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BR-163 Insustentável No comando do Ministério do Meio Ambiente no primeiro governo Lula, Marina Silva teve no plano ‘BR-163 Sustentável’ a principal tentativa para evitar o desmatamento causado por estradas na Amazônia. A reportagem da Folha foi ao interior do Pará para checar o que ocorreu com o plano Lalo de Almeida/Folhapress M ARCELO LEITE ENVIADO ESPECIAL A NOVO PROGRESSO (PA) 31/08/2014 Virou fumaça, ou poeira, o plano “BR-163 Sustentável”, principal tentativa de Marina Silva quando era ministra de Lula para evitar o desmatamento induzido por estradas na Amazônia. Não se vê outra

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  • BR-163 InsustentvelNo comando do Ministrio do Meio Ambiente no primeiro governo

    Lula, Marina Silva teve no plano BR-163 Sustentvel a principal

    tentativa para evitar o desmatamento causado por estradas na

    Amaznia. A reportagem da Folha foi ao interior do Par para

    checar o que ocorreu com o plano

    Lalo de Almeida/Folhapress

    MARCELO LEITE

    ENVIADO ESPECIAL A NOVO PROGRESSO (PA)

    31/08/2014

    Virou fumaa, ou poeira, o plano BR-163 Sustentvel, principal

    tentativa de Marina Silva quando era ministra de Lula para evitar o

    desmatamento induzido por estradas na Amaznia. No se v outra

  • coisa -p e fumaceira- nos cerca de 200

    km que ainda falta pavimentar da rodovia

    no sudoeste do Par.

    O Instituto Nacional de Pesquisas

    Espaciais (Inpe) lanou h 11 dias o alerta

    de que cresceram 320% os focos de

    queimadas no Par em 2014, at o ltimo

    dia 19, em comparao com o mesmo

    perodo do ano passado. A maioria

    ocorreu na rea da BR-163, nos

    municpios de Altamira, Itaituba e Novo

    Progresso.

    A reportagem da Folha percorreu, por quatro dias na penltima

    semana de agosto, os cerca de 400 km entre Itaituba e Novo

    Progresso, dos quais pelo menos 150 km ainda so de terra. Melhor

    dizendo: 150 km de buracos, areies e atoleiros, que obrigam as

    carretas de soja ou milho a trafegar a meros 4 km/h em alguns

    trechos.

    Faz oito anos que o governo Lula decidiu asfaltar os quase mil

    quilmetros do trajeto paraense da BR-163. A estrada ainda est

    incompleta, mesmo recebendo dotao oramentria de R$ 1,5

    bilho nos ltimos cinco anos. Deve ficar pronta em dezembro de

    2015.

    A rodovia, tambm conhecida como Cuiab-Santarm, tem por

    principal funo escoar a safra de gros de Mato Grosso pelo norte,

    via rio Amazonas, em vez de seguir para os longnquos portos ao sul

    (Santos e Paranagu).

    Editoria de Arte/Folhapress

  • Caminhes com toras de madeira

    ilegal apreendidas pelo IBAMA na

    regio de Novo Progresso (PA)

    Lalo de Almeida/Folhapress

    Desmatamento e climaEm 1999, quando o governo FHC planejou

    pavimentar a BR-163, temia-se um salto

    nas taxas de desmatamento (80% dele

    ocorre ao longo de rodovias amaznicas).

    Se 30 km fossem derrubados de cada lado

    da estrada, s a Cuiab-Santarm

    redundaria em 60 mil km de corte raso,

    ou trs Estados de Sergipe.

  • Na rea de influncia da BR-163, at o

    ano 2000 haviam sido desmatados 15.665

    km. No segundo ano do primeiro

    governo Lula, em 2004, atingiu a cifra

    alarmante de 1.908 km, baixando em

    seguida para um patamar em torno de 500

    km ao ano entre 2010 e 2012. Em 2013,

    contudo, saltou para 728 km. Os usos da

    terra (desmatamento e agropecuria)

    ainda representam cerca de 60% das

    emisses de dixido de carbono (CO) do

    Brasil. J foram responsveis por trs

    quartos do CO, o principal gs agravador

    do efeito estufa e da mudana climtica,

    mas essa forma de poluio recuou muito

    com a queda nas taxas de desmatamento

    observada desde 2004.

    Foi em 2004, quando a atual candidata a

    presidente Marina Silva (PSB) ainda era

    do PT e encabeava o Ministrio do Meio

    Ambiente, que comeou a esboar-se o

    BR-163 Sustentvel. O plano era tornar

    o Estado mais presente na regio, levando

    fiscalizao, regularizao fundiria,

    crdito e apoio tcnico para uma produo

    agropecuria menos devastadora.

    Velho atrasoAs taxas de desmatamento na Amaznia

    dispararam a partir de 2001 (18 mil km) e

    chegaram a 27,4 mil km em 2004. Novo

    Progresso, na BR-163, tornou-se o

    smbolo de uma ocupao predatria da

    floresta, na base da extrao ilegal de

    madeira e da pecuria extensiva.Editoria de Arte/Folhapress

  • Hoje a cidade tem 25 mil habitantes, 687 mil bois e vacas e a

    segunda renda per capita do Par: R$ 7.899 (s perde para Belm; a

    mdia estadual em 2010 era R$ 5.361). Mas est em 644 lugar

    entre 772 municpios paraenses no ranking de progresso social

    criado pela ONG Instituto do Homem e do Meio Ambiente da

    Amaznia (Imazon).

    Em fevereiro de 2005, dias depois do assassinato da freira Dorothy

    Stang em Anapu (PA), o governo federal interditou 83 mil km de

    florestas na rea da BR-163, destinadas criao de unidades de

    conservao. Um ano depois, trs foram decretadas, com um total de

    64 mil km.

    Dez anos depois, a avaliao unnime entre os que permanecem

    na rea, dos pequenos agricultores assentados aos grande

    fazendeiros: pouca coisa aconteceu alm de queimadas e sucessivas

    operaes de autuao do Ibama.

  • Osvalinda Alves Pereira, lder

    comunitria do assentamento

    Areias II, em Trairo (PA)

    Lalo de Almeida/Folhapress

    Assentada e ameaadaOsvalinda Maria Marcelino Alves Pereira, 45, e Daniel Alves

    Pereira, 43, se conheceram e casaram no Paran. Mudaram para

    Itanhang (MT) nos anos 1990, atrs de terra para plantar. Saram

    de l em 2001, quem diria, fugindo da fumaa. Compraram uma

    moto e 16 dias depois chegaram a Trairo (PA).

    Na igreja de Trairo ouviram que dava para comprar um lote de

    100 hectares (cada hectare tem 10 mil m, pouco mais que um

    campo oficial de futebol) no assentamento Areia 2. Ficava a 40 km

    da BR-163, mas eles toparam.

    O Areia 2 faz parte do Projeto de Assentamento Areia, criado em

    1998. Dos seus 200 km, cerca de 30 km so explorados por

    madeireiros e h ocupao ilegal de lotes por fazendeiros.

    Das 275 famlias assentadas, s 73 tm ttulos e podem obter crdito

    para agricultura familiar (Pronaf). Ao menos 15 assassinatos foram

    cometidos na regio entre 2010 e 2012.

    Osvalinda e Daniel formaram um stio caprichado, com muitas

    bananeiras e flores. Em 2007 passaram a contar com assistncia

    tcnica do Ipam (Instituto de Pesquisas Ambientais da Amaznia),

    que abriu um posto no entroncamento da BR-163 com a

    Transamaznica (BR-230) para incentivar a organizao de colonos

  • da reforma agrria, formar lderes e apresent-los aos sistemas

    agroflorestais (consrcios entre espcies arbreas, como pupunha,

    cupuau e cacau).

    Diante das dificuldades, muitos assentados

    desistiram do Areia 2. Mesmo sem ttulos,

    vendiam as terras para fazendeiros,

    madeireiros e grileiros s com base em

    documentos particulares (o que crime).

    medida que acumulavam lotes, os compradores passaram a

    pressionar os colonos pioneiros cujas terras ficavam ilhadas.

    o arranjo tpico que alimenta a violncia fundiria na Amaznia.

    Joo Chupel Primo foi assassinado em outubro de 2011 aps

    denunciar a extrao ilegal de madeiras nobres como o ip de

    unidades de conservao (parques e florestas nacionais, por

    exemplo) no entorno da BR-163.

    Osvalinda tornou-se lder da associao de mulheres do

    assentamento Areia 2. No ano passado, comeou a receber ameaas,

    por meio de cartas deixadas na moto do casal quando ia sede de

    Trairo. Madeireiros foram com capangas armados sua casa e

    ofereceram dinheiro em troca de apoio para impedir a entrada do

    Ibama no assentamento, conta a agricultora. Mencionaram a freira

    americana Dorothy Stang, morta a tiros em 2005, em Anapu, na

    beira da Transamaznica, alm de filhas e netos de Osvalinda.

    Ela foi a Trairo denunciar as ameaas e teve dificuldades para

    lavrar um boletim de ocorrncia. Chegou a se esconder noutra

    cidade, com proteo policial.

    O dinheiro de vocs no faz febre pra mim no, Osvalinda conta

    ter dito a um dos que foram sua casa. Pobre s ganha dinheiro

    quando morre, teria respondido o visitante.

    Se eu morrer como a irm Dorothy, morro feliz. Mas prefiro

    morrer de problema meu, no de bala de vocs, afirma ter

    retrucado a agricultora, que j foi operada para substituir uma

    vlvula no corao.

    TUDO QUE EU TENHO EST AQUI

    OSVALINDA PEREIRA, lder comunitria

    (http://www1.folha.com.br/)

  • Osvalinda diz que no vai deixar seu stio. Tudo que eu tenho est

    aqui.

    Caminho atolado na BR-163 em

    Novo Progresso (PA)

    Lalo de Almeida/Folhapress

    Fazendeira e afetada

  • Mnica Correa da Costa dos Santos, 47, conheceu o marido -

    paranaense de Francisco Beltro- em Cuiab. Ele e trs irmos

    adquiriram uma posse de mil hectares em Novo Progresso, no final

    dos anos 1990, de um tal sr. Joo, com o dinheiro apurado ao serem

    desapropriados pela usina de Itaipu.

    A transao teve apenas um documento particular, como comum

    na regio. A fazenda hoje tem 200 cabeas de gado, diz Mnica, na

    vicinal Marajoara, em rea que o governo federal incluiu na

    Floresta Nacional do Jamanxim em 2006.

    Os Santos correm o risco de perder a propriedade e receber

    pagamento s pelas benfeitorias. Como no h ttulo firme das

    terras, elas pertencem Unio e no podem ser objeto de

    indenizao.

    H oito anos a famlia e outras mil que ocupam partes da Flona

    Jamanxim lutam para desmembrar (desafetar, no jargo fundirio)

    suas propriedades do permetro da floresta nacional. O total de 415

    mil hectares de rea consolidada tiraria um tero da unidade de

    conservao de 1,3 milho de hectares.

    Se a desafetao no sair, no sei o que

    vamos fazer, diz a presidente da

    Associao dos Produtores Rurais das

    Glebas Embaba e Gorotire. Tudo que

    ns temos ns investimos aqui.

    Viemos para c criar nossos filhos, diz a

    me adotiva de cinco crianas, na

    esperana de produzir e ser legalizado.

    Como Osvalinda, ela se queixa da demora

    na regularizao das terras. A l fora nos

    chamam de bandidos e grileiros, revolta-se.

    Para ela, o asfaltamento da BR-163 maravilhoso. Sua famlia tem

    um caminho para gado e aumenta a renda com fretes. Mas reclama

    que at agora s vieram as carretas e que a escola tcnica federal est

    parada.

    O GOVERNO TEM DE SER

    PARCEIRO DO POVO DAQUI,

    FAZER UMA OPERAO

    GIGANTE DESSAS [DO IBAMA]

    PARA LEGALIZAR TUDO. A

    DESAFETAO J FOI FEITA

    PARA AS USINAS

    MNICA DOS SANTOS, produtora rural em Novo

    Progresso (PA)

  • O governo tem de ser parceiro do povo daqui, fazer uma operao

    gigante dessas [do Ibama] para legalizar tudo. A desafetao j foi

    feita para as usinas [hidreltricas no vizinho rio Tapajs], diz. Esta

    cidade no s queimada e caminho de madeira apreendido.

    Mnica conta que a proposta de desafetao das reas dos

    fazendeiros na Flona Jamanxim est parada na Casa Civil. O

    senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) apresentou projeto no Congresso

    com o mesmo objetivo.

    Queimada em fazenda s

    margens da BR-163 em Novo

    Progresso (PA)

    Lalo de Almeida/Folhapress

  • Lalo de Almeida/Folhapress

    At de helicpteroFazendeiros, madeireiros e at alguns assentados andam irritados

    com as operaes do Ibama. Os agentes de fiscalizao circulam

    armados com pistolas e se fazem acompanhar de policiais militares

    paraenses ou de integrantes da Fora Nacional nas caminhonetes

    4x4 e at em helicpteros.

    Eram trs a aeronaves em uso na fase 10 da Operao Arco Verde

    em Novo Progresso, na penltima semana de agosto. A reportagem

    da Folha sobrevoou com o agente ambiental Wellington Jos de

    Jesus Gomes uma rea desmatada de 11 km, identificada por

    satlite.

    O voo de helicptero durou 1h35min, mas no foi possvel autuar

    ningum no local, que fica na zona rural de Itaituba. Estava deserta

    a casa verde da sede, avarandada, e o aparelho nem pousou. Mesmo

    ausente, o proprietrio Joel Pinto de Assis foi multado em R$ 8,25

    milhes, mas teria 20 dias para pagar (com 30% de desconto) ou

    apresentar defesa.

    Tambm frustrada foi a blitz acompanhada na madrugada de 23 de

    agosto, de 0h s 4h, realizada com cinco caminhonetes. Nenhum

    caminho de madeira ilegal foi encontrado numa estrada vicinal em

    que costumam circular, sempre noite.

    Na madrugada seguinte, porm, a equipe de Omar Silva Almeida

    apreendeu dois caminhes. Um deles carregava 16,4 m de ip em

    tora (multa de R$ 4.911, carga no valor de R$ 75 mil), e o outro,

    37,9 m de ip e angelim (multa de R$ 11.361 e valor de R$ 120

    mil). Trs dias antes, outros sete caminhes haviam sido

    apreendidos.

  • Carreta percorre trecho de terra

    da BR-163 prximo a Novo

    Progresso (PA)

    Lalo de Almeida/Folhapress

    Legalidade atrasadaAgamenon Silva Menezes, presidente do Sindicato de Produtores

    Rurais de Novo Progresso (5.000 scios), diz que ningum mais liga

    para o Ibama. Deixa multar, afirma, com visvel contrariedade, o

    agrnomo gacho que chegou regio h 19 anos e diz possuir

    apenas 70 hectares.

  • Sua queixa a mesma de Osvalinda e Mnica: a regularizao das

    terras prometida no contexto do plano BR-163 Sustentvel ainda

    no chegou. Segundo Menezes, s 400 de 3.000 propriedades foram

    legalizadas pelo programa federal Terra Legal, a partir de 2009.

    Estamos oferecendo a legalidade. Eles no querem. S querem

    chamar de ilegal e multar, diz. O resultado est a (aponta a

    fumaa no ar).

    Mudaram as regras do jogo com o campeonato em andamento,

    ecoa o dono de serraria Altemir Luiz Picinatto, mais conhecido

    como Currupix (nome da madeira que passou a trabalhar em lugar

    do ip). Sem ttulos regulares, o Ibama deixou de aprovar novos

    planos de manejo de reas florestadas, e os ltimos esto acabando.

    As madeireiras esto falindo, diz o

    paranaense vindo de Francisco Beltro,

    presidente do Sindicato da Indstria

    Madeireira do Sudoeste do Par.

    Currupix diz que s est esperando

    acertar umas contas para fechar a serraria.

    Ele chegou a serrar 800 m de madeira por

    ms entre 1998 e 2002, mas agora fica entre 400 m e 600 m

    mensais. Diz que s se aguentou at aqui porque o asfaltamento da

    BR-163 conteve a alta do frete e o preo da madeira subiu nos

    mercados consumidores, como So Paulo.

    O PAC engoliuMarcelo Reis Silva, secretrio de Agricultura de Novo Progresso,

    diz que a cidade melhorou de 2006 para c -antes, s tinha eiro:

    maconheiro, pistoleiro, madeireiro, grileiro, atoleiro... Mas ele

    tambm denuncia a morosidade na titulao das terras e as aes do

    Ibama, que na sua opinio no incomodam os grandes

    desmatadores.

    ESTAMOS OFERECENDO A

    LEGALIDADE. ELES [IBAMA] NO

    QUEREM. S QUEREM CHAMAR

    DE ILEGAL E MULTAR

    AGAMENON MENEZES, presidente do Sindicato de

    Produtores Rurais

  • Com a presso do Ibama, est saindo gado em p [de Novo

    Progresso], e no s para o abate -50 mil desde novembro, diz o

    tcnico em agropecuria baiano criado no Maranho. Ele considera

    a pecuria bovina invivel na regio, a no ser que a produtividade

    aumente para trs cabeas por hectare.

    Tudo que foi prometido -ttulo, crdito-, nada aconteceu. O [plano]

    BR-163 Sustentvel nunca saiu do papel, diz Silva. A culpa pelo

    desmatamento do governo federal.

    A implementao [do plano] foi insignificante, concorda Edivan

    Carvalho, pesquisador do Instituto de Pesquisas Ambientais da

    Amaznia. Para ele, o componente do ordenamento territorial

    perdeu espao para as grandes obras na regio, como o porto

    graneleiro de Miritituba e as cinco hidreltricas previstas para o rio

    Tapajs. O PAC engoliu o plano BR-163 Sustentvel.

    Os jornalistas MARCELO LEITE e LALO DE ALMEIDA viajaram ao Par a convite das ONGs Andi (Comunicao e

    Direitos) e Clua (Climate and Land Use Alliance)

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