fim de semana em coimbra
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Enquanto esperávamos que vagasse uma mesa no tasco “Zé Manel dos Ossos”, fomos lendo a ementa: Feijoada de javali, morcela com grelos, petinga de escabeche, chanfana, ossos. Será que li bem? .......................................TRANSCRIPT
@ M. Margarida Pereira-Müller
Enquanto esperá-vamos que vagasse uma mesa no tasco “Zé Manel dos Ossos”, fomos len-do a ementa: Fei-joada de javali, morcela com grelos, petinga de escabeche, chanfana, ossos. Será que li bem? Ossos? Ossos numa ementa dum restau-rante?! Tínha-mos lido bem. Ossos cozidos. É claro que eu tinha de pedir ossos. E estavam tão sabo-rosos que pergun-tei logo como se
Número 72
Fim de semana em Coimbra
Maio de 2011
C a d e r n o s d e V i a g e m
faziam. O Sr. Mário, o emprega-do de mesa que era ao mesmo tempo um grande “entertainer” logo me deu a receita
incluindo o segre-do para estarem tão bons.
O Zé Manel dos Ossos é um tasco no centro de Coimbra, atrás do
Hotel Astória, com comida fantástica. Tem somente uma mão cheia de mesas de madeira, bancos de madeira e cons-tantemente uma fila
de pessoas na rua à espera de mesa. As pare-des estão forra-das com poemas e comentários que os clientes escrevem nas toalhas de papel e depois se pre-
gam na parede. O restaurante merece sem dúvida uma visita. E não se sai de lá defraudado, pois come-se e bebe-se muito bem.
Já com o estômago reconfortado, pude-mos assim iniciar o nosso passeio pela parte antiga da cida-de. Logo ao virar da esquina do Zé Manel dos Ossos, a Igreja de São Bartolomeu. A sua edificação é muito antiga, sabendo-se que existia já em mea-dos do século X, con-forme testemunha um documento que infor-ma que a igreja foi doada ao Mosteiro do Lorvão já em 957. O templo primitivo foi reedificado no século XII em estilo români-co. O actual edifício, em estilo barroco, data da reconstrução empreendida no sécu-lo XVIII, devido ao estado de ruína em que o anterior então se encontrava.
Passámos o Arco da Barraca e logo come-çámos a ouvir fados de Coimbra:
Coimbra tem mais encantoNa hora da despedida.
E as lágrimas do meu pranto
São a luz que me dão vida.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Não me tentes enga-nar,
Com a tua formosura,
Que para além do luar,
Há sempre uma noite escura.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Quem me dera estar contente,
Enganar a minha dor,
Mas a saudade não mente,
Se é verdade no amor.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Esta é a famosa “Balada do 6º Ano de Medicina, da dupla coimbrã Fernando Machado Soares e Edmundo Bettencourt. Coimbra é a cidade dos estudantes, dos douto-res e dos fadistas. Os seus estudantes, que sempre usaram capa e batina, são famosos em
todo o país. Já não se usam as serenatas à porta das raparigas – mas os estudantes de capa e batina conti-nuam a passear-se — e a beber — nas “Quebra-costas” as escadinhas que ligam a parte baixa à parte alta, e que lembram bem as medinas árabes — daí chamar-se Alme-dina. Passámos pelo Torre e Arco de Almedi-na que faziam parte da
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...as “Quebra-costas” as
escadinhas que ligam a parte baixa à parte
alta, e que lembram bem as medinas
árabes.
antiga muralha da cidade. Supõe-se que este arco tenha sido construído durante os reinados de D. Afonso III e D. Dinis.
Durante o século XIV e XV a Torre de Almedi-na, no cimo do qual ainda podemos ver o sino que soava anun-ciando as sessões da Câmara, dava as horas de manhã e à noite ao abrir e encerrar das portas da cidade e tocava a rebate pela peste e outros aconteci-mentos funestos, transforma-se em cen-tro do poder político municipal, passando a ser a Casa de Audiên-cia da Câmara, onde se realizavam as reuniões da Vereação.
A Universidade Situada nas margens do rio Mondego, a sua marca mais visível é sem dúvida a “Cabra”, de 34 metros de altura, a célebre torre da uni-versidade, desta que é uma das universidades mais antigas da Euro-pa. Fundada em Lisboa em 1290, foi transferi-da definitivamente para Coimbra em 1537, ins-talando-se no Paço Real, onde os romanos terão edificado o preto-rium o que já diz muito da importância estraté-gica e logo militar do local e onde os árabes terão instalado a alcá-çova. O rei D. Manuel man-dou transformar total-mente o entretanto denominado Paço Afon-
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sino. Durante o reinado de Filipe II de Espanha, I de Portugal, é cons-truída a Porta Férrea, o local de entrada deli-neado no tempo da ocupação árabe, enci-mada por dois nichos onde figuram os reis D. Dinis, o rei fundador , e D. João III, o rei que estabeleceu a Universi-dade definitivamente em Coimbra, e a Via Latina, colunata maneirista, edificada no século XVIII. Metemo-nos no meio dum grupo de polacos e vistamos gratuita-mente a belíssima Biblioteca Joanina, de estilo barroco, cons-truída no século XVIII , no reinado de D. João V, que alberga 250 mil livros das áreas de Medicina, Geografia, História, Estudos Humanísticos, Ciên-cias, Direito Civil, Direi-to Canónico, Filosofia e Teologia, arrumados em estantes de dois andares, em madeiras exóticas, douradas e policromadas executa-das por Manuel da Sil-va, espalhadas por três salas comunicantes. Na biblioteca, pode admi-rar-se um retrato de D. João V, de autor desco-nhecido, de 1725. Das salas da universi-dade, a mais famosa é a Sala dos Capelos, antiga sala do trono, de meados do século XVII, da autoria do mestre construtor António Tavares, onde ainda hoje se realizam as cerimónias académicas mais importantes. O tecto é de madeira com
pintura de grotescos da autoria de Jacinto da Costa; as paredes estão forradas de azu-lejos de tipo "tapete". Não vimos a Sala do Exame Privado, onde até à segunda metade do século XIX se reali-zava o exame que antecedia o Doutora-mento, conhecido pelo nome de “exame priva-do”. Na capela da universi-dade, dedicada a São Miguel (daí o seu nome de Capela de S. Miguel) decorria um casamento e só conse-guimos dar uma espreitadela. De estilo manuelino, foi manda-da construir entre 1517-1522, tendo sofrido remodelações nos séculos XVII e XVIII. Apesar do pátio estar em obras, consegui-mos ver a maravilhosa vista sobre o vale do Mondego e sobre o Convento de Santa Clara, na outra mar-gem do rio, do terraço da universidade. Aeminium Saímos da universida-de e fomos para o Museu Machado de Castro situado num antigo palácio e que alberga o Criptopórti-co Romano de Aemi-nium. Apesar dos tra-balhos arqueológicos não estarem ainda totalmente termina-dos, já se pode visitar. A primeira referência a Aeminium, esta cidade romana apa-rece no itinerário de
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A Biblioteca Joanina alber-
ga 250 mil livros de diver-
sas áreas.
Antonino situando-a a 10 milhas a Norte de Conímbriga. As ruínas estão muitís-simo bem tratadas e o guia áudio ajuda a perceber o enquadra-mento.
Duas sés Saídos do Museu Machado de Castro, fomos para a Sé Nova, mesmo em frente. É uma construção geo-métrica muito polémi-ca: há os que a consi-deram confusa, com mistura de estilos, e quem a louve pelas suas composições. A antiga igreja do Colégio da Companhia de Jesus, que foi começa-da a construir em 1598, é sagrada em 1640. A igreja foi abando-nada com a supres-são da Compa-nhia de Jesus em 1759; no
entanto, o seu servi-ço foi retomado logo em 1772, por grande insistên-cia do bis-po e do
povo. Já se encontrava em exposição a barquinha de ouro com a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, para seguir no dia 1 de Maio em procissão. Já antes tínhamos visi-tado a Sé Velha, man-dada construir por D. Afonso Henriques em 1177, tendo-se iniciado o culto regular em 1184. É o melhor exemplo do românico em Portugal, com cons-trução de três naves abobadadas e abside na pureza de um dese-nho perfeito. Lembran-do uma fortaleza sem torres, tem as paredes lisas com janelas ras-gadas em arco cego com dois colunelos. Descendo de novo à Baixa fomos passeando
pelos becos da Almedina onde sobressaem as Repúbli-cas estu-dantis com as suas mensagens escritas nas paredes ou em faixas penduradas nas varan-das e nas janelas. Ainda vimos mais duas
igrejas: a de São Tiago, só por fora, e a de san-ta Cruz, com os túmu-los de D. Afonso Henri-ques e de D. Sancho I, construída no local denominado por "banhos reais", por fundação régia de Dom Afonso Henriques. As obras foram planeadas por mestre Roberto, arquitecto de origem francesa e inserem-se no segundo período do românico coimbrão ou afonsino. Em 28 de Julho de 1131 a pedra funda-mental da igreja é lan-
çada por D. Afonso Henriques e benzida por D. Bernardo. Em 7 de Janeiro de 1228 a primitiva Cruz é sagrada pelo bispo sabinense D. João. Quase nada resta porém desta primeira construção. Quando por aqui pas-sou Dom Manuel I em 1502 , ficou horroriza-do ao ver o estado em que estava a igreja e os túmulos dos os pri-meiros reis de Portu-gal, tendo mandado logo construir túmu-los condignos.
Segundo Dom Timóteo dos Mártires, a trasla-dação de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I para os sumptuosos túmulos
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"O corpo do devoto Rei D.
Afonso Henriques achou-se inteiro,
incorrupto, a carne seca, a cor pálida e macilenta”
foi efectuada com toda a pompa, na presença de D. Manuel I, em 16 de Julho de 1520. D. João Homem, cavalei-ro fidalgo da casa del-Rey D. Manuel estava presente na cerimónia de trasladação e con-tou como se segue: "O corpo do devoto Rei D. Afonso Henriques achou-se inteiro, incorrupto, a carne seca, a cor pálida e macilenta, mas de aspecto severo que parecia estar vivo. Tinha vestido uma garnacha comprida de pano de lã branca, e uma sobrepeliz de pano de linho. Isto tão inteiro e são como se naquela hora lhas vestissem ... O Senhor Rei D. Manuel o fez mostrar à nobreza e povo desta cidade”. O túmulo primitivo era de madeira de cedro.
Paredes meias com a igreja, temos o históri-co Café Santa Cruz, em funcionamento desde Maio de 1923.
O edifício, construído de raiz em cerca de 1530, para servir de igreja paroquial, conheceu outras fun-ções após a sua des-sacralização: um armazém de ferra-gens, uma esquadra de polícia, armazém de canalizações, casa funerária, estação de bombeiros…
Agora é um café onde à noite se podem ouvir fados … de Coimbra.
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convento que morreu a Rainha Santa.
Foi então construído, entre 1649 e 1679, o Convento de Santa Clara-a-Nova, para acolher as clarissas, num local mais alto. O interior da igreja, de uma só nave, tem uma cobertura com abóba-da aquar-telada. A cabe-ceira é formada por uma grande abside onde está a estátua polícro-ma de Santa Isabel esculpida por Teixeira Lopes (século XIX) e o túmulo de prata que
contém o seu corpo.
Para aqui foi trasladado em 1696 o corpo da Rainha Santa, onde ficou num túmulo de pra-ta. Além deste túmulo, temos na igreja os túmulos da Infanta D. Isa-bel, filha de D. Afonso IV, e da filha do Regente e Duque de
Coimbra D. Pedro, ambos góticos de gos-to coimbrão.
O claustro é monu-mental, de estilo bar-roco, da primeira metade do século XVIII, de autoria do arquitecto Carlos Mardel.
De Santa Clara são também famosos os pastéis...
A não perder, por causa da sua histó-ria, a Quinta das Lágrimas, onde Inês de Castro foi brutal-mente assassinada a 7 de Janeiro de 1355 – e onde, no fundo do regato, que sai da Fonte dos Amores se pode ver a cor aver-melhada do sangue derramado...
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Coimbra é a cidade dos monumentos duplos. Duas sés. Dois conventos de Santa Clara…
Do terraço da univer-sidade, víramos o Convento de Santa Clara a Velha, cons-truído em 1286 qua-se no leito do rio – de tal modo que acabou por ser inundado e ficar debaixo das areias lamacentas do rio. Foi ainda neste
O Convento de Santa Clara a Velha estava fechado… por ser Dia do Tra-
balhador...
Conventos de Santa Clara
No caminho de regresso, passagem com paragem obriga-tória por Tentúgal, mais precisamente na Pastelaria Con-ventual Maria Helena Soares, que faz os melhores — e o mais autênti-cos — Pastéis de Tentúgal do país.
Só sua ingre-dientes de qualidade — ”ovos de par-tir”, ou seja, ovos “a sério” e não ovos liofili-zados e man-teiga pura, “nada de margari-nas”.
A massa, “feita só farinha a água”, é amassada e depois estendida no chão, coberta com panos alvos. Uma mulher estende sozinha a massa até ela ficar tão fica que permita “ler-se uma carta através dela”, como diziam as freiras.
Depois, a massa é pincelada com man-teiga com “uma pena de galinha. Um pin-cel não serve, deita muito manteiga e
além disso, fica sem-pre com cheiros”.
Maria Helena Soares aprendeu a fazer os pastéis com uma tia e fá-los desde sem-pre. “Quando saía da escola, vinha para aqui fazer os pastéis com a minha tia”. A arte, a experiência e a paixão à tradição fazem dos pastéis de Maria Helena Soares uma delícia de comer e chorar por mais.
Reza a história que os afamados doces terão surgido por causa da bondade natalícia de uma frei-ra carmelita que, em finais do século XVI,
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A massa é tão fina que se
pode ler uma carta através
dela.
presenteando os meninos da terra com iguarias, resol-veu experimentar rechear a massa muito fina com doce
de ovos.
Quando o recheio dos pastéis leva amêndoa, estes pas-sam a ser chamados “meias-luas”.
Além destes dois tipos de pastel, Maria Helena Soares faz também as queija-das, a partir de quei-jo fresco de ovelha.
Tentúgal