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Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais: Um Modelo Computacional Baseado em Agentes

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Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais:

Um Modelo Computacional Baseado em Agentes

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Presidente da RepúblicaDilma Vana Rousseff

Ministro da EducaçãoAloizio Mercadante

Universidade Federal do Ceará – UFCReitorProf. Jesualdo Pereira Farias

Vice-ReitorProf. Henry de Holanda Campos

Editora UFCDiretor e EditorProf. Antônio Cláudio Lima GuimarãesConselho EditorialPresidenteProf. Antônio Cláudio Lima GuimarãesConselheirosProfa. Adelaide Maria Gonçalves PereiraProfa. Angela Maria R. Mota de GutiérrezProf. Gil de Aquino FariasProf. Italo GurgelProf. José Edmar da Silva Ribeiro

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Fortaleza2012

Jakson Alves de Aquino

Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais:

Um Modelo Computacional Baseado em Agentes

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Formação de Aliança e Cooperação entre Antropoides Virtuais: um Modelo Computacional Baseado em Agentes© 2012 Copyright by Jakson Alves de AquinoImpresso no Brasil / Printed In BrazilTodos os Direitos ReservadosEditora da Universidade Federal do Ceará – UFCAv. da Universidade, 2932 – Benfica – Fortaleza – CearáCEP: 60.020-181 – Tel./Fax: (85) 3366.7766 (Diretoria) 3366.7499 (Distribuição) 3366.7439 (Livraria)Internet: www.editora.ufc.br – E-mail: [email protected]

Coordenação EditorialMoacir Ribeiro da Silva

Revisão de TextoJoana D’Arc da SilvaCarmen Dolores Saraiva de SousaRogeria de Assis Batista Vasconcelos

Normalização BibliográficaPerpétua Socorro Tavares Guimarães

Programação Visual e DiagramaçãoThiago Nogueira de Freitas

CapaValdianio Araújo Macedo

Catalogação na FonteBibliotecária Perpétua Socorro T. Guimarães CRB 3 801–98

A657f Aquino, Jakson Alves deFormação de aliança e cooperação entre

antropoides virtuais: um modelo computacionalbaseado em agentes / Jakson Alves de Aquino. – Fortaleza: Edições UFC, 2012.304 p.

ISBN: 978-85-7282-552-8

1. Cooperação humana 2. Evolução humana 3. Evolução da cooperação I. Título

CDD: 341.1

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Agradecimentos

Várias pessoas e organizações contribuíram direta ou indiretamente para a produção deste livro. Expresso abaixo meu reconhecimento.

Bruno Reis teve a ousadia de assumir a orientação de uma tese heterodoxa e de deixar seu orientando seguir um rumo pouco convencional, porém, sempre advertindo dos riscos do empreendimento para garantir o bom andamento do traba-lho cujo resultado é apresentado neste livro. A maior parte da fundamentação metodológica foi formada durante as discipli-nas Teoria dos Jogos e Teoria da Escolha Racional ministradas pelo professor Bruno Reis. Algumas passagens são praticamente transcrições de frases por ele proferidas em sala de aula.

Mônica Mata Machado de Castro foi minha professora de Análise de Dados em 2002. Renan Springer de Freitas foi meu professor de História da Ciência durante o doutorado. Várias ideias do capítulo sobre metodologia foram amadurecidas nas discussões realizadas durante as disciplinas desses professores.

Francisco José Alves de Aquino e Joceny Pinheiro leram e comentaram uma versão preliminar do capítulo 5 e Luzinete Car-pin leu uma versão quase completa do texto e fez várias sugestões de correção linguística e de adequação às normas da ABNT.

Ricardo Machado Ruiz, Milton Corrêa Filho, Maria Emilia Yamamoto e Jorge Alexandre Neves fizeram valiosas sugestões de melhorias e correções, muitas das quais consegui incorporar ao texto final.

Luke Premo, John Pepper e Barbara Smuts gentilmente me enviaram por correio eletrônico o código fonte de mode-los por eles elaborados. Embora eu não tenha usado o código

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diretamente, algumas características do modelo que apresento foram baseadas nos trabalhos desses autores.

Sou grato a todas essas pessoas por sua contribuição para melhorar a qualidade do texto e sou especialmente grato à minha esposa, Joana D’Arc da Silva, que, além de me fazer companhia há vários anos, cuidadosamente leu e revisou a versão final do livro.

Sou também grato às revisoras da Imprensa Universitária da UFC Carmen Dolores Saraiva de Sousa e Rogeria de Assis Batista Vasconcelos, pela cuidadosa revisão adicional.

As correções não feitas e os problemas remanescentes ou acrescentados posteriormente são de minha inteira res-ponsabilidade.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) me concedeu uma bolsa de estudos durante três anos e a Universidade do Estado de Santa Catarina disponibilizou um laboratório de informática para a realização das simulações.

O trabalho aqui apresentado foi inteiramente produzi-do com o uso de software livre e também sou grato à legião de indivíduos e organizações que tem produzido e distribuído livremente ferramentas de trabalho de qualidade geralmente superior à dos produtos softwares proprietários.

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Lista de Tabelas

Tabela 1 – Características físicas de diferentes espécies de hominídeos ....................................................192

Tabela 2 – As 32 combinações de parâmetros ..............................254

Tabela 3 – Médias das características genéticas da primeira população ...................................................255

Tabela 4 – Resultado geral de todas as simulações .................258

Tabela 5 – Propensão genética média da última população para compartilhar comida ...........................................260

Tabela 6 – Propensão genética média da última população para se mover e migrar ..................................................261

Tabela 7 – Propensões genéticas médias das últimas populações relacionadas a conflito de território ......................................................................262

Tabela 8 – Propensões genéticas médias da última população relacionadas a memorização e lembrança .......................................................................263

Tabela 9 – Propensões genéticas médias da última população relacionadas a reprodução ..........................................264

Tabela 10 – Sumário de regressão para fVida como variável dependente ..........................................265

Tabela 11 – Sumários de regressões para Número decaçadores e Compartilhamento de comidacomo variáveis dependentes .......................................266

Tabela 12 – Proporções mínima, média e máxima de lembranças representando diferentes tipos de relação ..............................................................................267

Tabela 13 – Valor médio de algumas variáveis usadaspara avaliar células ....................................................268

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Lista de Figuras

Figura 1 – Dilema do Prisioneiro .......................................................45

Figura 2 – Jogo da Caça ao Cervídeo ...............................................93

Figura 3 – Colapso da cooperação na ausênciade metanormas .....................................................................99

Figura 4 – Colapso da cooperação no jogo do Dilema do Prisioneiro ..............................................101

Figura 5 – Evolução da cooperação no jogo do Dilema do Prisioneiro ..............................................103

Figura 6 – Árvore evolucionista dos antropoides ....................122

Figura 7 – Crescimento de uma planta rasteira ........................230

Figura 8 – Algoritmo básico do modelo proposto ....................238

Figura 9 – Algoritmo do patrulhamento de território ..........246

Figura 10 – Expectativa de carne a ser obtida ............................251

Figura 11 – Sociogramas das relações entre amigos no final de simulações selecionadas ........................................267

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Sumário

Prefácio ......................................................................................................15

Introdução ................................................................................................23

1 Discussão Metodológica ..................................................................291.1 Ciências Sociais ...................................................................................291.1.1 Conceitos claros e distintos............................................................311.1.2 Ambiguidade da linguagem ...........................................................321.1.3 Leis sociais ........................................................................................331.1.4 Experimentos cruciais ....................................................................371.2 Formalização de Teorias .....................................................................411.3 Teoria dos Jogos ...................................................................................441.3.1 Dilema do prisioneiro .....................................................................441.3.2 Teorias da escolha racional como teorias gerais .........................471.3.3 Pressupostos das teorias da escolha racional ...............................481.3.3.1 Pressuposto da racionalidade ......................................................491.3.3.2 Pressuposto do egoísmo ...............................................................501.3.3.3 Pressuposto do conhecimento completo .....................................521.3.3.4 Pressupostos e tratabilidade matemática ...................................521.3.4 Vigor metodológico do pressuposto da racionalidade ...............551.3.5 Limitações da teoria dos jogos ......................................................591.4 Modelos Baseados em Agentes ..........................................................61

2 Modelos de Evolução da Cooperação ..........................................752.1 Seleção de Parentesco .........................................................................752.2 Altruísmo Recíproco...........................................................................772.3 Seleção de Grupo .................................................................................812.4 Reciprocidade Forte ............................................................................822.4.1 Evidências empíricas ......................................................................832.4.2 Obstáculos à evolução da reciprocidade forte .............................842.4.3 Transmissão cultural .......................................................................852.5 Torneios de Dilema do Prisioneiro ...................................................902.6 Caça ao Cervídeo ................................................................................922.7 Normas e Metanormas .......................................................................952.8 Dois Modelos Evolucionistas .............................................................972.8.1 Ação coletiva ....................................................................................98

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2.8.2 Dilema do prisioneiro ...................................................................1002.8.3 Críticas aos dois jogos ..................................................................1032.9 Reciprocidade Indireta .....................................................................1042.10 Modelo de Compartilhamento de Comida ................................1082.11 Desafios ...........................................................................................111

3 Antropoides .........................................................................................1193.1 Semelhança Física com Humanos ...................................................1213.2 Hábitat ................................................................................................1233.3 Sociedades de Fissão e Fusão ...........................................................1273.3.1 Tamanho das comunidades e seus grupos .................................1283.3.2 Padrão de deslocamento ..............................................................1303.3.3 Caça .................................................................................................1313.4 Sexualidade ........................................................................................1323.5 Inteligência Social e Empatia ...........................................................1353.5.1 Capacidade de planejar ................................................................1353.5.2 Inteligência inconsciente não simbólica ....................................1353.5.3 Capacidade de enganar.................................................................1373.5.4 Empatia ...........................................................................................1403.5.5 Capacidade de pensamento abstrato ..........................................1443.5.6 Memorização de favores e senso de justiça ................................1473.6 Hierarquia e Disputa de Poder ........................................................1483.6.1 Conflitos entre comunidades .......................................................1483.6.2 Conflitos intracomunidade ..........................................................1533.6.3 Existência de hierarquia e deferência .........................................1553.6.4 Conflitos entre bonobos ...............................................................1563.6.5 Formação de alianças ....................................................................1573.7 Tolerância e Conciliação ..................................................................1623.8 Uso de Ferramentas ..........................................................................1633.9 Reciprocidade e Cooperação ...........................................................1673.9.1 Reciprocidade em sociedades humanas .....................................1673.9.2 Habilidades cognitivas e tipos de reciprocidade .......................1703.9.3 Compartilhamento de comida entre chimpanzés.....................173

4 Origem e Evolução do Homem .......................................................1754.1 Geologia, Clima e Paleoantropologia .............................................1754.2 Antes dos Australopitecos ................................................................1784.2.1 Origem do bipedalismo .................................................................1784.2.2 Sahelanthropus ................................................................................1814.2.3 Orrorin .............................................................................................1834.2.4 Ardipithecus .....................................................................................184

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4.3 Australopitecos e Outros Hominídeos Semelhantes ....................1854.3.1 Kenyanthropus ...............................................................................1864.3.2 Australopithecus .............................................................................1874.4 O Gênero Homo ................................................................................1954.4.1 O cérebro grande ...........................................................................1954.4.2 Homo ergaster ................................................................................1974.4.3 Homo erectus ..................................................................................1994.4.4 Neandertalenses ............................................................................2064.4.5 Homens modernos .......................................................................2094.5 Origem da Linguagem ......................................................................2134.5.1 Teoria da linguagem de sinais .....................................................2134.5.2 Teoria da protolíngua ...................................................................2154.5.3 Teoria da empatia ..........................................................................2164.5.4 Antropoides humanizados ...........................................................222

5 Um Modelo Baseado em Agentes de Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais ...............................2275.1 Introdução .........................................................................................2275.2 Descrição do Modelo Proposto ......................................................2285.2.1 As presas .........................................................................................2295.2.2 Vegetação........................................................................................2295.2.3 Os antropoides ...............................................................................2325.2.4 Memória e lembranças .................................................................2345.2.5 Ações básicas dos agentes ............................................................2385.2.6 Compartilhamento de alimentos ................................................2405.2.7 Migração .........................................................................................2425.2.8 Territorialismo ...............................................................................2455.2.9 Caça .................................................................................................2495.2.10 Reprodução ....................................................................................2515.3 Parâmetros Utilizados nas Simulações ..........................................2535.4 Resultados .........................................................................................257

6 Interrupção ..........................................................................................269

Referências Bibliográficas ...............................................................275

Apêndices ..................................................................................................295Apêndice A – Parâmetros fixos por toda a simulação .......................295Apêndice B – Variáveis sujeitas a evolução por seleção natural .......298

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Prefácio

“Imagine o quanto a Física seria difícil se as partículas pudessem pensar.”

Essa tirada provocativa costuma ser atribuída a Murray Gell-Mann, Nobel de Física em 1969. De minha parte, enten-do que essa “física difícil” existe, e atende pelo nome genérico de ciências sociais. Pois nas disciplinas nomotéticas dedicadas a humanidades, como a economia, a sociologia, a ciência política, não fazemos outra coisa senão tentar estabelecer proposições de natureza nomológica sobre um objeto cujas “partículas” pen-sam: todos nós.

Esse não é um atributo trivial de nossas disciplinas. Ao contrário, porque as pessoas pensam, elas continuamente adaptam seu comportamento com vistas a produzir o efeito que desejam. Assim, mesmo que se buscasse reproduzir exa-tamente as condições que acreditamos terem levado a deter-minado efeito em dada circunstância, na nova oportunidade a mera informação sobre a situação anterior poderia bastar para modificar o seu desfecho. Seja com o propósito de evitar ou de reeditar o efeito antecipado, as pessoas agora se com-portariam à luz de um conjunto de informações — e, logo, valores — que é necessariamente distinto do anterior. Donde se segue a possibilidade de profecias que se autocumprem ou se autonegam, expectativas mútuas que convergirão ou não rumo a antecipações preditíveis etc. O certo é que, à medida que o tempo passa, esse efeito de retroalimentação endógena do sistema social faz com que os pressupostos sobre as re-presentações cognitivas ou simbólicas que terão orientado os

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atores sociais mesmo no mais escrupuloso estudo sociológico num determinado caso tendam a deixar de ser válidos para o próximo caso.

Essa espécie de perplexidade alimentou inúmeras que re las teórico-metodológicas entre nós: deterministas e indeterminis-tas, universalistas e paroquialistas, considera ções infindáveis so-bre agência e estrutura, individualismos e holismos, nomo logias e idiografias, quantitativistas e qualitativistas, generalistas e espe-cialistas de todo tipo engalfinharam-se infindavelmente sobre a “melhor” maneira de se lidar sistematicamente com peculiarida-des da análise sociológica que quase sempre poderiam ter suas pegadas rastreadas até esse problema de retroali mentação aqui esboçado, decorrente desta premissa incontornável: as pessoas pensam. As unidades de análise que tipicamente representam nossa “partícula” fundamental, os indivíduos, adaptam constan-temente suas crenças, objetivos e comportamentos a circunstân-cias em perpétua mutação, retroalimentando permanentemente o sistema de interações sociais — e modificando seu compor-tamento.

Em termos técnicos, a consideração desse tipo de retroali-mentação interna induzida por comportamento adaptativo pro-duz, na sociologia como em qualquer outro campo, um sistema que os matemáticos descreverão como não linear. Sistemas não lineares exibem características dinâmicas que não são descrití-veis em equações simples, de primeiro ou segundo grau, em que as relações entre as incógnitas (variáveis) serão rapidamente in-teligíveis para o leitor, e representáveis numa curva “simples”, ou — idealmente — numa reta. Cientistas tipicamente evitam não linearidades distinguindo rigidamente variáveis (endógenas) de parâmetros (exógenos) em cada estudo, fixando previamente os valores destes últimos para que — “tudo mais mantido cons-

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tante” — se possam examinar exclusivamente os efeitos mútuos observáveis entre as variáveis.

Na ciência social, porém, esse enquadramento cobra do analista um esforço particularmente heroico no plano concei-tual, que frequentemente se apressa a desqualificar a legitimida-de metodológica de enquadramentos que exprimem perguntas autênticas, ocasionalmente derivadas de inquietações sociais correntes. Isso se dá, por exemplo, na clássica disputa entre, de um lado, uma sociologia macro-histórica que interpela temas de largo alcance por aproximações abstratas pouco propensas a apropriação empírica sistemática e, do outro, os estudos empíri-cos de médio alcance, que por definição “parametrizam” vastos conjuntos de variáveis, arriscando-se a esterilizar a fecundidade do estudo para contextos distintos daquele específico onde tiver sido feita a pesquisa.

Ou então esse esforço de linearização insulta intuições básicas, perfeitamente sensatas, que todos nós — profissionais ou não — cultivamos cotidianamente em nossa percepção da natureza humana. A amostra mais nítida desse mal-estar se pode observar na interminável disputa em torno da escolha racional, em que o esforço de abstração conceitual em busca de manipulação dedutiva de nossas proposições foi mais lon-ge, dispondo-se para tanto a pagar um alto preço no que toca ao realismo de suas premissas. Não obstante a real fecundida-de analítica de muitos de seus modelos, choca seus críticos o fato óbvio de que ninguém se comporta daquele jeito: aquela abstração calculadora, maximizadora do valor de uma fun-ção-utilidade que representaria as preferências (dadas) das pessoas, claramente não descreve de modo acurado nosso comportamento cotidiano, sempre às voltas com nossas per-manentes e torturantes ambiguidades, inconsistências, hesi-

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tações, vícios, enganos e promessas não cumpridas — feitas a nós mesmos.

Todas essas agudas dificuldades acarretadas pela im-portância de efeitos de retroalimentação na geração de não linearidades no comportamento de nossas variáveis deveriam nos tornar particularmente receptivos ao advento de técnicas destinadas à apropriação analítica do comportamento de sis-temas não lineares.

Bem, elas existem. Um comportamento adaptativo, ou simplesmente imitativo, talvez seja complexo demais para exprimir-se numa equação matemática operacionalmente praticável, mas pode ser facilmente expresso num algoritmo computacional. Assim, simulações por computadores têm--se constituído no procedimento-padrão para a captura analítica das propriedades dinâmicas de sistemas não lineares. Uma vasta literatura já começa a estabelecer-se, apoiada na técnica da simulação computacional de sistemas adaptativos complexos por modelos baseados em agentes cujo comportamento, descrito por algoritmos simples, pode dar lugar a padrões complexos relativamente impreditíveis quando agregados em grandes sistemas de interação e adaptação mútua. Sob a liderança do Santa Fe Institute (SFI), situado no Novo México, Estados Unidos, uma vasta agenda tem- -se desenvolvido nas últimas décadas, abrangendo temas que vão das crises financeiras à difusão de opinião, da dinâmica de redes à segregação urbana, da difusão de epidemias à emergência de conflitos, da dinâmica das coalizões partidárias à evolução da cooperação. Parte relevante dessa produção é livremente acessível não apenas no site do SFI (http://www.santafe.edu/research/working-papers/), mas também num periódico como o Journal of Artificial Societies and Social

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Simulation (JASSS), que já há quase quinze anos mantém suas publicações gratuitamente acessíveis na internet (http://jasss.soc.surrey.ac.uk/JASSS.html). Pacotes de software dedicados às simulações encontram-se disponíveis na web, incluindo alguns de uso bastante simples, como o NetLogo (http://ccl.northwestern.edu/netlogo/), desenvolvido na Northwestern University.

Infelizmente, a ciência social acadêmica praticada em nossos departamentos tem sido lenta na assimilação desse aporte — que, no entanto, terá de vir, cedo ou tarde. Por todas as razões apontadas acima, a modelagem computacional de sistemas adaptativos não é apenas mais uma “moda” acadêmica, destinada a desaparecer na próxima esquina, como tantas outras. Tende, antes, a tornar-se uma ferramenta corriqueira, talvez um dia a principal ferramenta, para efetuar a árdua tarefa de integrar teorização e experimentação em ciências sociais. Os físicos, bem treinados em teorização formal e pouco ciosos quanto à demarcação de fronteiras disciplinares, já falam com desenvoltura de uma “sociofísica”, enquanto nós, cientistas sociais, ainda nos deixamos absorver por controvérsias intermináveis entre “quali” e “quanti”. De resto, hoje quase todo estudante tem acesso regular a algum tipo de computador, com o qual desde cedo se habitua a lidar cotidianamente. Se insistirmos numa formação que se apoia apenas em pilhas de livros, reservando ao computador o papel exclusivo de processador de dados empíricos, negligenciaremos não apenas uma perspectiva importante de desenvolvimento de nossas disciplinas, mas até mesmo a formação mais plena de nossos alunos — que tenderão a nos abandonar.

Em vez de cortejarmos o risco de nos ver reduzidos a uma escolástica esotérica, de interesse apenas para os inicia-

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dos, enquanto os físicos se apropriam distraidamente de nosso objeto, melhor faríamos se cuidássemos de integrar as duas tradições de pesquisa, alargando nossos horizontes analíticos ao mesmo tempo que evitamos que nossos novos colegas fi-quem reinventando a roda ao se apropriar ingenuamente de questões que nos ocupam há décadas.

Jakson Alves de Aquino tratou de fazer justamente isso, ao apropriar-se de questão central tanto à tradição socioló-gica clássica quanto ao aporte recente da “escolha racional”: a evolução da cooperação. Mais especificamente, ele buscou identificar as condições da emergência da cooperação num contexto “pré-social” composto de agentes adaptativos que se entrechocam em sua busca da sobrevivência cotidiana. De maneira tão caracteristicamente “jaksoniana”, ele jamais se resignou em trilhar o caminho mais fácil: dispensou as pla-taformas preexistentes de programas de simulação teórica (como o NetLogo, já referido) e programou pessoalmente seu modelo, from scratch; ciente de que operava num am-biente teórico que não supunha a preexistência de institui-ções sociais (já que pretendia antes fazê-las “emergir” em seu modelo a partir da interação dos agentes), não se intimidou em excursionar na psicologia evolutiva, em estudos sobre o comportamento de primatas de outras espécies que não a nossa, alargando os horizontes de avaliação empírica de seu modelo. E todo esse arrojo foi mostrado durante a penosa (e arriscada) empreitada da elaboração de sua tese de dou-torado. Que, ao final, foi calorosamente aprovada em uma banca composta por seu orientador cientista político (que escreve estas linhas), e mais um sociólogo, um economista, um cientista da computação e uma psicóloga. Não poderia ser de outra forma.

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Claro. Como acontece com todo bom cientista, nem tudo o que Jakson esperava observou-se na operação de seu modelo. Mais especificamente, a cooperação que ele buscava teimou em não “emergir”, para frustração não pequena do autor. Em lugar dela, porém, tendeu a disseminar-se uma forte propensão à não agressão — que em si mesma constitui um resultado teórico interessante, e ainda pode ser um subs-tituto funcional razoável da cooperação, já que reduz a im-portância da manutenção estável de redes de amizade para a sobrevivência individual. Como o próprio autor afirma, ain-da há muito a se explorar no modelo, mas ali já se encontra material muito mais que suficiente para submeter o trabalho ao público amplo que ele sem dúvida merece.

Tem sido sempre um privilégio poder colaborar com Jakson Aquino e acompanhar sua trajetória profissional. Agora, com a publicação de sua tese, essa satisfação se es-tende a um público muito maior, ampliando as perspectivas de disseminação e maturação coletiva de sua contribuição. É bom ver a caravana andar.

Bruno P. W. Reis UFMG, Departamento de Ciência Política

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23Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Introdução

Pouco dotado de instintos que, sozinhos, levem a um com-portamento adaptativo, desprovido de garras, de presas e portador de um enorme e exigente cérebro que precisa de muita água e ener-gia para continuar funcionando, um ser humano isolado de seus semelhantes dificilmente pode ser considerado um animal bem preparado para sobreviver num ambiente natural. Pode-se afirmar que os seres humanos há milhares de anos têm não apenas sobre-vivido mas se tornado uma espécie bem-sucedida, difundindo-se por praticamente todos os hábitats do planeta, porque vivem em sociedade e cooperam na produção de bens coletivos. Entretanto, em muitas circunstâncias, a atitude que deixaria um indivíduo em melhor situação material seria usufruir bens coletivos já produzi-dos sem contribuir para sua produção. Assim, uma questão que acompanha a ciência política há muito tempo tem sido: por que os homens cooperam para a produção de bens públicos?

Muitas das explicações fornecidas incluem a existência de emoções pró-sociais nos humanos, entre elas, a tendência para se sentir grato por um favor recebido e desejar retribuí-lo quan-do tiver oportunidade, a disposição para punir alguém que não tem cooperado para a produção de um bem público — mes-mo que isso implique um custo para si próprio —, a vergonha por ter feito algo errado etc. Essas soluções, entretanto, apenas empurram a resposta para um período mais distante, criando novas perguntas: como evoluíram essas emoções pró-sociais? Como se deu a evolução da cooperação?

Vários autores têm tentado responder a estas últimas questões, mas é impossível dizer com exatidão como evoluiu a cooperação na espécie humana. Mesmo reunindo todas as

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24 Jakson Alves de Aquino

evidências empíricas disponíveis, seria sempre possível cons-truir mais de uma versão plausível do processo de evolução da cooperação. Por serem questões evolucionistas, as respostas não podem ser buscadas fazendo uso apenas dos métodos de investigação tradicionalmente empregados pelas ciências so-ciais. É preciso o apoio de teorias e métodos evolucionistas. O uso de argumentos evolucionistas em geral e da biologia em particular não é algo comum em pesquisas sociológicas, mas, a meu ver, as ciências sociais somente têm a ganhar com uma mudança de atitude dos cientistas sociais.

Compartilho com Sperber (1996, p. 4) e com Runciman (1998, p. 164) o pressuposto de que a realidade é uma só e que, portanto, em princípio, é possível haver uma integração entre ciências sociais e ciências naturais. As naturais apresentam um nível de integração indiscutivelmente superior ao encontrado nas sociais. Em muitas áreas da física, da química e da biologia, por exemplo, há um grande consenso sobre como explicar os fenômenos e sobre a terminologia a ser utilizada. Além disso, embora seja geralmente desnecessário se utilizar das teorias de uma ciência para explicar os fenômenos que ocorrem no cam-po de conhecimento da outra, isso não é algo impossível. Ou seja, há integração entre as ciências naturais e não apenas in-ternamente a cada disciplina, sendo fácil pensar em exemplos de transição da química para a física e da química para a biolo-gia: não é necessário discutir as propriedades químicas de uma substância para explicar as propriedades de uma alavanca, mas a química permite explicar por que uma determinada alavanca possui capacidade para suportar determinado peso. O DNA é composto por uma combinação de substâncias cujas fórmulas e propriedades químicas são conhecidas e é possível explicar o funcionamento do DNA tendo por base essas propriedades.

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Não obstante haver diferentes níveis de complexidade, em princípio, não há um fosso intransponível entre realidade natural e realidade humana. Entretanto, as ciências sociais não se encon-tram integradas nem mesmo internamente. Não conseguimos, com a mesma facilidade apresentada no parágrafo anterior, ima-ginar transições relativamente fáceis de uma disciplina para outra (por exemplo, da sociologia para a economia, da antropologia para a ciência política etc.). E, o pior, cada disciplina se apresenta em várias versões. A sociologia, por exemplo, pode ser vista sob o prisma da teoria da escolha racional, teoria dos sistemas, teoria da ação comunicativa, interacionismo simbólico etc.

Talvez, essa diversidade de abordagens se deva ao fato das diversas sociologias partirem de diferentes pressupostos, nenhum deles empiricamente testado. Acredito que, por trás de cada abordagem, podem ser encontradas diferentes con-cepções de como está estruturada a realidade e de qual é a na-tureza humana. Essas diferentes concepções levam tanto a uma não integração das ciências sociais entre si como a uma falta de integração entre ciências sociais e ciências naturais. Não há dúvidas de que a realidade social é complexa o suficiente para que possamos considerar ingênua qualquer esperança de ter sobre ela o mesmo grau de domínio que temos sobre a natu-reza. Ou seja, não conseguiremos reduzir as ciências sociais às ciências naturais, mas nem por isso deixa de ser importante conhecer os fundamentos naturais da realidade social.

Estudos evolucionistas do comportamento humano con-tribuem para reduzir o isolamento entre ciências sociais e ciên-cias naturais. Certamente a passagem de fenômenos do nível biológico para o nível psicológico e deste para o sociológico envolve o aparecimento de todo um conjunto de fenômenos novos, mais convenientemente explicados por teorias que se

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atêm a um dos níveis, mas isso não é suficiente para justificar a distância atual entre ciências naturais e sociais. Algumas lacu-nas podem ser preenchidas. Como argumentam Lenski (1988, p. 163, rodapé) e Cosmides, Tooby e Barkow (1992, p. 12), as ciências naturais são integradas, mas não de um modo reducio-nista, e a integração entre ciências naturais e sociais é possível.

A descoberta do DNA, nos anos cinquenta do século XX, permitiu uma melhor compreensão de como se dá a se-leção natural das espécies e, nos últimos anos, os avanços da medicina têm permitido uma melhor compreensão do fun-cionamento do cérebro humano. Tendo por base esses dois avanços, a psicologia cognitiva tem feito progressos conside-ráveis e o corolário de todos esses acontecimentos tem sido o gradual preenchimento das lacunas que separam as ciências sociais das ciências naturais. Já se pode pensar numa retomada de algumas antigas discussões filosóficas, agora com embasa-mento científico. As teorias evolucionistas prometem fornecer o material necessário para a construção de uma ponte entre ciências sociais e ciências naturais.

O fato de não haver uma teoria sociológica suficiente-mente unificada dispersa os esforços empreendidos pelos so-ciólogos. Cada corrente teórica na sociologia tem de recriar os fundamentos de uma teoria sociológica geral. A situação é semelhante ao que ocorria com a física antes de Newton (KUHN, 1970, p. 13).

A sociologia como disciplina científica surgiu para es-tudar os fenômenos típicos das sociedades industrializadas e complexas e, tipicamente, pesquisas empíricas em sociologia são desenvolvidas tendo por objeto algum aspecto da socie-dade moderna. A pesquisa aqui proposta é diferente. Ela não é empírica e o modelo não aborda aspectos contemporâneos

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das sociedades humanas. Não existem modelos baseados em agentes abordando a cooperação em sociedades tão complexas quanto as contemporâneas que possam servir de ponto de par-tida para um modelo com o nível de detalhamento que almejo. Por isso, o ponto de partida para o modelo aqui desenvolvido são sociedades mais simples, de antropoides.

O meu objetivo com este trabalho é contribuir para o desenvolvimento de técnicas que auxiliem no preenchi mento das lacunas apresentadas. Mais especificamente, o objetivo é construir um modelo computacional baseado em agentes e testá-lo por meio de simulação em computador. A estratégia seguida consistiu, basicamente, em construir um modelo cujos agentes possuem características comportamentais interpretá-veis como equivalentes às de antropoides atualmente existen-tes e, possivelmente, às do nosso último ancestral comum com esses antropoides. Por um lado, o modelo resultante é mais realista e traz para um ambiente complexo muitos elementos dos modelos de evolução da cooperação encontrados na lite-ratura. Por outro lado, não é possível considerar que o modelo apresentado aqui represente sociedades humanas modernas, pois várias habilidades cognitivas sofisticadas não foram mo-deladas, como a comunicação com linguagem simbólica, por exemplo. Um objetivo secundário é avaliar o potencial das téc-nicas de modelagem baseadas em agentes para o desenvolvi-mento de modelos de fenômenos sociais.

No próximo capítulo, desenvolvo uma linha de argumen tação favorável a uma maior formalização das teorias nas ciências sociais e ao emprego de modelos baseados em agentes como um método complementar de investigação teó-rica nas ciências sociais. No capítulo seguinte, apresento uma revisão da literatura sobre evolução da cooperação e procuro

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identificar deficiências nos modelos existentes. Para superar as deficiências, proponho um melhor conhecimento dos da-dos empíricos relevantes para a formulação de uma teoria da evolução da cooperação. Concretamente, nos capítulos 3 e 4 sintetizo informações sobre nossos parentes vivos mais próxi-mos, os antropoides, e sobre nossos mais recentes ancestrais extintos. No capítulo 5, apresento um modelo de evolução da cooperação mais complexo e realista do que os revisados no capítulo 2. Finalmente, na conclusão apresento uma avaliação dos resultados obtidos e da metodologia empregada.

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1Discussão Metodológica

1.1 Ciências Sociais

Na física, as regularidades resultantes do que se consi-dera serem processos causais são expressas em fórmulas ma-temáticas. As fórmulas não correspondem exatamente ao que ocorre no mundo real, mas ao que ocorreria se o mundo fosse tão simples quanto o modelo teórico que serve de contexto para a fórmula. As teorias sociais, ao contrário, não costumam ser expressas em linguagem matemática tal como ocorre com a maioria das ciências naturais. Quando se faz uma análise de dados sociais, pode-se, por exemplo, a partir de uma análise de regressão, expressar regularidades do mundo social numa fór-mula matemática — o modelo de regressão. Ao contrário do que ocorre na física, geralmente não é possível generalizar os resultados na forma de leis sociais, ou seja, raramente conse-guimos garantir que um determinado fenômeno sempre será suficiente para causar um fenômeno social específico.

Se fizéssemos uma análise de regressão de um fenômeno físico como a queda de um corpo, por exemplo, sendo o tempo da queda a variável dependente, suponho que seria suficiente uti-lizar como variáveis explicativas a massa dos corpos envolvidos, a resistência do ar ao movimento dos corpos e a direção do vento para conseguir explicar mais de 99,9% do tempo que um corpo leva para cair. Todas as outras variáveis exerceriam um efeito tão pequeno sobre a variável dependente que a variação de seus va-lores em outros contextos seria, para todos os termos práticos,

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absolutamente irrelevante. Por exemplo, o impacto dos fótons da luz solar sobre os corpos também pode ajudar a empurrar o cor-po, mas seu efeito é tão desprezível que, independentemente da nossa observação ser diurna ou noturna, a precisão dos nossos cálculos não será acrescida em nada se incluirmos essa variável na análise.

No estudo da sociedade a situação é bem diferente. Os fenômenos sociais são determinados — ou melhor, condicio-nados — por uma multidão de variáveis que não conseguimos detectar em nossas pesquisas, mas que não permanecem cons-tantes ao se passar de uma sociedade para outra. São, por isso, poucas as generalizações que podem ser estendidas a todas as sociedades humanas de todos os tempos. Cada fenômeno so-cial é causado por uma multidão de fatores que se influenciam mutuamente, muitas vezes atuando em direções opostas, o que torna sua ocorrência um evento sempre incerto.

Dadas as incertezas que envolvem a realidade social, é de se esperar várias consequências para as ciências sociais. Não é estra-nho, por exemplo, que a natureza seja mais surpreendente do que a sociedade. Ou seja, é mais provável que se descubra um fenômeno natural que contrarie os conhecimentos científicos existentes do que um fenômeno social que faça o mesmo. Mas esse fato não se deve às ciências sociais acertarem mais em suas previsões do que as ciências naturais, e sim às ciências naturais proibirem com maior clareza o que não pode ocorrer para que as suas teorias continuem a ser corroboradas pelos fatos. A incerteza quanto à ocorrência dos fenômenos sociais possibilita que quase qualquer fenômeno novo seja interpretado como muito provável de ocorrer ou como pouco provável. Assim, a ocorrência de um fenômeno pouco provável não torna necessário reformular a teoria. A teoria já previa sua ocorrên-cia e, por isso, os cientistas não são surpreendidos.

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1.1.1 Conceitos claros e distintos

Durkheim (1999, p. XVIII), seguindo o ideal cartesiano, afirmava que as teorias nas ciências sociais deveriam se utilizar de conceitos “claros e distintos”. Ao se fazer a comparação en-tre as características de um objeto real e um conceito, deveria ser possível ter clareza se o objeto é ou não um dos objetos representados pelo conceito. Um conceito bem construído si-multaneamente englobaria todos os objetos que se pretende que ele represente e excluiria todos aqueles que ele não deveria representar, não deixando margens para interpretações am-bíguas. A definição de fato social apresentada por Durkheim (1999, p. 13) deveria ser um exemplo de conceito com essas características.

Entretanto, ao contrário do desejado por Durkheim, os conceitos nas ciências sociais costumam carregar uma boa dose de ambiguidade: as hipóteses podem ser corroboradas por uma ampla gama de fatos empíricos e, por conseguinte, teorias con-correntes frequentemente preveem os mesmos resultados empí-ricos, sendo difícil encontrar fatos que permitam falsear uma das teorias. Para que uma teoria seja falseável, e portanto científica, é preciso que suas afirmações sejam precisas, mas muitos concei-tos úteis em ciências sociais não podem ser definidos de modo perfei tamente claro e distinto. As coisas são interpretadas como sendo representadas por um mesmo conceito por possuírem se-melhanças de família. Diferentes coisas poderiam ser agrupadas sob um mesmo conceito, mesmo possuindo características dife-rentes, porque um mesmo fenômeno pode ter causas diversas e uma mesma causa pode nem sempre resultar num mesmo efeito. Neste caso, as coisas são agrupadas sob um conceito por compar-tilharem muitas de um conjunto de características e não por com-

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partilharem todas um mesmo conjunto de características. Assim, de acordo com Sperber, por exemplo, todas as sociedades huma-nas possuem alguma instituição que conseguimos reco nhecer como casamento. Mas não há nenhuma característica comum a todos os tipos de casamento de todas as sociedades que não ocor-ra em nenhuma outra instituição e que, portanto, possa ser usa-da para definir de forma clara e distinta o casamento (SPERBER, 1996, p. 17). Ou seja, a instituição casamento existiria em todas as sociedades, mas nem sempre devido ao mesmo conjunto de causas ou com o mesmo conjunto de consequências. O caráter altamente incerto e multicausal dos fenômenos sociais parece também ser uma justificativa para o uso, pelas ciências sociais, de conceitos por semelhança de família.

1.1.2 Ambiguidade da linguagem

Como se não bastasse a complexidade do objeto de es-tudo dos cientistas sociais, a principal ferramenta que utiliza-mos para construir nossas teorias — a linguagem humana — é naturalmente ambígua. As palavras carregam as mais variadas conotações, umas positivas, outras negativas, e a interpretação do significado de uma expressão ou sentença é muito depen-dente do contexto em que é proferida ou escrita.

Em parte, a ambiguidade conceitual predominante nas ciências sociais decorre da complexidade do objeto de pesqui-sa e de características próprias da linguagem natural, mas isso não é tudo. Diante da dificuldade de se construir teorias fal-seáveis, alguns chegam a considerar que o objeto de estudo das ciências sociais é essencialmente diferente do objeto das ciências naturais e que, portanto, as ciências sociais não preci-sam ter como objetivo ser metodologicamente parecidas com

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as ciências naturais e outros critérios devem ser utilizados para avaliar a qualidade das suas teorias.

Podemos perceber um maior rigor e clareza do pensa-mento quando se passa da linguagem oral para a linguagem escrita. A linguagem escrita permite ao autor revisar ideias, re-ordenar argumentos e reescrever sentenças, e todas essas ações ajudam o escritor a perceber e eliminar algumas incoerências e ambiguidades presentes na primeira versão do texto. Expressar as ideias por escrito ameniza, mas não resolve o problema.

Segundo Bendix (1970, p.  180), substituir as expressões da linguagem comum por termos técnicos inventados também não produz resultados satisfatórios. Os novos conceitos, logo que começam a ser usados, não estão carregados de conotações di-versas, mas, se a teoria em que eles aparecem fizer sucesso, em breve estarão. Além disso, mesmo um conceito recém-inventado precisará de um contexto para ser compreendido.

1.1.3 Leis sociais

Dada a complexidade dos fenômenos sociais, tem sido questionada na sociologia a possibilidade de teorias gerais da sociedade. A ação do indivíduo depende da interação de tan-tos fatores que nunca pode ser considerada completamente previsível. E a previsibilidade diminui ainda mais porque os indivíduos aprendem com a história e possuem comporta-mento estratégico. Os seres humanos são dotados de razão, da capacidade de raciocinar e decidir. O conhecimento possuído pelos indivíduos está constantemente se modificando. O que num certo momento foram condições não reconhecidas para a ação e consequências não intencionais das ações podem, num momento seguinte, já ser de conhecimento dos agentes,

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que levarão as novas informações em consideração ao agir. Ou seja, os indivíduos podem não mais considerar benéfica a ação praticada e, nesse caso, já não seria mais válida uma lei (social) que antes corretamente enunciava que em tais circunstâncias os indivíduos agem de tal forma. Um ser humano é inteligen-te o suficiente para evitar alguns erros que soube terem sido cometidos por outros ou que ele próprio cometeu no passado. Além disso, para atingir seus objetivos, levará em considera-ção as prováveis ações dos outros indivíduos. Assim, as teorias sobre a realidade social são historicamente situadas — válidas apenas para um determinado período — porque o conheci-mento dos indivíduos e as práticas cristalizadas nas institui-ções estão sempre se modificando. A versatilidade humana garante a não repetição da história.

O ser humano possui algumas propensões à ação biologi-camente condicionada, mas mesmo essas propensões depen-dem não apenas do meio ambiente imediato, mas também dos valores que o indivíduo foi culturalmente levado a construir. Por exemplo, qualquer indivíduo que sinta ter sido tratado de modo injusto tenderá a achar a situação desagradável, mas a noção de justiça desse indivíduo será em boa medida construí-da a partir das noções de certo e de errado prevalecentes em seu meio cultural.1 A reação do indivíduo dependerá de mui-tos fatores: seu poder em comparação com quem lhe foi injus-to, seu temperamento pessoal, seu estado de humor no dia, e outros mais. Em princípio seria possível pensar em algumas leis psicológicas gerais acerca do comportamento hu mano, mas são leis que preveem apenas tendências, não sendo de-

1 Até mesmo macacos capuchinhos ficam irritados quando recebem tratamento injusto. Suponho que uma característica semelhante tenha sempre estado pre-sente na natureza biológica de nossos ancestrais.

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terministas. Na prática, a proliferação de teorias mutua mente inconsistentes na psicologia parece ser tão grande quanto nas ciências sociais, não sendo muito promissor o que poderia vir a ser o fundamento de uma teoria da ação social.

Mas, se tentar prever o comportamento de indivíduos já é tarefa difícil, mais desafiador ainda é tentar derivar leis sociais gerais a partir de leis psicológicas mutuamente inconsistentes. Consequentemente, as generalizações que os cientistas sociais conseguem fazer não costumam ser válidas para todas as sociedades de todos os tempos. Elas estão historicamente situadas e o mais prudente é não chamá-las de leis (BENDIX, 1970, p. 184; DIMAGGIO; POWELL, 1991, p. 10; ROTHSTEIN, 1996, p. 154; GIDDENS, 1984, p. 346).

Todas essas dificuldades tornam o método comparativo valioso no processo de construção teórica nas ciências sociais. Os estudos comparativos de diferentes sociedades ou mesmo de diferentes grupos dentro de uma mesma sociedade contribuem para descobrir o que é válido para vários grupos e várias socie-dades e o que é válido apenas para uma sociedade específica. Ou seja, os estudos comparativos permitem definir o grau de genera-lidade de conceitos utilizados nas explicações de fenômenos so-ciais (THELEN; STEINMO, 1992, p. 14; BENDIX, 1970, p. 176). É preciso não esquecer, entretanto, a advertência de Eisenstadt para que se tome cuidado ao comparar sociedades muito dissimi-lares, pois há o risco de se fazer generalizações empíricas a partir de realidades que podem ter uma aparência semelhante mas ser resultado de processos históricos completamente diferentes (EI-SENSTADT, 1968, p. 425). As experiências históricas são limita-das — é sempre possível imaginar sequências de eventos que po-deriam ter ocorrido. Por isso, segundo Bendix, as generalizações feitas a partir de fatos históricos são melhor caracterizadas como

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construtos típico-ideais do que como leis gerais. Por exemplo, o processo de modernização que ocorre nas sociedades não oci-dentais é diferente do processo que tem ocorrido nas sociedades ocidentais; é, pois, errado usar generalizações elaboradas a partir de estudos do processo de modernização das sociedades ociden-tais para fazer previsões para outras sociedades, mas pode ser útil confrontar modelos feitos para sociedades ocidentais com obser-vações das sociedades não ocidentais (BENDIX, 1970, p. 279). Usando a terminologia de Merton (1970), tais teorias, por não se aplicarem a todas as sociedades de todos os tempos, seriam consideradas teorias de médio alcance.

Merton estava preocupado com a distância do mundo empírico a que se encontravam as grandes teorias. As teorias de médio alcance “também envolvem abstrações, mas estas es-tão mais próximas dos dados observados”2 (MERTON, 1970, p. 51). As teorias de médio alcance, ao tornarem mais profun-damente conhecidos objetos menores, forneceriam subsídios para induções de maior exatidão e precisão, sendo, pois, de utilidade para o aperfeiçoamento de qualquer grande teoria. Embora as grandes teorias sejam frequentemente discrepantes entre si, elas são suficientemente imprecisas para acomodar em seu interior uma mesma determinada teoria de médio alcance.

Em suma, o que Hofferbert e Cingranelli (1996, p. 608) dizem acerca da economia política é válido para todas as ciên-cias sociais:

O desafio para a economia política é enorme. Causação num mundo de mais variáveis do que casos é um alvo elusivo, que provavelmente não se renderá por vontade própria à representação estatística mais elegante.

2 Sou responsável pela tradução das citações em inglês presentes neste livro.

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1.1.4 Experimentos cruciais

De acordo com Zetterberg (1970), um dos fatores preju-diciais ao acúmulo de conhecimento teórico é o modo como os sociólogos selecionam seus objetos de estudo empíricos: o cri-tério de escolha do objeto de pesquisa é mais frequentemente algo socialmente do que teoricamente relevante, e uma pesquisa importante por contribuir para a solução de algum problema social imediato nem sempre permite tornar mais plausível uma ou outra teoria alternativa que esteja sendo investigada. Ou seja, usando uma expressão de Stinchcombe (1970), nem sempre uma pesquisa assim delimitada é um experimento crucial.

Há, pois, pelo menos dois modos de se escolher um obje-to de pesquisa empírica. Num deles, o pesquisador se interessa por um tema e procura alguma teoria que o ajude a explicar o que se passa com seu objeto de estudo. O outro modo consiste em confrontar teorias umas com as outras e prever quais fatos empíricos seriam úteis de se observar como experimento cru-cial. Esse segundo tipo de pesquisa empírica permite escolher entre teorias alternativas, fazendo com que teorias sejam es-quecidas, mantidas ou reformuladas por terem sido falseadas ou provisoriamente confirmadas. O conhecimento teórico se acumula e se torna mais integrado.

É pouco comum algo que possa ser considerado pesqui-sa básica. A grande maioria das pesquisas empíricas feitas por cientistas sociais, mesmo os mais renomados, tem por objetivo conhecer em profundidade um fenômeno histórico específico. Muitos trabalhos seriam melhor classificados como pesquisas da história recente — às vezes muito benfeitas —, em que se utilizam leis gerais elaboradas por outras disciplinas na expli-cação de fatos empíricos. São também comuns trabalhos teó-

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ricos feitos por cientistas sociais que, diante da dificuldade ou impossibilidade de coleta dos dados necessários para a cons-trução da teoria, se limitam a fazer especulações filosóficas — às vezes rotuladas de teoria sociológica.

Os trabalhos com pretensão teórica geral, ou seja, aque-les que pretendem encontrar leis ou mecanismos explicativos gerais que possam ser aplicados a uma grande diversidade de situações, costumam ser resultado de pesquisas bibliográficas, e não de alguma pesquisa empírica desenhada com o pro-pósito explícito de servir de experimento crucial para testar teorias. Comparam-se teorias com teorias e não teorias com fatos, o que me parece uma atividade mais propriamente fi-losófica do que científica. Esse é mais um fator que contribui para a coexistência, nas ciências sociais, de um amontoado de teorias mutuamente contraditórias. As ciências sociais não formam um conjunto coerente de teorias complementares, cujas afirmações podem ser, com algum esforço, inter-relacio-nadas e, em última instância, derivadas de princípios comuns (HOFFERBERT; CINGRANELLI, 1996, p. 606-607).

Em parte, é claro, essa situação é resultante da complexida-de dos fenômenos sociais, cuja intrincada inter-relação de uma multiplicidade de causas e efeitos dificulta — e muito — o isola-mento teórico de mecanismos causais de validade geral. Há tam-bém o problema moral que impede a realização de experimentos tal como são feitos nas ciências naturais. Mesmo quando não é eticamente reprovável, continua a ser um grande desafio metodo-lógico a realização de experimentos com seres humanos:

[…] mesmo onde alguma experimentação é permitida, seres humanos frequentemente modificam seu com-portamento simplesmente por saberem estar sendo observados numa situação experimental. Por exemplo,

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em pesquisa educacional frequentemente ocorre das crianças se saírem bem sob qualquer novo método ou inovação curricular (DYE, 1987, p. 16).

Apesar de todas as dificuldades, acredito que se uma proporção maior de cientistas sociais dedicasse sua criativi-dade à solução de dilemas teóricos boa parte dessas teorias já teria sido falseada ou, pelo menos, teriam ficado mais claros os limites de sua aplicabilidade e as causas desses limites.

Uma forma de se conseguir uma maior aproximação do ideal de construção de conceitos claros e distintos é pela formalização lógica ou matemática das teorias. A formaliza-ção é o caminho natural a ser seguido quando se pretende produzir teorias desprovidas de ambiguidade, um pré-requi-sito para atender ao critério da falseabilidade e, consequente-mente, cientificidade. A partir de Galileu, as ciências naturais têm, progressivamente, não apenas utilizado a matemática para análise de dados empíricos mas também incorporado formulações matemáticas em suas teorias. Nas ciências so-ciais tem sido diferente.

Para alguns cientistas sociais, expressar relações sociais em fórmulas matemáticas, mais do que simplificação grosseira da realidade, chega a ser uma desrespeitosa tentativa de expli-car a liberdade humana por meio de leis deterministas. Ou seja, seria retirar da humanidade qualquer pretensão de, dignamen-te, ter algum controle sobre seu próprio destino. Os fenômenos sociais são vistos como qualitativamente diferentes dos fenôme-nos naturais e qualquer tentativa de emprego de métodos das ciências naturais estaria destinada ao fracasso. A sociedade não parece ser um objeto de estudo passível de ser tratado mate-maticamente, sendo a matemática usada praticamente apenas como um instrumento de auxílio à análise de dados.

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A estatística tem sido utilizada para analisar dados obti-dos em grande quantidade, pois muitas vezes é possível, usando técnicas quantitativas, determinar quais fatores são mais rele-vantes para a ocorrência de um fenômeno que tem múltiplas causas e múltiplas consequências. O suicídio, de Durkheim, e A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Weber, exem-plificam essa forma de se servir da matemática entre os autores clássicos da sociologia. A partir de meados do século XX, as téc-nicas de metodologia quantitativa de pesquisa sofisticaram-se bastante, sendo hoje comumente empregadas para dar funda-mentação empírica a teorias em diversos centros de pesquisa no Brasil e no mundo. Esse é um louvável emprego da matemática e certamente é a forma mais viável de realizar pesquisas empíricas que tenham como objetivo servir de experimentos cruciais para testar teorias.

Estão já bem desenvolvidas as técnicas de pesquisa quali tativa e quantitativa. O que ainda se encontra em está gio embrionário nas ciências sociais é a cooperação entre os cien-tistas sociais que se sentem mais felizes realizando pesquisas qualitativas e aqueles que acham mais divertido realizar pes-quisas quantitativas. Embora muitos cientistas sociais avaliem positivamente o emprego conjunto de técnicas quantitativas e qualitativas, não são raros os casos de intolerância: os que realizam pesquisas quantitativas são frequentemente chama-dos de empiricistas, e os que realizam pesquisas qualitativas, de não cientistas.

É claro que pesquisas quantitativas realizadas sem o su-porte das pesquisas qualitativas correm o risco de se tornar brincadeiras com números. A apresentação de fórmulas de re-gressão ou dos resultados de testes de significância estatística, por exemplo, pode dar a impressão de ter sido realizada uma

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pesquisa dentro dos rigores exigidos pela ciência. Entretanto, não se pode esquecer somente ser viável a coleta de uma gran-de quantidade de dados para uma pequena quantidade de va-riáveis. A pesquisa quantitativa é necessariamente feita sobre uma realidade previamente empobrecida e, se forem coletados dados sobre variáveis irrelevantes, os resultados da pesquisa serão teórica e politicamente irrelevantes, embora possam ser estatisticamente significativos. A realização de estudos em pro-fundidade de alguns poucos casos — as tradicionais pesquisas qualitativas — permite a elaboração de diversas hipóteses ex-plicativas do fenômeno estudado; o exame cuidadoso dessas hipóteses permite a escolha das variáveis mais promissoras para a realização de testes cruciais; a coleta em grande quanti-dade dessas variáveis permite, por meio da análise estatística, determinar qual a correlação de cada uma das variáveis com a existência do fenômeno estudado, o que em alguns casos po-derá resultar na rejeição de algumas das hipóteses elaboradas durante as pesquisas qualitativas. Portanto, é de se esperar que as pesquisas empíricas mais frutíferas sejam aquelas que com-binem as vantagens das abordagens qualitativa e quantitativa.

1.2 Formalização de Teorias

Como observou Hume, relações de causalidade não podem ser nem diretamente observadas nem logicamente inferidas dos fatos observados. Apesar disso, também nas pesquisas sociais, é quando estamos diante de uma formulação matemática como a resultante de uma análise de regressão que consideramos legítimo desconfiar que identificamos relações de causalidade. Frequen-temente não sendo possível expressar leis gerais em fórmulas matemáticas, nas ciências sociais a noção de qualidade não foi

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suprimida. Pelo contrário, continuam sendo feitas pesquisas qua-litativas, ou seja, pesquisas que até podem gerar hipóteses a serem testadas por pesquisas quantitativas, mas que, em si, são investiga-ções do singular, não replicável, não generalizável.

Ao se tentar traduzir uma teoria elaborada numa lingua-gem natural (português, por exemplo) para a linguagem árida da lógica analítica ou da matemática, ambiguidades antes dis-farçadas no discurso e que não podem ser atribuídas apenas à complexidade do objeto de pesquisa se tornam aparentes e fáceis de eliminar (WILSON, 1999, p.  578). A formalização também permite uma melhor compreensão das inter-relações entre os vários elementos de uma teoria (HENRICKSON; MACKELVEY, 2002, p. 7292).

Entretanto, não parecem ter feito muito sucesso os esforços no sentido de usar uma matemática altamente so-fisticada na formulação de teorias (WILSON, 1999, p. 557). Tipicamente, formalizar uma teoria significa torná-la mais simples do que sua versão discursiva. Por isso, é preciso ava-liar caso a caso se os ganhos teóricos com a formalização superam a perda de riqueza conceitual que pode estar resul-tando da formalização.

Sem uma grande simplificação, os diagramas lógicos ou as fórmulas matemáticas ficariam tão monstruosamente complexos que seriam insolúveis e, portanto, inúteis.3 Se um modelo teórico for quase tão complexo quanto a realidade que representa, não haverá muita diferença entre utilizá-lo ou olhar diretamente para realidade. Nos dois casos, nossa

3 Tsebelis (1998, p. 38) chamou de explicação tipo atalho ou caixa-preta as, em princípio, traduzíveis para a linguagem das teorias da escolha racional. As expli-cações impossíveis de traduzir por conterem erros lógicos em sua formulação foram chamadas por ele de correlação espúria.

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apreensão da realidade seria resultado, principalmente, de nossos preconceitos e intuições. Se as previsões feitas por um modelo forem razoavelmente acertadas, podemos le-gitimamente suspeitar que o modelo contém os elementos correspondentes às relações de causa e efeito mais relevantes para a ocorrência do fenômeno observado (HEDSTRÖM; SWEDBERG, 1998, p. 14). Geralmente, não poderemos ter certeza de que a correspondência realmente existe porque outras combinações de elementos poderiam gerar os mesmos resultados (BOERO; SQUAZZONI, 2005, p. 2.12).

Vemos, portanto, que entre os obstáculos para o progres-so teórico das ciências sociais encontram-se o baixo empenho para elevar o rigor formal das teorias, a baixa interação entre pesquisadores que adotam diferentes métodos de realização de pesquisa empírica e o não direcionamento das pesquisas empíricas para a resolução de dilemas teóricos.

Quanto à formalização das teorias, somente nas úl-timas décadas, um ramo de pesquisa teórica nas ciências sociais — as teorias da escolha racional, particularmente pelo uso da técnica de modelagem de situações sociais na forma de jogos — tem começado a construir explicações formais de fenômenos sociais que podem ser consideradas bem-sucedidas no objetivo de encontrar mecanismos sim-ples, matematicamente tratáveis, que expliquem a ocorrên-cia de alguns fenômenos sociais. Como veremos adiante, as teorias da escolha racional, incluindo a teoria dos jogos, podem ser entendidas como tentativas de formalização ma-temática dos fenômenos sociais.

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1.3 Teoria dos Jogos

1.3.1 Dilema do prisioneiro

Dois indivíduos foram presos por porte ilegal de ar-mas, sendo também suspeitos de participação num roubo que houvera nas proximidades. Os dois estão sendo interrogados simultaneamente — em salas separadas — e cada um foi in-formado de que se testemunhar ter visto o outro participando do roubo será beneficiado pela lei da delação premiada e será solto imediatamente, contanto que não seja denunciado pelo companheiro. Esse é o melhor resultado possível para cada indivíduo. Se os dois cooperarem um com o outro, ou seja, se nenhum denunciar o outro, ambos ficarão presos por ape-nas alguns dias por porte ilegal de armas. Se os indivíduos se denunciarem mutuamente (desertarem), ambos ficarão pre-sos por meses, respondendo pelo crime de roubo. Mas o pior desfecho para cada um deles será cooperar enquanto o outro deserta. Nesse caso, o indivíduo será acusado de dois crimes e não será beneficiado pela lei de delação premiada.

O parágrafo acima conta uma pequena história que pode servir para ilustrar o jogo mais famoso da teoria dos jogos: o Di-lema do Prisioneiro. Na verdade, o Dilema do Prisioneiro pode ser ilustrado por qualquer história envolvendo dois indivíduos e quatro possibilidades de desfecho. O importante é o jogo ter uma estrutura de premiação em que desertar enquanto o outro coope-ra produza o melhor resultado, seguido de mútua cooperação, mútua deserção e cooperar enquanto o outro deserta. A Figura 1 mostra uma forma comum de apresentação dessa estrutura de preferências. Em cada célula, o primeiro número indica a premia-ção do Jogador 1 e o segundo número, do Jogador 2.

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Figura 1 – Dilema do Prisioneiro

4, 4 6, 0

0, 6 2, 2

C

DJogador 2

C DJogador 1

Fonte: Elaboração própria.

Dois indivíduos jogando o Dilema do Prisioneiro apenas uma vez, se forem racionais e egoístas, optarão pela deserção. O Dilema do Prisioneiro é talvez o mais simples dos jogos que permitem visualizar que cooperar pode ser irracional. Dado que todas as sociedades podem ser consi-deradas grandes obras cooperativas, torna-se teoricamente de extrema relevância se as pessoas cooperam por serem ra-cionais ou por algum outro motivo. Do ponto de vista da investigação teórica, a formalização de situações de coope-ração tem início com o Dilema do Prisioneiro.

Outra situação modelada formalmente e muito co-nhecida é aquela em que um conjunto de indivíduos precisa contribuir para a produção de um bem público, ou seja, um bem que uma vez produzido irá beneficiar todos os membros do grupo, independentemente de terem ou não contribuído para sua produção. Cooperar para a produção do bem públi-co seria agir coletivamente, mas a análise lógica da situação revela que o racional para um indivíduo egoísta, nessas si-tuações, é usufruir dos benefícios sem cooperar para a sua produção. Olson argumentou que o uso de incentivos seleti-vos pode reverter esse resultado. Essa seria a lógica da ação coletiva (OLSON, 1965).

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Boa parte dos trabalhos produzidos no âmbito da teoria dos jogos tem por objetivo investigar as condições propícias à cooperação no Dilema do Prisioneiro e nos problemas de ação coletiva (TAYLOR, 1987, p. 19-20). Segundo Boudon (1979, p. 50), obras clássicas como O contrato social, de Rousseau, e The calculus of consent, de Buchanan e Tullock, poderiam ser interpretadas como propostas de solução para o Dilema do Prisioneiro.

A teoria dos jogos permite ver com clareza mecanismos simples que podem estar entre os principais responsáveis pela existência de importantes fenômenos sociais aparentemente enigmáticos. A existência de instituições sociais complexas, por exemplo, pode ser vista como resultado da cooperação de inúmeros indivíduos para a produção de bens coletivos. E os indivíduos que cooperam para a produção dessas instituições, por sua vez, estão inseridos numa estrutura de prêmios e puni-ções semelhante à dos jogadores do Dilema do Prisioneiro. As-sim, a teoria dos jogos tem demonstrado que a com preensão da cooperação em larga escala existente na sociedade como um todo pode ser aprimorada pelo estudo de um modelo mui-to simples, facilmente entendido de modo intuitivo e ma te-maticamente tratável pela aritmética elementar.

Segundo Elster (1982, p. 467), a ação coletiva pode ser modelada como Dilema do Prisioneiro se no modelo tivermos dois agentes: “eu” e “todos os outros”. Isso faria do Dilema do Prisioneiro uma espécie de esquema mínimo da relação indi-víduo-sociedade. Entretanto, essa forma de construir o mode-lo retira do jogo uma característica fundamental, a de ele ser jogado por muitos e não apenas por dois agentes. É estranho que “todos os outros” ajam de maneira igual (cooperem ou desertem) e “eu” seja o único com autonomia para decidir de

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forma independente qual será o curso da minha ação. Assim, o Dilema do Prisioneiro seria a forma mais resumida de mo-delar a cooperação interindividual, mas o problema da ação coletiva seria uma forma mais apropriada de tentar capturar o aspecto cooperativo dos indivíduos vivendo em sociedade.

1.3.2 Teorias da escolha racional como teorias gerais

Thelen e Steinmo (1992, p. 12) e Rothstein (1996, p. 156) acusam as teorias da escolha racional de terem pretensão de pro-duzir leis gerais da sociedade a partir de um número limitado de pressupostos. Talvez a crítica esteja correta e alguns teóricos da escolha racional realmente tenham essa pretensão. Tsebelis (1998, p. 21), por exemplo, parece ser um deles ao afirmar:

Juntamente com a principal corrente da ciência políti-ca contemporânea, sustento que a atividade humana é orientada pelo objetivo e é instrumental e que os atores individuais e institucionais tentam promover ao máxi-mo a realização de seus objetivos. A este pressuposto fundamental chamo pressuposto da racionalidade.

A confiança de Tsebelis no potencial das teorias da es-colha racional para explicar fenômenos sociais concretos deri-va de sua premissa de que quando os atores parecem não agir racionalmente num jogo é porque eles estão simultaneamente envolvidos em outros jogos. A contabilidade de todos os cus-tos e benefícios de todas as opções de ação do ator em todos os jogos em que ele está envolvido mostraria que ele agiu ra-cionalmente. Entretanto, em outra passagem, ele afirma que a escolha racional é apenas uma das explicações possíveis para a ação humana e que, em muitas circunstâncias, outras teorias seriam mais adequadas (TSEBELIS, 1998, p. 45).

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Os jogos abstratamente construídos são as principais ferramentas de análise das teorias da escolha racional. Como argumenta Elster, os teóricos da escolha racional procuram capturar em jogos simples, matematicamente tratáveis, várias relações de interdependência existentes entre os indivíduos:

Primeiro, a premiação de cada um depende da premia-ção de todos por altruísmo, inveja, desejo por igualdade e motivações similares. Em seguida, a premiação de cada um depende das escolhas de todos, através de causali-dade social geral. E, finalmente, a escolha de cada um depende da antecipação das escolhas de todos (ELSTER, 1986a, p. 207).

1.3.3 Pressupostos das teorias da escolha racional

Para tornar possível a construção de modelos formais de processos sociais, as teorias da escolha racional de maneira geral, e a teoria dos jogos em particular, adotam alguns pressupostos simplificadores. Isso implica uma redução do realismo das teorias, mas não, necessariamente, prejuízo para uma compreensão mais rica da sociedade. A matemática é útil mesmo que, na prática, as pessoas não se comportem de acordo com os modelos matemáti-cos, pois os modelos permitem fazer previsões específicas do que deveria acontecer se certos pressupostos fossem atendidos. Se o previsto pelo modelo ocorrer, pode-se suspeitar que os processos realmente existentes no mundo têm estruturas análogas às estru-turas desenhadas no modelo. Se não ocorrer o previsto, deve-se então investigar o porquê do desvio. Essa forma de investigação teórica, em princípio, já se encontrava presente na obra de Weber (1994, p. 5), para quem a sociologia compreensiva era metodolo-gicamente racionalista.

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1.3.3.1 Pressuposto da racionalidade

O primeiro pressuposto simplificador adotado pelas teorias da escolha racional é, obviamente, o de que os se-res humanos são estritamente racionais. Basta que qualquer um pense na própria vida cotidiana para encontrar uma in-finidade de exemplos de ações motivadas pelo hábito e pela emotividade, e não por qualquer raciocínio consciente. Além disso, uma decisão lembrada por uma pessoa como resultado de uma decisão racional pode muitas vezes ser apenas uma raciona lização enviesada feita após a decisão ter sido tomada de modo intuitivo (HAIDT, 2001; HAUSER et al., 2007).

Por um lado, o pressuposto da racionalidade é clara-mente irrealista. Por outro, um pressuposto de irracionalidade serviria para explicar qualquer curso de ação adotado por um indivíduo, inclusive comportamentos favoráveis aos interes-ses do indivíduo e, portanto, interpretáveis como racionais. O pressuposto da irracionalidade pode ser usado para explicar qualquer coisa (MYERSON, 1992, p. 69), o que equivale a não explicar nada. Por isso, um teórico da escolha racional somen-te atribui irracionalidade a um agente quando falha em desco-brir a racionalidade das suas ações (ELSTER, 1986a, p. 213).

Elster (1986b) mostra que, a rigor, para uma ação ser considerada racional, o agente, dadas suas crenças sobre como é a realidade e seus desejos, deve ter escolhido o melhor cur-so de ação. Mais especificamente, o agente deve ter tomado a decisão de agir a partir de um raciocínio correto, as crenças do ator sobre como o mundo funciona devem ser as melhores possíveis dadas as evidências empíricas disponíveis e devem ser mutuamente consistentes. Além disso, como bem lembra Reis (1988, p. 27), “a racionalidade inevitavelmente supõe a in-

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tencionalidade”: se um indivíduo agiu racionalmente é porque ele tinha intenção de fazer o que fez. Fazer a coisa mais racio-nal a ser feita “sem querer” não seria agir racionalmente.

Outro pressuposto necessário para que os agentes possam ser considerados racionais é o de que possuem preferências es-táveis (BECKER, 1986, p. 5), pois se as preferências dos agentes mudassem com o tempo seria impossível calcular qual seria a sua escolha. Os desejos devem, portanto, ser mutuamente con-sistentes e estáveis. Em algumas circunstâncias, poderia não ser possível calcular qual a melhor ação para um indivíduo se seus valores se modificassem com o tempo ou se houvesse intransiti-vidade dos valores, ou seja, se, por exemplo, na ordem de prefe-rências do indivíduo A > B e B > C, mas C > A.

Em suma, as exigências para que uma ação seja conside-rada rigorosamente racional são tantas que se pode dizer que bem poucas ações são objetivamente racionais. Mesmo que o in-divíduo esteja com sua atenção voltada para a resolução de um proble ma, a capacidade humana de raciocinar corretamente é limitada. Normalmente, o raciocínio dos indivíduos parece ser mais o resultado de uma visualização do problema do que da rea-lização de cálculos formais. Por exemplo, ao responder a questões envolvendo probabilidades e proporções, uma simples alteração na formulação da questão pode ser suficiente para modificar a escolha do respondente (TVERSKY; KAHNEMAN, 1990).

1.3.3.2 Pressuposto do egoísmo

O pressuposto do egoísmo é, no mínimo, politicamente incorreto, e a reação dos que estão tendo o primeiro conta-to com a teoria é de indignação com a aparente negação da existência da bondade humana e, consequentemente, da pos-

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sibilidade de construção de uma sociedade melhor. Mas ele é necessário para que a teoria possa produzir resultados exatos.

O pressuposto da racionalidade diz apenas que o indi-víduo escolherá o melhor meio para atingir o fim desejado, mas não diz nada sobre qual seria esse fim. Se os desejos dos indivíduos pudessem variar aleatoriamente, qualquer com-portamento poderia ser explicado como ação racional para atingir um fim. Assim, o pressuposto de que os indivíduos são egoístas tem por objetivo especificar o que é desejado por eles: aumentar o próprio bem-estar. Para manter os modelos sim-ples, os indivíduos não sofrem ao presenciar ou mesmo causar o sofrimento de outro. De maneira geral, o aumento de seu bem-estar equivale a aumento de riqueza e poder.

Na teoria dos jogos, os atores somente se importam com o próprio bem-estar. As pessoas reais, entretanto, frequente-mente sentem inveja e se importam em como seu bem-estar se compara ao do vizinho. É natural que seja assim. Ser propenso a sentir inveja é adaptativo porque permite ao indivíduo res-ponder à questão: “Estou aproveitando ao máximo os recursos do ambiente?” Para um indivíduo sobreviver e se reproduzir, precisa extrair alimentos do ambiente, encontrar um abrigo etc., mas tanto os recursos naturais quanto os sociais são es-cassos. Quanto mais recursos naturais o indivíduo conseguir extrair e fazer uso e quanto maior for o número e mais intensas forem suas relações de amizade, mais aumentarão suas chan-ces de ter sucesso reprodutivo. Entretanto, como saber se vale a pena continuar trabalhando para extrair mais da natureza ou se já se conseguiu o que era possível? Como saber se é possí-vel melhorar o próprio prestígio na sociedade? Se o indivíduo tivesse conhecimento perfeito de tudo o que está à sua volta, bastaria fazer um cálculo objetivo. Na prática, ninguém tem

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esse conhecimento e uma solução é observar o que os ami-gos e vizinhos estão conseguindo. Se eles estiverem em melhor situa ção, provavelmente ainda há algo que possa ser feito. Es-tamos permanente e inconscientemente monitorando nossos colegas e vizinhos em busca de sinais de que eles estejam sen-do mais bem-sucedidos do que nós. A inveja é um sentimento desagradável despertado quando o indivíduo se depara com uma situação em que outros se encontram em melhor estado. A inveja e outras irracionalidades estão presentes na maioria das ações de qualquer ser humano.

1.3.3.3 Pressuposto do conhecimento completo

Outro pressuposto, particularmente importante em muitos trabalhos de teoria dos jogos, é o de que os agentes têm conheci-mento completo da situação do jogo e de que esse conhecimento é comum a todos os agentes envolvidos. A melhor decisão a ser tomada por um agente num modelo muitas vezes depende das decisões a serem tomadas pelos demais. Mas se não se sabe quais são as informações possuídas por um agente, não é possível pre-ver com exatidão o que seria racional para ele. Assim, tal como um pressuposto de irracionalidade, um pressuposto de que os agentes tomam decisões com base em informações errôneas ou incompletas pode ser usado para explicar qualquer tipo de com-portamento (BECKER, 1986, p. 7).

1.3.3.4 Pressupostos e tratabilidade matemática

As teorias da escolha racional e a teoria dos jogos usam a matemática explicitamente, mas são poucos, mesmo entre os teóricos da escolha racional, os que acreditam realmente se passar na mente dos seres humanos o descrito pela teoria.

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Um sistema em que todos os agentes são absolutamente egoístas, por exemplo, embora irrealista, é consistente, mode-lável matematicamente. É possível calcular o resultado de um jogo, ou seja, quais serão as ações escolhidas pelos agentes da-das as condições do jogo. Um pressuposto de altruísmo absolu-to, pelo menos em algumas circunstâncias, também permitiria a elaboração de modelos formais. Por exemplo, no Dilema do Prisioneiro jogado por dois agentes incondicionalmente altruís-tas, cada jogador preferiria que ele próprio cooperasse e o outro desertasse, pois isso maximizaria a premiação do outro jogador, mas a segunda melhor opção seria os dois cooperarem. Em todo caso, um jogador sempre garantiria um melhor resultado para o outro cooperando do que desertando e, portanto, o dois escolhe-riam co operar e o equilíbrio do jogo seria a cooperação mútua. O problema é que o altruísmo absoluto é ainda mais distante da realidade do que o egoísmo absoluto. Sem altruísmo ou egoís-mo absolutos, o número de ações alternativas se multiplicaria e os modelos se tornariam bem mais complexos e nuançados e, obvia mente, a possibilidade de extração de resultados exatos dos modelos se reduziria enormemente.

Um pressuposto de racionalidade limitada também seria mais realista, porém, mais difícil de tratar matematicamente. Há várias formas de conceber a racionalidade limitada. Os atores podem seguir diversas regras práticas para interromper o cálcu-lo de qual melhor ação a ser tomada. Por exemplo, ao fazer uma pesquisa de preços para efetuar uma compra, ao invés de verifi-car os preços em todas as lojas da cidade, pode-se seguir a regra de telefonar para apenas três estabelecimentos e comprar onde o preço estiver melhor. Se a cidade tem mais de três lojas, terá sido violado o pressuposto da informação completa. A ação perfeita-mente racional seria parar a pesquisa exatamente no momento

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em que o benefício de se encontrar menores preços se tornas-se menor do que o custo de conti nuar procurando. Entretanto, é impossível saber o momento em que isso ocorrerá se não se conhecem os preços com antecedência. Isso justifica o uso da regra prática, mas não faz com que ela se torne compatível com os rigorosos pressupostos de racionalidade da teoria dos jogos, afinal, os pressupostos existem para garantir a realização de cál-culos exatos e deduções precisas.

Será que um modelo da teoria dos jogos é falseável? Essa é uma questão controversa. Por um lado, embora os modelos da teoria dos jogos possam em alguns casos ser interpretados como satisfatoriamente correspondentes à realidade empírica, o que uma “teoria” dos jogos produz são teoremas matemati-camente provados, válidos apenas para os jogos descritos. A teoria dos jogos possui teoremas porque adota pressupostos que têm por principal função permitir a tratabilidade matemá-tica (BECKER, 1986, p. 5). Ora, se as “teorias” são, de fato, te-oremas, deve-se ou aceitar sua exatidão ou tentar provar erros em sua elaboração e não tentar falseá-las ou corroborá-las pelo confronto com dados empíricos. Pode-se até mesmo afirmar que a correspondência mais ou menos direta com a realidade empírica nem sempre é o fator mais importante numa teoria. Como já mencionado neste capítulo, os desvios da realidade em relação à teoria podem ser reveladores das relações de cau-sa e efeito subjacentes aos fenômenos estudados. Assim, os modelos da teoria dos jogos deveriam ser confrontados com a realidade como tipos puros que têm por base a ação racio-nal. A principal utilidade da teoria dos jogos seria a criação de categorias teóricas não ambíguas a serem usadas na análise sociológica (ELSTER, 1982, p. 476; DYE, 1987, p. 40).

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Por outro lado, os modelos elaborados pelas teorias da escolha racional — pelo menos os mais simples — fazem previsões exatas de como os agentes devem se comportar. Se a observação empírica da realidade revelar que os indi-víduos não se comportam como previsto pelo modelo, as premissas do modelo podem ser modificadas (TSEBELIS, 1998, p. 53). Ou seja, em alguns casos, as teorias da esco-lha racional se apresentam como a opção mais apropriada para a elaboração de teorias que façam previsões precisas e, portanto, falseáveis. Isso é particularmente verdadeiro para situações em que os atores, tipicamente, agem de modo cal-culista, como fazem os políticos e os agentes econômicos. É claro que, mesmo nesses casos, as ações racionais dos atores frequentemente têm consequências de longo prazo não in-tencionais e não previsíveis no momento da ação.

1.3.4 Vigor metodológico do pressuposto da racionalidade

Como acabamos de ver, o pressuposto da irracionalidade é matematicamente intratável, parecendo, pois, ser um obstáculo à formalização das teorias nas ciências sociais. Mesmo consideran-do que as teorias da escolha racional, em geral, não argumentem que os atores sejam realmente racionais em sua vida cotidiana, pretendendo apenas prever como eles agiriam se fossem racionais, uma questão continua a merecer resposta: por que uma teoria tão irrealista conseguiria fazer previsões acertadas sobre o comporta-mento humano? Em outras palavras, por que o comportamento observado pareceria racional ao mesmo tempo que um exame do que se passava na mente dos indivíduos (por meio de entrevistas ou questionários, por exemplo) revelaria que a ação estava longe de atender aos critérios da racionalidade? Por exemplo, segundo

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Coleman (1990, p. 98-9), a racionalidade da troca de favores está no fato de que quem presta o favor está colocando à disposição de outrem recursos que lhe pertencem, dos quais não lhe será custo-so se desfazer no momento e que serão de grande utilidade para quem os recebe, esperando, num momento em que passar por necessidade análoga, receber ajuda, que lhe será de grande valia e que não será muito custosa a quem retribuir o favor. Entre tanto, um exame psicológico detalhado do indivíduo que fez o favor po-deria revelar que ele não fez nenhum cálculo de custo-benefício e que simplesmente se sentiu bem em ajudar alguém que estava em situação pior do que a sua. Afinal, como considerar racional e egoísta um indivíduo que faz um favor para um completo estra-nho com o qual está certo de que nunca haverá outro encontro? Coleman procura explicar casos como esses pela existência de normas internalizadas, entendendo que um indi víduo tem uma nor ma internalizada quando sente um desconforto psicológico ao transgredir uma norma. Ou seja, o próprio indivíduo se pune ao não fazer o que a norma prescreve ou ao fazer o que a norma proíbe (COLEMAN, 1990, p. 293).

Assim, um ato de “pura generosidade” poderia ser ex-plicado como um ato de obediência a uma norma internaliza-da. Quanto à internalização da norma, realizá-la seria um ato racional nos casos em que o ator se confronte com situações em que não esteja a seu alcance burlar a norma sem ser puni-do. Se não é possível controlar certos eventos do mundo (as punições), a atitude que mais benefícios pode trazer ao sujeito é a modificação de suas expectativas em relação ao mundo (no caso, passar a desejar obedecer às normas e a se sentir gratificado ao fazê-lo)4 (COLEMAN, 1990, p. 517).

4 Aproveitei aqui um argumento que já havia tido oportunidade de apresentar em outro trabalho (AQUINO, 2000, p. 27).

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Acredito que esse argumento de Coleman pode ser complementado por uma explicação evolucionista. Parece--me muito estranho que o indivíduo tome a decisão racional de internalizar uma norma: obviamente o processo de inter-nalização de normas se dá de modo inconsciente, e esse é, claramente, mais um momento de irrealismo de uma teoria da escolha racional. Entretanto, de fato, as coisas se passam de um modo que a teoria faz previsões acertadas sobre o comportamento dos indivíduos. Como, então, explicar que o indivíduo escolha inconscientemente o curso de ação mais racional (a internalização das normas)? A resposta evolucio-nista é de que isso não é obra do acaso. Situações semelhan-tes à oportunidade de fazer favores para estranhos ocorrem há alguns milhões de anos. Nessas situações, os indivíduos se veem diante da necessidade de tomar a decisão de ajudar ou não sem a possibilidade de extrair do ambiente imediato to-das as informações necessárias para uma decisão bem ponde-rada (na terminologia da teoria dos jogos, trata-se de um jogo de informação incompleta). No caso, o indivíduo não sabe ao certo se o outro indivíduo terá no futuro oportunidade de retribuir o favor recebido. Somente seria racional fazer o fa-vor se a retribuição fosse esperada. Na ausência dessa infor-mação, não há como tomar uma decisão racional: a decisão tem que ser emotiva. O que uma teoria evolucionista prevê é que os indivíduos desenvolverão as propensões emotivas mais apropriadas para lhes guiar em situações que se repetem por milhares de gerações (TOOBY; COSMIDES, 1992).5 Assim, por exemplo, no caso do encontro com um predador em po-tencial, a emoção mais apropriada é o medo, que motivará a

5 Ver também Turner (2000, p. 59).

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fuga; no caso de um encontro com uma pessoa em dificulda-de, e em situação pior do que a do próprio indivíduo, a ação apropriada seria a ajuda, pois por milhões de anos a probabi-lidade de reencontrar esse indivíduo ou um de seus familiares foi bastante alta. Atualmente, com o enorme crescimento das cidades, com o desenvolvimento dos meios de transporte e da indústria do turismo, frequentemente encontramos indi-víduos cuja probabilidade de reencontro futuro sabemos ser praticamente nula. Mas a capacidade de internalizar normas e a propensão para internalizar com facilidade a norma de ajudar o próximo em dificuldade já estão desenvolvidas no ser humano, mesmo que isso às vezes seja claramente não ra-cional para um indivíduo egoísta. Assim, em muitos casos, as propensões emotivas evoluídas ao longo de milhões de anos parecem continuar levando os indivíduos a se comportar de modo semelhante ao que fariam se estivessem realizando cál-culos racionais de longo prazo.

Essa mesma explicação evolucionista permite argumen-tar que o pressuposto do conhecimento perfeito da realidade não é metodologicamente tão absurdo quanto possa parecer num primeiro exame. Não somos descendentes de indivíduos que tomaram as decisões erradas. Estes morreram deixando ne-nhum ou poucos descendentes. Somos descendentes dos indiví-duos que, em boa parte guiados por suas propensões emotivas, tomaram as decisões certas. À medida que problemas análogos aos enfrentados por nossos ancestrais continuem a se repetir, ao agir guiados pelas mesmas propensões emotivas dos nossos ancestrais, estaremos tomando decisões próximas do que se es-peraria de um agente com conhecimento perfeito do jogo.

Deve-se notar, entretanto, que a explicação evolucio-nista somente se aplica a casos estruturalmente semelhantes

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aos ocorridos repetidas vezes no passado da nossa espécie. Quanto menor for nosso conhecimento sobre o passado evo-lutivo, mais especulativas serão as explicações evolucionistas de acontecimentos do presente. Na verdade, as pistas que te-mos sobre como viveram nossos antepassados de tempos pré--históricos são tão fragmentárias que frequentemente é mais útil especular sobre como foi o passado a partir do comporta-mento presente do que explicar o comportamento presente a partir de um conhecimento do passado. Por fim, é importante observar que as forças naturais de seleção tendem a maximizar o sucesso reprodutivo do indivíduo e de seus familiares mais próximos, o que nem sempre coincide com a forma como a teoria dos jogos costumam caracterizar seus indivíduos egoís-tas. A forma mais fácil de prever o comportamento de um in-divíduo é considerar que ele busca o enriquecimento material, mas essa é apenas uma das atitudes que pode levá-lo ao suces-so reprodutivo.

1.3.5 Limitações da teoria dos jogos

Com exceção das teorias da escolha racional, os mo-delos matemáticos de processos sociais, particularmente na economia, têm-se referido aos processos sociais como um todo e não às ações dos indivíduos. Esses modelos seriam, quanto a esse aspecto, semelhantes às teorias funcionalistas, que pressupõem a existência de fenômenos macrossociais, considerando, entretanto, inviável explicar tais fenômenos a partir das ações de indivíduos. Isso porque, como argumenta Edling, para proceder de modo diferente seria necessário uma equação para cada indivíduo:

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Modelar heterogeneidade verdadeira significa adi-cionar uma nova equação para cada indivíduo. Mes-mo com sistemas sociais moderadamente grandes, isso rapidamente se torna intratável. Essa forma de modelar processos é, portanto, melhor utilizada em macroprocessos e para a análise de dados agregados (EDLING, 2002, p. 205).

Ao liberar os agentes da obrigação de agir simultanea-mente, os jogos em forma estendida possibilitam a modelagem de ações sequenciais e superam algumas das limitações dos jogos apresentados numa matriz com estrutura de premiação (como na Figura 1, p. 45).

Entretanto, a construção de um jogo que simule o en-contro de muitos indivíduos diferentes não é uma tarefa fácil para a teoria dos jogos tradicional. A complexidade de com-binar muitas funções num cálculo cresce exponencialmente à medida que o número de indivíduos e interações entre eles cresce. Isso significa que a teoria dos jogos, provavelmente, também não é capaz de oferecer instrumentos suficientes para superar a necessidade de se recorrer a explicações funcionalis-tas dos fenômenos sociais.

Ao invés de tentar fazer esse grande cálculo, é possível usar um computador para simular muitas interações entre os indivíduos, em que cada encontro envolveria apenas cálculos simples. Com essa abordagem, é possível simular fenômenos sociais de baixo para cima: modela-se o comportamento de indivíduos, mas o resultado pode ser interpretado como fe-nômeno social. Os modelos baseados em agentes podem ser considerados instrumentos que têm uma estrutura matemá-tica e que podem auxiliar nas pesquisas teóricas e empíricas nas ciências sociais sem algumas das limitações das teorias da

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escolha racional ou de usos mais tradicionais da matemática. Mas o potencial e as limitações dessa abordagem serão trata-dos na próxima seção.

1.4 Modelos Baseados em Agentes

Em um modelo baseado em agentes (MBA), o pes-quisador escreve um programa de computador em que são estipuladas regras de comportamento a serem seguidas por agentes virtuais, existentes apenas na memória do compu-tador. Ao ser executado o programa, os agentes são criados e começam a interagir uns com os outros, geralmente sem a intervenção do pesquisador. Portanto, ao contrário do uso tradicional da matemática nas ciências sociais, os MBAs são construídos “de baixo para cima”. Ou seja, modela-se o com-portamento de agentes individuais, mas da interação desses agentes resulta uma sociedade artificial. E, ao contrário dos modelos tradicionais da teoria dos jogos, todos os cálculos são feitos por uma máquina, o que permite a criação de mo-delos com milhares de agentes heterogêneos.

A popularização dos computadores nos últimos anos facilitou muito o desenvolvimento de MBAs. Mas modelos ba-seados em agentes não representam uma novidade tão grande na literatura. Schelling (1978) já apresentava vários tipos de macroeventos que emergiam das ações de indivíduos sem ser antecipados por eles, sendo seu modelo de segregação um dos mais conhecidos. Mas o modelo de Schelling, não sendo desen-volvido em computador, tinha obrigatoriamente de lidar com um pequeno número de agentes cujas características também tinham de ser mantidas extremamente simples. Na década de 1980, exemplos de uso do computador na elaboração de mode-

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los computacionais começaram a ficar mais frequentes, sendo um dos mais conhecidos um torneio entre estratégias para jo-gar o Dilema do Prisioneiro promovido por Axelrod (1984). As estratégias foram formuladas por diversos pesquisadores, convertidas em linguagem de programação e executadas em computador.6 O torneio de Axelrod já apresentava algumas das características dos MBAs, mas outras somente seriam im-plementadas nos modelos da década seguinte. Os recursos dos computadores se desenvolveram, passaram a ser melhor ex-plorados e grande parte dos atuais MBAs compartilha algumas características em comum.

Os dois recursos computacionais mais importantes para a construção de modelos são a capacidade de simular a geração de números aleatórios e a facilidade de repetir a execução de uma mesma instrução milhares de vezes. A geração de núme-ros aleatórios é particularmente importante para a simulação de fenômenos sociais. Uma vez que os fenômenos sociais têm caráter incerto, ao invés de determinar que um agente seguirá certo curso de ação numa circunstância específica, pode-se, por exemplo, determinar que o agente seguirá certo curso de ação numa circunstância específica se o computador, a partir de uma distribuição uniforme entre 0 e 100, gerar um número maior do que 60. Para simular a heterogeneidade encontrada nas populações humanas, as características dos agentes po-dem ser distribuídas aleatoriamente, e essa distribuição pode ter a forma mais adequada para o modelo: uniforme, normal ou gaussiana, assimétrica etc. Se algo aparentemente estranho ocorrer, a simulação poderá ser repetida e os eventos ocor-rerão novamente, exatamente na mesma sequência, sendo

6 Apresento mais detalhes sobre o torneio no próximo capítulo, seção 2.5.

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possível examinar minuciosamente os fatos que antecederam o fenômeno de interesse. Isso, pelo menos em certa medida, compensa a frequente impossibilidade de se realizar uma aná-lise formal rigorosa de um modelo baseado em agentes simu-lado em computador.

É possível ainda determinar o tempo de “vida” dos agentes e permitir que eles se reproduzam, simulando, assim, processos evolutivos. Os agentes podem mudar seu comporta-mento pelo aprendizado e a herança genética de características comportamentais pode fazer com que as novas gerações sejam diferentes das antigas.

Ao contrário das teorias da escolha racional, é possível dis-pensar vários pressupostos simplificadores. Nos MBAs, os agentes não precisam ser racionais e, ao contrário do que ocorre em pes-quisas empíricas, não é preciso especular sobre qual irracionalidade está levando um agente a se comportar de determinada forma. Por se tratar apenas de um modelo, é possível saber exatamente o que se passa na “mente” de cada agente e, portanto, as irracionalidades são conhecidas com precisão.

Os agentes seguem regras simples de comportamento, mas podem possuir características interpretáveis como equi-valentes a características cognitivas e até emotivas que, jun-tamente com o ambiente em que se encontram, condicionam seu comportamento. Uma solução comumente adotada para simular encontros casuais, formação de redes e a própria mo-vimentação geográfica de seres humanos reais é a modelagem do mundo virtual na forma de tabuleiro, dotando os agentes da capacidade de se deslocar de uma célula para outra. Restringir os movimentos dos agentes a ocupar e desocupar células é, ob-viamente, uma simplificação. Na vida real há uma quantidade infinita de distâncias e de ângulos que as pessoas de um grupo

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podem assumir ao se posicionar em relação umas às outras. Entretanto, essa simplificação reduz o custo computacional para calcular quem são os vizinhos de um agente e quais re-cursos do mundo virtual estão nas suas proximidades. Com a intenção de simular os fenômenos sociais, o programador do modelo determina regras para o deslocamento dos agentes e para a interação entre eles.

Poder-se-ia argumentar que os MBAs seriam apenas mo-delos probabilísticos e que ao invés de desperdiçar tempo pro-gramando o movimento de agentes num mundo virtual seria mais prático simplesmente determinar uma probabilidade dos agentes se encontrarem. Ocorre, porém, que a probabilidade de haver um encontro entre agentes não permanece necessaria-mente fixa. Pelo contrário, em muitos modelos, ela se modifica com a própria dinâmica do jogo. Uma outra vantagem de um MBA sobre um modelo probabilístico é a maior proximidade dos MBAs da nossa forma natural de pensar em relação aos mo-delos probabilísticos. Nossos ancestrais não faziam cálculos de probabilidade, mas usavam a visão para perceber a formação de padrões e avaliar o que se passava no mundo. Os MBAs per-mitem produzir uma representação visual da evolução dos pa-râmetros dos modelos. O deslocamento dos agentes no mundo virtual pode ser exibido na tela do computador, cores e formas diferentes podem ser atribuídas a agentes que não possuem ca-racterísticas iguais etc., e isso facilita para o pesquisador a tarefa de reconstruir mentalmente o que se passa no modelo e pensar em alterações que possam torná-lo mais realista.

O fato de os agentes seguirem regras simples de com-portamento resulta em outra vantagem dos MBAs: o progra-mador geralmente não precisa dominar uma matemática mais avançada do que a aprendida no ensino médio.

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Os modelos podem produzir resultados semelhantes aos obtidos em pesquisas empíricas e Macy e Willer (2002) reco-mendam que sejam feitas análises quantitativas com as socieda-des artificiais tal como se faz com bancos de dados produzidos a partir de surveys. Pode-se fazer uma análise de regressão entre as características dos agentes e o nível de “bem-estar” atingido por eles ou o caráter do resultado agregado produzido. Ao contrário do que ocorre com as pesquisas empíricas em ciências sociais, ao se trabalhar com sociedades artificiais é possível fazer experi-mentos controlados, mantendo constantes alguns parâmetros e variando outros (GILBERT, 2004, p. 1).

Num certo sentido, modelos feitos em computador são experimentos mentais (MACY; WILLER, 2002, p. 147), sendo o computador apenas um instrumento que amplifica a capa-cidade do cientista de executar cálculos e imaginar a evolução que ocorre nos valores dos diversos parâmetros do modelo.

Um experimento mental não é um experimento empí-rico; ele existe apenas na mente do cientista como um fruto de sua imaginação e capacidade de pensamento intuitivo. Os experimentos mentais, entretanto, ganham mais credi-bilidade diante da comunidade acadêmica quando são for-malizados num modelo. A formalização permite perceber falhas no raciocínio que não eram vistas enquanto se usava apenas a intuição e a limitada memória de trabalho do cé-rebro humano. Os MBAs podem, portanto, contribuir para testar a consistência interna de algumas teorias (BOERO; SQUAZZONI, 2005, p. 1.15).

A formalização de um experimento mental, transfor-mando-o num modelo, como já mencionado, tradicional-mente tem sido feita pela tradução em fórmulas matemáticas das regularidades existentes nas interações entre as variáveis.

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Foi sendo um pioneiro na aplicação desse procedimento que Galileu inaugurou a física moderna. Na época de Galileu, questionava-se a possibilidade de usar a matemática, onde os elementos se relacionam entre si com perfeição, para repre-sentar o que se passava no mundo empírico, em que não po-dem ser encontradas formas perfeitas. E, de fato, os modelos matemáticos são construídos tendo por base pressupostos simplificadores. Como diz Koyré (1991, p. 166), “os corpos que se movem em linha reta num espaço vazio infinito não são corpos reais que se deslocam num espaço real, mas cor-pos matemáticos que se deslocam num espaço matemático”.

Analogamente ao que se passa na mecânica, pode-se di-zer que os agentes que vivem nos mundos virtuais dos MBAs são agentes matemáticos.

Construir um modelo consiste, basicamente, em abstrair de uma realidade empírica complexa somente os ele mentos mais importantes para a compreensão das relações causais respon sáveis pela existência do fenômeno. Por um lado, o mo-delo ficará demasiadamente complexo ou mesmo não anali-sável se for incluído um número excessivo de elementos. Por outro lado, um modelo excessivamente simples poderá não ter utilidade prática por não ser possível interpretá-lo como representante adequado de nenhuma realidade empírica rele-vante. Quanto mais simples um MBA, maior será sua corres-pondência apenas a alguma teoria geral e não a alguma teoria de médio alcance. Segundo Boero e Squazzoni (2005, p. 4.60), nesses casos, se houver intenção de considerar o modelo empi-ricamente válido, será preciso confrontá-lo com uma extensa variedade de situações concretas.

Não se pode ter certeza se foram realmente escolhidos os elementos mais adequados para a construção do modelo

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nem sobre a propriedade de se interpretar o modelo como cor-respondendo a uma situação empírica real. Em todo caso, se um modelo feito em computador pode ter sua validade ques-tionada, um outro feito pela mente desassistida será ainda mais vulnerável a objeções.

Os MBAs ajudam a desmistificar a noção de fenômenos emergentes. Podem ser considerados fenômenos emer gen tes aqueles que surgem da interação entre elementos indivi duais e que apresentam leis próprias não aplicáveis ao conjunto dos elementos em interação tomados isoladamente. Os fenôme-nos emergentes constituem padrões observáveis não limitados às características dos indivíduos. Essa noção de fenômenos emergentes está de acordo com o que Hedström e Swedberg (1988, p. 12-13) chamam de versão fraca do individualismo metodológico:

A versão fraca do individualismo metodológico con-corda com a versão forte em assumir que todas as ins-tituições sociais, em princípio, podem ser explicadas apenas pelas consequências intencionais e não inten-cionais das ações dos indivíduos. Mas confrontadas com um mundo consistindo em histórias causais de comprimentos próximos do infinito, na prática, po-demos somente esperar prover informação sobre as histórias mais recentes […] Ao tomar certos estados no nível macro como dados e incorporá-los nas ex-plicações, o realismo e a precisão das explicações pro-postas são grandemente melhorados.

A definição de fenômeno emergente, citada acima, pode ser contrastada com a de Bonabeau (2002), que, por sua vez, é semelhante à noção durkheimiana de fenômeno sui generis e que me parece carregar um certo ar de misticismo:

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Fenômenos emergentes resultam de interações de en-tidades individuais. Por definição, eles não podem ser reduzidos às partes do sistema: o todo é mais do que a soma das suas partes devido às interações entre elas. Um fenômeno emergente pode ter propriedades disso-ciadas das propriedades da parte (BONABEAU, 2002, p. 7280, grifos nossos).

Essa definição de emergência herda um certo aspecto místico da noção de que o todo é maior do que a soma das partes. Os MBAs mostram relações macro-micro de modo diferente do previsto pelas teorias sociológicas holistas. Durkheim postulava que os fatos sociais teriam poder coercitivo sobre os modos de agir e pensar dos indivíduos, mas nos MBAs o que se percebe não é uma ação direta de causas macrossociais sobre ações individuais. Os indivíduos não possuem uma visão global da sociedade e reagem às mudanças ocorridas em sua vizinhança, que é afetada pelas propriedades globais da sociedade (SAWYER, 2003, p. 341). Para isso ocorrer, os agentes não precisam ter uma representação mental da sociedade como um todo. Se eles forem cognitivamente complexos o suficiente para ter tal representação, pode-se considerar que as mudanças macrossociais se refletirão na visão que têm da sociedade e as mudanças em seu comportamento serão reações às mudanças em suas representações da realidade. Em ambos os casos, é desnecessário pressupor algo misterioso como “o todo ser maior do que as partes que o compõem”: o que ocorre é um processo contínuo em que as interações entre os agentes modificam o ambiente e os agentes reagem ao ambiente modificado.

Em princípio, as leis emergentes poderiam ser dedu-zidas das leis que regem as interações entre os elementos e vice-versa, o conhecimento do resultado da agregação, ou seja,

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do fenômeno emergente, permitiria conhecer as propriedades dos elementos. Na prática, porém, usar as leis próprias de um nível de complexidade pode contribuir pouco ou nada para a compreensão do que se passa no outro nível. Por exemplo, um cientista poderia, a partir das características dos átomos de hidrogênio e de oxigênio, dizer quais seriam as proprieda-des químicas de uma substância cujas moléculas tivessem dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Fazendo o caminho inverso, ele talvez também pudesse dizer quais são as caracte-rísticas dos átomos que compõem uma substância que tem as características da água. Entretanto, seria preciso realizar cál-culos de enorme complexidade para se passar das caracterís-ticas da eletrosfera dos átomos de oxigênio e de hidrogênio a uma afirmação como, por exemplo, de que a água seria incolor, inodora e teria um ponto de ebulição de 100ºC quando sob pressão de uma atmosfera. De maneira geral, ao tentar explicar o que ocorre num nível de complexidade da realidade é mais conveniente buscar a simplicidade e se contentar com as leis que expliquem o fenômeno da maneira mais satisfatória e com o menor esforço. Como argumenta Runciman (1972, p. 31), a sociologia continuará tendo seu espaço no mundo acadêmico mesmo sendo, em alguns aspectos, redutível à psicologia.

Mais do que apenas uma questão de conveniência, segundo Sawyer (2003, p. 353-5), em alguns casos, a redu-ção pode ser matematicamente impossível. Nesses casos, em se tratando de MBAs, somente a simulação seria capaz de revelar o comportamento global do sistema e dos agen-tes (SAWYER, 2003, p. 329).

Uma outra característica comum a muitos MBAs é que os agentes não conhecem o resultado agregado de suas ações, mas esse resultado altera seu “bem-estar”. Ou seja, modela-

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-se o que na literatura em ciências sociais é frequentemente cha mado de “consequências não intencionais das ações dos indiví duos” (BONABEAU, 2002, p. 7280; RAUCH, 2002).

Rauch (2002) prevê que modelos de sociedades arti-ficiais serão usados em lugar dos tradicionais modelos de regressão. Também otimistas são Epstein e Axtell (1996, p. 20): “O que constitui uma explicação de um fenômeno social observado? Talvez um dia as pessoas interpretem a questão, ‘É possível explicá-lo?’ como sendo ‘É possível re-construí-lo?’”.

Alguns experimentos mentais dispensam o uso do computador para ser formalizados. A situação ideal para formalização via computador é aquela em que um número grande — mas limitado — de parâmetros ou de variáveis existe, os agentes são numerosos e heterogêneos, há muitas interações entre os agentes e eles se adaptam à nova situação após cada interação (BONABEAU, 2002, p. 7287). Caso con-trário, não vale a pena perder tempo fazendo um programa de computador. Para casos simples, papel e lápis seriam ins-trumentos adequados para resolver o problema com rapidez. Além disso, não são todas as situações que podem ser ade-quadamente modeladas “de baixo para cima”. Como dizem Macy e Willer (2002, p. 148),

MBAs são apropriados para o estudo de processos que não têm coordenação central, incluindo a emergência de organizações que, uma vez estabelecidas, impõem ordem de cima para baixo.

As técnicas de produção de MBAs evoluiriam mais rapida-mente se houvesse um maior número de cientistas sociais envolvidos em sua formulação. Ocorre, entretanto, que os cientistas sociais do

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mundo inteiro geralmente não são muito afeiçoados à matemática e não se sentem atraídos por linguagens de programação.

Henrickson e MacKelvey (2002) concordam com as críti-cas dos autores pós-modernos a várias tentativas feitas de tornar as ciências sociais mais científicas. Eles, porém, discordam da proposta pós-modernista de abandonar qualquer pretensão de se ter uma ciência social e defendem os modelos baseados em agentes como uma saída metodológica para se fazer ciência so-cial a partir dos pressupostos pós-modernos acerca da realidade social. Isso porque os MBAs permitem fazer modelos probabi-lísticos e com agentes bastante heterogêneos.

Os MBAs podem, em alguns casos, ajudar a ampliar o poder de experimentos mentais e essa me parece ser sua maior utilidade. Mas experimentos mentais sempre fizeram parte da história da ciência e estamos, portanto, diante de uma técnica de pesquisa promissora, mas não de uma revolução metodológica. Eles permitem realizar experimentos mentais com mais rigor do que a mente desassistida porque as relações entre os agentes podem ser expressas matematicamente com clareza (mesmo que em forma probabilística)7:

Uma vantagem de usar simulações feitas em compu-tador é a necessidade de se pensar muito claramente sobre os pressupostos básicos para se conseguir criar

7 Neste capítulo, frequentemente falamos da formalização matemática de teo-rias. Há, entretanto, uma questão filosófica subjacente a essa discussão que não foi e não será tratada neste livro: por que a matemática funciona na prática? Ou seja, por que uma porção considerável do mundo é previsível se utilizarmos fórmulas matemáticas adequadas? Se, por exemplo, soubermos a velocidade e a aceleração de um corpo poderemos calcular quanto tempo ele demorará para percorrer uma determinada distância e, se medirmos o tempo efetivamente gasto, perceberemos que nossos cálculos sempre nos permitirão fazer previsões bastante satisfatórias. Por quê?

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um modelo de simulação útil. Toda relação a ser mo-delada tem que ser especificada com exatidão. Um valor tem que ser dado a cada parâmetro, pois, caso contrário, será impossível rodar a simulação. Esse dis-ciplinamento também implica que o modelo é poten-cialmente aberto a inspeção por outros pesquisadores, em todos os seus detalhes. Entretanto, esses benefícios de clareza e precisão também têm suas desvantagens. A simulação de processos sociais complexos envolve a estimação de muitos parâmetros, mas dados adequa-dos para fazer essas estimativas podem ser difíceis de obter (GILBERT, 2004, p. 1).

As sociedades artificiais são sistemas adaptativos com-plexos nos quais frequentemente ocorrem mudanças súbitas que o idealizador do modelo não havia antecipado. Nesses casos, é difícil prever tanto o momento em que a mudança ocorrerá quanto o perfil exato da sociedade resultante. Entre-tanto, uma vez que se perceba a emergência de um fenômeno, é possível repetir a simulação, observando cuidadosamente como os diversos parâmetros evoluíram e como se alterou o comportamento dos agentes imediatamente antes do fenôme-no de interesse. Embora o pesquisador frequentemente seja surpreen dido com os resultados do modelo que elaborou, os resultados das simulações, longe de serem aleatórios, são repli-cáveis. Dessa forma, consegue-se explicar o que ocorreu.

A promessa dos modelos baseados em agentes é exa-tamente essa: construir modelos de fenômenos sociais com-plexos a partir da ação de uma multiplicidade de agentes heterogêneos. Se as consequências não intencionais das ações dos agentes e se as mudanças súbitas na configura-ção da sociedade forem semelhantes ao que ocorre em so-

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ciedades reais, o pesquisador estará autorizado a supor que os mecanismos que levam à ocorrência dos fenômenos reais se assemelham aos mecanismos que levam à produção do fenômeno na sociedade artificial. Nesses casos, teríamos ex-plicações de macrofenômenos a partir de ações individuais e explicações funcionalistas seriam usadas apenas se fossem mais convenientes e não por falta de opção. Os MBAs permi-tem a máxima exploração do individualismo como perspec-tiva metodológica de compreensão da sociedade.

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2Modelos de Evolução da Cooperação

Ao ajudar outro, um indivíduo estaria aumentando as chances do outro sobreviver e se reproduzir. Dadas as limita-ções naturais de recursos, ao aumentar as chances do outro, ele estaria reduzindo as próprias chances de sobrevivência. Se o mecanismo básico da seleção natural consiste na maior taxa de sobrevivência e reprodução dos indivíduos melhor adaptados, como explicar que os indivíduos ajudem uns aos outros? Estudiosos de várias disciplinas têm pro posto res-postas a essa pergunta.

Durante a realização da pesquisa, deparei com mui-tos modelos de evolução da cooperação que enfatizavam a simplicidade, sem intenção de serem minimamente realistas. Entretanto, considero que o objetivo de construir modelos de evolução da cooperação na espécie humana também é váli-do. Nas seções seguintes, faço uma breve revisão da literatura que contribuiu mais diretamente para o desenvolvimento do modelo apresentado no capítulo 5. Em sua maioria, os mo-delos simples de evolução da cooperação que encontrei não são discutidos aqui.

2.1 Seleção de Parentesco

Uma solução para o problema da evolução da cooperação denominada seleção de parentesco é explicada por Dawkins (1979) pelo uso de uma metáfora em que os organismos são

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máquinas de sobrevivência de seus genes egoístas. A metáfora se justifica porque um organismo bem-adaptado a seu meio ambiente deixará um maior número de descendentes do que organismos mal-adaptados. Ou seja, os genes existentes no código genético desse organismo produzirão um número maior de cópias de si mesmos do que outros genes e, portanto, sua presença na geração seguinte de uma determinada população será proporcionalmente maior. Genes são apenas moléculas e, obviamente, não têm nenhuma espécie de sentimento, egoísta ou altruísta. Mas tudo se passa como se os genes fossem seres egoístas que manipulam os organismos em que vivem com o objetivo de produzir o maior número possível de cópias de si mesmos. Continuando a metáfora, eles não teriam nenhuma preocupação com o organismo que ocupam e se, por algum motivo, destruir esse organismo for o meio mais eficaz para produzir cópias de si mesmo, então, isso será feito.

É interessante observar que os indivíduos das espécies de reprodução sexuada, a rigor, não se reproduzem. Eles nas-cem, crescem, fazem cópias de trechos de seu código genético e morrem. Somente seria perfeitamente apropriado falar em indivíduos se reproduzindo se eles produzissem clones de si próprios. Quem vive e morre são os indivíduos, mas, de fato, os genes se reproduzem.

Todos os organismos de determinada espécie comparti-lham um grande número de genes, mas somente parentes pró-ximos compartilham uma quantidade significativa de alguns genes raros. A teoria da seleção de parentesco leva isso em consideração e afirma que os genes produzirão um maior nú-mero de cópias de si mesmos se os organismos que os portam ajudarem seus parentes próximos a sobreviver e se reproduzir, mesmo isso implicando um certo custo para o próprio orga-

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nismo. Ou seja, ao ser genuinamente altruísta8 e fazer sacrifí-cios para ajudar um parente próximo, um indivíduo poderá estar agindo de modo a maximizar o número de cópias dos seus próprios genes (e particularmente do gene que o leva a se comportar de modo altruísta). Voltando à metáfora, o gene egoísta produz um organismo altruísta, mas somente com pa-rentes próximos. Temos nesse caso uma seleção de parentes-co. Em termos precisos, de acordo com a regra de Hamilton, publicada em 1964 (BUSS, 1999, p. 277; SILK, 2002, p. 851-2), um ato será favorecido pela seleção de parentesco se o benefí-cio, b, multiplicado pelo coeficiente de parentesco, p, for maior do que o custo para o altruísta, c: bp > c .

2.2 Altruísmo Recíproco

Uma segunda solução para o problema da cooperação, desta vez comum tanto a biólogos quanto a cientistas políticos, é a do altruísmo recíproco. De acordo com essa teoria, será benéfico para um indivíduo ajudar outro se isso implicar uma probabilidade significativamente maior de no futuro receber ajuda do outro. Nesse caso, é discutível se temos um indiví-duo genuinamente altruísta ou um egoísta com visão de longo prazo. Por um lado, examinando o indivíduo de perto, fazen-do-lhe perguntas sobre sua motivação para ajudar, podemos concluir que ele ajuda outros porque seus sentimentos o levam a querer ajudar sem nenhuma intenção de receber algo em tro-ca. Ele simplesmente se sente bem ao ajudar o outro. Por ou-tro lado, tais sentimentos evoluíram na história de sua espécie

8 Neste livro, qualifico um comportamento altruísta de genuíno ou puro quando ele reduz as chances de sobrevivência e reprodução do organismo, mesmo con-siderando as consequências de longo prazo.

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pela razão egoísta mencionada acima. De qualquer maneira, dois indivíduos que estabelecem uma relação de altruísmo re-cíproco de longa duração podem ser chamados de amigos.

Em grupos grandes, os indivíduos, em sua maioria, não são nem parentes nem amigos. Apesar disso, alguns psicólogos evolucionistas argumentam que o altruísmo recíproco evoluiu na espécie humana durante o período de milhões de anos em que nossos ancestrais viveram em grupos pequenos. Nessas circunstâncias, ajudar um outro indivíduo qualquer do grupo seria, provavelmente, ajudar um parente próximo ou, pelo me-nos, alguém com quem se conviveria ainda por muito tempo e, portanto, que teria muitas oportunidades de retribuir o favor. A seleção de parentesco e o altruísmo recíproco explicariam a evolução da cooperação nesses grupos. Atualmente, é rotineiro o encontro com estranhos, mas dada a raridade de tais encon-tros no passado evolutivo de nossa espécie, os seres humanos seriam geralmente predispostos a cooperar e seriam cogniti-vamente pouco preparados para discriminar entre estranhos e parentes ou amigos no momento de ser altruístas. Psicólogos evolucionistas argumentam que nossos mecanismos psicoló-gicos nos levam a agir altruisticamente em situações em que ajudar o outro já não é mais adaptativo.

A reciprocidade seria uma boa explicação para a exis-tência do altruísmo apenas para grupos pequenos e não amea-çados de extinção, ou seja, grupos em que a probabilidade de interações futuras é alta, mas para alguns autores é pouco provável que longos períodos de estabilidade tenham sido pre-dominantes na pré-história da humanidade (GINTIS, 2000, p. 170). Henrich e Boyd (2001, p. 79) consideram que a com-binação de altruísmo recíproco e seleção de parentesco não é suficiente para fazer a cooperação evoluir em grupos grandes.

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Segundo Gintis et al. (2003, p. 154), é necessário mais do que a teoria do altruísmo recíproco para explicar o sucesso de nossa espécie, e Henrich enumera algumas razões pelas quais estaria errada a tese de que a cooperação que evolui como altruísmo recíproco continuaria a ser praticada mesmo em períodos em que não fosse adaptativa:

Essa explicação tem um número de problemas. Primei-ro, mesmo em sociedades de pequena escala, há muitos parentes distantes e, provavelmente, um bom número de estranhos que os altruístas precisam distinguir de pa-rentes próximos […]. A ideia de que indivíduos em so-ciedades de pequena escala não têm encontros efêmeros com anônimos não possui base empírica […]. Segundo, embora a cooperação em larga escala seja prevalecente em muitas sociedades, as pessoas em todos os lugares favorecem parentes em detrimento de não parentes — mostrando que podemos fazer a distinção, e o fazemos. Terceiro, muitos dos primatas não humanos também vi-vem em sociedade de pequena escala, mas não mostram nenhuma tendência generalizada a cooperar com todos os membros de seu grupo (HENRICH, 2004, p. 9).

A evolução da cooperação será favorecida se os indi-víduos puderem se recusar a entrar em relações associativas com os não cooperadores, ou seja, se praticarem o ostracismo dos caronas. Se a probabilidade de haver encontros futuros for permanentemente alta, o ostracismo será suficiente para que a cooperação evolua. Entretanto, dadas as condições reinantes no nosso passado evolutivo, é mais provável terem sido co-muns períodos em que não havia nenhuma certeza de intera-ções futuras e, portanto, a prática do ostracismo parece ainda não ser suficiente para garantir a evolução da cooperação:

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[…] quando um grupo está sob ameça de extinção ou dispersão devido a, digamos, guerra, pestes ou fome, é quando a cooperação mais se torna necessária à sobre-vivência. Durante tais períodos críticos, os quais foram comuns na história evolutiva da nossa espécie, ganhos futuros da cooperação se tornam muito incertos, uma vez que a probabilidade do grupo se dissolver se torna alta. A ameaça de ostracismo tem, então, pouco peso e a cooperação não pode ser mantida se os agentes atuam em interesse próprio. Portanto, precisamente quando um grupo mais necessita de comportamento pró-social, a cooperação baseada no altruísmo recíproco irá entrar em colapso (GINTIS et al., 2003, p. 163).

É necessário que os indivíduos tomem uma atitude mais ativa do que a simples prática do ostracismo dos caronas ou a associação preferencial com amigos de confiabilidade já com-provada.

Segundo Richerson e Boyd (1998, p. 5), nossas mais anti-gas propensões a sentir emoções se formaram sob pressão dos processos de seleção de parentesco e altruísmo recíproco, mas essas emoções sociais seriam suficientes apenas para manter a coesão de grupos pequenos. O desenvolvimento da lingua-gem permitiu o desenvolvimento de sistemas punitivos mais elaborados do que os derivados do simples sentimento de in-dignação despertado momentaneamente. Com a linguagem, os indivíduos podem dialogar e conhecer os argumentos uns dos outros, modificando o próprio juízo do que é certo ou errado. A compreensão das motivações para a ação permite a elaboração de normas que preveem a punição não de todo e qualquer indi-víduo que não tenha contribuído para a produção de um bem coletivo, mas apenas daqueles que, mesmo tendo condições ob-jetivas, intencionalmente decidiram trapacear.

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2.3 Seleção de Grupo

Seleção de grupo ocorre quando alguns grupos são ex-tintos e outros sobrevivem, havendo características biologica-mente determinadas dos indivíduos dos grupos sobreviventes que favoreceram o sucesso relativo do grupo.

Um pré-requisito para a existência de seleção de gru-po é que as características dos integrantes dos grupos levem os diversos grupos de uma mesma espécie a se reproduzir a uma taxa diferenciada. Em casos extremos, isso implicaria a sobrevivência dos grupos mais aptos e a extinção dos grupos mal-adaptados. Como resultado da seleção de grupo, os ge-nes dos membros dos grupos bem-sucedidos estariam repre-sentados em maior proporção nas gerações seguintes.

É claro que um requisito para haver seleção de grupo é a heterogeneidade entre os grupos. No caso do altruísmo, há ainda um outro pré-requisito importante. É preciso que as outras forças seletivas — atuando sobre os indivíduos e desfa-voráveis à evolução do altruísmo — sejam mais fracas do que a seleção de grupo. A seleção de grupo somente seria capaz de promover a evolução da cooperação nas circunstâncias em que ser um cooperador num grupo de cooperadores trouxesse para o indivíduo vantagens maiores do que ser um dos ca ronas que se beneficiam dos bens públicos sem ajudar a produzi-los. Além disso, genes favoráveis ao altruísmo somente podem proliferar se os benefícios para o indivíduo, decorrentes de estar num grupo que não será extinto, forem superiores aos benefícios de ser um carona.

Um grupo de cooperadores consegue, em média, um desempenho melhor do que um grupo de não cooperadores e, portanto, é vantajoso para um indivíduo fazer parte de um

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grupo de cooperadores, mas, geralmente, é ainda mais van-tajoso ser carona do que cooperador num grupo de coopera-dores. Por isso, na biologia, a ocorrência de seleção de grupo é considerada uma explicação plausível para a evolução da cooperação apenas em pouquíssimas circunstâncias. É fácil imaginar que se a cooperação dependesse apenas da seleção de grupo sua evolução seria altamente instável: haveria uma tendência ao aumento constante no número de altruístas na população como um todo devido ao sucesso dos grupos de altruístas, mas, simultaneamente, haveria uma proliferação constante dos caronas em todos os grupos. Na verdade, se de-pender apenas da seleção de grupo, é mais fácil imaginar o colapso do altruísmo do que sua evolução.

2.4 Reciprocidade Forte

Alguns autores têm chamado de reciprocidade for-te a prática de punir os não cooperadores mesmo que isso implique um custo para si próprio, e mesmo que não haja perspectiva de ganhos compensadores em relações futuras (GINTIS, 2000; HENRICH; BOYD, 2001; GINTIS et al., 2003; HENRICH, 2004).

Mecanismos equivalentes à reciprocidade forte já ha-viam sido apresentados anteriormente na literatura. Milo e Quiatt (1994, p. 335), por exemplo, mencionaram que sanções culturais como o ostracismo ou homicídio poderiam ser su-ficientemente efetivas para desencorajar o indivíduo a prati-car atos proscritos. As normas e metanormas dos modelos de Axelrod (1997) também constituem mecanismos equivalentes à reciprocidade forte, como veremos adiante (Seção 2.7).

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2.4.1 Evidências empíricas

Gintis et al. (2003) apresentam evidências empíricas que deixam claro haver uma grande variação no nível de coope-ração de diversas sociedades. Na terminologia da teoria dos jogos, pode-se dizer que diferentes sociedades alcançaram diferentes equilíbrios. Em algumas, o nível de cooperação é elevado e generalizado; em outras, é baixo e restrito a alguns setores da vida social. Em algumas, ganha-se prestígio sendo generoso; em outras, aceita-se qualquer migalha oferecida porque a generosidade não é algo comum. Em todas, entre-tanto, os cooperadores estão dispostos a incorrer em custos pessoais para punir os não cooperadores.

Em um dos experimentos realizados em várias socieda-des, os sujeitos participavam de dez rodadas de um jogo em que deveriam contribuir para a produção de um bem público. O jogo se iniciava com um nível de contribuição mais alto do que seria de se esperar de atores racionais e egoístas, mas caía gradualmente. Entretanto, os resultados encontrados estavam de acordo com a teoria da reciprocidade forte:

A explicação para o declínio na cooperação ofere cido pelos sujeitos quando entrevistados após o experi-mento foi de que sujeitos cooperativos se tornaram irritados com os que contribuíram menos do que eles próprios e retaliaram contra os caronas da única for-ma disponível para eles — pela redução das suas pró-prias contribuições. […] quando punição custosa foi permitida, a cooperação não deteriorou e, no jogo do parceiro, apesar da anonimidade estrita, a cooperação cresceu quase até a completa cooperação, mesmo na rodada final (GINTIS et al., 2003, p. 160-1).

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2.4.2 Obstáculos à evolução da reciprocidade forte

Como vimos acima, há evidências de que a reciprocidade forte evoluiu na espécie humana. Mas, para isso ter acontecido, foi necessário a superação do obstáculo representado pelo custo da punição para quem pune. Gintis argumenta que o apareci-mento de armas foi um dos fatores que reduziu esse custo:

[…] as habilidades superiores do Homo sapiens para fabricar ferramentas e caçar, a habilidade para infligir punições custosas […] a um baixo custo para o puni-dor […], provavelmente distinguem humanos de ou-tras espécies que vivem em grupos e reconhecem os indivíduos, e, portanto, para as quais o altruísmo recí-proco pode ocorrer (GINTIS, 2000, p. 174).

Essa, aliás, é uma característica da condição humana já percebida por Hobbes, que considerava os seres humanos es-sencialmente iguais, entre outros motivos, porque mesmo um homem fisicamente fraco, usando armas, poderia matar um homem forte. É claro que as armas podiam e podem ser usa-das tanto por cooperadores quanto por trapaceiros, e os atuais crimes contra a propriedade não deixam dúvida de que, atual-mente, os não cooperadores são os maiores utilizadores de ar-mas. Entretanto, num mundo em que não há grande acúmulo de bens, o maior benefício que se obtém de um outro indiví-duo é por meio de favores feitos em momentos de dificuldade. Nessas circunstâncias, os cooperadores não seriam prejudica-dos pela eliminação dos trapaceiros, mas estes ficariam sem ter quem explorar se eliminassem os cooperadores.

Há, ainda, um certo tipo de punição de não cooperado-res que não implica custos elevados para quem pune. Trata-

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-se do caso em que um indivíduo normalmente cooperador trapaceia outro que havia trapaceado alguém anteriormente, mas não recebe nenhuma punição por isso. Nesse caso, é do inte res se egoístico de cada um punir os infratores já que isso implica um ganho e não um custo. Essa situação faz parte do repertório de ditados populares brasileiros (“Ladrão que rouba ladrão me rece cem anos de perdão”) e foi levada em considera-ção por Greif (1994) num modelo em que explorava a relação entre cultura e estrutura institucional. Como veremos na seção 2.9, alguns modelos de reciprocidade indireta fazem uso dessa cooperação condicional.

Outra característica da condição humana que pode tor-nar mais fácil a tarefa de punição é a capacidade de ação coor-denada. Nem sempre é preciso agir sozinho para punir um não cooperador. Muitas vezes, é possível fazer isso coletivamente, diluindo o custo da punição.

Não obstante esses atenuantes, punir os não coopera-dores continua sendo um obstáculo à evolução da cooperação e os autores que defendem a hipótese de que a evolução da cooperação se deu através da reciprocidade forte argumentam que o processo de transmissão cultural de conhecimentos e comportamentos foi importante no processo evolutivo.

2.4.3 Transmissão cultural

Segundo Mark (2002, p.  325), transmissão cultural não é propriamente a transmissão direta de comportamento, mas a transmissão de informações que afetam o comportamento, e há evidências empíricas de que a transmissão cultural é um dos fa-tores que levam à cooperação. “Estudos experimentais mostram

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que crianças expostas a um modelo adulto que se comporta al-truisticamente […] se comportam mais altruisticamente […] do que crianças expostas a um modelo de adulto egoísta” (MARK, 2002, p. 328).

Para os teóricos da reciprocidade forte, aqueles que po-dem ser considerados receptores das informações têm um papel ativo no processo de transmissão cultural de maneiras de agir. Henrich e Boyd mencionam dois mecanismos que podem levar um indivíduo a tentar copiar o comportamento de outro e que, por conseguinte, podem ser importantes para a evolução da co-operação: (1) tendência a imitar o comportamento daqueles que têm sido mais bem-sucedidos segundo algum critério de suces-so; (2) tendência a ser conformista e “copiar o comportamento mais frequente na população” (HENRICH; BOYD, 2001, p. 79). Ao imitar os mais bem-sucedidos ou o comportamento mais frequente num grupo, o indivíduo tem uma boa probabilidade de estar fazendo a coisa certa para ser bem-sucedido sem a ne-cessidade de passar pela custosa experiência de aprender com os próprios erros (HENRICH; BOYD, 2001, p. 80).

Como estamos falando de propensão biológica à imita-ção, o critério de sucesso deve estar direta ou indiretamente relacionado a sucesso reprodutivo. Na prática, pelo menos nas sociedades contemporâneas com padrão socioeconômico ele-vado, os seres humanos reais não parecem ter um desejo inato de ter muitos filhos e os indivíduos de prole numerosa não costumam ser considerados modelos a ser seguidos. Portan-to, sejam quais forem os critérios utilizados pelas pessoas para decidir quem imitar, as consequências para o sucesso reprodu-tivo podem ser indiretas.

Um forte candidato a mecanismo motivacional à imi-tação dos mais bem-sucedidos é o já discutido sentimento de

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inveja (ver p. 51). A propensão a sentir inveja é adaptativa por-que motiva o indivíduo a aproveitar melhor o que a natureza e a sociedade têm a oferecer.

Um indivíduo emite informações por meio da fala ao mesmo tempo que exterioriza maneiras de agir específicas. Se esse for um indivíduo visto como bem-sucedido, outros tenta-rão imitá-lo, mas o receptor das informações terá que inter-pretar o significado das mensagens para que elas possam ser incorporadas a seu estoque de conhecimentos e certamente ha-verá falhas nesse processo. As ações também não serão copia-das com precisão e o resultado serão valores muito mais altos para a “taxa de mutação” num processo de transmissão cultu-ral do que num processo de transmissão genética, ou seja, um comportamento culturalmente condicionado se modifica mais rapidamente e está mais sujeito a oscilações aleatórias do que comportamentos geneticamente condicionados. Assim como no processo de diferenciação genética, as barreiras naturais, como rios, mares e montanhas, ao reduzirem a migração de in-divíduos entre os grupos, levariam à heterogeneidade cultural, mas o distanciamento cultural entre grupos que tenham pouco contato será muito mais rápido do que a diferenciação genética que poderia levar à constituição de espécies distintas. Assim, um processo de permanente transformação da cultura tende a levar grupos relativamente isolados à diferenciação comporta-mental, enquanto os processos de transmissão cultural contri-buem para manter a homogeneidade dos comportamentos no interior dos grupos (HENRICH, 2004).

É de se esperar que a tendência dos indivíduos de imitar os outros se mantenha próxima de algum nível ótimo. Se a taxa de transmissão cultural conformista for muito alta, a cultura se torna estática por não haver difusão de novas formas de com-

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portamento, e isso representaria uma adaptação mais lenta a situações novas. Se os indivíduos forem demasiadamente ino-vadores, ficarão em desvantagem porque inovar significa arcar com os custos dos próprios erros.

Os mecanismos de transmissão cultural podem levar os indivíduos de diversos grupos de uma mesma espécie a uma grande diversidade de comportamentos. Assim, contanto que os mecanismos de transmissão cultural conformista e de imi-tação dos mais bem-sucedidos sejam suficientemente fortes, como o são na espécie humana, será de se esperar que os di-versos grupos humanos apresentem diferentes proporções de cooperadores e de não cooperadores. Como sabemos, uma proporção elevada de cooperadores não se mantém estável por um longo período porque os não cooperadores são em mé-dia mais bem-sucedidos e, consequentemente, aumentam de número por serem imitados pelos demais e por terem maior sucesso reprodutivo.

Portanto, se a evolução da cooperação dependesse apenas da tendência a copiar os indivíduos mais bem-sucedidos, sua ocorrência seria pouco provável, pois um indivíduo pode estar entre os mais bem-sucedidos tanto por ser um cooperador num grupo de cooperadores quanto por ser um desertor num grupo onde predominam cooperadores. Dificilmente, um grupo che-garia a um equilíbrio cooperativo e, mesmo que chegasse, seria muito vulnerável à migração de indivíduos de um grupo para outro. Um grupo de altruístas poderia receber um não altruísta que passaria a obter vantagens nas suas relações com os coope-radores. É, pois, preciso mais do que difusão cultural para a evo-lução do altruísmo.

Segundo Henrich (2004), se um ou mais grupos, em de-corrência de oscilações culturais aleatórias, vier a apresentar

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uma elevada proporção de cooperadores, e se os agentes forem não apenas cooperadores mas indivíduos dispostos a punir os não cooperadores, a transmissão cultural conformista seria capaz de estabilizar a cooperação nesse grupo através da es-tabilização da punição dos não cooperadores. Punir é custoso também para quem pune, mas, mesmo assim, os demais indi-víduos, por serem conformistas, adquiririam o hábito de punir os que não o são, e o indivíduo punido seria, em decorrência da punição, ainda menos bem-sucedido do que o punidor.

A estabilização da cooperação no interior de um grupo ocorreria por ter-se tornado vantajoso para o indivíduo coope-rar. Os indivíduos dos grupos de cooperadores produziriam um maior número de descendentes do que aqueles dos grupos de não cooperadores. Paralelamente, se puderem observar e imitar os mais bem-sucedidos de outros grupos, também os membros de grupos de não cooperadores se tornariam cooperadores e punidores, pois os cooperadores dos grupos de cooperadores seriam os indivíduos mais bem-sucedidos de toda a população. Além disso, internamente aos grupos de cooperadores, a seleção natural atuando sobre o nível dos indivíduos passaria a facilitar a evolução de genes favoráveis ao altruísmo porque os genetica-mente predispostos a cooperar raramente não cooperariam e, consequentemente, quase nunca seriam punidos.

O modelo da reciprocidade forte é um modelo basea-do em equações que se utiliza da noção de seleção de grupo para elaborar uma hipótese sobre como ocorreu a evolução da coope ração entre os humanos. O modelo tem como ponto de partida a equação de Price, que mede a variação na frequên-cia de um alelo numa população de uma geração para outra, tendo por base a soma da variação devida à pressão seletiva sofrida pelo indivíduo dentro do grupo a que pertence e da va-

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riação devida à aptidão de cada grupo (ou seja, aptidão média dos indivíduos de um grupo).

Como vimos no capítulo anterior, há fortes restrições à complexificação de tais modelos. Pepper e Smuts argumentam que modelos de seleção em múltiplos níveis podem ser mais ricamente abordados por modelos baseados em agentes:

Virtualmente todos os modelos quantitativos de se-leção de grupo publicados são baseados em sistemas de equações. Entretanto, tais modelos têm várias limi-tações para modelar seleção em múltiplos níveis. Pri-meiro, eles requerem pressupostos simplificadores, tais como população homogênea e aleatoriamente mistu-rada e populações de tamanho infinito, que podem, de modo importante, limitar as possibilidades de resul-tados. Segundo, em modelos baseados em equações, a estrutura da população (a divisão da população em grupos mais ou menos discretos, ou a ausência de tais divisões) tem que ser pressuposta a priori (PEPPER; SMUTS, 2000, p. 3).

Nas próximas seções, revisaremos alguns modelos de evolução da cooperação feitos em computador. De maneira geral, quanto mais recente, maior a complexidade e a busca de realismo em tais modelos.

2.5 Torneios de Dilema do Prisioneiro

Axelrod (1984) organizou dois torneios em que várias pessoas inscreveram estratégias que jogariam o Dilema do Prisioneiro. No primeiro, 14 estratégias foram escritas por es-pecialistas em teoria dos jogos e emparelhadas umas com as outras para partidas de 200 movimentos cada uma. No segun-

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do torneio foram inscritas 62 estratégias e, desta vez, ao invés de um número predefinido de movimentos cada partida tinha uma probabilidade de 0,00346 de terminar no próximo mo-vimento. De certa forma, podemos considerar cada estratégia como sendo um agente.

As estratégias eram as mais diversas. A mais simples de todas era Tit for Tat, que cooperava no primeiro movimento e, nos seguintes, repetia o movimento anterior da estratégia com a qual estivesse emparelhada. Friedman nunca era o primeiro a deixar de cooperar, mas, uma vez que o outro desertasse, para-va definitivamente de cooperar. Joss agia como Tit for Tat, mas com uma probabilidade de 0,1 de tomar a iniciativa de deser-tar. Essas eram algumas das estratégias disputando os torneios e a vencedora foi Tit for Tat, que em nenhuma partida pontuou mais do que a estratégia com a qual jogava, mas que venceu os torneios por ter alcançado a mais alta pontuação média.

No primeiro torneio, a estratégia Tit for Two Tats teria sido a vencedora se tivesse sido inscrita por alguém. Essa es-tratégia era mais complacente e somente deixava de cooperar se a outra estratégia não cooperasse por dois movimentos se-guidos. No segundo torneio, Tit for Two Tats foi inscrita, mas várias das novas estratégias conseguiam explorar melhor a sua “bondade” e, mais uma vez, Tit for Tat foi a vencedora.

As características que fizeram de Tit for Tat a estratégia vencedora foram: (1) era gentil no primeiro movimento: sem-pre iniciava a partida com um movimento de cooperação; (2) era vingativa e firme: deixava de cooperar imediatamente após um ato não cooperativo da outra estratégia; (3) sabia perdoar: voltava a cooperar tão logo a outra estratégia cooperasse num de seus movimentos.

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A superioridade da estratégia Tit for Tat em situações coope rativas tem sido questionada por ela ser vulnerável a fa-lhas de comunicação e, também, porque frequentemente pro-blemas de cooperação envolvem mais de duas pessoas (OLIVA et al., 2006, p. 59). Nos torneios de Axelrod, não havia falhas de comunicação: os agentes sabiam com exatidão qual havia sido o último movimento do outro agente. Se os torneios incluíssem falhas na comunicação, talvez, Tit for Two Tats tivesse vencido o segundo torneio. Outro problema consistiu no torneio mo-delar apenas o Dilema do Prisioneiro jogado por duas pessoas, enquanto a vida real inclui poucas situações exatamente equi-valentes ao Dilema do Prisioneiro. A sociedade não pode ser caracterizada como uma multidão de díades. Pelo contrário, a maioria das relações sociais envolve mais de duas pessoas e praticamente todas as relações têm consequências para pessoas não diretamente envolvidas.

2.6 Caça ao Cervídeo

Skyrms (2004) propõe que Caça ao Cervídeo é um jogo mais importante para compreender a cooperação existente nas sociedades do que o Dilema do Prisioneiro. No jogo, ilustrado com uma situação imaginada por Rousseau (1973, p. 267), dois indivíduos concordam em se unir para caçar um animal de grande porte, uma tarefa difícil de ser executada por um único indivíduo. Os jogadores podem, então, escolher uma de três ações: (1) permanecer no seu posto e ajudar o outro na caça; (2) abandonar o empreendimento coletivo e, sozinho, tentar capturar uma lebre; (3) ambos abandonam a Caça ao Cerví-deo e, juntos, perseguem uma lebre. No caso de caça conjunta bem-sucedida, a carne seria dividida igualmente entre os dois

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jogadores. No caso de caça individual, não haveria divisão. Na Figura 2, são estipulados valores para uma lebre, para um cer-vídeo e para as diversas probabilidades envolvidas no jogo, e é apresentada a consequente estrutura de premiação.

Figura 2 – Jogo da Caça ao Cervídeo

Valor de um cervídeo: 60Valor de uma lebre: 20Prob. caçar cerv. individualmente: 0,05Prob. caçar lebre individualmente: 0,45Prob. caçar cerv. coletivamente: 0,33Prob. caçar lebre coletivamente: 0,50

10, 10

3, 9 5, 5

9, 3C

L

C LJogador 1

Jogador 2

Fonte: Elaboração própria.

Assim como no Dilema do Prisioneiro, na Caça ao Cer-vídeo o pior resultado ocorre quando um indivíduo se dispõe a cooperar e o outro abandona a ação conjunta. Nesse caso, ele não terá praticamente nenhuma chance de conseguir caçar o cervídeo sozinho. Mas, ao contrário do Dilema do Prisio-neiro, o máximo de ganho não é obtido quando se deserta enquanto o outro coopera.

No Dilema do Prisioneiro, há um conflito entre ra-cionalidade individual e benefício mútuo. Na Caça ao Cervídeo, o que é racional para um jogador escolher depende das suas crenças sobre o que o outro irá esco-lher. Tanto a caça ao cervídeo como a caça à lebre são equilíbrios de Nash (SKYRMS, 2004, p. 3).

Skyrms (2004, p. 5) chama a atenção para o fato de que o Dilema do Prisioneiro com dois jogadores tem sua estrutura de premiação alterada quando jogado reiteradamente, trans-formando-se num jogo de Caça ao Cervídeo. Se, por exem-plo, a probabilidade de haver uma nova partida do Dilema do

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Prisioneiro for de 0,6, e se somente a cooperação mútua levar a nova cooperação, a estrutura de premiação do Dilema do Prisioneiro apresentado no capítulo anterior (Figura 1, p. 45) seria convertida na estrutura de premiação da Figura 2.9

Skyrms (2004, p. 9) também argumenta que a transmis-são cultural pode transformar o Dilema do Prisioneiro em Caça ao Cervídeo, pois o equilíbrio de um jogo em que os agentes vivem num tabuleiro e jogam Caça ao Cervídeo será a caça con-junta ao cervídeo se houver transmissão cultural. Temos, então, um modelo baseado em agentes em que o resultado é equivalen-te ao encontrado pelos autores que se utilizam de equações para trabalhar o conceito de reciprocidade forte. Segundo Skyrms (2004, p. 32), nessas circunstâncias, a população foi dominada por caçadores de cervídeos em 99% das simulações.

Skyrms também encontrou resultados que são equiva-lentes a imitação do comportamento dos vizinhos que estão tendo um melhor desempenho, ou seja, ele também modelou a difusão cultural entre grupos:

Podemos querer considerar situações em que os joga-dores podem ver outras interações além daquelas das quais eles participam diretamente. Uma forma de fazer isso […] é introduzir duas vizinhanças — uma vizi-nhança de interação e uma vizinhança de imitação. Um indivíduo joga o jogo com seus vizinhos na vizinhança de interação e imita as melhores estratégias da vizi-nhança de imitação (SKYRMS, 2004, p. 40).

9 Para poupar o leitor de fazer os cálculos pessoalmente, eis como se dá a trans-formação de um jogo em outro: 6 + (2 × 0,6) + (2 × 0,36) + (2 × 0,216) + (2 × 0,130) + … = 94 + (4 × 0,6) + (4 × 0,36) + (4 × 0,216) + (4 × 0,130) + … = 102 + (2 × 0,6) + (2 × 0,36) + (2 × 0,216) + (2 × 0,130) + … = 50 + (2 × 0,6) + (2 × 0,36) + (2 × 0,216) + (2 × 0,130) + … = 3

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Se os caçadores de cervídeos forem livres para se associar somente com aqueles agentes com quem obtiveram bons resul-tados no passado, a população se divide entre caçadores de cer-vídeos que somente jogam com outros caçadores de cervídeos e caçadores de lebres que somente jogam com outros caçadores de lebres (SKYRMS, 2004, p. 96). Pode-se dizer que os resulta-dos de Skyrms são equivalentes aos encontrados pelos autores que trabalham com o conceito de reciprocidade forte. Os resul-tados são formalmente menos rigorosos porque não são mode-los baseados em equações, mas os modelos de Skyrms podem mais facilmente ser convertidos em modelos mais complexos e realistas do que modelos baseados em equações.

2.7 Normas e Metanormas

Axelrod (1997) argumenta que o estabelecimento e manutenção de normas somente é evolutivamente estável na presença de metanormas. Além da norma prescrevendo a pu-nição dos que agem de modo impróprio, deve haver uma me-tanorma de punir os que veem alguém fazendo algo impróprio e não tomam a iniciativa de punir o infrator:

Ao ligar vingatividade contra não punidores a vin-gatividade contra desertores, a metanorma provê um mecanismo pelo qual a norma contra a deser-ção passa a se autopoliciar. […]. Sem esse link, o sistema poderia se afrouxar. Um indivíduo pode reduzir seu nível de metavingatividade mantendo--se vingativo e, então, depois parar de ser vingati-vo com outros que parassem de ser metavingativos (AXELROD, 1997, p. 55).

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Axelrod construiu em computador um modelo em que 20 agentes tinham a escolha de contribuir ou não para a produção de um bem público. Contribuir para a produção do bem impli-cava um custo para o agente, mas o bem produzido superava esse custo: os agentes perdiam pontos à medida que contribuíam para a produção do bem e ganhavam pontos ao consumir o bem co-letivo. A ação mais racional para um ator egoísta seria usufruir o bem público, mas não cooperar para sua produção, mas os agen-tes no modelo de Axelrod não eram racionais; eram guiados por emoções, modeladas como probabilidades geneticamente herda-das de se comportar de determinada forma.

O modelo tinha três versões. Na primeira, os agentes possuíam um determinado grau de descaramento (boldness). Quanto maior o nível de descaramento dos agentes, menor a probabilidade deles contribuírem para a produção do bem coletivo. Na segunda versão, os agentes possuíam vingativida-de, uma nova propensão a sentir emoção herdada genetica-mente, e cada rodada do jogo possuía duas etapas. A primeira continuava sendo a etapa de produção do bem público, e a segunda passava a ser a oportunidade dos agentes de punir ou não os não cooperadores. Punir um não cooperador implica-va um custo para os dois agentes, sendo o custo maior para quem era punido do que para quem punia. Na terceira ver-são, os agentes tinham ainda a oportunidade de punir aqueles que não haviam punido um não cooperador, o que também envolvia custos. A probabilidade de um agente punir outro era determinada por sua vingatividade. Em todas as versões, após quatro rodadas do jogo, os agentes que obtinham maior pontuação se reproduziam em maior número.

A cooperação nunca evoluía na primeira versão do jogo. Sem agentes vingativos, ninguém era punido por não coope-

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rar e o resultado foi uma evolução da deserção. A introdução da propensão a sentir vingatividade e da regra de punir os não cooperadores foi suficiente para fazer a cooperação evoluir em algumas rodadas da segunda versão do jogo, mas foi somente na terceira versão que a cooperação evoluiu em todas as rodadas.

2.8 Dois Modelos Evolucionistas

Em 2003, construí dois modelos de evolução da coope-ração baseados em trabalhos de Axelrod, mas com os agen-tes “vivendo” num mundo em forma de tabuleiro (AQUINO, 2003). Os jogos consistiam de ciclos repetidos de ativação dos agentes. A cada ciclo, os agentes eram ativados apenas uma vez numa sequência aleatória. Quando ativado, o agente escolhia como destino uma das células adjacentes e, se ela estivesse va-zia, movia-se. Foram modeladas duas situações: Ação Coletiva, em que os agentes tinham de decidir contribuir ou não para a produção de um bem público, e Dilema do Prisioneiro jogado por muitos agentes. Dos dois jogos, Ação Coletiva era o mais semelhante aos jogos de Normas e Metanormas de Axelrod.

Os dois jogos seguiam uma abordagem evolucionista: os agentes nasciam num mundo em formato toroidal, acumula-vam riqueza, jogavam o jogo próprio de seu mundo, se repro-duziam e morriam. Os agentes mais ricos deixavam um maior número de descendentes. Os agentes não eram racionais. Pelo contrário, à medida que emoções possam ser interpretadas como impulsos que levam os indivíduos a agir em determina-da direção, e à medida que a intensidade desses impulsos for traduzível em números, pode-se dizer que os agentes possuíam tendências a sentir emoções.

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2.8.1 Ação coletiva

No modelo de Axelrod, havia apenas 20 agentes e a probabilidade de um agente perceber que outro não coope-rara para a produção de um bem público era extraída de uma distribuição uniforme entre 0 e 1. No modelo que desenvol-vi, o número de agentes podia variar de 20 a 1.000 e o que determinava se um agente via ou não outro desertando era a proximidade física. Enquanto os agentes estão perambulando aleatoriamente pelo mundo, não há muita diferença entre ter um mundo em formato de tabuleiro ou simplesmente extrair a probabilidade de interação de alguma distribuição estatística. Entretanto, como veremos no jogo do Dilema do Prisioneiro, ter os agentes espacialmente distribuídos pode ser muito útil para o desenvolvimento de modelos em que a probabilidade de ocorrência de encontros é dinâmica.

Assim como em Axelrod (1997), quando o jogo da Ação Coletiva está sendo jogado sem normas, os agentes têm apenas descaramento. Incluindo normas (e metanormas), os agentes também tinham vingatividade. Em todos os casos, o descara-mento de um agente determinava sua probabilidade de coope-rar ou desertar: o programa gerava um número aleatório entre 0 e 1 e o agente cooperava se o número fosse maior do que sua propensão a ser descarado.

Sem normas e metanormas, como esperado, a coope-ração não evoluiu em nenhuma das simulações. Se o jogo in-cluísse normas, os vizinhos poderiam decidir punir ou não os desertores, sendo a probabilidade da punição dependente da propensão do agente a ser vingativo para com os desertores. Em conformidade com o modelo de Olson e com os resulta-dos encontrados por Axelrod, quanto maior o mundo, mais

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difícil era a continuidade da cooperação. Como pode ser visto na Figura 3, no início, a cooperação aumenta, mas os agentes mais vingativos têm um menor sucesso reprodutivo e logo a deserção deixa de ser punida com a frequência necessária, o que leva ao colapso da cooperação.

Figura 3 – Colapso da cooperação na ausência de metanormas

Tempo (% sobre total)

Valo

r méd

io

0 20 40 60 80 100

0,0

0,2

0,4

0,6

0,8

1,0

DescaramentoVingatividadeCooperação

Fonte: Aquino (2003).

Quando o jogo inclui metanormas, os agentes que não pu-nem vizinhos desertores são eles próprios tratados como desertores e punidos por agentes vingativos. Em 12 combinações de número de agentes, tamanho do mundo e outras variáveis, a cooperação para a produção do bem público somente entrou em colapso numa das duas simulações com menor densidade populacional.

De maneira geral, é possível considerar que os resulta-dos de Axelrod foram replicados. Entretanto, nos modelos de Axelrod, por não haver nenhuma variável equivalente a “den-sidade populacional”, os valores iniciais de descaramento e vin-gatividade eram os únicos fatores relevantes na determinação do resultado final dos jogos.

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2.8.2 Dilema do prisioneiro

O jogo do Dilema do Prisioneiro se assemelha aos tor-neios de Axelrod (1984) ao emparelhar os agentes para jogar o Dilema do Prisioneiro. Mas, ao contrário do que ocorre nos torneios, não há um conjunto de estratégias emparelhadas para jogar um conjunto de partidas. Ao invés de estratégias de comportamento, os agentes possuem as mesmas propen-sões a sentir emoções dos modelos de Normas e Metanormas de Axelrod (1997). Na versão mais simples do jogo, se a cé-lula escolhida como destino pelo agente estiver ocupada, ele permanece onde está e joga o Dilema do Prisioneiro com o vizinho, recebendo a premiação correspondente ao resultado da partida. Se for a primeira interação entre os dois agentes, a probabilidade de cooperar será determinada apenas por seu descaramento.

Uma vez que não há normas prescrevendo que todos de-vem punir os desertores, cada agente deve defender a si próprio e punir os agentes que tiraram vantagem de sua generosidade. Os agentes são, nesse jogo, cognitivamente mais complexos do que no jogo apresentado na seção anterior. O agente que tenha sido explorado uma vez, precisa lembrar do trapaceiro quando reencontrá-lo e, se for vingativo, puni-lo da única maneira a seu alcance: não cooperando. Mas essas novas habilidades cogniti-vas — capacidade de reconhecer indivíduos e memória capaz de registrar interações passadas — ainda não são suficientes. Uma vez que um agente somente coopera sempre se seu desca-ramento for próximo de zero, mesmo um agente predominan-temente cooperador irá desertar ocasionalmente. Quando isso ocorrer, o segundo agente, sendo vingativo, terá aumentada sua probabilidade de desertar no próximo encontro entre os

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dois. O primeiro agente, também vingativo, aumentará seu ní-vel de deserção, e a cooperação entrará em colapso. Para con-trabalançar o efeito deletério da vingatividade, os agentes no jogo do Dilema do Prisioneiro foram equipados com um outro sentimento: gratidão. Todas essas características, entretanto, ainda não foram suficientes para fazer a cooperação evoluir, como pode ser visto na Figura 4.

Figura 4 – Colapso da cooperação no jogo do Dilema do Prisioneiro

Tempo (% sobre total)

Valo

r méd

io

0 20 40 60 80 100

0,0

0,2

0,4

0,6

0,8

1,0

DescaramentoVingatividadeGratidãoLembrançaCooperação mútua

Fonte: Aquino (2003).

Nas simulações que produziram resultados como os mostrados na Figura 4, ao haver um encontro entre dois agen-tes, eles não tinham outra opção além de jogar o Dilema do Prisioneiro. Numa tentativa de criar uma situação mais favo-rável para a evolução da cooperação, os agentes foram dispen-sados dessa obrigação e o jogo do Dilema do Prisioneiro se tornou um jogo da Confiança.

No jogo da Confiança, se a célula de destino escolhida não estiver vazia, o agente avalia seu ocupante e somente se

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oferece para jogar o Dilema do Prisioneiro se ele tiver sido pre-dominantemente cooperador no passado. O segundo agente também avalia o primeiro e somente aceita o convite se ele tiver tido um bom comportamento no passado. Um agente é avaliado como bom vizinho se a premiação média nas partidas jogadas com ele for igual ou superior ao “prêmio” para deser-ção mútua.

Ao contrário do esperado, o jogo da Confiança não mu-dou os resultados significativamente. A cooperação não evo-luiu porque não havia uma probabilidade alta o bastante para dois agentes jogarem o jogo muitas vezes durante seu tempo de vida. Uma forma óbvia de fazer isso acontecer é aumen-tar a longevidade dos agentes e reduzir o tamanho do mundo. Outra forma é dar aos agentes a chance de escolher para onde se mover. Essa segunda opção foi implementada: os agentes ganharam a liberdade de se mover em direção ao melhor vizi-nho. Nessa nova versão do jogo, se pelo menos um vizinho for bem avaliado, o agente escolherá a célula do melhor vizinho como destino. Se o melhor vizinho não estiver numa célula adjacente, o agente se moverá em sua direção.

Quando os agentes se movem em direção aos melhores vizinhos, a probabilidade de encontro entre dois agentes não é uniforme ao longo do jogo. A interface gráfica do programa permite ver que os agentes se aglomeram num ou mais grupos porque quando dois jogadores generosos que se encontram se tornam “amigos” não se movem mais até que um deles morra. Isso seria difícil — ou mesmo impossível — de modelar com o uso de equações.

Com essas condições, a cooperação finalmente evoluiu, como pode ser visto na Figura 5.

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Figura 5 – Evolução da cooperação no jogo do Dilema do Prisioneiro

Tempo (% sobre total)

Valo

r méd

io

0 20 40 60 80 100

0,0

0,2

0,4

0,6

0,8

1,0

Cooperação mútuaGratidãoVingatividadeLembrançaDescaramento

Fonte: Aquino (2003).

Um novo conjunto de 40 simulações com 30 mil ciclos cada, com parâmetros variados e com a introdução de uma nova capacidade dos agentes, a habilidade de se mover no sen-tido oposto ao do pior vizinho, revelou que o jogo da Confiança era prejudicial à evolução da cooperação quando combinado com a estratégia de se mover em direção ao melhor vizinho. A combinação com melhores resultados foi se mover em direção ao melhor vizinho e se distanciar do pior vizinho.

2.8.3 Críticas aos dois jogos

No jogo da Ação Coletiva, o bem público produzido é simplesmente distribuído igualmente entre todos os agentes. No mundo real, é preciso que alguém ou alguma instituição coordene a distribuição dos recursos e riqueza públicos, e rara-mente essa distribuição é igualitária. Pelo contrário, no mundo real, a distribuição de riqueza é o resultado de um processo de

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barganha, no qual algumas pessoas são mais bem-sucedidas do que outras. Outro pressuposto irrealista é o de que todos os agentes têm a mesma estrutura de preferências e que em todas as interações a premiação possível é a mesma.

Como já foi comentado, na realidade, raramente encon-tramos algo correspondendo com perfeição a um Dilema do Prisioneiro. O que existem são trocas de favores que se suce-dem e se alternam no tempo de modo irregular.

2.9 Reciprocidade Indireta

Além da seleção de parentesco e do altruísmo recíproco vistos em seções anteriores, uma outra solução para o proble-ma da cooperação é a reciprocidade indireta, em que “a recipro-cidade direta acontece na frente de um público interessado” (ALEXANDER apud YAMAMOTO; FERREIRA; ALENCAR, 2009). Em modelos que incluem reciprocidade indireta, atos de cooperação e deserção são observados por muitos agentes não envolvidos diretamente nas interações. Esses observado-res adicionam ou removem pontos da imagem que mantêm dos outros agentes. Ou seja, os agentes operam orientados pelo princípio de que ajudar alguém agora melhora sua reputação e aumenta suas chances de ser beneficiado num momento pos-terior. O fluxo de informação sobre quem usualmente coopera e quem usualmente deserta aumenta se os indivíduos forem capazes de trocar informações facilmente, como é o caso dos seres humanos.

Em experimentos com crianças conduzidos por Alen-car,  Siqueira e Yamamoto (2008), o principal fator determi-nante da cooperação num jogo de produção de bem público

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foi o tamanho do grupo de cooperadores em potencial. Nos experimentos, estudantes de uma mesma sala de aula, com idade entre 5 e 11 anos, recebiam três doces e tinham a oportu-nidade de fazer uma doação para um fundo público. As crian-ças tinham privacidade para fazer (ou não) a doação sem ser vistas, e para cada doce doado, os pesquisadores acrescenta-vam outros dois, sendo o total dividido entre todas as crianças do grupo. O experimento era repetido com o mesmo grupo oito vezes com intervalos de um a três dias, e o resultado geral foi uma redução gradual das doações com o passar das sessões, mas a redução nas doações foi significativamente menor nos grupos pequenos, fato interpretado pelos autores como resul-tante da maior efetividade da vigilância e pressão social nesses grupos. As crianças que conseguissem construir uma boa re-putação tenderiam a ser beneficiadas nas interações com os colegas no restante do ano letivo.

Numa situação em que predomina a reciprocidade indireta, os indivíduos não recebem benefícios de quem ajudaram no passado, mas de terceiros dispostos a ajudar indivíduos de boa reputação. A teoria da reciprocidade indi-reta é útil, portanto, para explicar como a cooperação pode evoluir e se manter num ambiente em que predominam en-contros entre estranhos egoístas e não entre altruístas puros que, para beneficiar a própria comunidade, dispensam opor-tunidades de enriquecimento e acúmulo de poder.

Nowak e Sigmund (1998) desenvolveram um mo delo baseado em agentes para melhor investigar em quais cir-cunstâncias é possível a evolução da cooperação por meio da reciprocidade indireta. No modelo, os agentes têm, alterna-damente, oportunidade de ajudar outro ou receber ajuda. A ajuda implica um custo para o doador menor do que o bene-

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fício para quem a recebe. O mundo artificial era habitado por cem agentes e, a cada geração, os agentes que haviam recebido maior premiação (diferença entre benefícios recebidos e doa-ções feitas) se reproduziam em maior quantidade. Ao ajudar alguém, um agente tinha sua reputação elevada num ponto e ao recusar ajuda, rebaixada. Os agentes decidiam ajudar ou não outro quando sua estratégia, definida por um número in-teiro, k, era igual ou menor do que a reputação do benefi ciário da ação. Com esses parâmetros, o valor de k tende a evoluir para zero e, em uma das simulações, após 166 gerações toda a população tinha k = 0. Ou seja, os mais bem-sucedidos so-mente ajudavam aqueles com reputação neutra ou positiva (NOWAK; SIGMUND, 1998, p. 573).

Nowak e Sigmund (1998) realizaram novas baterias de simulações para tornar seu modelo algo mais realista. Um dos problemas do modelo acima, por exemplo, é o conhecimento perfeito por todos os agentes da pontuação adquirida pelos outros ao ajudarem ou negarem ajuda. Para contornar essa irrealidade, foi empregado um novo modelo em que cada in-teração era observada apenas por uma amostra aleatória de 10 agentes. Com essas novas condições, o valor médio de k se manteve menor ou igual a zero em apenas 18% do tempo. Mesmo para populações de apenas 20 agentes, durante 10% do tempo, k era maior do que zero (NOWAK; SIGMUND, 1998, p. 573). Deve-se observar que mesmo esse novo modelo continua bastante distante do que ocorre no mundo real, onde as inte ra ções entre as pessoas não são observadas por um nú-mero aleató rio de membros da população total, e sim pelas pessoas física e/ou socialmente próximas dos atores envolvi-dos na cena principal. Tal simulação da proximidade física ou social poderia mais facilmente ser feita por um modelo de

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mundo em forma de tabuleiro, em que os agentes estivessem espacialmente distribuídos. Outro problema dos modelos é a reprodução simultânea de todos os agentes de uma geração.

Em uma revisão dos trabalhos que seguiram a aborda-gem da reciprocidade indireta na construção de modelos base-ados em agentes, Nowak e Sigmund (2005) observam que, uma vez que a reputação de um agente se eleva sempre que ele ajuda um outro agente qualquer, a cooperação alcançada por meio da reciprocidade indireta pode ser minada pela existência de um número elevado de altruístas incondicionais. Sempre fazer doações pode ser benéfico para um indivíduo por melhorar sua reputação e, consequentemente, aumentar a probabilidade de receber doações dos que seguem a estratégia de somente fazer doações para outros com boa reputação. Entretanto, al-truístas incondicionais aumentam as chances de sucesso dos não cooperadores, permitindo a invasão da população por de-sertores (NOWAK; SIGMUND, 2005, p. 1294).

Assim, poderia ser benéfico para a evolução da coope-ração se os agentes seguissem uma regra mais sofisticada do que a citada acima para incrementar ou rebaixar a reputação de um agente. A imagem de um agente somente seria pre-judicada se ele deixasse de ajudar alguém com boa reputa-ção, não sofrendo alteração se ele negasse ajuda para quem venha falhando em cooperar até mesmo ao interagir com cooperadores. Tais agentes, que discriminam entre coope-radores e desertores no momento de decidir se irão ajudar outro, podem ser considerados seguidores de uma estratégia semelhante à Tit for Tat, mas não exatamente igual porque só raramente estão baseando suas decisões em suas próprias interações com o beneficiário em potencial de suas doações (NOWAK; SIGMUND, 1998, p.  576). Entretanto, segundo

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Nowak e Sigmund (2005, p. 1294), uma regra como essa im-plicaria uma regressão infinita:

[…] o problema com o conceito de deserção justifica-da é que ele requer informação não somente sobre o passado dos cojogadores mas também sobre o passa-do dos cojogadores dos cojogadores e seus cojogado-res, e assim por diante.

Apesar da possibilidade de se cair numa regressão infi-nita, as pessoas reais parecem interagir numa situação seme-lhante à descrita por esse último modelo. No mundo real, não existe informação perfeita e completa sobre os atos passados das pessoas, mas elas também não dependem apenas das pró-prias interações e observações para avaliar a reputação de um agente. A linguagem permite às pessoas ter algum conheci-mento sobre interações que não testemunharam. Mas, como lembram Nowak e Sigmund (2005, p. 1295), a fofoca também pode ser usada para espalhar falsos rumores sobre a reputação de alguém e a relação entre reciprocidade indireta e linguagem é um tema ainda pouco explorado.

2.10 Modelo de Compartilhamento de Comida

Assim como os autores que desenvolveram a teoria da reciprocidade forte, Pepper e Smuts (2000) se inspiraram na equação de Price para elaborar um modelo de evolução da co-operação. O modelo de Pepper e Smuts, entretanto, era basea-do em agentes que viviam num mundo em forma de tabuleiro com várias regiões possuindo vegetação. A cooperação era de dois tipos: grito de alarme quando havia um predador nas pro-ximidades e abstenção de consumir os vegetais até a exaustão.

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O resultado a que chegaram foi que a cooperação era facilitada pela existência de pequenos aglomerados de vegetação isola-dos uns dos outros por uma área intermediária sem vegetação. Baseado nesse modelo, Premo (2005) elaborou um modelo de evolução do compartilhamento de comida entre hominídeos.

O modelo de Premo é inspirado na hipótese de o fator mais importante para a evolução humana não ter sido uma mudança de hábitat das florestas tropicais para as savanas, mas a adaptação à vida em trechos remanescentes de florestas em meio às savanas que se expandiam. Essa hipótese baseia-se no fato de que nossos primeiros ancestrais bípedes apresentavam ainda claros sinais de adaptação ao meio arbóreo (PREMO, 2005, p. 2-3). No modelo de Premo, o mundo é um tabuleiro em formato toroidal e possui regiões retangulares cobertas de vege-tação envoltas por células vazias. Os agentes têm a capacidade de carregar uma pequena quantidade de comida. Se um agente não encontrar comida na sua própria célula ou numa das células adjacentes, e se ele encontrar outro agente com excesso de co-mida, poderá pedir ao vizinho que compartilhe o alimento. Os agentes são de dois tipos: egoístas e altruístas. Os egoístas nunca compartilham comida, enquanto os altruís tas compartilham se-gundo uma de três diferentes regras ou algoritmos que devem ser definidos antes do início da simulação. A regra 1 diz aos al-truístas que eles simplesmente devem atender os pedidos e com-partilhar a comida que possuem em excesso. A regra 2 diz aos altruístas que memorizem as interações e compartilhem comida com quem lhe doou comida na última interação; se não houver nenhuma lembrança de interação passada, é seguida a regra 1. De acordo com a regra 3, os doadores em potencial devem agir como na regra 2, mas, agora, eles sempre sabem se um pedinte é do tipo egoísta ou altruísta, não dependendo da lembrança de

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eventos passados; quando a simulação está sendo executada sob essa regra, altruístas compartilham comida somente com altru-ístas. Ou seja, com o terceiro algoritmo, os egoístas nunca rece-bem doações de comida (PREMO, 2005, p. 6).

Claramente, a regra 2 se assemelha à estratégia Tit for Tat e a regra 3 torna o modelo de Premo semelhante a um dos modelos de reciprocidade indireta apresentados por Nowak e Sigmund. Conforme esperado, a evolução do com-partilhamento de comida ocorreu com maior frequência sob a regra 3 e com menor frequência sob a regra 1. A bateria de simulações contou com diferentes combinações de tamanho da região contendo planta e de distância entre as regiões. A população entrou em colapso nos mundos com regiões muito pequenas ou com distâncias muito grandes entre as regiões. Os melhores resultados, tanto em termos de sobrevivência da população quanto de evolução do compartilhamento de comi-da, ocorreram nos mundos com valores intermediários para o tamanho das regiões e para a distância entre elas. De acordo com Premo (2005, p. 8), nesses mundos, as regiões com plan-tas eram grandes o bastante para manter grupos de altruístas em contato por tempo suficiente para que seu altruís mo se tornasse uma vantagem, mas não tão grandes a ponto de ter populações excessivamente heterogêneas, em que os altruístas pudessem mais facilmente ser explorados pelos egoístas. As distâncias intermediárias entre as regiões eram importantes para dificultar a migração excessiva que reduziria a homo-geneidade interna dos grupos e a heterogeneidade entre eles. Distâncias muito grandes impediriam que os grupos bem- -suce didos de altruístas migrassem para outras regiões.

O modelo de Premo possui algumas características que o tornam mais realista do que os modelos revisados nas seções

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anteriores: os agentes vivem num mundo coberto por vegeta-ção e essa vegetação está aglomerada em algumas regiões; os agentes compartilham comida, ao invés de jogar um abstrato Dilema do Prisioneiro. Entretanto, o modelo ainda apresenta importantes irrealismos. A vegetação, embora aglomerada em regiões, está distribuída de forma perfeitamente uniforme e não há sazonalidade. Os agentes não se reproduzem sexua damente e seu comportamento é definido por um atributo simples que os torna egoístas ou altruístas. O comportamento real de humanos e mesmo de antropoides é condicionado por uma multiplicida-de de fatores, e uma tal simplificação, embora facilite a análise do modelo, corre o risco de estar demasiadamente distante da realidade para ser interpretada como empiricamente relevante.

2.11 Desafios

Os modelos baseados em agentes podem simular os fe-nômenos, embora não se possa considerar que eles tenham o mesmo nível de rigor formal de modelos baseados em equa-ções. Por exemplo, a análise que Taylor (1987) faz do Dilema do Prisioneiro reiterado é matematicamente rigorosa; ele pro-vou que certas conclusões poderiam ser extraídas de seu mode-lo, o que é mais significativo do que simular fenômenos. Mas, como observa Reis (2003, p. 37), os resultados a que Axelrod (1984) chegou simulando o Dilema do Prisioneiro reiterada-mente foram semelhantes aos de Taylor, o que indica que os resultados atingidos por simulação, embora mais difíceis de analisar formalmente, também são válidos. Se as simulações apenas permitissem alcançar resultados equivalentes aos de modelos baseados em equações, não haveria por que fazê-las. Mas uma simulação pode ser feita inclusive com objetos muito

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mais complexos do que o Dilema do Prisioneiro reiterado, e, à medida que um problema se torna complexo, deixa de ser praticável sua conversão numa fórmula matemática. A expec-tativa é de que modelos baseados em agentes sejam uma forma alternativa de encontrar explicações para fenômenos sociais.

A regra básica de que modelos devem ser simplificações da realidade não deixa de ser seguida nos modelos baseados em agentes. Uma recomendação frequentemente encontrada é de que se mantenha o modelo tão simples quanto possível para facilitar a análise dos resultados. Se o modelo incluir um número muito elevado de parâmetros, as diversas variáveis poderão interagir de forma complexa e poderá não ficar claro para o pesquisador qual o papel de cada parâmetro nos resul-tados obtidos. Pode ser necessário ignorar — ou até mesmo distorcer — fenômenos para se construir um bom modelo (MYERSON, 1992, p. 64).

Enquanto um modelo é mantido simples, é possível não só dizer qual o efeito de uma determinada regra de compor-tamento dos agentes, mas também demonstrar matematica-mente o porquê desse efeito. Quando várias estratégias são adicionadas a um mesmo modelo, podem surgir resultados complexos. Uma estratégia que levava à cooperação, na pre-sença de outra característica, pode passar a impedir a coope-ração. Não é pois de estranhar que uma sugestão frequente seja construir vários modelos simples para melhor compreender o efeito de cada variável, ao invés de se tentar trabalhar com um modelo complexo, que reúna todas as variáveis simultane-amente (MYERSON, 1992, p. 66).

O uso de modelos simples, entretanto, tem suas pró-prias desvantagens. A principal delas é o risco de construir modelos demasiadamente irrealistas e empiricamente irrele-

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vantes. A princípio, enquanto técnicas básicas de modelagem estão sendo desenvolvidas, não há outra alternativa a não ser a construção de modelos simples, mesmo que irrealistas. Nes-sa linha de investigação, alguns modelos baseados em agen-tes procuram descobrir quais seriam as condições mínimas necessárias para a evolução da cooperação. Não obstante a importância que tais modelos podem ter para a compreensão da relação entre variá veis, eles me parecem empiricamente mais relevantes para a compreensão da cooperação em espé-cies cognitivamente pouco sofisticadas. O modelo de Riolo, Cohen e Axelrod (2001), por exemplo, investiga as condições em que a cooperação poderia evoluir sem reciprocidade. O fato, entretanto, é que o altruísmo recíproco está presente nas ações humanas. Modelos que não levem isso em conta são inadequados para a investigação teórica da evolução da coope ração entre seres humanos.

Portanto, sem deixar de reconhecer a grande utili-dade das recomendações de cautela mencionadas acima, acredito que uma abordagem contrária também pode ser frutífera. Ou seja, também seria válido tentar modelar si-tuações de forma mais completa, incluindo não somente a quantidade mínima de elementos para testar um tipo es-pecífico de relação entre variáveis, mas também elementos que permitam modelar outros fenômenos sociais que se acredita estarem de alguma forma significativamente rela-cionados com o fenômeno principal a ser estudado.

Limitar a investigação teórica a um certo número de mo-delos simples pode trazer uma enganadora sensação de seguran-ça quanto ao conhecimento dos mecanismos básicos subjacentes à complexidade da realidade social. O fato, entretanto, é que a realidade social é complexa: constitui-se de milhares de fatores

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interagindo simultaneamente e não podemos garantir que a re-lação entre dois ou três elementos permanecerá essencialmente a mesma quando esses elementos se encontram isolados e quando fazem parte do conjunto social total. A principal desvantagem da construção de modelos simples é o risco de se construir mo-delos excessivamente irrealistas e, por conseguinte, de relevância empírica demasiadamente limitada. Ramos-Fernández, Boyer e Gómez (2006), por exemplo, desenvolveram um interessante modelo que, apesar de muito simples, permite a emergência de propriedades de fissão e fusão semelhantes às encontradas em comunidades de algumas espécies de macacos e antropoides. Mas, como os próprios autores reconhecem, seu modelo exclui variáveis fundamentais, como estrutura etária e sexual da popu-lação e relações sociais entre os indivíduos, e, por isso, é mais propriamente um modelo das condições ecológicas propícias ao surgimento de comportamento social do que efetivamente um modelo da vida social desses macacos e antropoides (RAMOS--FERNÁNDEZ; BOYER; GÓMEZ, 2006, p. 546).

A robustez de um modelo baseado em agentes simples é testada fazendo-se variar alguns parâmetros iniciais e, então, realizando uma nova bateria de simulações. Se forem produ-zidos resultados semelhantes sob uma ampla gama de varia-ção dos valores das variáveis, considera-se o modelo robusto (MACY; WILLER, 2002, p. 163). Entretanto, a robustez e a re-levância empírica seriam melhor desafiadas transportando o modelo para um contexto mais realista do que simplesmente modificando algumas variáveis do próprio modelo. Os resul-tados produzidos por um modelo mais complexo poderão ser equivalentes aos de um mais simples. Ou seja, poderá haver o predomínio de uma estratégia sobre as outras e as variáveis e os outros fenômenos modelados paralelamente estariam ape-

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nas tornando mais probabilístico o resultado produzido. Nesse caso, o modelo central teria passado no teste de robustez.

A proposta desta pesquisa é dar os primeiros passos para a implementação, em computador, de um modelo de evolução da cooperação baseado na literatura empírica so-bre antropoides reais e nos modelos revisados neste capítu-lo. Como se trata de um modelo de evolução da cooperação na espécie humana, os conhecimentos necessários para se produzir os desafios realistas virão de diversas disciplinas. A principal fonte de informação sobre os antropoides reais foi a primatologia; a paleoantropologia ofereceu orientações para a escolha das condições iniciais utilizadas no modelo; e a psicologia evolucionista foi a principal fonte de ideias de processos evolucionistas implementados. O modelo apre-sentado no capítulo 5 se ocupa apenas dos primeiros passos da evolução humana, não havendo já nesta pesquisa muitas oportunidades para utilizar os conhecimentos da antropolo-gia, sociologia e ciência política para avaliar se os resultados produzidos pelo modelo são ou não correspondentes à for-ma como se dá a cooperação entre os seres humanos reais contemporâneos. Isso talvez venha a ser possível no futuro, com a incorporação ao modelo de características cognitivas elevadas, interpretáveis como tipicamente humanas.

É vantajoso para os indivíduos que eles resolvam seus pro-blemas da forma mais rápida e eficiente possível. Se um problema tem sido reiteradamente enfrentado por nossos ancestrais nos úl-timos milhões de anos, é de se esperar que tenhamos as propen-sões biológicas corretas para resolvê-lo inconscientemente. Isso é vantajoso para o indivíduo porque ele fica com a atenção livre para pensar nos problemas para os quais é realmente necessário improvisar uma solução. A identificação do que há de comum

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entre o comportamento dos seres humanos e dos vários antropoi-des não humanos (bonobos, chimpanzés, gorilas e orangotangos) permite criar hipóteses sobre quais são as nossas propensões bio-lógicas atuais e sobre quais eram as propensões biológicas do an-cestral que temos em comum com os antropoides. Pode-se supor que, provavelmente, nossos ancestrais possuíam as capacidades cognitivas e emotivas atualmente comuns aos seres humanos e aos antropoides. Assim, ao elaborar um modelo de evolução da cooperação, essas características deverão ser reconhecíveis nos agentes já no início das simulações.

Em princípio, o estudo dos fósseis dos nossos ancestrais permite-nos criar hipóteses sobre qual foi a sequência das mu-danças evolutivas por eles sofridas ao se tornarem humanos. Como, em se tratando de evolução, a ordem dos fatores alte-ra o resultado final, isso pode ser útil para se especular sobre quais propensões biológicas devem ter desaparecido e quais devem ter sido acrescentadas à nossa natureza.

Os achados arqueológicos, a análise de DNA de indiví-duos de diversas populações, entre outros estudos, indicam que os seres humanos de todas as sociedades são extremamente se-melhantes quanto às capacidades cognitivas e que até o ad vento da agricultura, há 10 mil anos, todas as sociedades viviam da caça, da pesca e da coleta de vegetais. Os estudos das socieda-des remanescentes de caçadores-coletores permitem fazer um inventário dos problemas enfrentados por essas sociedades e das soluções adotadas por seus membros. Permitem, ainda, verificar, entre as instituições existentes nas sociedades modernas, quais provavelmente já estão entre nós há pelo menos 100 mil anos. É de se esperar que os seres humanos tenham desenvolvido adap-tações biológicas ao contexto cultural prevalecente nas últimas centenas de milhares de anos e que essas adaptações continuem

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se manifestando nas sociedades atuais. Assim, pesquisas revelan-do o que pensam e como se comportam os indivíduos contem-porâneos em sociedades específicas são mais uma fonte de dados para a elaboração de hipóteses sobre quais são nossas propensões biológicas e como essas propensões contribuem para produzir e simultaneamente interagem com a cultura. Os agentes apresen-tados no capítulo 5 possuem habilidades cognitivas e caracterís-ticas comportamentais correspondentes ao período de origem da espécie humana, mas a sociologia e a ciência política podem contribuir ao dizer o que acontece quando vários indivíduos in-teragem (quais instituições se produzem, como elas se mantêm e se transformam) e, dessa forma, orientar o desenvolvimento futuro do modelo.

Antes da apresentação de uma proposta de ponto de partida para um modelo de evolução da cooperação, farei uma revisão da literatura empírica relevante para o objetivo da pesquisa.

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3Antropoides

Literalmente, o adjetivo antropoide significa “semelhan-te ao homem” e pode ser aplicado a qualquer animal ou objeto. Neste livro, entretanto, seguindo Menezes (2002), emprego o termo com o mesmo significado de great ape em inglês, ou seja, um termo que engloba todos as espécies de primatas an-tropoides (bonobos, chimpanzés, gorilas e orangotangos).

Todo modelo evolucionista precisa ter um ponto de partida, e, obviamente, é preciso que se utilize algum crité-rio para a escolha desse ponto. Neste trabalho, pretendemos construir um modelo com potencial máximo para contri-buir para nosso conhecimento da evolução da cooperação entre seres humanos. Temos, portanto, de verificar qual é a maior lacuna existente no nosso conhecimento desse tema e elaborar um modelo para o período pouco conhecido. Por um lado, as diversas espécies de mamíferos sociais são modelos vivos, reais, de como pode ser a cooperação em animais com capacidades cognitivas e necessidades eco-lógicas bastante diferentes das capacidades e necessidades dos seres humanos. Por outro lado, as sociedades atuais são exemplos correntes de como se dá a cooperação entre hu-manos. Mas os humanos estão num patamar cognitivo e de com plexidade de organização social muito superior ao de todos os outros animais. Há, portanto, uma grande lacuna entre os humanos e os demais modelos vivos. O objetivo nesta pesquisa é construir um modelo que contribua para o preenchimento dessa lacuna. Pretendo construir um mo-

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delo com sociedades artificiais que reproduzam, na medida do possível, características que possam ter estado presentes nas sociedades reais em que viveram nossos antepassados.

De todos os mamíferos não humanos, os primatas an-tropoides são os que possuem capacidades cognitivas mais elevadas, sendo os chimpanzés e bonobos os que possuem vida social mais complexa. Além disso, como argumentam Maryanski e Turner (1992, p. 14), provavelmente nosso últi-mo ancestral comum com esses animais possuía a maioria das capacidades cognitivas comuns a todos eles, pois é aceitável que umas poucas capacidades cognitivas tenham evoluído de forma independente em todas as espécies, mas o mais provável é que uma capacidade cognitiva presente tanto nos humanos quanto nos antropoides já estivesse presente no nosso ances-tral comum.

Embora em seu hábitat natural as diversas espécies de an-tropoides possuam comportamento diferenciado, em potencial, há uma grande homogeneidade comportamental e cognitiva (CHALMEAU et al., 1997, p. 25; MILES; HARPER, 1994, p. 275). Indivíduos de todas as espécies, quando vivendo entre seres hu-manos, são capazes, entre outras coisas, de aprender uma lingua-gem de sinais e usar ferramentas simples. Os orangotangos, por exemplo, que muito raramente são observados usando ferramen-tas em sua vida livre, são habilidosos em cativeiro — talvez mais do que os chimpanzés. Assim, o estudo da vida social dos antro-poides, particularmente dos chimpanzés e bonobos, nos ajudará a determinar quais características os agentes das nossas sociedades artificiais deverão possuir desde o início das simulações.

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3.1 Semelhança Física com Humanos

Chimpanzés, bonobos e gorilas se movimentam com desenvoltura nas copas das árvores e nos parecem desajeitados quando no chão. Eles nos lembram indivíduos da nossa pró-pria espécie, principalmente, quando estão deitados ou senta-dos. Quando andam, são quadrúpedes, apoiando-se sobre a planta dos pés e os nós dos dedos das mãos.

Os antropoides se alimentam principalmente de frutas, que são mais ricas do que folhas. Apenas os gorilas que vivem em montanhas têm as folhas como itens fundamentais de sua dieta, devido à escassez de frutas em seu hábitat (MCGREW, 1992, p. 53). Gorilas machos adultos são muito pesados para subir com frequência em árvores e são fortes o bastante para se defender de predadores. Por isso, eles muitas vezes constroem seus ninhos noturnos no chão. Todos os demais antropoides, incluindo gorilas fêmeas adultas, constroem todas as noites um ninho nas árvores onde dormem.

Todos os antropoides são mais robustos do que os hu-manos, principalmente quanto à musculatura dos membros superiores. Os humanos conseguem com o aprendizado cul-tural o que os antropoides conseguem com força bruta. Um chimpanzé, por exemplo, mesmo sendo menor e mais leve do que um homem adulto, é muito mais forte.

Décadas atrás John Bauman usou um dinamômetro para comparar a força muscular de chimpanzés adultos com a de jogadores de futebol de uma faculdade local. Os homens jovens conseguiram puxar com uma mão, em média, 75 kg e, no máximo, 95 kg, enquanto os an-tropoides facilmente puxaram várias vezes esse peso. Um chimpanzé macho pesando 75 kg conseguiu puxar 384 kg com uma única mão (WAAL, 1989, p. 249).

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Savage-Rumbaugh (1994, p. 43) apresenta uma tabela comparando humanos (caçadores-coletores), chimpanzés, bonobos e gorilas. Os bonobos são os que apresentam com-portamento mais semelhante ao dos humanos, principal-mente em questões relativas a sexualidade e relações pessoais entre indivíduos. Entre os antropoides atualmente existentes, os bonobos também são fisicamente os mais semelhantes aos australopitecos:

As proporções do corpo do bonobo, especialmente suas pernas relativamente pesadas, são mais próximas das de um Australopithecus do que as proporções de qualquer outro antropoide vivo. Bonobos ficam de pé sobre duas pernas mais frequentemente e com maior facilidade do que chimpanzés comuns, os quais não aprumam tanto as costas (WAAL, 1989, p. 181).

Figura 6 – Árvore evolucionista dos antropoides

33

30

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24

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15

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ões

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osat

rás

Babuíno Gorila Chimpanzé Bonobo Humano Orangotango Gibão

Fonte: Elaborada a partir de diagrama encontrado em Waal (1997, p. 3) e ba sea-da em comparações de moléculas de DNA.

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Como mostra a Figura 6, geneticamente, bonobos e chimpanzés são equidistantes dos humanos, seguidos por go-rilas e orangotangos. Podemos observar também que os huma-nos — e não os gorilas — são os parentes mais próximos dos chimpanzés e bonobos: o ancestral comum a humanos, chim-panzés e bonobos tem ∼6 milhões de anos, enquanto nosso ancestral comum com os gorilas tem ∼8 milhões de anos. Nas seções seguintes deste capítulo, revisaremos principalmente a literatura sobre nossos dois parentes mais próximos. Como veremos, dentre várias características comportamentais por muitos consideradas tipicamente humanas, há poucas que não possam ser encontradas, mesmo que em forma embrionária, em pelo menos um desses dois antropoides.

3.2 Hábitat

Ao que parece, os seres humanos estão melhor adaptados a um clima quente, mas não muito úmido, como o das sava-nas. Só recentemente a humanidade evoluiu culturalmente o bastan te para conseguir viver em florestas tropicais extrema-mente úmidas. Esse foi exatamente o contrário do que ocorreu com os demais antropoides, que permaneceram em florestas com alta pluviosidade (MCGREW, 1992, p. 124). Somente com o surgimento da agricultura, as florestas tropicais passaram a ser habitáveis por humanos.

Há muitos forrageadores em florestas tropicais primá-rias, mas sua história, e muito menos sua pré-história, é pouco conhecida. […] aparenta ser cada vez mais provável que a ocupação dos nichos florestais por ca-çadores-coletores é recente e dependente de vizinhos agriculturalistas (MCGREW, 1992, p. 127).

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De fato, comparando-se, por exemplo, os relatos de Chagnon (1968) sobre os yanomamis que vivem na Amazônia e de Lee (1979) sobre os !kung que vivem no Kalahari, perce-bemos, por um lado, a grande dependência dos yanomamis de sua agricultura tradicional e, por outro, a liberdade dos !kung de permanecer (até o meio do século XX) exclusivamente como caçadores-coletores. A exuberância da vida numa flo-resta tropical se concentra nos troncos e copas das enormes árvores. Viver nas copas das árvores é a melhor maneira de si-multaneamente se proteger dos predadores e consumir os ali-mentos mais ricos e mais disponíveis (as frutas). Numa savana, a biomassa se concentra nas gramíneas, e os alimentos mais nutritivos e de fácil disponibilidade são os grandes herbívoros. Muito provavelmente, a evolução da humanidade foi impul-sionada pela passagem da floresta para a savana. A propósito, algumas das diferenças entre chimpanzés e bonobos são expli-cadas justamente por eles viverem em ambientes com diferen-tes graus de umidade.

A mudança evolucionista nos chimpanzés pode ter sido iniciada por uma necessidade de adaptação a há-bitats semiabertos e mais secos, como as savanas e os bosques. Os bonobos, por outro lado, provavelmente nunca deixaram a proteção das florestas tropicais; no presente, eles estão inteiramente restritos a regiões equatoriais úmidas (WAAL, 1997, p. 25).

A vegetação da qual dependem os antropoides não é uniformemente distribuída numa floresta. Pelo contrário, as árvores frutíferas tipicamente se apresentam concentradas em algumas regiões (RAMOS-FERNÁNDEZ; BOYER; GÓMEZ, 2006, p. 544). A distribuição de frutas maduras é ainda mais fragmentada do que a distribuição de frutas verdes, o que, se-

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gundo Newton-Fisher, Reynolds e Plumptre (2000, p. 621-3), reflete a avidez com que são consumidas por pássaros e pri-matas. Além da irregularidade em sua distribuição espacial, mesmo numa floresta equatorial, a disponibilidade dos ali-mentos também é sazonal, o que tem um reflexo direto sobre o estado nutricional dos primatas. Usando dados coletados ao longo de trinta e três anos numa comunidade de chimpanzés, referentes a 1.286 pesagens de 31 machos e 26 fêmeas, Pusey et al. (2005) constataram que os animais, em média, tinham um aumento de 3,4% em seu peso durante o período mais úmido do ano.

Segundo Wrangham, Conklin-Brittain e Hunt, os chimpanzés passam até três vezes mais tempo se alimentando de frutas maduras do que os cercopitecídeos (macacos do Velho Mundo, com cauda não preensora). Nos períodos de maior escassez de frutas, os chimpanzés, em comparação com os macacos, recorrem mais a miolos de galhos e a folhas e menos a frutos verdes e sementes. Os cercopitecídeos consomem frutas verdes mesmo quando há abundância de frutas maduras, enquanto os chimpanzés só diversificam sua alimentação quando não têm outra opção (WRANGHAM; CONKLIN-BRITTAIN; HUNT, 1998). Considerando que animais pequenos têm um trato intestinal curto, o que dificulta a fermentação e consequente extração de energia das fibras, seria de se esperar que os macacos tivessem preferência por uma dieta rica em frutos (CONKLIN-BRITTAIN; WRANGHAM; HUNT, 1998, p. 991). Certamente, o padrão efetivamente observado é um reflexo da vantagem que o maior tamanho confere aos chimpanzés na disputa por alimentos. Dentro de uma mesma comunidade ou grupo de

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chimpanzés,10 o consumo de alimentos menos privilegiados é mais frequente entre os membros menos integrados, como fêmeas em processo de migração de uma comunidade para outra (WHITE, 1998, p. 1023).

A variação espacial e temporal na disponibilidade de fru-tos e outros alimentos é um fator fundamental na determinação do tamanho de grupos e comunidades de antropoides e na sua dinâmica de deslocamento, o que obviamente tem consequências para as interações sociais e para o desenvolvimento das habilida-des cognitivas necessárias à vida social. Tanto os grupos de chim-panzés quanto os de bonobos, por exemplo, são maiores quando há abundância de frutas maduras (WRANGHAM, CONKLIN--BRITTAIN, HUNT, 1998, p. 950; WHITE, 1998, p. 1015). Chim-panzés habitantes de florestas úmidas se deslocam em busca de alimentos por uma área relativamente pequena enquanto os ocu-pantes de regiões relativamente secas se dispersam por uma área dez vezes maior (BASABOSE, 2005, p. 34). No caso de algumas comunidades de chimpanzés, a escolha da região habitada está mais correlacionada com uma fruta que não é a preferida dos animais, mas que permanece disponível nos períodos de escassez de frutas (FURUICHI; HASHIMOTO; TASHIRO, 2001, p. 942). Alguns autores até mesmo consideram a disponibilidade de ali-mentos como o principal fator explicativo das diferenças compor-tamentais entre chimpanzés e bonobos.

Exames preliminares das diferenças em organização social de chimpanzés e bonobos reforçam a hipótese de que bonobos têm um nível reduzido de competição por comida, o que permite existência de grupos maio-

10 Em inglês, os grupos que compõem uma comunidade de chimpanzés ou bo-nobos são chamados de parties. Alguns autores chamam as comunidades de communities e outros as chamam de groups ou unit-groups.

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res. A competição por comida entre bonobos pode ser reduzida pelo uso de árvores frutíferas maiores ou o uso alternado de fontes de comida, tais como vegeta-ção rasteira de alta qualidade, as quais ou não estão disponíveis ou estão disponíveis, mas não são utiliza-das por chimpanzés (WHITE, 1998, p. 1014).

Uma possível objeção a essa hipótese, não mencionada na bibliografia revisada, é de que a abundância de comida pode ser uma realidade recente. Talvez a comida seja abundante não somente porque os bonobos vivem numa floresta mais rica, mas também porque eles estavam sendo dizimados pela caça antes do início da pesquisa. Segundo Furuichi et al. (1998, p. 1038--9), a população de bonobos em Wamba (Congo) sofreu uma redução no período de 1991 a 1994 devido à ausência dos pes-quisadores, que inibiam a comercialização da carne de bonobo. Suponho que a tendência natural, sem intervenção humana, seria a população de bonobos se recuperar até conseguir apro-veitar ao máximo os recursos disponíveis. A superpopulação e a consequente escassez de alimentos deve ter sido um problema no passado e (com sorte?) poderá voltar a ser no futuro.

Enquanto árvores carregadas de frutos permitem a con-centração de um grande número de animais num mesmo local, nos períodos de escassez de frutos os grupos de bonobos e de chimpanzés se tornam menores. Mas, entre os bonobos, a desa-gregação social é maior entre os machos (WHITE, 1998, p. 1024).

3.3 Sociedades de Fissão e Fusão

Chimpanzés e bonobos em seu ambiente natural for-mam comunidades de dezenas de indivíduos, subdivididas em vários grupos menores de constituição fluida.

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Observações feitas por Kano e seus auxiliares demonstra-ram existir muitas distinções entre sociedade de bonobos e de chimpanzés, bem como uma similaridade fundamen-tal. As duas espécies vivem nas assim chamadas sociedades de fissão-fusão — ou seja, os antropoides se deslocam em pequenos grupos cuja composição muda hora após hora e dia após dia. […]. Depois de muitos anos documentando cuidadosamente a composição dos grupos de chimpan-zés na Tanzânia, Toshisada Nishida, um colega próximo de Kano foi o primeiro a resolver o quebra-cabeças. Ele relatou que os chimpanzés formam grandes comunida-des: todos os membros de uma comunidade particular se misturam livremente nos assim chamados grupos sempre--mutantes, mas os membros de diferentes grupos nunca se juntam (WAAL, 1997, p. 63).

3.3.1 Tamanho das comunidades e seus grupos

A observação das relações sociais entre chimpanzés e bonobos não é fácil porque as comunidades se subdividem em pequenos grupos — com menos de uma dezena de indivíduos — cuja composição está em permanente alteração. Os indivíduos frequentemente se transferem de um grupo para outro, nunca, entretanto, se associando com indivíduos de outras comunida-des. Somente as fêmeas, ao entrarem na adolescência, migram de uma comunidade para outra. As comunidades são relativamente grandes; o número observado de membros das comunidades de chimpanzés varia de 20 (em Bossou, Guiné) a 150 (em Ngogo, Uganda). As fêmeas começam a se transferir para outras comu-nidades por volta dos 8 anos de idade (FURUICHI et al., 1998, p. 1032). O número de fêmeas adultas costuma ser cerca de duas vezes maior do que o número de machos e as crianças (≤ 7 anos) e adolescentes (8-14 anos) geralmente representam mais da me-

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tade da população.11 É interessante observar que nasce aproxi-madamente o mesmo número de machos e fêmeas (MITANI, 2006, p. 11) e, portanto, a mortalidade dos machos jovens é mui-to superior à das fêmeas. Não encontrei na bibliografia revisada uma explicação para essa diferença na mortalidade dos sexos, mas o que se infere do conjunto dos relatos é que um importante motivo seria o infanticídio cometido por machos adultos.

Dos grupos que compõem uma comunidade, os meno-res são aqueles constituídos somente por machos ou somente por fêmeas e seus filhos jovens, sendo mais comum encontrar um macho solitário do que uma fêmea (MATSUMOTO-ODA et al., 1998, p. 1003-4). A presença de uma fêmea no cio parece ser um dos fatores mais importantes para a formação de grupos grandes. Outro fator importante é a abundância de alimentos. Chimpanzés e bonobos parecem preferir grupos grandes, mas a pouca disponibilidade de frutas pode gerar conflitos e, consequentemente, a desagregação em grupos menores. Nas regiões em que os chimpanzés caçam macacos, os grupos são maiores durante a “temporada” de caça (NEWTON-FISHER; REYNOLDS; PLUMPTRE, 2000, p.  623-4). A presença de predadores é outro fator que pode levar à formação de grupos maiores (HASHIMOTO; FURUICHI; TASHIRO, 2001, p. 948).

Antes de anoitecer, os bonobos chamam uns aos outros e se reúnem em grandes grupos para construir seus ninhos e dormir. Os chimpanzés, ao contrário, não aumentam o ta-manho dos grupos no momento de dormir (WAAL, 1997, p. 81). A explicação para esse comportamento diferenciado pode ser ecológica. Os bonobos vivem em florestas mais ri-

11 É o que se infere dos dados relatados por Matsumoto-Oda et al. (1998, p. 1000-1), Pepper, Mitani e Watts (1999, p. 617), Wittig e Boesch (2003, p. 850), Kutsukake e Castles (2004, p. 158), Basabose (2005, p. 37) e Mitani (2006, p. 7).

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cas, que permitem a alimentação de um número maior de animais numa mesma área. Os chimpanzés vivem em lugares menos úmidos e até mesmo em regiões de transição para a savana, o que aumenta a necessidade de dispersão. McGrew (1992, p.  68) relata que o tamanho médio dos grupos de chimpanzés nas Montanhas Mahale era de 9 indivíduos. Os bonobos parecem formar grupos maiores, com cerca de 20 membros, raramente havendo deslocamento de indivíduos isolados. As comunidades de bonobos observadas têm entre 25 e 120 indivíduos (WAAL, 1997, p. 67-68).

3.3.2 Padrão de deslocamento

O deslocamento de antropoides e macacos em seu hábitat natural é primariamente determinado pela distribuição dos ve-getais que lhes servem de alimentos. Os chimpanzés de Kahuzi (Congo), por exemplo, visitam frequentemente as regiões onde a floresta primária está preservada, evitando, entretanto, as áre-as periféricas de seu próprio território. Um dos motivos para evitar a periferia pode ser a existência de outras comunidades de chimpanzés nas vizinhanças (BASABOSE, 2005, p. 51). Se-gundo Hashimoto et al. (1998, p. 1049-1059), os bonobos de uma comunidade de Wamba visitam diversas áreas da floresta (incluindo pantanosas, secas e degradadas pela ação humana) e usualmente se deslocam num ou dois grandes grupos contendo indivíduos de ambos os sexos.

[…] chimpanzés diariamente forrageiam extensiva-mente em busca de frutas, cobrindo grandes porções de seu território num curto período. Quando fontes importantes de comida se tornam escassas, a comu-

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nidade se dispersa em pequenos subgrupos, com grupos maiores de forrageadores se formando princi-palmente quando há frutas maduras em abundância (STANFORD; NKURUNUNGI, 2003, p. 914).

Na bibliografia que revisei sobre bonobos e chimpan-zés, não encontrei indicações de como esses animais decidem o rumo a seguir em seus deslocamentos. Provavelmente, eles lembram dos lugares anteriormente visitados e são suficien-temente inteligentes para associar a presença de frutas num determinado local com a existência de frutas nos locais onde árvores da mesma espécie podem ser encontradas. Ao que pa-rece, é isso o que fazem os macacos-aranha.

[…] é frequentemente observado que, durante o deslocamento, um indivíduo se destaca dos demais como líder e os outros o seguem de modo razoa-velmente passivo. O indivíduo líder frequente mente segue uma linha reta entre dois aglomerados de comida, como se soubesse para onde estava indo (BOYER et al., 2004, p. 330-331).

3.3.3 Caça

Mitani relata que os chimpanzés de Ngogo organizam expedições de caça, principalmente, durante os períodos de abundância de alimentos. Os machos são mais bem-sucedi-dos na caça do que as fêmeas e a taxa de sucesso dos chimpan-zés (acima de 50%) supera a dos carnívoros (inferior a 34%). Ao contrário dos chimpanzés de Ngogo, os de Gombe caçam apenas quando se deparam com as presas em suas buscas ro-tineiras por frutas e outros alimentos. Isso, provavelmente, está relacionado com o fato de a comunidade de Ngogo ser

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maior, pois o fator que melhor prediz o sucesso da caçada é o número de caçadores cooperando no empreendimento (MITANI, 2006, p. 7-9).

3.4 Sexualidade

Um gorila macho adulto ou mantém um harém ou vive sozinho. O sexo nessa espécie é praticado exclusivamente para fins reprodutivos e é extremamente raro um pesquisador de campo presenciar uma copulação. Já os chimpanzés são mais ativos sexualmente. Ao contrário do que ocorre entre os gori-las, vários machos adultos vivem na mesma comunidade e po-dem ter acesso às fêmeas em período fértil. As fêmeas sofrem inchaço da região genital durante esse período, o que as torna mais atraentes para os chimpanzés. Uma fêmea pode copular com vários indivíduos, apesar das tentativas do macho alfa do grupo de impedir que isso aconteça.

Como ocorre entre todos os seres sexuados, também entre chimpanzés e bonobos estão ativos mecanismos para se evitar o incesto. No caso das duas espécies, as fêmeas jo-vens deixam a comunidade em que nasceram e se integram a alguma outra.

Aparentemente, atividade sexual entre irmãos é pouco frequente lá [Gombe Stream], e acasalamento entre mãe e filho nunca foi observado. Fêmeas jovens se sentem fortemente atraídas por machos não familiares, os quais elas procuram fora de sua própria comunidade. Após o acasalamento, elas ou retornam, grávidas, para a própria comunidade ou permanecem com a nova comunidade. As fêmeas são cautelosas em aceitar parceiros na própria comunidade (WAAL, 1982, p. 165-166).

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As genitálias das fêmeas das duas espécies se tornam protuberantes e rosadas durante os dias férteis e, nesses mo-mentos, elas podem migrar de uma comunidade para outra sem sofrer agressão dos machos estranhos. A descrição se-guinte se refere aos bonobos, mas o processo é semelhante para os chimpanzés:

As fêmeas geralmente deixam a comunidade natal aos sete anos de idade, quando desenvolvem seus primeiros pequenos inchaços anogenitais. Equipadas com esses passaportes efetivos, elas se tornam “flutuantes”, visitan-do comunidades vizinhas antes de se estabelecer perma-nentemente em uma delas (WAAL, 1997, p. 116).

Claramente, na espécie humana, o sexo desempenha fun-ções adicionais, além da reprodutiva, e uma característica tida como tipicamente humana é a prática do sexo mesmo quando não há possibilidade de fertilização. Muitos também pensam que os casais humanos são os únicos entre todos os primatas a ter relações sexuais face a face. Essas crenças se justificavam até alguns anos atrás, quando as espécies relativamente bem conhecidas eram apenas os gorilas e chimpanzés. Atualmente, entretanto, sabe-se que os bonobos são sexualmente mais ativos do que os humanos e que também copulam face a face: “Em San Diego, mais de 80% das copulações entre adultos ou adoles-centes de sexo oposto são face a face. A proporção relatada em hábitats naturais gira em torno de 30%” (WAAL, 1989, p. 200).

Fêmeas de chimpanzés são sexualmente disponíveis por apenas cerca de 5% de sua vida adulta. Descontados períodos como menstruação, gravidez e menopausa, uma bonobo é sexual-mente receptiva por aproximadamente metade de sua vida adulta (WAAL, 1997, p. 107), o que deve ser próximo da disponibilida-

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de para o sexo das mulheres. As relações eróticas entre bonobos ocorrem em todas as combinações possíveis de sexo e idade, mas os machos somente ejaculam nos contatos com fêmeas maduras (WAAL, 1997, p. 206). Certamente, se os bonobos fossem conhe-cidos há mais tempo, as teorias predominantes sobre a origem do homem teriam sofrido impacto significativo:

Se os bonobos tivessem sido conhecidos antes, recons-truções da evolução humana poderiam ter enfatizado relações sexuais, igualdade entre machos e fêmeas e origem da família, ao invés de guerra, caça, tecnologia das ferramentas, e outras especificidades masculinas (WAAL, 1997, p. 2).

Numa frase que captura a essência da diferença entre chimpanzés e bonobos, Waal (1997, p. 32) diz: “O chimpanzé resolve problemas sexuais com poder; o bonobo resolve pro-blemas de poder com sexo”.

Na natureza, todos os animais agem de modo a deixar o maior número de descendentes possível, mas, basicamente, duas estratégias contrárias podem ser seguidas para se atingir esse objetivo. Uma é ter um grande número de filhos e esperar que a quantidade elevada seja garantia suficiente para que al-guns sobrevivam até a idade adulta e cheguem a se reproduzir. A outra estratégia é ter um pequeno número de filhos, mas investir pesadamente neles, procurando garantir que todos sobreviverão e se reproduzirão. Assim como os humanos, os antropoides seguem a segunda estratégia. O intervalo entre o nascimento dos filhos para as mulheres que vivem entre povos caçadores-coletores é de cerca de 3-5 anos; entre gorilas, cerca de 4 anos (AIELLO; WELLS, 2002, p. 334) e, entre chimpan-zés, aproximadamente, 5,5 anos e de 4,8 anos para os bonobos (FURUICHI et al., 1998, p. 1040).

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3.5 Inteligência Social e Empatia

3.5.1 Capacidade de planejar

Os antropoides são capazes de planejar o futuro. Tanto observadores de campo quanto observadores de animais vi-vendo em cativeiro relatam que os antropoides frequentemente agem de um modo que não pode ser explicado como reação instintiva ou mesmo reflexo condicionado. A única explicação coerente com os fatos é a de que eles são capazes de elaborar um cenário mental do que está por acontecer e reagem a esse cenário, como no exemplo seguinte:

É novembro e os dias se tornam mais frios. Nesta manhã particular, Franje coleta toda a palha da sua jaula (subobjetivo) e a leva sob seu braço para fazer um bom e aquecido ninho para si no exterior (objeti-vo). Franje não faz isso em reação ao frio, e sim antes de efetivamente sentir quão frio está do lado de fora (WAAL, 1982, p. 192).

3.5.2 Inteligência inconsciente não simbólica

É possível pensar conscientemente sobre algum proble-ma sem o uso de pensamento simbólico. Na maior parte do tempo, nós — e todos os outros animais — observamos o am-biente à nossa volta, calculamos o que é preciso fazer para atin-gir nossos objetivos e agimos sem ter nossa atenção voltada para cada detalhe do que fazemos. Nossa memória de trabalho é limitada, e somos capazes de manter nossa atenção apenas sobre um pequeno número de itens simultaneamente. Ou seja, podemos nos manter conscientes apenas de uma ínfima par-

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cela de tudo o que fazemos. Na verdade, nem sequer somos capazes de acessar conscientemente muitos dos processos que resultam em nossas ações “racionais”. Precisamos, por exem-plo, gastar vários segundos ou minutos para conscientemente analisar gramaticalmente uma frase para verificar se há algum erro de concordância. Mas fazemos isso constantemente e com grande rapidez enquanto falamos, embora sejamos incapazes de acessar por introspecção os processos mentais subjacentes à fala. Esse é apenas um exemplo de que ser inteligente não é necessariamente equivalente a ter consciência do que se faz.

Entretanto, uma das características consideradas distin-tivamente humanas é a ação consciente. Em um grau razoável, os seres humanos têm consciência do que fazem e até mesmo são capazes de pensar em si próprios como objetos. É fácil sa-ber que os humanos são capazes de pensamento consciente. Basta perguntar a qualquer pessoa porque agiu de tal forma e o que estava pensando enquanto agia. Sendo dotado de lin-guagem simbólica, o ser humano pode descrever o que tinha consciência de estar se passando em sua mente no momento em que agia. Para os outros animais, é preciso pensar em testes mais indiretos para determinar se eles são ou não capazes de pensamento consciente e de autoconsciência.

Ter autoconsciência ou ter uma noção de self é ser ca-paz de se reconhecer enquanto indivíduo distinto dos demais ou, em outras palavras, de imaginar a si próprio como um ob-jeto no mundo. A noção de self é importante para a compre-ensão do papel de outro indivíduo numa tarefa cooperativa e, portanto, para a ação coordenada e o trabalho em equipe. Entre os primatas, os macacos não têm demonstrado claras evidências de possuir noção de self, mas os antropoides, sim (CHALMEAU et al., 1997, p. 30).

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Um teste simples que tem sido aceito como bom indica-dor de que o animal possui consciência de si próprio consiste em observar como ele se comporta diante de um espelho:

Quando confrontados com um espelho pela primeira vez, todos os primatas são enganados. Eles respondem socialmente com ameaças ou gestos amigáveis e tentam olhar atrás do espelho. Com o tempo, entretanto, emer-ge uma diferença importante entre macacos e antro-poides. A maior parte dos macacos segue tratando sua imagem como um companheiro ou inimigo até que seu interesse gradualmente se desvanece. Os antropoides, em contraste, começam a usar o espelho para inspecio-nar as partes do corpo (dentes, traseiro) que normal-mente não conseguem ver. Eles também se divertem fazendo caretas ou se decorando (colocando vegetais na cabeça, por exemplo) (WAAL, 1989, p. 83-85).

A vantagem do teste do espelho reside em sua obje-tividade. Se o animal usa o espelho como ferramenta para conhecer melhor seu próprio corpo, ele está demonstrando claramente que possui capacidade de pensar em si próprio como um objeto a ser estudado e manipulado.

3.5.3 Capacidade de enganar

Leakey (1994, p.  151) aponta a capacidade de mentir ou, melhor, o nível de sofisticação das mentiras, como outro indício da existência de autoconsciência. A mentira, em sen-tido amplo, é largamente praticada por plantas e animais sem absolutamente nenhuma implicação de que eles tenham cons-ciência do que estão fazendo. O mimetismo pode ser conside-rado o exemplo mais claro desse tipo de mentira. Alguns casos

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de mentira, entretanto, não podem ser explicados como ca-racterísticas físicas ou comportamentais geneticamente deter-minadas ou mesmo como resultado de reflexo condicionado. Alguns casos de tentativa de enganar o outro envolvem a pre-visão de vários estágios das ações e reações próprias e do outro indivíduo (como num jogo de xadrez) e ocorrem em situações novas, podendo ser descartada a possibilidade de reflexo con-dicionado. Além dos seres humanos, somente os antropoides revelam capacidade para produzir mentiras com esse nível de sofisticação, como nos exemplos seguintes:

Um chimpanzé macho adulto estava sozinho numa área de alimentação quando uma caixa foi aberta eletronicamente, revelando a presença de bananas. Nesse momento, um segundo chimpanzé chegou e o primeiro, imediatamente, fechou a caixa e come-çou a andar calmamente, olhando como se nada fora do usual tivesse acontecido. Ele esperou até o intru-so sair e, então, rapidamente, abriu a caixa e pegou as bananas. Entretanto, ele fora enganado. O intruso não havia saído; ele havia se escondido e estava espe-rando para ver o que se passava. Aquele que seria o esperto foi enganado. Esse é um exemplo persuasivo de engano tático (LEAKEY, 1994, p. 152).

[…] ele [o orangotango Chantek] roubou a borracha do seu cuidador, fingindo tê-la engolido e como “pro-va” de que o fez abriu sua boca e sinalizou ALIMEN-TO-COMER (MILES; HARPER, 1994, p. 263).

De acordo com Miles e Harper (1994, p. 263), para um indivíduo ser capaz de se exercitar em mentiras com esse ní-vel de sofisticação, ele precisa elaborar um cenário mental

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da realidade, elaborar um cenário de como essa realidade é percebida pelos outros indivíduos e ser sagaz o bastante para planejar ações que deverão mudar a percepção que esses ou-tros indivíduos têm da realidade, de modo a fazê-los agir favo-ravelmente ao mentiroso. Para negar que os antropoides têm consciência de si próprios e de que muitas vezes representam um papel conscientemente, seria preciso restringir o conceito de consciên cia ao uso de linguagem simbólica.

Outro indício da capacidade dos antropoides de pensar em si próprios como objetos e do uso dessa capacidade para enganar os outros é um certo grau de controle consciente da expressão das emoções por eles demonstrado. Tanto as emoções quanto os instintos têm uma clara base biológica, mas as emo-ções alcançam maior evidência na nossa consciência, como fica claro pelo episódio protagonizado por Luit, um chimpanzé ma-cho adulto no zoológico de Arnhem, na Holanda:

Quando ouviu os sons de provocação renovados, ele descobriu os dentes, mas, imediatamente, colocou suas mãos sobre a boca e juntou os lábios. Não pude acreditar no que via e rapidamente focalizei meu bi-nóculo nele. Eu vi o sorriso nervoso aparecer na sua face novamente e mais uma vez ele usou seus dedos para juntar os lábios. Na terceira vez, Luit finalmente foi bem-sucedido em eliminar o sorriso de sua face; somente então ele se virou (WAAL, 1982, p. 133).

Chimpanzés e bonobos demonstram frequentemente que são bastante inteligentes, e sua inteligência, certamente, é derivada da complexidade de sua vida social:

Embora um número considerável de habilidades prá-ticas seja, sem dúvida, exigido a fim de explorar fontes

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de alimentos diferentes e amplamente distribuídas, es-sas habilidades se tornam relativamente básicas, quan-do comparadas com as demandas intelectuais de fazer e manter alianças sociais, fazer manobras políticas para conseguir progressos sutis em status social, e de simplesmente interagir com outro indivíduo essencial-mente imprevisível (LEAKEY; LEWIN, 1996, p. 170).

3.5.4 Empatia

O termo empatia costuma ser empregado com o signi-ficado de capacidade de se colocar no lugar do outro, ou seja, habilidade para imaginar o que o outro está pensando e sen-tindo. Nos momentos de empatia, o indivíduo imagina o que pensaria, o que sentiria e como reagiria se estivesse na situação em que o outro se encontra. No caso dos seres humanos, o “se colocar na situação do outro” pode ser algo tão complexo quanto imaginar como seria ter a idade, o sexo, a educação, a profissão, as amizades etc. do outro indivíduo.

Teoricamente, é possível imaginar uma espécie de empatia objetivamente informada, em que o sujeito não precisa se imaginar no lugar do outro para criar hipóteses sobre quais são seus pensamentos e sentimentos. Ele parti-ria de premissas sobre como os indivíduos do tipo observa-do pensam e o que sentem em determinadas circunstâncias para imaginar o que um indivíduo específico está pensan-do e sentido. Um psicopata incapaz de sentir remorsos, por exemplo, poderia usar seu conhecimento teórico de que pes-soas sentem remorsos quando se tornam conscientes de ter cometido uma injustiça para manipular o comportamento de algum indivíduo. Ao que tudo indica, entretanto, os in-divíduos reais devem sua capacidade de empatia, princi-

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palmente, à sua capacidade de imaginar a si próprios como objetos. Ou seja, a autoconsciência é um pré-requisito para a empatia. A propósito, são justamente os animais que pas-sam no teste do espelho os que demonstram capacidade de empatia, como no exemplo seguinte:

[…] chimpanzés são famosos por serem bons negocia-dores. Estudos experimentais indicam que a habilidade é adquirida sem nenhum treinamento específico. Todo zelador de zoológico que já esqueceu sua vas soura numa jaula de babuínos sabe que não há outra forma de consegui-la de volta sem entrar na jaula. Com chim-panzés é mais simples. Mostre-lhe uma maçã e aponte para a vassoura; eles entendem a proposta e passam o objeto pelas barras (WAAL, 1989, p. 82).

É preciso ser capaz de “ler a mente” do outro para que uma troca seja realizada, e, como pode ser visto no exemplo acima, esse pré-requisito para existência de uma sociedade capitalista (e de qualquer sociedade complexa) já está embrionariamente presente nos antropoides. De acordo com os pesquisadores que trabalham diretamente com esses animais, eles são tão perspica-zes quanto os humanos para perceber mudanças sutis no estado de humor das pessoas com quem convivem:

Ninguém que trabalhe com antropoides adultos pode deixar de se sentir estranhamente transparente. Os an-tropoides respondem a todo tipo de humor antes de percebermos que estamos nervosos, deprimidos ou irritados naquele dia. E eles leem nossas mentes quan-do tentamos esconder algo desagradável, como a visita iminente do veterinário (WAAL, 1989, p. 220).

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Os antropoides não são capazes de falar — talvez por limitações neurológicas (FITCH, 2005, p.  200) — e, em seu ambiente natural, não usam uma linguagem simbóli-ca complexa. Mas eles possuem um amplo repertório de gestos e expressões faciais que os ajuda a comunicar seus desejos e estado de espírito:

Todos os (mais de cem) padrões de comportamento regularmente observados em chimpanzés na nossa co-lônia também foram observados no seu hábitat natural. A face de brincadeira, o sorriso e o gesto de pedinte não são imitações do comportamento humano, mas formas naturais de comunicação não verbal que humanos e chimpanzés têm em comum (WAAL, 1982, p. 36).

Frans Waal argumenta — e exemplifica ao longo de todo o seu livro — que os chimpanzés, com suas complexas estra-tégias de formação de alianças para subir na hierarquia da co-munidade, demonstram uma inventividade social comparável à dos humanos (WAAL, 1982, p. 51). É claro que o autor se refere apenas às táticas de formação de alianças que se limi-tam a tentativas de conquistar aliados e vencer inimigos entre os poucos indivíduos que compõem o próprio grupo, embora muitas vezes tratando-se de estratégias empregadas por vários anos até darem os resultados esperados. Ainda está reservada apenas aos humanos a capacidade de pensamentos mais abs-tratos, que levam à formação de alianças entre tribos e à pre-ocupação com as gerações futuras. Tais habilidades exigem o uso de um pensamento conceitual de nível mais elevado do que qualquer primata não humano seja capaz de possuir.

Bonobos e chimpanzés apresentam desempenhos di-ferentes quando suas habilidades cognitivas são comparadas, como fica claro pelas citações seguintes:

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[…] em tarefas como montagem de quebra-cabeças, uso de ferramentas, labirintos e assim por diante, Panzee [uma chimpanzé] tem sempre estado à fren-te de Panbanisha [uma bonobo]. Em qualquer coisa fora do domínio da comunicação social, envolvendo manipulação de objetos ou orientação espacial, os chim pan zés estão seguramente à frente. Quando se trata de habilidades comunicativas e perceptivas, tais como combinar imagens de televisão com a narra-tiva, a bono bo é sempre mais avançada (SAVAGE--RUMBAUGH apud WAAL, 1997, p. 40).

Se forem comparadas a habilidade de usar ferramentas ou o uso de parceiros para objetivos estratégicos, os bo-nobos não são particularmente espertos. Mas quando se olha para relações sociais íntimas, sua cognição é altamente desenvolvida devido à sua longa dependên-cia quando crianças. Nos domínios de relações, afeição e evitação de conflitos, eles são muito inteligentes. Por exemplo, chimpanzés são incapazes de desenvolver re-lações pacíficas com outros grupos. Sua organização so-cial é focada em como tirar vantagem e como lutar com outros grupos (KURODA apud WAAL, 1997, p. 61).

Em relação a agressividade e comportamento político, os chimpanzés estão mais próximos de nós do que os bono-bos. Quanto ao comportamento afetivo, ocorre o inverso, os bonobos são mais semelhantes a nós do que os chimpanzés. E quanto ao relacionamento entre os sexos, os bonobos são mais igualitários do que os humanos, tendo mesmo revertido a hierarquia entre machos e fêmeas. Num grupo de bonobos, são as fêmeas que lideram. Bonobos fêmeas possuem ligações mais fortes entre si do que os machos, e também mais fortes do que os relacionamentos entre machos e fêmeas. Os ma-

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chos, mesmo os adultos, são dominados pelas fêmeas, e o ma-cho alfa depende do apoio das fêmeas, principalmente de sua mãe, para manter a posição (WAAL, 1997).

Para desenvolver sua capacidade de empatia, humanos e antropoides fazem uso da mesma técnica: quando crianças, brincam muito de faz de conta. Tanto crianças humanas quan-to os filhos pequenos de chimpanzés e, principalmente, bono-bos gostam muito de fingir que desempenham determinado papel, o que pode ser considerado um exercício em teoria da mente, ou seja, um exercício que ajuda no desenvolvimento da capacidade de empatia. Como argumentam Whiten e Byrne (1988, p. 59), é de se esperar que espécies socialmente inteli-gentes sejam adeptas das brincadeiras sociais. Um exemplo da criatividade e interesse dos chimpanzés por essas brincadei-ras ocorreu no zoológico de Arnhem quando um dos machos adultos ficou ferido após uma briga:

Todos os ferimentos foram superficiais, mas Luit não andou sobre sua mão pelos próximos dias. (Ao invés disso, ele ficou apoiando seu peso sobre o pulso. Sur-preendentemente, todos os jovens antropoides o imi-taram e repentinamente começaram a cambalear sobre os pulsos.) (WAAL, 1982, p. 135).

3.5.5 Capacidade de pensamento abstrato

É claro que é mais fácil saber como se comportar ade-quadamente com os indivíduos conhecidos, dos quais se co-nhece o temperamento e a posição na hierarquia do grupo, do que com estranhos. Quanto maior a sociedade e quanto maior o número de estranhos com quem é preciso lidar, mais incer-to se torna o cálculo do comportamento apropriado. Nessas

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ocasiões, a capacidade para o pensamento abstrato pode ser útil. Se o indivíduo conseguir abstrair regras gerais das rela-ções sociais que conhece e aplicar essas regras na previsão do comportamento de estranhos, ele conseguirá reduzir enor-memente a necessidade de memorizar as características indi-viduais de um grande número de indivíduos com quem tem contatos apenas esporádicos. Ainda mais importante, ele terá uma noção de como agir com um estranho com quem está se encontrando pela primeira vez. Indivíduos muito abaixo ou muito acima da hierarquia não precisariam ter todas as suas interações lembradas; eles seriam apenas reconhecidos como pertencentes a determinada categoria.

Se os chimpanzés fossem capazes de integrar informa-ções sobre relações de dominação de terceiros […], eles poderiam explorar essa informação ao categorizar outros membros da sua comunidade, seja simplesmen-te atribuindo níveis de status a indivíduos, seja usando conjuntos únicos de informação sobre cada indivíduo. O primeiro seria aparentemente um processo cogni-tivo mais simples e seria mais fácil num sistema so-cial de fissão-fusão em que o conhecimento sobre as interações de terceiros é necessariamente imperfeito. Tal categorização permitiria aos indivíduos se con-centrarem nas relações de dominação importantes (NEWTON-FISHER, 2004, p. 84).

Segundo Seyfarth e Cheney (1988, p. 80), até mesmo macacos têm uma certa capacidade de pensamento abstrato:

Inicialmente, os animais [macacos vervet] reconhecem outros como indivíduos; depois, eles formam associa-ções com os outros; e, quando ficam mais maduros, formam associações entre associações, reconhecendo

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que, apesar dos diferentes indivíduos envolvidos, as re-lações compartilham propriedades semelhantes.

Por exemplo, após observar algumas mães protegerem seus filhotes, um macaco é capaz de abstrair dessa observa-ção as categorias de mãe, filhote e proteção e aplicar a regra de que as mães protegem seus filhotes quando encontram indiví-duos desconhecidos. Ele não irá provocar ou atacar o macaco menor do que ele enquanto a mãe do mais fraco estiver por perto para protegê-lo. Uma vantagem de possuir a capacidade de classificar os outros em grupos e de lhes atribuir caracterís-ticas estereotipadas reside em evitar a complicação que seria calcular como se comportar com cada um dos indivíduos de um grupo grande. Essa vantagem não pode ser subestimada; a complexidade das relações sociais tem potencial para crescer exponencialmente com o número de indivíduos:

Para competir, sobreviver e se reproduzir, um indiví-duo deve, portanto, fazer julgamentos sobre as relações que existem entre os outros. Isso pode ser feito pela memorização de todos os membros do grupo, bem como de todas as interações de cada par. […]. Alter-nativamente, um macaco vivendo em grupo pode classificar as relações que observa em categorias. Esse método tem duas vantagens. Primeiro, ele permite aos indivíduos identificar rapidamente tipos de relações e prever o comportamento de outros baseados em informações parciais. […]. Segundo, à medida que o grupo cresce, a formação de categorias (e o julgamento baseado em categorias) provê um método crescente-mente eficiente para memorizar as características das relações e prever o que os indivíduos farão em seguida (SEYFARTH; CHENEY, 1988, p. 82-3).

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É claro que a capacidade de abstração dos macacos e mesmo dos antropoides é muito limitada. Eles não conseguem formular uma visão global da sociedade ou planejar a criação de uma nova instituição social (WAAL, 1989, p. 141).

3.5.6 Memorização de favores e senso de justiça

Algumas habilidades cognitivas podem facilitar a co-operação entre indivíduos. A capacidade de memorizar os resultados das interações mais recentes com outros indiví-duos, por exemplo, é um pré-requisito para a existência do que Brosnan e Waal (2001, p. 147) chamam de reciprocida-de calculada, mas que também pode ser interpretada como gratidão. E a gratidão pode vir a ser um fator importante em modelos computacionais de evolução da cooperação (AQUINO, 2003). Mas até mesmo os chimpanzés, que estão entre os antropoides mais evoluídos, apresentam evidências inequívocas somente de tipos menos complexos de recipro-cidade (BROSNAN; WAAL, 2001, p. 148).

Entre as emoções sociais importantes para a evolução da coope ração, é interessante observar que até mesmo macacos capu-chinhos possuem uma reação emotiva semelhante à dos indivíduos praticantes da reciprocidade forte. Esses macacos costumam com-partilhar comida em seu hábitat natural e, em cativeiro, parecem apresentar um certo senso de justiça, ficando revoltados quando veem um companheiro receber dos pesquisadores um prêmio maior do que o seu pelo mesmo esforço:

[…] o maior crescimento na recusa de realizar a troca ocorria se um parceiro recebesse um prêmio melhor sem nenhum esforço. […]. Ainda mais curioso do que

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uma redução na taxa de resposta condicionada foi a segunda maneira na qual as trocas falharam: recusa de aceitar ou consumir o prêmio. Ao fazer isso, os sujeitos rejeitavam uma comida diretamente acessível que eles prontamente aceitavam e consumiam em quase qual-quer outro conjunto de circunstâncias (BROSNAN; WAAL, 2003, p. 298).

Os antropoides que foram ensinados a se comunicar por linguagem de sinais conseguem expressar seus sentimentos usando os conceitos de bom e mau, que, juntamente com a noção de equidade — apresentada até mesmo por macacos —, podem ser considerados os ingredientes básicos para a cons-trução de um sistema de justiça mais complexo:

Embora um sistema ético adulto esteja ausente, antro-poides aculturados têm demonstrado a internalização de conceitos infantis de bom e mau quando perseguem aves barulhentas dando alarmes e se autorrotulam de MAUS quando se comportam inadequadamente (MILES; HARPER, 1994, p. 274).

3.6 Hierarquia e Disputa de Poder

3.6.1 Conflitos entre comunidades

Por muito tempo se pensou que os humanos, além de al-guns insetos sociais, fossem os únicos animais a fazer guerra. In-felizmente, essa crença estava equivocada. Esse é mais um t raço de “humanidade” que pode ser encontrado nos chimpanzés.

Há diversos relatos de ataques rápidos realizados por grupos de chimpanzés. Tipicamente, um grupo de três ou mais chimpanzés caminha silenciosamente rumo a uma comunidade

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vizinha — adentrando em torno de um quilômetro no território da outra comunidade — e ataca e mata um macho adulto ou os filhos pequenos de alguma fêmea que encontre. O caniba-lismo é frequente durante os infanticídios. Aparentemente, os chimpan zés também “patrulham” as fronteiras de seu território regularmente, atacando indivíduos de outras comunidades que estejam sozinhos (WILSON; WALLAUER; PUSEY, 2004, p. 526; BASABOSE, 2005, p. 50; MITANI, 2006, p. 9). Durante o patru-lhamento das fronteiras, os chimpanzés tornam-se silenciosos e vigilantes quando próximos dos limites da comunidade, como na descrição de um desses eventos feita por Watts (2004, p. 511):

[…] os machos seguiram rápida e silenciosamente para a periferia oriental de seu território; entraram em áreas onde os observadores sabiam que eles haviam previamente ouvido ou encontrado membros de outra comunidade; continuaram seguindo para leste e, en-tão, sul por várias horas e, alternadamente, sentavam--se e escutavam atentamente, mantendo alta vigilância. Eles não encontraram chimpanzés de outras comuni-dades e se dispersaram depois de retornar para o oeste e reentrar na parte central do seu território.

Na comunidade de Ngogo, o patrulhamento das frontei-ras é feito cerca de uma vez a cada dez dias; em comunidades menores, a frequência é mais baixa (MITANI, 2006, p. 9).

Em Gombe, uma comunidade de chimpanzés começou a se dividir em duas por volta de 1970 e, em 1973, os dois grandes gru-pos já eram praticamente duas comunidades distintas. Os machos de uma das comunidades começaram, então, a matar os machos da outra e a aumentar seu próprio território. Em 1976, o último macho da comunidade mais fraca foi morto (PUSEY et al., 2005, p. 25). Um detalhe importante a ser notado é que os grupos exterminado

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e exterminador eram, originalmente, um só. Ou seja, os animais dos dois grupos possuíam laços de parentesco. Vale também ressal-tar que os chimpanzés de Gombe estão entre os menores entre os que vivem livres, e a redução na estatura ocorreu em décadas recen-tes, como atestam ossadas de animais mortos (PUSEY et al., 2005, p. 24). Não há dados suficientes para explicar por que os chimpan-zés de Gombe são menores, segundo Pusey et al. (2005), mas uma possibilidade a ser considerada é que eles estivessem passando por um período de superpovoamento, o que resultava em subnutrição e aumento da violência (disputa intracomunidade por comida e en-tre comunidades por território).

Em dois ataques testemunhados e detalhadamente descri-tos por Wilson, Wallauer e Pusey (2004), fica claro que os chim-panzés não estavam fazendo uma excursão de caça ou em busca de alimentos vegetais, pois eles praticamente não se alimentaram durante os ataques e, numa das ocasiões, não caçaram um grupo de macacos que encontraram no caminho. Além disso, o compor-tamento silencioso, a atenção aos sons do ambiente, a observação cuidadosa das copas das árvores e os pelos eretos indicavam que eles procuravam algo e que estavam conscientes do risco envol-vido no empreendimento. Em um dos ataques, os chimpanzés encontraram um jovem macho de cerca de 10 anos de idade e o espancaram por cerca de vinte minutos, abandonando-o ainda com vida, mas provavelmente mortalmente ferido. No outro, eles atacaram duas fêmeas e arrancaram seus filhotes de seus braços, lançando um deles a sete metros de distância e matando e comen-do parte do corpo do outro. Durante os ataques, os machos foram acompanhados por algumas fêmeas da própria comunidade, que também tiveram alguma participação na violência.

Os chimpanzés machos são mais violentos do que as fê-meas, mas são também as vítimas mais frequentes dos ataques.

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Wilson, Wallauer e Pusey (2004, p. 544-5) contabilizaram os casos de filhotes já desmamados que foram mortos em ata-ques entre comunidades e constataram que, de onze vítimas, dez eram machos. Os dados coletados ao longo de décadas em Gombe permitem perceber uma correlação positiva entre o sucesso reprodutivo das fêmeas e o tamanho do território ocu-pado (WATTS, 2004, p. 508). Ao atacar machos de outras co-munidades, preservando, entretanto, as fêmeas, os chimpanzés aumentam o território da própria comunidade e a proporção relativa de fêmeas na região.

É interessante observar que o comportamento clara-mente direcionado a um fim e o nível de coordenação das ações demonstrado nos ataques indicam a existência de uma capacidade de planejamento e de comunicação de intenções por muito tempo insuspeitada.

Como na descrição de guerras dos índios yanomamis (CHAGNON, 1968) e dos parakanãs (FAUSTO, 2001), não se trata de um empreendimento organizado, com grandes exér-citos entrincheirados. A guerra de exércitos parece ser uma invenção humana recente. Sociedades de chimpanzés e socie-dades humanas com tecnologia primitiva fazem guerra de um modo semelhante. Os indivíduos são mortos aos poucos:

[…] machos saudáveis de uma comunidade desapa-receram um por um com o passar dos anos até seu território ser completamente tomado por duas outras comunidades. Em vista da sua extrema territoriali-dade, chimpanzés machos quase podem ser conside-rados como cativos em seu próprio grupo; eles não podem deixar seu território sem correr grande perigo (WAAL, 1989, p. 72).

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Os encontros pacíficos entre comunidades de bonobos contrastam com a aparente impossibilidade dos chimpanzés de formarem alianças entre comunidades. Mas, num certo sentido, também é possível fazer uma analogia entre a fundamentação da paz entre bonobos e as alianças entre tribos de povos tecno-logicamente primitivos. Para os yanomamis, o grau máximo de aliança entre duas tribos é alcançado quando há troca de mulhe-res. Ao fazerem isso, ambas passam a ter parentes na outra tribo e a confiança mútua aumenta. Com os bonobos ocorre algo se-melhante. O grau de parentesco entre animais de comunidades diferentes é maior do que entre os chimpanzés12:

Provavelmente, sempre é do interesse dos machos evitar que fêmeas de seu grupo copulem com machos de outros grupos. Essa restrição não é do interesse das fê meas, en-tretanto, porque ela limita a escolha de parceiros. Uma vez que as fêmeas alcançaram o poder de decisão, os machos perderam o controle sobre essa questão crítica. Uma vez que as copulações entre machos e fêmeas de diferentes co-munidades ocorrem regularmente, fica, consequentemen-te, reduzida a competição entre os machos por território e pelas fêmeas neles contidas. Primeiro, porque alguns dos competidores — os machos “inimigos” em territórios vizinhos — podem muito bem ser seus irmãos, pais e fi-lhos. Segundo, porque os machos não precisam se arriscar em batalhas para ter acesso a fêmeas se há oportunidade de fertilizá-las durante as misturas de comunidades. Em suma, relações sexuais entre grupos podem ter removido algumas das vantagens evolutivas que os machos ganha-vam com guerras entre grupos (WAAL, 1997, p. 189).

12 O leitor deve observar, entretanto, que a existência de parentesco não impediu a guerra entre os chimpanzés. E também não impede entre os humanos.

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Uma diferença fundamental entre humanos e bonobos é que as tribos humanas trocam mulheres de modo consciente, como resultado de um cálculo racional, visando reduzir o risco de ser atacados e facilitar a formação de alianças, enquanto os bonobos simplesmente são pacíficos o suficiente para tolerar a presença de indivíduos de outras comunidades. Nessas oca-siões eles agem guiados pelas emoções, sem nenhum cálculo consciente das consequências de longo prazo de suas ações.

3.6.2 Conflitos intracomunidade

Uma condição propiciadora de conflitos é a existência de recursos monopolizáveis, por exemplo, uma fruta ou uma colônia de insetos (WITTIG; BOESCH, 2003, p. 851). Nesses casos, é pre-ciso, de alguma forma, decidir qual membro do grupo terá acesso privilegiado ao recurso escasso. O conflito é uma das formas de decidir a situação. Numa disputa entre dois indivíduos, o mais forte tem maiores chances de vencer, mas não deixa de correr ris-co de ser ferido. Assim, se todas as situações de escassez fossem resolvidas pelo conflito, o gasto energético com a luta e o esforço metabólico para se recuperar de ferimentos tornariam extrema-mente alto o custo da obtenção de alimentos, não sendo possível a vida social. No caso dos chimpanzés, a permanente fissão e fusão dos grupos que compõem uma comunidade, por um lado, cria uma oportunidade para a redução das tensões ao deixar aberta para cada indivíduo a possibilidade de acompanhar outro grupo e, por outro lado, também reduz a necessidade de reconciliação (KUTSUKAKE; CASTLES, 2004, p. 163).

A existência de uma hierarquia bem definida reduz o cus-to do conflito ao torná-lo restrito ao estabelecimento da própria hierarquia (WITTIG; BOESCH, 2003, p. 849). A hierarquia é

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obviamente vantajosa para os indivíduos dominantes, que têm acesso privilegiado aos recursos escassos praticamente sem ne-nhum esforço. Por exemplo, segundo Wittig e Boesch (2003, p. 860), as chimpanzés dominantes de Taï (Costa do Marfim) conseguem aproximadamente 500 gramas de carne por caçada bem-sucedida, sendo 80 gramas o valor médio para as fêmeas. De maneira geral, os dominantes têm vantagens consideráveis: as fêmeas conseguem ter filhos mais fortes e mais saudáveis, com maiores probabilidades de chegar à idade adulta; os ma-chos, além de se alimentarem melhor, copulam mais frequente-mente com fêmeas no cio, embora não consigam monopolizá-las (WITTIG; BOESCH, 2003, p. 848). De um grupo de 12 machos em Budongo (Uganda), o indivíduo mais alto na hierarquia foi observado copulando cerca de 40 vezes, e o mais baixo, 15 vezes (NEWTON-FISHER, 2004, p. 85).

A violência no interior de uma comunidade de chim-panzés não se restringe a pequenos conflitos de poucas con-sequências, incluindo pancadas, mordidas e demonstrações de disposição para a luta. Em alguns casos, os conflitos resul-tam na morte de um dos indivíduos envolvidos. Watts (2004, p. 509), por exemplo, testemunhou um ataque fatal de vários machos de Ngogo a um membro da própria comunidade, provavelmente porque a vítima era um macho “ambicioso e socialmente periférico”. No caso dos infanticídios, a vítima ge-ralmente tem uma probabilidade maior do que a média de ser descendente de um macho de outra comunidade, seja porque sua mãe migrou recentemente, ou porque ela percorre com frequência a periferia do território (WILSON; WALLAUER; PUSEY, 2004, p. 525). Está mais protegida uma criança cujo pai pode ser qualquer um dos machos da comunidade, o que explica o comportamento sexual das fêmeas:

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Ngogo tem cerca de duas vezes mais fêmeas adultas do que machos adultos, mas uma fêmea com seu inchaço anogenital no máximo pode ter todos os machos se-xualmente maduros da comunidade a acompanhando e tentando copular com ela, e as fêmeas de Ngogo, em seus 4 dias de intumescência (presumivelmente, em pe-ríodo periovulatório), têm copulado com pelo menos 20 machos adultos e 5 adolescentes em um único dia (WATTS, 2004, p. 517).

Para evitar o infanticídio, as fêmeas seguem basicamente três estratégias: copular com o macho dominante, copular com os machos que provavelmente serão dominantes no futuro e copular com vários machos para disseminar a incerteza sobre a paterni-dade. A “poliandria” é, nesse caso, uma defesa contra o infanticí-dio (PAUL, 2001, p. 895). Note-se, entretanto, que não há registro de infanticídios entre os bonobos, e talvez esse fato esteja entre as causas da mortalidade infantil ser menor entre eles (FURUICHI et al., 1998, p. 1039).

3.6.3 Existência de hierarquia e deferência

Os modelos revisados no capítulo anterior não apresen-tam estruturas hierárquicas entre os agentes. Mas as sociedades primatas e humanas são hierarquizadas.

Os chimpanzés frequentemente vocalizam um som breve e relativamente grave em direção aos indivíduos de posição do-minante.13 Tais “sinais de deferência” são emitidos espontanea-

13 Em inglês, essa vocalização é chamada de pant-grunt, que poderia ser traduzida literalmente como “gemido ofegante”; grunt significa também, na gíria norte-ameri-cana, indivíduo que está na base de uma hierarquia (trabalhador braçal ou soldado raso, por exemplo).

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mente, sendo 16 vezes mais comuns entre machos do que entre fêmeas e 4 vezes mais comuns entre indivíduos de sexo oposto do que entre fêmeas (WITTIG; BOESCH, 2003, p. 853). Entre os chimpanzés, os machos adultos são quase invariavelmente superiores hierarquicamente às fêmeas. Entre os bonobos, ocor-re o contrário: as fêmeas têm prioridade de acesso aos alimentos (FURUICHI et al., 1998, p. 1039).

Os indivíduos subordinados abdicam de fazer qualquer tentativa de ter primazia no acesso aos recursos escassos, mas, em compensação, deixam de gastar energia num conflito em que as chances de perder são maiores do que as de ganhar (NEWTON--FISHER, 2004, p. 81). Segundo Waal (1982, p. 90), o primeiro sinal observável de que um chimpanzé pretende disputar o poder com outro é a interrupção da emissão de sinais de deferência.

3.6.4 Conflitos entre bonobos

Os bonobos machos vivem num clima de competição muito mais moderado do que os chimpanzés. Os bonobos al-cançaram um equilíbrio em que as fêmeas, mesmo migrando para outras comunidades quando jovens, são dominantes.

Se há uma hierarquia entre as fêmeas, ela é predomi-nantemente baseada mais na senioridade do que na intimidação física: as fêmeas mais velhas geralmente têm status mais elevado do que as jovens e as fêmeas de mais baixo status são as que imigraram recentemente de outras comunidades (WAAL, 1997, p. 73-74).

Chimpanzés machos criados por humanos ge ral men te são tratados como se fossem um membro da família so men te até o início da adolescência. Depois disso, como já men cio-

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na do, eles se tornam muito mais fortes que os humanos e, se irritados, podem ser perigosos porque têm consciência de sua superioridade física. Os bonobos machos são muito mais calmos, e sua convivência com humanos é tranquila. Eles também são muito mais fortes do que os humanos, mas pare-cem estar sempre preocupados em não entristecer as pessoas com quem convivem. É claro que bonobos e chimpanzés não são preocupados ou agressivos apenas com os humanos, mas também entre si:

Não penso que os chimpanzés são menos preocupa-dos uns com os outros, mas sinto que eles são menos conscientes. Se os chimpanzés estiverem conscien-tes da situação de outro, eles podem ser igualmente protetivos e cuidadosos, mas os bonobos estão mais constantemente verificando uns aos outros. E isso não somente quando o outro pode estar com proble-mas; isso se aplica igualmente em situações em que eles querem enganar o outro (WAAL, 1997, p. 38).

3.6.5 Formação de alianças

Mesmo entre macacos, as disputas de poder envolvem um nível elevado de inteligência social quando compara-do aos conflitos entre outros mamíferos. Macacos vervet e babuínos, pelo menos até certo ponto, são capazes de levar em consideração as relações sociais dos seus rivais e as suas próprias no momento de decidir ser agressivo, se defender ou fugir em uma situação de conflito, como ilustram as duas citações seguintes:

O que começa como um conflito entre dois indivíduos rapidamente se amplia e passa a incluir amigos e pa-

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rentes, e pode ser influenciado por crises de agressão recentes. “Os macacos não apenas preveem o compor-tamento uns dos outros; eles também têm que conside-rar suas relações” (LEAKEY, 1994, p. 146-147).

Após um encontro [agressivo] entre babuínos machos, não é incomum que um deles procure a amiga favorita do rival e descarregue nela suas tensões (WAAL, 1989, p. 109).

Entre animais com esse nível de sofisticação cognitiva, as hierarquias se tornam contingentes, ou seja, dependentes de quais indivíduos estão se relacionando em determinado momento.

Por exemplo, um macaco A domina seu par B quando as suas mães não estão por perto, mas o inverso ocorre quando elas se aproximam. Essas inversões ocorrem se a mãe de B é dominante em relação à mãe de A (WAAL, 1982, p. 183).

Os chimpanzés machos de uma comunidade competem entre si pelas fêmeas, mas precisam, simultaneamente, coope-rar mutuamente para se defender dos machos de outras co-munidades e também porque somente por meio de alianças com outros um deles consegue alcançar o topo da hierarquia. Quando o número de machos num grupo se reduz, a proba-bilidade das fêmeas se transferirem para outro grupo aumenta (SAVAGE-RUMBAUGH, 1994, p. 41).

Em geral, as fêmeas mais corpulentas são as mais domi-nantes, mas a correlação entre peso e posição na hierarquia não é tão grande entre os machos (PUSEY et al., 2005, p. 20). Para eles, um fator importante para subir na hierarquia, e que reduz a im-portância da força física, é a habilidade de formar alianças, como, por exemplo, a existente entre os chimpanzés de Budongo:

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Dois machos, DN e VN, dividiam o mais alto status social na primeira metade de 1995. Eles eram parceiros em uma aliança: desempenhavam juntos cenas de per-seguição, se associavam e se catavam frequentemente” (NEWTON-FISHER, 2004, p. 84).

Um claro indicador da existência de relações amistosas entre antropoides e macacos é a frequência com que eles se aproximam uns dos outros para se acariciar e catar parasitas (grooming). Observações metódicas de chimpanzés selvagens revelam que os machos mantêm contato físico mais frequente com indivíduos do mesmo sexo do que as fêmeas, e que o contato entre machos e fêmeas parece se limitar ao contexto reprodutivo (PEPPER; MITANI; WATTS, 1999, p. 625-6). De acordo com a análise estatística de Pepper, Mitani e Watts, chimpanzés fêmeas procuram deliberadamente a companhia umas das outras (apesar da pouca catação entre elas):

Vários estudos anteriores notaram a ocorrência regu-lar de reuniões para cuidar de crianças constituídas de várias mães e seus filhos. […] Quando são nota-das, as reuniões para cuidar das crianças são às vezes consideradas agrupamentos passivos. Pelo contrário, nossos resultados sugerem que, apesar de relativa-mente associais, fêmeas que não estão no cio podem ativamente preferir a companhia umas das outras (PEPPER; MITANI; WATTS, 1999, p. 624).

Segundo Mitani, testes de DNA feitos em diferentes co-munidades em Uganda revelaram que as alianças entre os ma-chos não são baseadas em laços de parentesco. Uma possível explicação para isso seria o fato de raramente um chimpanzé ter um irmão com idade próxima a sua, devido ao longo inter-valo entre os nascimentos (MITANI, 2006, p. 11).

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Segundo Pusey et al. (2005, p. 5), o fato das chimpan-zés se transferirem de comunidade antes de se reproduzir seria um dos motivos pelos quais elas têm um menor número de aliados do que os machos. Entretanto, as fêmeas de bonobos também mudam de comunidade durante a adolescência, e isso não parece prejudicar sua capacidade para formar alianças.

Formação de alianças é algo complexo, que exige mui-to cognitivamente do indivíduo. A capacidade de perceber e levar em consideração as relações sociais é um pré-requisito para a formação de alianças (WAAL, 1982, p. 182).

[…] disputas que envolvem alianças não permanecem como jogos de três pessoas porque se um dos contes-tadores pode ser apoiado, o outro também pode. De-cisões sobre iniciar ou não disputas ou alianças e com quem, e sobre deixá-las crescer ou não, precisam ser tomadas considerando não apenas a habilidade com-petitiva do oponente e sua prontidão para defender os recursos em questão, mas também a habilidade com-petitiva de seus apoiadores e dos apoiadores do próprio sujeito; além disso a disponibilidade dos dois conjun-tos de apoiadores e suas prontidões para intervir são outras variáveis a serem incorporadas (HARCOURT, 1988, p. 136).

Outra coisa a ser levada em consideração é o parentesco com o adversário, para se evitar prejudicar um parente próxi-mo (HARCOURT, 1988, p. 136). Mas a existência de parentes pode tornar os cálculos sobre como agir ainda mais compli-cados. Não basta tomar cuidado para não prejudicar nenhum parente próximo ou procurar ajudar os parentes.

[…] os parentes podem ser os parceiros mais confiá-veis porque provavelmente cooperarão, mas um mem-

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bro dominante do grupo pode ser um aliado melhor se ele resolver cooperar. Se os primatas tomam tais de-cisões, então, os aliados não podem decidir somente com base na consanguinidade ou somente com base na habilidade competitiva; as decisões devem ser to-madas combinando e comparando os dois tipos de in-formação (HARCOURT, 1988, p. 141).

Segundo Harcourt, até mesmo macacos rhesus são capa-zes de levar fatores como esses em consideração.

Um indicador de que os primatas estão usando es-sas informações extras sobre aliados em potencial quando tomam suas decisões é a observação de que filhos de macacas rhesus de hierarquia elevada, quando na presença de sua mãe, têm maior proba-bilidade de ameaçar e menor probabilidade de ser ameaçados por membros de famílias de baixa hie-rarquia (HARCOURT, 1988, p. 148).

O parentesco entre os indivíduos não é levado em con-sideração nos modelos revisados no capítulo anterior. Mas se até macacos são capazes de raciocínios envolvendo relações sociais entre estranhos e entre parentes, é indispensável que os agentes de um modelo de evolução da cooperação sejam capa-zes de formar alianças desde o início das simulações.

Uma atitude que pode parecer estranha quando sabe-mos que o protagonista é um chimpanzé é a simpatia que demonstra pelos mais fracos e a defesa dos oprimidos. Mas é precisamente essa a atitude de muitos deles quando che-gam ao poder. Luit, por exemplo, era um chimpanzé que estava sempre tomando atitudes agressivas com os mais fra-cos e procurando irritá-los. Porém, isso apenas enquanto ele não era o macho alfa.

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[…] após sua subida ao poder, Luit começou a mostrar solidariedade para com os mais fracos. Antes, ele apoia-va os perdedores 35% das vezes, mas depois de sua ele-vação esse valor subiu para 69%. O contraste entre os dois números reflete a mudança dramática nas atitudes de Luit. Um ano depois, o apoio de Luit aos perdedores subiu ainda mais, para 87% (WAAL, 1982, p. 124).

É claro que uma atitude como essa merece uma explica-ção. Entre os chimpanzés, nenhum macho é forte o suficiente para ser o alfa da comunidade exclusivamente por conta pró-pria. Os líderes são condenados a fazer alianças se quiserem se manter no poder. O macho alfa ajuda as fêmeas, os mais jovens e os mais fracos para receber apoio quando sua posição estiver sendo contestada por outros chimpanzés (WAAL, 1982, p. 125). Se ele ajudar os mais fortes, corre os riscos de não formar uma aliança poderosa e de fortalecer um rival em potencial.

3.7 Tolerância e Conciliação

A disputa pelo poder não é o único ingrediente nas rela-ções internas de um grupo. Se fosse, a rivalidade e a inimizade tornariam impossível a cooperação e o grupo não conseguiria se defender de inimigos externos. Assim, outras forças que im-pulsionam as relações sociais são as necessidades de formar amizades, ser tolerante com provocadores e se reconciliar com os inimigos (WAAL, 1989, p. 1-2).

A necessidade de reconciliação é uma possível explica-ção para a aparentemente estranha atração mútua que existe entre macacos rhesus que lutaram recentemente:

Nossa conclusão é que macacos rhesus se sentem atraí-dos por indivíduos com os quais tiveram um encontro

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agressivo. Não é apenas uma questão de buscar conta-tos calmos com coespecíficos; o ex-inimigo é o parceiro preferido (WAAL, 1989, p. 119).

Curiosamente, somente os machos apresentam esse comportamento. O contato entre fêmeas diminui após um conflito. As fêmeas sabem com certeza quem são seus filhos, os machos não. Ou seja, entre macacos e antropoides, as fê-meas têm motivos mais fortes do que os machos para levar em consideração o grau de parentesco dos seus aliados e inimigos:

Entre os machos, a maior parte da cooperação parece ter uma natureza transacional; eles se ajudam mutua-mente na base do olho por olho. Já as fêmeas têm sua cooperação baseada em parentesco e preferências pes-soais (WAAL, 1989, p. 49).

3.8 Uso de Ferramentas

O ancestral comum a homens e antropoides certamen-te já usava ferramentas. Essa afirmação pode ser feita porque todos os antropoides existentes atualmente usam ferramen-tas, incluindo os orangotangos. Nossos parentes asiáticos são, entre os antropoides, geneticamente os mais distantes de nós e raramente são vistos usando ferramentas em condições na-turais. Apesar disso, eles demonstram ser bastante hábeis em cativeiro, e sua habilidade com ferramentas é comparável à dos chimpanzés (MCGREW, 1992, p. 49, 62).

Há diversos relatos de chimpanzés usando ferramentas em seu ambiente natural sem que isso possa ser atribuído a influência humana, como ocorre com os animais que vivem em cativeiro. E é possível afirmar que há transmissão cultural de tecnologia, pois algumas ferramentas e técnicas somente são usadas por algumas

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populações. Chimpanzés já foram vistos usando gravetos para “pescar” cupins ou formigas, arremessando pedras em rivais ou em predadores e usando uma pedra e uma base (de pedra ou de madeira) como marreta e bigorna para abrir frutos duros como castanhas. É claro que as ferramentas dos chimpanzés não são tão sofisticadas quanto um conjunto de arco e flecha, uma flecha en-venenada, uma cabana ou uma canoa ou mesmo um machado de pedra lascada. Mas eles também não se limitam a simplesmente usar algum material que o acaso tenha posto em suas proximida-des. Muitas vezes suas ações são planejadas:

Boesch e Boesch observaram que os chimpanzés pegam e carregam pedras por centenas de metros até um sítio de quebrar nozes. Tais ações sugerem fortemente que os chimpanzés sabem para onde estão indo, o que es-tão indo fazer e de quais ferramentas precisarão quando chegarem (SAVAGE-RUMBAUGH, 1994, p. 22-23).

Para preparar gravetos para uma pesca de cupins, por exemplo, eles ativamente escolhem um galho que pa-reça apropriado, quebram-no no tamanho certo e retiram as folhas antes de iniciar a “pescaria”. Além disso, alguns pesquisadores de campo tentaram replicar o método dos chimpanzés e garantem que é preciso uma habilidade muito grande para pescar formigas sem se tornar uma vítima das pequenas presas.

A técnica de quebrar castanhas com pedras empregada pelos chimpanzés é tão semelhante à utilizada pelos humanos que é difícil dizer qual espécie utilizou um sítio abandonado:

Em Bossou, no extremo sudeste da Guiné próximo às Montanhas Nimba, há uma pequena população de chimpanzés selvagens, mas mansos. Eles atacam de

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surpresa as plantações dos moradores locais e usam mar telos e bigornas de pedra para quebrar cocos de palmeiras e extrair seus núcleos. As ferramentas e sítios de trabalho de humanos e primatas não humanos são indistinguíveis (MCGREW, 1992, p. 5).

As primeiras ferramentas encontradas por paleontólogos e atribuídas a hominídeos consistem em pedras lascadas que devem ter sido usadas como lâminas cortantes e que foram lo-calizadas próximas aos fósseis de australopitecos. Nunca houve relato de que os antropoides, em seu ambiente natural, produzis-sem ferramentas desse tipo. Entretanto, as habilidades cognitivas já percebidas nos antropoides permitem dizer que se eles não são capazes de extrair lascas de pedras intencionalmente, estão pelo menos próximos de sê-lo. Kanzi, um bonobo criado por uma pesquisadora da linguagem, e que aprendeu a dominar uma lin-guagem simbólica, recebeu de um paleontólogo algumas lições sobre como retirar lascas de pedra. Kanzi, entretanto, ao invés de seguir as orientações de seu professor, preferiu inventar uma técnica própria, mais bruta, mas também eficiente. Ele passou a simplesmente jogar uma pedra contra outra com toda a sua força.

Quando ele joga pedras, ao invés de obter lascas por técnicas bimanuais, são produzidos núcleos que são difíceis de diferenciar dos produzidos por colisões naturais. O uso dessa técnica inventada espontanea-mente sugere que os primeiros hominídeos podem ter manufaturado lâminas de pedra algum tempo antes de pontas bifaciais reconhecíveis aparecerem no registro paleontológico (SAVAGE-RUMBAUGH, 1994, p. 22).

Antropoides também nunca foram vistos utilizando al-gum recipiente para transporte de alimentos, o que poderia facilitar o compartilhamento de comida.

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Chimpanzés podem de várias formas transportar mamíferos predados por mais do que uma distân-cia curta. […]. Em contraste, quase toda a distri-buição de comida vegetal tem lugar na, ou próximo da, fonte, exceto quando o antropoide arranca um galho carregado de frutas e se retira alguns metros para um lugar mais confortável para comê-las. […]. Insetos não são transportados e raramente são com-partilhados. […]. Uma falta notável é algo que pode ser considerado o mais importante componente tecnológico da divisão do trabalho de subsistên-cia: a vasilha. Vasilhas possibilitam a acumulação e transporte de excedentes além das necessidades individuais e esses excedentes podem, então, ser compartilhados (MCGREW, 1992, p. 115).

McGrew (1992, p. 77-79) apresenta critérios para o reconhecimento de atos culturais. Como o próprio autor diz, é sempre possível pensar em critérios mais restritos ou mais abrangentes, de modo que os antropoides possam ser classificados tanto como portadores quanto como destitu-ídos de cultura, e, contanto que não sejam usados critérios extremamente restritivos, pode-se considerar que os antro-poides são capazes de produzir cultura e que há diferen-ças culturais entre as diversas comunidades de uma mes-ma espécie. Como McGrew (1992, cap. 7) mostra, existem diferenças tecnológicas e comportamentais entre diferentes populações de chimpanzés. Isso é uma consequência da in-teligência social dos antropoides.

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3.9 Reciprocidade e Cooperação

3.9.1 Reciprocidade em sociedades humanas

A simples formação de bandos por indivíduos de uma espécie já pode ser considerada uma forma de coopera-ção; no caso, cooperação pela defesa do grupo da ação de predado res. Outra forma de cooperação, a ajuda aos amigos nas dispu tas internas do grupo, já é mais complexa, pois exi-ge dos indivíduos um conjunto de capacidades cognitivas que podem ser rotuladas de inteligência social. Essas duas formas de cooperação são comuns a humanos e antropoides, mas um terceiro nível de cooperação, a divisão sexual do tra-balho, somente pode ser percebida entre os antropoides de forma muito embrionária.

Na divisão sexual do trabalho entre os humanos tecno-logicamente primitivos, que não praticam a agricultura, tipica-mente o homem sai em expedições de caça, podendo voltar para casa no mesmo dia ou alguns dias depois, com muita carne ou com as mãos vazias. A mulher, por sua vez, se dedica a ativi-dades de coleta de alimentos vegetais e retorna para casa dia-riamente, e sempre com algum suprimento de frutos, raízes ou outros alimentos. Trata-se de uma troca de carne por vegetais entre homens e mulheres, em que a tão desejada carne é um ali-mento incerto, enquanto os não tão desejados vegetais, além de suprirem necessidades alimentares, garantem a sobrevivência nos maus períodos de caça.

Talvez somente seja viável para um macho apostar na caça se ele estiver ligado a uma fêmea que confiavelmen-te produz excedentes pela coleta que podem amortecer os impactos das suas falhas em obter carne. E mais, um

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macho estará aumentando seu sucesso reprodutivo ao prover proteína animal para uma fêmea grávida ou lactante que está alimentando seus genes [do macho] (MCGREW, 1992, p. 114).

O homem é fisicamente melhor adaptado à atividade de caça, mas ele é tão apto (ou quase) quanto a mulher para as atividades de coleta.14 Entre os chimpanzés, também são os machos que caçam.

Como podemos explicar a concentração da fêmea em insetos e dos machos em mamíferos na dieta dos chim-panzés? […]. Para obter carne, chimpanzés machos espreitam, perseguem, capturam, matam, desmem-bram e distribuem a presa. Isso muitas vezes ocorre socialmente, enquanto vagueiam extensivamente com outros machos. Em suma, isso é caça. Por outro lado, as fêmeas tipicamente obtêm insetos por meio de uma rotineira, prolongada e sistemática manipulação de objetos. Vários indivíduos podem forragear juntos, mas basicamente trata-se de um acúmulo solitário de carne de muitas pequenas unidades que se concentram em umas poucas e previsíveis fontes (“aglomerados”). Em suma, isso é coleta (MCGREW, 1992, p. 103).

Para que um homem tenha interesse em contribuir com a carne de suas caçadas para o sustento dos filhos de uma mulher, ele precisa ter um elevado grau de certeza de que os filhos dessa mulher são seus também. Do ponto de vista estritamente gené-tico, sem nenhuma consideração ética ou de qualquer outro tipo

14 Psicólogos evolucionistas apresentam pesquisas em que as mulheres têm um desempenho melhor do que os homens para lembrar a posição de objetos. Isso seria vantajoso no momento de lembrar, por exemplo, onde havia uma árvore florida alguns meses atrás, ou seja, onde provavelmente há frutos hoje.

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que tornasse a análise mais complexa e realista, é desvantajo-so para um indivíduo sustentar os filhos de outro. Mesmo sem filhos, ele pode ter cópias de seu código genético perpetuadas por seus sobrinhos. Se estiver alimentando os filhos de outro, ele estará retirando da natureza recursos que poderiam vir a ser de seus sobrinhos. A invenção do matrimônio por nossos an-cestrais pré-históricos foi uma forma de aumentar considera-velmente o grau de certeza acerca da paternidade e, portanto, assegurar ao indivíduo que ele estava investindo em seus pró-prios filhos.

A divisão sexual do trabalho entre povos que não praticam a agricultura consiste, basicamente, na troca de alimentos. An-tropoides não são muito generosos. Eles raramente oferecem ali-mento, sendo, entretanto, comum um animal estender a mão para pedir comida a outro, dois ou mais indivíduos se alimentarem no mesmo local sem nenhum conflito, e — o que não deixa de ser uma forma de distribuição de alimentos — um indivíduo exigir que outro lhe dê um pouco de sua comida (WAAL, 1989, p. 209). Em todo caso, se observarmos quem recebe alimento de quem, as trocas que ocorrem parecem seguir princípios semelhantes aos que norteiam a divisão sexual do trabalho entre os humanos.

Participação na caça não garante nem recepção de carne nem que ela será distribuída equitativa ou siste-maticamente, mas alguns padrões emergiram. Oitenta por cento do compartilhamento envolveu adultos de ambos os sexos obtendo carne de machos. Chimpan-zés fêmeas no cio eram mais bem-sucedidas em obter carne do que as que não estavam no cio. A transfe-rência de carne entre machos não seguiu estrita mente a hierarquia de dominação social; ao invés disso, o sucesso estava positivamente correlacionado com a idade. Parentesco matrilinear também é preditivo do

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padrão de distribuição da carne […] a transferência não foi sempre pacífica e algumas vezes a competição irrompeu intensamente (MCGREW, 1992, p. 107).

É, portanto, possível traçar um paralelo, embora tênue, entre a divisão sexual do trabalho entre humanos caçadores--coletores e o comportamento dos chimpanzés. O sistema humano é mais claramente um sistema de troca. Entre os chimpanzés, mais parece uma simples ocupação de nichos ecológicos diferentes por machos e fêmeas, mas há troca de carne por sexo. Embora não possuam uma clara divisão se-xual do trabalho, os chimpanzés possuem alimentação dife-renciada conforme o sexo. Uma vez que os antropoides são pouco propensos a tomar a iniciativa de distribuir comida, o que mais se aproxima do embrião de uma divisão sexuada do trabalho é que machos e fêmeas se diferenciam no grau em que imploram por comida. Entre os bonobos, sexo e comi-da estão relacionados de uma maneira ainda mais literal do que a implicada por uma teoria da divisão sexual do traba-lho, como mostram os dados coletados no zoológico de San Diego, na Califórnia: “Normalmente, os machos tinham ere-ções menos de 5% do tempo, mas no momento da comida, essa taxa subia para mais de 50%” (WAAL, 1989, p. 206).

3.9.2 Habilidades cognitivas e tipos de reciprocidade

O comportamento altruísta não é algo muito comum no reino animal. Segundo Wilson (1975, p. 512), os mais altruís-tas são chimpanzés, elefantes e cães.15 A afirmação de Wilson

15 Wilson não deixa claro quais critérios utilizou para fazer a classificação, mas pelo menos quanto à disponibilidade para se sacrificar pelo outro, tenho a im-pressão de que os cães são os campeões do altruísmo.

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é corroborada por Brosnan e Waal (2001, p. 134), que incluem os chimpanzés entre os poucos primatas que compartilham comida:

Embora o compartilhamento de comida fora do con-texto mãe-filho ou entre familiares imediatos seja raro na maioria das sociedades de primatas […], ele é co-mum nas sociedades de macacos capuchinhos e de chimpanzés.

Brosnan e Waal fazem uma importante distinção entre diferentes níveis cognitivos necessários para diferentes tipos de reciprocidade:

A explicação próxima cognitivamente menos exigente é a da reciprocidade baseada na simetria, na qual os in-divíduos interagem baseados em características simé-tricas de suas relações: essas características fazem as duas partes reagirem similarmente uma com a outra. Esse mecanismo não requer nenhuma contabilidade de pontos [scorekeeping] porque a reciprocidade é ba-seada em características preexistentes das relações, tais como parentesco, associação mútua, ou semelhança de idade. O segundo mecanismo de reciprocidade é a reciprocidade atitudinal, na qual o desejo de um indiví-duo para cooperar acompanha a atitude que o parceiro mostra ou tem mostrado recentemente em relação a ele. […]. O envolvimento de memória e contabilidade de pontos pode ser mínimo nesse tipo de troca, entre-tanto, porque a variável crítica é uma predisposição so-cial geral mais do que um cálculo preciso dos custos e benefícios do comportamento de troca. O terceiro me-canismo é a reciprocidade calculada, na qual indivíduos aparentam reciprocar numa base comportamental de um-para-um. Isso requer memória de eventos prévios, algum grau de contabilidade de pontos, contingência

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específica para cada parceiro entre favores dados e re-cebidos e, talvez, até mesmo punição de trapaceado-res. Nossa pesquisa tem revelado exemplos tanto de reciprocidade baseada em simetria quanto atitudinal em chimpanzés. É lógico esperar que a reciprocidade calculada, com suas altas demandas cognitivas, seja encontrada em poucas espécies, enquanto formas de reciprocidade cognitivamente menos exigentes sejam mais difundidas (BROSNAN; WAAL, 2001, p. 148).

Todos aqueles que convivem com os chimpanzés e bo-nobos que pesquisam afirmam que não há nenhum abismo entre a inteligência desses animais e a nossa. Essas afirmações são feitas no rico contexto da convivência diária. Mais difícil é elaborar experimentos controlados — e, portanto, com a rea-lidade empobrecida e artificializada — que provem, sem som-bra de dúvida, que a proclamada inteligência dos antropoides não é apenas uma visão enviesada de pesquisadores que têm afeição por seus objetos de pesquisa. Nessas circunstâncias, comparando macacos com chimpanzés, somente os chim-panzés se comportam de um modo difícil de interpretar uti-lizando apenas reciprocidade baseada em relações simétricas ou reciprocidade atitudinal. Eles, em algumas circunstâncias, reciprocam de modo calculado:

[…] cada chimpanzé aparentou lembrar do outro que acabara de lhe prestar um serviço (catação) e respondeu a esse indivíduo com reciprocidade (compartilhando comida). Essa é uma evidência convincente da existên-cia de troca. […]. Até agora, essa troca de catação por comida entre chimpanzés é o exemplo que mais lembra reciprocidade calculada relatada entre espécies não hu-manas (BROSNAN; WAAL, 2001, p. 141).

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As observações de Brosnan e Waal (2001) indicam que a gratidão abre novas possibilidades de cooperação, mas isso só é possível entre poucas espécies. Já que os chimpanzés pa-recem ser capazes de contabilidade de pontos, provavelmen-te, os primeiros hominídeos também tinham essa capacidade e consequentemente estavam preparados para desenvolver o sentimento de gratidão.

Outra capacidade cognitiva que tem sido apontada como importante para a cooperação é a noção de self. Ser ca-paz de fazer uma representação mental de si próprio pode ser muito útil para a coordenação eficiente de um trabalho de gru-po (CHALMEAU et al., 1997, p.  30). Isso é particularmente verdadeiro para situações não rotineiras. A solução para uma tarefa rotineira poderia ser encontrada por acaso e adotada por reflexo condicionado; uma situação que se repita há milhares de anos, poderá ter uma solução envolvendo ação coletiva in-corporada ao repertório instintivo da espécie. Se a situação for nova, a capacidade de autoconsciência e empatia ajudará a an-tever ações e reações, facilitando a ação coordenada e coope-ração. Os antropoides possuem essas capacidades cognitivas.

3.9.3 Compartilhamento de comida entre chimpanzés

Chimpanzés adultos não dão alimentos vegetais uns para os outros, mas compartilham a carne obtida em caçadas cole-tivas (MCGREW; FEISTNER, 1992; UENO; MATSUZAWA, 2004). Isso corresponde ao que se esperaria de agentes racio-nais, pois não há por que oferecer um fruto ou um ramo com folhas para outro indivíduo se não houver obstáculo para que ele próprio suba na árvore, estenda o braço e colete o alimento.

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Somente é racional para um indivíduo egoísta doar alimentos se isso fizer parte de um sistema de reciprocidade em que um favor é feito num dia com a expectativa de retribuição em algu-ma ocasião futura. É justamente num contexto desse tipo que se enquadra o compartilhamento de carne. O indivíduo que tem a sorte de abater a presa numa caçada coletiva pode tornar-se pe-dinte numa outra ocasião. Também seria racional se diferentes indivíduos tivessem acesso a alimentos diferentes. Nesse caso, a troca poderia ser vantajosa para os dois.

A transferência direta de alimentos vegetais de um in-divíduo ocorre principalmente de mãe para filhos pequenos, sendo, nesse caso, explicada pela teoria da seleção de paren-tesco. As mães raramente oferecem alimento diretamente aos filhos, mas permitem que eles peguem parte de seu alimento.

Por fim, embora não haja compartilhamento explícito de vegetais entre chimpanzés adultos, num certo sentido, podemos considerar haver compartilhamento, pois eles comumente se re-únem numa mesma árvore para consumir seus frutos. Os chim-panzés não compartilham os frutos, mas compartilham a árvore. Podemos também afirmar que eles compartilham um território comum a toda a comunidade.

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4Origem e Evolução do Homem

Neste capítulo, revisaremos o caminho evolutivo seguido por nossos ancestrais até o surgimento do homem moderno. O objetivo é coletar informações que nos ajudem a decidir quais características acrescentar aos agentes nas simulações a serem desenvolvidas no capítulo 5 e qual deve ser a sequência dos acréscimos. Assim, a cronologia em que se deu a evolução é im-portante, e, antes de apresentarmos as espécies de hominídeos melhor conhecidas, faremos uma breve descrição dos métodos utilizados por paleontólogos para medir o tempo.

4.1 Geologia, Clima e Paleoantropologia

Diante da variedade de fósseis com os mais diversos graus de proximidade ou distância entre nós e os antropoides, é fundamental saber a idade de cada um para tentar recons-truir a linha evolutiva que resultou em nossa espécie. Para saber a idade de um fóssil é preciso, basicamente, responder a duas questões nem sempre fáceis: (1) em qual estrato geoló-gico ele se encontrava? (2) Qual a idade desse estrato? A pri-meira pergunta geralmente é respondida por um arqueólogo; a segunda, por um geólogo. Dois fósseis que se encontrem no mesmo estrato são considerados da mesma idade. Se a idade do estrato for conhecida, o fóssil está datado.

Os diversos processos geológicos existentes na superfí-cie terrestre — chuva, vento, correntezas de rios, expansão e

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contração de lagos, vulcanismo etc. — são responsáveis por uma contínua deposição de material na maior parte da super-fície da terra. Como os processos não se mantêm inalterados ao longo dos séculos, é possível perceber diferenças de com-posição no subsolo à medida que se distancia da superfície. Em outras palavras, o solo é formado por vários estratos, mais velhos quanto mais distantes da superfície.

Se dois fósseis são encontrados a poucos metros um do outro, é fácil saber qual está depositado num estrato mais re-cente. Mas se eles estiverem distanciados dezenas ou milhares de metros, os subsolos dos dois sítios poderão ser formados por estratos diferentes e a comparação será mais difícil ou mesmo impossível. Nesse caso, os dois sítios precisarão ter seus estratos datados. Uma dificuldade é que somente alguns estratos possuem composição adequada para datação.

Segundo Antón e Swisher (2004, p. 273), atualmente os melhores métodos de datação são o paleomagnetismo, o argô-nio-potássio e traços de fissão. Outro método, aplicável direta-mente aos ossos fossilizados, mas viável apenas com material com no máximo 200 mil a 100 mil anos, é a análise do DNA mitocondrial (RICHARDS, 2003, p. 144).

O clima na África sofreu importantes mudanças nos últi-mos milhões de anos, tornando-se mais árido, mais frio e com maior contraste entre as estações do ano. Houve uma redução no espaço ocupado por florestas cobertas por vegetação densa, subs-tituídas por savanas abertas (DEMENOCAL, 2004, p. 10-15).

Pode-se dizer que a paleoantropologia é o estudo de es-pécies extintas da linhagem humana, ou seja, dos nossos an-cestrais que viveram após nosso último ancestral comum com os chimpanzés e bonobos. A partir do momento em que uma espécie da linhagem humana é percebida como mais pareci-

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da com os humanos do que com os antropoides modernos, os indivíduos dessa espécie passam a ser considerados homi-nídeos. A paleoantropologia é uma ciência de poucas certezas e muitas especulações. O registro fóssil do passado humano é muito escasso, o que impede os paleoantropólogos de chegar a um grande número de consensos sobre como se deu a evolu-ção da espécie humana. Os espécimes encontrados são apenas fragmentos de esqueletos, principalmente suas partes mais re-sistentes como os ossos do crânio e os dentes. Da maioria das espécies, tem-se conhecimento apenas parcial de sua anatomia:

[…] o maior problema no estudo de crânios é o tama-nho da amostra. O estudo mais completo até agora usou uma amostra de apenas 41 crânios para toda a evolução dos hominídeos. Essa amostra não foi controlada pelo sexo e idade dos indivíduos, o que torna as comparações ainda mais difíceis (WYNN, 1988, p. 273).

As evidências disponíveis deixam claro que existiram muitas espécies de hominídeos nos últimos milhões de anos, mas não são suficientes para falsear muitas das várias hipóte-ses sobre como essas espécies estão filogeneticamente inter--relacionadas. A descoberta de novos fósseis, por um lado, aumenta o conhecimento disponível sobre as características e sobre o período de existência de cada espécie e, consequente-mente, torna algumas hipóteses implausíveis, mas, por outro lado, pode levar ao reconhecimento de uma nova espécie e, assim, tornar plausível um novo conjunto de hipóteses.

O tipo de evidência disponível para a paleoantropo-logia faz com que essa disciplina seja inevitavelmente limi-tada. Ela somente dispõe de fósseis e de objetos de pedra para alimentar suas especulações, o que pode levar ao que

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McGrew (1992, p.  207) chama de paleomiopia. O motivo para a arqueologia não encontrar resquícios materiais que demonstrem uma tecnologia sofisticada entre povos caça-dores-coletores pode estar não na falta de inteligência des-tes, mas na sua vida nômade.

Peças trabalhosamente entalhadas e lindamente de-coradas não desempenham parte importante na vida dos caçadores-coletores, não porque eles não tenham cultura, mas porque toda a sua vida está voltada para posses que possam ser prontamente carregadas de um acampamento para o seguinte […] mitos, cantos, his-tórias faladas e danças, tudo faz parte da sua rica pro-dução cultural (LEAKEY; LEWIN, 1996, p. 98-9).

Nas seções seguintes, revisaremos as características das espécies mais conhecidas da linhagem humana.

4.2 Antes dos Australopitecos

4.2.1 Origem do bipedalismo

Na busca pela reconstrução da história evolutiva da es-pécie humana, o que se procura, basicamente, são fósseis que permitam reconstituir o afastamento de nossos ancestrais da linha evolutiva seguida pelos antropoides. Os caçadores de fósseis ficam particularmente orgulhosos quando acreditam poder anunciar ter encontrado os primeiros sinais de diver-gência do padrão anatômico antropoide. E esse primeiro sinal, invariavelmente, é o andar bípede.

Existem basicamente duas hipóteses sobre como se loco-moviam nossos ancestrais antes de adotar o bipedalismo. Uma

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vez que nossos parentes mais próximos — gorilas, chimpanzés e bonobos — quando no chão, predominantemente, andam se apoiando nos nós dos dedos das mãos, uma primeira hipótese é de que nossos ancestrais também eram quadrúpedes.

À medida que as florestas diminuíram, recursos alimen-tares em hábitats arbóreos, como árvores frutíferas, se tornaram muito dispersos para ser explorados eficien-temente por antropoides convencionais. De acordo com essa hipótese, os primeiros antropoides bípedes foram humanos somente no modo de locomoção. Suas mãos, mandíbulas e dentes seriam simiescos por não ter havido mudança em sua dieta, apenas na maneira de procurá-la (LEAKEY, 1994, p. 18).

Entretanto, alguns autores argumentam que não é fácil um animal passar do quadrupedalismo ao bipedalismo e que somos descendentes de antropoides que estavam basicamente adaptados à vida nas árvores. Gibões e orangotangos, por exem-plo, quase nunca descem ao chão, mas quando o fazem andam sobre os dois pés (ou, melhor, sobre as mãos dos membros in-feriores). Animais que se locomovem por braquiação passam a maior parte do tempo em posição vertical e desenvolvem uma anatomia mais apropriada para o andar bípede do que os que andam sobre os nós dos dedos (SCHMITT, 2003, p. 1443).

Ao adotar o bipedalismo, nossos ancestrais estavam também fazendo escolhas energéticas. O bipedalismo huma-no é menos eficiente do que o quadrupedalismo de cães, ca-valos e gatos, mas é mais eficiente do que o quadrupedalismo dos chimpanzés (LEAKEY, 1994, p. 19). Um chimpanzé corre mais rápido do que um ser humano, mas um ser humano gasta menos energia ao andar.

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É um fato bem estabelecido que, correndo em velo-cidade máxima, o bipedalismo humano é duas vezes mais dispendioso energeticamente do que o estimado para um mamífero quadrúpede de mesma massa cor-poral e que o andar humano é energeticamente muito mais eficiente do que a corrida humana. À velocidade média de caminhada de 4,5 km h-1, o bipedalismo hu-mano é ligeiramente mais eficiente do que o quadru-pedalismo em um mamífero médio. O bipedalismo e o quadrupedalismo são igualmente dispendiosos nos chimpanzés, e, em velocidades médias de caminhada, um chimpanzé consome 150% mais energia (g-1 km-1) do que um quadrúpede de tamanho similar (AIELLO; WELLS, 2002, p. 332).

Possivelmente, o bipedalismo criou condições favoráveis para o surgimento da linguagem. O filhote de um antropoide é carregado por sua mãe de um modo que ela não consegue sa-ber para o que ele está olhando, e isso dificulta a comunicação entre os dois.

Crianças que se agarram sob o ventre da mãe têm pou-cas oportunidades de monitorar a direção do olhar da mãe, o que leva, inevitavelmente, a uma falta de atenção conjunta. Já para qualquer criança carregada por um bí-pede, é imediatamente óbvio o que os pais estão vendo ou sobre o que estão falando (SAVAGE-RUMBAUGH, 1994, p. 30).

Como o bipedalismo surgiu muito antes da expansão do cérebro, ele deve ter favorecido uma maior comunicação que, posteriormente, evoluiu para a linguagem falada.

Revisaremos nas próximas subseções algumas espécies que viveram antes dos australopitecos.

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4.2.2 Sahelanthropus

Brunet et al. (2002) descrevem um fóssil de 7-6 ma (mi-lhões de anos), por eles denominado Sahelanthropus tchadensis. A descoberta feita no Chade, no centro da África, implica uma diversidade, distribuição espacial e antiguidade dos hominídeos maiores do que o pensado até então.

De acordo com um modelo sobre a origem humana, elaborado nos anos 1980 por Yves Coppens, do College of France, a África Oriental foi o berço da humanidade. Coppens, notando que os fósseis humanos mais antigos vinham da África Oriental, propôs que o Vale do Rift do continente — um corte que vai do norte ao sul — dividiu uma espécie antropoide única em duas populações. A do leste deu origem aos humanos; a do oeste, aos antropoi-des atuais […]. Os pesquisadores têm considerado já há algum tempo que a aparente separação geográfica pode ser um artefato causado pela escassez de fósseis. A desco-berta de um hominídeo de sete milhões de anos no Cha-de, cerca de 2.500 quilômetros a oeste do Vale do Rift, seria um golpe fatal nessa teoria (WONG, 2003, p. 11).

O fóssil consiste de um crânio quase completo e de fragmentos do maxilar inferior. O crânio sofreu deformações durante o longo período em que ficou enterrado, mas estima-se que abrigou um cérebro de 320-380 cm3 (BRUNET et al., 2002, p. 146), ou seja, ligeiramente inferior ao dos chimpanzés atuais, cujos cérebros pesam em média 395  gramas (MCHENRY; COFFING, 2000, p. 127). O fóssil não é completo o suficiente para permitir dizer se o animal era ou não bípede, mas Brunet et al. (2002, p. 150-1) chamam a atenção para o fato de a base e a face do crânio apresentarem semelhanças com hominídeos

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mais recentes que, com certeza, eram bípedes. Segundo Wood (2002, p. 134), a face do Sahelanthropus tchadensis se assemelha a de um Australopithecus de 1,75 ma. Outra característica do S. tchadensis que o aproxima dos humanos são seus caninos menores do que os dos antropoides.

Em todos os antropoides modernos e fósseis, e, portan-to, presumivelmente no último ancestral comum entre humanos e chimpanzés, os maiores caninos superio-res atritam com os pré-molares inferiores, produzindo uma aresta amolada ao longo da parte posterior dos caninos. O chamado desgaste do complexo do canino--pré-molar é pronunciado em machos porque usam seus caninos para competir uns com os outros por fê-meas. Os humanos perderam esses dentes de batalha, desenvolvendo caninos menores, mais semelhantes a incisivos e que se encontram ponta com ponta, um ar-ranjo que, com o tempo, cria um padrão distinto de desgaste. O tamanho, a forma e o desgaste dos caninos dos Sahelanthropus sofreram modificações na direção humana, assegura Brunet (WONG, 2003, p. 10).

Muitos fósseis de datação mais recente e considerados representativos de ancestrais dos humanos apresentam carac-terísticas faciais mais semelhantes às dos antropoides do que o S. tchadensis, o que pode ter importantes implicações para a reconstrução da evolução humana:

[…] se ele é aceito como parte do ramo hominídeo, para manter a coerência do modelo, o princípio da parcimônia dita que todos os animais com faces mais primitivas (e essa é uma lista muito longa) teriam, ne-cessariamente, que ser excluídos da ancestralidade dos humanos modernos (WOOD, 2002, p. 134).

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A interpretação do S. tchadensis como ancestral huma-no pode ser incompatível com a estimativa de ∼6 ma para a idade do último ancestral comum entre humanos e chimpan-zés (BRUNET et al., 2002, p. 151). Por um lado, o S. tchadensis tem semelhanças tanto com humanos quanto com chimpanzés, o que é de se esperar de um ancestral comum. Por outro lado, a face achatada do ser humano é demasiadamente diferente da face de todos os antropoides atualmente existentes e é conside-rada uma característica derivada e recente. Ou seja, esperava-se que o ancestral que compartilhamos com os chimpanzés fosse facialmente mais parecido com eles do que conosco. Com o S. tchadensis muitas teorias precisariam ser repensadas.

Uma interpretação mais parcimoniosa é a de que o fóssil encontrado por Brunet et al. não representa um ancestral huma-no. Pode-se, por exemplo, especular que sua face com caracte-rísticas humanas é apenas um indício de que há 7-6 ma já havia pressões evolutivas que, no futuro, levariam ao surgimento dos hominídeos, mas a linha evolutiva iniciada com o S. tchadensis se extinguiu, voltando a surgir espécies semelhantes somente cen-tenas de milhares ou mesmo milhões de anos depois. Evidências em favor dessa interpretação alternativa são os supercílios proe-minentes do S. tchadensis, o que é uma característica dos antro-poides. Além disso, caninos somente costumam ser grandes em antropoides do sexo masculino, e o fóssil encontrado no Chade pode ter sido uma fêmea (WONG, 2003, p. 11).

4.2.3 Orrorin

Um fóssil um pouco menos antigo do que o do S. tchadensis é o do Orrorin tugenensis, encontrado no Quênia. As peças mais importantes são fragmentos de fêmur com idade entre 6,04 e 5,83

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ma (PICKFORD et al., 2002, p. 194). Ao contrário do S. tchadensis, o O. tugenensis apresenta sinais mais claros de bipedalismo. O fêmur do O. tugenensis é mais semelhante ao do homem do que ao do chimpanzé. Pickford et al. (2002) consideram até mesmo que o O. tugenensis, mais do que os Australopithecus, possui um fêmur semelhante ao dos humanos, o que, se confirmado, implicaria que os Australopithecus provavelmente não seriam nossos ancestrais.

Concluindo, de um ponto de vista sistemático, o Orrorin é um hominídeo stricto sensu, e não se assemelha a um chimpanzé em numerosos aspectos. Em muitas características, o Orrorin está mais próximo dos humanos do que os australopitecinos estão e isso sugere que ele pode ser mais relacionado com o Homo do que com o Australopithecus e/ou com o Paranthropus. Se estivermos corretos, o Australopithecus pode representar um ramo paralelo na evolução hominídea que se tornou extinto sem levar ao Homo [...] (PICKFORD et al., 2002, p. 202).

4.2.4 Ardipithecus

Halle-Selassie apresenta fósseis encontrados na Etiópia e com datação entre 5,8 e 5,2 ma. Os fragmentos representam de 5 a 11 indivíduos de uma subespécie de Ardipithecus. A fauna e a flora encontradas fossilizadas no mesmo estrato geológico dos hominídeos evidenciam um ambiente arborizado e não uma savana (HALLE-SELASSIE, 2001, p. 178). Algumas pes-quisas indicam inclusive que somente ∼1 ma mais tarde os ho-minídeos começaram a viver em savanas:

[…]análises paleoecológicas indicam que o Orrorin e o Ardipithecus viveram em florestas, ao lado de macacos e outros animais tipicamente arbóreos. De fato, Giday WoldeGabriel […]e seus colegas, que

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estudaram a química do solo e os restos animais no sítio A. r. kadabba [Ardipithecus ramidus], notaram que os primeiros hominídeos podem não ter se aventurado além dos ambientes relativamente úmidos e arborizados até depois de 4,4 milhões de anos atrás. Se for esse o caso, a mudança climática pode não ter tido um papel importante na evolução do bipedalismo de nossos ancestrais como se tem pensado (WONG, 2003, p. 10).

Segundo Halle-Selassie, os dentes e outras partes dos fós-seis apresentam algumas características típicas dos hominídeos, o que indicaria que o Ardipithecus foi um de nossos ancestrais:

Os fósseis do Middle Awash descritos acima com-partilham algumas características dentárias com ho-minídeos posteriores mais do que todos os fósseis e antropoides atualmente existentes. Essas característi-cas incluem caninos inferiores com tubérculos distais desenvolvidos e elevações mesiais marginais expres-sivas. Além disso, as falanges proximais dos pés de Amba, datada de 5,2 milhões de anos, são derivadas em relação a todos os antropoides conhecidos e con-sistentes com uma forma anterior de bipedalismo ter-restre. Devido a essa combinação de características, os fósseis do Middle Awash descritos aqui são cladis-ticamente classificados como hominídeos (HALLE--SELASSIE, 2001, p. 180).

4.3 Australopitecos e Outros Hominídeos Semelhantes

Comumente, as espécies descobertas que se assemelham mais conosco do que com os antropoides têm sido classificadas em três gêneros: Australopithecus, Paranthropus e Homo. Os australopitecos foram os primeiros a surgir e, provavelmente,

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deram origem aos dois outros gêneros. Muitas espécies dos gê-neros Paranthropus e Homo foram contemporâneas, ocupando diferentes nichos ecológicos. Assim, os três gêneros podem ser caracterizados como segue:

(i) Australopithecus, incluindo os primeiros hominí-deos que gradualmente desenvolveram bipedalismo; (ii) Paranthropus, o ramo evolucionista (incluindo os australopitecinos robustos) que colonizou os espaços abertos da savana, especializando-se no consumo de vegetais duros; e (iii) Homo, o ramo que desenvol-veu cérebros grandes e reteve aspectos gráceis dos australopitecos, usou ferramentas de pedra e desen-volveu uma dieta mais carnívora (CELA-CONDE; AYALA, 2003, p. 7686).

As espécies pertencentes ao gênero Paranthropus se distanciaram do rumo evolutivo seguido pelos nossos an-cestrais e não serão revisadas neste capítulo. Nas próximas subseções, revisaremos algumas espécies de Australopithecus e de outras espécies pertencentes a gêneros semelhantes re-centemente descobertos.

4.3.1 Kenyanthropus

Leakey et al. (2001) descrevem um fóssil encontrado no Quênia, consistindo de um crânio, alguns fragmentos de ossos e alguns dentes, datado em 3,5 ma. O fóssil é contemporâneo do Australopithecus afarensis e do Australopithecus africanus, e tem capacidade craniana semelhante à dessas duas espécies, mas se distingue delas em vários aspectos, principalmente por possuir molares menores. Por isso, os autores optaram por criar um novo gênero e espécie para classificar o fóssil: Kenyanthropus

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platyops. O hábitat desse hominídeo parece ter sido uma região de transição entre florestas e savanas:

Amostras da fauna dos sítios LO 4, LO 5, LO 6 e LO 9 de Lomekwi indicam ambientes paleolíticos relativamente úmidos e bem cobertos de vegetação. A proporção rela-tiva de bovídeos nas amostras mais antigas desses sítios indica um mosaico de hábitats, mas com o predomínio de espécies de regiões arborizadas e que viviam nos li-mites das florestas (LEAKEY et al., 2001, p. 439).

Os autores argumentam que, das espécies conhecidas de hominídeos, a que compartilha maior número de caracte-rísticas com o Kenyanthropus platyops é o Homo rudolfensis, sendo grande a semelhança facial entre as duas espécies, e su-gerem que se mude a classificação do Homo rudolfensis para Kenyanthropus rudolfensis (LEAKEY et al., 2001, p. 439).

4.3.2 Australopithecus

Após uma relutância inicial, o Australopithecus se tornou geralmente aceito como um gênero separado que inclui hominídeos com cérebros do tamanho de cérebros de chimpanzés e que não faziam ferramentas de pedra. Durante as décadas seguintes, o Australopithecus e o Homo pareceram suficientes para dar conta da variedade taxonômica necessária para abrigar a linhagem humana; consequentemente, todos os outros gêneros foram abandonados [com exceção do Paranthropus, aceito por um número significativo de autores como o gênero correspondente aos australopitecinos robustos] (CELA--CONDE; AYALA, 2003, p. 7684).

Apesar dos descobridores dos fósseis do Sahelanthropus, do Orrorin e do Ardipithecus e de mais alguns autores

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argumentarem que esses ou alguns desses fósseis representam o mais antigo hominídeo e, em alguns casos, defenderem a hipótese de os Australopithecus não serem nossos ancestrais, parecem estar em maior número os autores que consideram o contrário: os Australopithecus são os hominídeos mais antigos conhecidos.

Imediatamente antes do aparecimento dos hominí-deos, a fauna de primatas da África e da Ásia era do-minada por primatas quadrúpedes arbóreos genéricos com uma combinação de características que os apro-ximavam tanto de antropoides quanto de macacos. Os mais antigos hominídeos conhecidos (membros do gê-nero Australopithecus) tinham os corpos relativamente pequenos se comparados a humanos modernos e seus esqueletos continham um mosaico de características (SCHMITT, 2003, p. 1440).

A morfologia mista da ulna do A. afarensis e o úme-ro altamente musculoso e robusto seriam idealmente adaptados para um animal que escalava árvores, mas também andava sobre as duas pernas quando no chão (AIELLO apud LEAKEY, 1994, p. 35).

Os Australopithecus apresentam fortes indícios de ter sido bípedes, embora haja controvérsias sobre a quali da de de seu bipedalismo (SCHMITT, 2003, p. 1441). As mãos do Australopithecus afarensis parecem ter sido apropriadas para a vida arbórea, o que é uma característica dessa espécie que a aproxima dos antropoides (MCHENRY; COFFING, 2000, p. 129). O tórax do A. afarensis tem formato afunilado, mais próximo ao de um antropoide do que ao de um ser humano (MCHENRY; COFFING, 2000, p. 131). Mais complicada é a interpretação do modo como evoluíam os dentes nos austra-lopitecos: “Quanto mais recente a espécie de australopitecino,

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mais o tamanho absoluto dos molares aumenta […]. Ocorre a tendência inversa em espécies de Homo sucessivamente mais recentes” (MCHENRY; COFFING, 2000, p. 136).

Humanos e chimpanzés atuais têm molares de tamanhos aproximadamente equivalentes, e menores do que os dos aus-tralopitecos. Estes pareciam estar se especializando numa dieta constituída de alimentos duros, que precisavam de grandes mo-lares para ser triturados. O sentido em que se dava a evolução dos dentes dos australopitecos é uma das razões pelas quais al-guns autores defendem a hipótese de que eles não foram nossos ancestrais. Os grandes molares dos australopitecos estão repre-sentados na Tabela 1 (p. 192) através do que McHenry e Coffing (2000, p. 127) chamaram de coeficiente de megadontia, CM, cal-culado a partir da área dos dentes pós-caninos em mm2, D, e da massa do corpo em kg, M:

CM =D

12,15×M0,86 (4.1)

Segundo Asfaw et al. (1999, p. 629), os crânios e den-tes fossilizados já encontrados são suficientes para deixar poucas dúvidas quanto a uma linha evolutiva que levou do A. afarensis (3,6 a 3,0 ma) ao A. aethiopicus (2,6 ma) e deste ao A. boisei (2,3 a 1,2 ma). Quanto mais recente a espécie, mais diferentes são seus membros dos huma-nos modernos e, por isso, não há dúvidas de que eles não são nossos ancestrais. Alguns autores consideram inclusi-ve que algumas espécies de hominídeos descendentes dos Australopithecus afarensis são distintas o bastante de seus ancestrais para poder ser classificadas como pertencentes a um gênero diferente: Paranthropus. As espécies em ques-tão seriam P. aethiopicus, P. robustus e P. boisei.

(1)

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Uma outra característica dos australopitecos, entretan-to, parecia estar evoluindo em nossa direção. A proporção entre o comprimento dos membros superiores e inferiores no Australopithecus africanus ainda era bem maior do que entre os humanos modernos. Segundo Asfaw et al., somente três espécimes de hominídeos com mais de 1,5 ma são comple-tos o suficiente para que se faça uma estimativa precisa dessa proporção: Lucy (3,2 ma, Australopithecus afarensis), BOU--VP-12/1 (2,5 ma, possivelmente Australopithecus garhi), e Turkana Boy (1,5 ma, Homo erectus). Lucy era bípede, mas possuía braços e pernas com proporções muito semelhantes às de um chimpanzé, apenas com o fêmur relativamente um pouco mais longo. O espécime BOU-VP-12/1 já apresen-ta proporções modernas para o fêmur, mas ainda tem um antebraço relativamente longo. Finalmente, as proporções entre os membros superiores e inferiores do Turkana Boy são iguais às dos seres humanos modernos. A comparação desses três espécimes sugere que, relativamente aos antropoi-des, primeiro, o fêmur se alongou e, em seguida, o antebra-ço encur tou (ASFAW et al., 1999, p. 633). Braços longos são associados a vida nas árvores e pernas longas a bipedalismo. Há indícios, portanto, de que nossos ancestrais já estavam bem-adaptados ao andar bípede (e, provavelmente, à vida na savana) quando definitivamente dispensaram as árvores como abrigo noturno.

Na savana, para continuar vivo, nenhum animal pode ser incompetente em seu modo de locomoção, a não ser que possua algum mecanismo de defesa especial, como veneno ou espinhos, o que obviamente não era o caso dos australopitecos. Por isso, Johanson e Edey (1996, p.  451) argumentam que provavelmente os ancestrais dos austra-lopitecos tiveram que dominar o bipedalismo ainda na

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floresta, antes de se aventurarem na savana. Gibões, por exemplo, quando descem ao chão, são bípedes bastante desajeitados. Os australopitecos, ao contrário dos gibões, viviam em savanas (WYNN, 1988, p. 276) e eram bípedes suficientemente competentes:

É provável que Lucy não pudesse sacudir os dedos dos pés melhor do que uma mulher moderna, mas pelo me-nos podia andar tão bem quanto — talvez o dia inteiro sem se cansar; é discutível, entretanto, que pudesse cor-rer com a mesma velocidade. Todo esqueleto afarensis sugere extrema inflexibilidade, capacidade e força, e não velocidade. Em comparação, um esqueleto huma-no moderno parece atenuado e frágil. Nós somos mais leves, mais delgados e mais rápidos, mas muito menos fortes para o nosso tamanho e, com certeza, menos du-ráveis (JOHANSON; EDEY, 1996, p. 459).

Um problema com a argumentação de Johanson e Edey (1996) é que nenhum antropoide ou hominídeo corre rápido o bastante para fugir de predadores ou para perseguir presas, mesmo as de pequeno porte como roedores. Quanto a isso, ser plenamente quadrúpede é muito mais vantajoso. Para se aven-turar na savana, os nossos ancestrais tiveram de se organizar em grupos e/ou usar armas.

Os australopitecos possuíam cérebro pequeno, mesmo considerando sua baixa estatura. Uma vez que um animal de grande porte tenderá a ter um cérebro maior do que um animal pequeno, mesmo possuindo uma capacidade cogni-tiva inferior, a diferença entre os tamanhos dos cérebros de diferentes indivíduos será melhor apreciada se sua massa cor-poral for considerada. Mas o crescimento da massa cerebral com o crescimento da massa do corpo não é linear, e, por isso,

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McHenry e Coffing (2000) utilizaram para o cálculo do coefi-ciente de encefalização, CE, a seguinte fórmula, em que a massa do cérebro, C, está expressa em gramas e a massa do corpo, M, em quilogramas:

CE =C

11,22×M0,76 (4.2)

Como se pode ver na Tabela 1, em média, as diversas espécies de Australopithecus, comparadas aos chimpanzés (Pan troglodytes), possuíam um corpo mais leve e um cérebro mais pesado. A diferença é um pouco mais expressiva se forem comparados os coeficientes de encefalização.

Tabela 1 – Características físicas de diferentes espécies de hominídeosp

EspéciePeríodo M. (kg) Est. (cm) Cér. APC

CE CM(ma) M. F. M. F. (g) (mm2)

Pan troglodytes atual 49 41 – – 395 294 2,0 0,9Au. anamensis 4,2–3,9 51 33 – – – 428 – 1,4Au. afarensis 3,9–3,0 45 29 151 105 434 460 2,5 1,7Au. africanus 3,0–2,4 41 30 138 115 448 516 2,7 2,0Au. aethiopicus 2,7–2,2 – – – – – 688 – –Au. garhi 2,5– ? – – – – 446 – – –P. boisei 2,3–1,4 49 34 137 124 514 756 2,7 2,7P. robustus 1,9–1,4 40 32 132 110 523 588 3,0 2,2H. habilis 1,9–1,6 37 32 131 100 601 478 3,6 1,9H. rudolfensis 2,4–1,6 60 51 160 150 736 572 3,1 1,5H. ergaster 1,9–1,7 66 56 180 160 849 377 3,3 0,9H. sapiens atual 58 49 175 161 1350 334 5,8 0,9

Fonte: McHenry e Coffing (2000, p. 127). Nota: APC é área da superfície dos dentes pós-caninos; CE é o coeficiente de ence-

falização; CM, o coeficiente de mastodontia.

Como vimos no capítulo anterior, os antropoides, parti-cularmente os chimpanzés, utilizam ferramentas, e, em alguns

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1.

(mm2)

(2)

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casos, ferramentas de pedra. Entretanto, ao contrário do que fazem com galhos, eles não procuram dar forma às suas fer-ramentas de pedra; simplesmente usam o que está à mão. As primeiras ferramentas de pedra que se percebe terem sido in-tencionalmente modeladas têm 2,5 ma e, provavelmente, foram feitas por uma espécie de australopiteco:

Atualmente, não é possível identificar positivamente os criadores das mais antigas ferramentas de pedra aqui ou em Gona, embora o A. garhi seja o único tá-xon reconhecido como hominídeo recuperado dos se-dimentos de Hata (HEINZELIN et al., 1999, p. 627).

Juntamente com as ferramentas, foram encontrados ossos com marcas que indicavam terem sido descarnados com uma lâmina cortante e, em seguida, quebrados, prova-velmente para a retirada da medula óssea. Nas proximidades do local onde foram encontradas as ferramentas não havia a matéria-prima necessária à sua confecção e, por isso, Hein-zelin et al. (1999) presumem terem sido utilizadas por in-divíduos superiores aos chimpanzés em sua capacidade de planejamento do futuro.16

A ausência de matéria-prima local nas margens planas e sem acidentes do lago Hata pode explicar a ausência de concentrações de artefatos líticos. As evidências das modificações nos ossos demonstram que os hominídeos antigos estavam transportando as pedras para o sítio de manipulação das carcaças. A escassez de evidências do abandono de artefatos líticos nesses sítios sugere que esses hominídeos an-

16 Em contraste com a hipótese de Heinzelin et al. (1999), como vimos no capí-tulo anterior (p. 163), há relatos de chimpanzés carregarem ferramentas.

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tigos poderiam estar produzindo suas ferramentas (núcleos e lascas) com previsão de uso subsequente (HEINZELIN et al., 1999, p. 629).

Apesar de possuir um cérebro pequeno, com ∼450 cm3, o espécime de Australopithecus garhi encontrado por Asfaw et al. possuía várias características dentárias e faciais que o tor-navam distinto dos demais australopitecos e semelhante aos espécimes do gênero Homo. Por isso, os autores consideram que o Australopithecus garhi é um forte candidato a elo entre os australopitecos e o Homo ergaster, que eles consideram an-tecessor do Homo erectus (ASFAW et al., 1999, p. 632).

Outro candidato a elo entre Australopithecus e Homo é o Homo habilis, que recebeu esse nome por ter sido descoberto próximo a ferramentas de pedra e, principalmente, por ter uma capacidade craniana claramente superior à dos australo-pi tecos (ver Tabela 1, p. 192). Vários outros espécimes também foram encontrados associados a ferramentas de pedra, mas não há indícios de que o Homo habilis usasse o fogo. Ape sar de, quanto a essas características, ser mais avançado do que os australopitecos, alguns pesquisadores têm argumentado que os pés do Homo habilis possuíam características mais primitivas do que os do Australopithecus afarensis e supõem que ele poderia ser descendente do Australopithecus africanus e ainda estar bem--adaptado à vida nas árvores (HARCOURT-SMITH; AIELLO, 2004, p. 412). Outra característica do habilis apropriada para a vida nas árvores é seu pequeno tamanho. Por todas essas características, muitos paleoantropólogos consideram que o Homo habilis seria mais corretamente classificado como Australopithecus habilis (HARCOURT-SMITH; AIELLO, 2004, p. 404).

As discordâncias entre os especialistas, brevemente descritas acima, deixam claro que, infelizmente, o resultado a

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que se pode chegar até o momento é simplesmente o de que as peças encontradas ainda não são suficientes para montar o quebra-cabeças sobre a origem do gênero Homo.

Em síntese, há vários diferentes cenários para a evo-lução do pé hominídeo, e eles dependem em grande medida das preferências interpretativas de cada um. Entretanto, o que emerge é que o quadro geral é al-tamente complexo, implicando que diferentes táxons vivendo em diferentes partes da África, mas, ao mes-mo tempo, provavelmente tinham mãos e pés que re-presentavam um mosaico de características humanas e de antropoides, mas esses mosaicos eram diferentes uns dos outros, implicando modos de bipedalismo qualitativamente distintos. Dependendo da interpre-tação, isso muito provavelmente sugere um espec-tro de adaptações ao bipedalismo por espécies que incorporavam em seu comportamento, em maior ou menor grau, a escalada de árvores, o bipedalis-mo terrestre e o bipedalismo obrigatório completo (HARCOURT-SMITH; AIELLO, 2004, p. 412).

4.4 O Gênero Homo

4.4.1 O cérebro grande

Há algumas décadas, considerava-se que uma espécie de hominídeo merecia ser classificada como pertencente a nosso gênero se possuísse um cérebro grande (LEAKEY, 1994, p. 27). A adoção desse critério foi motivada pelo fato do tamanho do nosso cérebro ser a característica física que mais claramente se destaca quando somos comparados com outras espécies: “É possível estimar a razão entre o consumo de O2 do corpo e do cérebro. Para a maioria dos mamíferos, a razão metabólica en-

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tre esses dois fatores (Mcérebro/Mcorpo) é menor do que 10%. Para os humanos, entretanto, esse número salta para 20%” (MILTON, 1988, p. 299).

Além de consumir muito oxigênio, o cérebro impõe outros custos metabólicos elevados para o organismo, re-querendo grande quantidade de glicose, tanto durante os períodos de vigília quanto durante o sono (MILTON, 1988, p. 299). É interessante observar, entretanto, que o aumento do cérebro foi acompanhado por uma redução dos intesti-nos, o que indica ter havido uma melhora substancial na die-ta dos nossos ancestrais mais recentes:

[…] o custo metabólico de um cérebro relativamente grande e dispendioso de energia foi compensado pela correspondente redução do tamanho do igualmente custoso intestino humano. […]. Quanto maior a qua-lidade da dieta, menor e mais simples é o intestino (AIELLO; WELLS, 2002, p. 328).

Um órgão com custos tão elevados de manutenção ne-cessariamente presta serviços relevantes para a sobrevivência e reprodução de seu portador. Caso contrário, não teria sido naturalmente selecionado. Mas, com a crescente descoberta de fósseis, percebeu-se que o crescimento do cérebro era mui-to recente e que várias espécies de hominídeos já possuíam muitas características humanas, embora ainda tivessem um cérebro de tamanho mais próximo ao dos antropoides do que ao nosso. O tamanho do cérebro continua sendo importante, mas hoje se utiliza um conjunto maior de critérios para classi-ficar uma espécie de hominídeo como pertencente ao gênero Homo, sendo os principais o bipedalismo plenamente desen-volvido e a forma dos dentes (caninos e molares pequenos) (CELA-CONDE; AYALA, 2003, p. 7684).

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Nas subseções seguintes, revisaremos as caracterís-ticas básicas das espécies pertencentes ao gênero Homo melhor conhecidas.

4.4.2 Homo ergaster

São muitas as hipóteses do caminho evolutivo que levou ao surgimento do gênero Homo. Mas as evidências existentes até o momento apontam que, uma vez surgido, há ∼2 ma, o Homo erectus permaneceu como única espécie do nosso gêne-ro por mais de um milhão de anos. Entretanto, também sobre isso não há consenso porque alguns cientistas classificam es-pécimes africanos mais antigos como Homo ergaster e reser-vam o nome Homo erectus aos espécimes asiáticos.

Comparado aos australopitecos, o Homo ergaster não apre-sentava nenhum sinal de arborealismo: ele era mais alto e mais pesado, vivia num ambiente menos arborizado e mais seco (sa-vana), e possuía um tórax em formato de barril (e não afunilado, como o dos australopitecos e antropoides). Ele tam bém possuía dentes, mandíbulas e intestino menores do que os dos australopi-tecos, o que indica um consumo de alimentos mais ricos e mais fáceis de mastigar e digerir. Seu cérebro era maior, e seus fósseis foram frequentemente encontrados juntamente com ferramen-tas de pedra (AIELLO; WELLS, 2002; MCHENRY; COFFING, 2000; WYNN, 1988). Basicamente, o plano anatômico do homem moderno já estava completo com o Homo ergaster. Mas ele ainda possuía um esqueleto mais robusto e um cérebro consideravel-mente menor, va riando de 750 cm3 nos espécimes mais antigos de Homo ergaster a 1.225 cm3 em alguns dos mais recentes.17

17 Tamanhos de cérebro obtidos na internet: http://talkorigins.org/faqs/homs/species.html, acesso em 25 de maio de 2007.

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O fato de ser completamente bípede indica que o Homo ergaster já possuía uma cultura material e uma organização social complexas o suficiente para garantir proteção contra os grandes predadores da savana. Ele não precisava dormir em ninhos construídos nas árvores, como o fazem os antropoides e provavelmente também o faziam os australopitecos. Não é à toa que de todos os antropoides o gorila, embora seja quadrú-pede, possui os pés mais parecidos com os dos humanos. Áre-as de campo aberto são as mais adequadas para a alimentação dos grandes herbívoros, que podem contar com gramíneas em abundância. Numa floresta fechada, a vegetação nova e mais fá-cil de digerir está na copa das árvores, principalmente nas pon-tas dos galhos, que somente podem ser alcançados por animais pequenos o bastante para não quebrar os galhos mais finos. Consequentemente, na savana estão as melhores oportunida-des de caça. Um corpo grande e pesado — claramente uma des-vantagem para um animal arbóreo — pode ser adaptativo para um habitante das savanas, ao permitir explorar uma área mais vasta e caçar presas maiores (AIELLO; WELLS, 2002, p. 324).

Asfaw et al. compararam a morfologia de um crânio de Homo erectus de ∼1 ma, encontrado na Etiópia, com diversos crânios de Homo ergaster (africanos) e de Homo erectus (africanos e asiáticos) e concluíram que eles são se-melhantes o bastante para ser considerados representantes de diferentes populações de uma única e longeva espécie em evolução, e não indivíduos de espécies diferentes. O espé cime analisado tinha um cérebro de 995 cm3 e uma anatomia intermediária tanto entre os espécimes mais antigos e mais recentes da África quanto entre os espéci-mes africanos e asiáticos (ASFAW et al., 2002, p.  317-8). O Homo erectus de um milhão de anos atrás viveu numa

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savana, como atestam os restos fósseis de outros animais encontrados no mesmo local:

O conjunto de fósseis de bovídeos encontrados asso-ciados18 é dominado por uma diversidade e abundân-cia de alcéfalos não registrada em sítios africanos mais antigos, o que indica hábitats constituídos de pastagens abertas. As três espécies de Kobus19 e a abundância de fósseis de hipopótamos indicam a adjacência de hábi-tats às margens de água (ASFAW et al., 2002, p. 317).

Outra evidência de se tratar da mesma espécie está no fato de a tecnologia de africanos e asiáticos ter evoluído da mesma forma e seguindo a mesma cronologia: “Através do tempo e por todo o hemisfério oriental, a tecnologia empregada por este táxon variou da olduvaiense à acheulense” (ASFAW et al., 2002, p. 319).

4.4.3 Homo erectus

O Homo erectus provavelmente surgiu na África, mas logo se dispersou também pela Ásia. Já há ∼1,7 ma o leste da Ásia era habitado pelo Homo erectus com sua característica tecnologia olduvaiense (ANTÓN; SWISHER, 2004, p. 272).

Nesse período, as ferramentas eram fabricadas inten-cionalmente, mas sem grande planejamento. Para se produzir as ferramentas de pedra encontradas junto aos fósseis de até 1,5 milhão de anos, é suficiente que se jogue as pedras umas contra as outras. Eventualmente, um dos estilhaços terá um formato útil, como, por exemplo, o de uma lâmina cortante que poderá ser usada como faca.

18 No original: The bovid assemblage.19 Gênero de antílopes.

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Nicholas Toth suspeita que os mais antigos produto-res de ferramentas não tinham em mente os formatos específicos das ferramentas individuais — um modelo mental, se preferir — quando as faziam. Mais provavel-mente, as várias formas eram determinadas pela forma original da matéria-prima. A indústria olduvaiense — a única forma de tecnologia praticada cerca de 1,4 mi-lhão de anos atrás — era de natureza essencialmente oportunista (LEAKEY, 1994, p. 37).

Durante o período de 1,8 a 1,5 ma, o Homo erectus (ou H. ergaster) basicamente se limitou a tirar lascas de pedras. Ferra-mentas assim produzidas foram primeiramente descobertas no Vale Olduvai, na Tanzânia, e, por isso, ferramentas semelhantes encontradas em outros locais da África e Ásia são consideradas pertencentes à tecnologia olduvaiense. O uso dessas ferramen-tas é um indício de que os hominídeos estavam ocupando um hábitat mais árido e diversificando sua dieta:

Alguns investigadores argumentam que entre 1,8 e 1,5 milhão de anos atrás os registros começam a indicar uma estratégia mais complicada e diversa de obtenção de alimentação, com maior uso de áreas marginais, in-cluindo áreas mais altas e secas e áreas mais distantes de fontes de água. Semelhantemente, outros sugerem que os registros da fauna desse período evidenciam um pa-drão focado na aquisição de carne e medula óssea, com hominídeos consumindo carcaças mais do que antes (ANTÓN; SWISHER, 2004, p. 282).

Desde 1,5 ma começaram a aparecer ferramentas que evidenciam ter sido feitas com um maior planejamento, que, claramente, não poderiam ter sido feitas por um antropoi-de. Para se produzir peças como as encontradas nesse novo

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período, é preciso moldar a pedra intencionalmente. O pro-duto final já teria de estar na mente do artesão no momento em que ele escolhia um bloco para começar a trabalhar (LE-AKEY, 1994, p. 39). Lascas grandes eram extraídas das pedras e, depois, transformadas em ferramentas típicas do período (WYNN, 1988, p. 280). Eram feitas peças como machados de mão e facas (MCHENRY; COFFING, 2000, p.  128-139). A nova tecnologia é chamada de acheulense, uma referência a St. Acheul, na França, onde foi descoberta. O próximo está-gio na tecnologia já será dado pelo Homo sapiens:

Após mais de um milhão de anos de relativa estagna-ção, a indústria simples de machados de mão do Homo erectus deu lugar a uma tecnologia mais complexa, fo-cada em lascas grandes. E onde a indústria acheulense tem cerca de uma dúzia de implementos identificáveis, as novas tecnologias incluem cerca de sessenta. A no-vidade biológica que vemos na anatomia do sapiens arcaico, incluindo os neandertalenses, é claramen-te acompanhada por um novo nível de competência tecnológica. Uma vez estabelecida a nova tecnologia, entretanto, pouco mudou. Estagnação, e não inovação, caracterizou a nova era (LEAKEY, 1994, p. 93).

O nível tecnológico, mais uma vez, estagnou. Somente há cerca de 100 mil a 35 mil anos começaram a surgir ferra-mentas mais sofisticadas paralelamente a obras de arte e outras evidências de que nossos ancestrais haviam atingido um novo patamar em sua evolução cognitiva. Segundo Leakey, sinais de uma mente humana moderna podem ser encontrados na agri-cultura desenvolvida 10 mil atrás e, antes disso, na arte pré--histórica de 35 mil anos atrás:

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Quando a mudança veio, entretanto, foi deslumbrante […]. Há cerca de 35 mil anos, na Europa, as pessoas co-meçaram a produzir ferramentas de maneira mais apu-rada, usando golpes delicados para produzir lâminas de pedra. Pela primeira vez, ossos e chifres foram usados como matéria-prima para produção de ferramentas. Os conjuntos de ferramentas passaram a incluir mais de uma centena de itens, entre eles implementos para produção de roupa grosseira e para gravura e escultura. Pela primeira vez, as ferramentas se tornaram obras de arte: arremessadores de lanças de chifre, por exemplo, eram adornados com esculturas de animais reais. […]. Ao contrário de eras passadas, quando a estagnação do-minava, a inovação era a essência da cultura, com mu-danças sendo medidas em milênios e não em centenas de milênios (LEAKEY, 1994, p. 93-94).

Leakey e Lewin (1996) especulam que a invenção de uma bolsa para carregar frutos foi revolucionária, tornando possível o desenvolvimento do altruísmo entre os humanos, que pude-ram transportar comida para o local do acampamento. Esse altruísmo, por sua vez, seria a característica distintamente hu-mana, que fez nossa espécie evoluir e se tornar cada vez mais in-teligente: “É fácil transportar uma grande quantidade de carne: é só jogar o animal, ou parte dele, sobre os ombros. Todavia, uma porção de grãos representa um problema tecnológico: sem um recipiente adequado, ou se come na hora, ou a comida apodre-cerá” (LEAKEY; LEWIN, 1996, p. 130).

Especular em sentido inverso também é possível. O de-senvolvimento do altruísmo criou a necessidade do desenvol-vimento da bolsa e, dado que certamente os hominídeos eram bastante criativos (a criatividade está presente nos antropoides atuais, por exemplo), eles resolveram o problema tecnológico,

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criando a bolsa. Se não houvesse altruísmo, não haveria ne-nhum problema tecnológico a ser resolvido.

Com o altruísmo temos a cooperação e com a coope-ração surgem os trapaceiros e, consequentemente, a necessi-dade de se detectar os trapaceiros. Foi nessa corrida evolutiva que se desenvolveu o cérebro humano. A espécie humana, além dos insetos sociais, antes da invenção da agricultura e da escrita, foi a única em que a cooperação se desenvolveu a ponto de existir divisão de trabalho entre categorias de traba-lhadores (homens caçando e mulheres coletando).

Nem sempre os homens comiam a carne de um animal caçado por eles próprios:

Shipman examinou a distribuição de marcas de corte em ossos antigos e fez duas observações. Primeira, so-mente cerca de metade eram indicativas de desmembra-mento; segunda, muitas eram em ossos de pouca carne. Além disso, uma alta proporção das marcas de corte se cruzava com marcas deixadas por dentes de carnívoros, implicando o acesso aos ossos pelos carnívoros ser ante-rior ao dos hominídeos (LEAKEY, 1994, p. 72).

Chimpanzés também caçam pequenos animais, o que pode significar que a caça não foi iniciada pelos hominídeos, já sendo praticada pelo ancestral que temos em comum com os chimpanzés. Alternativamente, pode-se considerar que esse ancestral não caçava e que os chimpanzés tornaram-se caça-dores após a divergência do nosso ancestral comum. Em todo caso, muitos paralelos podem ser traçados entre a atividade de caça de humanos e de chimpanzés:

Nas generalizações adiantadas pela literatura espe-cu la tiva, existem muitos paralelos entre a caça por

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chimpanzés atuais e a realizada por hipotéticos proto-hominídeos: ambas eram feitas principal-mente por machos, se concentravam em presas imaturas, parasitavam outros predadores por meio de pirataria ou pelo consumo de carcaças abando-nadas [scavenging] e envolviam caça solitária ou social. Na caça social, em ambas, havia troca de in-formação que ajudava a coordenar as ações de vá-rios caçadores para o objetivo comum de capturar a presa (MCGREW, 1992, p. 116).

McGrew usa os conceitos de tecnounidade e subsistantes para quantificar o grau de evolução tecnológica de uma espécie usuária de ferramentas. Com esses conceitos, ele consegue com-parar os chimpanzés com os tecnologicamente mais primitivos dos povos humanos já estudados. A comparação é feita entre as ferramentas de chimpanzés da Tanzânia com as de povos primiti-vos da Tasmânia, levando à conclusão de que a tecnologia empre-gada pelos chimpanzés não é radicalmente inferior à empregada pelos humanos modernos mais primitivos já existentes.

Os dois conjuntos de ferramentas se utilizam dos mesmos materiais: madeira, pedra, vegetação não lenhosa, usam ferramentas principalmente para predar animais e não vegetais, enfatizam ferramen-tas e equipamentos que eram usados manualmente ou vigiados [tended facilities] mais do que equipa-mentos que funcionavam sem a presença do caçador [untended facilities, armadilhas, por exemplo]. Am-bos são mais “espertos” do que a presa: por exemplo, humanos se escondem e chimpanzés se emboscam [perch] (MCGREW, 1992, p. 141).

Uma grande diferença entre o nível tecnológico humano e antropoide é o uso do fogo. Todos os povos caçadores e cole-

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tores de que se teve notícia usavam o fogo para cozinhar os ali-mentos, para se defender de predadores e para se aquecer em clima frio. Mas há relatos de que alguns povos não sabiam ou haviam desaprendido a fazer o fogo, ficando obrigados a man-ter pelo menos uma chama permanentemente acesa, como os tasmanianos (já extintos) (MCGREW, 1992) e vários povos in-dígenas da América do Sul (parakanãs, sirionós, yuquis e wari) (FAUSTO, 2001, p. 145). Assim, embora existam evidências de que o Homo erectus usasse o fogo (ANTÓN; SWISHER, 2004, p. 289), não é certo que fosse capaz de produzi-lo.

Depois de surgido, o Homo erectus rapidamente passou a ocupar um vasto território, incluindo diversas regiões da África e da Ásia. De ∼2 ma a ∼0,5 ma, o Homo erectus parece ter per-manecido como uma única espécie. A expansão da área ocupada pelo H. erectus significa que o nível tecnológico por ele alcan-çado já era sofisticado o suficiente para importantes acidentes geográficos deixarem de ser obstáculos à sua mobilidade e para permitir-lhe ocupar diferentes nichos ecológicos. A unidade filo-genética do H. erectus por todo esse período pode ser interpreta-da como um forte indício de que a sua adaptação aos diferentes nichos ecológicos era mais cultural do que anatômica, e que a migração de indivíduos da África para a Ásia (e fazendo o cami-nho inverso) não foi interrompida, permitindo a manutenção da unidade genética da espécie. O fluxo migratório constante garan-tiria que qualquer inovação genética importante poderia se espa-lhar pelo resto do mundo em alguns milhares de anos, antes que as diferentes populações pudessem constituir espécies distintas.

Segundo Asfaw et al. (2002, p. 319), há ∼0,95 ma tive-ram início grandes oscilações nas condições climáticas mun-diais, o que poderia ter levado ao isolamento de populações e à consequente especiação do H. erectus.

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206 Jakson Alves de Aquino

Os fósseis mais recentes de Homo erectus têm ∼200 mil anos e foram encontrados na Ásia, mas há ∼500 mil anos co-meçaram a surgir novas espécies derivadas do H. erectus. En-tre elas, o H. neandertalensis e o H. sapiens.

4.4.4 Neandertalenses

O primeiro fóssil de um neandertalense foi encontrado em 1856 no Vale Neander, na Alemanha. Os neandertalenses eram mais fortes do que os humanos modernos e também tinham um cérebro um pouco maior (cerca de 1.450 cm3), parecendo especialmente adaptados ao clima frio da Europa durante as eras glaciais. Não há consenso entre os pesquisado-res se os neandertalenses são ou não nossos ancestrais, mas as evidências mais recentes indicam que não houve miscigenação entre os neandertalenses e os humanos arcaicos.

Harvati, Frost e McNulty compararam a morfologia dos crânios de seres humanos modernos, humanos do pe-ríodo paleolítico, neandertalenses e vários outros primatas, incluindo várias espécies de antropoides e de macacos. As di-ferenças morfológicas entre neandertalenses e humanos eram demasiadamente grandes para que se tratasse de duas raças da mesma espécie. Muito provavelmente, neandertalenses e humanos seriam espécies distintas, incapazes de produzir descendentes férteis, e, portanto, os seres humanos modernos não teriam genes herdados dos neandertalenses (HARVATI; FROST; MCNULTY, 2004, p. 1152).

Os estudos morfológicos são complementados por análises do DNA mitocondrial de neandertalenses, feitas por Krings et al. (1997) e Ovchinnikov et al. (2000), que também apresentam fortes evidências deles não estarem entre os an-

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cestrais dos humanos. Se fosse esse o caso, seria de se esperar que o DNA dos espécimes analisados fosse mais semelhante ao dos humanos atuais que vivem na Europa do que ao dos habitantes das demais regiões do globo. As análises revela-ram o contrário: os dois espécimes encontravam-se genetica-mente equidistantes de todas as populações hu ma nas atuais (KRINGS et al., 1997, p.  24; OVCHINNIKOV et al., 2000, p. 492). Os autores estimam que o último ancestral comum entre humanos modernos e neandertalenses viveu entre 690 mil e 550 mil anos atrás (KRINGS et al., 1997, p. 24) ou entre 853 mil e 365 mil anos (OVCHINNIKOV et al., 2000, p. 492). As diferenças genéticas entre humanos e neandertalenses pa-recem ter sido suficientes para impedir a gestação de descen-dentes férteis.

Segundo Duarte et al. (1999), o fóssil encontrado por sua equipe em Largar Velho, Portugal, apresenta uma morfologia híbrida de humano moderno e neandertalense e há indícios do fóssil ser remanescente de uma sepultura ornamentada com conchas furadas e ocre vermelho, ou seja, traços de cultura humana. Tattersall e Schwartz (1999), entretanto, consideram que o fóssil de Largar Velho não apresenta evidências suficientes de hibridismo, sendo mais parcimoniosa a interpretação de se tratar de homem moderno mais entroncado do que a maioria dos indivíduos do seu tempo.

O fato dos neandertalenses não serem nossos ancestrais significa que, provavelmente, eles foram, de alguma forma, ex-tintos em decorrência de ações humanas. Tais ações tanto po-dem ter sido pacíficas quanto bélicas (LEAKEY, 1994, p.  98). Mesmo uma pequena vantagem dos humanos modernos na exploração dos recursos naturais seria suficiente para obrigar os neandertalenses a ocupar áreas cada vez mais restritas e, por

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fim, demasiadamente pequenas para permitir a sustentação de uma população. Nesse cenário, a extinção não poderia ser con-siderada resultado de ação humana violenta, e poderia ocorrer em poucos milhares de anos a partir do momento em que os humanos fossem superiores aos neandertalenses. O problema é que os fatos conhecidos não permitem excluir a hipótese da eliminação dos neandertalenses pela violência. Assim como na hipótese anterior, também por meio da guerra seria de se es-perar que os frequentemente vencidos em inúmeras pequenas batalhas desaparecessem em alguns milhares de anos.

Sendo os neandertalenses fisicamente bem-adaptados ao clima frio, é provável que os humanos, recém-chegados da Áfri-ca, tenham necessitado de alguns milhares de anos para se tornar, em decorrência de seu desenvolvimento cultural, melhor adapta-dos ao meio ambiente europeu do que os próprios neandertalen-ses. Isso explicaria por que, em muitas regiões, neandertalenses e humanos conviveram por dezenas de milhares de anos. Outra explicação seria que a aparente coexistência encontrada no regis-tro fóssil tenha sido na verdade ocupação alternada do mesmo território, decorrente das idas e vindas das eras glaciais.

É possível que as diferentes populações tenham ocupa-do a região alternadamente, seguindo as mudanças cli-máticas. Nos períodos mais frios, homens modernos moveram-se para o Sul e os neandertalenses ocuparam o Oriente Médio; em períodos quentes, ocorreu o inverso. Devido à imprecisão da datação dos depósitos das caver-nas, esse tipo de “compartilhamento” de uma localidade pode parecer coexistência. Vale observar, entretanto, que onde nós realmente sabemos que neandertalenses e hu-manos modernos coexistiram — na Europa Oriental, 35 mil anos atrás — eles o fizeram por um milênio ou dois no máximo […] (LEAKEY, 1994, p. 99).

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Entre humanos modernos, as guerras são feitas por diversos motivos, principalmente por mulheres, e as alianças entre tribos diferentes são feitas por vários meios, principalmente pelos casamentos.20 Assim, a impossibili-dade de produção de descendentes férteis entre humanos e neandertalenses fez com que essa via para formação de alianças tenha inexistido entre eles.

4.4.5 Homens modernos

Não encontrei um conjunto de características aceitas consensualmente como adequadas para classificar uma espé-cie como homem moderno, em oposição a homem arcaico. Mas, pelos textos revisados até aqui, pode-se considerar como moderna a espécie com andar ereto, dentes essencialmente humanos, cérebro grande e domínio da linguagem como a praticamos hoje. Os dois primeiros critérios encontram-se nos registros fósseis, mas não o terceiro.

Ao contrário das incertezas em torno da origem do Homo erectus, não havendo consenso sobre quem foram seus ancestrais, há poucas dúvidas de que o homem moderno evo-luiu a partir do H. erectus.

A transição dos últimos Homo erectus para os primei-ros Homo sapiens foi gradual. Vários fósseis “de tran-sição”, compartilhando características de ambos, são conhecidos da Europa e da África e datam de cerca de 300 mil anos atrás […]. A maior parte das mudanças evolutivas ocorreu na anatomia da face e do crânio. Não houve um grande salto no tamanho do cérebro.

20 Ver Linton (1968), Chagnon (1968), Gallois (1986), Seeger (1993) e Fausto (2001).

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De fato, o coeficiente encefálico do Homo sapiens é pouco maior do que o dos últimos Homo erectus, mui-tos dos quais estavam na faixa dos humanos modernos (WYNN, 1988, p. 282).

Há duas hipóteses para a origem do homem. A primeira, hipótese multirregional, cada vez menos defendida, diz que a espécie humana moderna não se originou em lugar específico. Pelo contrário, as melhorias genéticas ocorridas entre as dife-rentes populações de H. erectus teriam constantemente irra-diado por toda a população. Nesse modelo, não teria havido extinção de espécies humanas nas últimas centenas de milhares de anos ou teria havido apenas com as populações mais isoladas. Defensores desse modelo argumentam que qualquer mutação genética que traga alguma vantagem, mesmo pequena, para seus portadores tenderia a se espalhar rapidamente por toda a população, e que as diferentes populações de H. erectus estavam minimamente interconectadas para que a maioria fosse atingida pelas melhorias. Os neandertalenses estariam entre nossos an-cestrais. Entretanto, muitos acreditam que no período em que surgia a espécie humana moderna não havia fluxo genético su-ficiente para evitar a especiação do H. erectus.

A maioria dos geneticistas populacionais […] são cé-ticos da viabilidade do modelo de evolução multirre-gional. Eles observam que o modelo multirregional requer um alto fluxo de genes através de grandes po-pulações, ligando-as geneticamente enquanto permite à mudança evolutiva torná-los humanos modernos (LEAKEY, 1994, p. 91).

A segunda hipótese seria de que a espécie humana teve origem numa ou poucas populações africanas e substituiu todas

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as outras espécies de hominídeos existentes na Terra. Já vimos que, provavelmente, não houve miscigenação entre os neander-talenses e os hominídeos e outras evidências têm-se acumulado em favor da hipótese de uma origem africana. A heterogenei-dade genética entre as diferentes populações humanas moder-nas é muito pequena para que a hipótese multirregional seja verdadeira. Além disso, o modo como essa heterogeneidade se dá é incompatível com o modelo multirregional. A heteroge-neidade genética entre duas populações é diretamente propor-cional ao tempo de isolamento entre elas. Assim, pelo modelo multirregional, seria de se esperar que os diferentes continen-tes apresentassem uma variação genética semelhante entre suas populações; não seria de se esperar, por exemplo, que as dife-rentes populações da África fossem significativamente mais he-terogêneas entre si do que as populações europeias ou asiáticas. Entretanto, ocorre justamente isso. O continente africano apre-senta as populações que se encontram geneticamente isoladas há maior tempo desde o surgimento da espécie humana. Na África, pode-se dizer que os povos que ainda vivem ou viviam até recentemente da caça e da coleta somente tinham esse meio de vida devido a seu alto grau de isolamento das demais popu-lações africanas, e são justamente eles os que apresentam maior heterogeneidade genética.

O ramo mais antigo sugerido pela análise de TD represen-ta populações de caçadores-coletores africanos, dos quais se separam os ramos levando às populações contempo-râneas de agricultores africanos e não africanos. Depois da separação de agricultores africanos de não africanos, o ramo não africano se dividiu entre Eurásia, Oceania, Ásia Oriental e América, nessa ordem (ZHIVOTOVSKY; ROSENBERG; FELDMAN, 2003, p. 1178).

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Segundo Zhivotovsky, Rosenberg e Feldman, o padrão de variação genética entre as diversas populações é compatí-vel com um modelo em que os humanos atuais seriam todos descendentes de uma pequena população existente na Áfri-ca há 142-71 mil anos:

Quão pequena era a polução ancestral africana? […] o tamanho efetivo da população ancestral pode ter sido de apenas 700 pessoas. […]. A estimativa não impossibilita a presença de outras populações de Homo sapiens sapiens na África, embora sugira que eram provavelmente popu-lações geneticamente isoladas umas das outras e que po-pulações contemporâneas em todo o mundo descendem de uma ou algumas dessas populações (ZHIVOTOVSKY; ROSENBERG; FELDMAN, 2003, p. 1180).

White et al. (2003) descrevem espécimes humanos data-dos de 160 mil a 154 mil anos atrás e encontrados na Etiópia (Herto, Awash do Meio), nomeados Homo sapiens idaltu. Um indivíduo de sexo masculino tinha uma capacidade craniana de 1.450 cm3, superior à média dos humanos modernos e igual à média dos neandertalenses. Mas, morfologicamente, é pos-sível afirmar que certamente não se tratava de um neander-talense. Os espécimes encontrados possuíam uma morfologia basicamente moderna, mas com alguns traços típicos do H. erectus (WHITE et al., 2003, p. 742-3).

Os autores dizem que os espécimes de H. sapiens idaltu encontrados estavam morfologicamente equidistantes da maioria dos humanos modernos, o que é equivalente a argumentar ter o crânio provavelmente pertencido a um indivíduo muito próximo da postulada pequena população que deu origem a todos os humanos modernos.

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Na amostra global de humanos modernos, os crânios de Herto, tanto metricamente quanto não metrica-mente, não apresentam nenhuma afinidade derivada com crânios africanos modernos ou com qualquer grupo moderno, confirmando sugestões anteriores. Ao contrário, as maiores aproximações de indivíduos modernos com a morfologia geral, o tamanho e a ro-busticidade das faces são encontrados em alguns indi-víduos australianos e oceânicos, embora estes também sejam claramente distintos dos hominídeos de Herto (WHITE et al., 2003, p. 744).

4.5 Origem da Linguagem

A linguagem é fundamental para a coordenação do tra-balho em equipe e, portanto, para a cooperação em larga es-cala. Na elaboração de um modelo baseado em agentes, uma discussão sobre a origem da linguagem pode fornecer critérios para a determinação de quando e como atribuir aos agentes uma maior capacidade comunicativa. Os autores que estudam a evolução da linguagem não chegaram a um consenso sobre o processo que deu origem às línguas humanas modernas, mas todos concordam que o uso da linguagem como a conhecemos é um fenômeno relativamente recente.

4.5.1 Teoria da linguagem de sinais

Devido ao fato dos antropoides serem capazes de aprender linguagem de sinais, e também porque as línguas humanas são ricas em metáforas espaciais, alguns autores propõem que a linguagem pode ter-se originado da comuni-cação por gesticulação. Bickerton (1990, p. 142) e Aitchison (1996, p. 71), por outro lado, acreditam que tal teoria apenas

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complica a história da evolução da linguagem ao lhe acrescen-tar mais uma etapa. Concordo com esses autores e considero muito complicada a hipótese de que a linguagem se desenvol-veu primeiro por gestos e, depois, foi transferida para a fala se se entender por isso que ao passar da linguagem por gestos para a linguagem falada o cérebro sofreu uma reordenação complexa. Entretanto, tal como propõem Milo e Quiatt (1994, p. 336), a ideia parece plausível:

Mas enquanto argumentamos pela aparência tardia da fala fonêmica rápida, não gostaríamos de aparentar estar argumentando que a linguagem falada humana é emergente (no sentido de Chomsky). Enfatizamos que, exceto pela habilidade para produzir regularmente fo-nemas arbitrários distinguíveis rapidamente o bastante para acomodar os limites inerentes da memória de cur-to prazo, características linguísticas como sintaxe e ca-pacidade cognitiva para empregar linguagem evoluíram por um período superior a 1,5 milhão de anos.

Outra teoria sugere que a linguagem se desenvolveu em decorrência do aprimoramento cognitivo resultante do uso cada vez maior de ferramentas.

Gordon Hewes […] é um particular defensor da lingua-gem de gestos do hominídeo; ele mostra que as habilidades progressivas da manipulação, necessárias para manufatu-rar as ferramentas de pedra mais complexas, podem não estar desligadas das habilidades manuais associadas às ges-ticulações complexas (LEAKEY; LEWIN, 1996, p. 195).

Entretanto, não consigo ver em que a habilidade para manipular ferramentas seja superior à habilidade manual ne-cessária para pular de galho em galho. Além disso, Aitchison

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(1996) lembra a dificuldade que temos para usar a linguagem para explicar a uma pessoa como desenvolver uma atividade manual, para a qual é muito mais fácil fazer uma demonstra-ção visual. Ele, portanto, considera pouco provável que a evo-lução da linguagem esteja associada ao desenvolvimento das ferramentas (AITCHISON, 1996, p. 19).

Mas a inadequação da linguagem falada para a trans-missão de conhecimentos práticos manuais não esgota as pos-síveis relações entre linguagem e uso de ferramentas. É claro que, num certo sentido, a linguagem não é apropriada para ensinar alguém a fazer atividades práticas. O artesão ensina seu trabalho a um aprendiz pelo exemplo, e não com palavras. Mesmo assim, a linguagem tem um papel fundamental na transmissão de tecnologia:

É algo completamente diferente quando o que se ensina não é a técnica em si, mas os princípios metatécnicos, as relações entre as relações-entre-coisas que permitem a geração — e não meramente a implementação — de for-mas particulares. Inovação, portanto, não é um desvio da tradição, originada de algum insight ao acaso ou de um acidente de transmissão. Pelo contrário, ela é uma exploração dos potenciais gerativos de um sistema de conhecimento herdado (INGOLD, 1994, p. 287).

4.5.2 Teoria da protolíngua

Bickerton argumenta que o Homo erectus falava uma protolíngua. Como ele fez isso por mais de um milhão de anos, essa protolíngua estaria já bem estabelecida em nossa base neurológica. A protolíngua se caracterizaria pelo uso de ape-nas algumas classes gramaticais como verbos e substantivos, sem o emprego de outras, mais abstratas, como preposições

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e conjunções. Em protolíngua não é possível construir frases complexas sem ambiguidade. Ainda hoje fazemos uso da pro-tolíngua quando exaustos, confusos etc.

As evidências revisadas sustentam a suposição de que há um modo de expressão linguística bastante sepa-rado da linguagem humana normal e que é compar-tilhado por quatro classes de falantes: antropoides treinados, crianças com menos de dois anos, adultos isolados da linguagem nos seus primeiros anos de vida e falantes de pidgin. […]. Ele [o modo de expressão] é uma característica da espécie tanto quanto a lingua-gem, embora, diferentemente desta, possa estar ao al-cance de outras espécies, se apropriadamente treinadas (BICKERTON, 1990, p. 122).

Tomasello (1999) não vê propriamente o uso de uma gra-mática mais complexa como o passo decisivo do surgimento das línguas. Ele, entretanto, considera que, antes do homem moder-no, nossos ancestrais já falavam algum tipo de língua. É real-mente muito provável que o Homo erectus já falasse algum tipo de protolíngua, pois o surgimento da linguagem completamente desenvolvida de um momento para o outro seria uma evolução muito radical para ser ocasionada pela seleção natural.

4.5.3 Teoria da empatia

Segundo Tomasello, os antropoides não são habilidosos na tarefa de ler a mente do outro, e é isto o que prejudica sua capacidade de transmitir conhecimentos.

Apesar de algumas observações sugerirem que alguns primatas não humanos em algumas situações são ca-pazes de compreender coespecíficos como agentes in-

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tencionais e de aprender com eles de um modo que se assemelha a algumas formas de aprendizado cultural humano, o peso esmagador das evidências sugere que somente seres humanos compreendem coespecíficos como agentes intencionais como eles próprios e so-mente seres humanos se engajam em aprendizado cul-tural (TOMASELLO, 1999, p. 6).

Segundo Tomasello, os chimpanzés em seu ambiente natural procuram seguir o exemplo dos seus semelhantes, mas sem uma clara compreensão das suas intenções. Eles, por exem-plo, reproduziriam o comportamento de introduzir uma vareta num cupinzeiro, mas fariam isso sem pensar sobre quais seriam as intenções do seu semelhante ao ter feito o mesmo. Cada um descobriria por si próprio que serviria para capturar os cupins. Os chimpanzés, portanto, não se utilizariam de um método de transmissão cultural mais eficaz e tipicamente humano:

O principal outro processo envolvido na transmissão cultural, tal qual tradicionalmente definida, é o ensino, quer o aprendizado social venha de “baixo para cima”, quando indivíduos ignorantes ou destreinados pro-curam outros mais sábios ou habilidosos, ou de “cima para baixo”, quando indivíduos instruídos e habilido-sos procuram passar conhecimentos ou habilidades para outros (TOMASELLO, 1999, p. 33).

Os seres humanos seriam os únicos a ter interesse em ser professores, doutrinadores. Isso lembra a noção de memes de Dawkins (1979), mas a argumentação aqui é bem mais concreta. Na teoria de Dawkins, os memes “querem” se reproduzir, pu-lar de uma cabeça para outra. Os agentes são as ideias e não os indivíduos. Parece-me, entretanto, que não precisamos dessa metáfora. A teoria da empatia permite explicar de forma mais

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objetiva por que os humanos são doutrinadores. Os humanos deliberadamente tentam transmitir conhecimentos e, ao ten-tar fazer isso, levam em consideração o que se passa na mente do outro. Isso aumenta enormemente a eficácia do processo de transmissão cultural, permitindo a acumulação de conheci-mentos. Basta lembrar que uma aula é muito mais proveitosa quando o número de alunos é pequeno. Nesse caso, o professor consegue constantemente ajustar seu discurso à compreensão dos alunos. Os chimpanzés, segundo Tomasello, são obrigados a reinventar a cultura num grau que nós estamos dispensados de fazer e isso limita sua capacidade de acúmulo cultural.

O que Tomasello chama de imitação é a tentativa de uma pessoa se comportar como outra a partir do que conside-ra serem as intenções da outra e não por simples tentativa de reproduzir os mesmos movimentos:

Antropoides no seu hábitat natural não têm nin-guém para lhes apontar algo, mostrar-lhes coisas, ensinar-lhes ou, em geral, expressar intenções (ou es-tados inten cionais) de modo a despertar sua atenção (T OMASELLO, 1999, p. 35).

De acordo com Tomasello, o que possibilitou à espécie humana dar um grande salto evolutivo nos últimos 200 mil anos, incluindo o desenvolvimento das línguas modernas, foi o que podemos chamar de capacidade de empatia, ou seja, a ca-pacidade de imaginar o que se passa na mente de outra pessoa.

Por um lado, existem milhares de maneiras diferentes e parecidas de se comunicar uma informação qualquer. Por outro lado, uma mesma frase pode ter muitos significados, de-pendendo do contexto em que é pronunciada. Quem fala pre-cisa ter uma ideia do que a outra pessoa já sabe para escolher a

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forma mais apropriada de falar, e quem escuta precisa ter uma ideia do que a outra pessoa sabe e do que a outra pessoa acha que ela, que escuta, já tem conhecimento. Os seres humanos conseguem fazer isso porque são capazes de concentrar con-juntamente sua atenção sobre um aspecto do mundo.

A capacidade de empatia está diretamente relacionada com a transmissão cultural. Segundo Tomasello, um chim-panzé observando outro utilizar uma ferramenta pode imitar seus movimentos, mas terá de descobrir por sua própria ex-periência o que acontece ao se manipular aquela ferramenta daquela forma. Um ser humano teria uma tendência natural a tentar compreender quais são os objetivos do outro, e isso, ao dar sentido às ações, facilitaria o processo de imitação. De todos os milhares de movimentos realizados por um indiví-duo, por que copiar este e não aquele? Resposta: porque este permite atingir determinado objetivo desejável. Comparadas aos antropoides, as crianças humanas são especialmente inte-ressadas em assimilar cultura.

Crianças que compreendem que outras pessoas têm relações intencionais com o mundo, semelhantemen-te às suas próprias relações intencionais com o mun-do, podem tentar se apropriar dos modos que outros indivíduos encontraram para alcançar seus objetivos (TOMASELLO, 1999, p. 78).

Não obstante terem intensa vida social e afetiva, os chim-panzés viveriam em maior isolamento, sem compartilhar suas impressões sobre o mundo com seus semelhantes. Tomasello fornece um exemplo interessante que demonstra ser fundamen-tal para uma comunicação bem-sucedida concentrar conjunta-mente a atenção sobre algum aspecto do mundo ou algum tema.

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Um estrangeiro num país cuja língua lhe fosse completamente estranha não teria a menor ideia do que estaria falando uma pessoa que se aproximasse comentando sobre o tempo, numa tentativa de iniciar uma conversa casual. Ele, entretanto, conse-guiria se comunicar minimamente com, por exemplo, um ven-dedor de bilhetes de trem. Mesmo falando línguas diferentes, os dois saberiam quais eram as intenções do outro (TOMASELLO, 1999, p. 99). Essencialmente, falar é uma ação social e conversar, relação social, no sentido weberiano dos termos:

Devemos, portanto, explicitamente reconhecer o ponto teórico segundo o qual a referência linguística é um ato social no qual uma pessoa tenta obter o foco de atenção de outra pessoa para algo no mundo. E nós somente podemos ser compreendidos no contex-to de certos tipos de interação social, que eu chama-rei de cenas de atenção conjunta. Cenas de atenção conjunta são interações sociais nas quais a criança e o adulto estão conjuntamente atentos a uma tercei-ra coisa, e à atenção um do outro em relação a essa terceira coisa, por um tempo razoavelmente extenso (TOMASELLO, 1999, p. 97).

O desenvolvimento moral também está relacionado com a característica distintiva dos humanos de empatia, ou seja, de terem uma teoria sobre como funciona a mente do outro:

Há um outro aspecto unicamente humano da compre-ensão social que começa a se fazer sentir no final da pri-meira infância, e que se refere à compreensão moral. Nas considerações de Piaget, o raciocínio moral não se refere a seguir regras de autoridade, mas, sim, a empatizar com outras pessoas e ser capaz de ver e sentir coisas dos seus pontos de vista (TOMASELLO, 1999, p. 179-180).

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Segundo Tomasello, o que falta aos antropoides não é inteligência para desenvolver a tecnologia, mas inteligência e disposição para transmitir a cultura. Eles não são habilidosos na tarefa de ler a mente do outro, e é isso o que prejudica sua capacidade de transmitir conhecimentos e acumular cultura.

Os antropoides, entretanto, parecem estar a apenas pou-cos passos da capacidade de desenvolver empatia. Quando criados em ambiente humano e recebendo o mesmo tratamen-to, atenção e respeito que se costuma dispensar às crianças hu-manas, como o próprio Tomasello admite, eles desenvolvem muitas das características consideradas tipicamente humanas, embora não com a mesma competência.

Pode-se objetar que há na literatura um número muito convincente de observações de aprendizado imitativo em chimpanzés e, de fato, há alguns. É interessante, en-tretanto, que basicamente todos os casos claros são de chimpanzés que tiveram extenso contato com huma-nos (TOMASELLO, 1999, p. 34).

Para Tomasello, a compreensão dos fenômenos sociais é anterior à compreensão dos fenômenos físicos:

[…] minha hipótese é de que a habilidade unicamente humana de compreender eventos externos como me-diados por forças intencionais/causais emergiu duran-te a evolução humana primeiramente para permitir aos indivíduos prever e explicar o comportamento de coespecíficos e tem, desde então, sido transportado para lidar com o comportamento de objetos inertes (TOMASELLO, 1999, p. 24-5).

Acredito que podemos estender esse raciocínio um pou-co mais e dizer que, devido à inteligência social (empatia), o

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pensamento humano tem uma tendência a ser antropomór-fico (ou mitológico), que seria justamente um indício de que o mesmo módulo mental que processa informações sobre o que se passa na mente de outra pessoa está envolvido no processa-mento das informações sobre quais as causas dos fenômenos físicos. Mas essa não parece ser uma característica unicamente humana. A inteligência social (ou maquiavélica) é típica dos primatas que vivem em sociedade.

4.5.4 Antropoides humanizados

Como vimos no capítulo anterior, os antropoides em seu ambiente natural apresentam uma capacidade de transmissão cultural não desprezível, mas a comunicação simbólica por eles desenvolvida é extremamente simples. Entretanto, chimpanzés, bonobos, orangotangos e gorilas criados em cativeiro são capa-zes de aprender linguagens simbólicas bastante sofisticadas, in-clusive a língua falada pelas pessoas que cuidam deles (MILES; HARPER, 1994, p. 261), e essa competência linguística é acom-panhada de evidências de capacidade de autorreflexão.

Todos os projetos de pesquisa com antropoides têm re-latado autorreconhecimento por seus animais, demons-trado pelo autonomeamento, autorreconhecimento no espelho e sinalização para si próprio. […]. Washoe sinalizou QUIETA para si própria enquanto escapulia para um lugar proibido no seu quintal […]. Portanto, os antropoides parecem ser capazes de usar seus símbolos para reflexão interna e mostram um certo grau de cons-ciência de si próprios (MILES; HARPER, 1994, p. 266).

Um pré-requisito fundamental para o desenvolvi mento de habilidades linguísticas é o envolvimento emocional dos

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antropoides com os humanos. Os antropoides que adquiri-ram competência linguística foram expostos à língua inglesa e ao convívio humano desde o nascimento. Eles foram cria-dos soltos, fazendo o que queriam. Seus companheiros huma-nos os tratavam como sujeitos com livre-arbítrio e direito à individua lidade. Seus “treinadores” não eram apenas treina-dores; eram pessoas socialmente importantes para eles e, por isso, eles se sentiam emocionalmente motivados a se esforçar para se comunicar com essas pessoas.

O bonobo Kanzi, por exemplo, durante sua infância foi, incidentalmente, tratado pela pesquisadora Sue Savage--Rumbaugh praticamente como se fosse uma criança humana. Kanzi nasceu em cativeiro e foi separado de sua mãe biológica por Matata, outra bonobo que passou a cuidar dele como se fosse seu próprio filho. Durante os dois primeiros anos de vida de Kanzi, Savage-Rumbaugh tentou, praticamente sem suces-so, ensinar Matata a se comunicar usando um tabuleiro ele-trônico com símbolos desenhados. Nesse período, Kanzi não estava recebendo nenhum treinamento, mas tinha permissão de permanecer com Matata durante as “aulas”. Se Kanzi fizesse alguma travessura realmente séria, Matata o repreendia e não se importava que Savage-Rumbaugh também o repreendesse, mas ela visivelmente não gostava quando a pesquisadora re-preendia seu filho sem motivo:

[…] Kanzi era ágil para reconhecer quando eu estava irritada e para solicitar o apoio de Matata se eu ten-tasse pegar de volta minha caneta ou insistisse que ele apanhasse as coisas que tinha acabado de espalhar pelo chão. Ele se sentia compelido a explorar com consi-derável élan todas as dimensões dos comportamentos que eram “ok” para Matata, mas frustrantes para mim.

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Essa exploração de opções comportamentais tais como interpretadas por mim versus Matata frequentemente se tornavam a raison d’etre de Kanzi por uma manhã ou tarde inteira (SAVAGE-RUMBAUGH; SHANKER; TAYLOR, 1998, p. 20).

Uma das travessuras de Kanzi consistia em tocar uma letra qualquer do tabuleiro antes que sua mãe tivesse tempo de pensar numa resposta para uma pergunta de Savage-Rumbaugh. En-tretanto, o comportamento dele se transformou completamen-te quando foi decidido que Matata deveria ser levada para um outro local para se reproduzir. Sem Matata, Savage-Rumbaugh tornou-se o ser mais significativo para Kanzi e, ao invés de se di-vertir irritando-a, ele passou a procurar agradá-la. Kanzi passou imediatamente a usar o tabuleiro para se comunicar com Savage--Rumbaugh, demonstrando que havia compreendido bem as li-ções dirigidas à sua mãe.

A competência linguística de Kanzi continuou pro-gredindo e dezenas de novos símbolos foram gradualmente adicionados ao seu tabuleiro. Entre as palavras adicionadas, “bom” e “mau” provocaram um efeito interessante, indicador da capacidade de Kanzi de compreender noções abstratas:

Quando os lexicogramas “bom” e “mau” foram colo-cados pela primeira vez no teclado de Kanzi, eu não pensara que ele os usaria frequentemente, ou intencio-nalmente. Eu os coloquei para todos terem um modo claro de indicar para Kanzi quando nós sentíamos que ele estava sendo bom ou mau. Para minha surpresa, Kanzi ficou intrigado com esses lexicogramas e logo começou a usá-los para indicar sua intenção de ser bom ou mau, bem como para comentar suas ações an-teriores como “boas” ou “más”. […]. Ele, por exemplo,

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225Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

anunciaria sua intenção de ser “mau” antes de fazer um buraco em sua bola com uma mordida, quebrar o telefone ou tirar um objeto de alguém (SAVAGE--RUMBAUGH; SHANKER; TAYLOR, 1998, p. 52).

Para testar a competência de Kanzi na compreensão de inglês falado, Savage-Rumbaugh pronunciou 660 frases pedindo a Kanzi para que fizesse coisas que não eram parte de seu cotidiano. Ele executou corretamente 72% das tarefas, uma taxa superior à obtida por Alia, uma criança humana de dois anos e meio que respondeu corretamente a 66% dos pedidos. As frases foram pronunciadas usando um sistema de som e a pesquisadora estava por trás de uma janela de vidro espelhado que somente permitia a visão numa direção (SAVAGE-RUMBAUGH; SHANKER; TAYLOR, 1998, p. 69).

A capacidade linguística dos antropoides treinados por humanos indica que nosso último ancestral comum com os bonobos e chimpanzés atualmente existentes já possuía vá-rios pré-requisitos cognitivos necessários para a evolução da linguagem. O estímulo que faltava foi decorrente, de alguma forma, do bipedalismo. Um possível cenário seria o de que os humanos passaram a andar sobre dois pés para transportar alimentos do ambiente aberto da savana para a segurança das copas das árvores, mas, ao ficar com as mãos livres, puderam intensificar a comunicação por gestos. Por 4 ou 3 milhões de anos, a comunicação por gestos permitiu um acúmulo pro-gressivo da cultura e aumentou continuamente a demanda por inteligência social para lidar com as informações e contrain-formações típicas da fofoca.

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5Um Modelo Baseado em Agentes de Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

5.1 Introdução

Neste capítulo, apresento um modelo baseado em agentes de evolução da cooperação que desenvolvi procurando atribuir aos agentes características cognitivas interpretáveis como repre-sentativas das apresentadas por antropoides reais e criar um mun-do com vegetação interpretável como sendo semelhante a uma floresta tropical. Em oposição a modelos que buscam o máximo de simplicidade, meu objetivo foi construir um modelo empiri-camente relevante sobre o funcionamento da mente dos agentes e sobre seu ecossistema. A ênfase do modelo está nas propensões dos agentes para sentir emoções e não na evolução de capacida-des cognitivas para tomar decisões racionais.

Um dos princípios norteadores do desenvolvimento do mo-delo foi de que as forças cegas do processo de seleção natural são mais inteligentes do que o desenvolvedor do modelo na escolha das estratégias mais aptas a permitir a sobrevivência dos agentes. Em várias circunstâncias, foram implementadas estratégias alternativas de comportamento, deixando a definição da estratégia a ser seguida pelo agente por conta da evolução natural da simulação.

Os parâmetros, em sua maioria, podem ser ajusta-dos antes do início das simulações. Alguns não sofrem al-teração durante toda a simulação (Apêndice A), outros são usados apenas como referência para a criação da primeira

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população de agentes e estão sujeitos a evolução por sele-ção natural (Apêndice B).

Inicialmente, desenvolvi o modelo utilizando a biblioteca Swarm (SWARM DEVELOPMENT GROUP, 1999), mas, de-pois da defesa da tese, eu o converti para C++, usando GTKMM para construir a interface gráfica.21 Alguns dos processos im-plementados podem ser encontrados nos modelos de Pepper e Smuts (2001) e de Premo (2005), notavelmente a distribuição de plantas em aglomerados, a possibilidade de compartilhamento de comida, o risco de predação e a territorialidade. As propen-sões genéticas dos agentes para sentir emoções lembram muitas das emoções discutidas por Trivers (1971).

5.2 Descrição do Modelo Proposto

Dos modelos revisados no capítulo  2, o desenvolvido por Premo (2005) é o mais próximo do apresentado neste li-vro. O mundo ocupado pelos agentes é um tabuleiro retangu-lar cujas dimensões podem ser determinadas antes do início de cada simulação. Em muitos modelos baseados em agentes, o mundo costuma ter formato toroidal para reduzir os efeitos das bordas sobre o comportamento dos agentes. Entretanto, considerando que os antropoides reais vivem num mundo que possui limites físicos, muitas vezes bem definidos, como rios e montanhas, optei por não conectar as extremidades do tabu-leiro. Formatos não retangulares, até mesmo irregulares, pode-riam ser explorados em versões futuras do modelo.

A modelagem do mundo como espaço contínuo seria possível de implementar — e seria mais realista —, mas tor-

21 O código fonte está disponível em: http://www.lepem.ufc.br/jaa/anthropoids.html.

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naria o código do programa bem mais complexo e as simula-ções mais lentas.

O tempo nesse mundo virtual corre em intervalos dis-cretos aqui chamados de horas, que somam dias e anos. O transcurso do tempo em intervalos discretos representa outra importante irrealidade do modelo em face do mundo real.

5.2.1 As presas

Os agentes mais simples da simulação são as presas a serem caçadas pelos antropoides. Criação, desenvolvimento e repro dução das presas foram modelados de forma a evitar qual-quer complexidade desnecessária, tendo como objetivo manter uma população que se reduz em caso de predação e se recupera em caso de interrupção da predação. Trata-se de seres que sim-plesmente envelhecem e, ao atingirem a idade máxima, voltam à idade zero. Nesse momento, se o número de presas existentes no mundo for inferior ao número máximo determinado antes do início das simulações, o agente se duplica, aparecendo o recém--nascido numa célula do mundo escolhida ao acaso.

A única ação das presas consiste em fazer movimentos alea tórios pelo mundo. Quando uma presa é caçada, não há repo-sição até que outra atinja a idade máxima. Não há possibilidade de extinção por superpredação: se todas forem caçadas, o programa criará uma nova em lugar aleatório. Ao ser caçada, a quanti dade de carne fornecida por uma presa é proporcional à sua idade.

5.2.2 Vegetação

Como vimos nos capítulos 3 e 4, vários autores consi-deram que a evolução humana provavelmente ocorreu num

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230 Jakson Alves de Aquino

momento de mudança climática na África, com a redução das florestas tropicais e aumento da área ocupada por savanas. Os primeiros humanos provavelmente surgiram em decorrência da adaptação de uma espécie de primatas à vida nas savanas e, pelo menos inicialmente, esses primatas podem ter transi-tado entre florestas e savanas conforme a disponibilidade de alimentos em cada região e estação do ano. Para simular um mundo com vegetação híbrida, o modelo aqui proposto possui dois tipos de vegetação: árvores frutíferas e vegetação rasteira.

Cada célula do tabuleiro possui ou uma árvore ou vege-tação rasteira. A vegetação rasteira, como no modelo de Pepper e Smuts (2001, p. 60), cresce a cada hora durante todo o ano segundo uma curva logística: o crescimento é mais lento quan-do a planta está próxima dos seus valores mínimo e máximo, como mostra a Figura 7.

Figura 7 – Crescimento de uma planta rasteira

tempo

ener

gia

da p

lant

a

0 10 20 30 40 50 60

0.5

1.0

1.5 ei+1 = ei +L · ei · E−ei

E

Fonte: Elaboração própria.Nota: A figura representa as primeiras 60 horas do crescimento da energia, e, de

uma planta com taxa de crescimento logístico L de 0,1 e energia máxima, E, 2,0, sendo 0,1 o ponto de partida.

Ener

gia

de p

lant

a

Tempo

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231Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

O modelo não permite que uma planta rasteira seja completamente consumida. Por maior que seja a fome dos predadores, a planta permanece com quantidade de energia no mínimo igual à sua taxa de crescimento logístico. A ener-gia máxima de uma planta rasteira é 1,1 e a taxa de cresci-mento logístico é 0,01.

As árvores se caracterizam pela capacidade de produ-zir frutos, e os agentes procuram retirar da árvore em que se encontram tantos frutos quantos sejam necessários para sa-ciar seu apetite. Existem três espécies de árvore. O período de produção de frutos, o número de frutos produzidos por dia, a quantidade de energia de um fruto e o tempo que ele per-manece bom para consumo (antes de apodrecer) são especí-ficos para cada espécie, mas todas as árvores de uma mesma espécie compartilham as mesmas características. Os frutos são produzi dos apenas uma vez por dia, mas cada agente tenta consumir frutos ou vegetação rasteira uma vez a cada hora. Numa floresta tropical real os antropoides têm preferência pelos frutos mais maduros. Analogamente, neste modelo, os primeiros frutos a serem consumidos são os mais velhos. As árvores são distribuídas pelo mundo em aglomerados de uma mesma espécie. A existência de diferentes espécies de árvores e sua distribuição em aglomerados têm o objetivo de simular a sazonalidade e irregularidade na distribuição espacial dos fru-tos nas florestas tropicais reais.

As árvores e a vegetação rasteira não morrem e nenhum de seus parâmetros está sujeito a evolução; elas permanecem as mesmas durante toda a simulação. A rigor, as árvores, a ve-getação rasteira e as presas são agentes, mas estamos reservan-do o termo agente aos antropoides, apresentados a partir da seção seguinte.

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Uma única célula do mundo-tabuleiro pode conter uma quantidade indefinida de agentes. Tipicamente, o número to-tal de agentes cai no início da simulação, mas, como os mais aptos têm uma taxa de sobrevivência mais elevada, em poucas gerações a densidade populacional aumenta.

5.2.3 Os antropoides

Os antropoides são agentes que nascem, crescem, se reproduzem sexualmente e morrem. Eles são os agentes mais complexos. Cada recém-nascido recebe um nome composto de oito caracteres aleatórios e todos os agentes sabem o nome de sua mãe, a qual, por sua vez, mantém uma lista de todos os filhos que teve. Essas informações podem ser acessadas du-rante as interações com outros agentes, permitindo identificar mãe, irmãos e filhos, amigos e inimigos.

Um agente ao nascer é incapaz de se alimentar sozinho e seu comportamento se limita a receber energia de sua mãe e a acompanhá-la continuamente.

Por um lado, quanto mais longa a duração do período de dependência dos filhos em relação às mães, maior será o investimento da mãe nos filhos e, consequentemente, maiores serão as chances de sobrevivência deles. Além disso, quanto mais longa a infância, mais oportunidade terá o indivíduo de aprender os valores morais e as técnicas de produção transmi-tidos pelos mais velhos antes de iniciar a própria vida adulta. Por outro lado, quanto menos tempo uma mãe dedicar a cada um dos filhos, mais tempo terá para gerar novos descenden-tes. Por isso, no modelo proposto, o máximo de energia que um agente pode acumular e a quantidade de energia gasta por hora (taxa de metabolismo) são fixos por toda a simulação,

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233Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

mas a duração do período de infância fica sujeita a evolução por seleção natural.

A taxa de metabolismo sempre tem valor igual a 1, mas antes de iniciar a simulação, é possível especificar qual será o máximo de energia. Esses valores são usados para calcular a duração do período de infância e a idade máxima da primeira população de agentes. A duração da infância em horas terá o mesmo valor numérico da energia máxima do agente, ou seja, tempo suficiente para ele chegar à idade adulta com metade da energia máxima. E a idade máxima de um agente será 16 vezes maior do que a infância.

Durante a infância, o metabolismo do agente tem a me-tade da intensidade do metabolismo de um adulto e a criança recebe de sua mãe o dobro do que gasta. Assim, o período de infância determinado pelo cálculo acima é suficiente para que o agente chegue à idade adulta com 50% de seu nível energético máximo. Um adulto morre se seu nível energético atingir um nível abaixo de 30% do máximo possível, mas, por menor que seja seu nível energético, não consegue consumir mais do que duas vezes o valor da taxa de metabolismo. O nível energético mínimo para uma criança se manter viva é proporcional à sua idade.

A maior parte das ações dos agentes é guiada por emoções e não por cálculos racionais. A emoção é aqui definida como a pro-pensão de agir de determinada forma de acordo com as circuns-tâncias em que se dá a ação, o que está razoavelmente próximo da definição de Turner, para quem as emoções são mecanismos de escolha em meio a incertezas. Por meio das emoções, o indivíduo atribui um valor a cada alternativa de consequência esperada ou meio a ser empregado, o que possibilita a escolha do curso de ação a ser seguido (TURNER, 2000, p. 59). As ações não podem ser con-

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sideradas racionais com relação a fins porque não é feito nenhum cálculo de suas consequências. Também não podem ser considera-das racionais com relação a valores porque os agentes não seguem uma estratégia de ação independentemente das circunstâncias.

As propensões para sentir emoções são herdadas genetica-mente, sendo geralmente representadas por números reais com valores próximos de zero. Durante a reprodução dos agentes, as propensões estão sujeitas a mutação, podendo seus valores sofrer pequenos acréscimos ou decréscimos, sendo possível que evo-luam para valores negativos ou superiores a 1.

Em sua maioria, cada característica hereditária é arma-zenada em duas variáveis diferentes correspondentes aos se-xos masculino e feminino. Ambas as variáveis são sujeitas a mutações, mas durante a vida do agente somente são utiliza-das as variáveis correspondentes a seu sexo. No momento da reprodução, para cada característica, o agente herda as duas variáveis ou do pai ou da mãe. O objetivo dessa duplicação das variáveis não é produzir genes recessivos e dominantes, mas, sim, propiciar a agentes de sexos opostos comportamentos di-ferentes mesmo carregando informação genética equivalente. Os animais reais não possuem códigos genéticos completa-mente separados para machos e fêmeas, mas ocorre um pro-cesso razoavelmente equivalente: muitos genes importantes se manifestam diferentemente conforme estejam num ambiente onde predominem hormônios masculinos ou femininos.

5.2.4 Memória e lembranças

Nossa memória é imperfeita. Nós armazenamos algumas infor mações e o que chamamos de lembrança é, na verdade, a reconstrução de uma narrativa feita a partir dos fragmentos lem-

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brados. Entretanto, seria demasiadamente complexo tentar imitar essa forma de reconstruir lembranças. Por isso, ao contrário do que ocorre com os humanos, no modelo artificial aqui apresentado, os agentes armazenam e recuperam informações com perfeição.

Os agentes são capazes de armazenar lembranças posi-tivas e negativas sobre os outros agentes e, em várias circuns-tâncias, eles precisam elaborar, a partir de suas lembranças, um sentimento positivo, negativo ou neutro em relação a um outro agente. Esse sentimento é calculado de modo diferente conforme as circunstâncias. O resultado será zero se a soma de tudo que ele recebeu do outro e tudo que ele doou para o outro for zero. Se o agente não possuir nenhuma lembrança do outro, o valor resultante será um valor específico interpre-tado pelos agentes como não lembrança. Quando o programa está sendo executado em modo gráfico, é possível escolher um agente a ser seguido, sendo traçadas linhas ligando-o a todos os outros dos quais ele se lembra, com exceção dos que se en-contram na mesma célula.

Os agentes podem adotar estratégias diferentes de cons-trução de seus sentimentos a partir de suas lembranças: (a) os mais vingativos serão vingativos quando o último valor dado for maior do que o último valor recebido; (b) os moderada-mente vingativos o serão se o último valor dado for maior do que zero e o último valor recebido for menor do que zero; (c) os menos vingativos somente serão vingativos se a soma de tudo o que deram for maior do que zero, a soma de tudo o que receberam for igual ou menor do que zero, o último momen-to em que receberam algo for mais recente do que o último momento em que deram algo e o valor recebido for menor ou igual a zero. Quando está sendo vingativo, o valor lembrado é calculado de acordo com a expressão:

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lembranca = (−1) · vingatividade · (dado− recebido), (5.1)

onde, conforme a estratégia de cálculo da vingatividade do agente, dado e recebido referem-se à soma de tudo o que foi dado e rece-bido presente na memória do agente ou apenas ao último evento de cada tipo. A estratégia escolhida é uma característica genética.

Quando não está sendo vingativo, um agente usa de gra-tidão para lembrar de outros, e existem duas estratégias de lem-brar com gratidão. Em uma delas, apenas o valor total recebido é levado em conta enquanto na outra o que importa é a dife-rença entre total dado e total recebido, conforme as expressões:

s1 = gratidao · recebido, (5.2)

s2 = gratidao · (recebido−dado). (5.3)

No modelo, fatos recentes são mais valorizados do que fatos antigos, e por isso, o cálculo de dado e recebido não é a simples soma de tudo o que foi dado e tudo o que foi recebido, respectivamente. O tempo decorrido desde o evento lembrado, t, e um fator de valorização do tempo, f, são considerados no cálculo. Se f for 0, somente o presente será valorizado e, con-sequentemente, qualquer evento ocorrido há pelo menos uma unidade de tempo será lembrado como valor nulo. Se f for 1, os eventos não serão desvalorizados com o passar do tempo, continuando a ter o mesmo valor, v, original. Mais precisa-mente, a lembrança que um agente tem de outro é a soma das lembranças dos valores dados e recebidos e cada lembrança de valor, dado ou recebido, v′, é calculada conforme a expressão:

v′ = v · f t . (5.4)

(3)

(4)

(5)

(6)

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237Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Um agente só consegue memorizar até quatro doa-ções e quatro recebimentos por agente conhecido e um novo evento substitui em sua memória o evento do mesmo tipo de menor valor. Essa forma seletiva de esquecimento está em consonância com pesquisas sobre o funcionamento da memória de animais, que indicam ser lembrados por mais tempo os eventos mais carregados de emoção (LEDOUX, 2001, p.  189). Se um agente encontra um estranho ele irá perguntar aos seus vizinhos se eles lembram do estranho. Esse procedimento pode ser considerado representativo do processo de formação de reputação discutido por Nowak e Sigmund (1998).

Cada agente, em quase todas as circunstâncias, atribui a alguém não lembrado um valor específico. Esse valor difere para estranhos masculinos e femininos e é mais uma característica genética dos agentes. Esses valores não são utilizados no patru-lhamento do território, em que prevalece o fato do agente ser ou não xenófobo, como será explicado na seção 5.2.8.

Os agentes também são capazes de memorizar a locali-zação e a espécie de árvore dos aglomerados por onde passam, bem como o eventual fato de terem sido expulsos do aglome-rado em uma disputa por território.

A primeira população de cada simulação, imediatamente após ser criada, memoriza os aglomerados de árvores próxi-mos como se tivessem sido visitados e não fossem hostis. Esses agentes também memorizam ter recebido um pequeno valor positivo (0,01) dos vizinhos que estão na mesma célula. O ob-jetivo dessas memorizações iniciais é amenizar o irrealismo do fato de todos os agentes serem criados simultaneamente já adultos, mas sem relações sociais ou histórico de migrações.

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238 Jakson Alves de Aquino

Fonte: Elaboração própria.

5.2.5 Ações básicas dos agentes

Uma vez a cada unidade de tempo, ou seja, uma vez por hora, os agentes são sequencialmente ativados e agem confor-me o algoritmo indicado na Figura 8.

Figura 8 – Algoritmo básico do modelo proposto

Morte

NascimentoEnvelhecer e con-

sumir energia

Sobreviveuà predação?

Não

Sim

Energiaacima domínimo?

Não

Sim

É criança?Sim

Não

Acompanhara mãe

Idade inferiorà máxima?

Não

Sim

Patrulharterritório

Cortejar, copular,se repoduzir

Caçar e comercarne obtida

Energiabaixa?

Sim

Não

Pedircomida

Energiabaixa?

Sim

Não

Iniciarmigração

Migrando?Sim

Não

Ir em direçãoao destino

Ir para a melhorcélula adjacente

Comer frutoou vegeta-ção rasteira

Reagir às açõesde outros agentesenquanto aguardareinício do ciclo

O primeiro evento do laço que se repete durante toda a vida do agente é seu envelhecimento e a redução de seu nível de energia no valor de metabolismo. Se os agentes estiverem levando carne, poderão consumi-la nesse momento.

Um dos grandes obstáculos para a ocupação das sa-vanas por nossos ancestrais foi o maior risco de ser predado em terreno aberto. Sendo especialmente adaptados para se movimentar nas árvores, os primatas são mais fáceis de ser

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capturados quando estão no chão. No modelo aqui propos-to, a cada hora, o agente corre certo risco de ser predado que pode ser definido no início da simulação, sendo seis vezes maior em campo aberto do que num aglomerado de árvores. O risco depende ainda do número de agentes na mesma célula. Quanto mais populosa uma célula, menor o risco. Se o agente ainda for uma criança, ele simples mente segue sua mãe, caso contrário, ele repete a sequência de ações dos adultos até atingir sua idade máxima ou até seu nível de energia cair abaixo do mínimo, que para um agente adulto corresponde a 30% da energia máxima.

Normalmente, ele permanecerá onde está ou irá para a melhor de uma das oito células adjacentes à sua. Para tan-to, é preciso primeiro calcular o valor de cada uma das nove células. Se a célula estiver desocupada, seu valor será igual à quantidade de energia disponível na vegetação nela existente. Se ela já estiver ocupada, cada tipo de ocupante aumentará ou reduzirá a avaliação que o agente faz do valor da célula, conforme a expressão:

Vcelula =e · ec

N· (1+m) · (1+ i ·Ni) · (1+o ·No)·

(1+ s ·Ns) · (1+ c ·Nc) ·(

1+a ·Nl

∑k=1

lk

).

(5.5)

Nessa expressão, ec é a energia da célula e e é o valor atribuído pelo agente à energia da célula; N é o número to-tal de agentes nela existente, incluindo o futuro ocupante; e N* é o número de agentes de determinado tipo. Os tipos de agente podem ser: m, mãe; i, irmãos; o, agentes de sexo opos-to; s, agentes do mesmo sexo; e c, que para as fêmeas será o

(7)

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número de filhos e para os machos o número de fêmeas no cio. A amistosidade da célula também será levada em consi-deração. O agente multiplicará a sua propensão, a, a ir para células onde estão seus amigos pela soma das lembranças dos ocupantes, ∑lk.

Como vimos no capítulo 3 (p. 130), até mesmo algumas espécies de macacos parecem capazes de memorizar a loca-lização das árvores frutíferas. No modelo aqui proposto, ao mudar de uma célula para outra, o agente verifica se continua sobre o mesmo aglomerado de árvores. Sempre que sai de um, ele memoriza a sua localização, o tipo de árvore nele existente e a data da última visita. Essa memória permanece disponível para o agente por toda a sua vida.

Os processos de patrulhamento do território, compartilha-mento de alimentos, migração e reprodução implicam interação entre os agentes. Enquanto aguarda ser ativado novamente, o agente atende a pedidos de doação de energia, reage a convites para patrulhar o território, para caçar ou para migrar e memoriza o resultado de propostas sexuais em que estava envolvido. Esses processos serão detalhados nas subseções seguintes.

5.2.6 Compartilhamento de alimentos

Um agente pedirá comida a outro se seu nível energético tiver sofrido redução superior a déficitBaixo e migrará se a re-dução no seu nível energético tiver sido superior a déficitAlto. Tipicamente, déficitBaixo evolui para algum valor negativo e, portanto, o agente pede comida a outro mesmo que seu nível energético tenha subido.

Para escolher um possível doador o agente faz um cálculo de quem, entre os agentes que estão na mesma célula, tem dele as

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lembranças mais positivas. Entretanto, ele tem de fazer esse cál-culo com conhecimento incompleto da situação. Ele sabe quais são as lembranças que o outro agente possui a seu respeito por-que todas as interações são memorizadas por todos os agentes envolvidos, mas desconhece a propensão do outro a ser vingativo ou grato, bem como qual estratégia de cálculo o outro emprega na avaliação das lembranças. Por isso, o agente calcula o senti-mento do outro usando suas próprias estratégias e propensões, o que equivale a dizer que o agente tem capacidade de empatia. De todos os processos mentais dos agentes, esse é o que mais se apro-xima de um cálculo racional orientado pelos fins. Na maioria de suas ações, os agentes são orientados por sentimentos formados por um processo evolutivo; eles avaliam as circunstâncias pró-ximas guiados por propensões emotivas adaptadas ao passado. Aqui, porém, os agentes escolhem o doador em potencial orien-tados pelo resultado esperado; a ação é orientada para o futuro. Devido ao fato do comportamento de machos e fêmeas possuir padrões bastante diferentes, os agentes também podem seguir a estratégia de lembrar dos fatos passados usando valores médios para vingatividade, gratidão e fatorTempo (que determina a des-valorização de eventos com o passar do tempo).

Inicialmente, a probabilidade p de ocorrer a doação é igual à lembrança que um agente tem do outro. A este valor básico pode ser ainda adicionado o valor da benevolência do agente para com sua mãe, ou seus filhos, ou seus irmãos, e, ainda, a sua be-nevolência para com agentes do mesmo sexo ou do sexo oposto, dependendo, obviamente, do pedinte se enquadrar numa ou duas dessas categorias. Essas diferentes propensões a ser benevolente fazem parte do código genético do agente. Ele ainda subtrai de p o valor de sua propensão a sentir inveja se o nível energético do pedinte estiver mais elevado do que o dele próprio ou, inversa-

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mente, reduz de p o valor da sua compaixão se o outro estiver com nível energético inferior ao seu. Finalmente, o programa gera um número aleatório entre 0 e 1 e, se o número for menor do que p, o agente atende ao pedido de doação.

Como vimos no capítulo 3 (p. 173), o compartilhamento de carne e de outros alimentos entre chimpanzés segue padrões diferentes. No modelo aqui proposto, o valor da doação depen-derá de dois tipos de generosidade possuídas pelos agentes. Uma é genérica e a outra refere-se apenas à carne obtida em caçadas. Se um agente estiver carregando algum estoque de carne e sua ge-nerosidade relativa à carne for maior do que zero, ele doará uma parcela da carne equivalente à sua generosidade, mas com limite máximo igual a 1,5. Se o agente não possuir carne ou se a carne que possui multiplicada por sua generosidadeRelativaACarne re-sultar numa doação inferior a metabolismo, a doação de energia será acrescida de generosidade, com limite máximo igual a 1,0.

Finalizado o processo de doação de energia ou de carne, os agentes memorizam o evento. Se tiver havido doação, doa-dor e receptor memorizam o valor dado. Se a doação não tiver ocorrido, os agentes memorizam o valor que eles próprios atri-buem a um não dado em resposta a pedidos de comida. Cada agente tem um valor específico para a resposta negativa recebida de uma fêmea e para o não recebido de um macho. Se o valor do não for igual a zero ou positivo, o agente não memoriza nada.

5.2.7 Migração

Migrações são perigosas porque o risco de ser pre-dado é maior em uma área aberta do que numa floresta fechada e também porque as árvores produzem muito mais

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alimentos do que a vegetação rasteira. Além disso, o agente não sabe se o destino que escolher estará ou não superpo-voado. Apesar disso, as migrações são necessárias porque a produção de frutas é sazonal e, portanto, os agentes podem adiar, mas não evitar as migrações. Após ter pedido comi-da, o agente avalia se a sua situação energética corresponde ou não à condição para migrar e, se for o caso, inicia a mi-gração para algum lugar.

O algoritmo de migração propriamente dito é muito simples, consistindo em se deslocar em direção ao endere-ço escolhido como destino. Entretanto, para começar uma migração, o procedimento é mais complexo. O agente faz três tentativas diferentes de encontrar um bom lugar para ir. Um dos algoritmos consiste em ir para a melhor célula existente nas proximidades, ou seja, a uma distância igual ou inferior a VisãoMáxima. A escolha da melhor célula é feita usando a expressão 7.

Outra estratégia é verificar na própria memória se há al-gum aglomerado de árvores conhecido que esteja produzindo frutos e escolher o melhor22. O valor de um aglomerado é de-terminado pela perspectiva de que ele esteja produzindo frutos no momento em que o agente chegar a seu destino. Mais especi-ficamente, é calculado pela expressão 8, onde N é o número de frutos a serem produzidos pelo conjunto de árvores do aglome-rado do momento de chegada do agente até o final da estação de produção de frutos, e ef , o valor energético de cada fruto:

22 O procedimento é mais realista do que o adotado pelos agentes de Ramos--Fernández, Boyer e Gómez (2006, p. 543), que tinham conhecimento perfeito das milhares de árvores existentes em seu mundo.

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V(aglomerado de arvores) = N · e f (5.6)

Finalmente, existe a estratégia de acompanhar algum agen-te que esteja nas proximidades e que já tenha começado a migrar. Nesse caso, cada agente em migração é avaliado pela expressão:

Vmigrante = lembranca ·Va +Vi · i′

i, (5.7)

onde lembrança pode ser positiva, negativa, neutra ou ine-xistente (conforme explicado na seção 5.2.4), Va é o valor dado às amizades para efeito de decisão sobre migração, Vi é a valorização da idade dos agentes (é melhor acompa-nhar um agente velho do que um novo porque o pri meiro provavelmente conhece melhor a geografia local), i é a idade do agente e i′ é a idade do agente sendo avaliado. Os valores de Va e Vi são próprios de cada agente e sujeitos às pressões da seleção natural.

A sequência em que os três primeiros algoritmos de migração descritos acima são empregados é determi nada geneticamente e sujeita a evolução. Se as três tentativas de encontrar uma boa célula para migrar falharem, o agente ini-cia a migração para um lugar aleatório a uma distância entre VisãoMáxima e 2 × VisãoMáxima. Nesse caso, uma vez por dia ele tenta achar um bom lugar para ir, e, portanto, mudar o rumo da migração, usando o algoritmo de procura por uma boa célula nas proximidades.

Ao iniciar a migração, o agente convida todos os ami-gos que estão na própria célula e em células próximas para formar um grupo de migração. Cada convidado soma a lembrança que possui de todos os atuais integrantes de uma

(8)

(9)

.

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245Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

aliança e, se a lembrança for positiva, aceita o convite. Os agentes podem, entretanto, seguir a estratégia de nunca acei-tar convites para migrar. Os agentes não aceitarão convites para migrar para lugares aleatórios.

5.2.8 Territorialismo

Cada agente tem um limiteParaInimizade. Se o valor lembrado do outro agente estiver abaixo desse valor, ele será considerado um inimigo. Essa variável não estava presente no modelo apresentado em minha tese de doutorado e ela é a di-ferença mais importante entre as duas versões do modelo. Sem um limite para distinguir entre desafetos e inimigos, qualquer lembrança negativa se torna altamente desestabilizadora das relações sociais.

Uma vez por hora, cada um dos agentes que está num aglomerado de árvores verifica se há algum intruso numa das células vizinhas até uma distância equivalente a VisãoPróxima. Os agentes podem ser xenófobos em relação a diferentes tipos de agentes: machos, fêmeas e fê meas nutrizes. Um vizinho é considerado invasor se for um desconhecido que se enquadre numa das categorias pelas quais o patrulhador do território tem xenofobia ou se ele for classificado como inimigo. Se algum in-truso for encontrado, o defensor tentará formar uma aliança para expulsá-lo se sua bravura for maior do que um número aleatório com valor entre 0 e 1. O vizinho desafiado também tentará formar uma aliança. A Figura 9 apresenta um esquema do processo de patrulhamento de território.

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246 Jakson Alves de Aquino

Figura 9 – Algoritmo do patrulhamento de território

Começar apatrulhar

Verificar célula

Encontrouintruso?

Não

Sim

Convidar amigospara aliança

Lembrar ali-ados e rivais

Seguenorma?

Não

Sim

Punir não co-operadores

Segue meta-norma?

Sim

Não

Punir nãopunidores

Houveconflito?

Não

Sim

Fugiu commedo?

Não

Sim

Expulsou oufoi expulso?

Expulsei

Expulso

Dissolver aliança

Dissolver aliança

Parar de patrulhar

Há célulanão vista?

Sim

Não

Fonte: Elaboração própria.

Para formar uma aliança, um agente convida os melho-res amigos presentes em sua própria célula e nas células pró-ximas a uma distância máxima equivalente a RaioDaAliança, definido antes do início da simulação. Os agentes convidados poderão seguir duas estratégias diferentes para decidir aceitar ou não o convite de participação numa aliança. Uma consis-te em aceitar somente os convites feitos por líderes dos quais têm lembranças positivas; outra seria aceitar também convi-tes feitos por líderes desconhecidos ou de quem a lembrança é neutra. Atendida uma dessas duas condições, o agente in-gressará na aliança se sua lealdade for maior do que um nú-mero aleatório entre 0 e 1 gerado pelo programa. A recusa em

Lembrar aliadose rivais

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247Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

aceitar um convite é memorizada por ambos os agentes como va lorDeNãoCT (valor de não em conflito por território). Um agente conhecido também será considerado intruso se a lem-brança dele for mais negativa do que o valor de limiteParaIni-mizade do patrulheiro. Se o agente já estiver numa aliança, os líderes das duas alianças serão comparados e o agente trocará de aliança se tiver melhores lembranças do novo líder. Os líde-res não podem trocar de aliança durante o conflito, e o agente que aceita um convite fica impossibilitado de criar a própria aliança. A aceitação ou não do convite é memorizada por am-bos os agentes e, se nenhum deles aceitar o convite, a “aliança” será formada por um único agente.

Finalizada a formação das alianças, os agentes memo-rizam pontos negativos para os rivais das outras alianças. Eles podem seguir duas estratégias diferentes de memorização de pontos positivos para os aliados: uns memorizam indepen-dentemente de ter havido luta; outros somente memorizam os aliados se a luta tiver ocorrido efetivamente. É utilizado o mesmo módulo de memória que armazena os dados do com-partilhamento de comida, e os valores dos pontos a serem ar-mazenados estarão sujeitos a evolução.

Os agentes podem também ter como estratégia seguir a norma de punir os agentes que se recusaram a entrar na aliança. Nesse caso, a punição implicará perda de energia tanto para os punidos quanto para os punidores. Os agentes seguidores da norma de punir os não cooperadores podem ainda seguir a metanorma de punir os membros da aliança que se recusaram a punir os não cooperadores. Em todos os casos, o custo do processo de punição, c, para cada agente será proporcional ao número de punidos e de punidores, conforme a expressão:

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248 Jakson Alves de Aquino

c1 =n2

2 ·n1. (5.8)

A multiplicação do denominador por 2 torna o valor médio da punição equivalente à metade da taxa de metabo-lismo. Os punidores memorizam os punidos juntamente com o valor que perderam no processo de punição. Os punidos também memorizam os punidores, mas, dependendo de ter ou não vergonha, irão lembrar, respectivamente, do mal que causaram ou do mal que sofreram, ou seja, ou eles lembrarão de ter dado −c1 aos punidores ou de ter recebido –c2.

A probabilidade de uma aliança ser vencedora será de-terminada pela razão entre a soma da energia de seus mem-bros e a soma da energia de todos os agentes da outra aliança. Portanto, terminada a formação das alianças, torna-se possível calcular a probabilidade de vencer o conflito, e cada aliança decidirá democraticamente se está disposta ou não a lutar pela defesa da região com árvores frutíferas. O voto de um agente será favorável ao conflito se sua audácia for superior à pro-babilidade da sua aliança perder a luta, ou seja, uma agente racional teria uma audácia de 0,5.

Se as duas alianças desistirem da luta, nada acontecerá. Se as duas optarem pelo conflito, o programa gerará um núme-ro aleatório que decidirá o resultado da luta. Todos os agentes perderão energia por ter optado por entrar em conflito, mas as perdas serão inversamente proporcionais à energia total da aliança a que pertencem. Os agentes da aliança desistente ou derrotada se deslocarão da zona do conflito, percorrendo num único movimento uma distância equivalente a VisãoPróxima.

A ocorrência de conflito foi modelada como a perda de energia proporcional ao poder energético de cada aliança.

(10)

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249Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Cada membro de uma aliança envolvida em conflito arca com o custo do conflito, C, calculado pela expressão:

C =e

2 · e′ (5.9)

onde e é a energia de uma aliança e e′ a energia de sua adversária.

5.2.9 Caça

Uma vez a cada ciclo, os agentes decidem se querem caçar. Caçar consiste em procurar uma presa nos arredores e, se encontrar, tentar capturá-la. Para tornar possível a evolu-ção da não caça, os agentes podem seguir uma de três estraté-gias geneticamente determinadas: nunca caçar, caçar somente durante migrações e caçar sempre que tiver se passado um determinado período desde a última caçada.

Cada agente possui um período mínimo de horas de abstinência de caça. Se o tempo decorrido desde a última caça for superior a esse período, o agente tentará formar uma grupo de caça convidando os melhores amigos das proximidades, como na formação de alianças. O número máximo de amigos a serem convidados é uma preferên-cia determinada geneticamente e espera-se que atinja um valor ótimo com o passar das gerações. Quanto maior o número de agentes envolvidos numa caçada, maior a pro-babilidade dela ser bem-sucedida, porém, menor a quan-tidade de carne a ser dividida.

A duração do intervalo entre as caçadas é determi na da por um misto de reação ao sucesso ou insucesso das caçadas e por transmissão cultural. Ao se tornar adulto, um agente her-

(11),

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250 Jakson Alves de Aquino

da como intervalo entre caçadas a média do intervalo de sua mãe e seus amigos. O intervalo é reduzido numa hora a cada caçada bem-sucedida e quando o intervalo médio do grupo de que se participa é menor do que o intervalo do próprio agente. É ampliado nas situações contrárias.

Um agente aceita o convite para caçar se já tiver se pas-sado pelo menos metade do seu período de abstinência de caça e se não tiver como estratégia nunca caçar. Caçar implica um CustoDeCaça, determinado antes do início das simula-ções. Se a caçada for bem-sucedida, a carne obtida é dividida igualmente entre todos os membros do grupo. A recusa de um convite para caçar é memorizada.

Os agentes procuram suas presas a uma distância equi-valente a VisãoPróxima, definida no início das simulações. Se uma presa for localizada, a probabilidade, p, de ser capturada é dada por:

p = 1−2(−8n/e)−(

1−2(−8n/e)

3n

), (5.10)

onde n é o número de caçadores e e é a energia da presa. En-tão, a quantidade de carne esperada (em unidades de ener-gia) por cada agente da aliança de caça, c, é:

c = p · en. (5.11)

A Figura 10 mostra a quantidade de carne esperada de acordo com o número de caçadores e o tamanho da presa.

(12)

(13)

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251Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Figura 10 – Expectativa de carne a ser obtida

Fonte: Elaboração própria.

O agente que fez o convite distribui a carne de acordo com seu sensoDeJustiça. Se seu sensoDeJustiça for 1, todos os agentes do grupo de caçadores receberão a mesma quanti dade de carne. Além de seu próprio sensoDeJustiça, cada agente também possui um sen-soDeJustiçaEsperado. Se o senso de justiça do líder for menor do que o valor esperado, o agente lembrará o evento como se o líder tivesse lhe dado valorDaInjustiça · (sensoDeJustiçaEsperado − sen-soDeJustiçaDoLíder). Cada agente espera diferentes sensos de justi-ça para machos e fêmeas.

Os agentes podem transportar a carne que obtiveram por algumas horas antes que ela esteja estragada e podem con-sumir dela no máximo duas unidades de energia por hora.

5.2.10 Reprodução

As fêmeas são as únicas responsáveis pela alimenta-ção de seus filhos. Uma fêmea adulta, quando está com seu nível de energia próximo do máximo, entra no cio e pas-

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252 Jakson Alves de Aquino

sa a acumular pedidos de acasalamento feitos por machos que estejam nas proximidades. Terminado o período do cio, que tem duração de cinco horas, ela ordena os candi-datos conforme a lembrança suscitada por cada um deles, também considerando o nível energético, e, e a idade, i, de cada candidato. O valor de cada pretendente é calculado por uma fêmea seguindo a expressão:

Vpretendente = lembranca ·(

vi · |∆i|IdadeMax

)·(

ve · eEnergiaMax

), (5.12)

onde vi é a importância atribuída a uma idade ideal, ∆i é a diferença entre a idade do macho e a idade que a fêmea consi-dera ideal, ve é a importância atribuída ao nível energético e e é a energia do macho. A expressão acima recebe alguns ajustes nos casos em que a lembrança do agente é negativa e, em todos os casos, recebem uma valorização adicional os agentes que se encontrarem a uma menor distância.

Ordenados os candidatos, a fêmea decide com quantos copulará, conforme seu índice de promiscuidade, cujo valor é geneticamente determinado e pode variar de zero a um. Se o índice for zero, ela copulará apenas com o macho melhor avaliado, independentemente do número de candidatos; se for 1, copulará com todos os pretendentes. Mais precisamen-te, o número de parceiros sexuais será o valor arredondado de np, sendo n o número de candidatos e p o índice de pro-miscuidade da fêmea.

A probabilidade p de um macho que teve oportunidade de copular com a fêmea ser o pai da criança sendo gerada é proporcional a seu valor para a fêmea em relação à soma do valor de todos os parceiros sexuais. Os machos com os quais a

(14)

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253Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

fêmea copula registram em sua memória ter recebido um valor igual a valorDeUmaCriança × p, sendo valorDeUmaCriança o valor que o macho atribui ao fato de ser o pai de uma criança e p a probabilidade que ele tem de efetivamente ser o pai. Os candidatos não escolhidos como parceiros sexuais memori-zam o fato segundo seu valor da recusa de relação sexual. A fêmea também memoriza esses eventos, mas utilizando seus próprios valores para as variáveis valorDeUmaCriança e valor da recusa de relação sexual.

No mundo real, muitos animais, guiados por ins-tintos, e os humanos, guiados por instintos e por normas culturais, evitam relações sexuais com parentes próximos. Neste modelo, os machos não têm interesse sexual nas próprias mães.

5.3 Parâmetros Utilizados nas Simulações

Devido à complexidade do modelo e aos limitados recursos computacionais, até mesmo a simulação de um mundo pequeno era executada lentamente. Planejei 32 combinações de parâmetros iniciais, mas alguns deles foram executados mais de uma vez e alguns não o foram nenhuma vez (devido a falhas no hardware ou a colapso da popula-ção). O número total de simulações foi 39. O tamanho dos aglomerados de árvores foi pequeno (apenas 1 árvore) ou grande (entre 4 e 10 árvores), a densidade das árvores foi baixa (0,005 ou 0,007) ou alta (0,05), a densidade máxima das presas foi baixa (0,01) ou alta (0,03), o mundo tinha a forma de uma faixa (20 x 300) ou de um quadrado (100 x 100), e em algumas simulações houve um período do ano sem produção de frutos (seca).

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254 Jakson Alves de Aquino

Tabela 2 – As 32 combinações de parâmetros

Combi-nação

Tam. aglom.

Dens. presas

Dens.árv.

Forma domundo Seca

1 pequeno baixa baixa faixa não 2 pequeno baixa baixa faixa sim 3 pequeno baixa baixa quadrado não 4 pequeno baixa baixa quadrado sim 5 pequeno baixa alta faixa não 6 pequeno baixa alta faixa sim 7 pequeno baixa alta quadrado não 8 pequeno baixa alta quadrado sim 9 pequeno alta baixa faixa não

10 pequeno alta baixa faixa sim 11 pequeno alta baixa quadrado não 12 pequeno alta baixa quadrado sim 13 pequeno alta alta faixa não 14 pequeno alta alta faixa sim 15 pequeno alta alta quadrado não 16 pequeno alta alta quadrado sim 17 grande baixa baixa faixa não 18 grande baixa baixa faixa sim 19 grande baixa baixa quadrado não 20 grande baixa baixa quadrado sim 21 grande baixa alta faixa não 22 grande baixa alta faixa sim 23 grande baixa alta quadrado não 24 grande baixa alta quadrado sim 25 grande alta baixa faixa não 26 grande alta baixa faixa sim 27 grande alta baixa quadrado não 28 grande alta baixa quadrado sim 29 grande alta alta faixa não 30 grande alta alta faixa sim 31 grande alta alta quadrado não 32 grande alta alta quadrado sim

Fonte: Elaboração própria.

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255Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Os resultados médios de algumas simulações executa-das previamente foram utilizados como valores iniciais das características genéticas dos agentes. No início das simula-ções, cada agente da primeira população recebeu valores en-tre 0,2 abaixo e 0,2 acima dos valores mostrados na Tabela 3.

As simulações não tiveram uma duração fixa preesta-belecida em ciclos de simulação. Com exceção de algumas si-mulações realizadas previamente, quase todas as simulações tiveram início numa sexta-feira à noite e foram interrompidas na segunda-feira seguinte pela manhã (26 a 29 de setembro de 2008), sendo utilizados os computadores dos laboratórios de in-formática do Centro de Ciências da Administração e Socioeco-nômicas (Esag) da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Tabela 3 – Médias das características genéticas da primeira população (continua)

Variável Fêmeas Machos

Gratidão 0,55 0,43 Vingatividade 0,42 0,19 Fator tempo 0,37 0,34 (f) recusa p. comp. comida 0,00 -0,38 (f) recusa p. juntar-se a caçadores -0,68 -0,58 (f) recusa p. formar aliança -0,52 -0,35 (m) recusa p. comp. comida -0,72 -0,51 (m) recusa p. juntar-se a caçadores -0,43 -0,61 (m) recusa p. formar aliança -0,59 -0,61 Não em proposta sexual -0,58 -0,76 Valor da caçada 1,06 0,85 Valor do patrulhamento 0,37 0,70 Valor da injustiça -0,50 -0,50 Generosidade -0,35 0,47 Generosidade com carne 0,48 0,73 Compaixão 0,39 0,73 Inveja 0,72 0,80

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256 Jakson Alves de Aquino

(conclusão)

Variável Fêmeas Machos

Benev. p. sexo oposto 1,13 0,61 Benev. p. mesmo sexo -0,14 0,11 Benev. p. mãe 0,46 0,51 Benev. p. irmãos 0,51 0,65 Benev. p. filhos 0,38 0,00 Importância da idade do migrante -0,58 -0,26 Importância da amizade do migrante -0,26 0,38 Células com agentes do mesmo sexo 0,19 0,78 Energia de uma célula 0,98 0,53 Célula com mãe 0,45 0,32 Células com irmãos 0,55 0,43 Células com amigos 0,12 0,24 Células com agentes do sexo oposto 0,71 0,09 Células com fêmeas no cio – 2,00 Células com filhos 0,07 – Importância da energia do macho 0,56 – Importância da idade do macho 0,57 – Promiscuidade 0,50 – Valor de filho para macho 11,70 13,60 Propensão para aceitar convite 0,49 0,31 Propensão para aceitar convite para mover-se 0,47 0,47 Xenofobia em relação a machos 0,52 0,53 Xenofobia em relação a fêmeas 0,56 0,49 Xenofobia em relação a fêmeas com filhos 0,42 0,50 Bravura 1,09 0,09 Audácia 0,95 0,70 Lealdade -0,29 0,00 Medo de aglomerados hostis 0,49 0,62 Medo de aglom. hostis quando com filho 0,42 _ Propensão para seguir norma 0,40 0,40 Propensão para seguir metanorma 0,01 0,02 Justiça em distribuição de carne 1,10 1,10 Valor de um estranho 0,10 0,10 Limite para inimizade -0,90 -0,90 Valor da carne 0,26 0,26

Fonte: Elaboração própria.

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257Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

5.4 Resultados

Em muitas simulações, as fêmeas, os machos ou ambos desenvolveram propensões negativas para sentir vingatividade, gratidão ou ambos os sentimentos. Em so-mente oito simulações, ambos, machos e fêmeas, em mé-dia, desenvolveram propensões positivas tanto para sentir vingatividade quanto para sentir gratidão. O desenvolvi-mento de valores negativos para as propensões de sentir emoções foi inesperado e pode-se considerar os agentes dessas oito simulações como normais. Entretanto, a com-paração dos valores de algumas outras variáveis revela que os agentes das outras simulações podem não ser realmente masoquistas e ingratos; aparentemente, eles desenvolve-ram valores negativos para vingatividade e gratidão como forma de se adaptar a outros valores incomuns. Por exem-plo, uma fêmea anormal registra um valor positivo em sua memória (em média 0,33) quando outra fêmea não é justa com ela. Nesse caso, é adaptativo ter uma propensão ne-gativa para vingatividade. Portanto, foi a flexibilidade do modelo que permitiu esses equilíbrios inesperados entre vingatividade e gratidão de um lado e as outras propen-sões genéticas de outro.

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Tabela 4 – Resultado geral de todas as simulações

Fonte: Elaboração própria.

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Considerei como indicadores de evolução da cooperação o tamanho das alianças formadas para patrulhar território, o tamanho dos grupos de caça e a proporção de comida compar-tilhada em relação à comida requisitada. A Tabela 4 apresenta valores médios de cooperação do último 1% dos passos das simulações, bem como o número médio de gerações decorri-das. Nessa tabela, N. Caçad. é o número médio de agentes nos grupos de caçadores; NA 1 é o número de agentes que se jun-taram a uma aliança de defesa de um aglomerado de árvores contra um intruso. NA 2 é o número médio de agentes que se juntaram à segunda aliança, formada pelo intruso para evitar a expulsão. Compartilhamento de comida é a proporção de pedi-dos de comida atendidos: a primeira letra (M ou F) indica o doador e, a segunda, o pedinte. N. Ger. é o número da geração média dos agentes. Ao nascer, um agente recebia dois números de geração, um masculino e um feminino, os quais correspon-diam aos números dos seus pais + 1.

O compartilhamento de comida foi altamente enviesado por sexo. As fêmeas adaptaram-se às exigências da maternida-de, desenvolvendo a propensão para quase nunca compartilhar comida. Os machos, por sua vez, precisavam ser positivamente lembrados pelas fêmeas, desenvolvendo a propensão para ser ge-nerosos em relação às fêmeas em cerca de 60% dos pedidos, mas eles também compartilharam comida com outros machos em cerca de 20% das ocasiões. Como podemos ver na Tabela 5, as fêmeas desenvolveram valores negativos para generosidade; um agente com generosidade negativa nunca compartilha comida, independentemente de quem está pedindo. Os machos desenvol-veram generosidade positiva quando carregando carne, e foram generosos com as fêmeas, especialmente com suas mães.

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Como o modelo impedia a existência de relações inces-tuosas entre mães e filhos, o único motivo para um macho ser especialmente generoso com sua mãe é o favorecimento do sucesso reprodutivo dela, ou seja, de metade dos genes raros de seu próprio código genético. Esse resultado está de acordo com as previsões da teoria da seleção de parentesco, que afir-ma serem os genes a unidade básica do processo de seleção natural (ver capítulo 2, p. 75).

Tabela 5 – Propensão genética média da última população para compartilhar comida

Fonte: Elaboração própria.

As preferências de movimento e migração são semelhan-tes em machos e fêmeas. A Tabela 6 mostra que ambos os sexos preferiram ir para células com agentes do sexo oposto, mas os machos foram mais propensos a isso, particularmente se a célu-la tiver fêmeas no cio. Como esperado, células ricas em energia foram mais positivamente valorizadas por fêmeas e machos.

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261Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Tabela 6 – Propensão genética média da última população para se mover e migrar

Fonte: Elaboração própria.

Em média, as alianças para defender território não foram grandes. A presença de muitos valores abaixo de 1 indica que em muitas ocasiões os agentes não somente for-maram alianças pequenas como também votaram por sua dissolução. Isto é, impelidos por baixa audácia, eles agiram como o fariam se conscientemente seguissem uma estraté-gia de evitamento de conflitos. Aparentemente, não houve qualquer pressão favorável ou contrária à evolução da xeno-fobia ou medo de aglomerados hostis, como pode ser visto na Tabela 7: os valores próximos a 0,5 indicam que essas va-riáveis estavam mudando aleatoriamente. As outras variá-veis mostraram sinais de evolução. As fêmeas, bravamente, iniciaram alianças, racionalmente decidiram lutar ou não e recusaram-se a se juntar a alianças iniciadas por outros. Os machos têm uma baixa propensão a iniciar alianças, mas participam de uma, eles são irracionalmente audaciosos. Entre eles, é maior a tendência a aceitar convites para jun-tar-se a alianças do que entre as fêmeas. Em média, machos

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262 Jakson Alves de Aquino

e fêmeas têm a mesma propensão a seguir a norma de punir agentes que se recusam a juntar-se a uma aliança, nem ma-chos nem fêmeas têm propensão a seguir a metanorma de punir não punidores.

Tabela 7 – Propensões genéticas médias das últimas populações relacionadas a conflito de território

Fonte: Elaboração própria.

Há algumas diferenças entre machos e fêmeas na memo-rização e lembrança de eventos. Machos e fêmeas memorizam valores mais negativos quando um macho recusa compartilhar comida do que quando uma fêmea faz o mesmo (Tabela 8). Tudo se passa como se os agentes fossem capazes de reconhe-cer que as fêmeas não podem compartilhar comida porque sempre precisam dela mais do que os machos precisam. Os machos são menos vingativos do que as fêmeas. As fêmeas não consideram um grande favor se um agente se juntar à sua aliança para expulsar um intruso. Um macho se torna mais irritado quando uma fêmea se recusa a ter sexo com ele do que ela imagina (em média – 1,27 versus – 0,75).

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263Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Tabela 8 – Propensões genéticas médias da última população relacionadas a memorização e lembrança

Fonte: Elaboração própria.

A Tabela 9 mostra alguns resultados relativos à repro-dução dos agentes. As fêmeas desenvolveram propensão a preferir machos jovens. A idade de um macho é mais impor-tante do que sua energia porque ele memoriza um valor ele-vado ao ser um dos prováveis pais de uma criança. Ou seja, esse evento faz o macho lembrar da fêmea como sua amiga por um longo tempo, aumentando as chances de comparti-lhamento de comida. A baixa promiscuidade das fêmeas está correlacionada com a estratégia vingativa dos machos. Nas simulações em que os machos seguem a estratégia mais vin-gativa de reconstrução das lembranças, as fêmeas são menos promíscuas porque o macho irá considerar outro agente seu amigo somente se o último valor dado for maior do que o último valor recebido. Se a fêmea for promíscua, o valor da criança para o macho será dividido por muitos machos e, con-

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sequentemente, logo será lembrado como um valor baixo. Ou seja, dependendo da vingatividade do macho, pode ser melhor para a fêmea ser mais promíscua e, assim, ter muitos amigos e poucos inimigos entre os machos ou ser menos promíscua e ter pelo menos alguns amigos do sexo masculino.

Tabela 9 – Propensões genéticas médias da última população relacionadas a reprodução

Fonte: Elaboração própria.

O peso da responsabilidade pelo crescimento das crianças fez a fome ser a principal causa de morte entre as fêmeas, inclusive na simulação 27, em que foi menor a diferença entre o número de gerações entre as linhagens masculina e feminina. Em nenhuma simulação, as fêmeas viveram, em média, mais do que os machos. A razão entre o número de gerações de machos pelo número de gerações de fêmeas, a qual pode ser chamada de fVida, variou de 0,45 a 0,87. Inesperadamente, a Tabela 10 mostra que as fê meas claramente vivem melhor quando os machos são vingativos, particularmente quando eles usam os últimos valores da-dos e recebidos para ser vingativos. Na simulação 27, as fêmeas tiveram baixa promiscuidade (mín. 0, média 0,11, máx. 0,22) e os machos alta vingatividade (mín. 1,10, média 1,31, máx. 1,45). A outra variável mais significativa não teve efeitos surpreendentes. As fêmeas vivem menos quando se

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juntam a alianças — porque conflitos significam perda de energia — e elas vivem mais se os machos forem generosos em relação ao excedente de carne que estejam carregando.

Tabela 10 – Sumário de regressão para fVida como variável dependente

Fonte: Elaboração própria.

Nota: R2 múltiplo: 0,7438, R2 ajustado: 0,6523.

A abundância de comida é o fator ecológico mais im-portante na evolução da cooperação. Como mostrado na Tabela  11, os sumários de análise de regressão seguindo o método stepwise e incluindo tamanho dos aglomerados de árvores, densidade das árvores, formato do mundo e existên-cia de seca como variáveis independentes revelam que a den-sidade de árvores elevada é favorável à formação de grupos de caçadores maiores e ao compartilhamento de comida en-tre machos. Grandes aglomerados de árvores são favoráveis ao compartilhamento de comida de machos para fêmeas e a seca é desfavorável ao compartilhamento de comida de fê-meas para fêmeas. Alta densidade de presas é favorável ao compartilhamento de comida entre fêmeas.

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Tabela 11 – Sumários de regressões para Número de caçadores e Compartilhamento de comida como variáveis dependentes

Fonte: Elaboração própria.Nota: *p < 0,05; **p < 0,01.

Um resultado desejável seria a emergência de socie-dades de fissão-fusão, como ocorre em sociedades de antro-poides reais. A sazonalidade da produção de frutos obriga os agentes a migrarem frequentemente de um aglomerado de ár-vores para outro e é responsável pela tendência de contínuo embaralhamento da população. Embora os sociogramas da Figura 11 permitam identificar a existência de grandes grupos de agentes que têm relações amistosas, não podemos distin-guir a formação de comunidades da interconexão entre grupos pequenos. Cada sociograma representa a rede de amigos e foi construído a partir das lembranças dos agentes que estavam vivos no momento em que as simulações foram interrompi-das. Setas apontam para os agentes lembrados positivamente. Os sociogramas não são suficientes para saber qual processo causou a formação dos grupos grandes: teriam sido os agentes capazes de desenvolver propensões coesivas fortes o suficien-te para compensar os efeitos disruptivos das migrações ou os grupos foram formados como mera consequência da distri-buição espacial das árvores em aglomerados?

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267Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Figura 11 – Sociogramas das relações entre amigos no final de simulações selecionadas

Fonte: Elaboração própria.

Se apresentássemos os sociogramas de relações neu-

tras, eles seriam muito mais densos do que os mostrados na Figura 11 porque o número de lembranças neutras foi muito maior do que o número de lembranças positivas. Para cada si-mulação, calculei a proporção de lembranças correspondentes a agentes lembrados como inimigos, desafetos (lembrados ne-gativamente, mas com lembrança acima do limiteParaInimiza-de), neutros e amigos. A Tabela 12 mostra os valores mínimo, médio e máximo para as 39 simulações. Houve uma correla-ção altamente significativa entre a proporção de relações de amizade e a formação de alianças para defesa de território.

Tabela 12 – Proporções mínima, média e máxima de lembranças representando diferentes tipos de relação

Fonte: Elaboração própria.

Seria necessário coletar mais informações das simulações para saber se os agentes mudam continuamente de um grupo para

5 19 29

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outro enquanto permanecem na mesma comunidade. Entretanto, os dados coletados mostram que as células com amigos não são altamente valorizadas. Os agentes desenvolveram, principalmente, valores positivos em sua seletividade por outros agentes, ou seja, a probabilidade de uma célula ser escolhida como destino de migra-ção ou de movimento rotineiro é maior se ela estiver ocupada, mas a seletividade em relação a amigos não é especialmente alta quando comparada com a seletividade em relação a outros tipos de agen-tes. O valor médio atribuído por um agente a uma célula com um amigo foi de 0,06 para fêmeas e 0,08 para os machos, bem abaixo de outros valores usados para avaliar as células, como pode ser visto na Tabela 13. Além disso, o fato das interações passadas terem sido conflitivas ou cooperativas não parece estar correlacionado com a distância entre agentes que se conhecem. O principal fator determi-nando a distância entre dois agentes que interagiram no passado é o tempo decorrido desde a interação. Ou seja, tudo indica que não houve formação de comunidades estáveis.

Tabela 13 – Valor médio de algumas variáveis usadas para avaliar células

Fonte: Elaboração própria.

A interpretação dos resultados acima foi baseada em médias calculadas para toda a população de cada simulação, mas houve uma grande variação entre as simulações e cada uma mereceria seu próprio estudo de caso.

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Interrupção

No modelo proposto, procuro colocar em prática minha visão de que devemos tentar superar os obstáculos à integração de diversas áreas de conhecimento. Ao modelar características cognitivas e emotivas de agentes (psicologia) sujeitas a evolução por seleção natural (biologia) e capazes de os levar à formação de alianças (sociologia e política) num mundo virtual (ecologia), tento integrar conhecimentos oriundos de diversas ciências.

Uma preocupação constante na elaboração do modelo apresentado no capítulo anterior foi a criação de agentes e de um ambiente interpretáveis como experimentalmente relevantes para a compreensão da evolução da cooperação entre nossos ances-trais. Outra preocupação foi manter a flexibilidade no estabeleci-mento das características do mundo e atribuir aos agentes apenas possibilidades de evolução e não características fixas das quais eles não conseguiriam se livrar durante a simulação.

A escolha dos parâmetros iniciais relativos à vegetação deixa o pesquisador com grande liberdade na elaboração de seus experimentos. É possível, por exemplo, não criar nenhu-ma árvore, apenas vegetação rasteira não sujeita a nenhuma espécie de sazonalidade ou, ao contrário, combinar o número de árvores de cada espécie, o número de frutos produzidos por cada árvore de determinada espécie, o valor energético de cada fruto, o período do ano em que os frutos são pro-duzidos e o número aproximado de árvores de cada aglome-rado. É possível, ainda, definir quantos dias possui cada ano e quantas horas possui cada dia. Em síntese, a combinação

6Interrupção

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adequada de parâmetros iniciais permite simular uma gran-de variedade de hábitats. Entre os modelos apresentados na literatura revisada, nenhum era capaz de representar a vege-tação com o mesmo grau de realismo e flexibilidade.

Conforme o plano de trabalho exposto no final do ca-pítulo 2, fiz uma revisão da literatura sobre antropoides atual-mente existentes e sobre nossos ancestrais já extintos. Os antropoides virtuais apresentados no capítulo  5 possuem as características cognitivas e emotivas que imaginei como sendo as necessárias para a emergência de comportamentos seme-lhantes aos descritos no capítulo 3.

Dos modelos baseados em agentes revisados no capítulo 2, apenas o modelo de Premo (2005) revela uma preocupação de adequação aos dados empíricos produzidos pela antropolo-gia e primatologia. Mas, mesmo ele, me parece excessivamente simplista. Os agentes, por exemplo, são simplesmente grupis-tas ou egoístas, sem comportamentos intermediários. Tam-bém não são exploradas habilidades cognitivas ou emotivas que os levem ao comportamento altruísta ou egoísta. Vários outros modelos ainda mais simples com os quais me deparei durante a revisão de literatura não foram sequer mencionados ao longo do livro porque eles seguem o princípio da máxima simplicidade e não contribuíram diretamente para elaboração do modelo aqui apresentado.

Como antecipado na Introdução, este trabalho não diz como foi a evolução da cooperação entre seres humanos. É possível, entretanto, considerar alcançado o objetivo básico de construção de um modelo realista que pode ser mani-pulado para testar algumas ideias a respeito da evolução da cooperação. Em nenhum momento, características globais foram modeladas. Pelo contrário, fenômenos sociais como

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a formação de alianças são inteiramente dependentes de decisões individuais dos agentes. As alianças, por exemplo, não existem como entidades autônomas às quais os agentes se afiliam. Isso seria certamente mais fácil de modelar, mas sem dúvida não corresponderia aos processos que estão na origem da cooperação humana.

Ninguém sabe o que exatamente se passa na mente de antropoides como os chimpanzés quando eles formam alian-ças políticas para manter o poder no interior da comunidade ou constituem grupos de patrulha para defender o território. Assim, o algoritmo de formação de alianças que desenvolvi serve como uma hipótese sobre como se formam essas alian-ças testável por meio de experimentos virtuais.

Em contraste com o modelo que apresentei na minha tese de doutorado, na nova versão aqui proposta, não se re-petiu a estranha evolução da paz. A diferença crucial entre os dois modelos, certamente, foi a introdução do limiteParaIni-mizade no repertório cognitivo dos agentes. Sem a habilidade de diferenciar entre desafetos e inimigos, tornava-se difícil a evolução de uma sociabilidade estável. Qualquer lembrança negativa significava a presença de um inimigo e, portanto, potencialmente, de conflito, o que foi modelado como cus-to energético. Para contornar essas situações conflituosas, os agentes evitaram a formação de inimizades. Com o limitePa-raInimizade, os agentes puderam alimentar lembranças nega-tivas de ex-amigos sem, necessariamente, colecionar inimigos e viver situações conflituosas e energeticamente custosas.

Foram grandes as diferenças de comportamento entre machos e fêmeas, o que demonstra ser imperativo que os es-tudiosos da evolução da cooperação fiquem mais atentos a um fato extremamente relevante e não considerado nos modelos

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revisados no capítulo 2: quase todos os organismos plurice-lulares se reproduzem sexualmente. O elevado nível de com-partilhamento de comida de machos para fêmeas é devido, muito provavelmente, ao controle das fêmeas sobre sua vida sexual: elas escolhiam com quem ter relações sexuais. Um desenvolvimento futuro do modelo poderia ser a elabora-ção de um algoritmo permitindo a evolução de alianças en-tre machos para disputar o acesso sexual às fêmeas, como as existentes entre chimpanzés reais.

Embora valores negativos para vingatividade sejam sur-preendentes por implicarem que alguns agentes têm boas lem-branças daqueles que lhes fizeram mal, em algumas simulações esse foi o caminho evolutivo encontrado pelos agentes para evi-tar os custos dos conflitos. Entretanto, vingatividade e gratidão negativas tornam a análise dos resultados mais complexa do que deveria. Não seria uma restrição demasiadamente forte proibir a evolução de valores negativos para essas variáveis porque os agentes permaneceriam livres para desenvolver valores nega-tivos para o que os humanos usualmente concordam ser bom (ter atendido um pedido de comida ou receber favor sexual, por exemplo) e valores positivos para o que usualmente é considera-do mau (ser atacado ou receber uma recusa de convite para for-mar aliança, por exemplo). Eles também permaneceriam livres para desenvolver benevolência negativa.

Uma característica do modelo que precisa ser repensada é a excessiva irracionalidade dos agentes. Embora, como vimos no capítulo 4, nossos ancestrais tenham permanecido com cé-rebro pequeno por milhões de anos após se tornarem bípedes e a linguagem altamente simbólica que usamos hoje tenha evo-luído há poucas dezenas de milhares de anos, para versões do modelo com pretensão de representar a cooperação praticada

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por humanos modernos, seria adequado uma maior frequên-cia de ações racionais por parte dos agentes. Durante as simu-lações, os agentes realizam milhões de cálculos, mas em geral eles estão usando suas propensões emotivas para avaliar outro indivíduo ou uma célula. Eles não decidem o que fazer orien-tados pelo provável resultado de sua ação, e sim por valores e sentimentos formados no passado. As ações não são orien-tadas a um fim e, portanto, não podem ser qualificadas como estratégicas. Uma exceção é a escolha do vizinho a quem pedir comida: o escolhido é o agente que, de acordo com os cálculos do pedinte, tem maior probabilidade de fazer a doação.

O modelo apresentado é altamente complexo, e mui-to mais trabalho seria necessário para melhorá-lo e explo-rar completamente o potencial heurístico dessa abordagem. Dada a complexidade do modelo, antes de realizar as simu-lações, não é possível saber quais variáveis e estratégias são evolutivamente significativas (e, portanto, devem ser preser-vadas) e quais variam aleatoriamente (e, portanto, podem ser eliminadas do modelo). Ao invés de iniciar e manter o modelo sempre simples, a abordagem proposta aqui consiste em iniciar um modelo complexo e, subsequentemente, sim-plificá-lo. Iniciar um modelo complexo não é uma decisão arrogante de quem se acha capaz de dar conta da realidade em toda a sua complexidade. Pelo contrário, trata-se de um exercício em humildade científica: o pressuposto é de que o conhecimento atualmente acumulado sobre o tema não é su-ficiente para saber com antecedência quais são as variáveis mais relevantes, afinal, se essa informação fosse conhecida, a pesquisa poderia ser considerada desnecessária.

A técnica de modelagem baseada em agentes é promissora, mas somente modelos simples podem ser adequadamente desen-

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volvidos por pesquisadores isolados, e modelos simples correm um maior risco de não ser empiricamente relevantes. Neste traba-lho, desenvolvi um modelo bastante complexo, mas precisaria de vários anos adicionais para fazer uma melhor exploração de suas possibilidades. Trata-se de uma técnica de investigação teórica que tem algo em comum com as pesquisas quantitativas feitas por cientistas sociais: elas são melhor desenvolvidas por equipes do que por ensaístas solitários. Modelos baseados em agentes e pes-quisas empíricas quantitativas geram hipóteses testáveis. Quanto maior o número de pesquisadores envolvidos numa única pes-quisa, maiores as chances dos erros serem percebidos e avanços propostos. No caso de ensaios teóricos de fundo mais filosófico do que empírico, frequentemente é vantajoso deixar para um in-divíduo a tarefa de construir uma linha de raciocínio coerente e convincente, dentre as muitas possíveis.

Neste livro, não apresentei um produto acabado, de impor-tância incontestável. Um resultado que seria particularmente in-dicador de relevância empírica, mas não produzido pelo modelo atual, seria a evolução de sociedades de fusão e fissão como as dos antropoides reais e, em certa medida, de humanos vivendo de caça e coleta. O modelo proposto apenas retrata um momento de um pesquisa que por enquanto não pode ser continuada. É claro que nenhuma pesquisa é realmente concluída. Quando um pesquisa-dor dá por concluída uma pesquisa, é porque ele está satisfeito por ter atingido pelo menos parte dos objetivos propostos e preten-de, então, reiniciar um novo ciclo de pequisa com o mesmo ou com outro tema. Para prosseguir no desenvolvimento do modelo e chegar a resultados mais satisfatórios, eu precisaria de uma equi-pe multidisciplinar e de supercomputadores. Por enquanto, o que posso dizer é que o capítulo 5 é inconclusivo e, na minha avaliação, este tópico final também não merece o título de Conclusão.

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275Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

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294 Jakson Alves de Aquino

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295Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

Apêndices

Apêndice A – Parâmetros fixos por toda a simulação

Segue abaixo a lista de parâmetros que podem ser alterados antes do início de cada simulação através de um arquivo de confi-guração, mas que não sofrem nenhuma alteração durante toda a simulação. A cada parâmetro segue uma breve descrição do que ele define. No capítulo 5, apresentei os nomes das variáveis traduzidos para a língua portuguesa, mas o objetivo dos apêndices é facilitar a leitura do código fonte e a configuração inicial dos parâmetros pelos interessados em entender o código ou executar as próprias simulações e, por isso, os nomes das variáveis estão em inglês.

• NAg. Número de agentes da primeira população. • ChooseRandomValues. Determina se os valores lista-

dos neste Apêndice serão escolhidos aleatoriamente ou se serão usados os valores definidos no arquivo parameters.

• Hunt. Ativação do algoritmo de caça. • FoodShare. Ativação do algoritmo de compartilhamento

de comida. • Territoriality. Ativação do conflito por território. • Norm. Ativação da possibilidade de evolução de normas. • Metanorm. Ativação da possibilidade de evolução de me-

tanormas. • MemSize. Número máximo de lembranças que um agente

pode ter de outro. • Silent. O programa deve ou não imprimir no terminal in-

formações sobre o andamento da simulação.

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296 Jakson Alves de Aquino

• LogInterval. Intervalo de registro de resultados. Se o valor for 10, por exemplo, somente 1 de cada 10 horas terão seus valores registrados nos arquivos .csv usados nas análises estatísticas dos resultados.

• dumpPatchesToScreen. Imprime na tela, antes do início da simulação, uma representação textual dos aglomerados de árvores.

• RandomAgentActivation. Embaralhamento da lista de agentes a cada unidade de tempo.

• WorldXSize. Largura do mundo, medida em número de células.

• WorldYSize. Altura do mundo, medida em número de células.

• DayDuration. Duração de um dia (em horas). • YearDuration. Duração de um ano (em dias). • ExperimentDuration. Duração da simulação (em horas). • MaxEnergy. Nível máximo de energia que um agente

pode atingir. • MaxVision. Visão máxima de um agente. • NearView. Visão próxima dos agentes. • AllianceRadius. Distância máxima vasculhada por agen-

te em busca de aliados para formação de alianças. • HuntCost. Custo energético do ato de caçar. • PreyMaxAge. Idade máxima das presas. • MaxNPreys. Número máximo de presas. • PredationRisk. Risco de agente ser vítima de predação. • MaxPlantEnergy. Energia máxima de planta rasteira. • PlantLogisticGrowth. Fator usado no cálculo do cresci-

mento das plantas rasteiras.

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297Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

• NTreei. Número de árvores da espécie i. • TreeSeasonBegini. Dia do ano em que se inicia a pro-

dução de frutos. • TreeSeasonEndi. Fim da estação de produção de frutos. • TreeNFruitsDayi. Número de frutos produzidos diaria-

mente pelas árvores da espécie i. • TreeMaxFruitAgei. Idade máxima dos frutos produzidos

pelas árvores da espécie i. • TreeFruitEnergyi. Quantidade de energia de cada fruto

produzido pela árvore da espécie i. • MinTreePatchSizei. Tamanho mínimo dos aglomerados

de árvores da espécie i. • MaxTreePatchSizei. Tamanho máximo dos aglomera-

dos de árvores da espécie i.

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298 Jakson Alves de Aquino

Apêndice B – Variáveis sujeitas a evolução por seleção natural

Segue abaixo a lista de variáveis usadas como referên-cia no estabelecimento da primeira população, mas que são herdadas geneticamente pelas gerações seguintes de agentes e, portanto, estão sujeitas à ação da seleção natural. O prefixo “(MF)” indica que a variável aparece duas vezes no arquivo de configuração, uma para os machos e outra para as fêmeas.

Geral

• MutationRate. Taxa de mutação. • Childhood. Duração da infância.

Lembranças

• (MF)TmFct. Fator tempo utilizado para reduzir o valor de lembranças antigas.

• (MF)Gratitude. Gratidão ao se lembrar de benefícios recebidos.

• (MF)Vengefulness. Vingatividade ao se lembrar de ma-les recebidos.

• GratitudeStrategy. Estratégia que determina como o sentimento de gratidão será usado no cálculo da lembran-ça. Existem duas possibilidades, ser grato pelo total recebi-do ou ser grato pela diferença entre valor recebido e valor dado, se essa diferença for positiva.

• VengefulnessStrategy. Estratégia que determina como o sentimento de vingatividade será usado no cálculo da lembrança. Existem duas possibilidades, priorizar a dife-

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299Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

rença entre o último valor dado e o último valor recebido ou priorizar a diferença entre o valor total dado e o valor total recebido.

• VOfStrg. Valor atribuído a um estranho no momento de escolher amigos para formar alianças, migrar ou avaliar o valor de uma célula.

• AdviceValue. Fator multiplicador do valor da lembrança que o melhor amigo tem de um desconhecido. Quando a simula-ção inclui Linguagem, um agente, ao iniciar a interação com um estranho, pergunta a seus melhores amigos qual lembran-ça eles têm do estranho. Ao obter uma resposta, o agente para de perguntar.

• ZeroPostvNo. Se verdadeiro, o valor para um não recebi-do que tenha evoluído para valores positivos será conver-tido em zero.

Compartilhamento de comida

• LowDeficit. Déficit de energia (diferença entre a energia atual e a energia na hora anterior) tolerável antes do agente decidir pedir comida.

• BegStrategy. Define qual estratégia é seguida ao pedir comida: usar os próprios valores para calcular como é lem-brado pelo outro agente ou usar valores médios da popula-ção? Pedir até mesmo para quem tem lembrança neutra ou pedir somente para quem tem lembrança positiva?

• AskMeatOnly. Se verdadeiro, somente pede comida a agentes portando carne.

• MeatValue. Quanto o fato de um vizinho possuir carne é valorizado no momento de decidir para quem pedir comida.

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300 Jakson Alves de Aquino

• (MF)Pity. Compaixão que o agente sente por outro com nível de energia inferior ao seu.

• (MF)Envy. Inveja que o agente sente por outro com nível de energia superior ao seu.

• (MF)BnvlcTOtherSex. Benevolência que se soma à lembrança que o agente tem de um pedinte no momento de decidir doar ou não comida para ele quando o pedinte é do sexo oposto.

• (MF)BnvlcTSameSex. Benevolência quando o pedinte é do mesmo sexo.

• (MF)BnvlcTMother. Benevolência quando o pedinte é a mãe do agente.

• (MF)BnvlcTChild. Benevolência quando o pedinte é filho do agente.

• (MF)BnvlcTSibling. Benevolência quando o pedinte é ir-mão do agente.

• (MF)Generosity. Generosidade do agente no momento de decidir doar energia.

• (MF)MeatGenerosity. Generosidade do agente no mo-mento de decidir doar carne ainda não consumida.

• (MF)FVOfNoSh. Valor memorizado quando uma fêmea se nega a dar comida.

• (MF)MVOfNoSh. Valor memorizado quando um macho se nega a dar comida.

Caça

• HuntStrategy. Estratégia de caça a ser seguida: nunca ca-çar, caçar somente durante migrações ou caçar quando convidado e quando seu intervalo entre caçadas tiver sido alcançado.

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301Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

• MaxHuntPatrolSize. Número máximo de amigos que um agente convidará para participar de uma patrulha de caça.

• HuntValue. Valor que o agente memoriza como tendo recebido dos membros da sua aliança de caçadores.

• (MF)FVOfNoH. Valor memorizado em caso de não acei-tação de convite para caçar feito a uma fêmea.

• (MF)MVOfNoH. Valor memorizado em caso de não aceitação de convite para caçar feito a um macho.

Reprodução

• BestMaleAge. Melhor idade do macho a ser escolhido para copular.

• MaleAgeImportance. Importância da idade do macho para uma fêmea que escolhe um parceiro sexual.

• MaleEnergyImportance. Importância do nível energéti-co de um macho para uma fêmea que escolhe um parceiro sexual.

• FemalePromiscuity. Índice de promiscuidade da fêmea. • MKidVForMale. Valor que um macho registra como ten-

do recebido ao ser escolhido como parceiro sexual. • FKidVForMale. Valor que uma fêmea registra como ten-

do dado a um macho que escolheu como parceiro sexual. • (MF)VOfNoSex. Valor memorizado em caso de não acei-

tação de proposta sexual.

Movimento rotineiro

• (MF)ChildSel. Seletividade em relação a filhos: valor que se acrescenta a uma célula pelo fato de haver um filho nela

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302 Jakson Alves de Aquino

no momento de avaliar o valor de uma célula, seja para migrar ou para movimento rotineiro.

• (MF)MotherSel. Seletividade em relação à mãe. • (MF)SiblingSel. Seletividade em relação a irmão. • (MF)FriendSel. Seletividade em relação a amigo. • (MF)OtherSexSel. Seletividade em relação a agente

de sexo oposto. • (MF)SameSexSel. Seletividade em relação a agente do

mesmo sexo. • OestrFemSel. Seletividade em relação a fêmeas no cio

(machos apenas). • (MF)EnergySel. Seletividade em relação ao nível

energético da célula. • (MF)AcceptMoveInv. Proporção de agentes da primeira

população que aceitará convites para se deslocar para uma célula vizinha.

Migração

• HighDeficit. Déficit de energia tolerável antes do agente iniciar uma migração para outro aglomerado de árvores.

• MigPrefs. Sequência em que o agente fará tentativas de escolher o destino para migração. As opções são ir para o melhor aglomerado de árvores, seguir um agen-te que já esteja migrando e escolher a melhor célula próxima. Se todas as tentativas falharem, o agente mi-gra para uma célula aleatória.

• FearOfHPWhenHasKid. Se for verdadeiro, uma fêmea com criança evitará migrar para aglomerados de árvores de onde tenha sido expulsa na última visita.

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303Formação de Alianças e Cooperação entre Antropoides Virtuais

• (MF)MigAgeImportance. Importância atribuída à idade de um agente no momento de decidir acompanhá-lo ou não numa migração.

• (MF)MigFriendImportance. Importância atribuída ao valor da lembrança de um agente no momento de decidir acompanhá-lo ou não numa migração.

• (MF)AcceptInv. Proporção de agentes da primeira popu-lação que aceitará convites para migrar.

Luta por território

• (MF)Bravery. Sentimento de bravura que determina a pro-babilidade do agente iniciar uma aliança para defender um território.

• (MF)Audacity. Audácia do agente, determinante de sua disposição de lutar mesmo sua aliança estando em desvan-tagem em relação a outra.

• (MF)Loyalty. Lealdade do agente, determinante da pro-babilidade do agente de aceitar um convite para ingressar numa aliança de defesa de território.

• enmityThr. Limite a partir do qual um agente lembrado negativamente é considerado inimigo.

• HasShame. Determina se o agente possui ou não vergonha de não seguir as normas. Se tiver, memorizará o não cumpri-mento da norma de punir não cooperadores na luta por terri-tório como uma falha sua (mais precisamente, memorizará ter dado um valor negativo para os demais membros da aliança). Se não tiver, memorizará ter recebido um valor negativo dos demais membros da aliança.

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304 Jakson Alves de Aquino

• TerriRemStrategy. Estratégia de lembrança de aliados em luta por território. Existem duas opções: sempre guardar uma lembrança positiva dos aliados ou somente lembrar se efetivamente tiver havido luta.

• (MF)PatrolV. Valor memorizado quando um agente acei-ta convite para patrulhar território.

• (MF)XenophTM. Xenofobia em relação a machos. Sem esse tipo de xenofobia, o agente não iniciará uma aliança para expulsar de seu aglomerado de árvores um estranho de sexo masculino.

• (MF)XenophTF. Xenofobia em relação a fêmeas. • (MF)XenophTFwK. Xenofobia em relação a fêmeas

com crianças. • (MF)FearOfHP. Medo de ir para aglomerados de árvores

de onde foi expulso no passado. • (MF)Norm. Norma de punir não cooperadores na luta

por território. • (MF)Metanorm. Norma de punir não punidores de não

cooperadores. • (MF)MVOfNoCT. Valor memorizado no caso de um

macho não aceitar convite para ingressar em aliança para defender território.

• (MF)FVOfNoCT. Valor memorizado no caso de uma fê-mea não aceitar convite para ingressar em aliança para de-fender território.