para a sobrevivência diária, pois não há segurança do dia de amanhã.

A superação da cidade capitalista e o resgate do frescor das ruas se darão pela transformação dos sujeitos mais autônomos, cria-tivos e politicamente engajados. A cidade idealizada por Lefebvre comportaria a obsolescência do espaço, isto quer dizer que estaria em constante mudança, concebida como obra, subordinada apenas

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aos desejos de todos os habitantes da cidade. A modelagem do es-paço urbano seria realizada coletivamente, pelo movimento, pelo encontro, como o “teatro espontâneo” de valorização da liberdade (LEFEBVRE, 2006, p. 133). O espaço urbano da utopia, segundo Lefebvre seria o gerido pelos próprios anseios dos sujeitos e apro-priado pela coletividade.

A modernidade é apreendida pelos poetas em suas andan-ças, como se pode analisar tanto na poesia de Baudelaire e Mario Quintana. Eles evidenciam que o espaço da cidade é material ri-quíssimo para se compreender as transformações da modernida-de. Essas transformações são tanto espacialmente, como na men-talidade dos sujeitos que habitam no espaço urbano. “Os poetas encontram na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazem sua crítica heroica” (BENJAMIN, 1975, p. 14). Os poetas são heróis, pois desbravam pela arte os descaminhos do sistema capitalista. É necessário resgatar essa vontade de flanar, de percorrer o espaço sem medo.

As expressões da arte são meios pelos quais os sujeitos eviden-ciam suas vivências, o que, como afirma Merleu-Ponty (2011), de-monstra mais que o mundo físico, pois demonstram o mundo dos signos e da imaterialidade. A imaginação vai além da realidade percebida, por isso os espaços imaginados extrapolam a evidência sensorial (TUAN, 2013, p. 26).

REFERêNCIAS

BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Tradução de Heindrun Krie-ger Mendes da Silva, Arlete de Brito e Tania Jatobá. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-leiro, 1975. (Biblioteca Tempo Universitário, 41).

______. Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987 (Obras escolhidas Volume II).

______. Charles Baudelaire – um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989 (Obras Escolhidas III).

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da moder-nidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti e Marcelo Macca. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 1986.

CARVALHAL, Tania Franco. Mario Quintana dos 8 aos 80. Porto Alegre: Relató-rio da diretoria da Samrig, 1985.

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DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. Tradução: Werther Holzer. São Paulo: Perspectiva, 2015[1954].

EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Tradução de Matheus Corrêa. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

KUSTER, Eliana; PECHMAN, Robert. O chamado da cidade: ensaios sobre a urba-nidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Edufmg, 1999.

______. O direito à cidade. 4ª ed. São Paulo: Centauro, 2006.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 4° ed. São Paulo: Edi-tora WMF Martins Fontes, 2011.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertran Brasil, 2003.

QUINTANA, Mario. Baú de espantos. Porto Alegre: Editora do Globo, 1986.

______. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

TUAN, Yi, FU. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2013.

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Cinema e Educação: passividade e indiferença.

Joilson Bessa da Silva

Introdução

O artigo apresenta um exercício metodológico a partir da apli-cação do cinema no campo da educação, visto como um instrumen-to didático e de formação de sujeitos a partir da produção de filmes cujo tema selecionado foi “Problemas Socioambientais Urbanos”. Por fim, pretende relatar uma experiência cinematográfica desen-volvida na Escola Municipal José do Patrocínio, localizada no bairro da Penha, na área urbana de Campos dos Goytacazes.

Nessa perspectiva, o texto foi dividido em quatro sessões: a) na primeira sessão apre-sentamos o contexto da escola em questão e o bairro; b) na segunda sessão tratamos da origem da relação cinema e educação no Brasil; c) na terceira sessão apresentaremos a expe-riência cinematográfica e a opção pelo Canal Coqueiro; por fim, d) discutiremos as questões relacionadas à passividade e à indiferença a partir dos discursos gravados durante a elaboração dos curtas.

A identificação dos alunos e entrevistados será feita com o uso de siglas a fim de proteger suas identidades.

Três questões norteiam o trabalho. Resultantes de leituras e reflexões relacionadas ao cinema, à educação e principalmente aos problemas contemporâneos urbanos, percebidos em diferentes níveis escalares – local, regional, nacional e global – nos questio-namos sobre: a) qual o papel dos recursos audiovisuais no campo da educação?; b) de que forma esses recursos podem ser utilizados no sentido de dar maior visibilidade aos problemas urbanos atu-ais, particularmente os problemas específicos de cada localidade?; c) por último, e não menos importante, é possível identificar na fala dos alunos e moradores da Penha elementos que caracterizariam a passividade e a indiferença desses sujeitos diante dos problemas

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socioambientais apresentados nos filmes produzidos pelos alunos? Fundamentamos hipoteticamente essas questões na atitude passiva e paternalista adotada pelos principais atores afetados pelos proble-mas socioeconômicos e ambientais urbanos da Penha ante o poder governamental instituído, o qual tem agravado cada vez mais a qua-lidade de vida na cidade.

1. O contexto da e. M. José do patrocínio e o bairro da penha

O município de Campos dos Goytacazes é organizado em 14 distritos e 86 bairros, cuja maior parte compõe sua área urbana. Segundo o último censo (IBGE, 2010), Campos possui 463.731 ha-bitantes distribuídos irregularmente entre as áreas rural e urbana do município. Ou seja, 90,2% da população residem na área urbana e 9,8% na área rural.

A maior parte dos distritos de Campos constitui o cenário ru-ral, enquanto a maioria dos bairros está concentrada na área ur-bana, implicando em diferentes modos de vivência e experimenta-ção da vida, além de variadas formas de interpretação e visões de mundo. A Penha, bairro habitado principalmente por famílias de baixo poder aquisitivo, concentra 5.928 habitantes, ou seja, 2,34% da população campista, composta por 2.825 homens e 3.103 mulhe-res, conforme os dados da tabela abaixo, elaborada pelo Centro de Informações e Dados de Campos (CIDAC, 2013).

Esse bairro é desprovido de qualquer equipamento público de cultura. As bibliotecas são restritas às escolas, as quais mal atendem à demanda interna. Não encontramos ali, por exemplo, nenhuma sala de cinema, museu ou espaços dedicados às artes cênicas, à mú-sica e a dança e não há registros de eventos culturais programados para esse bairro. Nesse sentido, a realidade desse bairro é semelhan-te à maioria dos bairros e distritos de Campos dos Goytacazes, o que compromete a informação e formação de cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres, bem como a capacidade crítica deles em relação ao Estado, além de não contribuir para o desenvolvimento da sociabilidade e dos laços de solidariedade.

Embora seja um bairro caracterizado, sobretudo, pelas ativi-

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dades do setor terciário, existem duas pequenas fábricas, uma de confecção, principalmente de biquínis. As características econômi-cas atuais do bairro apresentam algumas semelhanças e diferenças em relação ao passado. Segundo Martins, Monteiro e Santos (2013),

No passado, o bairro da Penha era pequeno, mas muito desen-volvido, cercado de usinas e olarias de tijolos que empregavam grande parte dos moradores. De acordo com relatos de um anti-go morador, um número significativo de homens trabalhava nas fábricas e as mulheres e filhos no corte da cana e nas lavouras (MARTINS, MONTEIRO E SANTOS, 2013, p. 4).

Não existem mais as usinas e olarias citadas pelas autoras. A Pe-nha, hoje em dia, apresenta mais traços urbanos do que rurais. No lugar dos antigos canaviais existem 2.314 residências e 176 estabele-cimentos comerciais, segundo dados do Centro de Controle e Zoo-noses da Secretaria Municipal de Saúde de Campos dos Goytacazes (CCZ/SMS – 2013). Parte desses domicílios particulares encontra-se no “Conjunto Habitacional Morar Feliz”, projeto do governo muni-cipal, popularmente conhecido como “Casinhas”.

O Centro de Informações e Dados de Campos dos Goytacazes (CIDAC) denomina Estância da Penha o bairro popularmente co-nhecido como Penha. Encontramos ali localidades cujos nomes tem a ver com elementos que compõem a paisagem ou alguma caracte-rística do lugar, como exemplificam as localidades conhecidas por Cruz das Almas e Cidade de Deus: a primeira, marcada pela presen-ça de uma igrejinha; a segunda, provavelmente inspirada no filme Cidade de Deus, caracteriza-se principalmente pelo tráfico de drogas. Além dessas duas localidades, temos a Estância da Penha propria-mente dita, as Casinhas de Rosinha e o Conjunto Habitacional Santa Maria, conhecido como Conjunto BNH.

A Escola Municipal José do Patrocínio, conhecida como esco-la da Penha está localizada dentro do Conjunto Habitacional Santa Maria, na Avenida Henrique Guitton. Os limites da escola compre-endem quatro elementos distintos que compõem a paisagem local: à frente, o Canal Coqueiros; nos fundos, a Praça da Penha; do lado direito, um conjunto de casas; por fim, do lado esquerdo, a Avenida Luiz Gonzaga Tinoco.

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Ao longo dos 25 anos de funcionamento, a escola teve um cres-cimento significativo, atendendo atualmente mais ou menos 1.100 educandos. Esses estudantes estão distribuídos em turmas que pre-enchem os requisitos da Educação Infantil, do primeiro e do se-gundo segmentos do ensino fundamental, da Educação de Jovens e Adultos (EJA), além de algumas turmas de Correção de Fluxo e de Dependência, que são oferecidas no contraturno. à noite, em um dos prédios, funciona o Polo de Línguas e o Projovem. Trata-se de dois projetos distintos oferecidos pela prefeitura e pelo governo federal, que utilizam parte da estrutura da escola das 17h às 21h.

A atual estrutura física comporta salas de aula, uma biblioteca, um laboratório de ciências, uma sala de informática, uma sala para atender aos alunos portadores de necessidades especiais, uma cozi-nha, um refeitório, um auditório, uma secretaria, uma cantina, uma quadra poliesportiva, uma sala para a direção e outra para os profes-sores. Todos esses espaços apresentam problemas de acomodação, iluminação e ventilação.

Considerando a estrutura física da escola, a quantidade de alu-nos atendidos, bem como a importância desse estabelecimento de ensino para o bairro, o número de profissionais lotados ali é insufi-ciente para cumprir todas as atividades inerentes aos propósitos da educação sem comprometer a qualidade do ensino.

Embora tenha condições precárias de trabalho, a Escola Mu-nicipal José do Patrocínio tem participado de eventos e projetos do governo federal, da prefeitura, de outras instituições de ensino, além de desenvolver seus próprios projetos, como o Mais Educação, o Pro-jovem e as Olimpíadas de Português e Matemática, todos financiados pelo governo federal; as Eleições para Representantes de Turma, as Gincanas de Ciências, um Festival de Curtas e as Olimpíadas Estu-dantis Municipais, projetos da prefeitura; além de ter professores en-volvidos no projeto Ciranda do Conhecimento, desenvolvido pelo Laboratório de Cultura, Planejamento e Representações Espaciais da Universidade Federal Fluminense (UFF), vinculado ao Observatório da Educação Nacional (OBEDUC); as Olimpíadas de Astronomia e Astronáutica, implementadas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em âmbito nacional; e, recentemente, o Projeto Viva a Vida!, realizado pelos professores lotados nessa escola.

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Os dados refletem o compromisso e a qualidade dos profissio-nais que trabalham na única escola municipal da Penha que, em parceria com o Laboratório de Cultura, Planejamento e Representa-ções Espaciais da UFF, promoveu no dia 30 de outubro de 2015 uma mostra de cinema em praça pública, cuja experiência relataremos mais adiante.

2. Cinema e educação

A utilização do cinema enquanto recurso didático deve-se a al-guns intelectuais ligados à corrente educacional denominada Escola Nova, na década de 1930. Esses profissionais produziram artigos destacando as possibilidades didáticas e pedagógicas do cinema (NASCIMENTO, 2008, p. 3). Numa época marcada por um forte apelo nacionalista e por políticas públicas que pretendiam criar uma unidade nacional, “a contribuição do cinema na ‘formação’ da nação, a par de suas vantagens pedagógicas, teria ressonância jun-to ao poder” (SIMIS, 2015, p. 29). Dentre várias medidas tomadas nesse sentido, merece destaque a criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), em 1937, órgão ligado ao Ministério da Educação e Saúde Pública. Segundo Simis,

A atuação do INCE não se limitou a mero acréscimo na estru-tura burocrática do Estado. O INCE chegou a realizar projeções em mais de mil escolas e institutos de cultura, organizou uma fil-moteca, elaborou filmes documentais etc. A bibliografia sobre o assunto acrescenta que a produção do INCE dividiu-se em filmes escolares, de 16mm, silenciosos e sonoros, destinados a circular em escolas e institutos de cultura, e filmes populares, sonoros, de 35mm, encaminhados para o circuito das casas de exibição pública de todo o país, ora reproduzindo títulos da literatura brasileira, como Um apólogo, de Machado de Assis, ora evocando episódios da história, como Bandeirantes, que contou com a cola-boração de Humberto Mauro (SIMIS, 2015, pp. 33-34).

Como o texto evidencia, os filmes eram distribuídos nas es-colas. Contudo sua utilização do ponto de vista pedagógico não possuía grandes preocupações teórico-didático-metodológicas. O ci-

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nema era utilizado então como instrumento propagandístico e ide-ológico, que visava antes de tudo atender aos interesses do Estado.

Com sua extinção e a criação do Instituto Nacional de Cinema (INC) em 1967, temos o abandono da produção e distribuição de filmes educativos, além de “uma ligeira paralisação das discussões no meio da iniciativa pública (anos 1970 e 1980). No entanto, a te-mática do cinema como ferramenta didática mantinha-se presente, timidamente, no meio acadêmico” (NASCIMENTO, 2008, p. 4).

Essas discussões e os vertiginosos avanços tecnológicos ocorridos na segunda metade do século xx relacionados às tecnologias da infor-mação, provocaram mudanças significativas na educação e no proces-so ensino/aprendizagem. Duas medidas tomadas durante o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998) re-fletem essas transformações: a elaboração dos Parâmetros Curricula-res Nacionais, publicado em 1997; e a distribuição de “parabólicas, televisores e videocassetes – o kit tecnológico – para as escolas, com o fim de inseri-las no ‘mundo moderno da tecnologia’ e facilitar o traba-lho pedagógico dos professores” (NASCIMENTO, 2008, p. 5).

No que diz respeito ao ensino de Geografia, o uso da Literatura e dos recursos audiovisuais, particularmente as imagens produzidas no campo da fotografia e do cinema, assumiram nessa época uma importância fundamental, como se pode constatar no texto dos Pa-râmetros Curriculares Nacionais (1997),

A Geografia, ao pretender o estudo dos lugares, suas paisagens e território, tem buscado um trabalho interdisciplinar, lançando mão de outras fontes de informação. Mesmo na escola, a relação da Geografia com a Literatura, por exemplo, tem sido redes-coberta, proporcionando um trabalho que provoca interesse e curiosidade sobre a leitura do espaço e da paisagem. [...] Tam-bém as produções musicais, a fotografia e até mesmo o cinema são fontes que podem ser utilizadas por professores e alunos para obter informações, comparar, perguntar, e inspirar-se para interpretar as paisagens e construir conhecimento sobre o espa-ço geográfico (PCN, 1997, p. 117).

Os filmes devem ser selecionados a partir da análise de seus conteúdos em correspondência com os conteúdos programáticos

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da disciplina de Geografia ou em consonância com as demandas atuais da sociedade, conforme dispõe a Lei Federal nº 9.394/96, em seu artigo 27, inciso I. De acordo com essa Lei, os conteúdos dos currículos da educação básica deverão contemplar “a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática”.

Através do uso do filme como recurso didático nas aulas de Ge-ografia podemos obter informações importantes sobre os conceitos utilizados nessa disciplina, principalmente aqueles relacionados à paisagem, região, território, espaço e lugar. Além disso, as imagens possibilitam a comparação entre diferentes vivências e experiências de vida contribuindo para o enfrentamento de problemas semelhan-tes, para a construção de atitudes mais solidárias, bem como para o aumento da capacidade crítica dos cidadãos.

O cinema enquanto recurso pedagógico é uma ferramenta am-plamente conhecida, porém sua utilização, na maioria das vezes, está restrita à exibição de filmes. Nesse sentido, segundo Carmo e Soares (2013),

Existem flagrantes do uso de filmes históricos em ambientes es-colares com a pretensão de divertir e entreter os estudantes, bem como forma de apenas preencher os espaços no planejamento didático. Essas atitudes produzem no educando efeitos de deses-tímulos e recuo do senso crítico. As despreocupações com as téc-nicas corretas para o uso de tal ferramenta trazem implicações negativas para o alcance dos objetivos propostos no estudo de História. (SOUZA e SOARES, 2013, p. 6).

A constatação acima não se restringe ao uso do cinema nas au-las de História. O mesmo problema pode ser percebido em diversas outras disciplinas como, por exemplo, Ciências, e Geografia. Sem negar a importância do caráter lúdico do cinema como fator impor-tante para a efetivação do processo ensino/aprendizagem, devemos tomar certos cuidados para que sua utilização “se constitua em um instrumento de reflexão sobre a sociedade e seus modos de ser e não se transforme simplesmente num complemento para preencher algumas horas do calendário escolar” (MEIRELLES, 2004, p. 78).

Preocupado com essas questões e também com outra forma de

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utilização do cinema no campo da Educação, descreverei na próxi-ma sessão uma experiência desenvolvida com alunos do nono ano da Escola Municipal José do Patrocínio, em Campos dos Goytaca-zes, entre 2014 e 2015. Ao longo dessa experiência os educandos deixaram de ser meros espectadores para atuarem como fotógrafos, roteiristas, editores de som e imagem, dentre tantas outras ativida-des relacionadas à sétima arte, mas, principalmente, passaram a ter um olhar diferenciado para a cidade em que vivem.

3. Canal Coqueiros – o relato de uma experiência cinematográfica no campo da educação

A ideia de desenvolver um projeto relacionado ao cinema no campo da educação partiu da universidade, em 2014, no âmbito do Laboratório de Cultura, Planejamento e Representações Espaciais da Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes (UFF – Campos)15 quando organizamos uma mostra de cinema. Esta mostra aconteceu na Praça da Penha como resultado de experiên-cias do uso de filmes nas aulas de Geografia, História e Ética e Ci-dadania em duas escolas da rede municipal: Escola Municipal Maria Lúcia e Escola Municipal José do Patrocínio.

Em ambas as escolas os alunos tiveram a oportunidade de as-sistir filmes da cinematografia nacional, cujo enredo estava direta-mente ligado ao conteúdo programático proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, de 1997. Embora os alunos tenham assisti-do longas-metragens, a maioria dos filmes escolhidos16 tinha menos de 30 minutos de duração. A opção pelos curtas deveu-se a três

15 O LabCULT desenvolve projetos dentro do programa de estímulo a pesquisas voltadas à formação de recursos humanos em educação, denominado Obeduc. Um dos projetos realizados pelo LabCULT denomina-se Ciranda do Conhecimento. A última edição desse projeto aconteceu em três praças públicas do município, onde foram realizadas uma oficina de stencil, confeccionados painéis de stencil e graffiti, leitura de poemas da literatura nacional e internacional, bem como exibidos qua-tro documentários produzidos pelos alunos do nono ano da Escola Municipal José do Patrocínio.16 Dentro desse contexto foram exibidos: Hotel Ruanda, Canudos, Meninos do Con-testado, Olga, Ilha das Flores, Clarita, Vista a minha pele, Xadrez das cores, Jean Charles, dentre outros.

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motivos importantes: a duração da aula, a discussão subsequente e a futura produção de curtas pelos alunos da Penha.

A segunda etapa seria o de produção de seus próprios curtas. O tema para esses curtas estava em frente à escola: o Canal Coquei-ros, popularmente conhecido como “valão Coqueiros”. A escolha deveu-se à importância desse canal na paisagem da Penha, a sua utilização no passado e no presente, bem como a sua relevância his-tórica para o bairro17.

As turmas foram divididas em quatro equipes de dez alunos, posteriormente subdivididas em grupos menores, que ficaram res-ponsáveis por etapas da produção audiovisual. Dentre as tarefas destacam-se a elaboração do roteiro, a realização de entrevistas, o desenvolvimento de pesquisas sobre o Canal Coqueiro, a produção fotográfica, o trabalho dedicado à música, a narração da história e a edição.

Constituídas as equipes, cada uma escolheu uma maneira de re-presentar o Canal Coqueiros, dentre os caminhos possíveis, e todos os grupos optaram por uma abordagem realista a partir de questões relacionadas à história, às memórias e à situação atual do Canal.

Além de terem relatado o que mais tinha chamado a atenção de cada um ao olhar para o canal, os alunos apontaram as dificuldades na pesquisa. Dentre eles o mau cheiro proveniente do esgoto lança-do no canal, a dificuldade de se comunicar com pessoas desconhe-cidas e problemas técnicos no uso dos equipamentos de filmagem e edição.

Na última parte do relatório todos descreveram o que tinham

17 Esse processo começou no segundo semestre de 2014 com duas turmas do nono ano, totalizando aproximadamente 50 alunos. Nessa ocasião os alunos fotografa-ram o canal, assistiram duas palestras sobre o Canal Coqueiros e a qualidade da água em Campos, bem como participaram de um trabalho de campo desenvolvi-do pelo Sala Verde do Instituto Federal Fluminense. Desde o início esse trabalho contou com o apoio da direção, da orientadora pedagógica, dos professores e dos funcionários da escola. Caracterizado pela interdisciplinaridade, os alunos recebe-ram informações científicas sobre o meio ambiente, a água e o Canal Coqueiros nas aulas de História, Ética e Cidadania e Ciências, além de terem tido sua produção textual acompanhada por professores de Língua Portuguesa. O ano terminou e os filmes não ficaram prontos. Todo o material recolhido, principalmente as fotogra-fias e os artigos recebidos do Sala Verde, foram compartilhados com os alunos das turmas 901 e 902 do ano letivo seguinte.

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aprendido com a experiência fílmica. De um modo geral os educan-dos observaram que as águas do canal não eram tão poluídas e que algumas “pessoas, no calor, até tomavam banho nele e pescavam. Mas hoje ele está sujo porque as pessoas estão jogando lixo, poluin-do” (J.K.A.R., 2015).

Poucos dias após a entrega dos filmes e dos relatórios, as quatro equipes foram reunidas numa sala para assistir aos documentários, ouvir as críticas, compartilhar os conhecimentos adquiridos, bem como observar as técnicas utilizadas em cada vídeo. Esse momento foi importante para pensarem em melhorar o trabalho que tinham produzido até então, cujas ideias foram registradas por escrito em outras aulas.

Na semana do dia 30 de outubro de 2015 as quatro equipes entregaram o resultado final: “Canal Coqueiros: tem de tudo nessas águas”, “Que canal você quer lembrar no futuro?”, “Canal ou valão Coqueiros?” e “Coqueiros: canal, valão ou lixão?”. Esses filmes apre-sentaram o canal sob diferentes pontos de vista, mostraram o estado das suas águas e das suas margens, e são uma espécie de denúncia do abandono e da poluição provocada tanto pelos moradores quan-to pelo poder público18.

18 Há duas semanas da realização da Primeira Intervenção Urbana denominada “Curta na Praça”, os estudantes coletaram assinaturas reivindicando do poder pú-blico municipal ações no sentido de melhorar a qualidade da água do canal e suas margens. Esse abaixo-assinado foi entregue por um dos vereadores mirins da escola ao representante da prefeitura presente na terceira edição do Ciranda do Conheci-mento. A terceira e última edição do Ciranda do Conhecimento começou na Praça da Penha com essa mostra de filmes, manobras de skate, apresentação do grupo de rap Vibezen, declamação de poesias e muitos discursos e depoimentos. Os alunos foram avaliados durante todo o processo, principalmente no último semestre de 2015. Como resultado, mais de 90% dos estudantes matriculados nas turmas 901 e 902 foram promovidos e, hoje em dia, estão cursando o ensino médio em outras escolas, dentre elas o Instituto Federal Fluminense. Antes de serem promovidos e partirem para outras instituições de ensino, esses estudantes foram contemplados com um roteiro cultural, elaborado pelo professor de Geografia. Dentro desse ro-teiro tiveram acesso a muitas informações sobre a geografia e a história da Baixada Campista. O projeto “Ciranda do Conhecimento” realizou mais duas intervenções em Campos dos Goytacazes, logo após o “Curta na Praça”. A “Segunda Interven-ção Urbana”, denominada “Vem Pra Praça Grafitar”, ocorreu domingo, dia 2 de novembro, na Praça Santo Antônio. A terceira e última intervenção aconteceu em várias ruas do centro de Campos dos Goytacazes e na Praça do Santíssimo Salvador, onde foi realizado o “Pedágio Cultural”.

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Por fim, os alunos que participaram dessa experiência cinema-tográfica no campo da educação registraram, por escrito, suas im-pressões sobre a mostra de cinema em praça pública. Parte desses registros e do discurso dos entrevistados, presentes na mostra dos filmes, foi recuperada e analisada na próxima sessão, que tratará dos problemas urbanos na Penha, da indiferença diante desses pro-blemas e da passividade diante da gestão urbana. Esses problemas não estão circunscritos ao bairro Penha, nem a indiferença e a passi-vidade dizem respeito exclusivamente ao seus moradores, mas parte de uma vivência urbana.

4. Problemas urbanos, indiferença e passividade no bairro da Penha

De um modo geral todas as cidades apresentam problemas, in-dependentemente do grau de desenvolvimento de cada uma delas. A quantidade e a intensidade desses problemas varia conforme a disponibilidade de recursos financeiros, os modelos de gestão ado-tados e a capacidade de mobilização de cada sociedade. Cabe ao governo municipal e à sociedade civil pensarem em ações e elabora-rem políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e social de cada município, que pressupõe o direito de todos à cida-de, em todos os sentidos. Contudo, boa parte das cidades da moder-nidade tem se caracterizado pela segregação e exclusão, ou seja, tem negado à maioria dos seus moradores o acesso a esses direitos. De acordo com Kuster (2014),

Desde as discussões iniciais sobre a modernidade, tem sido exaustivamente afirmado que esta é excludente, ou seja, ela ‘en-veredou por (des)caminhos marcados pelo descarte da maioria’. A novidade agora é que, a essa maioria – que se torna cada vez mais absoluta e irrevogavelmente descartada –, são deixados de lado também pedações inteiros do tecido urbano (KUSTER, 2014, p. 48).

Essa marginalização econômica e social aparece com clareza em Campos dos Goytacazes, principalmente em bairros mais popu-losos, onde os problemas urbanos tornam-se mais perceptíveis. Esse

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descarte aparece com mais nitidez ainda nos lugares onde a partici-pação ou representação política é fraca ou domesticada (KUSTER, 2014, p. 52).

A produção audiovisual dos alunos e a narrativa de alguns mo-radores da Penha são reveladoras de alguns problemas econômicos e socioambientais característicos desse lugar, dentre os quais desta-cam-se o estado da água e das margens do Canal Coqueiros e o en-volvimento dos jovens com o tráfico de drogas. Para uma moradora antiga da Penha, as pessoas não fazem nada porque

Elas esperam a atitude de alguém ou elas esperam a prefeitura fazer. Existe um grupo que sempre apoia o governo. Eles sempre vão bater palmas pro governo, estando certo ou errado. Porque dependem do governo pra sobrevivência, porque eles próprios ou alguém da família prestam serviços sem concurso público. Se fizerem alguma coisa, perdem o emprego. Isto existe dentro do município todo (A.S., 2015).

Por conta desse clientelismo, dessa subserviência política, ou-tros problemas urbanos do bairro continuam sem solução. Ora os moradores reclamam do preço e da precariedade do sistema de transporte público, ora reclamam da qualidade e do preço das taxas de água, ora chamam a atenção para a falta de lâmpadas em algu-mas ruas e na única praça existente na Penha, onde foi realizada a mostra “Curta na Praça”. Sobre o uso dessa praça, a ausência de uma programação cultural e os filmes exibidos, são significativas as observações feitas por alguns estudantes da Escola Municipal José do Patrocínio. Para A.S.B., J.V.S.A.F. e W.R. a mostra de cinema foi

Muito boa! Pude ver em tela cheia um pouco do meu trabalho, uma versão roteirista que tinha dentro de mim e eu não sabia. Uma arte muito linda como o skate, que [...] não me interessava muito. Acho que nunca vi a praça tão cheia de pessoas com várias atrações. Enfim, [foi] um dia muito bacana com as amigas todas reunidas. [Foi] um dia bem gostoso de ser vivido (A.S.B., 2015).Foi muito legal um filme nessa praça, porque nunca tem nada nessa praça, nunca tem evento cultural. O evento também foi muito bem organizado (J.V.S.A.F., 2015).Foi uma coisa bem legal porque aqui no bairro é muito difícil

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ter esse tipo de evento e também [por ter tirado] umas pessoas de dentro de casa, porque tem gente que nunca foi na praça por causa da violência e pessoas fumando, que não cai muito bem pro bairro etc. (W.R., 2015).

Todos avaliaram positivamente esse evento cultural, sobretudo a mostra de filmes realizada dentro do quiosque e as manobras de skate na quadra. É possível perceber nessas narrativas que muitas vezes o espaço não é ocupado por falta de uma programação cultu-ral ou por causa do medo relacionado ao tráfico, ao uso de drogas e à violência. Por esses e outros motivos “uma parcela cada vez mais expressiva da população rejeita os espaços da cidade tradicional” (KUSTER, 2014, p. 56), o que dificulta qualquer interação com os espaços urbanos e o estabelecimento de sociabilidades.

Além de ter possibilitado esse contato dos alunos e moradores com a praça pública, a realização dessa experiência cinematográfica no campo da educação levou os estudantes a visitarem as ruas do bairro com outro olhar e a perceberem alguns problemas existentes no lugar onde moram, como comprovam as seguintes constatações de L.A.P.V., R.O.G. e W.R.:

A imensa quantidade de lixo que se encontra no Canal! Eu não sabia que era tanto assim! (L.A.P.V., 2015).Que ele já foi muito usado para várias coisas boas, mas agora, infelizmente, não pode mais ser usado por causa da poluição (R.O.G., 2015).No final do Canal quase não tem água, tem muita poluição e as pessoas criam animais na beira do Canal (W.R., 2015).

Esse relato mostra que além de divertir, educar, encantar, entre-ter, formar e informar os cidadãos, o cinema representa a realidade, dá visibilidade ou maior visibilidade à cidade e seus problemas. Os três alunos foram surpreendidos pelo que viram e ouviram sobre o “valão”, embora o mesmo faça parte de suas vidas há algum tempo, não se tratando de um elemento da paisagem distante da realida-de local. O Canal Coqueiros está na frente da escola, faz parte do cotidiano dos moradores da Penha, principalmente desses alunos, que muitas vezes atravessam suas pontes. Segundo o depoimento de

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uma entrevistada que mora na Penha há 30 anos: “Hoje as pontes estão todas quebradas, tudo jogado [...], um perigo aquelas crianças passarem e não caírem dentro do valão” (K. 2015). No entanto, es-ses meninos e meninas nunca tinham prestado tanta atenção nesses aspectos relacionados ao Canal Coqueiros. A produção dos filmes levou os alunos a observarem melhor a cor das suas águas, a sentir o seu odor desagradável, além de perceber todo o lixo jogado den-tro dele ou simplesmente descartado em suas margens, conforme denunciou o senhor B.

[...] porque nós tamos aqui agora fazendo essa entrevista [...] e a gente tá sentindo esse cheiro [...], esse cheiro desagradável. Se você filmar a água [...], você vai ver que é uma água, hoje, escura. Você hoje não vê nem mais o canal direito [porque] tem essa ve-getação aí, que tá cobrindo o canal todo. Isso também atrapalha muito, né? A situação da água aí, das coisas [...] (B, 2015).

Ou seja, a experiência cinematográfica levou os estudantes a refletirem sobre a relação homem/natureza e o papel do Estado. Mais do que isso, levou esses jovens a pensarem no descaso e na indi-ferença de boa parte do moradores da Penha e do governo munici-pal ante os problemas urbanos predominantes nesse lugar. Segundo Kuster (2014),

A indiferença em relação ao outro, em relação ao convívio em sociedade, à cidade e, crescentemente, em relação à própria vida. É para essa indiferença que o cinema pode funcionar como contraponto, apresentando, em contrapartida ao esfacelamento e à erosão – das relações, dos sentimentos, da vida –, a erotização que suas telas narram. Entre essa erosão apresentada pela reali-dade e, a erotização narrada nas telas, ficamos nos perguntando qual o lugar ocupado pelo homem, contemporâneo nas suas ci-dades. Seriam os acontecimentos narrados pelo cotidiano dessas cidades eróticos ou erodidos? (KUSTER, 2014, p. 120).

Mais adiante, no mesmo artigo, a autora reitera essas ideias sobre o papel do cinema na sociedade moderna afirmando que “é contra essa indiferença que, muitas vezes, se lança mão do cinema, e da ‘cinematização’ urbana, ou seja, a transformação e o enrique-

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cimento da imagem das cidades através da representação nas telas” (KUSTER, 2014, p. 122).

Os alunos perceberam também as dificuldades enfrentadas por alguns moradores, a precariedade de algumas casas, a falta de infra-estrutura existente em algumas localidades da Penha e a passividade de todos diante dessa situação. Esse comportamento foi demonstra-do direta ou indiretamente, em suas narrativas. Quando questiona-dos sobre o que mais tinha chamado atenção deles, um aluno disse: “O tempo que as pessoas moram lá e o estado em que o Canal se encontra” (C.C.V., 2015). Já outra aluna ficou incomodada com o falta de mobilização social ao perceber “os moradores falarem que querem mudança, mas não agem” (E.A., 2015).

Essa passividade aparece em algumas entrevistas feitas pelos alunos, e que estão presentes nos filmes produzidos. Apareceu tam-bém em algumas investigações realizadas em trabalhos de campo. Tanto as entrevistas quanto as investigações corroboram as ideias sustentadas por Lefebvre (2004).

A problemática urbana? Nós a margeamos: traçamos os seus con-tornos. Chegamos a um dos problemas mais perturbadores: a extraordinária passividade das pessoas diretamente interessadas, concernidas pelos projetos, postas em questão pelas estratégias. Por que esse silêncio dos ‘usuários’? Por que os balbucios infor-mes das ‘aspirações’ quando nos dignamos consultá-los? Como explicar essa estranha situação? (LEFEBVRE, 2004, p. 167).

O silêncio dos moradores da Penha foi notado pelos estudan-tes. Um deles apontou como dificuldades para realização do vídeo “O mau cheiro e as pessoas para dar entrevistas, pois muitas não queriam gravar” (M.E.P., 2015).

Lefebvre analisou essa ausência de mobilização coletiva, essa falta de participação das pessoas interessadas. O autor aponta qua-tro razões distintas relacionadas ao fenômeno da passividade: pri-meiro, tratou da ausência de “movimentos políticos”; em seguida apresentou suas razões históricas; continuando, abordou seus as-pectos teóricos; por fim, apontou algumas razões sociológicas da passividade. Tratando especificamente desse caráter sociológico, o autor deu ênfase à delegação de poderes dada pelos interessados aos

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seus representantes políticos e, consequentemente, aos especialistas e técnicos.

De fato, eles não têm o longo hábito de delegar os seus interesses a seus representantes? Os representantes políticos nem sempre desempenharam seu papel, e esse papel se esfumou. Assim, a quem confiar a delegação de poderes e, mais ainda, a represen-tação da existência prática e social? Aos especialistas, aos com-petentes. Cabe a eles, pois, consultarem-se entre si e se pronun-ciarem sobre tudo o que concerne ao ‘habitat’ funcionalizado. O habitar e o habitante retiram-se desse jogo. Eles deixam aos ‘decisores’ o cuidado e a preocupação de decidir. A atividade refugia-se no cotidiano, no espaço petrificado, na ‘reificação’ ini-cialmente suportada, depois aceita (LEFEBVRE, 2004, p. 170).

Após terem delegado poderes aos governantes, a sociedade as-sume uma atitude paternalista diante do Estado. Aguardam passiva-mente as instituições públicas resolverem os problemas que afligem a comunidade. Outras vezes transferem para o outro a solução dos problemas. Esse tipo de comportamento foi identificado tanto nas narrativas dos alunos quanto nas narrativas dos moradores do bair-ro da Penha. São significativos nesse sentido esses depoimentos:

Eu gostei. Espero que alguém tome providencias para mudar as condições do lugar onde vivemos. A apresentação [dos skatistas] foi muito divertida. (F.S.L.M., 2015).Minhas impressões sobre a Primeira Intervenção Urbana? In-centivou [...] várias pessoas a praticar skate. Foi muito bom! In-centivou, [também], muitas pessoas a cuidarem mais do Canal Coqueiros. [...] Esperamos que alguém faça alguma coisa para melhorar o Canal Coqueiros. (L.V.C., 2015). Que eles parassem de jogar lixo, principalmente as autoridade, que olhasse mais por ele. Hoje a nossa prefeita desse mais uma olhadinha nesse valão. Hoje as pontes estão todas quebradas, tudo jogado, em frente da Escola José do Patrocínio, um perigo aquelas crianças passarem e não caírem dentro do valão. A pre-feita deveria ter um olharzinho melhor (K, 2015).

Nem tudo está perdido. Existem esperanças. Os problemas não são eternos nem infinitos. Eles têm solução. Contudo as soluções

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dependem do tipo de gestão de cada cidade, do papel ativo dos ci-dadãos, do seu comprometimento com o bem estar coletivo e com a qualidade de vida de todos. Para atingir esses objetivos é importante que todos participem de alguma forma do planejamento e da ela-boração de políticas públicas. Para além dessas esperanças, existem outras que são mais relevantes. De acordo com Ciccolella,

Quizá la esperanza más relevante sea la revitalización de la so-ciedad civil a través de movimientos sociales clásicos o la prolife-ración de nuevos movimientos y organizaciones sociales de base territorial temática comprometidos e involucrados en proyectos autogenerados para un barrio o una ciudad mejor para todos (CICCOLELLA, 2008, p. 103).

Essa experiência cinematográfica no campo da educação, reali-zada na Escola Municipal José do Patrocínio, fez com que os alunos deixassem de ser meros espectadores para atuarem como sujeitos. Mais do que isso, levou as turmas envolvidas a perceberem que a participação de todos é fundamental para melhorar a qualidade de vida em diferentes escalas espaciais, conforme escreveram N.C.C., L.A.P.V. e T.A.G., alunos do nono ano do ensino fundamental.

Eu achei que foi muito importante, pois mostramos que nós po-demos fazer a diferença tanto aqui no bairro quanto no país. [...] Se ficarmos de braços cruzados, sem fazer nada, [...] nosso país não vai para frente. [...] Também gostei do incentivo que deu para os skatistas, pois aqui na cidade tem muita gente que gosta-ria de praticar [esse] esporte, mas não consegue porque não tem a estrutura necessária. [...] Depois do que fizemos, [...] espero que ocorra uma mudança em relação ao canal e, também, em relação aos skatistas (N.C.C., 2015).Foi bem legal e bem criativo. Foi uma ótima iniciativa para co-meçar as mudanças em nosso bairro (L.A.P.V., 2015).Foi um ótimo evento porque viemos brigar pelos nossos direi-tos, como [por exemplo], ter um canal mais limpo. Gostei da apresentação do grupo ‘VibeZen’ [e do] grupo de skatista. [Foi] muito legal (T.A.G., 2015).

A Penha, assim como outros bairros e distritos de Campos dos Goytacazes, apresenta muitos problemas urbanos. Todos precisam

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de solução, todos precisam ser enfrentados. A meta deve ser a me-lhoria da qualidade de vida para todos os habitantes, para toda a população, independentemente de quaisquer diferenças étnicas, sociais ou de gênero. Para que esse objetivo seja alcançado é im-prescindível combater a indiferença e a passividade diante de tudo, conceitos fundamentais tratados neste artigo.

Considerações finais

Os problemas urbanos identificados no bairro da Penha não são exclusivos desse lugar. Outros bairros e distritos de Campos dos Goytacazes apresentam problemas semelhantes. Os mesmos podem ser encontrados nas mais variadas cidades do mundo. A existência e gravidade dos referidos problemas está relacionada à ausência de políticas públicas ou à ineficácia das ações tomadas no sentido de solucioná-los. Está relacionada, também, com uma atitude paterna-lista, subserviente e passiva dos cidadãos diante do Estado.

A passividade e a indiferença constatada nas narrativas dos alu-nos e moradores da Penha também não são comportamentos que dizem respeito apenas aos moradores desse bairro. Contudo essas atitudes têm dificultado ou impedido a solução dos problemas lo-cais, já que a ausência de mobilização social favorece o seu agrava-mento bem como contribui para o surgimento de outros.

É possível perceber que os problemas urbanos podem ser en-contrados nas mais variadas cidades do mundo. Mais do que isso, que a passividade e a indiferença são comportamentos cada vez mais presentes nas sociedades modernas, sobretudo nas grandes cidades.

A experiência cinematográfica no campo da educação realiza-da na Escola Municipal José do Patrocínio confirmou a importância do cinema como uma importante ferramenta a ser utilizada pelos professores dentro e fora de sala de aula. Isso porque o cinema dá maior visibilidade à realidade contribuindo para a formação crítica dos estudantes, além de favorecer o surgimento de novas sociabili-dades e permitir uma maior interação com o espaço.

Por fim, propomos que as políticas públicas de educação este-jam articuladas às políticas públicas de cultura, como possibilidades didáticas, acadêmicas inter e multidisciplinares, e que a produção

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artística e cultural possa fazer parte do cotidiano das escolas e apre-sentadas em espaços públicos para a comunidade, criando uma si-nergia entre escola, cidade e seus cidadãos.

REFERêNCIAS

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______. O tédio dos olhares sem alma: algumas considerações sobre a indiferença, o desejo e o papel do cinema no cotidiano das metrópoles. In: KUSTER, Eliana; PECHMAN, Robert. O chamado da cidade: ensaios sobre a urbanidade. Belo Ho-rizonte: Editora UFMG, 2014. p. 103-125.

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O coronel e o coronelismo: entre os meandros da Geografia, História e Literatura para a compreensão de uma categoria social19

Daniele Correa Camara

Introdução

A literatura constitui-se em um amplo campo de articulação interdisciplinar. Tanto para produzir uma obra literária quanto para analisá-la. Para escrever um romance é exigido que o autor percorra por arquivos, lugares, tempos, além de aprofundar seus conheci-mentos no campo da psicanálise para construir a personalidade de seus personagens. E para uma análise da obra é exigido do pesqui-sador um profundo conhecimento sobre o autor, seu estilo literário e seus percursos profissionais. Para a Geografia e para a História, interessa analisar como o autor retratou a relação tempo/espaço vivenciada pelos personagens ou por um personagem específico.

En relación a una obra literaria podemos estudiar el sujeto (el autor), el objeto (la obra literaria), su contenido como fin en sí mismo o como medio de expresar determinadas ideas y concepciones (Martínez y Ramón, 1908; Clarke, 1974; Eoff, 1979; Le Bouille, 1980) y, por último, la sociedad a la que el autor dirigió la obra en cuestión (la burguesía). Aunque estos tres componentes (autor, obra y sociedad), habría que añadir el tiempo histórico en el que está escrita (en nuestro caso: finales del xIx) (VELASCO, 2012; p. 4).

É nessa perspectiva, da análise da obra e da sociedade descrita, das ideias e concepções que formam a sociedade que nos interessa, retratada no romance O coronel e o lobisomem, de José Cândido de

19 Parte integrante da pesquisa “Projeto Política, tecnologia e interação social na educação”, financiada pelo Programa Observatório da Educação no Brasil (OBE-DUC/CAPES – 2013-2015).

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Carvalho, por ser considerada um retrato da sociedade campista das primeiras décadas do século xx e a figura do “coronel”, que mesmo já tendo sido apagada enquanto prática social de apadrinha-mento, compadrio e apropriação do que é público para fins priva-dos, ainda persiste em pleno século xxI.

O percurso literário se deu a partir do romance O coronel e o lobisomem, publicado em 1964, ambientado no município de Cam-pos dos Goytacazes, e tem como cenário as propriedades rurais nas quais predominava a plantação da cana-de-açúcar, a influência dos latifundiários na vida urbana e na organização política do municí-pio e da região. Enquanto percurso histórico-sociológico, a análise se deu a partir da obra de Vitor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, publicada em 1975, e também do sociólogo José Murilo de Carvalho. Em sua obra, Leal retrata o poder do meio rural e as suas relações com o poder privado, o que origina o sistema político co-nhecido como o “coronelismo”, vigente em toda a República Velha no Brasil.

Assim, o objetivo do artigo é fazer uma análise de duas obras que retratam o período do coronelismo no Brasil. A obra acadêmi-ca do autor Victor Nunes Leal é uma obra literária que retrata o cotidiano de um coronel e as práticas do coronelismo. A obra de Leal critica o poder dos coronéis, que eram proprietários rurais no Brasil entre os séculos xIx e xx. De acordo com o autor, nesse perí-odo histórico a principal base econômica do país estava pautada na aristocracia rural. Nesse sentido, Leal aborda o contexto histórico no qual inclui os aspectos social, econômico e político do país no período da República Velha, mostrando como o fenômeno do coro-nelismo se concretiza no cenário político em uma escala nacional.

O título de coronel atribuído aos latifundiários da República Velha (1889-1930) e o exercício do poder desses coronéis, que se configura em práticas de compadrio e favorecimentos, se tornou naturalizado no meio político brasileiro. Mesmo que a figura do coronel não exista mais, as práticas associadas ao coronelismo per-sistem em municípios onde esse personagem atuou, em especial em Campos dos Goytacazes e municípios adjacentes, que conviveram com esses coronéis/usineiros. Assim, para melhor compreender a manutenção dessa figura na atualidade, buscou-se percorrer por

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meandros da história, da geografia e da literatura para compreen-der um dado momento da história do Brasil, nesse recorte espacial que é Campos dos Goytacazes.

Dessa maneira, este texto encontra-se dividido em sessões, que inicia com o percurso analítico, onde se faz uma discussão sobre a relação entre literatura, história e geografia e o método de investi-gação a partir do entrecruzamento de campos do conhecimento. A produção de um romance, seus contextos geo-históricos, os concei-tos envolvidos, mesmo que ficcionais, bebem em fontes históricas e promovem a discussão sobre uma dada realidade. Na segunda e na terceira sessões, apresentam-se análises do coronel e do coronelismo em cada uma das obras. E por fim, uma quarta sessão, a compa-ração entre as duas obras e a relação com o contexto geo-histórico retratado na obra literária.

Percursos analíticos

Nessa sessão o objetivo é colocar em diálogo a literatura, que é um conhecimento subjetivo/ficcional, em relação com a história e a geografia que são conhecimentos objetivos/científicos. As três áreas, quando colocadas em aproximação, podem produzir um co-nhecimento novo sobre uma dada realidade, além de aguçar a curio-sidade e a imaginação do leitor.

De acordo com a autora Zeloí Aparecida Martins dos Santos, no artigo em que discute a relação entre história e literatura, desta-ca que os dois campos do conhecimento usam a narrativa nos seus discursos. Nesse sentido, a história precisa reconstruir o passado através da narração dos fatos, sendo uma abordagem que é consi-derada verdadeira. Enquanto a criação literária, que se baseia na ficção, é considerada ficcional/irreal. No entanto, ambas se pautam na representação para construir sua interpretação. Os historiado-res, quando pesquisam nas fontes (jornais, documentos jurídicos, testamentos, mapas, roteiros) precisam fazer uma interpretação dos dados para construir a sua própria análise. Sendo assim, de acordo com a autora, a história já é uma reprodução dos fatos históricos, uma interpretação feita a partir de sujeitos privilegiados, pertencen-tes às elites sociais e intelectuais. Assim, os conhecimentos históricos

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não constituem a realidade ou a verdade objetiva, ou 100% da ver-dade. Os literatos, por sua vez, também se baseiam na realidade, ou seja, na sociedade da qual fazem parte, para criar sua representação, com um pouco mais de imaginação, ironia, sarcasmo e crítica que os historiadores. A abordagem literária também constitui uma produ-ção a partir de um olhar específico.

Os historiadores, ao buscarem suas fontes para desenvolver suas pesquisas, podem ser questionados: será que analisam a realida-de ou a ficção, a verdade ou mentira, já que não podem se utili-zar da magia de reviver o momento do acontecimento, enquanto o escritor literário se torna cúmplice do fato-ficção, realidade e imaginação, verdade e verossimilhança, de uma maneira mais despojada que o historiador (SANTOS, 2015, p. 7).

A história e a literatura se pautam nos contextos sociais, políti-cos, culturais, econômicos, de uma dada sociedade, para realizar as suas reflexões. Nessa perspectiva, Antonio Cândido (1965) defende que a literatura não tem como objetivo principal retratar fielmente uma sociedade em determinada época, pois o que constitui a ficção é justamente a liberdade do autor de criar e alterar a realidade do jeito que quiser. Apesar dessa margem maior de liberdade, o litera-to ao produzir uma obra tem sempre o real como referência. Não é possível que o autor ao escrever um livro não esteja pautado em algo que já existe. Sendo assim, de acordo com Cândido, os aspectos externos que constituem a sociedade, seja a que o autor faz parte, ou de outros períodos históricos, podem influenciar no conteúdo da obra. Esses elementos externos são: os costumes, valores, ideolo-gias, religião, que podem ser representados na obra literária.

Nessa discussão acerca da interdisciplinaridade entre a literatu-ra e a história, também é possível colocar a geografia e a literatura em diálogo. Segundo Velasco (2012) a literatura descreve melhor o espaço geográfico, visto possuir uma escrita mais livre. Ao contrário da geografia, que deixa de expressar com mais fidelidade a reali-dade espacial, por causa dos limites impostos pela ciência. Os dois conhecimentos em aproximação complementam a discussão acerca do espaço geográfico.

Sendo assim, de acordo com o autor, é possível que o leitor

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sinta emoções e sensações com a descrição das paisagens nas obras literárias. Ao passo que na descrição geográfica, dificilmente o autor conseguirá expressar com detalhes e riquezas as paisagens quanto os gêneros literários.

Os literatos e os geógrafos analisam a sociedade em um de-terminado tempo/espaço. Ou seja, ambos, de acordo com Velasco, buscam entender as intervenções ou ações do homem e dos demais seres vivos sobre o espaço. Nesse sentido, sabe-se que a literatura aborda a realidade socioespacial, mas não tem a obrigação de ser exatamente igual ao real. Enquanto a geografia, por ser um conhe-cimento científico, tem por finalidade abordar a dimensão espacial com exatidão e veracidade.

Para fechar esta sessão, ressaltamos que neste trabalho busca-se analisar a obra literária O coronel e o lobisomem, uma representação da sociedade de Campos dos Goytacazes no século xx a partir do olhar de José Cândido de Carvalho. Assim, a análise recairá sobre os contextos geo-históricos apresentados no romance.

Coronelismo, o percurso histórico-sociológico

A classe dos latifundiários foi se formando ao longo da história no Brasil, através das grandes produções agrícolas de cana-de-açú-car no interior do Rio de Janeiro e em estados nordestinos, de café em São Paulo, além de pecuaristas em outras regiões brasileiras. Na década de 1930 os homens ricos e poderosos eram os proprie-tários rurais; o restante da população do campo era extremamente pobre. Segundo o autor Fernando Henrique Cardoso no seu livro História geral da civilização brasileira, as únicas formas de se enrique-cer naquele período eram através da herança, do matrimônio e do comércio.

A herança era uma forma natural de transmissão dos patrimô-nios dos proprietários rurais aos seus familiares. E os matrimônios entre parentes (tios e sobrinhas, primos e primas) serviam para manter as riquezas dentro da mesma família. Além disso, existiam os casamentos com outras famílias de proprietários, que tinha como finalidade o aumento das riquezas e também do poder político. Por fim, alguns fazendeiros se enriqueceram ainda mais entrando para

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as atividades comerciais. Os matrimônios, assim como o comércio, eram oportunidades para as pessoas menos desfavorecidas alcança-rem uma ascensão social e econômica.

Devido ao prestígio social e econômico dos proprietários ru-rais, eles obtinham os mais altos cargos militares na Guarda Nacio-nal, que foi criada em 1831, no período imperial, e tinha como fim a defesa da Constituição brasileira, a prevenção de revoltas regionais e também o policiamento local. Toda a população livre poderia se integrar nas várias escalas da carreira militar, que ia desde major, capitão, tenente etc. As pessoas mais pobres ficavam com os postos mais baixos; já os homens mais ricos alcançavam o cargo mais alto, que era o de coronel. O título de coronel, aliado ao poder econô-mico que os proprietários já tinham, reforçava ainda mais o status e poder dos mesmos nos municípios onde habitavam.

Cardoso analisa a formação socioeconômica e política desses coronéis nas regiões e locais onde estavam inseridos. Esses coronéis faziam parte de um grupo de pessoas que formavam a parentela. Essa parentela era formada por indivíduos que estavam ligados por laços de sangue, de matrimônio, e de batismo. Os parentes de san-gue são: pai, mãe, avôs, tios, primos, irmãos etc. Já os casamentos constroem outros laços de parentesco, que não são biológicos, mas que também são muito fortes como, por exemplo, cunhados, so-gros, genros etc. Além disso, o batismo proporcionava uma relação de afetividade e de compromisso entre os afilhados, compadres e comadres.

A parentela, às vezes, poderia ser formada por pessoas de vá-rios níveis sociais (grandes proprietários, pequenos sitiantes etc.). A relação entre seus membros era regida pela reciprocidade, favor, dever, solidariedade etc. Os membros eram solidários uns com ou-tros: os fazendeiros ajudavam os seus pares quando estavam preci-sando de dinheiro, entre outros favores. Mas o maior objetivo dos proprietários rurais era ocupar os cargos públicos dos municípios onde habitavam. Assim, os cargos municipais eram ocupados em sua maioria, pelos latifundiários, ou pelos seus parentes, ou ainda pelos seus aliados políticos. Nos municípios brasileiros existiam vá-rias parentelas que também eram grupos políticos, que lutavam en-tre si para conquistar os postos políticos locais. Essa aglomeração de

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proprietários rurais e de seus familiares no serviço público constitui uma das facetas do coronelismo.

Coronelismo, para Victor Nunes Leal, significa a relação do poder privado dos fazendeiros com os poderes políticos. Esse sis-tema do coronelismo se inaugura no início da Primeira República (1889-1930). Sendo assim, o objetivo do autor é analisar como era organizado o sistema representativo no Brasil, e como esse pacto entre os chefes políticos e os proprietários rurais pode causar uma desorganização no serviço público.

Essa relação dos latifundiários, inseridos nos municípios bra-sileiros, se dava em várias escalas políticas: municipal, estadual e federal. A base desse pacto político eram as vantagens e proveitos que ambos os grupos tiravam. Os fazendeiros obtinham benefícios e favores para si, para seus familiares e para os municípios. Já os candidatos políticos das três esferas públicas conquistavam os dese-jados votos do eleitorado rural. O que possibilitou a construção do sistema coronelista foi a estrutura agrária, que ainda representava a base econômica do país. Visto que os proprietários rurais tinham muito poder econômico e social, eles também se envolviam nas questões políticas dos municípios.

Segundo Leal, essa relação entre os representantes políticos e os proprietários rurais começa a surgir com o início da decadência eco-nômica da classe agrária, em oposição ao crescente fortalecimento dos poderes públicos. Pois, sem muitos recursos financeiros, e tam-bém falidos socialmente, os fazendeiros não exerciam mais tanto po-der sobre a população rural. Além disso, os fazendeiros também de-pendiam dos favores e benefícios dos representantes políticos para a manutenção das despesas das fazendas e dar continuidade aos seus negócios. A prova do enfraquecimento dos proprietários rurais era que eles possuíam terras e outros bens financeiros, mas não tinham dinheiro para investir nas produções agrícola e pecuária. E por isso iam com frequência aos bancos para solicitar empréstimos, sonega-vam impostos e tinham a maior parte de sua fortuna usada como hipoteca. Aos olhos da população do campo, que vivia na extrema miséria, os fazendeiros eram muito ricos. No entanto, nesse período os latifundiários estavam perdendo o seu poder econômico, político e também social.

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As pessoas que não possuíam terras eram obrigadas a se sujeitar às exigências dos proprietários rurais. Esses trabalhadores eram em-pregados, capangas, parceiros e posseiros, dos fazendeiros; trabalha-vam e moravam nas terras do dono. E assim se tornavam dependentes das terras, como local de moradia e também como meio de trabalho. A população do campo vivia em extrema miséria, e o que ganhavam com seu trabalho mal dava para a sobrevivência. Além disso, eram analfabetos, viviam isolados no campo e por isso não tinham acesso às informações sobre seus direitos e sobre a vida política do país.

Devido à dependência dos trabalhadores rurais às terras dos fazendeiros e também por causa da ausência de conhecimento po-lítico, se tornava fácil para os fazendeiros manipularem os votos da população do campo. No período de eleições municipais os latifun-diários obrigavam seus dependentes a votarem no candidato que estavam apoiando. O domínio era exercido por meio de ameaças a expulsões das terras e violências físicas; e por isso a população se sujeitava a fazer o que mandavam os seus patrões. Esse sistema de barganhar votos foi classificado como votos de cabresto, uma prática comum no Brasil exercida até a atualidade.

Em troca dos votos do eleitorado rural os chefes locais conce-diam favores pessoais aos fazendeiros, como um cargo de emprego público para si ou para seus familiares, aberturas de estradas que valorizassem suas terras, e regalos de toda natureza com uso de recursos públicos, além de financiarem os gastos eleitorais. Essa for-ma ilegal de concessão de favores e benefícios aos proprietários ru-rais provocava a desorganização do serviço público nos municípios.

Todos esses favores concedidos pelos chefes municipais aos fa-zendeiros eram financiados pelos estados. Até mesmo os cargos de emprego público dados aos latifundiários e seus familiares recebiam indicação de políticos influentes. Os municípios eram muito pobres e também não tinham autonomia legal; recebiam uma verba muita pequena que era repassada pelos governos estaduais. Essa quantia não dava para os mesmos custearem as despesas básicas do local, como saúde, educação, investimentos na economia etc. Sendo assim, os chefes municipais que eram aliados político dos representantes dos estados, recebiam de forma ilícita financiamentos para bancar as obras e os serviços públicos mais necessários à população local.

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Segundo Leal, a relação entre os poderes municipais e estadu-ais era baseada no sistema de reciprocidade. De um lado os chefes municipais junto com os proprietários rurais obrigavam a popula-ção rural a votar nos seus aliados políticos. Em troca dos votos do eleitorado rural, os estados financiavam construções de extrema ne-cessidade da população local, como, por exemplo, estradas, pontes, escolas, hospitais, energia elétrica etc. As estradas e pontes eram de muita importância para os proprietários rurais escoarem os produ-tos produzidos nas fazendas. Os hospitais também eram de muita relevância para os fazendeiros, pois eles realizavam o atendimento dos trabalhadores rurais, mesmo que de forma precária.

Todas essas obras nos municípios eram conquistadas graças ao grande empenho dos chefes municipais, com seus “amigos” e aliados políticos. Essas obras eram de extrema importância para os políticos locais manterem a legitimidade de seu poder. Pois, se os fazendeiros não fossem atendidos em suas demandas, poderiam se recusar a conceder os votos do eleitorado rural.

E esse “sistema de reciprocidade” entre os chefes municipais e os poderes estaduais ia mais longe. Os representantes políticos do estado faziam de tudo para não se indisporem com seus aliados políticos dos municípios. Por isso, os chefes municipais interferiam até na escolha dos funcionários estaduais que iam trabalhar nos mu-nicípios. Dentre esses profissionais podemos citar: os professores, coletores de impostos, funcionários da saúde, delegados etc. Além disso, esse pacto político entre o governo dos estados e dos municí-pios era tão forte que os representantes locais intervinham até nas nomeações dos cargos federais.

Esses delegados e subdelegados enviados pelo governo do esta-do eram colocados a serviço dos fazendeiros. Esses funcionários da justiça faziam “vistas grossas” às violências cometidas pelos fazen-deiros aos seus adversários, às agressões feitas aos trabalhadores ru-rais etc. E também negavam favores e direitos dos grupos políticos da oposição, além de atrapalhar suas iniciativas no âmbito político. Todo esse sistema era para manter “os amigos” e os aliados políticos nos cargos públicos, nas esferas municipal, estadual e federal.

Os municípios que faziam parte do pacto político com os esta-dos conseguiam uma autonomia extralegal. Essa autonomia signifi-

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cava que esses chefes municipais conseguiam intervir nos assuntos e em nomeações de funcionários das esferas estaduais e até federais. É nessa autonomia ilegal que os governos dos estados davam “carta branca” para seus aliados políticos municipais. Isso quer dizer que os poderes públicos fechavam os olhos para as corrupções, pela má administração das receitas municipais, pelos conflitos e violências que ocorriam nos locais etc. Sabemos que os estados é que envia-vam as verbas para os municípios, e por isso deveriam impedir que os mesmos esbanjassem todo o dinheiro público. No entanto, os governos estaduais não se importavam com isso, pois o importante era manter os acordos com os chefes locais e continuar obtendo os votos da população rural.

Nem todos os líderes municipais faziam parte das alianças polí-ticas com os governos estaduais. Mas, era muito mais vantajoso para os municípios que os políticos tivessem alianças com os governos estaduais e federais, pois era de lá é que vinha a verba para as cons-truções das obras locais. Aqueles chefes municipais que não faziam parte das correntes políticas dos governos estadual e federal, viviam de forma ainda mais precária, pois a receita que era transferida era muita pequena para custear todos os serviços básicos da população.

Segundo Leal, o sistema coronelista só iria perder a sua força quando a estrutura agrária deixasse de ser tão necessária para a economia do país. De acordo com o autor, a base de todo o siste-ma denominado coronelismo estava pautado na dependência dos trabalhadores rurais às terras dos latifundiários. Essa necessidade mantém a população do campo na ignorância e sem uma formação que dê suporte para romper com as “amarras” dos fazendeiros.

Parece evidente que a decomposição do ‘coronelismo’ só será completa quando se tiver operado uma alteração fundamental em nossa estrutura agrária. A ininterrupta desagregação estru-tura-se ocasionada por diversos fatores, entre os quais o esgota-mento dos solos, as variações do mercado internacional, o cres-cimento das cidades, a expansão da indústria, as garantias legais dos trabalhadores urbanos, a mobilidade da mão de obra, o de-senvolvimento dos transportes e das comunicações – é um pro-cesso lento e descompassado, por vezes contraditório, que não oferece solução satisfatória para o impasse (LEAL, 1948; p. 238).

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Nesse sentido, o autor defende que alguns fatores vão contri-buir para minar o sistema do coronelismo, porém não será de forma imediata. Esse fenômeno ainda vai permanecer por muitos anos na situação política brasileira. Alguns destes fatores citados por Leal são: a industrialização, o crescimento urbano, as mudanças nos có-digos eleitorais, alterações nos direitos trabalhistas etc. A expansão urbana, e com o processo de industrialização, proporcionará mais áreas de trabalho para os trabalhadores do campo. Além disso, a chegada de novos meios de transportes e de comunicação possibi-litará uma maior circulação das pessoas do meio rural nas cidades. Além de maior acesso de informações e notícias nesses ambientes urbanos por meio dos aparelhos de rádio. E, por último, as altera-ções feitas nos códigos eleitorais no ano de 1932 vão dificultar mais as interferências dos políticos e proprietários rurais nas eleições. No entanto, as fiscalizações do Ministério da Justiça nas eleições irão demorar muito para se efetivar na prática e possibilitar eleições justas e democráticas.

O coronel e o lobisomem: o percurso literário

O autor José Cândido de Carvalho viveu até seus 22 anos no município de Campos dos Goytacazes. Nesse período o meio rural era mais desenvolvido que o meio urbano. De acordo com o autor Avelino Ferreira, cerca de 150 mil pessoas residiam no município e apenas 35 mil moravam na cidade.

José Cândido, além de escritor, também foi jornalista e traba-lhou em empregos públicos. Atuou como jornalista e redator no Monitor Campista, na Gazeta do Povo, Folha do Comércio, entre outros jornais de Campos. Após se mudar para o Rio de Janeiro também trabalhou no A Noite, na revista O Cruzeiro, no jornal O Estado, den-tre outros. Nos empregos públicos atuou como presidente do Con-selho Estadual de Cultura (1975) e como presidente da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) (1976). Na sua profissão de escritor, o autor publicou obras de diferentes gêneros, como romance, crô-nicas e contos.

A obra mais famosa é o romance O coronel e o lobisomem. O ro-mance fez tanto sucesso que já chegou à 48ª edição e foi traduzido

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para o alemão, francês, espanhol e inglês, além de ter sido publicado em Portugal. Foi adaptado para o cinema em dois filmes: o primeiro foi realizado no ano de 1978 com a direção de Alcino Diniz; e o se-gundo foi feito em 2006 com a direção de Mauricio Farias. Também no ano de 1994 foi feita uma adaptação da ficção para telenovela da rede de televisão Globo, além de ser usada como fonte de pesquisa para dissertações de mestrado e teses de doutorado.

O sucesso de O coronel e o lobisomem, além da publicação das de-mais obras de José Cândido de Carvalho, fizeram o autor ser nome-ado membro da Academia Brasileira de Letras. Se tornou imortal para a Literatura Brasileira. O romance foi escrito no ano de 1964 e representa o Norte Fluminense, mais especificamente Campos dos Goytacazes nas primeiras décadas do século xx. Além disso, a obra retrata o poder que o personagem principal, “o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado” desempenha em dois ambientes diferentes: o campo e a cidade.

O autor Sérgio Rangel, em um artigo escrito no livro Narra-tivas e apreciações – uma homenagem ao centenário de José Cândido de Carvalho (2014), demonstra que, baseado na obra O coronel e o lo-bisomem pode-se fazer uma análise da formação social e cultural de Campos dos Goytacazes. De acordo com o autor, o município de Campos era tipicamente rural, e isso pode ser percebido através dos comportamentos, valores e ações apresentados pelos personagens no romance.

A primeira questão é a dimensão sociocultural da região de Campos dos Goytacazes conhecida como Baixada Campista, que emerge da obra. José Cândido de Carvalho descreve com enor-me habilidade o espaço e sua gente, os falares e o imaginário, repleto de devoção religiosa e seres místicos próprios do folclore brasileiro e local. (...) Nessa perspectiva, a obra pode oferecer subsídios, servir como referência ou apontar caminhos para a compreensão de inúmeros comportamentos sociais e ideologias, comuns na região da Baixada Campista ao longo de sua forma-ção histórica (RANGEL, Sérgio; 2014, p. 102 e 103).

Sob esse ponto de vista José Cândido se baseia nas memórias de sua juventude para escrever. Além disso, mesmo após a sua mu-

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dança para o Rio continua a visitar a sua amada cidade de Campos dos Goytacazes e a criar representações sobre esse lugar com o qual mantinha uma relação de amor, mas com muita crítica às práticas dos coronéis.

O romance é todo narrado pelo personagem principal, o “Co-ronel Ponciano”, que foi criado pelo avô Simeão, um velho usineiro. O avô era proprietário de terras e também possuía uma casa na cidade de Campos dos Goytacazes. Quando ainda era criança, Pon-ciano sai da roça e vai morar nessa casa, na Rua da Jaca, para estudar com os padres da Igreja Católica. Quando já estava adulto, seu avô veio a falecer e deixa toda sua herança para ele, que era seu único neto e nessa época encontrava-se morando na cidade campista, vi-vendo uma vida boêmia do meio urbano.

Ponciano herda todas as posses de seu avô, incluindo as fazen-das Sobradinho e Matacavalo, e a patente de “coronel”. Por meio dos bens herdados ele ganha muito prestígio e status social no meio rural e urbano de Campos, mas prefere morar no campo, na fazen-da Sobradinho, na casa onde viveu seu avô e que guardava lembran-ças de sua infância.

O romance retrata o meio rural formado por grandes e peque-nos fazendeiros. Que são representados pelos personagens “Sera-pião Lorena, Major Badejo dos Santos, Juca Azeredo, Sinhôzinho Carneiro, Dioguinho do Poço, Caetano de Melo, Pires Melo”, além do coronel Ponciano de Azeredo Furtado. As principais atividades econômicas eram a plantação de cana-de-açúcar e a pecuária. A ca-na-de-açúcar era usada para a fabricação do açúcar, álcool e cachaça. Esses produtos produzidos a partir da cana eram comercializados no Brasil e também exportados. As propriedades produziam gêne-ros alimentícios que eram consumidos pelos moradores da fazenda e comercializados em feiras e mercados locais. Entre eles podemos citar: a criação de porcos, galinha, cabrito, e também as plantações de milho, mandioca, feijão, além da atividade da caça.

O campo também era habitado por pessoas mais pobres que trabalhavam nas fazendas, cuidando do gado, dos pastos, das plan-tações. Esses trabalhadores eram homens, mulheres e famílias que trabalhavam nas propriedades rurais em troca de um lugar para morar e de seu autossustento. A grande maioria dos trabalhadores

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rurais era analfabeta e muito pobre, e com o que recebiam com o seu ofício, mal dava para a sobrevivência, o que os tornava depen-dentes dos favores dos coronéis.

Alguns desses trabalhadores do meio rural eram descendentes de africanos escravizados, e na fazenda do coronel Ponciano havia empregados negros e mulatos. Isso pode ser representado pela per-sonagem “Francisquinha”, que era negra e trabalhou vários anos para Simeão; depois foi morar na fazenda Sobradinho e trabalhar para o neto Ponciano. Além disso, havia várias outras pessoas que eram de afrodescendentes e que trabalhavam e moravam na fazen-da, como é o caso dos personagens “Saturnino Barba de Gato” e “Juquinha Quintanilha”, que eram os empregados de confiança do coronel.

Tudo isso demonstra resquícios da escravidão, que teve seus pilares na ausência de liberdade, no trabalho sem pagamento e na relação de dependência. Essa herança do sistema escravista também pode ser percebida quando o autor cita que os fazendeiros tinham relações sexuais com suas empregadas que eram negras ou mulatas, descritas como belas de corpo e feição.

O coronel era um fazendeiro dono de grandes propriedades que se diferenciava dos outros demais fazendeiros apenas pelo seu título. A patente de coronel proporcionava-lhe maior poder social e político na região.

Por ser coronel, Ponciano era solicitado pelos demais fazendei-ros quando aparecia algum problema de qualquer natureza. Vários contratempos são narrados no romance, envolvendo-o. Um desses acontecidos foi o aparecimento de uma onça pintada nas terras do personagem Major Badejo dos Santos. Vários fazendeiros foram so-licitar a sua ajuda para matar a onça. A desculpa dos demais pro-prietários era que ele era a pessoa mais capacitada e corajosa. Con-tudo, o coronel Ponciano era um ser muito fraco e medroso, mas não podia demonstrar, pois isso poderia prejudicar seu prestígio social. O personagem inventava desculpas para fugir do compromis-so, mas não convencia seus vizinhos. Uma de suas desculpas era a promessa aos seus santos de devoção – São José, Santo Onofre, São Jorge – que lhe impediam de resolver esse tipo de problema. E des-se modo, com todas as desculpas e invenções, o coronel conseguiu

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sair da situação de forma honrosa, como homem forte, corajoso e esperto.

Dentre as várias características do personagem coronel Poncia-no, podemos citar o hábito de falar alto, ser autoritário, de hábitos rudes, de ser mal educado à mesa e ser violento com seus empre-gados. Além disso, também era mulherengo, apesar de ser católico praticante. A posse do título de coronel lhe possibilitava maior status na sociedade do município de Campos. Sendo assim, o personagem se sentia superior às demais pessoas, devido a sua condição econô-mica e posição social. E por isso humilhava e tratava mal as pessoas. E para demonstrar sua superioridade, sempre exigia que se mencio-nasse o título de coronel antes de pronunciar seu nome.

O romance retrata que a religião predominante era a católi-ca. Os padres da Igreja Católica tinham uma forte ligação com os proprietários rurais, pois eles financiavam as reformas da igreja e também as suas obras de caridade, festas e quermesses. Como retri-buição, os sacerdotes iam ao campo para ministrar aos moradores o batismo, a confissão, a comunhão etc.

A crença na religião católica também era muito forte entre os habitantes do campo e da cidade, mas os trabalhadores do campo eram mais crentes aos preceitos da Igreja Católica. Isso pode ser notado pelo hábito que as pessoas tinham de fazer promessas aos santos católicos, o hábito de frequentar as missas e a participação nas procissões e festas dos santos. E também pela profunda venera-ção por Maria, mãe de Jesus.

A religião católica permeava o cotidiano das pessoas, por isso as ideias de pecado, de salvação e condenação povoavam as mentes dos católicos. A crença na existência do céu e do inferno também fazia parte da mentalidade das pessoas. Por isso o temor que os pe-cados os levassem para o inferno fazia parte da vida dos fiéis. Isso pode ser notado no final do romance quando o coronel Ponciano morre e aparecem anjos e santos representando o céu e os demô-nios retratando o inferno.

Na segunda parte do romance o personagem principal, coronel Ponciano, vai morar na cidade de Campos dos Goitacazes. Assim como o coronel, outros fazendeiros também estavam deixando o campo para irem morar na cidade, pois o meio rural estava deixan-

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do de ser atrativo para os interesses econômicos desses proprietá-rios. O meio urbano proporcionava maior conforto, lugares para o seu lazer e diversão, que atraiam esses ricos fazendeiros. Alguns desses proprietários se dirigiam à cidade para trabalhar em algum cargo no serviço público e frequentar os cafés, teatros e as casas de diversões só para homens.

A cidade contava com vários lugares, serviços, meios de trans-portes que não havia no meio rural. O romance demonstra que o espaço urbano era composto por algumas ruas calçadas, praças, ambientes comerciais (farmácia, hotéis, bazares); lugares para o la-zer (teatro, bilhares e cafés); contava ainda com os serviços públicos (hospitais, fórum e bancos). A cidade tinha outros meios de trans-portes, como o trem, os tílburis e os bondes; meios de comunicação que não havia no campo, como o telégrafo, e uma ampla circulação de jornais editados em Campos, com circulação por toda a região.

De forma geral, quem mais frequentava a cidade e os lugares de sociabilidade eram os proprietários rurais, pois eles representa-vam a classe alta dessa sociedade e, por conseguinte, tinham status e prestígio social. As pessoas mais pobres, que moravam no campo e eram empregadas dos fazendeiros, não frequentavam esses ambien-tes na cidade, ficando restritas aos encontros em praças, esquinas e botequins.

Quando o coronel Ponciano, que era um homem de hábitos do campo, chega na cidade, ele precisa mudar o seu jeito de ser para se encaixar nas regras, nos costumes e comportamentos que eram exigidos pelas pessoas que moravam no meio urbano. Sendo assim, Ponciano, que tinha jeito mal-educado, autoritário e violento, quando chega na cidade precisa tratar bem as pessoas, ser educado e resolver os problemas de forma passiva. No meio rural ele se ves-tia de acordo com as tarefas do cotidiano, (chapéu, calça, botina), e ocupava os seus dias com as tarefas de cuidar do gado, dos pastos e designar funções para seus empregados. Na cidade, Ponciano pas-sou a usar terno de linho cortado em alfaiataria, com gravatas; a andar de carruagens e consumir todos os seus dias na diversão dos cafés, bilhares e teatros. E convencido por um amigo, entrou para o comércio de venda de açúcar.

O personagem principal, coronel Ponciano, não consegue se

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adaptar ao estilo de vida urbana. Isso acontece por causa de seu jeito de homem do campo, que não vai se enquadrar aos padrões sociais da cidade, e também porque moradores da cidade vão tentar tirar algum benefício de sua condição social e econômica.

Isso é retratado pela personagem “Esmeraldina”, que simula estar apaixonada pelo coronel para se beneficiar de seus recursos e reconhecimento social. A personagem usa de artimanhas de di-ficuldades financeiras provocada pela campanha política de seu marido, para dar um desfalque na fortuna de Ponciano. Outro exemplo da causa da falência do personagem é o fim de seu co-mércio de compra e venda de açúcar, por causa da queda do pre-ço do produto no mercado exterior. Tudo isso, além de outras circunstâncias, vão levar o coronel Ponciano ao endividamento, e ele acaba vendendo algumas de suas propriedades para saldar as dívidas e, aos poucos, seu poder econômico se esvai junto com seu poder político.

De acordo com a hipótese de Rangel, a classe fundiária estava perdendo o seu poder frente à expansão do meio urbano e também com a chegada das novas tecnologias de produção. Com base nesse argumento, podemos supor que o autor José Cândido de Carvalho, através do personagem coronel Ponciano, indica que os proprietá-rios rurais estavam perdendo a sua autoridade e também importân-cia política e econômica não apenas na região do Norte Fluminense, mas no Estado do Rio de Janeiro e nos assentos federais.

O coronelismo numa perspectiva acadêmica e literária

A finalidade dessa sessão do artigo é comparar os trabalhos acadêmicos, dos dois autores, Victor Nunes Leal e Fernando Henri-que Cardoso, com a obra literária de José Cândido de Carvalho. As três obras retratam o poder desempenhado pela classe latifundiária no final do século xIx e início do xx. Sendo que Carvalho pro-duz uma obra ficcional, enquanto Leal e Cardoso elaboraram duas obras científicas. Vale ressaltar que não é objetivo do texto compa-rar a veracidade do romance em relação aos trabalhos acadêmicos.

O livro de Leal, Coronelismo, enxada e voto, aborda o período histórico do Brasil compreendido no início da Primeira República.

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O romance de Carvalho O coronel e o lobisomem representa o Norte Fluminense, porém de forma mais detalhada o município de Cam-pos dos Goytacazes, também no mesmo período histórico. Ambas as obras tratam do predomínio da estrutura agrária no Brasil, evi-denciando o cultivo da cana-de-açúcar, algodão e do café. Algumas dessas matérias-primas eram manufaturadas no país para a expor-tação, como é o caso da cana-de-açúcar, que é matéria-prima para a produção do açúcar, do álcool, da cachaça, dentre outros subprodu-tos de menor valor de mercado. O algodão e o café também eram exportados e representavam o motor da economia no país durante muitos anos.

De acordo com Leal, os donos dessas propriedades rurais eram os pequenos, médios e grandes fazendeiros. Eles representavam a classe média, devido às terras que geravam lucros e também eram supervalorizadas nessa época. Os demais habitantes do meio rural eram muito pobres e dependentes das terras dos latifundiários para tirarem seu sustento. Através dos personagens Antão Perreira, Jan-jão Caramujo, Juquinha Quintanilha, João Ramalho, Francisquinha, Carvalho demonstra a dependência deles em relação às terras do coronel Ponciano. Eles trabalhavam há muito tempo nas fazendas Sobradinho e Matacavalo e necessitavam desse local de trabalho para a sobrevivência. Por isso, acontecia a submissão desses empre-gados as péssimas condições de vida e maus tratos recebidos pelo patrão.

Os títulos da Guarda Nacional aumentaram ainda mais o sta-tus social que esses latifundiários tinham nesse período. Todos os homens livres poderiam fazer parte das várias escalas da carreira militar. No entanto, as pessoas mais pobres ficavam nos postos mais baixos, de major, alferes, capitão etc., e os mais ricos conseguiam o cargo mais alto, que era o de coronel. O romance retrata que ha-via pessoas no meio rural e urbano que possuíam títulos militares. Alguns eram fazendeiros, como é o caso dos personagens Major Badejo dos Santos e também coronel Ponciano de Azeredo Furtado. Outros eram moradores da cidade, como é o caso do personagem Major Juju Bezerra. O romance representa o poder social, econômi-co e político que o personagem principal, coronel Ponciano, exercia no município de Campos dos Goitacazes. Corroborando com a tese

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de Leal, de que o forte domínio local dos coronéis foi a sustentação para o evento do coronelismo.

O autor Fernando Henrique Cardoso aborda que os coronéis formavam um grupo chamado parentela, no local ou na região onde habitavam. Esses parentes estavam ligados ao coronel, por laços de sangue, batismo ou matrimônios. O romance demonstra como era muito comum esses laços de apadrinhamento no meio rural. O per-sonagem principal, coronel Ponciano, tinha muitos afilhados, po-rém o que aparece mais no enredo é o curandeiro Tutu Militão e também o filho de seu empregado de confiança, Juquinha Quinta-nilha. O filho de Juquinha Quintanilha morreu com poucos dias de nascido, mas mesmo assim permaneceu muito forte o laço de com-padrio entre o coronel e seu empregado. Além disso, a narrativa também demonstra os laços de sangue entre o coronel e seu primo fazendeiro, Juca Azeredo. Eles eram sempre solidários uns com os outros e se ajudavam quando estavam passando por dificuldades financeiras, ou quando tinham problemas de saúde etc. O romance vai ainda mais longe, demonstrando que era ao coronel que as pes-soas mais pobres se dirigiam quando precisavam de dinheiro.

Esses parentescos também eram formados através das uniões matrimoniais. As famílias do noivo e da noiva formavam vínculos de fraternidade e afetividade uns com os outros. Por isso, naquela épo-ca, os casamentos eram arranjados entre os familiares ou entre as famílias de proprietários. O romance retrata um episódio em que o coronel Ponciano tenta pedir em casamento Bebé de Melho, que era prima do fazendeiro Caetano de Melho. Esses matrimônios serviam para aumentar as riquezas entre os latifundiários e também para fortalecer o poder dos mesmos nos municípios onde habitavam.

Ainda segundo Fernando Henrique Cardoso, a classe latifundi-ária pertenceu durante muitos anos no Brasil, à alta camada social. Sendo assim, somente os parentes dos latifundiários conseguiam também alcançar fortunas, através das heranças. As atividades do comércio também eram uma forma de se enriquecer. No romance, o personagem principal se torna herdeiro do patrimônio de seu avô Simeão, que era um grande fazendeiro. Com os bens deixados pelo avô, Ponciano se torna rico e também entra para os grandes nomes da sociedade campista. Depois de morar um tempo no campo e

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exercer sua função de patrão de seus empregados, ele volta a residir na cidade. No meio urbano, o personagem entra para a atividade do comércio, comprando e vendendo açúcar. E consegue ganhar muito dinheiro e enriquecer ainda mais.

Para concluir, Victor Nunes Leal e José Cândido de Carvalho demonstram em suas obras como aconteceu a decadência do po-der da classe fundiária. A obra Coronelismo, enxada e voto aponta dois importantes acontecimentos: o crescimento do meio urbano e o processo de industrialização. Esses dois fatos possibilitaram a construção de fábricas, indústrias e também a expansão dos centros comerciais. Nesse sentido, a ampliação das cidades proporcionou outros locais de trabalho para as pessoas que trabalhavam no cam-po. Por isso, muitos começaram a sair do meio rural e se dirigiram às cidades em busca de melhores condições de vida. E com o tempo o número de habitantes nos centros urbanos foi aumentando, en-quanto o do interior ia diminuindo.

Segundo Leal, os moradores do meio rural eram analfabetos e também não circulavam muito nos centros urbanos, por isso não ti-nham muito acesso às informações. Nesse sentido, a falta de conhe-cimento e a vida isolada no campo faziam com que eles não tivessem consciência de sua exploração. Mas com o processo de industriali-zação e a chegada de novos meios de comunicação possibilitaram maior acesso às informações através dos aparelhos midiáticos, rá-dios, televisão; além de novos meios de transportes, que propicia-ram um tráfego entre os moradores do meio rural e da cidade.

De acordo com Leal, o aumento de profissões autônomas e libe-rais nos centros urbanos e a disseminação dos meios de transportes e de comunicação viabilizaram mais liberdade e outras oportunida-des aos trabalhadores rurais. Eles, aos poucos, foram perdendo sua dependência em relação aos proprietários rurais e às suas terras.

Colaborando com que foi abordado, Carvalho, no seu romance, coloca o personagem principal, coronel Ponciano, nesses dois am-bientes: o rural e o urbano. No meio rural havia uma maior eficácia do poder do proprietário em relação aos trabalhadores rurais, pois eles necessitavam das terras para sua sobrevivência. Além disso, a in-cultura de seus empregados ajudava a subordinação deles ao coronel Ponciano. Depois, quando o personagem principal vai para o meio

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urbano, ele não consegue se adaptar às novas tecnologias, aos hábitos próprios das cidades. E acaba saindo da cidade, falido, não só finan-ceiramente, mas também socialmente. A obra de Carvalho contribui com a tese de Leal, na qual o poder da classe fundiária vai sendo mi-nado pela industrialização e pelo crescimento do meio urbano.

Considerações finais

Sobre a relação entre Literatura/História/GeografiaA obra de Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, re-

trata o Brasil no início do século xx; já o trabalho do autor Fer-nando Henrique Cardoso aborda a atuação desses coronéis dos municípios brasileiros. Já o romance O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, representa Campos dos Goytacazes também no século xx. Os três autores escreveram sobre o mesmo perí-odo histórico, e tiveram, também, o mesmo objeto de pesquisa: o poder social e econômico desempenhado pela classe fundiária. Entretanto, utilizaram escalas diferentes. A obra de Cardoso des-taca o poder socioeconômico desempenhado pelos coronéis nos locais onde estavam inseridos. O livro de Leal apresenta a relação desses latifundiários com o meio político. As duas obras acadêmi-cas retratam o tema com uma amplitude nacional, do Brasil como um todo, e a outra, o romance, apenas num contexto regional da cidade de Campos dos Goytacazes.

Com isso, pode-se concluir que as obras são de estilos tex-tuais diferentes. Os livros de Leal e Cardoso desenvolvem, em suas narrativas, um conhecimento objetivo do Brasil no período da República Velha. Por outro lado, Carvalho, em seu romance, apresenta uma percepção subjetiva de Campos dos Goytacazes no século xx, apresentando a narrativa pautada nas memórias e ex-periências vividas pelo autor. No entanto, as três obras colocadas em diálogo produzem um conhecimento acerca do fenômeno do coronelismo vivido no Brasil, e como esse fenômeno contribuiu para a manutenção de uma dada ordem social/política/cultural que até a atualidade buscamos combater.

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REFERêNCIAS

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Ouro sobre Azul, 9ª ed. Rio de Ja-neiro, 2006.

CARDOSO, F. H. Brasil republicano: estrutura de poder e economia (1889 – 1930) In: História geral da civilização brasileira. Cap. 3: O Coronelismo numa interpre-

tação sociológica. Bertrand Brasil, 8ª ed. Rio de Janeiro, 2006.

CARVALHO, José Cândido. O coronel e o lobisomem. Edições Cruzeiro, 2ª ed. Rio de Janeiro, 1965.

FERREIRA, Avelino. José Cândido de Carvalho – vida e obra. Editora Faculdade de Direito de Campos, 2004.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime repre-sentativo no Brasil. Companhia de Letras, 7ª ed. São Paulo, 2012.

Uma homenagem ao centenário de José Cândido de Carvalho. Narrativas e Apre-ciações. Edição Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima. Campos dos Goyta-cazes, 2014

SANTOS, Zeloí Aparecida Martins. História e literatura, uma relação possível. IN: http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/RevistaCientifica2/zeloidossantos.pdf. Acesso em 15/07/2015.

VELASCO, Pedro Resque (2012). Literatura, espacio, paisaje y sociedad: una lectura de la novela de José María de Pereda, Peñas Arriba, desde la Geografía Hu-manística. Centro de Estudios Rurales de Cantabria, xxV cumpleaños 1987-2012. Cantabria, Espanha.

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Experiências identitárias no cotidiano da cidade

Helio dos Santos Passos20

Introdução

Este texto apresenta uma análise de um lugar de sociabilida-de na cidade de Campos dos Goytacazes, o Jardim São Benedito. Está fundamentado nas teorias e métodos da Geografia Humanista. Entende-se a construção do lugar como um espaço de vivências co-tidianas, lidas a partir do relato dos próprios agentes que frequen-tam o Jardim São Benedito, ou seja, é uma leitura através do olhar do outro. Para sua concretização, foram realizadas entrevistas, na forma de conversas, no próprio local, na busca de reconhecer os aspectos pelos quais se constroem as identidades vivenciadas nesse espaço público.

Percorremos os espaços que se encontram no nosso dia a dia, mas sempre há a decisão de seguir um itinerário, em um determi-nado horário, por ser mais interessante que seguir outro, mesmo que ambos cheguem ao mesmo destino. O mesmo ocorre quando damos uma informação a um transeunte: indicamos uma ou outra direção, mesmo sem ter noção das distâncias percorridas e, tanto para decidir por um percurso, quanto para melhor explicar o trajeto ao desconhecido, usamos nossas próprias referências. Uma praça, uma ponte, um largo, um shopping center, um relevo; o nome das ruas são pontos de referências geográficas, mas também afetivas e, por serem referências afetivas, elas são acessadas pela memória em diferentes situações cotidianas mais facilmente.

É habitual às famílias, aos grupos de amigos e ainda sujeitos solitários buscarem, nos finais de semana, os jardins públicos, os parques, os bosques urbanos para encontros, passeios, momentos

20 Licenciado em Geografia. Membro do Laboratório Cultura, Planejamento e Re-presentações Espaciais.

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de lazer, práticas de esportes ou para piqueniques. Veem-se esses encontros no Campo do Santana21, na Quinta da Boa Vista22, no Parque do Ibirapuera23, no Jardim Botânico Rodrigues Alves24 e, em Campos dos Goytacazes, o lugar preferido é o Jardim São Benedito, uma praça que recebe a denominação de “jardim” mesmo sendo toda gradeada e a entrada só sendo permitida em horários bem limitados.

Ao se partir do olhar geográfico, parece estar inteiramente certa a afirmação de que a Geografia nos cerca (COSGROVE, 2012a). Ao se falar em lugar, propõe-se uma investigação atraente pela gama de teorias referentes à categoria que, sendo relacionada ao campo do real, ruma para a percepção de que a Geografia está no cotidiano dos sujeitos. Pode-se identificar como lugar, no sentido de uma cate-goria de análise geográfica, determinado objeto geográfico, seja ele uma praça pública, uma universidade ou um shopping center? Como se pode identificar as rejeições e afeições para com os lugares? Para responder a essas questões, estruturou-se o texto em três sessões: a) a primeira busca fazer uma discussão sobre o conceito de lugar apli-cado ao recorte espacial em estudo, o Jardim São Benedito, aqui tra-tado como o lugar Bendito25; b) a segunda sessão será voltada para a apresentação da metodologia utilizada para encontrar a percepção sobre o determinado espaço vivido, ou seja, o olhar do outro; e c) a terceira e última sessão consiste na apresentação dos resultados dos olhares, capturados por meio de diálogos com os sujeitos que convivem no parque.

21 Campo do Santana é um parque localizado na Praça da República, no Centro do Município do Rio de Janeiro.22 Quinta da Boa Vista é um parque municipal no bairro de São Cristóvão, na Ci-dade do Rio de Janeiro. Foi utilizado durante o Império do Brasil (1822-1889), como residência, pela família imperial brasileira, desde a proclamação da Inde-pendência do Brasil (1822). 23 Um parque urbano localizado na cidade de São Paulo, construído em meados do século xx, especificamente na década de 1950. O Parque do Ibirapuera é consid-erado o parque mais importante da capital paulista.24 Também é conhecido como Bosque Rodrigues Alves, uma área de preservação ambiental localizada em Belém do Pará. Foi construído no século xIx e recebe o nome em homenagem ao político brasileiro que veio a ser o quinto presidente da República.25 Grifo nosso.

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1. O sujeito e o lugar Bendito no âmbito da vertente humanista

Antes do início dos comentários sobre lugar, é mister entender a importância do sujeito no processo de produção do espaço, enten-der a relação entre a produção concreta e simbólica como processos indissociáveis. O sujeito é o protagonista que dá sentido às represen-tações sociais. Essa produção do espaço ocorre devido ao conjunto de práticas agregadas ao solo. Não obstante, existe o campo subjeti-vo do espaço, um processo teológico, pois toda ação humana possui uma finalidade (MORAES, 2005), um sentido que vai orientar o tra-balho (da produção do espaço), diferenciando o homem dos outros animais (COSGROVE, 2012b).

O ser consciente é capaz de idealizar e construir mentalmente a ação que deseja programar. A consciência está estrita ao ser indi-vidual (MORAES, 2005), mas as decisões tomadas causam transfor-mações nas paisagens e na organização espacial e são escolhas que estão relacionadas com diversos contextos espaço-temporais, pois o sujeito exerce ativa contribuição (BERDOULAY e ENTRIKIN, 2014). A imaginação dos indivíduos é o principal determinante nas manifestações dos significados do mundo (COSGROVE, 2012b).

Na problemática da relação sujeito/espaço, as formas da cons-ciência devem ser analisadas no universo da cultura, assim como também o cuidado com o contexto que movimenta o sujeito. Para esses exames, utiliza-se uma ressalva antropológica e histórica (MO-RAES, 2005). Desse modo, para uma análise antirreducionista, se deve considerar o sujeito, sobretudo a valorização da consciência, das ideologias, dos simbolismos que proclamam poder e estão anun-ciados nas paisagens humanizadas (COSGROVE, 2012a). O lugar está impregnado de intencionalidades, resultado de ações baseadas em interesses, ideologias e poder, que o sujeito re/produz. Estão representados por diferentes modelos de cultura, formando uma disputa na paisagem (COSGROVE, 2012a).

A discussão acerca da categoria lugar oferece diversas defini-ções, ao longo do tempo, em variados campos do conhecimento. Dardel (2001), por exemplo, não dedica um capítulo ou sessão es-pecífica para o debate das questões sobre essa categoria. O conceito

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está permeado, na obra, como fundamento para a construção das relações temporais e espaciais do indivíduo no mundo. Essa afirma-ção é amparada pelo seguinte fragmento:

Do plano da geografia, a noção de situação extravasa para os domínios mais variados da experiência do mundo. A situação de um homem supõe um ‘espaço’ onde ele se ‘move’; um con-junto de relações e de trocas; direções e distâncias que fixam de algum modo o Lugar de sua existência. ‘Perder a localização’ é se ver desprovido de seu ‘lugar’, rebaixando de sua posição ‘emi-nente’, de suas relações, se encontrar, sem direções, reduzido à impotência e à imobilidade. Novamente a geografia, sem sair do concreto, empresta seus símbolos aos movimentos interiores do homem (DARDEL, 2001, p. 19).

O conceito de Dardel (2001) de geograficidade26 tem influen-ciado nas pesquisas de geógrafos humanistas. Nos últimos anos o humanismo vem sendo a grande influência nas ciências sociais, e fez surgir uma diversidade de concepções nas diferentes disciplinas que se encontram nesse campo do conhecimento. Grande parte das obras que seguem essa orientação metodológica vem influenciando o conhecimento geográfico, outras ciências sociais e até a Literatu-ra, causando a ausência de uma instrução unitária (GOMES, 2012).

Caracterizado por um ecletismo em função do novo contexto crítico das ciências sociais, criaram-se equívocos no que diz respeito às propostas, métodos e abordagens. Há dificuldade em ver uma integração ou uniformidade do movimento humanista quanto ao plano filosófico-metodológico. Na geografia humanista, há o acordo em contestar o modelo científico anterior, mas não há, contudo, um consenso quanto a um novo modelo a seguir (GOMES, 2012).

Identificam duas acepções geográficas da categoria lugar, fun-damentadas por dois eixos epistemológicos: a geografia marxista e a geografia humanista. A geografia marxista fundamenta seu con-ceito-chave pela singularidade (LEITE, 1998). Também conhecidos como geógrafos radicais, seus seguidores argumentam que o lugar

26 Geograficidade foi o conceito formulado por Eric Dardel, em 1950. Consiste na relação entre o indivíduo e a superfície terrestre, relação de experimentações, das vivências, uma relação visceral com os lugares. Esse conceito tem fundamentos filosóficos, bem como o existencialismo e a fenomenologia.

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se define como nós, sendo fruto de interações globais que se orga-nizam em redes sociais, econômicas e políticas (RELPH, 2014). E a geografia humanista define o lugar pela experiência.

Na contextualização histórica, esses dois polos são originários do século xx, especificamente nos anos de 1970 e 1980, e trouxe-ram o interesse em discutir o conceito de lugar. Haja vista que a geo-grafia passava por momentos de turbulência acerca de uma redefini-ção, devido a discussões sobre inadequações do modelo cartesiano e das ciências newtonianas (RELPH, 2014). A difusão da arquitetura moderna, em meados do século xx, com projetos que não valoriza-vam a tradição, a história do local e o ambiente, foi outro fator que estimulou o interesse em se discutir sobre o lugar, simultaneamente com a ideia de preservação patrimonial.

A relação entre lugar e a experiência é caracterizada principal-mente pela valorização das afetividades que os indivíduos desenvol-vem com o meio, ou seja, lugar é produto da experiência humana (TUAN, 2013), uma ideia desenvolvida pelos filósofos Edmund Hus-serl e Martim Heidegger, em oposição ao positivismo. Assim, até a década de 1990, a concepção de lugar da geografia humanista era o principal polo epistemológico (RELPH, 2014).

Ao longo da vida desenvolvemos afetividades a partir da convi-vência com o lugar e com outros indivíduos. Os lugares são impreg-nados de emoções, lembranças e sentimento de segurança. Essas afetividades, por parte dos sujeitos, somente se dão devido aos inte-resses predeterminados e intencionalidades (LEITE, 1998). A expe-riência tem diversas perspectivas. O espaço pode ser experienciado pelas diferentes maneiras pelas quais uma pessoa conhece e com as quais constrói a realidade: a luz dos sentidos (olfato, paladar e tato), a percepção visual e concepção (simbolização). A experiência está voltada para o mundo externo, pois provoca a competência de aprendizado a partir da própria vivência constituída de sentimento e pensamento, isto é, um continuum experiencial27. Os objetos ou os

27 Relação que existe entre sentimento e pensamento na construção da experiên-cia. Tuan (2013) relata que o sentimento humano não é sucessão de diferentes sensações. Ambos – sentimento e pensamento – têm a competência de produzir convergências sensoriais no movimento da experiência, são duas extremidades que complementam a experiência.

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lugares somente atingem a realidade concreta quando a experiência com eles é total, envolvendo todos os sentidos, assim como a mente ativa e reflexiva (TUAN, 2013). Na construção dos valores espaciais, o corpo é o ponto inicial. O desenvolvimento da habilidade espacial é gradativo. Surge quando o indivíduo é criança e, logo em seguida, vem o conhecimento espacial. Entretanto, o conhecimento espacial, apesar de potencializar a habilidade espacial, não é necessário a ela, desde que o conhecimento se construa na realização de atividades habituais (TUAN, 2013).

O Jardim São Benedito, em verdade, trata-se de uma praça lo-calizada na área central da cidade de Campos dos Goytacazes, bas-tante utilizada para práticas culturais, esportivas, de lazer e do ócio. Nesse ambiente se relacionam sujeitos que possuem idades, experi-ência de vida, visão de mundo, sentimentos e conhecimentos dife-rentes a respeito do lugar, bem como o próprio lugar proporciona experiências diferentes para cada grupo e/ou indivíduo. “O local é, então, altamente complexo, com múltiplos patamares de significa-dos” (COSGROVE, 2012a, p. 220). Além do mais, “o local é um lu-gar simbólico, onde muitas culturas se encontram e, talvez, entrem em conflito” (COSGROVE, 2012a, p. 220).

No interior do Jardim São Benedito pode-se perceber alguns símbolos que produzem significados, valores e são destaques do lu-gar. A Academia Campista de Letras28 (Imagem 1) está localizada ao centro do jardim, com uma arquitetura histórica que contribui para a memória da cidade. Ao seu redor, estão posicionados bustos em homenagem (Imagem 2) a agentes que tiveram grande importância intelectual, política e cultural no município campista. Esses bustos são expressões impressas na forma de linguagem, isto é, símbolos que representam uma cultura dominante e reproduzem normas e valores (COSGROVE, 2012a).

Os seis bustos de figuras importantes para a história do Brasil e da cidade de Campos dos Goytacazes simbolizam agradecimentos por parte da elite campista. Do lado esquerdo, estão os bustos de:

28 Antes de funcionar a Academia Campista de Letras, tal construção, no início do século xx, em 1904, era uma escola pública chamada Wenceslau Braz desti-nada para as classes mais pobres do município. Ver em: http://institutohistoriar.blogspot.com.br

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Teixeira de Melo29, Gastão Machado30, Nilo Peçanha31. à frente da construção, o busto é em homenagem a Benta Pereira32, mulher re-conhecida como importante para a história local. Do lado direito, encontram-se os bustos de José do Patrocínio33 e Azevedo Cruz34.

Imagem 1 ACADEMIA CAMPISTA DE LETRAS

Fonte: LabCULT, 2015 – Imagem capturada com câmera pinhole durante um curso de fotografia.

Imagem 2 OS BUSTOS

Fonte: Elis Miranda – LabCULT, janeiro de 2016

29 Médico, jornalista e escritor brasileiro e cidadão campista do século xIx.30 Teatrólogo e jornalista brasileiro e cidadão campista do século xx.31 Político brasileiro e cidadão campista dos séculos xIx e xx.32 Heroína e cidadã campista do século xVII e xVIII.33 Jornalista, farmacêutico, ativista, político brasileiro e cidadão campista. Lutou no movimento abolicionista e republicano34 Poeta, teatrólogo, escritor, político brasileiro e cidadão campista do século xIx.

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Os nomes dos personagens já estão apagados, não são reconhe-cidos pelos transeuntes e frequentadores do jardim, e o reconheci-mento dos seus feitos já não tem mais a mesma importância. Outros personagens ocupam agora a cena cultural e política, mas esses já não são tão nobres e não merecem homenagens como aqueles.

As pessoas ou grupos que frequentam o jardim seguem um conjunto de condutas. No interior não é permitido andar de bici-cleta, consumir bebidas alcoólicas ou drogas ilícitas, ou praticar atividades obscenas. Além disso, o local está cercado por grades e possui um período de funcionamento diário, verdadeiros “códigos apropriados de conduta” (COSGROVE, 2012a) (Imagem 3). Portan-to, esse conjunto arquitetônico expressa a motivação de um dado grupo social, ou seja, a intencionalidade e atividade do sujeito cole-tivo, no geral, um referente ideológico que, pela concepção fenome-nológica, pode ser identificado (BERDOULAY e ENTRIKIN, 2014).

Imagem 3 PLACA COM OS CóDIGOS APROPRIADOS DE CONDUTA

Fonte: Elis Miranda – LabCULT, janeiro de 2016

A Igreja de São Benedito (Imagem 4) dá nome a esse jardim; uma praça cortada ao meio por uma rua. De um lado, a área cerca-da; de outro, onde se encontra a igreja, não há cercas. Esse espaço caracteriza-se por ser um ponto de encontro de sujeitos de diferen-tes classes sociais, moradores de diferentes bairros, que buscam um

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espaço de sociabilidade na cidade. Por ser um lugar ambientalmente agradável, cercado de árvores que proporcionam sombreamento, o lugar abriga “moradores de rua”, artistas que usam o semáforo para as apresentações de malabares ou ainda aqueles que usam o jardim como cenário de fotografias de casamentos ou de grávidas. Além desses usos, é possível encontrar grupos que estão diariamente no jardim e fazem uso dos equipamentos esportivos instalados pela mu-nicipalidade ou somente o utilizam como um espaço de descanso das alimentações do dia a dia. O horário de funcionamento, de 7 até as 21 horas, limita as práticas de sociabilidade e controla a circula-ção no jardim e em seu entorno.

Imagem 4 IGREJA DE SÃO BENEDITO

Fonte: LabCULT, 2015 – Imagem capturada com câmera pinhole durante um curso de fotografia.

No último ano, identificamos grupos de crianças levadas por suas mães para brincar e fazer piquenique no fim da tarde, em es-pecial no período das férias escolares. Em anos anteriores, não iden-tificamos essas atividades sendo realizadas. Acreditamos ser uma alternativa de lugar de lazer em uma cidade que possui poucos es-paços destinados às crianças. No Jardim Bendito há os tradicionais

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brinquedos de parques, como as gangorras, balanços e os escor-regas (Imagem 5), mas há também o minhocão, o pula-pula e os carrinhos (Imagem 6), que são pagos, por serem brinquedos que pertencem a particulares.

Imagem 5 OS TRADICIONAIS BRINQUEDOS DE PARQUES: CARRINHOS

Fonte: LabCULT, 2015 – Imagem capturada com câmera pinhole durante um curso de fotografia.

Imagem 6 O MINHOCÃO

Fonte: LabCULT, 2015 – Imagem capturada com câmera pinhole durante um curso de fotografia.

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Após o percurso pelo jardim apresentando os principais obje-tos que o compõem e identificando os sujeitos e grupos que atuam nesse lugar, parte-se para a análise das entrevistas não estruturadas, em dias e horas diferentes, para se poder encontrar os sujeitos e grupos, em seus horários de permanência no jardim. As entrevis-tas foram feitas com os agentes frequentadores do jardim e com os agentes públicos responsáveis pela manutenção das regras e guarda do patrimônio.

2. O Jardim São Benedito e suas relações cotidianas

Como ponto de partida, os comentários expostos antes das conversas obtidas no parque, durante dez meses de observação, diálogos e vivências, estão em primeira pessoa do plural, pois nessa sessão do trabalho, que representa o preenchimento da lacuna entre o sujeito/objeto ou a produção intelectual/afetiva, ocorreu a necessidade de nos incluir na metodologia da pesquisa. Os pesquisadores, como sujeitos inseridos no espaço, frequentam o referido lugar, praticando atividades aeróbicas na Academia Popular Viva Mais, projeto da Fundação Municipal de Esportes de Campos dos Goytacazes; alimentam-se no Quiosque do Fred; participam de partidas de futebol na quadra poliesportiva; utili-zam a internet WI-FI do jardim, além de passarem por esse par-que como parte do percurso diário de casa para a universidade, desde 2009, quando passaram a ser moradores de Campos, vin-dos da cidade do Rio de Janeiro.

As entrevistas semiestruturadas tiveram como objetivo buscar capturar as diferentes percepções sobre esse lugar. Buscamos nos apoiar em uma concepção fenomenológica, a fim de reduzir a pre-determinação, que implica obter resultados desejados. Por questão de organização, os frequentadores do local foram divididos por três grupos que são complementares uns aos outros: (a) grupo de lazer, (b) grupo de trabalho, e (c) grupo de atividade física. Não quer dizer que não existam outros grupos, mas esses nos chamaram a atenção por terem maior número de componentes e sua presença ser diária. A seguir apresentamos as percepções sobre o lugar de cada um dos grupos.

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2.1 O grupo de lazer Nesse grupo, em sua maioria, as conversas foram com jovens

que frequentam a quadra de futsal, os skatistas, os que praticam vô-lei de areia, praticantes de basquete, os estudantes e os que utilizam o espaço para socializações e ainda para não fazer nada e apenas contemplar a paisagem. Os que utilizam o espaço para socializar consideram o Jardim São Benedito um lugar de refúgio, onde po-dem conversar sobre as afinidades em comum, mas também trazem pontos de rejeição a ele, como apresentamos nesse conjunto de falas transcritas abaixo:

A galera se reúne sempre aqui no Jardim... é mais fresco, tem várias sombras e dá para ‘matar a larica’[fome] tomando um ‘litrão’ de açaí. A molecada começa a chegar umas 16 horas. Alguns chegam lá para depois das 18 horas e ficamos aqui até os ‘guardinhas’ falarem que vai fechar o jardim. às vezes rola uma viola, quando alguém traz, e fazemos um som. Antigamente dava até para ‘biritar’ e ‘charrar um’, mas agora os ‘guardinhas’ estão embaçando. Quando eles percebem que estamos com ‘bi-ritas’, já ficam nos cercando, ‘charrar’ então... nem tenta! Já teve amigo que ficou ‘agarrado’ e foi para a delegacia. ‘É osso’ (GRU-PO DE LAZER, 2015).

Os skatistas também relatam suas experiências positivas e ne-gativas no Jardim São Benedito e algumas são semelhantes às dos jovens referidos acima:

Gosto de dar um ‘rolé’ no Jardim porque a quadra é ‘lisinha’. O skate pega ‘mó’ pressão, aqui é mais fresco e direto a gente faz um ‘raxa’ para um litro de açaí. Na pracinha da rodoviária a pis-ta está toda ‘arregaçada’, está ficando difícil dá um ‘rolé’ lá, até porque a gente gosta mais do estilo street. Na São Salvador não pode mais dá um ‘rolé’ como antigamente e as pistas que têm na cidade tem que pagar... o problema de andar aqui é porque a gente não evolui o ‘rolé’, não tem espaço e direto temos que di-vidir ‘meio a meio’ a quadra com a galera do basquete (GRUPO DE LAZER, 2015).

O grupo que pratica vôlei de areia frequenta o local aos sába-dos. Tal grupo poderia ser incluído no grupo de atividade física,

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porém as conversas obtidas apontam que a reunião tem o objetivo de fugir do estresse dos dias úteis da semana, sobretudo o trabalho semanal. Muitos componentes do grupo têm afinidade com o espor-te e a prática tem o intuito da diversão:

Nos reunimos todo sábado de manhã para jogar vôlei. Essa reu-nião serve para aliviar a tensão do dia a dia. O Jardim São Bene-dito é o melhor local que encontramos para reunião. Além de ser um espaço reservado para essas atividades, ele também é um local conhecido por todos do grupo (GRUPO DE LAZER, 2015).

Imagem 7 VôLEI DE AREIA NA PRAÇA SÃO BENEDITO

Fonte: Elis Miranda – LabCULT, janeiro 2016.

Os jovens que jogam basquete relatam que se reúnem desde muito tempo no jardim. Eles utilizam a metade da quadra polies-portiva, a mesma que os skatistas utilizam e, nessa mesma quadra, nas segundas e quartas-feiras, acontecem aulas de capoeira com o grupo Abadá Capoeira. Os jovens do basquete se reúnem no final da tarde e todos eles têm um gosto em comum, que consiste na pai-xão pelo basquete:

Poxa, já perdi a conta de quanto tempo a molecada se reúne aqui no jardim. Aqui, só os que gostam de NBA e basquete em

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geral. Jogamos ‘21’ e conversamos também sobre NBA. Geral se conhece desde ‘novinho’. Desde muito tempo jogamos basquete no jardim (GRUPO DE LAZER, 2015).

Imagem 8 BASQUETE DE QUADRA NA PRAÇA SÃO BENEDITO

Fonte: Elis Miranda – LabCULT, janeiro 2016.

Identificamos nesse relato que esse é um lugar de encontro de longa data. Quando um dos entrevistados diz que “geral se conhece desde novinho” mostra que eles cresceram tendo o jardim como um lugar de encontro e aqui constroem seus laços de afetividade e sociabilidade da cidade. Sujeitos vêm de outros bairros para se en-contrarem ali e passaram a ter esse lugar como referência para rever os amigos de infância.

às quartas-feiras acontece o futebol na quadra poliesportiva principal. Com início marcado para as 20 horas, o lugar é ocupado por um grande número de homens de variadas idades. Muitos se conhecem desde a infância. Nós os conhecemos em 2010:

Essa ‘pelada’ já acontece aqui há muito tempo. Antigamente ti-nha menos pessoas. Era só a rapaziada que mora aqui perto. Mas começou a ficar lotada, porque um vai chamando o outro. Tem uns moleques aqui que vi criança... já teve campeonato en-tres os bairros organizado pela prefeitura, se eu não me engano foi em 2013 (GRUPO DE LAZER, 2015).

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Em mais de um relato demonstra-se a importância desse lugar para a cidade. Reúnem-se ali jovens, adultos e idosos sem distinção. O futebol é um motivador para esses homens saírem de casa e terem seus momentos de lazer. Estar entre amigos naquele lugar é mais importante que o jogo de futebol, o jogo é apenas um pretexto para estar junto.

Aos sábados e domingos, foi percebido durante a pesquisa, que o jardim é frequentado por muitas famílias. Muitos pais nos relata-ram que esse costume é antigo para suas respectivas famílias.

Meus pais me traziam aqui quando eu era criança... agora eu tra-go meu filho aqui como meu pai fazia. Como eu moro aqui per-to, venho com eles para andar de bicicleta ao redor do jardim. Eles ficam encantados com os coelhinhos, com os brinquedos do parque também (GRUPO DE LAZER, 2015).

A comemoração do dia 15 de outubro, Dia do Professor, per-mitiu muitas confraternizações simultâneas. O local teve grande concentração de piqueniques, com direito a brincadeiras entre pro-fessores e alunos de escolas de ensino fundamental:

Na quinta-feira passada foi Dia do Mestre. Como foi feriado, não teve aula e então deixamos para comemorar hoje, na segunda--feira. A aula hoje é uma brincadeira. E parece que muitos ti-veram a mesma ideia de comemorar aqui, parece até que foi combinado (GRUPO DE LAZER, 2015).

A entrevista deixa transparecer que o Jardim São Benedito foi escolhido por professores e estudantes de diferentes escolas para es-tarem no mesmo dia e hora para comemorar o Dia do Mestre, o que nos leva a pensar sobre a centralidade desse jardim, mas ao mesmo tempo aponta para a falta de alternativas na cidade para esse tipo de evento.

Em seguida, expomos as visões que dizem respeito ao grupo de trabalho. Indivíduos que participam do cotidiano do jardim, com objetivos profissionais. Nesse grupo há agentes que estão localiza-dos ao redor do jardim e no interior.

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2.2 Grupo de trabalhoOs primeiros trabalhadores com quem conversamos foram os

que frequentam a Academia Popular Viva Mais. A academia coloca à disposição dos frequentadores, instrutores para o auxílio e a com-posição da matrícula para a prática das atividades aeróbicas. O fun-cionamento é dividido em dois turnos: das 7 às 11 horas e a partir das 16 às 21 horas. Em cada turno há um instrutor diferente, porém suas perspectivas a respeito do lugar são semelhantes:

Bom... aqui na academia o trabalho não é muito ‘puxado’. Muitos alunos aqui já praticam atividades aeróbicas há bastante tempo; então você não precisa ficar o tempo todo dando orientações... a não ser quando o cara esteja fazendo o treino em uma posição inadequada. Aqui no jardim pela manhã é fresquinho, diferente do turno da tarde. O problema principal que a academia tem são os dias de chuva, que acabam interditando as atividades (GRU-PO DE TRABALHO, 2015).

As opiniões dos que trabalham na academia no segundo turno dialogam com os companheiros do turno matutino:

Trabalhar aqui de tarde tem o problema do calor. O açaí ali aju-da a refrescar. A noite é mais fresco e a academia fica bem cheia. Quando chove a academia fecha. A galera reclama muito, mas não tem condições com chuva. O trabalho aqui é tranquilo... o problema é que a prefeitura às vezes atrasa o pagamento (GRU-PO DE TRABALHO, 2015).

A academia popular instalada no interior do jardim é financia-da com recursos da municipalidade e atende a um público bem va-riado em idade, gênero e origem social. Não há registro de conflitos entre os frequentadores, ao contrário, é um ambiente agradável. E o número de frequentadores é justificado por ser essa a única acade-mia popular/pública na cidade de Campos dos Goytacazes.

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Imagem 9 ACADEMIA POPULAR NA PRAÇA SÃO BENEDITO

Fonte: Elis Miranda – LabCULT, janeiro 2016.

O quiosque dentro do jardim tem o funcionamento iniciado pela manhã, com as atividades terminadas no período noturno. Co-nhecido como Quiosque do Fred, é conduzido no cotidiano por dois atendentes, que revezam suas atividades em dois turnos de seis horas. Conversamos algumas vezes, em consonância com o período que a academia inicia as atividades no turno diurno:

Abrimos aqui às 8 horas e fechamos às 20 horas. Em época de carnaval fica fechado, porque muita gente vai para a praia, e também tem um Açaí do Fred em Grussaí. Trabalhar aqui no jardim tem suas vantagens: muito fresco e, por ser um lugar no centro, vem muita gente aqui lanchar. Os guardas munici-pais, os professores aqui da academia, o próprio pessoal que malha, a molecada que fica por aí no jardim. Vêm muitos grupos reunidos para tomar açaí e também tem muito a ver com a alimentação saudável né... acho que isso também é uma coisa que ajuda as pessoas a virem aqui lanchar (GRUPO DE TRABALHO, 2015).

Os funcionários do quiosque relatam também que o jardim tem um ambiente agradável; há procura, devido à qualidade do açaí e à proposta do estabelecimento de vender produtos mais saudáveis, o que condiz com as atividades físicas praticadas diariamente, inclusi-ve nos finais de semana.

Outro trabalhador com quem conversamos foi o pipoqueiro,

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cujo carrinho fica localizado em uma das entradas do jardim. Traba-lha no local há bastante tempo, como relata o mesmo:

Acho que trabalho aqui na porta do jardim há uns vinte anos... desde a década de 80. Eu gosto muito do ambiente familiar do jardim, sábado e domingo fica cheio de criança, eu acabo ven-dendo muita pipoca. Principalmente no domingo, dia da missa, algumas pessoas compram pipoca aqui também (GRUPO DE TRABALHO, 2015).

Outra vertente do grupo de trabalho com quem conversamos foram os guardas municipais. A Guarda Municipal é o órgão que exerce a função de zelar pelo espaço/patrimônio público e preser-var a conduta que se exige para frequentá-lo:

O trabalho no jardim é gratificante, protegemos aqui um local que embeleza a cidade, muitas famílias se reúnem aqui no final de semana. Um ambiente familiar, principalmente no domingo e a missa da igreja. Trabalhar aqui é preservar o espaço para as pessoas utilizarem, não deixar ter bagunça, porque vem muitos jovens para cá... quando percebemos aqui pela câmera que estão fazendo alguma coisa que não pode, nós vamos lá para ter uma conversa legal com eles (GRUPO DE TRABALHO, 2015).

Todos os sujeitos do grupo de lazer e do grupo trabalho apon-tam o jardim como um lugar agradável para a cidade, é onde se sentem bem e encontram seus amigos. Destacam ser um local muito frequentado em diferentes horários. Os jovens não concordam com a abordagem feita pelos guardas municipais, porque eles impedem o consumo de bebidas e outras práticas no lugar.

2.3 Grupo de atividade físicaO Jardim São Benedito é também um ambiente que as pesso-

as utilizam para a prática esportiva da educação física, ou seja, o bem-estar do corpo. Entre essas pessoas estão os que fazem cami-nhada, contornando o jardim; os que utilizam a quadra de areia para atividades de fortalecimento muscular, caminhada e corrida. Há os idosos, que praticam atividades aeróbicas nos aparelhos des-tinados ao público denominado de terceira idade; os que praticam

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“lambaeróbica”35, o grupo que pratica Tai chi chuan36, e os que fre-quentam a academia. Todos esses grupos possuem um ponto em co-mum: o de que o jardim é o melhor espaço para as atividades dessa natureza, como relatam os idosos:

Ficamos muito agradecidos à prefeitura por ter colocado esses aparelhos aqui no jardim. Depois das caminhadas, temos um es-paço para alongar os músculos. Demorou mas chegou, esses apa-relhos, que nos ajudam aliviar muitas dores no corpo (GRUPO DE ATIVIDADE FÍSICA, 2015).

Imagem 10 PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA NA PRAÇA SÃO BENEDITO

Fonte: Elis Miranda – LabCULT, janeiro 2016.

Os frequentadores da academia relatam suas experiências, pon-tos negativos e positivos na utilização do espaço público estudado:

Malhar no jardim é bom, a academia fica debaixo de duas árvo-res que ajudam a ‘tapar’ o sol. De manhã é fresquinho, à noite também. O problema é quando chove, a academia fecha e só abre quando para de chover; e só pode malhar com tudo seco, inclusive o chão (GRUPO DE ATIVIDADE FÍSICA, 2015).

35 Lambaeróbica é a união de exercícios aeróbicos com música. Em especial música de origem baiana, como o axé.36 Arte marcial chinesa. Bastante utilizada para meditação e exercícios fisioterapêu-ticos para idosos.

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Os que frequentam a quadra de areia, seja para o vôlei, para a corrida ou caminhada, tiveram uma perspectiva semelhante acerca da utilização do jardim:

Acho que não tem melhor local na cidade do que o São Benedito para correr na areia. A não ser que você vá para as praias. Essa quadra aqui é ideal, a noite fica até um pessoal aqui fazendo exercícios, como também já vi o time do Goytacaz fazendo trei-no aqui (GRUPO DE ATIVIDADE FÍSICA, 2015).

Alguns dias na semana, na quadra de areia, se reúne um grupo que pratica atividades aeróbicas. Segundo esse grupo, se não hou-vesse essa área com areia, não haveria como praticar tais exercícios:

Esse local é ideal por causa da areia. É o principal motivo; ao contrário, só indo para a praia. O segundo motivo é porque o São Benedito fica no centro da cidade e a maioria conhece, pas-sa por aqui e até mesmo frequenta. A areia ajuda a fortalecer os músculos, amortecendo o impacto, sendo ideal também para exercícios de emagrecimento (GRUPO DE ATIVIDADE FÍSI-CA, 2015).

Para finalizar esta sessão, ressaltamos a dificuldade que há em tentar abordar as problemáticas em sua totalidade. O que fizemos foi a tentativa de coletar o máximo de informações para que possa-mos, com os resultados da análise, estabelecer um diálogo com os produtos acadêmicos.

3. Lugar Bendito e seus aspectos

Para a compreensão tanto de lugares particulares quanto para o fenômeno de lugar com suas restrições, é necessário primeiramente compreender os aspectos de lugar, fundamentados a respeito dessa categoria analítica. Relph (2014) aponta uma distinção fundamental entre lugar e lugares na Geografia. Nossa pesquisa se orienta por uma delas: o estudo do lugar, baseado em observações particulares, para esclarecer as maneiras como os indivíduos se relacionam com o mundo. No caso, como os frequentadores e o espaço público se relacionam entre si e com o lugar. A sessão anterior indica que o

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Jardim São Benedito dialoga com alguns aspectos de lugar que são importantes para a compreensão do fenômeno (RELPH, 2014).

Pode-se perceber que, no mesmo espaço público, muitos in-divíduos, apesar de se relacionarem de formas distintas, de terem idades distintas, sobretudo costumes diferentes, possuem pontos de afeição semelhantes com o jardim. Além disso, muitas práticas na área estudada são exercidas por gerações, o que foi percebido nas atividades familiares. O conjunto arquitetônico da Academia Campista e a Igreja São Benedito proclamam o tempo especializado (TUAN, 2013), o simbolismo da representação de poder e culturas dominantes. São elementos que compõem a paisagem e constroem a fisionomia do lugar (RELPH, 2014). Mais que a Academia Cam-pista de Letras, é a Igreja São Benedito que influenciou a mudan-ça do nome para jardim – que anteriormente chamava-se “praça municipal”37 –, mas os frequentadores do jardim pouco vão à igreja, criando outras formas de sociabilidade a partir da prática esportiva, do lazer e do trabalho.

Mais além, o Jardim São Benedito consiste em um espaço públi-co onde acontecem diversas reuniões que advêm de contextos histó-ricos passados. As reuniões são mais um aspecto e estão impregna-das de significações, experiências e qualidades históricas. Esse fato diferencia o Jardim São Benedito e o torna o lugar e não um lugar. Ao conversar com os jovens, se percebe outro aspecto: o aspecto de lar. Ir ao jardim todos os dias é um ato corriqueiro, como se estives-sem em casa; possuem um profundo conhecimento do cotidiano, uma familiaridade com o jardim que influencia também no desen-volvimento do aspecto de interiorida de (RELPH, 2104). Contudo, esses são alguns aspectos teóricos de lugar que acreditamos contem-plar a realidade imposta ao espaço público usado como privado, pois a cerca e os horários impostos para o fechamento impedem o acesso de outros sujeitos sociais e de outros grupos que costumam usar os espaços públicos em horários noturnos.

37 A mudança do nome ocorreu na época da construção da igreja, no século xIx, especificamente em 1865. Ver em: http://institutohistoriar.blogspot.com.br

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4. Considerações finais

Como se pode constatar, o Jardim São Benedito vai além de um mero espaço público. Os aspectos ora apresentados orientam que o jardim é o lugar e não um lugar qualquer, pois é impregnado de sentidos, significados, simbologias e sentimentos. Não obstante, o local é carregado de condutas de proteção que expressam um controle social, mas que é sutil aos indivíduos que, sem perceberem, agem de acordo com as normas exigidas. Em outras praças públicas da cidade, existe uma forma de relacionamento diferente da que é exercida no jardim. Apesar da agregação de diferentes grupos no local, eles, em algum momento, agem de forma igual, por estarem submetidos a esse conjunto de normas de conduta. Contudo, o Jar-dim São Benedito possui a essência de lugar, pois suas experiências resistem ao tempo. É uma construção urbana, especificamente um parque urbano, que mantém costumes e manifestações locais que resistem aos contextos históricos, mesmo com uma mudança do ce-nário ou dos costumes.

Assim, se tivéssemos feito a opção por estudar as Praças do Flamboyant, chegaríamos a outros discursos, por se tratar de duas praças no interior de um bairro planejado e implementado na dé-cada de 1990. O mesmo ocorreria se tivéssemos feito a opção pela Praça São Salvador, a praça mais antiga da cidade, localizada à beira--rio, na área mais central e de comércio da cidade e sem cercas para impedir a frequência dos sujeitos da noite.

Por fim, importa chamar a atenção para os múltiplos usos do Jardim São Benedito, mas não identificamos, atualmente, atividades relacionadas às expressões artísticas e culturais. A cidade de Cam-pos é carente em espaços públicos de sociabilidade, talvez seja essa a explicação para que o Jardim São Benedito seja usado por tantos grupos e sujeitos tão distintos.

REFERêNCIAS

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COSGROVE, Denis. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas pai-

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sagens humanas. IN: CORRêA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Orgs). Geo-grafia cultural: uma antologia. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012a.

COSGROVE, Denis. Mundos de significados: geografia cultural e imaginação. IN: CORRêA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Orgs). Geografia cultural: uma antologia. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012b.

DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: a natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2001.

GOMES, Paulo Cesar da Costa. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Ber-trand Brasil, 2011.

MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias geográficas: espaço, cultura e políti-ca no Brasil. Annablume Editora: São Paulo, 2005.

LEITE, Adriana Filgueira. O Lugar: duas acepções geográficas. Anuário do Insti-tuto de Geociências, UFRJ, v. 21, 1998.

RELPH, Edward. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência de Lugar. In: MARANDOLA JR., Eduardo; HOLZER, Werther; OLIVEIRA, Lívia de (Orgs). Qual espaço do lugar? São Paulo: Perspectiva S.A., 2014.

TUAN, Yi-Fi. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Londrina: Eduel, 2013.

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Políticas públicasde educação e as

sensorialidades do lugar

Políticas públicas de educação e as sensorialidades do lugar

Elis de Araujo Miranda(Organização)

Elis de Araujo M

iranda (Org.)

Parte I - SOBRE POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO

Fotografia e experiências didáticas transdisciplinaresElis de Araújo MirandaMaria Priscila Pessanha de CastroRosa Maria Alvarenga

Sistema de habitus: cultura e educaçãoGabriel Duarte CarvalhoElis de Araújo MirandaJosé Luis Vianna da Cruz

Educação e indústria petrolífera: a formação dos técnicos de nível médioAna Paula Rangel de AndradeRosélia Perissé da Silva PiquetElis de Araújo Miranda

Parte II - SOBRE AS SENSORIALIDADES NO LUGAR

Subjetividade e modernidade na obra poética de Mário QuintanaPriscila Viana AlvesElis de Araújo Miranda

Cinema e Educação: passividade e indiferençaJoilson Bessa da Silva

O coronel e o coronelismo: entre os meandros da Geografia, História e Literatura para a compreensão de uma categoria socialDaniele Correa Camara

Experiências identitárias no cotidiano da cidadeHelio dos Santos Passos

RPPERede Política Pública de Educação

Capa - Políticas públicas de educação e as sensorialidades do lugar.pdf 1 5/16/2017 11:07:27 AM