filosofia/cultura e a polÍtica -...

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O ALÉM , A ÉTICA E A POLÍTICA Em torno do Sonho de Cipião COLECÇÃO HESPÉRIDES FILOSOFIA/CULTURA 07 Virgínia Soares Pereira ORGANIZAÇÃO

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O ALM, A TICA E A POLTICAEm torno do Sonho de Cipio

COLECO HESPRIDESFILOSOFIA/CULTURA

07

Virgnia Soares PereiraORGANIZAO

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O ALM, A TICA E A POLTICA

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O ALM, A TICA E A POLTICAEm torno do Sonho de Cipio

ORGANIZAO DE

Virgnia Soares Pereira

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NDICE

7 Apresentao Virgnia Soares Pereira

9 Filosofi a e Republicanismo em Ccero Aclio Estanqueiro Rocha

31 Entre os Sonhos de Herdoto Ana Lcia Curado

45 Vivncias de Er, o Panflio Maria Teresa Schiappa de Azevedo 65 O Sonho de Cipio. Um Programa

de Cidadania e Liderana Francisco de Oliveira

87 Nocturna quies: do sonho e da irriso nos Annales de Tcito

Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel

101 Leituras do Sonho de Cipio: Antiguidade Tardia e Idade Mdia Arnaldo do Esprito Santo

119 O Alm, a tica e a Poltica: Ccero e D. Jernimo Osrio, O Ccero Portugus Nair de Nazar Castro Soares

145 Em jeito de apndice: Algumas notas sobre o tema Virgnia Soares Pereira

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APRESENTAO

Virgnia Soares Pereira

APRESENTAO

Quid enim habet in se utile de ideis Platonis disputare, Somnium Scipionis reuoluere? ABSALO DE SPRINGIERSBACH, Sermones

SOB A GIDE TUTELAR DO SOMNIUM SCIPIONIS DE CCERO, um notvel texto de pendor fi losfi co-literrio que desde sempre despertou o maior dos interesses entre fi lsofos e pensadores polticos, renem-se no presente opsculo algumas refl exes sobre o pensamento tico-poltico do Arpinate, espelhado neste e noutros textos, e bem assim de outros grandes vultos da Antiguidade, como Plato, Herdoto, Virglio e Tcito, sem esquecer a recepo do Sonho de Cipio na Idade Mdia e no huma-nismo renascentista portugus, nomeadamente em Jernimo Osrio.

A presente publicao surgiu de uma constatao deveras inespe-rada: a da quase total inexistncia, em lngua portuguesa, de literatura crtica relativa ao grande texto de Ccero (o Sonho de Cipio) que encerra o livro VI do dilogo intitulado Repblica. Nasceu ento o projecto de reunir especialistas da rea dos estudos clssicos e humansticos com o objectivo de se proceder a uma refl exo sobre o tema, na tentativa de colmatar, de certo modo, essa lacuna.

Em sete intervenes, que decorreram ao longo de uma Jornada, em fi nais de 2008, no Instituto de Letras e Cincias Humanas da Universidade do Minho, sob o ttulo de O alm, a tica e a poltica. Em torno do Sonho de Cipio, analisaram-se textos que podero ter estado na gnese do celebrado Somnium e, por outro lado, refl ectiu-se sobre a infl uncia que essa fi co fi losfi co-literria do Arpinate, considerada

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uma das mais belas nekuias (evocao dos mortos) da literatura antiga, exerceu ao longo dos tempos, com a sua viso do alm e a crena no prmio ou castigo reservados queles que, pela sua conduta de vida, tenham (ou no) contribudo para o bem comum e mais especifi camente para o bem e o progresso da res publica e da humanidade. No pressu-posto de que cada poca perfi lha concepes ticas e escatolgicas que pautam a vida e o pensamento da sociedade que nela se constitui, foram assim objecto de estudo, alm do Somnium Scipionis, os seus antecedentes literrios gregos de pendor tico-fi losfi co, os refl exos do Sonho ciceroniano na Roma imperial e ainda a recepo e infl uncia do mesmo na Idade Mdia e no Renascimento.

Os trabalhos que resultaram da referida Jornada de Estudos Clssicos aqui esto, pese embora a conscincia do muito que fi cou por dizer. Que os textos revisitados e as refl exes que suscitaram possam gerar no esprito de quem os ler um sempre renovado interesse e um empenhado gosto pelos Clssicos por aqueles que, muito antes de ns, se interrogaram e meditaram sobre os grandes temas e problemas da existncia humana.

virgnia soares pereira

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FILOSOFIA E REPUBLICANISMO

EM CCERO

Aclio Estanqueiro

Rocha

FILOSOFIA E REPUBLICANISMO EM CCERO

Aclio Estanqueiro Rocha UNIVERSIDADE DO MINHO

Senhores Conferencistas e ConvidadosPrezados ColegasCaros Estudantes

COM O MAIOR GOSTO QUE DECLARO ABERTA ESTA JORNADA DE ESTUDOS CLSSICOS

SUBORDINADA AO TEMA O Alm, a tica e a Poltica. Em torno do Sonho de Cipio, e desde logo felicito, em meu nome e em nome da Reitoria, os colegas da rea de Estudos Clssicos por mais esta realizao, sem dvida muito oportuna, quer por tornar mais visvel neste campus uma rea cientfi ca que, desde os incios, se desenvolve nesta Universidade, quer porque rene aqui um escol de especialistas, que nos honra com a sua participao, para versar a temtica em apreo. Comungo con-vosco da relevncia que hoje tm os Estudos Clssicos, que versam acerca do nosso passado, que a nossa memria, no pensamento, nos escritos, nas instituies, nos feitos, no que nos foi legado: sem o seu conhecimento no sabemos verdadeiramente o que hoje somos, e s com o seu conhecimento melhor se elucidam que caminhos a trilhar no futuro. A minha satisfao por aqui estar tanto maior, seja pela relevncia que estes estudos das Humanidades clssicas tiveram na minha formao, seja porque, na minha carreira acadmica, fui algumas vezes professor de Filosofi a Antiga e muitas vezes de Filosofi a Poltica. Desse gosto e satisfao que me perpassa, decorre o atrevimento para expender, em seis pontos, algumas refl exes propeduticas.

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1. Filosofi a, vida e dilogo

Como cultor que sou da Filosofi a, por gosto e por ocupao, no posso deixar passar este momento sem me referir nfase e originalidade com que Ccero considerou a imprescindibilidade da fi losofi a. Se a sua obra no se imps tanto pela originalidade, pois carece de um sistema e de uma viso orgnica, a verdade que os seus escritos tiveram desde logo infl uncia: por um lado, eram bastante lidos, por outro, pela transposio que fez da fi losofi a helenstica para expresso latina, que ento difundiu na Europa culta.

Como sabemos, a fi losofi a helenstica no foi de fcil adaptao ao mundo romano; neste ponto, o seu talento muito prprio mostrou-se no modo hbil com que fez a sntese de ensinamentos mltiplos e muitas vezes opostos das vrias tendncias da fi losofi a grega, ainda vivas no seu tempo, e na adaptao dessas doutrinas ao ambiente poltico e intelectual muito diferente de Roma: tornou-as acessveis sob uma nova forma adaptada ao gnio e ao gosto romano e aptas para satisfazer as exigncias do esprito prtico dos seus compatriotas [1]. Neste aspecto, o seu mrito no foi pequeno: alm de introduzir como dissemos a fi losofi a em Roma, entendeu esta no como uma mescla de ensinamen-tos dogmticos desta ou daquela escola, mas como um modo de vida.

Desde logo, fi losofi a e retrica confl uem na sua obra sobretudo a propsito de duas disciplinas que concitaram a sua ateno e que quis juntas a retrica e a fi losofi a; esta surgia ento como o ncleo inspira-dor da cultura do orador digno desse nome, tal como Ccero o foi e como o ilustra em De oratore: Na minha opinio, ningum poder tornar-se um orador completo se no possuir tudo o que o esprito humano concebeu de grande e de elevado. Com efeito, de todas essas noes juntas que deve fl orescer e brotar a torrente do discurso, que, se no assentar num fundo de conhecimentos assimilados, no ser mais que uma v e frvola ostentao de palavras [2]. Nesta sequncia, o orador deve ser cada vez menos um sofi sta e cada vez mais um actor veritatis,

1 Cf. Leo Strauss/Joseph Cropsey, Histoire de la Philosophie Politique [1963], trad. Olivier Sedeyn, Paris, P.U.F., 1994, p. 169.2 Cicron, De lOrateur, I, 60 [Livre I, texte tabli et traduit par Edmond Courbaud, Paris, Les Belles Lettres, 1967, p. 14].

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aquele que demanda cognoscitivamente a verdade, apreendendo-a ao menos com verosimilhana. Assim, palavra e aco devem refl ectir-se na fi gura do orator e este deve prosseguir vias de exigncia na conduta.

Neste sentido, dito por um dos interlocutores: A verdadeira eloquncia de uma outra envergadura: o conjunto das coisas, das virtudes, dos deveres, dessas leis naturais que resumem o carcter, a alma, a conduta dos homens, eis onde tem a sua origem, natureza, modifi caes: ela defi ne tambm os costumes, as leis, o direito; ela preside direco do Estado, e, quaisquer que sejam os temas, ela proclama-os num estilo brilhante e copioso [3]. Quer dizer, alm de actor veritatis deve ser tambm actor virtutis; mais do que aquele que expe com elegncia dum ponto de vista formal deve tender para algum que exemplo de vida, actor vitae, isto , modelo de vida que incarna em si a conjuno entre contemplao e aco [4]. Ora, se, como sabemos, na fi losofi a a retrica assume nos nossos dias especial relevncia, cujas exigncias vo muito para alm do ponto de vista formal, a obra de Ccero jorra luz na actualidade.

Com esse intuito mostrou-se til a diligente coleco de diversas sentenas e de doutrinas dos fi lsofos anteriores e coetneos, sendo sem dvida um insigne representante do ecletismo romano, com o mrito de ter contribudo, com a sua elegante dico, para divulgar entre os romanos esses estudos fi losfi cos e de ter sido o primeiro a criar ter-minologia latina fi losfi ca adequada para signifi car tais pensamentos, alm de que, o que no despiciendo, as suas obras constiturem uma riqussima fonte para a histria da fi losofi a antiga.

Por outro lado, a Ccero coube ter incrementado a fi losofi a em Roma, de que tinha alis conscincia, ao referir-se, ele prprio, como havia respondido aos detractores da fi losofi a e como desenvolvera os argumentos que se podem expender para a sua defesa, enfatizando que se necessrio for, por muito que nos seja aborrecido que se escreva contra ns, esse mesmo o nosso desejo mais vivo. Com efeito, a fi losofi a nunca teria estado na prpria Grcia numa to elevada honra, se as

3 Cicron, De lOrateur, III, 76 [Livre III, texte tabli par Henri Bornecque et traduit par Edmond Courbaud, Paris, Les Belles Lettres, 1971, p. 31].4 Cf. Joan Manuel del Pozo, Cicern: conocimiento y poltica, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 36-37.

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rivalidades e os dissentimentos das pessoas mais sbias no tivessem mantido a sua vitalidade [5]. Neste enfoque, recordava aos seus com-patriotas que essa grandeza da fi losofi a grega na qual encontrou abundante manancial para o seu pensamento , foi fruto da discusso permanente que na cultura helenista se estabelecia acerca de todas as doutrinas, num clima de debate e de tolerncia.

Com efeito, Ccero reconhece-se na senda do grande fi lsofo ate-niense: Scrates foi o primeiro a convidar a fi losofi a a descer do cu, e instalou-a nas cidades, introduziu-a nos lares e imps-lhe o estudo da vida, dos costumes, das coisas boas e ms. Desde a complexidade do seu mtodo de controvrsia diversidade dos temas versados, prpria extenso do seu gnio que foi imortalizado pelos escritos de Plato e que dele nos fi xaram a memria, arrastaram a criao de numerosas escolas cujas opinies divergiam. Entre essas escolas, ns ligmo-nos de preferncia quela cujo mtodo havia sido, segundo pensvamos, o de Scrates: suspender o seu juzo pessoal dissipando os erros de outrem e buscar em toda a discusso o que pode ser o mais verosmil [6]. Assim Ccero alcana um critrio que leva superao da dvida ou da suspenso de assentimento e que permite a aco com uma certa racionalidade.

Para esse fi m o dilogo era sem dvida a via mais adequada, permi-tindo o exame das opinies em confl ito, aferindo os mritos prprios das opinies em apreo, guiando a discusso, sugerindo, mais que reve-lando, o contedo e a orientao do seu prprio pensamento, deixando ao leitor a preocupao em levar a seu termo a argumentao. Ccero foi certamente o primeiro romano a apresentar a fi losofi a da Academia em latim; e a adopo do mtodo cptico e da forma de dilogo deram-lhe ensejo para expor doutrinas rivais de outras escolas lado a lado e de ter a fi losofi a sobretudo como uma actividade e no como um jogo de doutrinas rivais. A obra de Ccero representa um genuno esforo de convite do leitor para julgar qual a posio mais plausvel [7]. No entanto, no se olvide que Ccero buscou tambm no dilogo, tal como

5 Cicron, Tusculanes, II, 4 [uvres Philosophiques: Tusculanes, texte tabli par Georges Fohlen et trad. par Jules Humbert, Paris, Les Belles Lettres, 1970, t. I, p. 80].6 Tusculanes, V, 11 (op. cit., t. II, p. 111). O itlico nosso.7 Cf. J. G. F. Powel, Introduction: Ciceros Philosophical Works and their Background, in ID. (ed.), Cicero the Philosopher: twelve papers, Oxford, Clarendon Press, 1999, p. 30.

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Plato, as virtualidades para fazer da prpria refl exo uma obra de arte, mostrando como as diversas posies desempenham uma funo no progresso de pesquisa.

2. A probabilidade como critrio de conhecimento

A imprescindibilidade da fi losofi a manifesta-se nas suas vrias verten-tes, desde a teoria do conhecimento, a tica e a fi losofi a poltica. No muito usual, quando se fala de Ccero, referir a teoria do conhecimento, o que desde logo lacunar, pois sabemos como ela est na prpria origem do seu pensamento, v.g. a questo do cepticismo e do dogma-tismo. Ccero considerava-se um cptico acadmico, um membro da escola fi losfi ca que teve a sua origem na Academia de Plato, mas que sustentava a tese fundamental da impossibilidade do conhecimento absoluto: o homem, enquanto homem, diziam os cpticos, apenas pode ter opinies acerca do que mais provvel; mas, como importa tambm agir, os prprios princpios que guiam a aco permanecem problemticos. Esta posio introduz um dos tpicos fundamentais para a poltica: para observar e avaliar um acontecimento requer-se, para alm de uma perspectiva prpria, olhares que provenha de outras experincias; no existe, pois, poltica sem pluralidade.

Tais premissas poderiam, no tempo, ser inquietantes quando transpostas para a cidade, quais sementes perturbadoras da ento ordem poltica estabelecida, o que seria muito redutor porque des-vela da fi losofi a apenas o seu lado subversivo. No entanto, verdade que competia fi losofi a embrenhar-se tambm na ordem civil, mas aurindo a os princpios orientadores de uma poltica s na busca das necessidades mais apropriadas, distinguindo sempre entre o possvel e desejvel: ao caos deve preferir-se a ordem, mas esta no se revela numa conduta passiva e amorfa, mas sim procurando continuamente melhorar a vida na cidade.

Nesta lgica, interesse mais pormenorizado foi dado ao problema prtico: o fundo estico da moral ciceroniana consiste principalmente na interpretao da virtude como renncia e na decidida crtica ao hedonismo epicurista. Ademais, a sociabilidade , para Ccero, na esteira aristotlica, um dos rasgos essenciais do homem, que o faz

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devotar-se ao servio da causa pblica; o infl uxo peripattico levou-o a temperar o estoicismo, negando a identidade da felicidade com a vir-tude e reconhecendo a felicidade como equilbrio harmnico de todas as faculdades corpreas e espirituais. O sentido romano f-lo assim antepor a virtude prtica teoria, a justia contemplao.

Por isso mesmo rejeita em geral o epicurismo, que, por defender uma epistemologia vincadamente sensista, incapaz de interessar o sbio em qualquer outra coisa distinta da sua prpria felicidade ou gozo individual, negando em consequncia o compromisso com os assuntos pblicos. Neste domnio, as incompatibilidades com as posies epi-curistas no poderiam ser maiores: J quanto s desculpas de que se servem como justifi cao para mais facilmente gozarem do cio, essas no so minimamente aceitveis. () Como se, para homens bons e fortes e dotados de uma alma grande, houvesse mais justa razo para seguir uma carreira poltica do que no terem de obedecer a mprobos nem permitirem que por estes mesmos o Estado seja dilacerado quando eles prprios no estiverem em situao de prestar auxlio ao Estado, mesmo que o desejem! [8]. Como decorre do texto, o sbio autntico nunca pode hesitar em servir o interesse geral. A argumentao com-pendia a posio genuna de Ccero, que de empenhamento na causa pblica, opondo-se ao tirano se necessrio for, pois a tirania o regime mais malfi co que pode haver, o maior mal de que os humanos reunidos em sociedade podem ser vtimas.

Quanto aos esticos, com os quais simpatizava, to-pouco pode acei-tar o seu ncleo terico epistemolgico centrado na doutrina da repre-sentao catalptica [9], que leva evidncia e ao lgico assentimento;

8 Ccero, Tratado da Repblica, 1.9 [trad., introd. e notas de Francisco de Oliveira, Crculo de Leitores/Temas e Debates, 2008, p. 77]. Cf. tambm Joan Manuel del Pozo, op. cit., pp. 39-40.9 Na verdade, os esticos, tal como os epicuristas, do uma interpretao sensista ao conhecimento, opondo-se claramente ao inatismo platnico. Pensam todavia evitar a concluso cptica do sensismo, no como os epicuristas, atenuando a necessidade prtica da certeza, mas conferindo o carcter de certeza a dois grupos de conhecimento as pro-lepses e as catalepses: as prolepses ou antecipaes, que so os conhecimentos elementares que precedem qualquer outro conhecimento, comuns a todos os homens (correspondem s noes comuns aristotlicas ou primeiros princpios); as catalepses ou noes compre-ensivas so conhecimentos que, apresentando-se com os caracteres de evidncia e de fora, induzem necessariamente ao assentimento: so a sensao com o assentimento.

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ora, a plena confi ana na obteno da verdade em relao a um deter-minado objecto ou situao real (embora se preveja a possibilidade de erro) signifi ca nem mais nem menos que o caminho mais curto para o dogmatismo e, atravs dele, para a infl exibilidade e o autoritarismo poltico. A matriz anti-dogmtica de modelos explicativos adaptveis s diversas realidades estudadas consubstancia a sua posio [10], sendo a melhor aproximao sua concepo de saber fi losfi co.

Todavia, Ccero, ciente dos problemas que decorrem da permanncia na dvida e da suspenso de assentimento que predispem inaco , inscreve-se de certo modo nas vias do cepticismo da Nova Academia, mas, seguindo de perto a posio de Carnades, adopta a probabilidade como critrio de conhecimento, como se infere desta passagem, entre outras: Satisfarei e explicarei o que me pedes o melhor que possa; mas no mediante afi rmaes certas e indiscutveis, como se eu fora uma espcie de Apolo Ptio, mas como um modesto homem entre tantos que seguem as suas conjecturas mais provveis. No tenho meios de avanar para alm da verosimilhana; as respostas defi nitivas sero expostas por aqueles que se vangloriam de as ter e se proclamam sbios [11]. Constata-se, sem dvida, nesta posio, uma aposta pela cincia aberta.

Subjacente a esta concepo ciceroniana pulsa uma concepo de probabilismo que no dissonante da posio de Aristteles, que assim a expressa nA Retrica: Pois prprio de uma mesma faculdade dis-cernir o verdadeiro e o verosmil, j que os homens tm uma inclinao natural para a verdade e a maior parte das vezes alcanam-na. E, por isso, ser capaz de discernir sobre o plausvel ser igualmente capaz de discernir sobre a verdade [12]. Segundo Ccero, a dvida simples-mente um meio, nunca um fi m: se uma certeza bloqueia o caminho da pesquisa, ao invs, uma margem de incerteza envolvendo as nossas

10 Joan Manuel del Pozo, op. cit., p.38.11 Cicron, Tusculanes, I, 17 (op. cit., t. I, pp. 14-15).12 Aristteles, Retrica, I, 1355a. [edio com introd. de Manuel Alexandre Jnior, trad. e notas de Manuel Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto, Abel do Nascimento Pena, Lisboa, Centro de Filosofi a da Universidade de Lisboa/Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998, p. 93].Cf. tambm, sobre este ponto, Carlos Lvy, Cicero Academicus: recherches sur les Acadmiques et sur la philosophie cicronienne, [Roma], cole Franaise de Rome, 1992, pp. 284-290 (cf. as pginas consagradas ao tema Doute et Action: Cicron fondateur du probabilisme?, pp. 276-300).

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asseres acaba por suscitar a inquietude criadora, que coloca o sbio no caminho de melhor preciso e de maior previsibilidade.

No entanto, se isso verdade acerca da sua posio gnoseolgica, no terreno tico predomina nele o legado do estoicismo: os conceitos morais procedem da nossa natureza e so confi rmados pelo consenso comum (consensus gentium); trata-se de um critrio prtico e realista que pode no se verifi car em muitssimas questes, mas que se encontra ao menos nalgumas, precisamente naquelas que importam de modo especial vida humana.

3. Entre vida contemplativa e vida activa

Ccero foi tambm, e especialmente, um fi lsofo poltico, porventura o rasgo que melhor o singulariza, bem patente na sua obra ao congraar refl exo e aco; porm, sabe por experincia prpria quo irracionais e, quantas vezes, prfi dos, so os jogos polticos; da que a seu lema seja, por um lado, aprofundar a racionalidade da sociedade e das suas instituies na linha de uma maior razoabilidade e coerncia, mas, por outro, aprofundar a racionalidade do poltico para poder aperfeioar essas mesmas instituies.

Umas vezes parece que Ccero atribui primazia tarefa refl exiva, ou, noutros termos, vida contemplativa ante a vida activa; o que pode concluir-se desta passagem: Quem, na verdade, considerar algum mais rico do que aquele a quem no falta nada daquilo que a natureza possa requerer, ou mais poderoso do que aquele que consegue tudo o que ambiciona, ou mais feliz do que aquele que est liberto de toda a perturbao de esprito, ou mais seguro da sua fortuna do que aquele que possui aquilo que, como se diz, at de um naufrgio pode salvar juntamente consigo? Ora, que comando, que magistratura, que reino pode ser prefervel a jamais ocupar o esprito a no ser no que sem-piterno e divino, desprezando tudo o que humano e considerando-o inferior sabedoria? A estar persuadido de que, dos restantes que so chamados homens, s o so os que se ilustram com as artes prprias da humanidade [13]. A fi losofi a vista como fonte de felicidade, como

13 Ccero, Tratado da Repblica, 1, 28 (op. cit., pp. 90-91).

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modo eminente de aprofundamento da humanitas dos humanos, como via de apreenso cognoscitiva da realidade.

O texto parece no deixar disso dvidas, como no o parece deixar a narrativa do Sonho de Cipio que fecha a obra De Republica, de uma sua preferncia pela vida fi losfi ca relativamente vida poltica; todavia, no Sonho, a prevalncia da vida activa surge mais propriamente como um dever a assumir na vida terrestre; o poder e a glria que o fascinavam no prlogo ao Livro I parecem agora irrelevantes. Todavia, talvez o ideal de vida esteja mais numa sntese entre as duas condutas, como alis se expressa na fala de Cipio num outro momento da obra: que pode haver de mais notvel do que a conjugao da prtica e da experincia de grandes feitos com o estudo e o conhecimento daquelas artes [14], isto , daqueles a quem a fi losofi a alargou os horizontes?

Essa foi a sua conduta e o seu exemplo, tal como ele prprio o exerceu: E todas as pessoas que se deixam impressionar pela autori-dade dos fi lsofos, prestem um pouco de ateno e ouam aqueles cuja autoridade e glria so as mais altas entre os homens mais doutos! E embora alguns no tenham pessoalmente gerido o Estado, todavia, na medida em que muito investigaram e escreveram acerca da Repblica, eu considero que eles desempenharam uma funo no Estado. De facto, verifi co que aqueles Sete que os Gregos chamaram Sbios, viveram quase todos imersos na poltica. que no existe nenhuma ocupao na qual a virtude humana esteja mais prxima da capacidade dos deuses do que fundar novas cidades ou conservar as j fundadas [15]. A supe-rioridade da vida poltica activa sobre a vida teortica, ou o equilbrio entre estas opes, demarca a sua via original ante a soluo platnica.

E, nesse sentido, no h virtude mais excelsa do que a que se expressa na prtica de quem se esfora por exercer o governo da rep-blica: Por isso, quem a ambas desejou e alcanou, isto , quem se instruiu nas instituies dos antepassados e atravs da cincia, julgo que esse conseguiu tudo o que mais necessrio para um louvor. Mas se tiver de escolher uma destas duas vias da prudncia, embora possa parecer a alguns que mais feliz aquela regra de vida sossegada, na quietude dos melhores estudos e artes, todavia, a vida poltica

14 Ib., 3, 28 (p. 170).15 Ib., 1, 12 (pp. 78-79).

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certamente mais louvvel e mais ilustre [16]. queles que o acusam de contradio ou de oscilao entre estas opes, importa recordar que tais hesitaes podem explicar-se tendo em conta as difi culdades e vicissitudes que o prprio sofreu na sua vida.

Num texto que um verdadeiro hino funo socializadora da fi losofi a, proclama: Desde os nossos incios na vida, fomos lanados nos teus braos [Filosofi a] por efeito de uma escolha racional e por gosto, e eis que, no perodo crtico que atravessmos, os potentes assaltos da tempestade nos fi zeram buscar um refgio nesse mesmo porto em que nos havamos feito ao mar. Oh guia da existncia, fi losofi a, que tens a misso de descobrir a virtude e de exterminar o vcio! Que nos teramos tornados sem ti, no somente a nossa pessoa, mas de um modo geral toda a existncia humana? Tu criaste as cidades, chamastes vida social os homens dispersos, tu os uniste em casas, depois constituindo famlias, enfi m e sobretudo, pela comunho da escrita e da fala; inven-taste as leis, s a mestra da moral e da civilizao [17]. Constata-se, pois, uma busca tensiva de harmonizao entre racionalidade e poltica.

Ccero no se queda na especulao terica pura e, seguindo uma tradio j solidamente estabelecida, recorre experincia como para-digma analtico; nesse contexto, reescreve a histria de Roma confi gu-rando um esboo de poltica experimental, buscando novas vias de percurso ante os desvios do Estado; que, se falso que a coisa pblica no possa ser governada sem recorrer injustia, ela, ao contrrio, requer uma suprema justia. A isso se dedica no Tratado da Repblica.

4. Em torno da Repblica

A obra essencialmente uma refl exo sobre qual o melhor regime poltico, tendo como prottipo a Repblica de Plato, inclusive na forma de dilogo, mas mudando o enfoque, devidamente adaptada ao modo de ser romano. Se Plato parte dos grandes princpios, como o Bem e a Justia, Ccero expe os princpios abstractos e morais da justia e delineia a confi gurao do Estado ideal, abordando a questo desde

16 Ib., 3, 6 (p. 170).17 Cicron, Tusculanes, V, 2, 5 (op. cit., t. II, p. 108).

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a tcnica poltica, para chegar fi nalmente fundamentao fi losfi ca do tema.

pela boca de Cipio que Ccero afi rma: Portanto, res publica Coisa Pblica a res populi Coisa do Povo. E povo no um qual-quer ajuntamento de homens congregado de qualquer maneira, mas o ajuntamento de uma multido associada por um consenso jurdico e por uma comunidade de interesses [18]. Ccero no parte, como foi muitas vezes o caso, de indivduos (ou de famlias) julgadas preexistir organizao do Estado. Aqui, todos os termos contam: a defi nio estabelece-se desde logo ao nvel do colectivo organizado: o colectivo povo, ou seja, eminentemente plural; mas no um qualquer plural ou multido: um face a face (coetus) de um certo nmero de pessoas (multitudinis) associadas (societatus) pela adeso comum (consensus) a um pacto de justia.

Deste modo, a expresso juris consensu, mais que ao direito, remete para a articulao interna do social: a repblica ciceroniana no um conglomerado de indivduos ligados por uma solidariedade mecnica ( maneira de Durkheim), no de modo nenhum uma simples justaposio, uma totalidade orgnica onde cada um tem um papel que implica direitos e deveres determinados. Ser necessrio fazer referncia actual teoria da justia de Rawls para encontrar no seu segundo princpio algo que se assemelhe ao que Ccero prope como ponto de partida da sua refl exo de Estado [19]. O Estado est consolidado pelo sentimento de uma utilidade comum, que gera esse consenso de adeso de cada cidado, que concerne a vida quotidiana: cada qual encontra na organizao social razes de a perpetuar porque ele assegura a cada um a realizao dos seus fi ns prprios.

Tais princpios gerais a autoridade procede do povo, que s deve ser exercida com base no direito e que somente est justifi cada por razes morais alcanaram uma aceitao quase universal num tempo relativamente breve depois da poca em que Ccero escreveu,

18 Ccero, Tratado da Repblica, 1, 39 (op. cit., p. 98): Est igitur respublica, res populi; populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis juris consensu et utilitatis communione societatus.19 Cf. Philippe Muller, Cicron: un Philosophe pour Notre Temps, ditions LAge dHomme, 1990, pp. 129-130.

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e foram sendo aceites na fi losofi a poltica durante muitos sculos [20]. O Estado , pois, um corpo, cuja pertena posse comum de todos os cidados: existe para dar a seus membros as vantagens da ajuda mtua e um governo justo. A referncia a um consenso de direito na noo de polis invoca uma espcie de antecipao daquilo que hoje o Estado de direito.

Aproximadamente cem anos aps Polbio, Ccero escreveu numa poca em que Jlio Csar, sob as armas do seu exrcito vitorioso, esta-belecia um imprio ditatorial em Roma. Ora, Ccero era um ardente republicano e, contra Csar, desejava restaurar o antigo equilbrio das instituies. Nas suas obras, analisa as causas da triste decadncia da Repblica; partindo da teoria do equilbrio das formas de governo que Polbio havia delineado, atribuiu a crise de seu tempo ao excessivo poder alcanado pelo elemento democrtico, de que lograram apropriar-se demagogos como Mrio e Csar.

Segundo Ccero, o objecto da cincia poltica e da coisa pblica que emerge (porque um povo se revela nessa reunio de homens fundada num pacto de justia e numa comunidade de interesses) funda-se no esprito de associao; este, para Ccero, na senda de Aristteles, natural porque o homem naturalmente um animal poltico. A partir da, a questo que se coloca a pergunta clssica em poltica sobre a melhor forma de governo: governo de um, de alguns ou da multido? A resposta de Ccero, como a de Polbio, cem anos antes, a de uma quarta, onde se renam as vantagens de todas elas, uma forma mista que surge da sntese equilibrada das trs formas originrias.

De facto, passando em revista as trs formas de governo monar-quia, aristocracia e democracia , o Arpinate chega concluso de que a melhor forma poltica a constituio mista, isto , a que se compe das trs formas; a prevalncia de uma s delas pode acarretar perigos, que j foram vislumbrados por outros tratadistas. De facto, parece bem que exista na constituio algo superior e real, que haja algo con-cedido e atribudo autoridade dos cidados de primeira, que haja algumas coisas reservadas deciso e vontade da multido. Esta constituio possui, antes de mais, uma certa equabilidade, [grande],

20 Georges H. Sabine/Thomas L. Thorson, A History of Political Theory, Hinsdale (Illinois), Dryden Press, 1973, 4 ed., pp. 162-164.

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de que os homens livres difi cilmente podem estar privados por muito tempo; depois, possui fi rmeza, enquanto que aqueles trs primeiros tipos se convertem facilmente nos vcios contrrios: de um rei des-ponta um senhor, dos optimates aristocratas uma faco, de um povo a turbamulta e a confuso [21]. Em sua opinio, o regime republicano de Roma constitui um admirvel exemplo do sistema de equilbrio poltico, to necessrio estabilidade da vida do Estado e existncia de um bom governo.

Roma havia alcanado o melhor sistema, na medida em que os cnsules equivaliam autoridade real, o Senado era a aristocracia culta, e o povo dispunha de liberdade, matizada e contida, mas sufi ciente. De facto, quer um rei equitativo e sbio, quer alguns escolhidos entre os cidados de primeira, quer o prprio povo, embora isto seja o menos recomendvel, desde que no sobrevenham iniquidades ou paixes, parecem poder manter-se numa situao de no instabilidade [22]. Embora haja na assero alguns indcios de elitismo pelo labu lanado sobre o modo de governo tido como o menos recomendvel, o que se explica pelas exacerbaes prprias do tempo, pois os malefcios dos primeiros dois tipos, quando pervertidos, no o so menos. Ento, o princpio geral ciceroniano de que possvel alcanar a estabilidade com um rei justo e sbio, os principais cidados selectos e o prprio povo, desde que no sejam perturbados pela injustia ou pela cobia.

Por isso mesmo, Ccero pe na boca de Cipio a seguinte resposta pergunta de Llio acerca das virtualidades da constituio mista: Em nenhuma outra cidade a liberdade tem domiclio a no ser naquela em que o poder supremo pertence ao povo. E nada consegue ser mais doce do que ela, e se ela no for igual, nem sequer liberdade! [23]. A forma de governo vista como o factor determinante do Estado e, consequentemente, do prprio povo.

21 Ccero, Tratado da Repblica, 1, 69 (op. cit., p. 122).22 Ib., 1, 42 (p. 100).23 Ib., 1, 47 (p. 102).

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5. A justia como eptome da sociedade

Claro que estas posies de Ccero pressupem uma outra questo, que ele considerou, que tem a ver com o fundamento da Coisa Pblica, da Repblica, em suma da actividade poltica, que se expressa no dilema: funda-se ela na natureza ou numa relao convencional de foras? Da boca de Llio fl ui o clebre elogio da lei natural: A lei verdadeira sem dvida a recta razo, conforme natureza, em todos gravada, constante, sempiterna, que chama ao dever com suas ordens e com suas proibies afasta do engano. E ela no obriga ou desaconselha em vo os probos, nem convence os mprobos com prescries ou interdies. Esta lei no pode ser obrogada, nem lcito derrogar alguma parte dela, nem pode na sua totalidade ser abrogada. Na verdade, no podemos ser isentos do cumprimento desta lei nem pelo senado, nem pelo povo (), nem haver uma lei em Roma, outra em Atenas, uma agora, outra no futuro, mas uma lei nica, sempiterna e imutvel abarcar todas as naes e em todos os tempos, e existir como que um guia e impera-dor comum a todos, deus. (). Quem no lhe obedecer, a si prprio se renega e, pelo prprio facto de desprezar a natureza humana, sofrer as maiores penas, mesmo que tenha escapado a outras coisas que so consideradas suplcios [24]. Neste ponto, no h dvida de que a obra ciceroniana teve relevncia no pensamento poltico, na medida em que conferiu doutrina estica do direito natural a formulao que seria doravante predominante, ento e at ao sculo XIX: no s passou aos jurisconsultos romanos e aos Padres da Igreja, como esteve vigente em correntes doutrinais sucessivas.

Coloca assim, em primeiro lugar, um direito natural, estabelecido por uma razo natural, a razo que est na natureza das coisas. Deste modo, a doutrina poltica de Ccero assenta no claro reconhecimento da existncia de uma lei natural ao lado da lei positiva; se esta a lei ema-nada da autoridade do Estado em momentos diversos (a que os legalistas velhos-romanos eram to atreitos), mas que era portanto temporal e histrica, aquela, ao invs, promanando da natureza humana, subtrada ao arbtrio dos indivduos e do Estado, encontra o seu fundamento no criador da natureza humana, isto , em Deus; , portanto, lei eterna e

24 Ib., 3.33 (p. 186).

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divina. Ora, o que importa acima de tudo que as leis positivas estejam em consonncia com a lei natural: O magistrado a lei falante, a lei um magistrado silencioso [25]. O escopo supremo dos poderes pblicos precisamente esse: as leis ditadas pela razo justa no podem e no devem ser modifi cadas pelas leis positivas, de modo que a justia transparea no direito pblico.

assim que Ccero, ao mesmo tempo que defendia a sujeio de todos os homens aos mesmos princpios de direito natural, se esforou por atrair os seus concidados romanos para os ideais supremos da justia, da decorrentes. Se, porm, os povos conservam os seus direi-tos, garantem que nada existe de mais vantajoso, de mais livre, de mais feliz, uma vez que eles so senhores das leis, dos tribunais, da guerra, da paz, dos tratados, da vida de cada um, da riqueza. Consideram que, formalmente, esta a nica que se pode chamar Coisa Pblica, isto , Coisa do Povo. E que, por isso, em povos livres costume haver reclamao de liberdade para a coisa do Povo sob a dominao de reis e de patres patrcios, senadores, mas no (sc. costume) exigir reis ou o poder e o socorro dos optimates aristocratas [26]. O mesmo dizer: nunca um povo livre reclamou um rei ou uns aristocratas para mandarem, mas nas monarquias e aristocracias reclama-se sempre liberdade; esta , com efeito, o bem mais apreciado pelo povo.

Em Ccero, o Estado de direito portanto um Estado de direito para todos; se, em Plato e Aristteles, s uma minoria governante os poderia desfrutar, embora estivessem ligados a uma certa benevolncia por dever, no o era para todos; ento, se o pensamento poltico sis-temtico comeou com esses pensadores clssicos, no estoicismo de verso ciceroniana assentam algumas das premissas do moderno pen-samento poltico. E trata-se de um passo importante, nada despiciendo portanto, na histria do debate sobre a igualdade dos homens, no qual ainda estamos, quer dizer, no terminou ainda e sempre prosseguir.

Ccero punha acima de tudo a justia: E o que pelos msicos chamado harmonia no canto, isso numa cidade concrdia, o mais apertado e o melhor vnculo de incolumidade em qualquer Estado. Mas

25 Cicron, Trait des Lois, III, 1, 2 [texte tabli et traduit par Georges de Plinval, Paris, Les Belles Lettres, 1968, p. 82].26 Ccero, Tratado da Repblica, 1, 48 (p. 103). Cf. tambm J. M. del Pozo, op. cit., p. 122.

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ela de modo algum existe sem justia [27]. A prtica da justia assume mesmo a forma de imperativo pela boca de Cipio: Portanto, onde existe um tirano, deve dizer-se, no que a existe uma Coisa Pblica defeituosa, () mas simplesmente, como agora a razo impe, que no existe Coisa Pblica alguma [28]. Para Ccero no existe res publica nem populus se no so governados com justia; e qualquer outro regime falso e no merece esse nome.

Se a relao de livre cidadania, segundo Aristteles, no pode exis-tir seno entre iguais, como os homens no so iguais deduz-se que a cidadania est limitada a um pequeno escol. Ora, ao contrrio, Ccero prope que, como todos os homens esto submetidos a uma lei e so por isso concidados, tm que ser de algum modo iguais. Para Ccero a igualdade uma exigncia moral mais do que um acto [29]. Releva-se que todo o homem tem por apangio a dignidade humana e o respeito devido: que todos os humanos esto dentro e no fora da grande fraternidade humana; mesmo o escravo, no , como para Aristteles, um instrumento vivo da aco, mas algum que se assemelha ao que Crisipo havia dito, um trabalhador contratado vitaliciamente. Recordemo-nos tambm que importa respeitar a justia, mesmo em relao aos inferiores. Ora o que h de inferior a condio e a sorte dos escravos e tm razo aqueles que prescrevem que nos sirvamos deles como de trabalhadores pagos, dos quais se exige um trabalho mas a quem se deve dar-lhes o que justo [30]. A justia , sem dvida, a expresso verdadeira e o eptome de uma sociedade.

Consequentemente, condena veementemente as infraces justia: H duas maneiras de cometer injustia, pela fora ou pela astcia: a astcia parece de algum modo ser a maneira da raposa, a fora, a do leo; as duas so coisas completamente indignas do homem, mas a astcia ainda mais execrvel. E de tudo o que leva o nome de injustia, nenhuma mais criminosa que a injustia daqueles que, no prprio momento em que mais enganam, o fazem de tal modo que parecem

27 Ib., 2, 69 (op. cit., p. 163).28 Ib., 3.43 (p. 193).29 Cf. Georges H. Sabine/Thomas L. Thorson, op. cit., p. 162.30 Cicron, Les Devoirs, XIII, 41 [texte tabli et traduit par Maurice Testard, Paris, Les Belles Lettres, 1970, p. 125].

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gente de bem [31]. sempre a utilitas communio que constituinte da res publica; h que apartar sem hesitao, contrariamente ao que apregoava Carnades, a justia do interesse.

A dignidade humana foi, pois, um dos pressupostos da tica cice-roniana: Todo o homem digno de respeito, os melhores e tambm os outros [32]. Ccero havia cedo compreendido que a liberdade impossvel sem a moralidade. Ou, como disse Kant, voltando a dar uma forma ao antigo ideal dezoito sculos mais tarde, h que tratar o homem como um fi m e no como meio. O assombroso nesta questo que Crisipo e Ccero se encontram mais prximos de Kant do que de Aristteles [33]. A questo do humanismo voltou a ter primordial importncia nos nossos tempos; no poder negar-se como Ccero est tambm entre os precursores.

H homens cuja obra os torna grandes por razes extrnsecas a ela; h os que o so por todas as razes. Ccero, como fi lsofo, era antes de tudo um seguidor de Scrates, o fi lsofo helnico; mas igualou-se ao mestre no no plano da inveno especulativa, mas no do exemplo vital, mesmo diante da morte. De facto, quando Octvio, eleito cn-sul, chegou a acordo com Antnio e Lpido, antigo general de Jlio Csar, formando-se assim o segundo triunvirato, Ccero retirou-se e, ao tomar conhecimento que Octvio o abandonara e que Antnio o tinha colocado na lista dos proscritos, viajou para Frmias, na costa adritica, com inteno de embarcar para a Grcia; mas acabou por fi car, afi rmando: Moriar in patria saepe servata (Morra eu na ptria que tantas vezes salvei).

6. Somnium Scipionis

O Sonho de Cipio [34] culmina o itinerrio que se desenrola em De Republica, tal como o eplogo da Repblica platnica tem como

31 Ib., XIII, 41 (p. 125).32 Ib., XXVIII, 99 (pp. 154-155).33 Cf. Georges H. Sabine/Thomas L. Thorson, op. cit., pp. 162-163.34 O famoso Sonho de Cipio faz parte integrante do Livro VI do De Republica, e, pelo facto de ter sido transcrito e comentado pelo neo-platnico Teodsio Macrbio no sculo IV-V d.C., teve a sua sobrevivncia assegurada at aos tempos modernos; o mesmo no

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protagonista Er, fi lho de Armnio, natural da Panflia. Se em Plato se tratava da Repblica ideal (utopia), no seu estilo selecto, mas numa ambincia grave e fria, com Ccero a parbola desenrola-se num tocante dramatismo, em ordem ao estabelecimento condigno da repblica em Roma.

Recorde-se apenas um passo da narrativa platnica: Contava ele [Er] que, depois que sara do corpo, a sua alma fi zera caminho com muitas, e haviam chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas aberturas contguas uma outra, e no cu, l em cima, outras em frente a estas. No espao entre elas, estavam sentados juzes que, depois de pronunciarem a sua sentena, mandavam os justos avanar para o caminho direita, que subia para o cu, depois de lhes terem atado frente a nota do seu julgamento; ao passo que, aos injustos, prescreviam que tomassem esquerda, e para baixo, levando atrs a nota de tudo quanto haviam feito [35]. Ora, na viagem de Er, a alma separa-se do corpo, empreendendo uma ida ao mundo dos mortos, observando o que a se passa, regressando de novo ao corpo; narra o que viu no alm: o castigo dos tiranos, o prmio dos virtuosos, a ordenao cosmolgica, onde as penas infl igidas aos grandes crimes eram pesadas e os criminosos, entre os quais se contavam os tiranos, eram lanados para o Trtaro.

J no Sonho de Cipio, aps um intrito que cria o ambiente propcio ao dilogo, que d sequncia no sonho, do que se trata do prmio que aguarda o estadista ideal, cuja formao fora objecto dos anteriores Livros V e incio do VI, prmio que s pode esperar no alm, sendo patente a irrelevncia da glria na vida terrena; ao contrrio de Plato, aqui sobrelevam-se os prmios que aguardaro os que pela excelncia da sua conduta poltica se evidenciaram, mesmo que as contrariedades sofridas tenham sido de monta; h, pois, um claro convite a uma dedicao total e desinteressada vida poltica.

aconteceu com a obra de que faz parte, o De Republica, que esteve perdido durante muitos sculos e apenas foi descoberto, fortuitamente, em 1819, num palimpsesto da Biblioteca Vaticana, por Angelo Mai, futuro cardeal, que o publicou em 1822, o que permitiu, embora com lacunas, ter uma ideia global do seu contedo.35 Plato, A Repblica, 614c [edio com introd., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, p. 488].

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No Sonho, a salincia posta numa imortalidade onde avultam os prmios, ao passo que no caso de Er se trata de uma imortalidade focada nos castigos. Ademais, o dramatismo ciceroniano distingue-se da narrativa platnica desde logo porque naquele tudo se passa num sonho, enquanto nesta se trata de uma morte, embora transitria; todavia, o sonho, mais condizente com o pragmatismo romano, adequa-se ao convite vida activa com que Ccero encerra a obra num enfoque optimista.

Se as divergncias so patentes, h contudo uma mesma exaltao da justia e demais virtudes, embora envoltas num maior dramatismo na narrativa ciceroniana; assim, se a tirania em Plato uma situao que perturba, a sua condenao poder aguardar o Livro IX, como aquele que est enlaado em apetites dos mais vis e execrandos entre os casos degenerativos dos tipos de governo. No Sonho de Cipio, a justia e demais virtudes confl uem no exerccio da causa pblica, numa refl exo pragmtica que se consuma na excelsa conjuno entre vida contemplativa e vida activa no exerccio do interesse geral, a par da pungente crtica moral romana, abertamente decadente e muito afoita s questes terrenas.

Porm, as diferenas que separam Ccero de Plato so mais sig-nifi cativas que as semelhanas: enquanto a alma platnica se purifi ca pela contemplao e se satisfaz na viso enfi m adquirida das verdades eternas, ela , com Ccero, o homem de aco, o homem poltico, que verdadeiramente salvo pela sua prpria aco. No se pode imaginar uma mais completa converso prtica e uma decisiva promoo da actividade instauradora da comunidade [36]. Ccero enaltece a prtica da virtude poltica, apresentada como uma actividade digna do sbio: o exerccio do governo visto como um requisito para pr as poten-cialidades da sabedoria em consonncia com o Cosmos.

Com base no cenrio em que se encontravam, o pai e o av contem-plam astros e estrelas, distintos dos que se observam a partir da Terra; argi-se sobre a pequenez do planeta comparada com a imensido do universo infi nito. O panorama csmico era propcio para avaliar como o efmero envolve os nossos propsitos; e quando a fama est na boca dos outros, como limitada ela , que depressa se esvai com o

36 Philippe Muller, op. cit., pp. 142-143.

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tempo: assim, se queres olhar para o alto e contemplar esta sede e esta morada eterna, no te importes com as conversas do vulgo nem coloques a esperana dos teus feitos nos prmios humanos. pelos seus atractivos que a prpria virtude te deve levar verdadeira glria [37]. O escopo prosseguido por quem governa deve transcender o que particular e comezinho, guiado pelo bem-estar das maiorias. Difcil tarefa, que nossa de hoje!

Alm disso, Ccero imaginou Cipio o Africano a descrever os mundos celestiais, evidenciando a diferena entre o eterno, o verda-deiro, por um lado, e a pequenez do terreno, por outro; a sua apario em sonho revelar ao seu descendente que a verdadeira glria no consiste nos prmios, na fama e no reconhecimento em vida. A glria autntica, essa consiste na virtude; e a principal virtude a aco que busca a salvao da ptria, a terra dos pais e dos antepassados.

No Sonho de Cipio desenvolve-se uma viso do alm, em que a imortalidade vem coroar os esforos dos que laboraram para o bem do Estado, exortando justia e enaltecendo o patriotismo: Cultiva a justia e a piedade, as quais, devendo ser grandes para com os proge-nitores e parentes, devem ser mximas para com a ptria [38].

Somnium Scipionis, escrito por Ccero quando j contava com uma ampla experincia nos assuntos de Estado, uma obra-prima e um dos textos infl uentes da Antiguidade, que foi lido com avidez ao longo dos sculos, desde propsitos formativos, a obras de diversos tipos, como os tratados de Juan Luis Vives, A Divina Comdia de Dante, o leo homnimo que lhe dedicou Rafael, a pera que Mozart comps com libreto de Pietro Metastasio. Nela se vislumbrou, conforme as pocas e os leitores, um modo peculiar de interpretao, o que devido densidade que ela encerra.

Sem dvida que a parbola descreve a tarefa poltica como um inelutvel dever, inscrevendo-a na ordem csmica das coisas; atravs de uma potica evocao do universo, a repblica poltica inserida numa Repblica Csmica, culminao potica que no uma sim-ples efuso sentimental: Exercita-te, tu, nas melhores aces! Ora, os melhores cuidados so os da salvao da ptria. Movida e exercitada por

37 Ccero, Tratado da Repblica, 6, 25 (op. cit., p. 239).38 Ib., 6, 16 (p. 234).

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eles, a alma voar mais veloz para esta sede e para esta sua morada [39]. Se alguns dizem que nos sonhos no existem seno engano e mentira, tambm s vezes os sonhos no mentem e, com o passar do tempo, se revelam verdadeiros. Da que o cntico fi nal, maneira do prottipo platnico, mas transmutado por aspiraes romanas, inscreva na harmonia global do cosmos os que causa pblica exemplarmente se devotaram.

Campus de Gualtar, 5 de Dezembro de 2008

39 Ib., 6, 28 (p. 241).

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ENTRE OS SONHOS DE HERDOTO

Ana Lcia Curado

ENTRE OS SONHOS DE HERDOTO

Ana Lcia CuradoUNIVERSIDADE DO MINHO

DESDE A ANTIGUIDADE QUE SE TORNARAM FAMOSAS AS PRIMEIRAS LINHAS DA

OBRA DE HERDOTO, o pater historiae, como lhe haveria de chamar Ccero (in De Legibus I.1.5), primeiras linhas essas que passaram a ser desig-nadas por Prlogo:

Esta a exposio das informaes de Herdoto de Halicarnasso, a fi m

de que os feitos dos homens, com o tempo, se no apaguem, e de que no

percam o seu lustre aces grandiosas e admirveis, praticadas, quer por

Helenos, quer pelos brbaros, e, sobretudo, a razo pela qual entraram

em confl ito uns com os outros. [1]

Dar a conhecer o passado, glorifi c-lo e encontrar os motivos que levaram Helenos e Brbaros a combater so os principais objectivos da obra de Herdoto. Percebe-se, desde cedo, que os nove livros de hist-rias, que Herdoto se prope apresentar, esto recheados de narrativas e episdios sobre os Helenos e sobre muitos povos estrangeiros. No se pode afi rmar que as Histrias correspondem a um relato exaustivo e verdico dos acontecimentos a referidos. H narrativas que corres-pondem a descries fi is dos acontecimentos; outras, porm, foram

1 Rocha Pereira (2009: 249).

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Em torno do Sonho de Cipio

alvo de adaptaes; outras dependem de relatos mticos; outras, ainda, revelam um carcter puramente fi ccional ou romanesco. Da que, desde a Antiguidade, muitos dos relatos de Herdoto sejam motivo de uma hermenutica desconfi ada e de muita controvrsia, sendo que nem mesmo as poucas certezas so intocveis.

Herdoto merece, contudo, ser respeitado nos seus prprios ter-mos. Pode acontecer que os muitos sculos de leituras que mereceu no tenham captado as estruturas menos bvias da sua obra. Recentemente, Henry Immerwahr trouxe lucidez anlise da construo narrativa de Herdoto. No que parecia ser uma sucesso de narrativas aparen-temente desconexas entre si, este investigador encontrou uma coeso e coerncia perfeitas. Assim, a sucesso de histrias sobre Creso, Ciro, Cambises ou Dario tem uma lgica que as irmana. Trata-se de um conjunto de histrias que descrevem a origem, a ascenso e o declnio da realeza brbara. Com base numa representao dinmica de esplen-dores e de misrias pretende-se evidenciar sobretudo um conjunto de caractersticas universais, como a instabilidade da fortuna e a fragilidade da natureza humana. [2] Assim, os factos narrados correspondem viso do mundo de Herdoto depois de lhe serem agregados pormenores de natureza diversa que lhe do um colorido prprio. A historiografi a de Herdoto revela infl uncia do pensamento trgico que marcava o seu tempo. Tal infl uncia visvel na apresentao de alguns episdios, nomeadamente os que compreendem referncias onricas.

interessante notar que a interpretao do sonho uma arte que requer inteligncia e, algumas vezes, inspirao divina. Tornou-se um motivo na literatura de todas as pocas. O sonho pode revelar mensa-gens claras ou pode ser simplesmente encarado como um smbolo que exige interpretao. No se deve interpretar os sonhos dos Antigos luz dos conceitos e teorias freudianas; isso constituiria uma subverso cultural. Desde Homero aparecem na literatura grega sonhos premoni-trios que se caracterizam por mostrar obscura ou claramente eventos futuros. Desse passado fundador da literatura ocidental visvel uma clara reminiscncia homrica em Herdoto. Trata-se de uma descri-o elaborada do sonho que ordena a Xerxes que invada a Grcia ou sofra, em caso de recusa, graves consequncias (Hdt. 7.12-18). Essas

2 Immerwahr (1986: 46-78).

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ENTRE OS SONHOS DE HERDOTO

Ana Lcia Curado

consequncias revelaram-se ser infelizes para os Persas. De modo semelhante o Atrida Agammnon da Ilada visitado por um sonho enganador, planeado por Zeus, que o leva a acreditar que ele ser capaz de tomar a cidade de Tria naquele mesmo dia. Esta crena conduz a uma batalha prolongada e a um srio revs para os Aqueus (Ilada 2.1-40). Este exemplo revela que Herdoto segue com proximidade os ritmos da poesia pica. [3]

No sc. V a.C. verifi car-se- uma expanso do sonho simblico. Dessa poca existem diversos testemunhos sobre a arte oniromntica. Um dos exemplos mais extraordinrios encontra-se logo no primeiro livro das Histrias (1.107-108). O medo Astages, fi lho de Ciaxares, quando subiu ao trono, depois da morte de seu pai, teve um sonho em que visualizava a sua fi lha Mandane a urinar com tal abundncia que lhe inundara a cidade e toda a sia. Os Magos interpretaram esta viso deixando o monarca apavorado. Herdoto no revela o teor da interpretao desta primeira viso de Astages. Esta ausncia de relato deixa-nos em suspenso, fazendo nascer a suspeita que a inter-pretao revelada a Astages transportava um teor negativo e adverso ao rei. Logo de seguida, o historiador prossegue contando que mais tarde, quando Mandane j fora dada em casamento pelo pai ao persa Cambises, Astages teve uma outra viso. Nesta viso, parecia-lhe que do sexo da sua fi lha nascia uma vinha e que esta vinha cobria toda a sia. O monarca pede de novo auxlio aos intrpretes de sonhos. Depois da sua consulta, manda vir Mandane, que estava grvida, da Prsia. Confi a a Hrpago, um parente de confi ana, a misso especial de matar a criana que a sua fi lha desse luz.

Na produo dramtica trgica, nas Coforas de squilo (vv. 38-39), o Coro traz a notcia que um sonho proftico viera anunciar que a vin-gana pela morte de Agammnon estava prestes a chegar. Na Comdia aristofnica As Vespas (vv. 13-53), Xntias e Ssio, num dilogo aceso e divertido, partilham os sonhos que tiveram e a interpretao que lhes parece mais correcta. Na Electra de Sfocles (vv. 417-430), Clitemnestra manda colocar no tmulo de Agammnon oferendas por intermdio da sua fi lha Cristemis. A rainha assassina fora visitada por um sonho que pressagiara o regresso do herdeiro legtimo ao trono. Depois desta

3 Cf. Boedeker (2002: 103).

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viso, Clitemnestra passou a recear perder tudo o que tinha conquistado pelo assassinato do marido.

Para Herdoto, os sonhos justifi cam um extenso espao narrativo e merecem toda a sua ateno (e.g. Hdt. 7.13-19). Segundo David Asheri, os sonhos em Herdoto so construes literrias que servem (do mesmo modo que os orculos, os prodgios, os sbios conselheiros) como instrumentos de advertncia e de prenncio do futuro. Isto no signifi ca que Herdoto no tivesse usado fontes, consoante a situao, de carcter oracular, novelstico, etc.. [4]

Seria bem mais fcil interpretar os sonhos com que Herdoto vai colorindo as suas narrativas se se dispusesse de um autor seu con-temporneo como Artemidoro, do sc. II d.C. Artemidoro escreveu A Chave dos Sonhos que constitui um extenso manual sobre a arte de interpretar os sonhos (do grego oneirokrisa). Infelizmente no existe um manual interpretativo de sonhos que tenha sido contemporneo de Herdoto; o mais velho livro de sonhos da Grcia parece ter sido o de Antifonte, do sculo V ou IV a.C., mas que se perdeu (Diog. Laert. 2.46). [5] As narrativas onricas das Histrias devem ser alvo de ateno seguindo a tradio homrica, quer isto dizer que a cada experincia onrica corresponde uma situao importante para cada sonhador visionrio, uma situao que lhe fora superiormente destinada.

De um largo conjunto de narrativas onricas em Herdoto (e.g. sonho de Artabano, 7.17-18; sonho de Astages. 1.107-108; sonho de Cambises, 3.34, 36; sonho de Ciro, 1.209; sonho de Dtis, 6. 118; sonho de Hiparco, 5. 55-56; sonho de Hpias, 6.107; sonho de Otanes, 3.149; sonho da me de Pricles, 6. 131; sonho da fi lha de Polcrates, 3.124-125; sonho de Xerxes, 7.12-15, 19; 8.54) seleccionmos apenas dois episdios que se encontram distantes um do outro no espao narrativo do his-toriador de Halicarnasso. Estes dois episdios visam mostrar que os seus protagonistas caminhavam para uma fase crucial das suas vidas marcadas pelo infortnio.

Um dos primeiros episdios que relata um sonho envolve o pri-meiro atacante dos Gregos, Creso da Ldia (Hdt. 1.34-36). Creso sempre acreditara que era o mais feliz de todos os homens (1. 34.1). Como forma

4 Asheri (1988: 288).5 Dodds (1973: 178).

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de evidenciar a pequenez humana face ao desgnio divino, Herdoto introduz uma breve narrativa sobre a permanncia de Slon, o sbio ateniense, junto do monarca ldio, e a surdez do soberano face aos conselhos e exemplos fornecidos pelo hspede ateniense.

Porm, Creso, depois da partida de Slon, tivera um sonho que lhe revelou a verdade sobre os males que iam atingi-lo atravs do fi lho (1.34). [6] Nesse sonho ( ), o rei da Lbia era avisado como o perderia, ferido por uma ponta de ferro. Nessa ocasio, e pela pri-meira vez, revelada a descendncia de Creso. Alm de tis, jovem distinto entre os da sua idade, o rei tinha um outro fi lho, surdo-mudo, a quem a Ptia vaticinara a devoluo dos sentidos para o dia em que a desgraa atingisse o monarca de Sardes. Deste modo, Creso depois de acordar refl ecte sobre o sonho e tenta afastar o fi lho da fatalidade que se aproxima. Casa-o, retira-o do comando do exrcito ldio e mantm-no afastado de todas as armas que possam vir a confi rmar o pressgio.

Entretanto, enquanto Creso se mantinha ocupado com a prepa-rao do casamento do fi lho, chegara a Sardes um homem, originrio da Frgia, de sangue real, vtima de uma fatalidade e cujas mos no estavam puras. Solicitou a Creso que o purifi casse, segundo os cos-tumes, pedido a que este assentiu. S depois deste ritual que o rei ldio o interrogou sobre as suas origens e demanda. Adrasto, de seu nome, respondeu-lhe explicando que fora banido do seu prprio pas pelo pai e privado de tudo, por matar, sem querer, o seu irmo. Creso promete acolh-lo nessa sua desventura na qualidade de hspede seu (Hdt. 1.35). Desde ento, Adrasto passou a viver no palcio de Creso.

O carcter ominoso da narrativa onrica de Herdoto revela-se na utilizao dos nomes dos protagonistas do sonho, na helenizao dos nomes brbaros. Assim, o nome de tis deve ser relacionado com o termo ate que signifi ca desgraa, desvario. Tal aproximao pode reve-lar que o destino pouco venturoso deste fi lho de Creso estava traado h muito. A histria de que ele vai ser protagonista apenas confi rma a desdita a que tinha sido votado quando lhe fora atribudo o seu nome. Do mesmo modo, o nome de Adrasto est cheio de ensinamentos. Adrasto matara o irmo, sem querer (cf. Hdt. 1.35.3) e, por esse facto, devia ser purifi cado de acordo com os rituais helnicos, pois era considerado

6 Traduo de Ferreira e Silva (1994: 77).

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impuro o derramamento de sangue. O nome de Adrasto epnimo da cidade msia de Adrasteia e parece ainda relacionar-se com o nome da deusa com o mesmo nome, Adrasteia, que signifi ca Necessidade.

Continuando a seguir a narrativa, a certa altura apareceu no Monte Olimpo da Msia um belo exemplar de javali que destrua as culturas dos Msios. Estes dirigiram-se a Creso a solicitar-lhe auxlio na pessoa do fi lho tis. Tal ideia foi de imediato recusada, argumentando o rei que o fi lho era recm-casado, o que o impossibilitava de responder solicitao. No entanto, o rei arranjara uma soluo alternativa, mos-trando preocupao com o problema da regio. Forneceria um grupo de jovens escolhidos entre os ldios e de ces com vista a expulsar a fera daquele lugar. nessa ocasio que tis interpela o pai pela recusa de o deixar participar naquela expedio de caa, atitude que em nada o dignifi cava vista dos seus concidados e da sua prpria mulher. Creso explica ento ao fi lho que a sua atitude correspondia a um acto de precauo face a um sonho fatdico que anunciara a sua morte recente (Hdt. 1.38).

Perante tal argumento, tis reinterpreta a viso ( ) que o pai tivera de acordo com o seu desejo de caar. Admite, antes de tudo, que aquilo que o pai vira durante o sonho nocturno podia no ter uma nica interpretao. Segundo ele, a caada ao javali no constitua qualquer problema visto que o sonho anunciava a sua morte por meio de uma ponta de ferro. Portanto, a caada ao javali no constitua um perigo para a sua vida, pois no se tratava de nenhum combate de guerreiros. Creso mostrou-se vencido com a esta argumentao e assentiu na sua participao na caa (Hdt. 1. 39-40). Manda chamar Adrasto para acom-panhar o fi lho e proteg-lo de eventuais assaltantes que aparecessem no caminho. Alm disso, desta forma, Adrasto retribuiria a ateno de que fora alvo desde que ali chegara e poderia ainda alcanar alguma glria nos feitos que realizasse. Esta seria uma forma de retribuir com bons servios a dedicao de que fora alvo pelo rei ldio (Hdt. 1.41-42).

Porm, na tentativa de acertar no javali com a sua lana, errou o alvo e atingiu o fi lho de Creso. tis foi atingido pela lana e, deste modo, consumou-se o pressgio do sonho de seu pai. Creso foi informado do destino do fi lho (Hdt. 1.43). Mais transtornado fi cou quando se apercebeu que o fi lho fora morto pelo homem que ele acolhera como hspede em sua casa, depois de ele prprio o purifi car de um crime

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de morte, e pelo homem a quem ele encarregara de proteger a vida do seu fi lho (Hdt. 1.44). Aps a entrega do corpo de tis a Creso, Adrasto entrega-se ao rei e exorta-o a sacrifi c-lo sobre o cadver do jovem. Recorda a sua primeira desventura e como depois dela fora causa de runa para o homem que o purifi cara. Creso apieda-se do seu infort-nio e tranquiliza-o, explicando que ele apenas o autor involuntrio de uma vontade divina, que o avisara antes sobre o que iria acontecer (cf. Hdt. 1.34; 1. 45). Pouco tempo depois, Adrasto imolou-se sobre o tmulo de tis, por reconhecer ser o mais desafortunado dos homens que conhecia (Hdt. 1.45).

A fi gura do intrprete de sonhos no sequer referida neste epis-dio. Esse papel cabe ao prprio sonhador e personagem mencionada no sonho, o fi lho de Creso. Mas era habitual a presena de intrpretes profi ssionais que tentavam esclarecer o contedo onrico (e.g. Il. 1.62-67, 5.148-151; Hdt. 5.55-56; Thphr. Char. 16.11). Atravs do testemunho deixado por Teofrasto evidente a especifi cidade da realidade onrica que necessita de aptides prprias para a sua correcta contextualizao: Se tem um sonho, vai procurar intrpretes, adivinhos, ugures, para lhes perguntar que deus ou deusa deve invocar. [7]

Porventura, Creso teria pensado que era sufi cientemente capaz de o fazer, por ser um homem afortunado, e que para a interpretao do seu sonho no precisaria de outrem para o auxiliar nessa tarefa. Talvez o seu erro tivesse comeado logo a, ao considerar-se auto-sufi ciente para interpretar sozinho o seu prprio sonho.

Percebe-se desde cedo que a fase da vida em que Creso da Ldia se encontrava se aproximava de um momento descendente. Naturalmente essa inverso de sucesso traria infortnio e desgraa para o prprio, embora essa transio para a desgraa no se fi zesse atravs do sacri-fcio fsico da sua prpria pessoa. Vrios elementos trgicos conver-gem no espao em que se movimenta Creso e que apontam para uma proximidade na mudana no futuro dos acontecimentos. Os indcios da tragdia foram dados atravs do sonho, mas no foram claramente interpretados. Creso, um homem que se tinha por afortunado, pensou que sabia ler a mensagem divina que se manifestava atravs do sonho. Mas na verdade o rei de Sardes no percebeu que tinha de colocar

7 Traduo Silva (1999: 66).

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todas as hipteses sobre os indcios dados pelos deuses. Durante a visita de Slon ao seu palcio, Creso no soubera tirar as devidas ilaes. Portanto, bem acordado, o rei no percebera que sofria de cegueira em relao sua riqueza, considerando que o facto de ser muito rico o tornaria tambm rico em felicidade, sofrendo ao mesmo tempo de narcisismo, um trao de personalidade que acentuava o seu infortnio. Porm, a felicidade a que se referia Slon era um bem-estar interior que Creso desconhecia e ainda no percebera que existia. Para chegar a essa visualizao interior dos defeitos humanos, -lhe dada uma viso premonitria de aviso, atravs da noite conselheira o sonho (cf. Hdt. 7.12). Sendo Creso um homem riqussimo em bens materiais, considerava essa riqueza material sinnimo de felicidade. Para reforar a sua ideia, Creso insistia que um homem sbio como Slon confi rmasse o seu desejo interior: ser o homem mais rico era sinnimo de felicidade suprema. Slon tenta demonstrar-lhe que o rei da Ldia no deveria necessitar dessa confi rmao pela voz de outrem, pois assim suscitaria a inveja dos deuses, alm de que Creso ainda no tinha percebido que o seu patrimnio no signifi cava nem revelava riqueza interior. A felicidade um sentimento superior que se sobrepe a valores materiais.

Portanto, atravs da escurido da noite, Creso avisado por meio de um sonho que o seu destino de homem rico de nada vale se no souber refrear a sua ambio cega de poder. O espao onrico por si experienciado revelava-se mais esclarecedor que os conselheiros que Creso dispunha no quotidiano da sua casa real. Como se a noite, com a sua escurido, pudesse paradoxalmente esclarecer o que os exemplos paradigmticos fornecidos por Slon, durante o dia, no haviam conse-guido fazer. Creso no percebera, pelos paralelos mostrados por Slon, luz do dia, portanto, luz da claridade da razo, que a sua riqueza terrena nada valia face dimenso humana demonstrada por homens comuns, com ou sem ttulos reais. A ambio humana deixara-o cego; ele tornava-se portanto motivo de punio, pois os deuses tudo sabem e podem (Hdt. 1.34). Atravs do sonho a sua auto-avaliao era nova-mente questionada, Creso era forado a visualizar o esclarecimento que no conseguira ver luz do dia. O sonho era uma mensagem clara de mudana de rumo da sua felicidade. A riqueza material deixara-o na escurido do discernimento, encaminhando-o para um destino

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trgico: fi car privado do seu fi lho tis. Cabia-lhe somente discernir, se o soubesse fazer, sobre a mudana de rumo a tomar.

A reapreciao por parte de tis da viso ( ) que Creso tivera (cf. Hdt. 1.39-40) obriga o visionrio a refl ectir sobre o que viu de um ponto de vista diferente do seu que o experienciou. Facilmente convencido. A nova interpretao promissora: traz esperana e aposta na conti-nuidade da famlia. A interpretao positiva de tis afasta os indcios trgicos que inicialmente Creso pressentira. A partilha verbal dessa vivncia nocturna exerce terapia sobre quem a visionou. tambm um facto que os sonhos ao serem contados a terceiros deixam de ser unicamente individuais e fazem com que o curso do tempo possa ser alterado consoante o ponto de vista envolvido na interpretao da viso.

Um outro episdio que envolve um sonho novamente acompa-nhado pela presena de um conselheiro. Trata-se do momento em que Xerxes, do lado persa, depois de suceder a Dario, inicia a preparao de uma terceira expedio contra a coligao das cidades gregas (Hdt. 7. 5-19). Artabano, seu tio e conselheiro experiente, tenta dissuadi-lo de tal empresa, por ser demasiado arriscada (Hdt. 7.10). No momento da exposio das suas ideias sobre a viso estratgica a tomar, Xerxes confrontou o tio rspida e inconvenientemente com o seu antagonismo. A expedio devia fazer-se. Porm, com a noite por conselheira, refl ectiu que a opinio do tio era a mais sensata e conveniente. Desta feita, no dia seguinte, participou s tropas a alterao da sua vontade (Hdt. 7.12-13).

Depois destes acontecimentos que revelavam pouca fi rmeza de carcter e difi culdade em apoiar uma deciso fi rme e correcta, Xerxes foi visitado durante a noite por um sonho que recriminava a sua ati-tude de recuo face poltica expansionista levada a cabo pelo seu pai Dario. Aquele recuo era sinnimo de fraqueza e de derrota perante o inimigo iminente. Xerxes insiste, contudo, em considerar o conselho dado por Artabano como o mais avisado, at que o sonho se repete de novo. Nesse sonho um homem acusava-o de negligncia face aos conselhos onricos e de conduzir o exrcito persa e a si prprio para o aniquilamento (Hdt. 7.14-15). Aps esta viso, Xerxes manda chamar o tio e conta-lhe a viso, considerando-a como sendo uma apario mandada por uma divindade. Nessa viso ele era constrangido a avan-ar contra a Hlade. Tenta convencer Artabano que gostaria que ele prprio tivesse a experincia do sonho, para assim poder confi rmar a

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fora que o impelia a dirigir uma expedio contra a Hlade, e no se opor novamente sua vontade. Mas, para isso, teria de vestir a roupa do sobrinho e deitar-se no seu prprio leito. De incio, Artabano achou aquela solicitude estranha e incapaz de a cumprir, mas fi nalmente acabou por assentir. Artabano tambm visitado pela mesma viso, mas desta vez esta dirigiu-lhe palavras ameaadoras que intimidavam Artabano a no interferir nas decises do jovem monarca e o faziam manter-se afastado do seu prprio destino, h muito predeterminado (Hdt. 7.16-17). Aps a viso, Artabano concorda que eles esto a ser compelidos a dirigirem-se Grcia para tentarem domin-la (Hdt. 7.18). O destino h muito estava marcado. Artabano, depois desta viso onrica, fora persuadido a que no havia a mnima possibilidade de desvios face primeira deciso tomada pelo monarca, seu sobrinho. No era possvel haver alterao nos planos estrategicamente pensados por Xerxes. Fica claro para Artabano que as preocupaes quotidianas de Xerxes haviam motivado os sonhos do sobrinho. Verifi ca-se tambm que o duplo sonho de sobrinho e de tio aumenta o receio e a ansiedade dos homens perante o problema a resolver. [8] Os sonhos que chegam a Xerxes e a Artabano so claramente planeados para enganar quem os experiencia.

Segundo Emily Baragwanath, o sonho de Xerxes insistente e violento nas suas ameaas e sugere que os deuses esto a conduzir Xerxes. Aceitando a sua origem divina e tambm a noo que a cam-panha devia fazer parte da tradio persa pelo nomos da expanso (cf. Hdt. 3.134) ainda acrescentada a impresso de ser divinamente pr-determinada: (o que deve ser). A referida autora afi rma que este elemento sobrenatural desvia a responsabilidade da realizao da expedio do prprio Xerxes, mas acentua a sua piedade. [9]

Para alm do contedo simblico daquela viso, interessante notar que o sonho que Artabano tivera por sugesto do prprio Xerxes s fora possvel a quem ocupasse os aposentos reais e trajasse uma determinada indumentria. A viso onrica parece destinada a olhos reais. Tem a inteno de informar a personagem visada das difi culdades que o futuro lhe reserva, caso a expedio Grcia no se realizasse.

8 Dodds (1951: 118 e 121).9 Baragwanath (2008: 249-251).

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A viso confi rmava a vontade interior de Xerxes se dirigir para a Hlade, uma vontade que se revelaria trgica, mas que confi rmava o seu destino. Era assim que os deuses tinham determinado. Xerxes no conseguiria fugir ao seu destino porque tinha de ser desse modo, no havia forma de o evitar. Portanto, quando Artabano tentara chamar razo o sobrinho afastando-o do propsito de uma empresa suicida, a divindade, atravs de um sonho, voltara a colocar Xerxes na sua anterior posio de candidato a conquistador da Hlade. Este facto viria a confi rmar-se.

Estamos longe de compreender o estranho teste de Artabano. O que est em causa no acto de se deitar na cama de Xerxes para que tivesse o sonho que Xerxes j tinha tido? S so possveis conjecturas a este respeito. Segundo Michael Flower, Herdoto denuncia a infl u-ncia dos hbitos do Prximo Oriente. possvel que Artabano vista as roupas de Xerxes, se sente no seu trono e durma na sua cama no para testar o mau sonho do rei, mas como parte de um ritual babilnico de substituio do rei. [10]

Nestes dois exemplos as preocupaes do quotidiano de monarcas brbaros, um ldio e um persa, ecoam numa dimenso onrica, afastada do contacto humano, um espao parte propcio ao esclarecimento racional da deciso que cada monarca deve tomar face aos factos envolvidos (cf. Hdt. 7.15).

No primeiro, garantir que o fi lho de Creso lhe sobreviva, para que o possa suceder no trono; no segundo, na crena enganadora de que o imperialismo persa fl oresa face a um inimigo temvel, os Helenos, que tm somado vitrias sucessivas e que poderiam ser fi nalmente derrubados pela liderana de Xerxes.

O mundo dos sonhos em Herdoto funciona como um espao colateral ao universo fsico dos homens, um espao que encerra um friso de enigmas. destinado sobretudo a homens que exercem poder ou esto prestes a exerc-lo. Os sonhos so um espao momentneo que compreende uma srie de sinais com simbologia interpretativa. Constituem ao mesmo tempo um momento que exige um exerccio de refl exo por parte daqueles que os visualizaram sobre a sua pr-pria existncia e tornam-se num desafi o sabedoria de vida de cada

10 Cf. Flower (2007: 288).

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indivduo. O mundo criativo dos sonhos traz para o universo narrativo um conjunto de hipteses sobre determinados aspectos da realidade dos homens. como se desse mundo onrico viessem sinais dirigidos directamente aos homens para os induzir a agir com sucesso procu-rando alcanar a glria e evitar o fracasso e o infortnio. O drama de cada homem est no acto de saber interpretar os sinais que lhe so dirigidos individualmente.

O que parece certo que a vida mental acompanha a vida fsica. O que estes monarcas deveriam ter aprendido com os seus sonhos que preciso aceitar, e no questionar, os sinais externos vida fsica. Poder-se-ia dizer que Herdoto constri um conjunto de situaes onricas que servem s necessidades e s medidas das suas narrativas e dos protagonistas dessas narrativas e que no fi nal essas experincias constituem um repositrio de existncias alternativas espera da cor-recta dissecao. Herdoto no dispe das ferramentas interpretativas de Artemidoro, mas prepara material embrionrio que corresponde a um vasto conjunto de situaes repetveis e passveis de um futuro trabalho explicativo mais profundo.

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ENTRE OS SONHOS DE HERDOTO

Ana Lcia Curado

Estudos

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VIVNCIAS DE ER, O PANFLIO

Maria Teresa Schiappa de Azevedo

VIVNCIAS DE ER, O PANFLIO(Repblica, 614b sqq.)

Maria Teresa Schiappa de AzevedoUNIVERSIDADE DE COIMBRA

Todavia, dois dos seus mitos me perturbavam muito particularmente, pois afi guravam-se-me muito diferentes dos outros. No se assemelhavam a invenes mas a autnticas narrativas de viagens efectuadas por ele mesmo ou por um obscuro informador. Vocs ouviram j certamente falar do primeiro: trata-se do mito de Atlntida, essa ilha que dominava os mares h longas geraes e que foi submersa. Eu mesmo alimentava algumas dvidas, mas hoje os elementos provam-nos a existncia desse reino fabuloso /.../.

O mito de Er a mais maravilhosa das suas narrativas. O meu mestre escreveu bastantes obras de uma profunda sabedoria, mas nenhuma iguala a Repblica. Se os deuses puderam inspirar a sua pena, foi com certeza nessa ocasio. Ele descreve nessa obra a cidade ideal; ora, em concluso, apoia-se sobre a narrativa de uma viagem aos confi ns ltimos do mundo.

JAVIER NEGRETE, El mito de Er [1]

O MITO CONSTITUIU DESDE SEMPRE A FORMA PRIVILEGIADA DE ABORDAGEM DO

DESCONHECIDO, a que a conscincia humana do real inevitavelmente se vincula. Ele preenche ou pretende preencher as dimenses incg-nitas inerentes percepo imediata do tempo, do espao ou do(s) sentido(s) da existncia, que o devir temporal e psicolgico a todo o momento reconfi gura no homem. Assim sucede nas teogonias, onde a explicao do divino implica tambm a do humano; ou nas cosmo-gonias que frequentemente se lhes associam, alargando a imagem da terra a uma ideia estruturada do cosmos. Mais tarde, ser a vez de povos e cidades procurarem e reforarem no mito a razo de ser do seu aparecimento e das suas idiossincrasias.

1 Citamos pela verso francesa, Le mythe d Er ou le dernier voyage dAlexandre le Grand (Nantes 2003), pp. 71-72. As palavras em epgrafe pertencem a Arquipo, que o romance apresenta como discpulo de Plato.

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O ALM, A TICA E A POLTICA

Em torno do Sonho de Cipio

Entretanto, o desabrochar do individualismo, que se processa ao longo de toda a poca arcaica grega, reelabora uma noo de pes-soa marcada pela sua componente espiritual. A psykhe (alma) que geralmente em Homero signifi ca to-s vida ou sopro vital, numa relao indissocivel com o corpo (soma) [2], adquire agora densidade ontolgica, reformula-se em termos de uma existncia paralela do corpo, que se projecta para alm dele. Mas aqui comea outro problema: que existncia essa? O que a alma e qual o seu destino aps a morte?

Nos Poemas Homricos encontramos j sinais desta problemtica recente, que acompanha a catbase, ou descida ao Hades, no canto XI da Odisseia (vv. 14 sqq.), onde Ulisses, a conselho de Circe, vai consul-tar a alma do adivinho Tirsias. , contudo, na Ilada que a questo se levanta em termos inequvocos: inconsolvel com a morte de Ptroclo, Aquiles retm o seu corpo durante dias, at que a alma do amigo lhe aparece em sonhos, a reclamar sepultura, a fi m de fazer a travessia do Hades. Aquiles como Ulisses far com o fantasma de sua me tenta abra-lo, mas a sombra escapa-se-lhe das mos. Dessa tentativa frustre, assinala-se a concluso (23.103-104) [3]:

Ah! verdade ento que existe na manso do Hades

uma alma (psykhe) e uma imagem, que no tem, contudo, esprito (phrenes)

algum!

2 excepo de noos esprito, inteligncia, os termos que em Homero parcialmente descrevem o que entendemos por alma phrenes, thymos, menos enrazam na esfera corporal. Foi B. Snell quem sobretudo explorou esta particularidade da linguagem hom-rica em A descoberta do esprito (cap. I, A concepo do homem em Homero), seguido de E. R. Dodds, Os Gregos e o irracional (esp. cap. I, Desculpas de Agammnon). Veja-se a sntese de M. H. Rocha Pereira, Estudos de histria da cultura clssica I (Coimbra 2006), pp. 122-133 e 248-249, com remisso para bibliografi a recente.3 Trad. de M. H. Rocha Pereira. A parte inicial integrada no primeiro dos argumentos do Fdon sobre a imortalidade da alma (o argumentos dos opostos), num contexto de deduo lgica: do processo morte gera-se o seu oposto vida. Tal implica que a alma existe, ou melhor, subsiste (traduo preferida por Frederico Loureno) no Hades (70 c). O passo homrico destaca-se por um esboo de problemtica existencial, ligada ao uso absoluto do v. einai, que se desenvolve sobretudo no mbito religioso. Vide Ch. Kahn, The Verb To Be in Greece (Boston 1973), esp. p. 460 e M. T. Schiappa de Azevedo, Plato. Fdon (Coimbra 1988), p. 144, n. 29.

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VIVNCIAS DE ER, O PANFLIO

Maria Teresa Schiappa de Azevedo

No ser necessrio insistir na importncia do passo; nele est consagrada uma forma de existncia para a alma que atesta, embora incipientemente, a entrada do dualismo alma/ corpo na cultura e na religiosidade grega. Esse dualismo no faz parte das primitivas con-cepes helnicas e a sua introduo deve-se, antes de mais, ao contacto com a cultura xamnica, tpica das regies a norte do Mar Negro, que o fenmeno da colonizao veio dar a conhecer aos Gregos.

A corrente religiosa que a radica de feio espiritualista e, ao con-trrio do que o passo da Ilada sugere, centra na alma todo o dinamismo vital. Os seus representantes como baris, o lendrio homem do Norte que introduziu entre os Gregos o culto do deus conhecido por Apolo Hiperbreo afi rmam que ela imortal e treinam-se, atravs de tcnicas especfi cas, em abstra-la o mais possvel do corpo. Nesse exerccio de concentrao, a alma adquire poderes extraordinrios na cura de males que afl igem homens e cidades; por vezes tambm, viaja para outros lugares enquanto o corpo, imvel, aguarda que regresse feito atribudo, entre outros, a Pitgoras [4].

A difuso desta doutrina e suas prticas estende-se pela Grcia ao longo do sc. VI a.C. cristalizando em duas correntes que, embora de espectro cultural diverso, revelam afi nidades originrias o pita-gorismo e o orfi smo , no obstante a disparidade que rodeia o seu aparecimento. Se o primeiro assenta num fundador histrico, bem referenciado (o fi lsofo e matemtico Pitgoras), o segundo remete, pelo menos nominalmente, para a fi gura mtica de Orfeu, o msico e cantor de origem trcia, que indiciar, quando muito, a via de contacto pela qual o xamanismo entrou na Grcia continental. Essa disparidade inicial poder explicar tambm diferenas de rumo e de integrao que foram caracterizando ambos os movimentos ao longo do tempo [5], sem

4 Para um inventrio dos milagres atribudos a Pitgoras venerado em Crotona como Apolo Hiperbreo e sua interpretao, vide W. Burkert, Lore and Science in Ancient Pythagorism (trad. inglesa, Cambridge-Massachusetts 1972), pp. 141-147.5 Entre as mais salientes, o magistrio rfi co aparece desde cedo assente em textos escritos, em oposio prtica oral e esotrica dos pitagricos; desde cedo tambm elege Dioniso c