alianças seminais_merleau&bento prado jr

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271 discurso 41 Alianças seminais: Merleau-Ponty e Bento Prado Júnior* Claudinei Aparecido de Freitas da Silva Professor do Curso de Graduação e no de Pós-Graduação (Mestrado) em Filosofia da Unioeste – campus Toledo * Texto apresentado no Congresso Internacional do Centenário do Nascimento de Mer- leau-Ponty, transcorrido no período de 15 a 17 de setembro de 2008, na UFPR. Nesta ocasião, também se buscou prestar uma homenagem a Bento Prado Júnior, um dos primeiros leitores brasileiros de Merleau-Ponty. Agradeço o sincero e precioso estímulo do Prof. Renaud Barbaras, que incentivou a publicação deste trabalho. TESTE DISCURSO 41.indd 271 02/07/12 13:01

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Alianças seminais_Merleau-Ponty e Bento Prado Jr.

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    discurso 41

    Alianas seminais: Merleau-Ponty e Bento

    Prado Jnior*

    Claudinei Aparecido de Freitas da Silva

    Professor do Curso de Graduao e no de Ps-Graduao (Mestrado) em Filosofia da Unioeste campus Toledo

    * Texto apresentado no Congresso Internacional do Centenrio do Nascimento de Mer-leau-Ponty, transcorrido no perodo de 15 a 17 de setembro de 2008, na UFPR. Nesta ocasio, tambm se buscou prestar uma homenagem a Bento Prado Jnior, um dos primeiros leitores brasileiros de Merleau-Ponty. Agradeo o sincero e precioso estmulo do Prof. Renaud Barbaras, que incentivou a publicao deste trabalho.

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    Na ocasio em que recm celebramos o centenrio de nas-cimento de Merleau-Ponty e, de forma tambm recente, o sep-tuagenrio de nascimento de Bento Prado Jnior, motivos no faltam para prestarmos aqui, mesmo que sumariamente, o devido gesto de homenagem e reconhecimento. Ambos os pensadores, cada um em seus respectivos momentos histricos, souberam, de forma excepcional, criar uma atmosfera de debate filosfico, le-gando para a posteridade um rico patrimnio intelectual. nessa direo que tentaremos inventariar, luz desse duplo legado, dois temas concntricos, tendo como fio condutor a figura de Bergson esculpida por ambos os filsofos. Examinaremos preliminarmen-te, ento, a constituio do estatuto da subjetividade em Merleau-Ponty e em Bento Prado. Em seguida, delinearemos a prpria concepo que ambos realizam da filosofia, bem como ainda o retrato da figura do filsofo nos tempos atuais.

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    No momento em que toma posse na ctedra no Collge de France, em 1952, Merleau-Ponty d incio sua aula inaugural loge de la Philosophie , motivando a criao de um ambiente acadmico no qual se promova o esprito de uma investigao livre. Ora, o que no deixa de ser notvel que esse esprito j havia se embrumado na atmosfera daquela instituio com im-portantes predecessores, entre eles e mais especialmente, Henri Bergson. Merleau-Ponty traz memria a figura singular de Ber-gson como signo de uma nova era do pensamento, a promessa mesma de novos tempos. Verdade que razes no faltam no sentido de confirmar esse prognstico, pois Merleau-Ponty mos-tra que, essencialmente, a obra de Bergson no ignora o valor da contingncia, da ambiguidade, do mundo e do tempo. Para que essa compreenso de fato acontea, torna-se indispensvel, aventa

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    ele, transcender uma primeira aparncia do bergsonismo (Mer-leau-Ponty 6, p. 18) aparncia, no fundo, imbuda pelo ideal de uma maneira totalmente positiva de apresentar a intuio da durao, da matria, da vida e de Deus (Idem, ibidem). verdade que Bergson levado a elaborar uma teoria da intuio como coincidncia ou ainda explicitar uma experincia de contato sempre presumvel pelo aparelho da negao e da linguagem. A filosofia torna-se, desde ento, fuso com as coisas, inscrio, re-gistro, ato simples, viso sem ponto de vista, acesso direto ao inte-rior das coisas, signo recalcitrante de um dualismo ou, enfim, ausncia de valor positivo de nossa finitude (Merleau-Ponty 9, p. 96, grifo nosso). Eis, ento, em smula, uma primeira fisiono-mia do bergsonismo: Diz-se que ele tem restaurado a intuio contra a inteligncia ou a dialtica, o esprito contra a matria, a vida contra o mecanicismo. assim que o compreenderam, no incio, os seus amigos e os seus adversrios (Merleau-Ponty 6, p. 21). Ora, malgrado essa leitura ser a face mais imediatamente visvel do bergsonismo, no , entretanto, a nica, nem a mais valiosa, observa Merleau-Ponty. Eis por que, no congresso em ho-menagem a Bergson transcorrido de 17 a 20 de maio de 1959, o prprio Merleau-Ponty que entrev dois bergsonismos: um aquele da audcia, de uma luta vigorosa entre os atalhos que percorre todo o caminho. O outro aquele posterior vitria, j provido de conceitos. Merleau-Ponty ento retrata duplamente que o bergsonismo estabelecido deforma Bergson. Bergson in-quietava, o bergsonismo tranquiliza. Bergson era uma conquista, o bergsonismo defende, justifica Bergson. Bergson era um contato com as coisas, o bergsonismo um conjunto de opinies apreen-didas (Merleau-Ponty 7, p. 230). Como vemos: dois pesos, duas medidas! Merleau-Ponty, ao fazer tal balano, j mede o raio de abrangncia que Bergson, para alm de quaisquer bergsonis-mos, parece projetar: o de instituir uma filosofia em devir, maneira de um nascimento contnuo. Afinal, que Bergson esse que se transfigura aqui como esprito de descoberta no retros-

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    pectivamente legvel para aqueles que veem a obra do exterior?Merleau-Ponty comenta que,

    se Bergson quer acabar com os problemas tradicionais, no para elimi-nar a problemtica da filosofia, mas para vivific-la. Ele bem sentiu que toda filosofia deve ser, como diria Le Roy, uma filosofia nova; para ele a filosofia tampouco a descoberta de uma soluo inscrita no ser e que freia nossa curiosidade, que exige dela no s que invente solues, mas ainda que invente os seus problemas [...]. H algo da natureza da interro-gao que se transfere para a resposta (Merleau-Ponty 6, p. 22).

    Uma amostra desse estado vivo de questionamento o alcan-ce radicalmente ontolgico da doutrina da coincidncia. O que essa tese parece subentender? Ela expressa no que o filsofo se perca ou venha a se fundir no ser, j que ele no precisa sair de si mesmo a fim de atingir as coisas: a relao do filsofo com o ser no a relao frontal do espectador e do espetculo, mas a de uma cumplicidade, uma relao oblqua e clandestina (Mer-leau-Ponty 6, p. 23). nesse sentido reexamina Merleau-Ponty que Le Roy levado a afastar o bergsonismo de um realismo grosseiro:

    Quando o ser conhecido coincide com o ser, no por se fundir com ele: o ser para a intuio um limite [...], ou, conforme Le Roy, uma certa maneira de andar imanente prpria sucesso das fases, uma certa qualidade de progresso discernvel por comparaes intrnsecas, um carter de convergncia da srie. Assim se devolveria intuio o com-ponente de negatividade e de ambiguidade sem a qual ela seria cega (Merleau-Ponty 6, p. 29).

    Merleau-Ponty torna visvel, nesta leitura, um certo movi-mento de coexistncia lateral em que somos solicitados pelas pr-prias coisas; estas modulam a nossa durao e sob essa medida que Bergson pode dizer que o absoluto est mais prximo de ns. O que se descobre a um sentido primordial do ser desvela-do no corao da situao humana mediante a experincia da

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    percepo. esta experincia que comunica nossa relao ntica com as coisas em que mantemos, com o mundo e com outrem, relaes de comrcio. Deste modo, o que julgvamos ser coin-cidncia, reconhece Merleau-Ponty, coexistncia (Merleau-Ponty 6, p. 25).

    Aos olhos de Merleau-Ponty, talvez Bergson no tenha ex-plorado o completo sentido daquelas palavras; talvez ainda tenha compreendido inicialmente a filosofia como retorno aos dados, mas viu depois que esta ingenuidade, secundria, laboriosa, re-encontrada, no nos funde com uma realidade prvia, no nos identifica com a coisa mesma, sem ponto de vista, sem smbolo, sem perspectiva (Idem, ibidem). Bergson fala em sondagem, auscultao, palpao. Como viria a reconhecer Guroult, a intuio se projeta como uma viso global, explicitando antes o ndice de uma busca do que uma inspirao natal, j que se desloca medida que a obra progride. Ela inflama um sentido em devir, em permanente elaborao. Instaura, portanto, a pos-sibilidade de estar alhures, abrindo acesso a um ser indireto ou oblquo: o ser que primordial em relao ao nada, no , pois, o ser natural ou positivo das coisas, mas sim, diz o prprio Bergson, a existncia em sentido kantiano, a contingncia radical (Idem, p. 28). Bergson extrai a lio de que a intuio do mundo , portanto, indireta (Merleau-Ponty 9, p. 111); que a intuio de minha durao a aprendizagem de uma maneira geral de ver, o princpio de uma espcie de reduo bergsoniana que recon-sidera todas as coisas sub specie durationis (Merleau-Ponty 7, p. 232). Assim, a intuio se torna essa arte de captar significaes, em vez de confin-las em conceitos, revelando que a durao no somente mudana, devir, mobilidade, o ser no sentido vivo e ativo da palavra. O tempo no colocado no lugar do ser, compreendido como ser nascente, e agora o ser inteiro que preciso abordar junto com o tempo (Idem, ibidem).

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    Bergson, na contramo da filosofia clssica1, busca recon-ceituar a percepo como experincia de uma viso carnal, em cujo mistrio mergulhamos intrepidamente. O que no significa mostra Merleau-Ponty que

    o mundo da vida seja uma representao humana, nem, alis, que a percepo humana seja um produto csmico: isso quer dizer que a percepo originria que encontramos em ns e aquela que transparece na evoluo como o seu princpio interior entrelaam-se, avanam ou enredam-se uma na outra (Idem, p. 235).

    Para Bergson, o que h de profundo na intuio justamente a ideia de uma criao inesgotvel, ou seja, a abertura a um mun-do visvel e existente, deflagrando uma s integrao e diferencia-o do ser. Neste nvel, a representao j no mais nos separa: h, em sentido prvio, uma camada de experincia, a prpria emer-gncia do acontecimento, quer dizer, assistimos deiscncia de um ser nascente, em que somos arrastados em meio ecloso de uma razo antes da razo. Essa lgica primeira a evidncia pr-cientfica que Einstein insistentemente recusava em nome da razo clssica (Bergson 2) e a que Bergson, aqui, confere um peculiar estatuto.

    Eis, portanto, o sentido radical daquele ndice ontolgico do mundo que Merleau-Ponty acena em seus cursos no Collge de France, de 1956 a 1960: a experincia primordial da Natureza. Merleau-Ponty l o conceito bergsoniano de natureza levando em conta a sua emergncia na prpria experincia perceptiva. Ora, ao mesmo tempo em que toda percepo percepo pura, Berg-son subverte sua prpria doutrina para alm de uma simples filo-

    1 A percepo no , portanto, uma simples inspeo das coisas: uma antecipao exercida pelo corpo [...]. Ele teria mostrado que o corpo impensvel sem a conscin-cia, porque h uma intencionalidade do corpo, e que a conscincia impensvel sem o corpo, porque o presente corporal. Bergson entreviu uma filosofia do mundo percebi-do no realista em sua inteno primeira (Merleau-Ponty 9, p. 80-2).

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    sofia da coincidncia ou de uma definio da vida pelo repouso2. Isso significa que

    perceber entrar na coisa; mas entrar na coisa tornar-se Natureza [...]. A percepo abre-nos para as prprias coisas e revela-nos uma ordem primordial, a qual um horizonte que nunca podemos eleger como do-miclio do nosso pensamento, embora permanea sempre como obsesso desse ltimo (Merleau-Ponty 10, p. 80).

    Como, ento, mensurar o alcance possvel dessa definio da percepo enquanto ato fundamental que nos instala nas coisas (Merleau-Ponty 10, p. 81)? Mais uma vez, aqui adverte Merleau-Ponty necessrio salvaguardar Bergson de toda interpretao animista, j que o contato percepo-percebido no um conta-to mgico. Apresentar um universo de imagens no significa colo-car almas nas coisas, nem tomar as coisas tal como elas so e de-pois introduzir nelas almas (Idem, p. 82). sob este aspecto que Bergson v no advento de minha percepo a descompresso do Ser total (Idem, p. 83). Ele v, em ltima anlise, a percepo en-quanto este ato, por excelncia, sempre nascente e paradoxal. O Ser anterior percepo e, ao mesmo tempo, esse prprio Ser primordial s se concebe em relao percepo (Idem, p. 83). Assim, podemos medir melhor o alcance dessa tese: Bergson quer reconstituir o crculo inteiro, descrever um meio comum ao Ser e percepo [...] descrever, no interior de mim, esse fundo de real pelo qual eu mergulho nas coisas por razes profundas (Idem, p. 84). Por isso, Merleau-Ponty conclui:

    nunca se estabeleceu antes esse circuito entre o ser e eu, que faz com que o ser seja para mim espectador, mas que em compensao o espectador seja para o ser. Nunca se descreveu assim o ser bruto do mundo perce-bido. Desvelando-o depois da durao nascente, Bergson redescobre no corao do homem um sentido pr-socrtico e pr-humano do mundo

    2 Cf. Bergson 3, cap. 2.

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    (Merleau-Ponty 7, p. 233).

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    precisamente esse vis merleau-pontyano de anlise da on-tologia bergsoniana que Bento Prado Jnior consagra nas pginas finais de sua tese de livre-docncia Presena e campo transcen-dental , chamando a ateno do leitor para o quanto Bergson contagia Merleau-Ponty. De fato escreve Bento , h um ponto de partida que alia ambos os filsofos: a experincia do Ser. que

    a anlise do campo das imagens aparecera-nos, de fato, como anlise transcendental, isto , anlise das condies de possibilidade do comr-cio entre um sujeito e um objeto em geral. O domnio do transcendental aberto com a descoberta de um modo de ser primitivo e indiferenciado imagem ou vida que ao mesmo tempo raiz da viso e do visvel, ou a indistino entre um e outro (Prado Jr. 13, p. 205).

    Ora, bem verdade que Bergson se dirige quela unidade indivisa de nossa percepo (Bergson 1, p. 258), recolocando a percepo nas coisas (Idem, p. 271), percepo que resiste ser, meramente, uma operao desinteressada do esprito, uma contemplao somente (Idem, p. 280). O que est em jogo aqui como bem frisa Merleau-Ponty a mesma ideia husserlia-na de uma fundao originria (Urstiftung), ou seja, um ato inaugural que abarca um devir sem estar no exterior desse devir (Merleau-Ponty 10, p. 88). neste nvel especulativo que Bento observa que Merleau-Ponty apresentava a filosofia da existn-cia como a verdadeira herdeira do esprito vivo do bergsonismo (Prado Jr. 19, p. 258). Avaliao, alis, especialmente significativa, sobretudo se levarmos em conta o esprito daquela passagem la-pidar que encontramos em Matria e memria, em que o autor sintetiza, com primor, o real alcance de seu projeto: A tarefa aqui mostrava Bergson seria ir buscar a experincia em sua fonte

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    (Bergson 1, p. 215). Para Bento, o que a filosofia de Bergson j permite proje-

    tar uma nova tarefa transcendental. Ora, aquele retorno expe-rincia jamais fora gratuito e, por isso mesmo, que Bento Prado o opera por intermdio do conceito programtico de sua tese: a ideia de campo transcendental. Trata-se, a rigor, de um cam-po que no possui sujeito enquanto telos ou o mtron da vida, j que ele um campo de indeterminao ou o fundo mesmo da experincia mediante a qual Bergson agenciava anarcontica-mente (Prado Jr. 14, p. 168-73) a herana clssica da noo de sujeito. O que j subjazia nas reflexes de Bento conforme sua prpria frmula era o enigma incontornvel da subjetividade (Prado Jr. 16, p. 219), um enigma, digamos, inseparvel da tarefa mesma da reflexo, admiravelmente transfigurado na tela clssica de Goya, No saben el camino, quadro que termina por inspirar a capa de seu ltimo livro de ensaios no pstumo Erro, iluso, lo-ucura. Numa de suas entrevistas, Bento d as coordenadas de seu projeto intelectual: trata-se confessa ele de

    circunscrever a ideia de subjetividade pela perspectiva da ideia de ipsei-dade [...] uma tentativa de fazer uma arqueologia do Ich denke, do cogito, em Descartes, Kant e Wittgenstein, em que procuro mostrar as metamor-foses da ideia de sujeito ao longo da filosofia moderna, que se caracteriza por uma progressiva despsicologizao e dessubstancializao da ideia do eu. No h muito como esconder isso, quer dizer, o meu ponto de partida Heidegger, a ideia de ipseidade tal como ela tratada no Ser e tempo (Prado Jr. 18, p. 214).

    preciso esclarecer, entretanto, que Bento jamais fora heide-ggeriano, nem se filiou a algum squito doutrinrio! Nesse senti-do, a rigor: impossvel etiquet-lo ou classific-lo! Seu pensar era livre e aberto, sem abrir mo, evidentemente, dos instrumentos conceituais da tradio. O que permanece sempre no centro de suas atenes a ideia de subjetividade, que, desde a modernida-de, o seduz como musa inspiradora. Bento costumava dizer, em

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    suas aulas, que se servia de Descartes, de Kant, de Rousseau, de Wittgenstein, de Heidegger ou de Ricoeur como bengalas ou pontos de apoio, para, enfim, num segundo momento, recriar um percurso de investigao mais autnomo e livre. Dessa ma-neira, o seu motor reflexivo calcado na ideia de ipseidade era pautado via uma frmula recorrente, oriunda, alis, de Merleau-Ponty: a dcouverte de la subjectivit (Merleau-Ponty 7, p. 191-4). Essa frmula, em anlise ltima, conota o carter heurstico de um tema que, obsessivamente, continua a nos persuadir, malgra-do os limites de seu intento inicial. Essa persuaso, Bento cuidou, claro, de dela no se tornar mais uma vtima de iluso retrospec-tiva, pois o que animava seu trabalho era uma obstinao infind-vel quanto arqueologia ltima do lugar do sujeito. Tratava-se, nesse percurso, de mapear qual o lugar ocupado pelo sujeito na psicanlise, na literatura, mas tambm na anlise poltica des-compromissada com toda forma de ideologismo:

    o que pretendo fazer em meu prximo livro voltado para a compreen-so das formas da subjetividade. Na primeira parte procurarei verificar como se institui o sujeito e sua subjetividade, por meio do exame dos li-mites entre fenomenologia e filosofia analtica. Na segunda parte, preten-do examinar as formas literrias de expresso da subjetividade, pensando-as como indicadoras das condies ticas da subjetividade. Trata-se de estudar as formas romanescas como circunscrio de um horizonte tico para a subjetividade, associando romance, tica e poltica. A terceira par-te tratar da expresso metafsica da subjetividade por meio da poesia e da filosofia da poesia. Entram Carlos Drummond de Andrade, Joo Cabral de Melo Neto, Francis Ponge, Rainer Maria Rilke, etc. (Prado Jr. 17, p. 9).

    Temos, aqui, em primeira mo, o precpuo iderio das futu-ras pesquisas de Bento, o que provavelmente coroaria o carter plural e multifacetado de sua reflexo, sem jamais confundir-se com uma espcie de ecletismo tout court. Nessa direo, o que se vislumbra o horizonte semntico que inspirara o ttulo de

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    seu ltimo trabalho de flego ainda em preparao: A ipseidade e suas formas de expresso (Prado Jr., s/d). Est em curso, aqui, aquilo que Deleuze configurava sob a ideia de um devir do acon-tecimento. Bento costumava afirmar que o devir deleuziano se torna o verdadeiro signo do Ser (Prado Jr. 19, p. 247). Trata-se de um devir assumido numa dimenso nitidamente pr-socrtica (Prado Jr. 18, p. 224-5), talvez mais prxima ideia heraclitiana de um fluxo contnuo, a ideia, portanto, de um movimento em crculo, signo peremptrio de uma ebriedade dionisaca transbor-dante, pensamento de um ser nmade que no se aquieta. Por isso, o devir que a se exibe o desmesurado, o sensvel sem con-ceito, disperso catica ou Devir enlouquecido (Prado Jr. 19, p. 247)3. Talvez ainda neste patamar que podemos circunscrever outra linha de fora da sua obra: o carter heurstico de sua es-cavao potica. Se a poesia confessava ele era a nica cincia que mais praticara (Prado Jr. 18, p. 216), isso se devia necessidade de dar contedo ou vida prpria reflexo filos-fica (Prado Jr. 18, p. 211). A relao entre literatura e filosofia diferente, pois suprime a distino entre elas, j que a literatura se torna objeto e instrumento da anlise filosfica. Ora, Merleau-Ponty j chamara a ateno para o fato de que, na experincia da linguagem, o escritor e o filsofo se confundem medida que a tarefa da literatura e aquela da filosofia j no mais podem ser separadas (Merleau-Ponty 11, p. 36), uma vez que a obra de um grande romancista est sempre carregada de duas ou trs ideias filosficas (Merleau-Ponty 11, p. 34). dessa forma lembra-nos Merleau-Ponty que a literatura jamais foi to filosfica quanto no sculo XX, pois nunca refletiu tanto sobre a linguagem, sobre a verdade, sobre o sentido do ato de escrever (Merleau-Ponty 7, p. 198). especialmente esse valor heurstico que se torna legvel

    3 nessa direo que Bento epigrafava seu ensaio Erro, iluso, loucura com a seguinte frase de Wittgenstein: Atravs da filosofia, devemos mergulhar no caos arcaico e l sentirmo-nos bem (Cf. Prado Jr. 19, p. 23; 55).

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    na obra de Bento Prado de uma maneira to viva j nos anos de 1960, momento em que a formao filosfica uspiana se v surpre-endida com um novo estilo de leitura filosfica, isto , um novo gnero de ensasmo literrio, por meio do qual Bento insurgia ali com intrpida criatividade.

    Sob este prisma, uma questo, desde j, se pe decidi-damente: a que mtodo de trabalho Bento recorre? Para surpresa de muitos, sua reflexo ametdica, ou seja, se percorria algum caminho, este era o da errncia... O trabalho pstumo, em vias ainda de organizao, apenas vem referendar este modus operandi que convergia tendncias e estilos de reflexo, a princpio, dspa-res. Este, seguramente, um dos aspectos mais notveis de sua obra: transcendendo todo pr-juzo, Bento transitava entre in-meros autores e correntes de pensamento, fazendo uma insuspei-ta conjuno, tal como aquela entre descrio fenomenolgica e anlise da linguagem. Ele explorava ainda que o destino do argumento transcendental iniciado em Kant pode ser reencontra-do na obra de Strawson, alm de antenar, num sistema de ilumi-nao mtua e cruzada em rede (Prado Jr. 19, p. 246), possveis afinidades em autores como Wittgenstein e Deleuze. Nessa me-dida, sua obra ainda torna-se capaz de incitar mltiplas entradas, abrir novas frentes especulativas. Ela , indiscutivelmente, uma obra de vanguarda. Bento transubstanciava, tanto atravs de suas intervenes quanto por meio de seus versos poticos criados de improviso, suas prprias questes. Foi tambm em meio s con-versas em roda que muitas das ideias ou dos conceitos circulavam ziguezagueantemente, trabalho de reflexo, que, em grande par-te, permanecer indito, deixando lembrana de muitos no apenas o escrito, mas o dito.

    Mais uma vez no h, nisso tudo, como negligenciar a presena de Bergson. Se reencontrarmos Merleau-Ponty em sua clebre aula inaugural, seremos brindados com uma feliz sntese da filosofia bergsoniana que Bento avivara profundamente: po-der-se-ia resumir o movimento interno do bergsonismo dizendo

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    que a passagem de uma filosofia da impresso para uma filo-sofia da expresso (Merleau-Ponty 6, p. 34). Esta frmula , primeira vista, surpreendentemente desconcertante, pois muito se conhece a crtica de Bergson contra a linguagem j que, em Le visible et linvisible, Merleau-Ponty no deixa de inventariar sintomaticamente um certo prejuzo naturalista plantado ao p da letra bergsoniana atinente ao emprego arbitrrio das palavras em sua funo expressiva4. No deixa de ser verdade, portanto, que, em Bergson ajuza Merleau-Ponty , a conscincia sem linguagem estaria mais distanciada do Ser que a conscincia do-tada de linguagem (Merleau-Ponty 10, p. 80). Ao mesmo tempo, avista Merleau-Ponty, h um outro ngulo que Bergson perspecti-va no horizonte de sua obra, qual seja, a ideia de uma expresso geral, uma linguagem viva que anima a sua busca do sentido e da verdade uma verdade que se projeta no tempo e se situa no mundo, no corao da finitude. Por isso, a expresso a que se chega mediante a passagem no movimento bergsoniano aquela que

    se antedata a si prpria e postula que o ser iria para ela. Esta mistura entre o passado e o presente, a matria e o esprito, o silncio e a palavra, o mundo e ns, esta metamorfose de um no outro, que, transparncia, tem um fulgor de verdade, o melhor do bergsonismo, pois significa muito mais para ns, do que a famosa coincidncia intuitiva (Merleau-Ponty 6, p. 35-6).

    que Bergson jamais se recusa em dar expresso aos parado-xos da encarnao e da comunicao (Merleau-Ponty 12, p. 35). Sob essa medida, Merleau-Ponty extrai de Le Roy o signo mais concreto daquela filosofia da expresso que encontrara em Ber-gson: trazemos em nosso ser encarnado o alfabeto e a gramtica da vida, mas que nem em ns, nem nela supem algum sentido

    4 Cf. Merleau-Ponty 8, p. 167-8 e 247, e Merleau-Ponty 9, p. 106.

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    acabado (Merleau-Ponty 6, p. 30). empregando esta mesma gramtica que Bento conduzir

    sua prxis filosfica. O que mais lhe importa, por sua vez, no-vamente o fundo acstico com o qual a obra de Bergson ressoa, para alm de suas teses; fundo de um impulso inicial, penetrante e intrpido desde onde ela se destina. Temos, aqui, em primeira mo, a expresso mais vigorosa daquela liberdade qual Bergson sempre se lanara: o genuno esprito de investigao livre, cuja atmosfera viria impregnar aqueles que o sucederam.

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    Neste horizonte aberto pela noo de liberdade, podemos, agora, projetar uma segunda linha de fora. Trata-se, sintomati-camente, da posio ocupada pelo filsofo nos tempos modernos, em que reencontraremos Merleau-Ponty em sua aula inaugural, projetando uma crucial radiografia:

    H razo para temer que tambm o nosso tempo rejeite o filsofo em si prprio e que, mais uma vez, a filosofia seja apenas nuvens. Filosofar , portanto, procurar, afirmar que h coisas para ver e dizer. Ora, hoje, quase no se procura. Retorna-se, defende-se uma ou outra tradio. As nossas convices fundam-se menos sobre valores ou verdades des-cobertas do que sobre os vcios e os erros das que detestamos. Amamos poucas coisas, mas detestamos muitas. O nosso pensamento um pen-samento aposentado ou enrugado. Todos expiam a sua juventude. Esta decadncia est de acordo com o processo da nossa histria. Passado um certo ponto de tenso, as ideias deixam de proliferar e de viver, caem no plano das justificaes e dos pretextos, tornam-se relquias, pontos de honra, e aquilo a que pomposamente chamamos o movimento das ideias reduz-se ao conjunto das nossas nostalgias, dos nossos rancores, dos nos-sos acanhamentos, das nossas fobias. Neste mundo em que a negao e as paixes mal-humoradas ocupam o lugar de certezas, no se procura fundamentalmente ver, e a filosofia, porque pretende ver, tida como impiedade (Merleau-Ponty 6, p. 45).

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    Este regime de decadncia ou conforme uma recorrente expresso de Merleau-Ponty este estado de no-filosofia ali-mentado por uma cultura, digamos, do profissionalismo filosfico em que

    o filsofo moderno frequentemente um funcionrio, sempre um es-critor, e a liberdade que lhe permitida em seus livros admite uma con-trapartida: aquilo que ele diz entra logo num universo acadmico onde as opes da vida esto amortecidas e as oportunidades do pensamento veladas [...]. Ora, a filosofia livresca deixou de interrogar os homens. O que nela h de inslito e de quase insuportvel est oculto na vida decen-te dos grandes sistemas. Para reencontrarmos a funo integral do filsofo precisamos lembrar-nos de que at os filsofos-autores que lemos, e que somos, nunca deixaram de reconhecer como mestre um homem que no escrevia, que no ensinava pelo menos nas ctedras do Estado , que se dirigia queles que encontrava na rua e que teve dificuldades com a opinio pblica e com os poderosos, precisamos lembrar-nos de Scrates (Idem, p. 39).

    O que a figura emblemtica de Scrates projeta ribalta des-te cenrio crtico , seguramente, uma ideia bem diferente da fi-losofia. Esta jamais se confunde com um dolo ou saber esotrico, mas, num sentido abertamente socrtico, transita numa relao viva com as coisas, com o mundo e com o outro, ou seja, encarna-se no acontecimento, transcendendo, a rigor, os muros da acade-mia...

    Bento, por seu turno, sela essa mesma aliana exegtica com Merleau-Ponty. Para ele, sobretudo nos tempos atuais, aquele ar-gumento merleau-pontyano antes descrito no parece inteira-mente deslocado, j que o que assistimos um esvaziamento da filosofia sem par na histria (Prado Jr. 19, p. 24). que Bento sempre buscou resguardar-se de um iminente perigo que ronda a academia, transformando-a num reduto de insalubridade: a bri-ga institucional de poder, uma luta mortal pelo prestgio (Prado Jr. 18, p. 219). Talvez seja sintomaticamente por isso que, para alm de todo cerceamento burocrtico, Bento optou por respirar

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    e transpirar filosofia5. Era preciso oxigenar, arejar o pensamento, traz-lo para a gora, na acepo mais socrtica da palavra. Con-vinha, portanto, desenredar nossas convices, abrir uma nova atmosfera para alm do feudalismo da epistme: em filosofia, dizia, o seu melhor amigo o seu mais duro inimigo. Na filosofia voc precisa dialogar com aquele que est o mais distante possvel da sua posio, ou voc corre o risco de a sua filosofia tornar-se uma ideologia (Prado Jr. 21, p. 7).

    nesse contexto que, maneira de Merleau-Ponty, Bento Prado re-fazia a essncia do filosofar. Como bem lembrara Paulo Arantes, Bento tambm nos oferecia um elogio da filosofia (Pra-do Jr. 16, p. 242). A filosofia impressionava-se Bento sempre renasce, uma doena incurvel, e o mais interessante que o remdio da mesma natureza da doena (Prado Jr. 18, p. 223). Se for verdade que muitos esperam encontrar na filosofia uma espcie de panaceia para toda sorte de mazelas, Bento prescre-ve a sua breve etiologia explicitando que a no se trata de uma questo clnica, cuja prescrio arrancaria o mal pela raiz! A bem da verdade, preciso levar em conta que este curioso diag-nstico anuncia o signo indelvel de um pathos que, desde os tempos gregos, contamina a essncia da prtica filosfica, ou seja, a constatao de que a filosofia uma patologia, justamen-te porque estamos diante de uma enfermidade paradoxalmen-te saudvel!!! Como assim??? Ela , talvez, o melhor antdoto contra outras formas de paralisia, como o aborto do pensamento, a cegueira cultural e o elogio ao bvio; mas, num outro sentido, a filosofia, em seu carter mais autntico, pode tambm servir de remdio para certos gneros de prtica filosfica. Sob a forma de um vrus, ela reage contra nossa imunidade terico-conceitual, pondo o dedo na ferida, provocando e inquietando, j que uma postura radicalmente desinteressada, jamais se curvando a

    5 Nietzsche e Wittgenstein consideravam nossa profisso um terrvel perigo e nossa situao institucional, um convite falsificao (Prado Jr. 15, p. 11).

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    qualquer rano de arrogncia sectria ou imediatismo ideolgico. Em vez de curar a doena, ela abre ainda mais a ferida narcsea de nossos personalismos, purgando nossa crise civilizatria.

    O que Bento traz baila o carter aportico em que a fi-losofia, volta e meia, se encontra. O que tambm podemos re-encontrar aqui a lio aristotlica de que, tal como na tragdia ou na comdia, a filosofia experincia de catarse, autoexame, purificao. Ao trmino de seu provocativo ensaio Por que rir da filosofia?, Bento acena para uma excessiva seriedade da s filoso-fia, conjeturando que preciso muito mais, para perder o medo de rir da filosofia, de si mesmo e do mundo preciso tambm aprender a rir atravs da filosofia (Prado Jr. 16, p. 150). Essa ob-servao, de fina sensibilidade pascaliana (A verdadeira filosofia dizia Pascal ri da prpria filosofia), no apenas um mero conselho a quem busca percorrer os primeiros passos na filosofia: ela sinaliza que h um humor saudvel e, at mesmo, indispen-svel como procedimento de trabalho para aquele, iniciante ou no, devotado ao exerccio do pensamento. preciso que saiba-mos cultivar o sadio riso filosfico ou, quem sabe ainda, captar o sentido caricatural do clebre riso da jovem trcia diante de Tales no momento em que este, ao observar com os olhos fitos os astros, cara pateticamente num poo. Ora, se a tradio filosfica fizera desse hilariante incidente o signo elevado de toda contemplao teortica que escapara compreenso do senso comum, faz-se mister, por outro lado, reler tal episdio com outros olhos. Em vez de puramente subestimar o humor espontneo da jovem, cabe, antes, conferir-lhe um estatuto filosfico, moldando-lhe um novo padro esttico, a fim de observar o quanto a filosofia pode se alie-nar da vida ou desencarnar-se do Mundo. Nessa medida, como ainda esquecer o memorvel sorriso de Demcrito (Skinner 23, p. 18-9 e p. 67), que cultivava o hbito de rir como remdio para a ridcula situao da humanidade em sua poca?

    Tudo se passa como se Bento inaugurasse aqui, no Brasil, o que j nos anos de 1940, na Frana, Merleau-Ponty prefigurava:

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    filosofar reaprender a ver de novo (Merleau-Ponty 5, p. xvi). Era propriamente essa tarefa pedaggica que Bento praticava, levando em conta o carter dialgico da filosofia com outros sa-beres, sem qualquer menosprezo pelo senso comum, pela doxa, pela vida. Todas as vezes dizia ele que o filsofo profissio-nal (todos ns, professores de filosofia) ouve falar da proximidade entre vida e filosofia, espontaneamente d de ombros ou franze as sobrancelhas. Um mal-estar se apodera dele, diante do que lhe parece mero infantilismo ou ignorncia do carter tcnico e es-sencialmente abstrato da obra filosfica6. Aqui, parece assentar como uma luva o conhecido preceito de Hume: O filsofo puro um personagem que em geral no muito bem-aceito pelo mundo [...]. S um filsofo; mas, em meio a toda tua filosofia, no deixes de ser um homem (Hume 4, p. 12-3).

    Aquele que testemunha da sua prpria busca, isto , da sua desordem interior como bem retrata Merleau-Ponty , no pode desenraizar-se do cho da vida, sobrevoar a experincia em sua mais profunda gratuidade, j que a filosofia est bem lon-ge de ser um dolo transcendente ou impermevel histria e ao tempo. Por isso, mesmo,

    por mais difcil que seja, nessas condies, imaginar o futuro da filoso-fia, duas coisas parecem seguras: nunca encontrar a convico de deter, com seus conceitos, as chaves da natureza e da histria, e no renunciar a seu radicalismo, investigao dos pressupostos e dos fundamentos, que produziu as grandes filosofias (Merleau-Ponty 7, p. 198).

    Este prognstico se aplica perfeitamente figura do filsofo medida que souber abraar a condio socrtica de saber que nada sabe, de no pretender ser detentor de uma verdade pura-

    6 (Prado Jr. 15, p. 11). Para Merleau-Ponty, a filosofia no pode ser um dilogo do filsofo com a verdade, um juzo superior sobre a vida, o mundo e a histria, como se a filosofia estivesse fora deles [...], j que a nossa relao com a verdade passa pelos outros (Merleau-Ponty 6, p. 36-7).

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    mente absoluta. Isto assim deve ser porque, nos dizia Bento, para-fraseando Goya, no sabemos el camino, j que no somos deuses ou anjos, mas mseros andarilhos, pobres esfarrapados, feitos de carne e osso (leibhaft). Esse andar incoativo como expresso dos prprios descaminhos da Filosofia (Prado Jr. 14, p. 168), essa condio de indigncia, de finitude, do mergulho irrecusvel da contingncia, este desvio dimensional que tanto impregnara de maneira tenaz as filosofias da existncia, Bento Prado torna sens-vel em sua obra, infundindo-lhe uma dimenso vertiginosamente original. Se no se sabe para onde se vai (Rgio 22, p. 51), porque justamente a filosofia est em toda e em nenhuma parte. Quem sabe, aqui, a posteridade filosfica poder ainda aprender, a quatro mos (isto , com Merleau-Ponty e Bento Prado), a mais pujante teraputica para o nosso estado de no filosofia.

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