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1 Filosofia da Educação – volume 1 Filosofia da Educação Volume 1 IBETEL Site: www.ibetel.com.br E-mail: [email protected] Telefax: (11) 4743.1964 - Fone: (11) 4743.1826

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Filosofia da Educação – volume 1

Filosofia da Educação Volume 1

IBETEL Site: www.ibetel.com.br

E-mail: [email protected] Telefax: (11) 4743.1964 - Fone: (11) 4743.1826

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Filosofia da Educação – volume 1

(Org.) Prof. Pr. VICENTE LEITE

Filosofia da Educação Volume 1

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Filosofia da Educação – volume 1

Apresentação Estávamos em um culto de doutrina, numa sexta-feira destas quentes do verão daqui de São Paulo e a congregação lotada até pelos corredores externos. Ouvíamos atentamente o ensino doutrinário ministrado pelo Pastor Vicente Paula Leite, quando do céu me veio uma mensagem profética e o Espírito me disse “fale com o pastor Vicente no final do culto”. Falei: - Jesus te chama para uma grande obra de ensino teológico para revolucionar a apresentação e metodologia empregada no desenvolvimento da Educação Cristã. Hoje com imensurável alegria, vejo esta profecia cumprida e o IBETEL transbordando como uma fonte que aciona apressuradamente com eficácia o processo da educação teológico-cristã. A experiência acumulada do IBETEL nessa década de ensino teológico transforma hoje suas apostilas, produtos de intensas pesquisas e eloqüente redação, em noites não dormidas, em livros didáticos da literatura cristã com uma preciosíssima contribuição ao pensamento cristão hodierno e aplicação didática produtiva. Esta correção didática usando uma metodologia eficaz que aponta as veredas que leva ao único caminho, a saber, o SENHOR e Salvador Jesus Cristo, chega as nossas mãos com os aromas do nardo, da mirra, dos aloés, da qual você pode fazer uso de irrefutável valor pedagógico-prático para a revolução proposta na gênese de todo trabalho. E com certeza debaixo das mãos poderosas do SENHOR ser um motor propulsor permanentemente do mandamento bíblico: “Conheçamos e prossigamos em conhecer ao Senhor...”. Por certo esta semente frutificará na terra boa do seu coração para alcançar preciosas almas compradas pelo Senhor Jesus.

Dr. Messias José da Silva In memorian

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Prefácio Este Livro de Filosofia da Educação, parte de uma série que compõe a grade curricular do curso em Teologia do IBETEL, se propõe a ser um instrumento de pesquisa e estudo. Embora de forma concisa, objetiva fornecer informações introdutórias acerca dos seguintes pontos: A Filosofia no Mundo Pragmático, Para que Filosofia da Educação? e A filosofia no campo da educação; Filosofia Analítica e Filosofia da Educação; A Filosofia da Educação e os Conceitos de Ensino e Aprendizagem; Educação Formal e Informal e a Questão dos Objetivos da Educação; Educação e Doutrinação; A Doutrinação Infanto Juvenil; Conceituando a educação; A Filosofia da Escola Tradicional; A Filosofia da Escola Nova; Teorias antiautoritárias da Escola Tradicional e da Escola Nova. Esta obra teológica destina-se a pastores, evangelistas, pregadores, professores da escola bíblica dominical, obreiros, cristãos em geral e aos alunos do Curso em Teologia do IBETEL, podendo, outrossim, ser utilizado com grande préstimo por pessoas interessadas numa introdução a Filosofia da Educação. Finalmente, exprimo meu reconhecimento e gratidão aos professores que participaram de minha formação, que me expuseram a teologia bíblica enquanto discípulo e aos meus alunos que contribuíram estimulando debates e pesquisas. Não posso deixar de agradecer também àqueles que executaram serviços de digitação e tarefas congêneres, colaborando, assim, para a concretização desta obra.

Prof. Pr. Vicente Leite

Diretor Presidente IBETEL

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Declaração de fé A expressão “credo” vem da palavra latina, que apresenta a mesma grafia e cujo significado é “eu creio”, expressão inicial do credo apostólico -, provavelmente, o mais conhecido de todos os credos: “Creio em Deus Pai todo-poderoso...”. Esta expressão veio a significar uma referência à declaração de fé, que sintetiza os principais pontos da fé cristã, os quais são compartilhados por todos os cristãos. Por esse motivo, o termo “credo” jamais é empregado em relação a declarações de fé que sejam associadas a denominações específicas. Estas são geralmente chamadas de “confissões” (como a Confissão Luterana de Augsburg ou a Confissão da Fé Reformada de Westminster). A “confissão” pertence a uma denominação e inclui dogmas e ênfases especificamente relacionados a ela; o “credo” pertence a toda a igreja cristã e inclui nada mais, nada menos do que uma declaração de crenças, as quais todo cristão deveria ser capaz de aceitar e observar. O “credo” veio a ser considerado como uma declaração concisa, formal, universalmente aceita e autorizada dos principais pontos da fé cristã.

O Credo tem como objetivo sintetizar as doutrinas essenciais do cristianismo para facilitar as confissões públicas, conservar a doutrina contra as heresias e manter a unidade doutrinária. Encontramos no Novo Testamento algumas declarações rudimentares de confissões fé: A confissão de Natanael (Jo 1.50); a confissão de Pedro (Mt 16.16; Jo 6.68); a confissão de Tomé (Jo 20.28); a confissão do Eunuco (At 8.37); e artigos elementares de fé (Hb 6.1-2).

A Faculdade Teológica IBETEL professa o seguinte Credo alicerçado fundamentalmente no que se segue:

(a) Crê em um só Deus eternamente subsistente em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo (Dt 6.4; Mt 28.19; Mc 12.29).

(b) Na inspiração verbal da Bíblia Sagrada, única regra infalível de fé

normativa para a vida e o caráter cristão (2Tm 3.14-17).

(c) No nascimento virginal de Jesus, em sua morte vicária e expiatória, em sua ressurreição corporal dentre os mortos e sua ascensão vitoriosa aos céus (Is 7.14; Rm 8.34; At 1.9).

(d) Na pecaminosidade do homem que o destituiu da glória de Deus, e

que somente o arrependimento e a fé na obra expiatória e redentora de Jesus Cristo é que o pode restaurar a Deus (Rm 3.23; At 3.19).

(e) Na necessidade absoluta no novo nascimento pela fé em Cristo e pelo

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poder atuante do Espírito Santo e da Palavra de Deus, para tornar o homem digno do reino dos céus (Jo 3.3-8).

(f) No perdão dos pecados, na salvação presente e perfeita e na eterna

justificação da alma recebidos gratuitamente na fé no sacrifício efetuado por Jesus Cristo em nosso favor (At 10.43; Rm 10.13; 3.24-26; Hb 7.25; 5.9).

(g) No batismo bíblico efetuado por imersão do corpo inteiro uma só vez

em águas, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, conforme determinou o Senhor Jesus Cristo (Mt 28.19; Rm 6.1-6; Cl 2.12).

(h) Na necessidade e na possibilidade que temos de viver vida santa mediante a obra expiatória e redentora de Jesus no Calvário, através do poder regenerador, inspirador e santificador do Espírito Santo, que nos capacita a viver como fiéis testemunhas do poder de Jesus Cristo (Hb 9.14; 1Pe 1.15).

(i) No batismo bíblico com o Espírito Santo que nos é dado por Deus mediante a intercessão de Cristo, com a evidência inicial de falar em outras línguas, conforme a sua vontade (At 1.5; 2.4; 10.44-46; 19.1-7).

(j) Na atualidade dos dons espirituais distribuídos pelo Espírito Santo à Igreja para sua edificação conforme a sua soberana vontade (1Co 12.1-12).

(k) Na segunda vinda premilenar de Cristo em duas fases distintas. Primeira - invisível ao mundo, para arrebatar a sua Igreja fiel da terra, antes da grande tribulação; Segunda - visível e corporal, com sua Igreja glorificada, para reinar sobre o mundo durante mil anos (1Ts 4.16.17; 1Co 15.51-54; Ap 20.4; Zc 14.5; Jd 14).

(l) Que todos os cristãos comparecerão ante ao tribunal de Cristo para receber a recompensa dos seus feitos em favor da causa de Cristo, na terra (2Co 5.10).

(m) No juízo vindouro que recompensará os fiéis e condenará os infiéis, (Ap 20.11-15).

(n) E na vida eterna de gozo e felicidade para os fiéis e de tristeza e tormento eterno para os infiéis (Mt 25.46).

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Sumário Apresentação 5 Prefácio 7 Declaração de fé 9 INTRODUÇÃO

A Filosofia no Mundo Pragmático 13 Para que Filosofia da Educação? 15 A filosofia no campo da educação 16

CAPÍTULO 1 Filosofia Analítica e Filosofia da Educação 19

1.1. Filosofia analítica 20 1.2. Filosofia da educação 22

CAPÍTULO 2 A Filosofia da Educação e os Conceitos de Ensino e Aprendizagem 25

2.1. Pode haver ensino sem que haja aprendizagem? 25 2.2. A questão da intenção 28 2.3. O conceito de ensino 30 2.4. Pode haver aprendizagem sem que haja ensino? 32 2.5. Educação, Ensino e Aprendizagem 35 2.6. O Conceito de educação 36 2.7. Pode haver ensino e aprendizagem sem que haja educação? 38 2.8. Um parêntese 40 2.9. Pode haver educação sem que haja ensino e aprendizagem? 41

CAPÍTULO 3 Educação Formal e Informal e a Questão dos Objetivos da Educação 43

3.1. Educação formal e educação informal 43 3.2. A questão dos objetivos educacionais 45 3.3. Educação humanística e educação técnico-profissionalizante 45 3.4. Educação e democracia 47 3.5. Educação e sociedade 47 3.6. Educação e a chamada “classe dominante” 48 3.7. A educação que é e a que deve ser 49 3.8. O grande dilema da educação 49 3.9. Educação e o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo 50

CAPÍTULO 4 Educação e Doutrinação 51

4.1. Considerações gerais 51 4.2. Conteúdos intelectuais e cognitivos 52 4.3. O ensino e aprendizagem de conteúdos 52 4.4. O conceito de doutrinação 53

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4.5. Os conteúdos como critério de doutrinação 54 4.6. A Intenção como critério de doutrinação 54 4.7. Os métodos como critério de doutrinação 55 4.8. As conseqüências como critério de doutrinação 56 4.9. Observações específicas 57

CAPÍTULO 5 A Doutrinação Infanto Juvenil 59

5.1. Doutrinação e o dilema da educação 59 5.2. Porque a doutrinação é censurável e indesejável 60 5.3. Filosofia da educação e teoria educacional 61

CAPÍTULO 6 Conceituando a educação 65

6.1. O ato de educar 65 6.2. Fins da educação 66 6.3. Educação e política 68

CAPÍTULO 7 A Filosofia da Escola Tradicional 69

7.1. Origem da escola tradicional 69 7.2. Características gerais dessa escola 70 7.3. As muitas faces da escola tradicional 71 7.4. Críticas 77

CAPÍTULO 8 A Filosofia da Escola Nova 79

8.1. Aprender a aprender 79 8.2. Características gerais da escola nova 80

CAPÍTULO 9 Teorias antiautoritárias da Escola Tradicional e da Escola Nova 83

9.1. Contra a autoridade 83 9.2. Características gerais 84

Conclusão 87 Referências 91

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Introdução

A Filosofia no Mundo Pragmático

“No mundo pragmático em que vivemos, a filosofia parece não servir para absolutamente nada. Ela não consta das rubricas orçamentárias, não tem dotação, não recebe verbas específicas... Mal consta dos currículos escolares e os filósofos são, em sua maioria, uns ilustres desempregados...”.

No entanto, ela serve, ou melhor, comanda tudo. Está presente em qualquer decisão séria que tomamos, em qualquer estratégia que implantamos. Pode-se dizer que ela é onipresente. Conforme Jaspers (1977. p. 13) “a filosofia é imprescindível ao homem. Está sempre presente e manifesta nos provérbios tradicionais, em máximas filosóficas correntes, em condições dominantes, quais sejam, por exemplo, a linguagem e as crenças políticas”.

É interessante notar que as grandes crises históricas foram férteis em pensamento filosófico. Após a grande crise européia conseqüente à invasão dos bárbaros, surgiram as grandes sínteses da Idade Média. A revolução copernicana que deu origem ao mundo moderno fez aparecerem as filosofias racionalistas. À Segunda Guerra Mundial seguiu-se o existencialismo...Nosso mundo, nosso país estão certamente em crise. Estamos sentados sobre um vulcão que ameaça explodir. E já se esboçam linhas novas de concepção filosófica.

Haverá uma relação necessária entre crise e filosofia? De certo. A crise produz o que os gregos denominavam “thaumásia”, ou seja, admiração, pasmo, espanto que eles apontavam como sendo a origem do pensar filosófico. Jaspers (ib) acrescenta que a consciência do que ele chama “situações-limite” – ter de morrer, ter de sofrer, ter de lutar, estar sujeito ao acaso e incorrer inelutavelmente em culpa - também nos leva a filosofar. Não será porque esta consciência nos põe também ela em crise, causando espanto ou pasmo, a thaumásia dos gregos?

Poderíamos, talvez, dizer que a crise gerando o espanto ou pasmo nos torna conscientes de nossa fragilidade física, intelectual, social ou moral, levando-nos a encarar a realidade como um problema na acepção que lhe dá Julián Marías (apud Saviani, l980. p. 20) de situação dramática em que se está e não se pode mais continuar, exigindo, assim , uma solução. Ou seja, a crise, transformada em problema, desperta a reflexão ou “ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, vasculhar numa busca constante de significado” (Saviani, 1980. p. 23). Quando esta reflexão se torna, acrescenta Saviani (ib) radical, rigorosa e global ou de conjunto nasce a filosofia.

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Ao dizermos reflexão radical, devemos entender a expressão em seu sentido literal: trata-se de uma reflexão que vá à raiz dos problemas, buscando atingir suas últimas e mais profunda ramificações. Quando dizemos que a reflexão deve ser rigorosa, entendemo-la como sistemática e metódica. A reflexão deve ser ainda global ou de conjunto, isto é, realizada de modo a abarcar todos os dados, de modo a não deixar escapar nenhum fio condutor no difícil trabalho de discernir no emaranhado das raízes as imbricações fundamentais.

Resumindo, podemos com Saviani (1980. p. 27) afirmar que “a filosofia é uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas que a realidade apresenta”.

Já se vê que a filosofia é, antes de mais nada, uma atitude e uma tarefa das quais resultam “filosofias” como produto. Atitude ou disposição de amor à verdade, que supõe, sobretudo, muita humildade e nenhuma arrogância de espírito, como afirma Jaspers (1977. p. 14), ao explicar o significado, a um tempo etimológico e histórico, do termo: “A palavra grega ‘philósophos’ foi formada em oposição a ‘sophós’ e significa “o que ama o saber”, em contraposição a ao possuidor de conhecimentos (dono da verdade) que se designava por sábio. Este sentido da palavra manteve-se até hoje: é a demanda da verdade e não a sua posse que constitui a essência da filosofia...”

Das crises, portanto, surge a filosofia como fruto da necessidade humana de compreender a realidade e de fundamentar a ação que visa a transformá-la. Será a filosofia algo de intermitente, que apenas de vez em quando desponta ao longo da história? Não, pois a história é - e cada vez mais - uma longa e funda crise na qual há, certamente, períodos mais dolorosos e enfáticos, mas que por sua contínua e surpreendente novidade está sempre a nos chocar, suscitando-nos, em conseqüência, uma atitude constante de reflexão e de busca. A filosofia é, assim, onipresente, pois, se ninguém escapa ao mundo e à história, ninguém, a não ser por demência, escapa à crise: “Não se pode fugir à filosofia. Pode-se perguntar apenas se ela é consciente ou inconsciente, boa ou má, confusa ou clara. Quem recusa a filosofia está realizando um ato filosófico de que não tem consciência” (Jaspers, 1977. p. 13).

A afirmação final de Jaspers não faz mais que atualizar o velho argumento aristotélico: “Ou se deve filosofar, ou não se deve filosofar. Se não se deve filosofar, isto só em nome de uma filosofia. Portanto, mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar” (cf. Bochenski, 1973. p. 23).

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Filosofia da Educação – volume 1 ‘Me philosophetéon, philosophetéon’, declarava Aristóteles: mesmo que não se deva filosofar, deve-se filosofar. Não há como fugir à filosofia. É verdade que nem todos têm condições de estabelecer uma reflexão que vá até as raízes, que siga com rigor um método, que possua todos os dados necessários a uma visão de conjunto da realidade, sobretudo se considerarmos que esses dados se avolumam e complexificam, à medida que avançam as ciências. Todos tentam, entretanto, consciente ou inconscientemente, com os recursos de que dispõem, com as informações que têm à mão, dar uma resposta aos problemas fundamentais, explicar as “situações-limite”, dar um sentido à vida e à realidade: todos, de algum modo, filosofam.

Uma observação final deve ser ainda acrescentada: “Filosofar significa estar a caminho. As interrogações são mais importantes que as respostas e cada resposta se transforma em nova interrogação” (Jaspers, 1977. p 14). A filosofia é aberta, por mais que o filósofo pretenda dar respostas definitivas. A realidade é rebelde e não se deixa apanhar com facilidade em nossas redes de compreensão. É por demais complexa e dinâmica para que possamos emitir sobre ela uma palavra definitiva. Nem sempre – e isso ocorre com freqüência – consideramos todos os dados disponíveis ou escolhemos as informações capazes de nos conduzirem à raiz mestra dos problemas ou das crises. Ou, então, quando parece que a atingimos, damo-nos conta de que ainda estamos na superfície e de que é necessário cavar mais fundo: “cada resposta se transforma em nova interrogação”. Não importa o esforço! É melhor seguir que estagnar. Além disso, não caminhamos sozinhos. O que não descobrimos, outros descobrem ou descobrirão e nossas chamas juntas tornarão o mundo, se não transparente, pelo menos mais claro!

A filosofia é, pois, imprescindível. Não serve para nada e serve para tudo. Não há como negá-la: ela se impõe por si mesma! Refugá-la, só deixando de ser o que somos: consciências que refletem num mundo em permanente crise, num constante devir.

Para que Filosofia da Educação?

Talvez seja mais pertinente perguntar: para que filosofia na educação? A resposta é simples: porque educação é, afinal de contas, o próprio “tornar-se homem” de cada homem num mundo em crise.

Não há como educar fora do mundo. Nenhum educador, nenhuma instituição educacional pode colocar-se à margem do mundo, encarapitando-se numa torre de marfim. A educação, de qualquer modo que a entendamos, sofrerá necessariamente o impacto dos problemas da realidade em que acontece, sob pena de não ser educação. Em função dos problemas existentes na

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realidade é que surgem os problemas educacionais, tanto mais complexos quanto mais incidem na educação todas as variáveis que determinam uma situação. Deste modo, a “Filosofia na educação” transforma-se em “Filosofia da Educação” enquanto reflexão rigorosa, radical e global ou de conjunto sobre os problemas educacionais. De fato, os problemas educacionais envolvem sempre os problemas da própria realidade. A Filosofia da Educação apenas não os considera em si mesmos, mas enquanto imbricados no contexto educativo.

Penso que disto decorrem duas conseqüências muito simples, óbvias até! A primeira é que todo educador deve filosofar. Melhor ainda, filosofa sempre, queira ou não, tenha ou não consciência do fato. Só que nem sempre filosofa bem. A este respeito afirma Kneller (1972. p. 146): “se um professor ou líder educacional não tiver uma filosofia da educação, dificilmente chegará a algum lugar. Um educador superficial pode ser bom ou mau. Se for bom, é menos bom do que poderia ser e, se for mau, será pior do que precisava ser”. Que problemas no campo da educação exigem de nós uma reflexão filosófica, nos termos acima explicitados? São muitos. Permitam-me apontar apenas alguns.

Já que a educação é o processo de tornar-se homem de cada homem, é necessário refletir sobre o homem para que se possa saber o “para onde” se deve orientar a educação. É necessário, porém, que esta reflexão não seja unicamente teórica, abstrata, desencarnada. É preciso levar em conta a situação espácio-temporal em que ocorre o processo. Com efeito, não importa apenas o “tornar-se homem”, mas o “tornar-se homem hoje no Brasil”. Só desta forma podemos estabelecer com clareza o que, por exemplo, se tem convencionalmente chamado de “marco referencial”, a partir do qual, numa instituição educativa, currículo, planejamento e atividades podem atingir um mínimo de coerência e de eficiência.

Que teoria de aprendizagem adotar? Que métodos e técnicas utilizar? Já afirmavam Binet e Simon correr “o risco de um cego empirismo quem se conforma em aplicar um método pedagógico sem investigar a doutrina que lhe serve de alma”. Não há métodos neutros. Não há técnicas neutras. No bojo de qualquer teoria, de qualquer método, de qualquer técnica está implícita uma visão de homem e de mundo, uma filosofia.

A filosofia no campo da educação

A filosofia é, assim, norteadora de todo o processo educativo. O maior problema educacional brasileiro sempre foi e ainda é, a meu ver, o denunciado por Anísio Teixeira no título de uma de suas obras principais: “Valores proclamados e valores reais na educação brasileira”. Quer em

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Filosofia da Educação – volume 1 nível de sistema, quer em nível de escola, proclamamos belíssimos princípios filosófico-educacionais. Na prática, entretanto, caminhamos ao sabor das ideologias e das novidades e - o que é pior - sem nos darmos conta da incoerência existente entre nossas palavras e nossos atos.

A segunda conseqüência a ser tirada do que antes dissemos é que também o educando deve filosofar, ou seja, deve refletir sistematicamente, buscando as raízes dos problemas - seus e de seu tempo - de modo a formar uma “visão de mundo” e adquirir criticamente princípios e valores que lhe orientem a vida. Só assim serão homens e não robôs. É preciso, pois, municiá-lo de instrumentos racionais e afetivos para que se habitue a ser crítico, a não se contentar com qualquer resposta, a colocar sempre e em tudo uma pitada razoável de dúvida, a cavar fundo e não se intimidar perante a tarefa ingrata de estar sempre questionando e se questionando.

A partir de minha já longa experiência de magistério, posso afirmar que há sempre fome de filosofia. Basta levantar um problema nos termos acima descritos para que se alcem as antenas, sobretudo as juvenis! Talvez porque, tendo uma percepção não muito nítida, mas agudamente sentida da crise, faltem aos jovens o instrumental necessário para explicitá-la, analisá-la e julgá-la, em razão do banimento a que assistimos da filosofia, até mesmo de nossos currículos escolares.

Não há, portanto, como fugir à filosofia no campo da educação. Ela se relaciona intimamente com a função nem sempre levada a sério e, não obstante, fundamental, de avaliar. De fato, a avaliação resume, de certo modo, ou acompanha, como um vetor ou como um eixo orientador, todo o processo educacional. Ela se faz presente no início do processo, ao estabelecermos as metas; no seu decurso, quando traçamos e executamos as estratégias; no final, quando julgamos o que e quanto foi cumprido. Ora, avaliar é emitir juízos de valor e estes implicam sempre, queiramos ou não, consciente ou inconscientemente uma posição filosófica, uma filosofia.

Uma palavra, talvez, resuma tudo o que tentamos dizer: a filosofia é o aval da educação! (Prof. José J. F. Lara).

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Capítulo 1

Filosofia Analítica e Filosofia da Educação

Em que consiste a filosofia da educação? A resposta a esta pergunta pode variar, dependendo do que se entende por filosofia (e, naturalmente, também do que se entende por educação, mas a própria conceituação de educação já envolve um certo filosofar sobre a educação). Ao leigo pode parecer incrível que filósofos profissionais não tenham conseguido chegar a um acordo a respeito do que seja a filosofia, isto é, acerca de seu próprio objeto de estudo, mas esta é a pura verdade. A questão da natureza e da tarefa da filosofia já é, ela própria, um problema filosófico, e, como tal, comporta uma variedade de respostas. A muitos pode parecer que esta proliferação de respostas seja indicativa do próprio fracasso da filosofia. Outros vêem nesta situação a grande riqueza do pensamento humano, que, para cada problema que lhe é proposto, é capaz de imaginar uma variedade de soluções, todas elas, em maior ou menor grau, razoáveis e dignas de consideração, e todas elas contribuindo, de uma maneira ou de outra, para uma compreensão mais ampla e profunda dos problemas com que se depara o ser humano”. Concordamos com estes últimos, e somos da opinião de que, embora muitos problemas filosóficos milenares não tenham (ainda?) sido solucionados, nossa compreensão deles, hoje, não é idêntica à dos filósofos que os formularam pela primeira vez, sendo muito mais profunda e ampla em virtude das várias respostas que já lhes foram sugeridas. Isto significa que há progresso na filosofia, apesar de este progresso não poder ser medido quantitativamente, em referência ao número de problemas solucionados, podendo somente ser constatado através de uma visão qualitativa, que leva em conta o aprofundamento e a ampliação de nossa compreensão desses problemas.

Não cremos, portanto, ser impróprio oferecer uma tentativa de “definição” da filosofia, se se mantém em mente que esta sugestão de definição não é feita dogmaticamente, como se fosse a única possível, ou mesmo a única razoável. Outras propostas de definição da filosofia existem que são plausíveis e razoáveis, e que, possivelmente, ao invés de se contraporem àquela que vamos sugerir, como alternativas, justapõem-se a ela como maneiras complementares de ver a filosofia.

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1.1 Filosofia analítica

A filosofia, do ponto de vista pólo analítico, é aquela atividade reflexiva, realizada, através de análise e de crítica, pelo ser pensante, no exame do significado e dos fundamentos de conceitos, crenças, convicções e pressuposições básicas, mantidos por ele próprio ou por outros seres pensantes. Essa caracterização geral da filosofia deixa entrever que a atividade filosófica é uma atividade reflexiva de segunda ordem. O que se quer dizer por isto? Quer-se dizer que a filosofia pressupõe outros tipos de atividade, na verdade outros tipos de atividade reflexiva, como a ciência, a história, a religião, a política, etc., e mesmo o chamado senso comum. Por exemplo: o objeto de reflexão do cientista natural é, em linhas gerais, a natureza; o do historiador é a história; e assim por diante. Essas atividades de reflexão são ‘de primeira ordem’: concentram-se em diferentes aspectos da realidade, ou do ‘ser’. Elas partem, naturalmente, de certas pressuposições (por exemplo, de que os fenômenos do mundo natural estão causalmente relacionados, de que é possível ter conhecimento de eventos que não são mais objetos de nossa possível percepção, como é o caso de eventos históricos, etc.), e resultam em certas crenças e convicções (como, por exemplo, acerca da natureza da matéria, ou a respeito de uma certa seqüência de eventos históricos). O filósofo analítico não reflete sobre as mesmas coisas que são objeto de reflexão por parte do cientista natural e do historiador - se o fizesse, estaria deixando de ser filósofo e passando a ser cientista natural ou historiador (algo, por sinal, perfeitamente possível). Ele reflete sobre as reflexões do cientista natural e do historiador, buscando trazer à tona (se necessário for), elucidar, e criticamente examinar os conceitos e as pressuposições básicas destes últimos, procurando, no processo, entender seus modos de argumentação e inferência, etc. Em poucas palavras, a filosofia analítica é reflexão (de um certo tipo) sobre a reflexão, é o pensamento pensando sobre si próprio. Para dar um tom mais contemporâneo a essa caracterização, poderíamos dizer que, desde que a reflexão e o pensamento se expressam através de linguagem, através do discurso humano, em suas várias manifestações, a filosofia analítica é discurso sobre o discurso: o filósofo reflete, não sobre a natureza e a história (para continuar com nossos exemplos anteriores), mas sim sobre o que cientistas naturais e historiadores dizem acerca da natureza e da história. Por isso é que chamamos a atividade filosófica de uma atividade reflexiva de segunda ordem: ela se exerce sobre outras atividades reflexivas, que se constituem, portanto, no objeto da filosofia.

É desnecessário enfatizar que o próprio cientista natural (ou o historiador) pode refletir sobre aquilo que está dizendo acerca da natureza (ou da história). Quando assim reflete, porém, está realizando atividade reflexiva de segunda ordem - está, portanto, nessas ocasiões, provavelmente, filosofando, e não fazendo ciência (ou história).

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Filosofia da Educação – volume 1 Parece desnecessário, também, acrescentar que a filosofia não se preocupa somente com o discurso científico e histórico, como poderiam sugerir nossos exemplos. O filósofo reflete sobre qualquer tipo de reflexão de primeira ordem: reflexão moral, reflexão religiosa, reflexão artística, etc., e também sobre as reflexões do senso comum. Por isso, há muitas “filosofias de...”: filosofia da ciência (que pode ser ainda mais especializada, havendo a filosofia das ciências naturais, das ciências biológicas, das ciências humanas), filosofia da história, filosofia da religião, filosofia da arte, filosofia do direito, e assim por diante, incluindo-se aí, naturalmente, também a filosofia da educação.

É necessário, porém, ressaltar que nem toda atividade reflexiva de segunda ordem é, necessariamente, filosófica. O sociólogo, por exemplo, ou o psicólogo, pode refletir sobre a atividade do cientista, e sobre ela fazer e responder perguntas que sejam estritamente sociológicas, ou psicológicas, e não filosóficas. A sociologia da ciência não faz as mesmas perguntas sobre a atividade do cientista que são feitas pela filosofia da ciência. Se, porém, há outros tipos de atividade reflexiva de segunda ordem, além da filosófica, o que é que caracteriza as perguntas distintamente filosóficas? A resposta já esta contida no que foi dito acima: a filosofia busca elucidar e examinar criticamente os conceitos, as convicções e pressuposições básicas, os modos de argumentação e inferência, etc; existentes dentro de uma dada área de atividade intelectual.

Assim sendo, um psicólogo pode fazer vários tipos de pergunta acerca da atividade científica: Como é que, do ponto de vista psicológico, alguém chega a descobrir ou formular uma lei ou uma teoria? Quais os mecanismos psicológicos que estão envolvidos na criatividade e inventividade científicas? É a criatividade científica diferente, do ponto de vista psicológico, da criatividade artística? Da mesma maneira, um sociólogo pode perguntar sobre a relação existente entre ciência e sociedade, acerca da medida em que teorias científicas são condicionadas pelo meio-ambiente em que aparecem, a respeito do papel da ciência e do cientista na sociedade, etc. As perguntas que o filósofo que reflete sobre a ciência faz, porém, são do seguinte tipo: O que se entende por ciência? Quais são os critérios de cientificidade? O que diferencia teorias científicas de outros tipos de teoria (digamos, teorias metafísicas e especulativas)? O que leva cientistas a considerar uma teoria melhor do que a outra, quando ambas se propõem a explicar os mesmos fenômenos? Qual a relação entre teoria e observação? Existe verdade na ciência, ou apenas probabilidade? O alvo da ciência é produzir teorias altamente prováveis ou pouco prováveis, mas de alto poder explicativo e preditivo? Existe objetividade e racionalidade na ciência? Se não, por quê? Se sim, em que sentido e em que medida? E assim por diante.

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Pode-se ver, imediatamente, que virtualmente todas essas perguntas filosóficas poderiam ser resumidas na seguinte questão: em que sentido e em que medida se pode falar em conhecimento científico? Essas perguntas são todas epistêmicas (episteme é o termo grego que se traduz por “conhecimento”): buscam analisar e elucidar a noção de conhecimento científico e os conceitos e premissas que constituem os fundamentos desse conhecimento. Perguntas semelhantes podem ser feitas em relação a qualquer atividade intelectual. É isto que faz com que a epistemologia, a teoria do conhecimento, ou seja, aquela área da filosofia que investiga a natureza, o escopo (ou a abrangência) e os limites do conhecimento humano, em geral, seja de suma importância no estudo da filosofia.

1.2 Filosofia da educação

Mas falemos agora em filosofia da educação. A filosofia analítica da educação, seguindo a caracterização apresentada nos parágrafos anteriores, não discorre sobre o fenômeno da educação, como tal, mas sim sobre o que tem sido dito acerca desse fenômeno (por exemplo, por sociólogos da educação, psicólogos da educação, ou por qualquer pessoa que reflita sobre a educação). Não resta a menor dúvida de que uma das primeiras e mais importantes tarefas da filosofia da educação, a partir da caracterização da tarefa da filosofia sugerida acima, é a análise e clarificação do conceito de “educação”. Fala-se muito em educação. “Educação é direito de todos”, “educação é investimento”, “a educação é o caminho do desenvolvimento”, etc. Mas o que realmente será essa educação, em que tanto se fala? Será que todos os que falam sobre a educação usam o termo no mesmo sentido, com idêntico significado? Dificilmente. É a educação transmissão de conhecimentos? É a educação preparação para a cidadania democrática responsável? É a educação o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo? É a educação adestramento para o exercício de uma profissão? As várias respostas, em sua maioria conflitantes, dadas a essas perguntas são indicativas da adoção de conceitos de educação diferentes, muitas vezes incompatíveis, por parte dos que se preocupam em responder a elas. Este fato, por si só, já aponta para a necessidade de uma reflexão sistemática e profunda sobre o que seja a educação, isto é, sobre o conceito de educação.

Assim que se começa a fazer isso, porém, percebe-se que a tarefa de clarificação e elucidação do conceito de educação é extremamente complexa e difícil. Ela envolve não só o esclarecimento das relações existentes ou não entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e profissionalização, etc. Envolve, também, o esclarecimento das relações que porventura possam existir entre o processo educacional e outros processos que, à primeira vista, parecem ser seus parentes chegados: doutrinação, socialização, aculturação, treinamento, condicionamento, etc. Uma análise que tenha por objetivo o esclarecimento do sentido dessas noções, dos critérios de sua aplicação, das suas implicações, e da sua relação entre si e com outros conceitos educacionais é tarefa da filosofia

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Filosofia da Educação – volume 1 da educação e é condição necessária para a elucidação do conceito de educação.

Mas há ainda uma outra família de conceitos que se relaciona estreitamente com a educação: a dos conceitos de ensino e aprendizagem. Qual a relação existente entre educação e ensino, entre educação e aprendizagem, e entre ensino e aprendizagem? Façamos uma lista de possíveis perguntas a serem feitas acerca do relacionamento dessas noções:

• Pode haver educação sem que haja ensino? • Pode haver educação sem que haja aprendizagem? • Pode haver ensino sem que haja educação? • Pode haver aprendizagem sem que haja educação? • Pode haver aprendizagem sem que haja ensino? • Pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

Tem se criticado muito uma visão da educação que coloca muita ênfase no ensino (e, conseqüentemente, no professor). O importante, afirma-se, não é o ensino, e sim a aprendizagem. Os mais exagerados chegam quase a afirmar: “Morte ao ensino! Viva a aprendizagem!” Outros fazem uso de certos slogans meio obscuros: “Toda aprendizagem é auto-aprendizagem”. Incidentalmente, faz-se muito uso, em livros e discursos sobre a educação, de slogans cujo sentido nem sempre é muito claro. Um outro slogan muito usado, nesse contexto, é o seguinte: “Não há ensino sem aprendizagem”. Parece claro que, para poder julgar quanto à verdade ou à falsidade dessas afirmações, é indispensável que os conceitos de ensino e aprendizagem tenham sentidos claros e específicos - o que, infelizmente, não acontece com muita freqüência. É necessário, portanto, que o sentido desses conceitos seja esclarecido e que sua relação com o conceito de educação seja elucidada, e a filosofia da educação pode ser de grande valia nessa tarefa.

Para terminar essa primeira parte, que tem por finalidade caracterizar a filosofia da educação, dentro da perspectiva mais geral de uma visão da filosofia que foi explicitada nos primeiros parágrafos, deve-se fazer menção de um outro conjunto de problemas relacionado, de alguma forma, com os já mencionados, mas que, por razão de espaço, não será explicitamente discutido: a questão da relação entre educação e valores. Este problema tem vários aspectos. Um deles é o seguinte: é tarefa da educação transmitir valores? Muitos já observaram que, seja ou não tarefa da educação transmitir valores, ela de fato os transmite, pelo menos de maneira implícita. Outros afirmam que, embora seja tarefa da educação transmitir valores, a educação moral, como às vezes é chamada a transmissão de valores através da educação, não é tarefa da educação escolar, isto é, da educação que se realiza no âmbito de uma instituição chamada escola, e sim da educação que tem lugar no contexto da família, ou talvez, se for o caso, da igreja. Esta resposta levanta, em um contexto específico, o problema mais amplo da relação entre educação e escola. Para muitos, quando alguém está

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falando em educação está, automaticamente, falando em escolas, e vice-versa. Mas a educação certamente parece ser algo que transcende os limites da escola, e hoje em dia fala-se muito em “educação sem escolas”. Os proponentes do ponto de vista que mencionamos acima acreditam que pelo menos uma parte da educação, aquela que diz respeito à transmissão de valores, deve ser levada a efeito fora da escola. Todos esses problemas são complexos, e embora a filosofia da educação não tenha respostas prontas para eles, ela pode contribuir muito para sua solução satisfatória, ajudando na elucidação e clarificação dos principais conceitos envolvidos nesse conjunto de problemas.

Antes de avançarmos neste trabalho, faremos duas pequenas observações. A primeira é um lembrete de que os problemas aqui mencionados como sendo do âmbito da filosofia da educação de maneira alguma esgotam as questões a que um filósofo da educação, como tal, pode se dirigir, mesmo que ele seja partidário da conceituação de filosofia e filosofia da educação aqui proposta. Há uma série de outros problemas, a que não se fez referência, que estão, legitimamente, dentro da província da filosofia da educação como aqui conceituada. No que foi esboçado acima e no que será discutido abaixo temos apenas uma amostra de como alguns conceitos educacionais podem ser analisados filosoficamente.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que a caracterização da filosofia da educação aqui apresentada é uma caracterização possível, que é sugerida a partir de uma conceituação analítica da filosofia, a qual não é, de maneira alguma, a única possível. Muitos filósofos discordam da orientação sugerida aqui e apresentam, conseqüentemente, uma visão diferente da natureza e tarefa da filosofia da educação. Em muitos dos casos a visão por eles sugerida apenas complementa (e não substitui) a apresentada no presente trabalho. Em outros casos é bem possível que as concepções sejam mutuamente exclusivas. Nos últimos parágrafos faremos menção do nosso ponto de vista acerca da relação entre a filosofia da educação e a teoria da educação, segundo o qual muita coisa que foi e é apresentada como filosofia da educação deve ser colocada no âmbito da teoria da educação. Contudo, é apenas no contexto de discussões acadêmicas acerca do conceito de filosofia da educação que faz alguma diferença designar posições acerca da educação como pertencentes à teoria, e não à filosofia da educação.

‘ Embora a lógica talvez pudesse recomendar que começássemos com o conceito de educação, quer nos parecer que, do ponto de vista didático, seja mais recomendável que a discussão desses conceitos educacionais básicos seja iniciada pelos conceitos de ensino e aprendizagem, pois o leitor, provavelmente, estará mais familiarizado com eles do que com o mais difuso e abstrato conceito de educação.

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Filosofia da Educação – volume 1

Capítulo 2

A Filosofia da Educação e os Conceitos de Ensino e

Aprendizagem

Comecemos nossa discussão dos conceitos de ensino e aprendizagem fazendo a seguinte pergunta: pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

2.1 Pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

Suponhamos uma situação em que um professor universitário apresente, em detalhes, os aspectos mais difíceis e complicados da teoria da relatividade de Einstein a grupo de crianças de sete anos. Suponhamos que o professor em questão seja profundo conhecedor do assunto e faça uma brilhante exposição, utilizando meios audiovisuais ou quaisquer outros recursos que a didática moderna possa recomendar. Apesar de tudo isso, as crianças nada aprendem daquilo que ele apresentou. Podemos-nos dizer que, embora as crianças nada tenham aprendido acerca da teoria da relatividade de Einstein, o professor esteve ensinando durante sua apresentação? A resposta afirmativa, neste caso claramente extremo e exagerado, parece pouco plausível. Mas suponhamos - uma suposição, agora, não tão absurda - que a audiência desse professor fosse composta, não de crianças de sete anos, mas de universitários no último ano do curso de física, e que o resultado fosse o mesmo: os alunos nada aprenderam acerca da teoria da relatividade de Einstein através da exposição. Podemos-nos dizer que, embora o professor tivesse estado a ensinar a teoria da relatividade, os alunos não a aprenderam? A resposta afirmativa, aqui, parece bem mais plausível. Mas qual é, realmente, a diferença entre a primeira e a segunda situação? Vamos colocar esta questão, por enquanto, entre parênteses, para analisar algumas respostas que têm sido dadas à pergunta com que iniciamos este parágrafo: pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

Muitas pessoas dão uma resposta negativa a esta pergunta, afirmando que não há ensino sem aprendizagem. Este é um dos slogans que freqüentemente aparecem na literatura educacional. Correndo o risco de caracterizar algumas posições altamente complexas de uma maneira um

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pouco simplista, poderíamos dizer que, em relação às duas situações que imaginamos no parágrafo anterior, os que afirmam que não há ensino sem aprendizagem podem se dividir em dois grupos: de um lado estariam os que afirmam que naquelas situações não houve ensino, visto não ter havido aprendizagem. Do outro lado, porém, estariam aqueles que, quando confrontados com situações desse tipo, levantam a seguinte questão: Será que não houve mesmo aprendizagem? Ainda supondo que os alunos, tanto em um como no outro caso, nada tenham aprendido acerca da teoria da relatividade de Einstein, argumentam, será que eles não aprenderam alguma coisa através da exposição do professor? Eles poderão ter aprendido, por exemplo, no caso das crianças de sete anos, que, embora o professor estivesse falando o tempo todo, ninguém estava entendendo nada, que as aulas com a professora regular são muito mais divertidas, que o retro-projetor utilizado pelo professor é um “negócio bacana”, etc. No caso dos universitários, eles poderão ter aprendido que o professor devia desconhecer o nível da classe para dar uma aula dessas, que o curso que eles fizeram não deve ter sido muito bom, se não os capacitou a entender uma apresentação sobre a teoria da relatividade de Einstein, etc. Em poucas palavras: os alunos, em um como no outro caso, devem ter aprendido alguma coisa, e, conseqüentemente, houve ensino nas situações imaginadas - este é o argumento.

A dificuldade com essa sugestão é óbvia: embora possa ter havido aprendizagem nas situações imaginadas, o que os alunos aprenderam não foi aquilo que o professor lhes estava expondo! Poderiam, talvez, ter aprendido as mesmas coisas, se a exposição houvesse sido sobre a química de Lavoisier, ou sobre as peças de Sheakespeare, ou sobre a filosofia de Kant. Isto, por si só, já indica que algo não está muito certo e que há necessidade de que algumas coisas sejam esclarecidas e colocadas em seus devidos lugares. Vamos, de uma maneira muito simples e elementar, tentar esclarecer alguns desses problemas.

Se prestarmos atenção a algo muito simples, como a regência do verbo ensinar, poderemos começar a esclarecer a situação. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. A situação de ensino é uma situação que envolve três componentes básicos: alguém que ensina (digamos, o professor), alguém que é ensinado (digamos, o aluno), e algo que o primeiro ensina ao segundo (digamos, o conteúdo). Não faz sentido dizer que fulano esteve ensinando sicrano a tarde toda sem mencionar (ou sugerir) o que estava sendo ensinado (se frações ordinárias, andar de bicicleta, amarrar os sapatos, atitude de tolerância, etc.). Também não faz sentido dizer que beltrano esteve ensinando História do Brasil nas duas últimas horas, sem mencionar (ou indicar) a quem ele estava ensinando História do Brasil (se a seus filhos, se aos alunos da quarta série, etc.).

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Filosofia da Educação – volume 1 Nos dois casos que imaginamos, o professor universitário estava expondo a um grupo de alunos um certo conteúdo, a saber, a teoria de relatividade de Einstein. Este conteúdo os alunos, por hipótese, não aprenderam. Que eles tenham aprendido outras coisas, as quais ele, claramente, por hipótese, não estava interessado em transmitir-lhes, parece irrelevante à questão: pode haver ensino sem que haja aprendizagem? Por isso, vamos deixar de lado o “segundo grupo” dos que afirmam que não há ensino sem aprendizagem e discutir a posição do “primeiro grupo”, ou seja, daqueles que afirmam que, visto não ter havido aprendizagem (da teoria da relatividade, naturalmente) nos casos em questão, não houve ensino.

Será que esta afirmação é verdadeira? Cremos que não. É importante notar que a afirmação cuja veracidade aqui vai ser colocada em dúvida é uma afirmação composta, que diz (pelo menos) duas coisas: em primeiro lugar, afirma que não houve ensino; em segundo lugar, afirma que não houve ensino porque não houve aprendizagem. Afirmar simplesmente “não houve ensino” é constatar algo; afirmar, porém, “não houve ensino porque não houve aprendizagem” é, além de constatar algo, oferecer uma explicação: é indicar a razão (ou a causa) em virtude da qual não houve ensino. A afirmação cuja veracidade vamos questionar é a composta, que inclui a explicação da constatação. Isto pode parecer meio complicado, mas no fundo é simples, como, esperamos, se vai ver.

Se é verdade que não há ensino sem aprendizagem, então não existe uma distinção entre ensino bem sucedido e ensino mal sucedido. Todo ensino é, por definição, bem sucedido, isto é, resulta, necessariamente, em aprendizagem. Dizer, portanto, que fulano ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano aprendeu raiz quadrada é ser redundante, é incorrer em pleonasmo, é dizer a mesma coisa duas vezes. Dizer, por outro lado, que fulano ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano não aprendeu raiz quadrada é incorrer em autocontradição, é afirmar e negar a mesma coisa, ao mesmo tempo, porque se fulano ensinou, então sicrano (necessariamente) aprendeu, e se sicrano não aprendeu, então fulano (necessariamente) não ensinou. Ora, tudo isso nos parece absurdo. Parece-nos perfeitamente possível afirmar que, embora fulano tivesse ensinado raiz quadrada a sicrano durante a tarde toda, sicrano não aprendeu raiz quadrada. Em outras palavras, a distinção entre ensino bem sucedido (que resulta em aprendizagem) e ensino mal sucedido (que não resulta em aprendizagem) parece inteiramente legitima. Ora, se esta distinção é legítima, então não é verdade que não há ensino sem aprendizagem (ou que todo ensino resulta em aprendizagem).

Mas parece haver um certo vínculo conceitual entre ensino e aprendizagem. Dificilmente diríamos que uma pessoa está ensinando algo a alguém se esta pessoa não tem a menor intenção de que este alguém aprenda o que está sendo ensinado. Talvez o que o slogan esteja querendo dizer é que se não

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houver, por parte de quem apresenta um certo conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que ele está expondo, então não há ensino. Esta afirmação parece ser aceitável. Ela apresenta uma dificuldade, porém: a noção de intenção. Como é que se determina que uma pessoa tem, ou não tem, a intenção de que alguém aprenda o que ela está expondo? Esta é uma dificuldade séria, porque esta questão é virtualmente equivalente à seguinte pergunta: Como é que se determina que uma pessoa está, ou não está, ensinando?

2.2 A questão da intenção

Imaginemos que alguém esteja levando aos lábios um copo contendo um liquido vermelho. O que é que esta pessoa está fazendo? A esta pergunta pode-se responder, obviamente, com uma descrição dos movimentos físicos da pessoa em questão: ela está levando aos lábios um copo que contém um liquido vermelho. Mas esta resposta é pouco informativa. Para se oferecer uma resposta que seja mais informativa, porém, é necessário que se faça menção da intenção (ou do propósito) que a pessoa tem a levar aos lábios o copo com o liquido. A pessoa pode estar meramente saciando a sua sede com um bom vinho. Ou pode estar se embebedando. Ou pode estar se suicidando com um liquido venenoso. Ou pode estar comungando. Ou, ainda, pode estar fazendo um número de coisas que não vem ao caso enumerar. Sua intenção ao tomar o líquido é que vai determinar o que esta pessoa esta realmente fazendo. É bom ressaltar que a questão da intenção é sumamente importante. Se se descobre que a pessoa em pauta tinha meramente a intenção de saciar sua sede, mas que alguém (sem ela saber) despejou veneno no liquido, causando sua morte, nós não diríamos que ela se suicidou, e sim que foi assassinada. Se sua intenção era saciar a sede, mas, por puro engano, bebeu um liquido venenoso ao invés do vinho que pensava estar bebendo, nós não diríamos que houve suicídio, e sim um lamentável acidente, que veio a ser fatal, se, naturalmente, em conseqüência disso, a pessoa veio a falecer. Estas distinções são importantes, principalmente em contextos jurídicos. Em nosso caso, porém, elas não parecem nos ajudar muito na determinação da intenção da pessoa que levou aos lábios o copo com o liquido vermelho. De que maneira poderíamos determinar sua intenção?

Deve ser dito claramente que não há maneiras seguras e infalíveis de determinar a intenção de alguém. Intenções não são coisas direta e imediatamente observáveis, como o são movimentos físicos - pelo menos no caso de outras pessoas. (A situação parece bastante diferente quando se trata de nossas próprias intenções: a elas temos acesso direto e imediato, se bem que não através da observação.) Contudo, uma intenção pode, muitas vezes, ser indiretamente determinada através do contexto em que certos movimentos físicos são realizados, com ajuda do nosso conhecimento

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Filosofia da Educação – volume 1 (mesmo que elementar) acerca do desenvolvimento e comportamento das pessoas. Se, no nosso caso, a pessoa estava levando o copo aos lábios dentro de uma igreja, na presença de um sacerdote, etc., é bastante plausível que sua intenção era comungar - pelo que sabemos do comportamento “normal” das pessoas, dificilmente ela estaria tentando se embebedar ou cometer suicídio ali. Se a pessoa, porém, estava levando o copo aos lábios em um clube noturno, onde esteve a dançar, tem o semblante alegre e descontraído, é bem possível que sua intenção fosse meramente saciar a sede - dificilmente estaria comungando ali, por exemplo. E assim por diante. Quando estamos na posição de observadores, procurando descobrir a intenção de alguém, precisamos analisar o contexto e, com base em nosso conhecimento acerca do comportamento “normal” das pessoas, aventar uma hipótese, que terá maior ou menor probabilidade de ser correta, dependendo das circunstâncias. Em alguns casos pode ser impossível determinar a intenção de alguém. Em outros pode ser até razoavelmente fácil (o que não exclui a possibilidade de erro). No nosso caso, não há dados que permitam determinar qual das hipóteses é mais provável, ou mesmo se alguma delas tem certa possibilidade, pois só oferecemos a descrição de um movimento físico: o de levar aos lábios um copo com liquido vermelho - não descrevemos o contexto. Mas em grande parte dos casos há uma indicação do contexto, da situação, que nos permite inferir qual a intenção do agente ao realizar certos movimentos.

Voltemos agora à afirmação que fizemos acima de que se não houver, por parte de quem apresenta um certo conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que está se expondo, então não há ensino. O problema que esta afirmação enfrenta, dissemos, está relacionado com a dificuldade em determinar a intenção de alguém, a partir dos movimentos físicos que realiza. Esta dificuldade, contudo, não é intransponível, como acabamos de ver, e é compartilhada por todas as situações em que atribuímos intenções a outras pessoas, algo que fazemos em grande freqüência. Constantemente atribuímos intenções aos outros e, embora muitas vezes erremos ao fazê-lo, com surpreendente freqüência acertamos.

Estamos agora em condições de responder à pergunta que formulamos no primeiro parágrafo desta segunda parte: Qual é realmente a diferença entre a primeira e a segunda situação que imaginamos naquele parágrafo? Por que é que no primeiro caso parece plausível dizer que o professor não estava ensinando, e que no segundo parece bem mais plausível dizer que o professor estava ensinando, embora em ambos os casos os alunos nada hajam aprendido? No primeiro caso, os fatos da situação - o contexto - mais nosso conhecimento de que crianças “normais” de sete anos têm condições de aprender nos indicam que o professor dificilmente poderia ter a intenção de que as crianças aprendessem os aspectos mais complicados da teoria da relatividade de Einstein. Por bizarro que possa parecer, é bem mais plausível

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imaginar que o professor estivesse ensaiando uma aula ou conferência, e que a presença das crianças fosse puramente acidental ou ornamental. No segundo caso, porém, a situação é alterada. A audiência é composta de alunos no último ano do Curso de Física. Baseados nesse fato, e em nosso conhecimento (ou na suposição razoável) de que alunos no último ano do Curso de Física têm, em geral, condições de entender a teoria da relatividade de Einstein, torna-se bem mais plausível atribuir ao professor a intenção de que os alunos aprendessem o que ele estava expondo, ou seja, a intenção de ensinar. Em um caso, portanto, é plausível afirmar que o professor não estava ensinando, e no outro é plausível afirmar que estava. Em nenhum dos dois casos, porém, houve aprendizagem. A plausibilidade das afirmações acima não se deve, portanto, ao fato de os alunos não haverem ou haverem aprendido o que lhes era exposto. Deve-se, isto sim, ao fato de que em um caso não faz sentido atribuir ao professor a intenção de que seus alunos viessem a aprender o que expunha, e no outro faz.

Foi por isso que ressaltamos acima que não iríamos discutir a afirmação simples de que não houve ensino naquelas situações e sim a afirmação composta de que não houve ensino porque não houve aprendizagem. Embora as situações sejam, exceto pela audiência, idênticas, estamos propensos a acreditar que no primeiro não houve ensino e que no segundo pode ter havido. Mas não estamos propensos a acreditar que este seja o caso porque na primeira situação não tenha havido e na segunda tenha havido aprendizagem, pois, por hipótese, não houve aprendizagem em nenhuma delas. Baseamo-nos no fato de que no primeiro não é plausível atribuir ao professor a intenção de causar (ou produzir, ou ocasionar, ou ensejar) a aprendizagem dos alunos, enquanto no segundo é.

2.3 O conceito de ensino

Em relação ao conceito de ensino, podemos resumir as nossas conclusões e sugerir algumas de suas implicações:

2.3.1 Primeira

O conceito de ensino faz referência a uma situação ou atividade triádica, isto é, de três componentes, quais sejam, aquele que ensina, aquele a quem se ensina, e aquilo que se ensina. Esta conclusão sugere que não é muito apropriado dizer que alguém ensinou a si próprio alguma coisa, sendo, portanto, um auto-didata (o termo “didata” provém do verbo grego didaskein, que quer dizer, exatamente, “ensinar”). Quando dizemos que uma pessoa esta ensinando algo a uma outra pessoa, pressupomos que a primeira saiba (ou domine) o que está ensinando e que a segunda não saiba (ou domine) o que está sendo ensinado. Se há, porém, apenas uma pessoa em jogo, mais um certo conteúdo, ou esta pessoa já sabe (ou domina) este conteúdo, em

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Filosofia da Educação – volume 1 cujo caso não precisa ensiná-lo a si própria, ou esta pessoa não sabe (ou domina) o conteúdo em questão, em cujo caso não tem condições de ensiná-lo a si própria. Designar certas pessoas como auto-didatas parece, portanto, bastante descabido. Isso não quer dizer, porém, que alguém não possa aprender por si próprio um certo conteúdo, sem que alguma outra pessoa necessariamente lhe ensine. Neste caso, porém, a pessoa que vem aprender um dado conteúdo por si própria não é um autodidata, mas sim um auto-aprendiz.

2.3.2 Segunda

Para que uma atividade se caracterize como uma atividade de ensino não é necessária que aquele a quem se ensina aprenda o que está sendo ensinado; basta que o que ensina tenha a intenção de que aquele a quem ele ensina aprenda o que está sendo ensinado. Esta segunda conclusão é rica em implicações. Em primeiro lugar, ela implica a existência de ensino sem aprendizagem (o que poderíamos chamar de ensino mal sucedido). Em segundo lugar, ela sugere que coisas realmente não ensinam, porque não podem ter a intenção de produzir a aprendizagem. Isto, por sua vez, significa que não é muito correto dizer: “A natureza me ensinou”, ou “a vida me ensinou”, etc. Significa, também, que é só com muito cuidado que podemos falar em ensino através de máquinas (máquinas de ensinar, computadores, por exemplo), ou mesmo através de livros. Um computador (ou um livro) só ensina na medida em que a pessoa que o programou (ou escreveu) teve a intenção de que alguém aprendesse através dele.

2.3.3 Terceira

A intenção de produzir a aprendizagem, isto é, a intenção de ensinar, só pode ser constatada mediante análise do contexto em que certas atividades são desenvolvidas. Se esta análise tornar razoável a atribuição da intenção em pauta, podemos concluir que pode estar havendo ensino; caso contrário, seremos forçados a admitir que não esteja. Esse exame do contexto é, portanto, extremamente importante. A presente conclusão, quando vista à luz das precedentes, tem pelo menos três implicações bastante significativas. Em primeiro lugar, desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa, algum conteúdo, a alguém, quem quer que seja que pretenda estar ensinando tem a obrigação de indicar, de maneira clara e inequívoca, exatamente o que é que ele tenciona que seus alunos aprendam. Se o conteúdo a ser aprendido não é claramente indicado, a pessoa que o expõe pode estar fazendo uma variedade de coisas (um discurso, uma pregação, etc.), mas dificilmente estará ensinando, pois se torna bastante problemático atribuir-lhe a intenção de que os alunos aprendam algo que não é especificado. Em segundo lugar, é necessário que as atividades desenvolvidas por quem pretende estar ensinando estejam relacionadas, de alguma maneira, com o conteúdo a ser

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aprendido. Isto significa que, embora as atividades que possam ser consideradas atividades de ensino, em geral, sejam virtualmente ilimitadas, as atividades que podem ser consideradas de ensino de um conteúdo específico são limitadas pela natureza do conteúdo em questão. Se as atividades desenvolvidas não têm relação com esse conteúdo, torna-se difícil atribuir ao suposto ensinante a intenção de que seus alunos aprendam o conteúdo que lhes está sendo proposto. Em terceiro lugar, desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa a alguém, é necessário que quem pretende estar ensinando conheça e leve em consideração a condição de seus alunos (sua idade, seu desenvolvimento, seu nível intelectual, etc.) para não apresentar-lhes conteúdos para os quais não estão preparados e que não têm condições de aprender e para não desenvolver atividades inadequadas à condição desses alunos. Torna-se bastante problemático atribuir a alguém a intenção de que seus alunos aprendam um certo conteúdo se esse conteúdo, por exemplo, está acima da capacidade desses, ou se as atividades escolhidas como meios para alcançar esse objetivo não podem ser desenvolvidas ou acompanhadas pelos alunos.

Com essas conclusões chegamos, porém, ao segundo tópico a ser discutido nesta parte do trabalho. Até agora discutimos a possibilidade de haver ensino sem aprendizagem. Discutamos agora a questão inversa: pode haver aprendizagem sem ensino?

2.4 Pode haver aprendizagem sem que haja ensino?

A resposta a essa pergunta parece ser bem mais fácil do que a resposta à questão anterior. Parece óbvio que pode haver aprendizagem sem ensino. Atrás já aludimos ao fato de que é possível que, durante uma aula ou exposição, alguém aprenda coisas que o professor não está querendo lhe ensinar (isto é, coisas que o professor não tem a intenção de que ele venha a aprender), como, por exemplo, que o assunto da exposição é terrivelmente maçante. Este seria um exemplo de aprendizagem sem ensino. Acabamos de sugerir que o chamado autodidata é, na realidade, um auto-aprendiz, alguém que aprende um certo conteúdo sozinho, e não alguém que o ensina a si mesmo. Sugerimos, também, que não é muito correto dizer que a natureza e a vida ensinam. Nestes casos, também, parece ser muito mais correto dizer que certas pessoas aprendem determinadas coisas por si próprias. Estes seriam exemplos de aprendizagem sem ensino. Parece claro, portanto, que pode haver aprendizagem sem ensino. Mas consideremos a posição de alguém que argumente da seguinte maneira. Concordo não ser muito correto dizer que a natureza e a vida ensinem coisas às pessoas; é muito mais correto dizer que as pessoas aprendem sozinhas - se bem que através de seu contato com a natureza ou através de sua experiência da vida. Mas - continua o argumento - esta situação não é

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Filosofia da Educação – volume 1 diferente da do aluno na sala de aula: o aluno, na sala de aula, também aprende, na realidade, sozinho - se bem que, muitas vezes, através de seu contacto com o professor. A sua aprendizagem prossegue o argumentante, não é o produto, ou o resultado, ou a conseqüência do ensino do professor: há muitos fatores que incidem sobre ela, como, por exemplo, a motivação do aluno, suas condições de saúde e alimentação, o clima sócio-emocional na sala de aula, as condições do meio ambiente (a temperatura da sala, etc.), e assim por diante. Um dos fatores mais importantes a incidir sobre a aprendizagem é a experiência anterior do aluno com conteúdos semelhantes aos que agora se pretende que ele aprenda, a bagagem de experiência e conhecimento que ele traz consigo. É somente na medida em que estes fatores incidem de maneira favorável sobre o aluno que ele vem a aprender, continua o argumentante, e conclui: A aprendizagem do aluno é sempre uma auto-aprendizagem: se ele está doente, ou sub-nutrido, ou não tem motivação, ele não aprende, por melhor que seja o professor. Ao professor cabe, portanto, simplesmente facilitar a aprendizagem, remover os obstáculos a ela criar-lhe condições propícias. A aprendizagem, porém, é sempre um ato do aluno e nunca a conseqüência de um ato do professor, a saber, do ato de ensinar. Toda aprendizagem, portanto, diz o slogan, é auto-aprendizagem. Aqui termina o argumento.

Várias observações podem ser feitas aos que assim argumentam. Em primeiro lugar, os que assumem essa posição respondem afirmativamente à pergunta: Pode haver aprendizagem sem que haja ensino? É verdade que vão mais longe, afirmando que a aprendizagem, em hipótese alguma, pode ser entendida como uma conseqüência do ensino. Em segundo lugar, precisa ser dito que grande parte das afirmações feitas pelos que defendem essa posição é perfeitamente aceitável - por exemplo, o que se diz acerca dos vários fatores que incidem sobre a aprendizagem. É este fato que faz com que a posição em pauta pareça ter uma certa plausibilidade inicial. O que precisa ser esclarecido - e esta é uma terceira observação - é o papel do ensino, e, conseqüentemente, do professor, no processo de aprendizagem.

Estamos entrando, aqui, porém, em uma área perigosa para o filósofo, pois esta última questão parece levantar um problema de natureza empírica acerca do qual somente um psicólogo poderia nos dar informações. Um filósofo que se preocupa essencialmente com questões conceituais faria bem, poderia parecer, em não se intrometer nesta área. Para esclarecer nosso objetivo, portanto, é necessário que indiquemos claramente em que sentido um filósofo pode contribuir para a solução desse problema. Vimos atrás que o conceito de ensino inclui uma referência ao conceito de aprendizagem (mais precisamente, faz referência à intenção de produzir a aprendizagem). O que queremos examinar aqui é se o conceito de aprendizagem exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como o produto, o resultado, ou a conseqüência do ensino, pelo menos em alguns casos. Já admitimos a

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possibilidade de que a aprendizagem ocorra sem ensino. Queremos, agora, examinar a suposta impossibilidade de que ela aconteça em decorrência do ensino, como efeito ou conseqüência deste. Se esta impossibilidade for real, isto é, se o conceito de aprendizagem logicamente exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como (em alguns casos) uma decorrência do ensino, então o ensino, como uma atividade que é desenvolvida com a intenção de que dela resulta a aprendizagem, é um empreendimento fútil. Não caberá mais ao professor ensinar - restar-lhe-á apenas a tarefa de detectar obstáculos e empecilhos à aprendizagem (como falta de motivação, desnutrição, etc.) e de procurar encontrar maneiras de remover esses obstáculos e empecilhos, tornando-se, portanto, caso venha a ser bem sucedido, um facilitador da aprendizagem. Diga-se de passagem, que essa tarefa não é pequena, nem fácil, e muito menos indigna. Todo professor sensível se dedica a ela. Acontece, porém, que muitos professores acreditam que, além da tarefa de detectar obstáculos e empecilhos à aprendizagem e de procurar encontrar maneiras de removê-los, cabe-lhes a tarefa de ensinar, ou seja, de desenvolver certos tipos de atividade que deverão resultar na aprendizagem, por parte dos alunos, de certos conteúdos. Ora, essa tarefa só é realizável se a impossibilidade a que nos referimos não for real.

Para elucidar essas questões que, embora conceituais, têm muitas implicações práticas, é necessário levar em conta o que psicólogos afirmam acerca da natureza da aprendizagem. Mas nossa investigação não é equivalente a uma investigação psicológica, de natureza empírica.

Há um certo sentido em que é verdade que toda aprendizagem a auto-aprendizagem, que é o seguinte: ninguém pode aprender por mim. Se eu quero vir, a saber, (ou dominar) um certo conteúdo, sou eu e ninguém mais que tenho que aprender esse conteúdo. Alguém pode me explicar em detalhe o conteúdo a ser aprendido, pode discuti-lo comigo, esclarecer minhas dúvidas, estabelecer paralelos entre esse conteúdo e outros que já conheço (ou domino), etc., mas a aprendizagem, em última instância, é minha. Sou eu que tenho que assimilar, compreender, dominar o que deve ser aprendido. Se é só isso que se quer dizer quando se afirma que toda aprendizagem é auto-aprendizagem, então o slogan é perfeitamente aceitável.

Mas muita gente quer dizer mais com o slogan. Quer dizer que o professor não deve interferir no processo de aprendizagem do aluno (a não ser para remover obstáculos a essa aprendizagem) e que este deve descobrir por si só aquilo que deve aprender. O melhor que o professor pode fazer, em uma linha de ação positiva, talvez seja criar condições propícias para que o aluno descubra, ele próprio, o conteúdo a ser aprendido. Interpretado dessa maneira, o slogan já não nos parece tão aceitável. Em primeiro lugar, essa aprendizagem por descoberta parece inteiramente apropriada em contextos nos quais a pessoa está aprendendo sozinha, sem o auxílio do professor, ou

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Filosofia da Educação – volume 1 em contextos nos quais aquilo que deve ser aprendido ainda não foi descoberto por ninguém, sendo, portanto, desconhecido. Em segundo lugar, não nos parece que jamais tenha sido provado que, no que diz respeito a conteúdos já conhecidos, já descobertos por alguém, a melhor maneira de aprender esses conteúdos seja trilhar o caminho seguido por quem originalmente os descobriu. Em outras palavras, parece ser bem possível, por exemplo, que a melhor maneira de aprender um dado conteúdo já conhecido seja seguir o caminho inverso daquele percorrido por quem descobriu esse conteúdo (reverse engineering). Ou algum outro caminho, talvez. Essas questões precisam ser investigadas empiricamente. Não há garantias conceituais para a suposição de que no caso de verdades já conhecidas - estamos falando agora de conteúdos cognitivos - a melhor maneira de aprendê-los seja redescobri-las. Por um lado, o processo de descobrimento (ou redescobrimento) é altamente demorado, e muitas vezes não é bem sucedido. Por outro lado, não há a menor garantia de que, se cada geração precisar redescobrir as verdades já descobertas por prévias gerações, se vá chegar muito além do ponto ao qual as gerações prévias chegaram. Isto nos mostra que, em relação a certos conteúdos, é bem possível que a melhor maneira de ocasionar uma aprendizagem rápida e fácil seja através do ensino.

Ora, se isto é possível - note-se que não estamos dizendo que seja o caso - então não é (logicamente) impossível que a aprendizagem aconteça em decorrência do ensino, como efeito ou conseqüência do ato de ensinar.

2.5 Educação, Ensino e Aprendizagem

Pode haver ensino sem que haja educação? Pode haver aprendizagem sem que haja educação? Para respondermos a essas perguntas é necessário que investiguemos o conceito de educação.

Uma investigação exaustiva, que descreva e analise os vários conceitos de educação existentes em nossa cultura, ou em outras culturas, distantes de nós no tempo ou no espaço, não é possível dentro do escopo do presente trabalho. Os conceitos são tantos, e tão variados, que somente poderíamos discuti-los com algum proveito dentro de um livro dedicado especialmente ao assunto. A alternativa que nos resta é a de propor uma caracterização do conceito de educação que seja suficientemente ampla, que faça sentido e seja justificável. A partir dessa caracterização tentaremos responder às perguntas formuladas no parágrafo anterior, bem como às suas correlatas: Pode haver educação sem que haja ensino? Pode haver educação sem que haja aprendizagem?

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2.6 O Conceito de educação

Entendemos por “educação” o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos.

Vamos esclarecer o sentido dos principais termos dessa proposta de definição, pois sem esse esclarecimento a proposta fica muito vaga.

2.6.1 Conteúdos

Como vimos na seção anterior, o termo “conteúdo” tem sentido bastante amplo, podendo designar coisas as mais variadas. Quando falamos em conteúdos, no contexto educacional, temos em mente não só conteúdos estritamente intelectuais ou cognitivos, mas todo e qualquer tipo de habilidade, cognitiva ou não, atitudes, etc. Note-se, porém, que na nossa proposta de definição o termo “conteúdos” está qualificado (falamos em “certos conteúdos considerados valiosos”), fato que já é indicativo de uma certa restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo educacional. Mas falaremos sobre isto mais adiante. Aqui é suficiente indicar que quando falamos de conteúdos estamos nos referindo a coisas tão diferentes umas das outras como geometria euclideana, teoria da relatividade, habilidade de extrair a raiz quadrada ou calcular a área do círculo, habilidade de amarrar os sapatos, de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face, atitude positiva para com a vida, a morte, para com os outros, etc.

2.6.2 Adquirir domínio

Estamos usando a expressão “adquirir domínio” como basicamente equivalente ao termo “aprender”. Adquirir domínio de um dado conteúdo é, portanto, aprendê-lo, no sentido mais amplo do termo. Neste sentido, alguém adquiriu domínio da habilidade de calcular a área de um círculo quando aprendeu e é capaz de “sabe” calcular a área de qualquer círculo que lhe seja apresentado.

2.6.3 Adquirir compreensão

Em nossa proposta de definição dissemos que a educação é o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos. Nossa intenção ao acrescentar “e compreensão” não foi a de simplesmente dar maior ênfase. Cremos que algo diferente e muito importante foi acrescentado à definição com a inclusão dessas duas palavras. Para que um processo seja caracterizado como educacional não basta que através dele indivíduos venham a dominar certos conteúdos: é necessário que esse domínio envolva uma compreensão dos conteúdos em questão. Uma coisa é saber que a fórmula para calcular a área

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Filosofia da Educação – volume 1 de um círculo é P r2 e mesmo ser capaz de aplicá-la. Outra coisa é compreender porque é que se utiliza essa fórmula para calcular a área de um círculo. Uma coisa é saber que não se deve tirar a vida de uma outra pessoa. Outra coisa é compreender porque é que não se deve fazer isso. Uma coisa é assimilar, pura e simplesmente, os valores de uma dada cultura. Outra coisa é aceitá-los, criteriosamente, após exame que leve à compreensão de sua razão de ser.

Quando falamos em educação não estamos falando simplesmente em socialização ou aculturação, por exemplo. O processo de assimilação de normas sociais e de valores culturais pode ou não ser educacional: se essas normas e esses valores são simplesmente incorporados pelo indivíduo, ou inculcados nele, sem que ele compreenda sua razão de ser, o processo é de mera socialização ou aculturação, não havendo educação. Para que haja educação é necessário que o indivíduo, além de dominar certos conteúdos, que no caso são normas sociais e valores culturais, venha a compreendê-los, venha a entender sua razão de ser, venha a aceitá-los somente após investigação criteriosa que abranja não só as normas e os valores em questão, mas também possíveis alternativas.

2.6.4 Conteúdos considerados valiosos

Esta expressão talvez seja a mais problemática na proposta de definição feita por nós. O domínio, mesmo com compreensão, de certos conteúdos não é parte integrante de um processo educacional se os conteúdos em questão são considerados perniciosos ou sem valor algum. O domínio da habilidade de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face não é, em nossa cultura, parte integrante do processo de educação dos indivíduos. O valor dessa habilidade é considerado virtualmente nulo. O desenvolvimento de uma atitude positiva, de aceitação, de relações sexuais entre irmãos também não é, em nossa cultura, parte integrante do processo de educação dos indivíduos, pois essa atitude é vista como perniciosa.

Há, portanto, uma importante restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo educacional, como mencionamos atrás, e essa restrição diz respeito ao valor que se atribui a esses conteúdos, em determinados contextos. Essa introdução de um elemento valorativo na definição de educação limita os conteúdos que podem ser parte integrante do processo educacional. Ao mesmo tempo em que faz isso, essa referência ao valor dos conteúdos coloca a educação dentro da problemática maior do chamado relativismo, pois o que é tido como valioso em uma dada cultura pode não ser assim considerado em outra, e vice-versa. Foi por isso que tivemos o cuidado de dizer “conteúdos considerados valiosos”, e não simplesmente “conteúdos valiosos”, pois ao optar pela segunda possibilidade estaríamos nos comprometendo com um dos lados de uma controvérsia que

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está longe de ser resolvida. É perfeitamente concebível que a habilidade de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face seja considerada valiosa em algumas culturas, como é claramente possível que o desenvolvimento de uma atitude positiva para com o incesto entre irmãos seja considerado valioso em outras culturas. Se isso é verdade, então o domínio daquela habilidade e o desenvolvimento desta atitude seriam parte integrante do processo educacional nessas culturas, do mesmo modo que não o são na nossa.

É possível, para citar outro exemplo, que o desenvolvimento de uma atitude crítica para com as opiniões de outras pessoas, incluindo-se aí os mais velhos, ou aqueles em posição de autoridade, seja considerado algo indesejável em algumas culturas e algo altamente valioso em outras. Se este for o caso, o desenvolvimento dessa atitude não será parte integrante do processo educacional nas primeiras culturas e o será nas outras. E assim por diante. Não nos compete aqui discutir a questão da objetividade ou não dos valores, embora este seja um tópico fascinante. Também não entraremos na complicada questão que é colocada pela coexistência de valores conflitantes dentro de uma mesma cultura (concebendo-se o termo “cultura” aqui em um sentido bastante amplo): em caso de conflito, deverão ter prioridade e prevalecer os valores de quem? Os dos pais do educando? Os dos professores? Os dos governantes? Os da igreja? Ou os do próprio educando?

Tendo em mente essa caracterização do conceito de educação, retomemos as perguntas formuladas no início desta seção: Pode haver ensino sem que haja educação? Pode haver aprendizagem sem que haja educação?

2.7 Pode haver ensino e aprendizagem sem que haja educação?

Parece óbvio que, se a educação é o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos, naturalmente pode haver ensino e aprendizagem sem que haja educação, ou seja, ensino e aprendizagem não-educacionais. Basta que as condições estipuladas na caracterização do conceito de educação não sejam cumpridas, para que o ensino e a aprendizagem deixem de cumprir função educacional.

Já observamos atrás que o domínio de habilidades às quais não se atribui valor, ou o desenvolvimento de atitudes consideradas perniciosas, em um dado contexto, não são partes integrantes do processo educacional, dentro daquele contexto. Em uma cultura semelhante à nossa, por exemplo, o fato de um indivíduo aprender a mexer as orelhas sem mover outros músculos da face, ou de desenvolver uma atitude de aceitação ou tolerância para com relações sexuais entre irmãos, não é visto como uma contribuição para o seu

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Filosofia da Educação – volume 1 processo educacional. Conseqüentemente, se alguém ensina a uma outra pessoa aquela habilidade ou esta atitude, esse ensino estará se realizando fora do contexto educacional, pois esses conteúdos não são considerados valiosos em nossa cultura. Igualmente, ensinar a alguém a arte (ou técnica) de arrombar cofres fortes, ou de bater carteiras, ou de mentir com perfeição, não é contribuir para sua educação, em um contexto cultural em que esses conteúdos não são considerados valiosos, como, queremos crer, seja aquele em que vivemos.

Pode haver, portanto, ensino e aprendizagem sem que haja educação, quando os conteúdos ensinados e aprendidos não são considerados valiosos. Contudo, mesmo o ensino e a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos podem ser não-educacionais se, por exemplo, levam ao domínio sem compreensão (no sentido ilustrado) desses conteúdos. Alguém que aceita normas sociais e valores culturais sem examinar e compreender sua razão de ser, sem dúvida aprendeu um certo conteúdo (possivelmente até através do ensino), mas o fez sem compreensão: a aprendizagem, neste caso, foi não-educacional, e se a aprendizagem foi decorrência de um ensino que estava interessado apenas na aceitação das normas e dos valores, e não na sua compreensão, o ensino também foi não-educacional (tendo sido, possivelmente, doutrinacional). O chamado condicionamento, na medida em que produz um certo tipo de comportamento que não é acompanhado de compreensão, não pode ter lugar dentro de um processo educacional.

Quer nos parecer, pois, que não resta a menor dúvida de que o ensino e a aprendizagem podem ser não-educacionais, ou porque os conteúdos ensinados e/ou aprendidos não são considerados valiosos ou porque levam ao domínio sem compreensão. É por isso que se pode crit icar o ensino que insiste na mera memorização ou a aprendizagem puramente mecânica, automática, não-significativa. O ensino e a aprendizagem, nesses casos, não estão contribuindo para a educação do indivíduo, mesmo que os conteúdos ensinados e aprendidos sejam considerados valiosos, porque não estão levando o indivíduo a compreender esses conteúdos.

Da mesma maneira, parece-nos bastante impróprio falar em educação de animais, por exemplo, embora não reste dúvida de que animais possam aprender, freqüentemente em decorrência de atividades de ensino. Muitos animais são perfeitamente capazes de dominar habilidades às vezes bastante complexas. É difícil imaginar, porém, que esse domínio seja acompanhado de compreensão (no sentido visto). Não o sendo, é impróprio afirmar que foram educados: parece ser bem mais correto dizer que foram meramente treinados, ou talvez, condicionados.

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De igual maneira, o ensino e a aprendizagem de conteúdos que consistam de enunciados falsos, ou de enunciados que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros (e, conseqüentemente, grande probabilidade de serem falsos), ou, talvez, de enunciados acerca dos quais a evidência, favorável ou contrária, seja inconclusiva, não devem ser parte integrante do processo educacional, pois quer nos parecer que em nossa cultura não seja considerado valioso um conteúdo que consista de enunciados falsos, ou contrários à melhor evidência disponível, ou acerca dos quais a evidência seja inconclusiva. O ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais próximo da doutrinação do que da educação. Devemos ressaltar, para evitar mal-entendidos, que ensinar que um dado enunciado, ou conjunto de enunciados é falso ou não-evidenciado é afirmar algo verdadeiro, se os enunciados em questão forem realmente falsos ou não-evidenciados, e se constitui, portanto, em uma atividade que pode, legitimamente, ser parte integrante do processo educacional. O que não pode ser visto como educacional é o ensino (e a aprendizagem) de enunciados falsos ou não-evidenciados como sendo verdadeiros ou evidenciados.

2.8 Um parêntese

A esta altura vários problemas muito interessantes poderiam ser levantados, como elemento para futuras reflexões.

Primeiro: Ensinar (em geral, incluindo-se ensinar em contextos não-educacionais) é desenvolver certas atividades com a intenção de que os alunos aprendam um dado conteúdo x. Ensinar (em contextos, agora, estritamente educacionais) é desenvolver certas atividades com a intenção de que os alunos aprendam e compreendam um dado conteúdo x. Não há garantias de que as atividades desenvolvidas no ensino não-educacional e no ensino educacional de um mesmo conteúdo x sejam, necessariamente, as mesmas - muito pelo contrário.

Segundo: Ensinar, como visto, é sempre ensinar um certo conteúdo. Mas é perfeitamente possível que o conteúdo a ser ensinado, em um dado momento, seja o próprio ato de ensinar, ou a própria arte (ou habilidade) de ensinar. Neste caso, o próprio ensino seria o conteúdo do ensino.

Terceiro: O ensino que leva à aprendizagem sem compreensão e a aprendizagem não acompanhada de compreensão são, como acabamos de ver, não-educacionais. O elemento que os torna educacionais é a compreensão. A seguinte pergunta, portanto, é bastante importante e pertinente: É possível ensinar a compreensão como conteúdo, isto é, ensinar aos alunos a arte ou habilidade de compreender qualquer conteúdo que estejam aprendendo, ou tenham aprendido, ou que venham a aprender?

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Filosofia da Educação – volume 1 Queremos crer que sim, embora este não seja o lugar de justificar esta resposta. Quer nos parecer, porém, que aqueles que afirmam que a função primordial da educação é fazer com que indivíduos aprendam a pensar estejam, na realidade, querendo dizer que a função primordial da educação é fazer com que indivíduos aprendam certos conteúdos com compreensão, de maneira crítica, etc., e não de modo puramente mecânico, não significativo.

Quarto: Quando o conteúdo do ensino é o próprio ensino (a arte ou habilidade de ensinar), também este conteúdo pode ser ensinado de maneira não-educacional e de maneira educacional, isto é, com a intenção de que os alunos meramente o dominem ou com a intenção de que os alunos o dominem e compreendam. Quer nos parecer que quem aprende ou domina com compreensão este conteúdo (a arte ou habilidade de ensinar) terá melhores condições, caso venha, eventualmente, a ensinar outros conteúdos, de fazê-lo de maneira educacional, isto é, de modo que seus alunos venham a aprender e compreender esses outros conteúdos.

Quinto: Quem aprende com compreensão um conteúdo qualquer (diferente do ato ou da habilidade de ensinar) geralmente tem melhores condições de ensinar aquele conteúdo, ou mesmo de ensinar a ensinar aquele conteúdo, do que alguém que só se preocupa com ensinar o ato ou a habilidade de ensinar (em geral).

Todas essas questões são altamente complexas, mas muito interessantes, merecendo estudo e reflexão. Dadas as limitações de tempo e espaço, não podemos investigá-las mais detalhadamente no presente trabalho. Somos da opinião de que o esquema conceitual aqui apresentado, além de permitir que essas questões sejam levantadas, sugere algumas maneiras de abordá-las, que poderão ser desenvolvidas em outros trabalhos.

2.9 Pode haver educação sem que haja ensino e aprendizagem?

Acabamos de ver, pois, que pode haver ensino e aprendizagem que não são educacionais. Pode haver educação, porém, sem que haja ensino e sem que haja aprendizagem? Vamos discutir esta questão em partes, examinando, primeiro, se pode haver educação sem que haja aprendizagem, e, segundo, se pode haver educação sem que haja ensino.

Nossa proposta de definição de educação e nossa caracterização do termo “aprendizagem” nos mostram que há um vínculo conceitual entre educação e aprendizagem. Todo processo educacional implica, por definição, a aprendizagem de algum conteúdo, ou seja, envolve, necessariamente, alguma forma de aprendizagem. Habilidades que decorrem de processos puramente fisiológicos ou de amadurecimento não podem ser parte integrante do processo educacional porque não envolvem domínio, aprendizagem. A capacidade de fazer com que os intestinos funcionem, por

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exemplo, e a capacidades de gerar filhos, não são aprendidas: são decorrentes de processos puramente fisiológicos e de amadurecimento. Conseqüentemente, o seu desenvolvimento não pode ser visto como parte integrante do processo de educação de uma criança ou de um jovem. A habilidade de controlar os intestinos e de manter sob controle a capacidade reprodutora, de modo a permitir que esta se manifeste apenas em certas situações e sob certas condições, é, porém, decorrente de um processo de aprendizagem, e, conseqüentemente, o seu desenvolvimento pode se constituir em um dos objetivos específicos do processo de educação de indivíduos.

Não nos parece fazer o menor sentido dizer que um certo tipo de atividade contribui para a educação de um indivíduo se, em decorrência dessa atividade, o indivíduo nada vai aprender. A educação é o processo através do qual indivíduos aprendem e compreendem certos conteúdos considerados valiosos. Não é possível, pois, que haja educação sem que haja aprendizagem.

A situação é diferente no que diz respeito à relação entre ensino e educação. Vimos, atrás, que pode haver aprendizagem sem que haja ensino. A educação está conceitualmente vinculada à aprendizagem, e esta pode ocorrer sem que haja ensino. Deste argumento não decorre, porém, aparências ao contrário, que a educação possa ocorrer sem que haja ensino, pois não é o caso que, necessariamente, toda aprendizagem seja conceitualmente ligada à educação, sendo possível que apenas seja ligada à educação a aprendizagem decorrente do ensino. Contudo, prima facie não há razão para negar que esteja se educando o indivíduo que aprende por si próprio (o auto-aprendiz), e vem a compreender (no sentido dado ao termo por nós), conteúdos considerados valiosos. A menos, portanto, que se apresente um argumento convincente para mostrar que a educação não pode ocorrer sem o ensino, devemos concluir que possa.

É bem possível, porém, como ressaltamos na seção anterior, que a aprendizagem de certos tipos de conteúdo se realize mais fácil e rapidamente através do ensino. Se este realmente for o caso - e, como dissemos, não nos parece que o contrário tenha sido jamais provado - então a educação pode e deve se utilizar do ensino. Mas não há, neste caso, um vínculo conceitual entre educação e ensino, como acontece no caso de educação e aprendizagem. No caso de educação e ensino o vínculo é puramente acidental. Desde que o ensino pode ser uma das maneiras de alguém chegar à aprendizagem de certos conteúdos, podendo mesmo ser, no caso de alguns conteúdos, a maneira mais eficiente, a educação pode se utilizar do ensino. Mas não é necessário, do ponto de vista lógico, que o faça. Conseqüentemente, pode haver educação sem que haja ensino.

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Filosofia da Educação – volume 1

Capítulo 3

Educação Formal e Informal e a Questão dos Objetivos da

Educação

Antes de passarmos à discussão do conceito de doutrinação, parece-nos oportuno acrescentar alguns comentários adicionais sobre o conceito de educação.

3.1 Educação formal e educação informal

O primeiro comentário diz respeito à distinção entre educação formal e educação informal. Há, pelo menos, duas maneiras de entender essa distinção. De um lado, pode-se afirmar que educação formal é aquela ministrada em instituições especialmente criadas e organizadas com o objetivo de educar, a saber, escolas, e que educação informal é aquela que se realiza através de outras instituições, cuja finalidade precípua e principal talvez não seja a de educar, a saber, o lar, a igreja, a empresa, centros comunitários, etc. Não resta a menor dúvida de que pessoas educam-se, e são educadas, sem jamais freqüentar uma escola. Neste sentido, a chamada “educação sem escolas” não só sempre foi possível como sempre ocorreu e ainda ocorre em larga escala, e o apelo no sentido de que a educação, hoje em dia, se torne mais informal seria uma convocação de outras instituições (além da escola) a um maior envolvimento com o processo educacional, muitas vezes relegado, nos dias atuais, por razões várias, quase que exclusivamente à escola.

Acontece, porém, que a educação informal, neste sentido do termo, freqüentemente é bastante “formal” (em um sentido um pouco diferente do termo), ocorrendo de maneira bastante semelhante à utilizada nas escolas. Igrejas criam “Escolas Dominicais”, “Classes de Catecismo”, etc., as empresas e centros comunitários oferecem e ministram “Cursos”, etc., onde há professores, alunos, ensino, salas de aula, em uma réplica quase perfeita do que acontece na escola propriamente dita. Nesses casos, a aprendizagem é promovida principalmente através do ensino, o qual, muitas vezes, assume feições altamente tradicionais. Neste sentido dos termos, portanto, não há muito que distinga educação formal de educação informal, além do fato de

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que a primeira ocorre em instituições criadas com a finalidade quase única de educar e a segunda em instituições que têm outros objetivos além do objetivo de educar, objetivos esses que se sobrepõem às suas tarefas educacionais.

Passemos, pois, à segunda maneira de entender a distinção entre educação formal e educação informal. Vimos, há alguns parágrafos, que a educação, embora implique, necessariamente, a aprendizagem, não implica, com igual necessidade, o ensino. Como o ensino é, segundo nossa análise, uma atividade intencional, a educação que se realiza através de atividades de ensino também é intencional, seja ela realizada na escola ou em outras instituições. Acabamos de mencionar o fato de que essas instituições não-escolares que se ocupam da educação muitas vezes o fazem de modo a imitar o que acontece na escola. Isto nos sugere uma outra maneira de entender a distinção em questão.

Educação formal seria aquela que se realiza através de atividades de ensino, e que se caracteriza, portanto, por ser intencional, ou melhor, ainda, por ter a intenção de produzir a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos. Educação informal, do outro lado, seria aquela que se realiza não-intencionalmente (ou, pelo menos, sem a intenção de educar), quando, em decorrência de atividades ou processos desenvolvidos sem a intenção de produzir a aprendizagem de algum conteúdo considerado valioso, pessoas vêm a aprender e compreender certos conteúdos considerados valiosos - às vezes considerados de altíssimo valor. Essas atividades e esses processos podem ocorrer fora da escola, em outras instituições, ou de maneira inteiramente não institucionalizada, como também pode ocorrer dentro da própria escola. Em decorrência do modo pelo qual uma escola é organizada e administrada, ou da maneira pela qual professores e funcionários se comportam em relação uns aos outros e aos alunos, pessoas podem vir a aprender e compreender conteúdos considerados de grande valor, sem que houvesse, a qualquer momento, a intenção de que alguém aprendesse alguma coisa em conseqüência disto (o que não quer dizer que a forma de organização e administração da escola, ou o comportamento de seus professores e funcionários seja não-intencional; freqüentemente é intencional, mas a intenção não é a de produzir a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos). Freqüentemente, o exemplo de um professor é mais educacional do que os conteúdos que ele ensina, pois seus alunos podem aprender mais conteúdos valiosos (ou conteúdos mais valiosos) em decorrência da observação de suas atitudes e de seu comportamento do que em conseqüência de seu ensino.

E, embora o professor possa se comportar de uma ou outra maneira, com a intenção de que seus alunos aprendam algo valioso em função de seu comportamento, o professor, freqüentemente, não tem esta intenção ao se

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Filosofia da Educação – volume 1 comportar como o faz (o que, novamente, não quer dizer que seu comportamento não é intencional; pode sê-lo, mas em função de outras intenções). Pais freqüentemente procurar educar seus filhos, e grande parte das vezes tentam fazê-lo através do ensino (via de regra verbal). As atitudes, o comportamento dos pais, porém, podem ensejar a aprendizagem e compreensão de conteúdos muito valiosos, principalmente na área da moralidade, sem que os pais tenham a intenção de que seus filhos aprendam alguma coisa em decorrência da maneira pela qual se comportam. E assim por diante.

Cremos que, com esses exemplos, tenha ficado claro o segundo modo de entender a distinção entre educação formal e educação informal.

3.2 A questão dos objetivos educacionais

O segundo comentário que gostaríamos de fazer se relaciona com algumas das questões que levantamos, ao final da primeira seção, acerca das relações que porventura possam existir entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e profissionalização, etc. No início da presente seção, quando procuramos caracterizar o conceito de educação, afirmamos que iríamos propor uma conceituação de educação que fosse suficientemente ampla. Com esta expressão quisemos dizer que uma conceituação de educação, para ser viável, deveria ser suficientemente ampla para permitir que conceitos de educação mais específicos, que enfatizassem aspectos diferentes do processo educacional, pudessem encontrar guarida debaixo dessa conceituação mais ampla. Vejamos como isto pode acontecer.

Nossa conceituação de educação é, basicamente, uma conceituação formal. Com isto queremos dizer que quaisquer visões substantivas da educação, que se preocupe em definir objetivos educacionais em um sentido mais específico - poderíamos dizer que o objetivo educacional mais geral está contido na conceituação de educação, a saber, fazer com que indivíduos adquiram domínio e compreensão de conteúdos considerados valiosos - cabe, muito bem, debaixo de nossa conceituação.

3.3 Educação humanística e educação técnico-profissionalizante

Analisemos, por exemplo, de início, a questão da chamada educação humanística versus a chamada educação técnico-profissionalizante. Certamente nesta questão tem havido radicais de ambos os lados.

De um lado há aqueles que enfatizam a conexão entre educação e conhecimento, concebendo a noção de conhecimento de modo a incluir nela

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quase que tão somente os pontos de vista e temas que, de certa maneira, sobreviveram ao teste de durabilidade e que, portanto, se mostraram “perenes” - há uma escola de teoria educacional chamada “perenialismo” - e de modo a excluir da noção de conhecimento, e, conseqüentemente, de sua visão da educação, tudo aquilo que se refere mais diretamente ao preparo para o exercício de uma profissão técnica. Este preparo é considerado como mero treinamento ou adestramento em certas técnicas e habilidades e não deveria merecer o honroso privilégio de ser considerado parte integrante do processo educacional, sendo batizado com vários nomes diferentes, como “processo de qualificação de mão-de-obra especializada”, “processo de formação de recursos humanos para as áreas técnicas”, etc.

Do outro lado há aqueles, freqüentemente não menos radicais, que enfatizam a conexão entre educação e vida, concebendo a noção de vida de modo a realçar suas ligações com o trabalho, e a deixar de lado suas ligações com o lazer. Educar, afirmam, é preparar para a vida, para o exercício de uma profissão. Tudo o mais é “ornamento”, “adorno”, “perfumaria”, menos educação. Dentre os que assumem esta posição há os que enfatizam o trabalho como forma de auto-realização individual, há os que procuram realçar o papel do trabalho como fator de desenvolvimento econômico, etc. Concordam, porém, em que o objetivo educacional básico é a preparação do indivíduo para a vida ativa do trabalho. (De certa maneira, as velhas discussões medievais acerca das vantagens e desvantagens da vida contemplativa e da vida ativa se repetem, com outras roupagens).

Não vamos tentar resolver essa controvérsia. Somente vamos procurar situá-la dentro de nossa conceituação de educação. Ao conceituar a educação, e ao explicitar aquela conceituação, observamos que os conteúdos (no sentido visto) que podem ser parte integrante do processo educacional são conteúdos considerados valiosos dentro de um dado contexto sócio-cultural. Mencionamos, também, sem discutir o fato, que se considerarmos o termo “cultura” em um sentido amplo (como quando se fala em “cultura brasileira”), valores conflitantes podem co-existir dentro de uma mesma cultura. Imaginemos, agora, para efeito de argumentação, uma cultura cujos valores sejam bastante coerentes, na qual o trabalho, seja como forma de realização pessoal, seja como fator básico de desenvolvimento econômico, seja o valor preponderante. Nesta cultura, a preparação para o trabalho, a formação profissional, será, quer nos parecer, o elemento predominante no processo educacional, outros ingredientes que possam não parecer diretamente profissionalizantes só sendo permitidos, dentro do processo educacional, na medida em que, mesmo de maneira indireta, venham a contribuir para o bom desempenho profissional. Estamos, sem dúvida, simplificando as coisas aqui, não fazendo várias distinções básicas e deixando de lado os aspectos complexos que envolvem processos educacionais concretos (e não

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Filosofia da Educação – volume 1 imaginários), apenas para esclarecer alguns aspectos da questão e mostrar a abrangência de nossa conceituação de educação. Em um contexto sócio-econômico como o que acabamos de imaginar, ninguém, mesmo que não concorde com a hierarquia de valores predominante naquele contexto, pode condenar a educação por ser estritamente profissionalizante: ela estará se ocupando dos conteúdos considerados valiosos naquele contexto. Se nossos valores não coincidem com os dessa cultura que imaginamos, devemos criticar e combater os valores dessa cultura, e não condenar o seu sistema educacional por incorporá-los. Em uma cultura cujos valores sejam diametricamente opostos aos da cultura que acabamos de imaginar, o processo educacional terá conteúdos basicamente diferentes no que diz respeito ao seu teor, mas ainda assim conteúdos considerados valiosos naquele contexto. 3.4 Educação e democracia

O que acabamos de dizer aplica-se, a nosso ver, mutatis mutandis, à relação entre educação e democracia. Em um contexto sócio-cultural em que a democracia é um valor básico, e o exercício da cidadania democrática é tido como algo valioso, o processo educacional vai ser visto como (pelo menos em parte) preparação para o exercício da cidadania democrática, fato que levará, sem dúvida, o sistema educacional a apresentar certas características que poderia não apresentar em outros contextos, onde diferentes fossem os valores. Naturalmente, a democracia, enquanto valor, é plenamente compatível com outros valores, e um processo educacional que prepara o indivíduo para o exercício da cidadania democrática pode também prepará-lo para o exercício de uma profissão, para a apreciação das artes, para o gozo dos momentos de lazer, etc.

Voltamos a enfatizar: se não concordamos com os valores de uma determinada cultura, devemos criticar e combater esses valores, e não condenar o seu sistema educacional por incorporá-los.

A questão difícil que pode ser colocada, entretanto, é como mudar valores sem atuar na educação?

3.5 Educação e sociedade

Isto nos traz ao nosso terceiro comentário, que está estreitamente ligado ao que acabamos de dizer, e que diz respeito ao que poderíamos chamar de relacionamento entre educação e sociedade. Observamos atrás que, se concebermos o termo “cultura” em um sentido amplo, podem co-existir, dentro de uma mesma cultura, valores conflitantes. A maior parte do mundo

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vive em sociedades de classes, e as várias classes sociais, freqüentemente, têm valores diferentes. Em uma sociedade pluralista, onde valores se chocam, onde os conteúdos considerados valiosos por uns e por outros não se identificam, que formam deverá tomar o sistema educacional?

Uma solução que se tem dado a este problema é o da criação de vários sub-sistemas educacionais, cada um deles enfatizando um certo conjunto de valores. Esta solução pareceria democrática, pois permitiria que cada qual escolhesse o sub-sistema em que iria ingressar, ou para o qual enviaria seus filhos, dependendo de seus próprios valores e daqueles que cada um dos sub-sistemas enfatizasse. Na prática sabemos que esta solução não tem sido muito democrática. Na verdade, os que propõem um sistema educacional único (a “escola única”) têm reivindicado, igualmente, a democraticidade de sua proposta e combatido a falta de democraticidade da solução que esboçamos, observando que esta solução leva, invariavelmente, à existência de um sub-sistema educacional para os “nossos filhos” e de outro(s) sub-sistema(s) para “os filhos dos outros”, visto que o acesso a um e a outro sub-sistema não é, por razões predominantes econômicas, franqueado, de igual maneira, a todos.

Outra solução, mais em moda no Brasil de hoje, preconiza a existência de um sistema educacional único que gradativamente se diferencia em sub-sistemas e que permite mobilidade horizontal (entre os sub-sistemas) e vertical (entre os sub-sistemas de um nível e os de outro nível).

Não vamos entrar aqui nos méritos ou deméritos dessas soluções nem mencionar outras que têm sido propostas. Esta não é nossa intenção. Estamos simplesmente procurando ilustrar o fato de que dentro de uma mesma cultura pode haver valores conflitantes, fato este que faz com que o sistema educacional enfrente sérios problemas e dificuldades para levar em conta esta divergência e conflitância de valores, e, conseqüentemente, de conteúdos considerados valiosos e de concepções de quais devam ser os objetivos educacionais específicos a serem promovidos.

3.6 Educação e a chamada “classe dominante”

Problema mais sério e grave é trazido à tona por aqueles que apontam ao fato de que sistemas e sub-sistemas educacionais são organizados e administrados por uma ínfima parcela da população, invariavelmente da chamada classe dominante, e refletem, em decorrência disso, os interesses e os valores dessa classe (que, porque dominante, está desejosa de manter o status quo, de perpetuar seus privilégios, e que, conseqüentemente, vê a tarefa da educação como sendo, de um lado, preparar uma elite para vir a ser os futuros “donos do poder”, e, de outro lado, preparar o restante da

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Filosofia da Educação – volume 1 população para se conformar com a condição de dominados) e não daqueles a quem esses sistemas e sub-sistemas se destinam. Não nos cabe aqui analisar esta questão, pois nosso propósito é mostrar que mesmo esse ponto de vista acerca da educação se enquadra dentro de nossa conceituação, pois nela, deliberadamente, não incluímos nenhuma indicação acerca de quem considera valiosos os conteúdos do processo educacional, apontando, inclusive, para o problema que surge em decorrência da co-existência de valores conflitantes dentro de uma mesma cultura. Deixamos, portanto, espaço para aqueles que conceituam a educação em termos do que ela é, bem como para aqueles que a conceituam em termos do que ela deve ser.

3.7 A educação que é e a que deve ser

Cumpre-nos relembrar, porém, que incluímos, em nossa conceituação de educação, a exigência de que o processo, para que seja educacional, deva levar ao domínio e à compreensão de conteúdos considerados valiosos, e observamos que um processo que leva ao domínio, sem compreensão, sem crítica, sem investigação da razão de ser, de certos conteúdos, não pode ser visto como educacional. Este é um lembrete que qualifica o que dissemos no final do parágrafo anterior, porque muito embora possamos falar em educação em termos do que ela é, não devemos nos esquecer de que a educação como ela é freqüentemente não é educação, mas, sim, como veremos, doutrinação.

3.8 O grande dilema da educação

A exigência de que um processo, para ser educacional, deva levar ao domínio e compreensão de conteúdos considerados valiosos coloca o processo educacional diante daquilo que consideramos sua maior dificuldade, e, por isso mesmo, seu maior desafio: de que maneira podem indivíduos vir a adquirir domínio de certos conteúdos considerados valiosos e, ao mesmo tempo, adquirir suficiente compreensão desses conteúdos de modo a assumir diante deles uma postura crítica e aberta, que os leve a um exame criterioso desses conteúdos e das alternativas a eles, exame esse de que pode, inclusive, resultar sua rejeição?

Naquela cultura que imaginamos atrás, na qual o valor preponderante era o trabalho, o desafio educacional maior seria o de encontrar uma maneira de promover a educação profissional que cumprisse o objetivo de preparar para o trabalho e para uma profissão, e, ao mesmo tempo, possibilitasse ao aluno assumir uma postura crítica diante do próprio tipo de educação que estava recebendo. O dilema educacional por excelência é, portanto, o do auto-questionamento da educação. É somente na medida em que a educação leva o indivíduo a questionar sua própria educação que está recebendo que ela

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está se desincumbindo de sua tarefa. Processos que levam ao mero domínio e à mera aceitação de conteúdos, mesmo daqueles unanimemente considerados valiosos, não são educacionais por não levarem os indivíduos à compreensão desses conteúdos, compreensão esta que inevitavelmente envolve o seu questionamento. É aqui que estabelecemos o contacto com a seção seguinte de nosso trabalho, onde discutiremos o problema da doutrinação.

3.9 Educação e o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo

Mas antes disso, em um último comentário, este acerca do ponto de vista, bastante difundido, que conceitua a educação como o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo. A dificuldade básica dessa conceituação diz respeito à noção de potencialidades. Em relação a qualquer indivíduo, quer nos parecer que seja impossível dizer, a priori, quais sejam as suas potencialidades. A noção de potencialidades, a nossa ver, quando aplicada a seres humanos, é uma daquelas noções que só têm sentido retrospectivamente. Baseando-nos naquilo que um dando indivíduo se torna, podemos afirmar que tinha potencialidade de tornar-se aquilo (pois doutra forma não se teria tornado). Só sabemos, portanto, quais as potencialidades de alguém a posteriori, depois que essas potencialidades já foram “atualizadas”, isto é, depois de este alguém ter se tornado aquilo para que tinha potencialidade.

Contudo, mesmo que fosse possível descobrir a priori quais as potencialidades dos indivíduos, nada nos garante que todas as suas potencialidades devessem, igualmente, ser desenvolvidas. Pode ser que algumas potencialidades (como, possivelmente, a potencialidade para comportamento agressivo e destrutivo) não devessem ser desenvolvidas. E ao decidirmos quais potencialidades deveriam e quais não deveriam ser desenvolvidas cairíamos no domínio dos “conteúdos considerados valiosos”.

Portanto, essa difundida conceituação de educação caracteriza o processo educacional como algo impossível (por não ser possível identificar a priori quais as potencialidades de alguém), ou, então, cai dentro de nossa conceituação (se se admite a possibilidade de identificar potencialidades a priori, cai-se na necessidade de discriminar entre as potencialidades que devem e as que não devem ser desenvolvidas, entre as potencialidades cujo desenvolvimento é considerado valioso e aquelas cujo desenvolvimento não é assim visto).

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Capítulo 4

Educação e Doutrinação

Há muita controvérsia, hoje em dia, em relação ao conceito de doutrinação. Não vamos, aqui, tentar solucionar todas as disputas e divergências: vamos apenas nos situar dentro da controvérsia, apresentando e defendendo um conceito de doutrinação e mostrando como o conceito de doutrinação, por nós caracterizado, se relaciona com os conceitos de educação, ensino e aprendizagem. Antes, algumas considerações gerais.

4.1 Considerações gerais

Quando, na seção anterior, procuramos conceituar a educação, afirmamos que os conteúdos que podem ser objeto de educação são (desde que considerados valiosos) os mais amplos possíveis, não restringindo, de maneira alguma, esses conteúdos à esfera intelectual e cognitiva. Quando falamos em doutrinação, porém, parece haver uma grande limitação no tocante aos conteúdos que podem ser doutrinados, a saber: apenas crenças, ou pontos de vista, ou convicções, ou ideologias, ou, talvez, teorias, podem ser doutrinados. Não parece fazer o menor sentido afirmar que alguém foi doutrinado, a menos que conteúdo dessa doutrinação seja alguma coisa do tipo que acabamos de mencionar. Parece-nos absurdo dizer que alguém foi doutrinado a adotar uma atitude passiva diante da violência, por exemplo, ou a tomar banho diariamente, ou qualquer coisa desse tipo. Alguém pode ter sido condicionado a adotar uma atitude passiva diante da violência, ou a banhar-se diariamente, mas condicionamento e doutrinação não são a mesma coisa. Condicionamento tem que haver com comportamento, atitudes, hábitos. Doutrinação tem que haver com crenças, pontos de vista, etc. Alguém pode, portanto, ser doutrinado na crença de que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência - mas isto já é outra coisa: estamos lidando, agora, com crenças e não com atitudes. (Não há, por exemplo, garantias de que quem acredite que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência venha a assumir esta atitude quando confrontado com a violência: há sempre a possibilidade de que haja incoerência entre o pensamento e comportamento de uma pessoa, e já os gregos nos alertavam acerca da “akrasia”, ou fraqueza da vontade).

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4.2 Conteúdos intelectuais e cognitivos Parece haver pouca dúvida, portanto, de que os conteúdos que podem ser doutrinados são sempre conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo mencionado (crenças, etc.), excluindo-se da esfera da doutrinação mesmo conteúdos intelectuais e cognitivos de outros tipos (como, por exemplo, habilidades intelectuais). Uma segunda consideração geral que devemos fazer acerca do conceito de doutrinação é a de que, muito embora a educação possa ocorrer, como vimos, sem ensino, e mesmo de modo não-intencional, a doutrinação é sempre intencional, ocorrendo sempre em situações de ensino. Vimos, também, que a educação tem um vínculo conceitual com a aprendizagem - não faz sentido dizer que houve educação se não houve nenhuma aprendizagem - e que o ensino tem um vínculo conceitual com a intenção de produzir a aprendizagem. Desde que a doutrinação tem, a nosso ver, um vínculo conceitual com o ensino, a doutrinação também tem um vínculo conceitual com a intenção de produzir a aprendizagem. Mas por que é que afirmamos que a doutrinação só pode ocorrer em situações de ensino? A resposta a esta pergunta nos parece óbvia e simples. Ao passo que faz bastante sentido dizer que alguém se educou, isto é, aprendeu certos conteúdos considerados valiosos de maneira a realmente compreendê-los, não nos parece fazer o menor sentido afirmar que alguém doutrinou-se: sempre afirmamos que alguém foi doutrinado. Portanto, devemos abordar a seguinte questão: tendo em vista as conclusões alcançadas atrás, de que a educação pode ocorrer, e freqüentemente ocorre, através do ensino, será que o único aspecto a distinguir a educação da doutrinação é que esta é um caso específico daquela? Em outras palavras, será que a doutrinação nada mais é do que a educação, quando esta ocorre através do ensino e se ocupa de conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo mencionado (crenças, etc.)? A resposta a esta questão deve ser, a nosso ver, enfaticamente negativa. Mas se este é o caso, o que realmente distingue a doutrinação da educação?

4.3 O ensino e aprendizagem de conteúdos Em duas ocasiões, em nossa seção anterior, aludimos, de passagem, à doutrinação. Pare melhor entendermos esse conceito, relembramos aqui essas passagens: “Alguém que aceita normas sociais e valores culturais sem examinar e compreender sua razão de ser, sem dúvida aprendeu um certo conteúdo (possivelmente até através do ensino), mas o fez sem compreensão: a aprendizagem, neste caso, foi não-educacional, e se a

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Filosofia da Educação – volume 1 aprendizagem foi decorrência de um ensino que estava interessado apenas na aceitação das normas e dos valores, e não na sua compreensão, o ensino também foi não-educacional (tendo sido, possivelmente, doutrinacional). Na segunda passagem observamos: “... O ensino e aprendizagem de conteúdos que consistam de enunciados falsos, ou de enunciados que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros (e, conseqüentemente, grande probabilidade de serem falsos), ou, talvez, dos enunciados acerca dos quais a evidência, favorável ou contrária, seja inconclusiva, não devem ser parte integrante do processo educacional, pois quer nos parecer que em nossa cultura não seja considerado valioso um conteúdo que consista de enunciados falsos, ou contrários à melhor evidência disponível, ou acerca dos quais a evidência seja inconclusiva. O ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais próximo da doutrinação do que da educação”. O que nos sugerem estas observações feitas atrás? A primeira nos sugere que o tipo de aprendizagem associado com a doutrinação, ou que resulta da doutrinação, é o da aprendizagem não acompanhada por compreensão, da aprendizagem não-significativa, meramente passiva - o indivíduo, no caso, meramente aceita, sem examinar e compreender sua razão de ser, certos conteúdos intelectuais e cognitivos (normas sociais e valores culturais). O que a segunda passagem nos sugere é que a intenção de quem doutrina está muito mais voltada para a aceitação dos conteúdos que ele está ensinando do que para um exame criterioso dos fundamentos epistemológicos desses conteúdos, exame este indispensável para sua compreensão. Em outras palavras, quem doutrina está muito mais interessado em que seus alunos simplesmente aceitam (acreditem em) certos pontos de vista do que em que eles venham a examinar os fundamentos desses pontos de vista, e, conseqüentemente, a compreendê-los, no sentido visto. É aqui que aquilo que a segunda passagem nos sugere se liga com o que a primeira nos sugeriu, a saber, que a aprendizagem que se associa com a doutrinação, diferentemente daquela que se associa com a educação, é a aprendizagem não acompanhada por compreensão, e isto em função da intenção daquele que ensina de que exatamente isto ocorra.

4.4 O conceito de doutrinação Feitas essas colocações, estamos em condições de conceituar, mais precisamente, a doutrinação: doutrinação é o processo através do qual uma pessoa ensina a outra certos conteúdos intelectuais e cognitivos (crenças, etc.), com a intenção de que esses conteúdos sejam meramente aprendidos (isto é, aprendidos mas não compreendidos), ou seja, com a intenção de que

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estes conteúdos sejam aceitos não obstante a evidência, sem um exame criterioso de seus fundamentos epistemológicos, de sua razão de ser - em suma, sem a compreensão que é condição sine qua non da educação. Baseando-nos nesta conceituação de doutrinação, podemos agora procurar esclarecer alguns dos aspectos mais controvertidos desse conceito, bem como seu relacionamento com o conceito de educação. Vamos começar com a questão do relacionamento entre educação e doutrinação.

4.5 Os conteúdos como critério de doutrinação Desde que, como acabamos de observar, doutrinação tem que haver apenas com conteúdos intelectuais e cognitivos de um certo tipo (crenças, etc.), vamos comparar educação e doutrinação no que dizem respeito a esses conteúdos, deixando fora de nossa análise outros conteúdos (habilidades intelectuais e cognitivas, atitudes, comportamentos, etc.) de que se ocupa a educação, mas que não são objeto da doutrinação. Também deixaremos de lado, nessa comparação, a educação informal (no segundo sentido visto) para nos determos na educação que se realiza através do ensino, pois, como constatamos, a doutrinação se realiza somente através do ensino. Tomemos, pois, como ponto de referência, um certo conteúdo intelectual e cognitivo: digamos, uma doutrina política, ou uma teoria científica. Vamos supor, para efeito de argumentação, que este conteúdo seja considerado valioso no contexto em que se realiza seu ensino. Se este é o caso, o conteúdo em questão pode ser ensinado de maneira educacional bem como de maneira não-educacional. Se a intenção de quem ensina é a de que os alunos aprendam e compreendam este conteúdo, o ensino estará sendo educacional. Se a intenção é a de que os alunos meramente aprendam (i.e., aceitem, acreditem em) o conteúdo em questão, o ensino está sendo não-educacional, ou, segundo nossa conceituação, doutrinacional.

4.6 A Intenção como critério de doutrinação O que distingue a educação da doutrinação, portanto, é basicamente a intenção da pessoa que ensina, e é a intenção que se torna o critério básico e fundamental que nos permite diferenciar entre um ensino educacional e um ensino doutrinacional. É verdade que vimos que apenas certos conteúdos podem ser doutrinados (conteúdos intelectuais e cognitivos de um certo tipo, a saber, crenças, pontos de vista, etc.). Mas isto não quer dizer que mesmo estes conteúdos não possam ser ensinados de dois modos diferentes, educacionalmente e doutrinacionalmente. Além disso, mesmo conteúdos

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Filosofia da Educação – volume 1 considerados valiosso podem ser doutrinados, como veremos, sendo, talvez, exatamente quando se trata de conteúdos considerados como altamente valiosos que há o maior risco de doutrinação. Portanto, o conteúdo não é o critério básico e fundamental que nos permite diferenciar entre educação e doutrinação. O mesmo conteúdo poderá ser ensinado de um ou de outro modo, educacionalmente ou doutrinacionalmente.

Isto quer dizer que não há conteúdos que estejam inevitavelmente fadados a serem objeto de doutrinação, como sugerem alguns, embora alguns conteúdos sejam, talvez, mais preferidos por doutrinadores do que outros. Com esta tomada de posição nos contrapomos àqueles que afirmam que em áreas como religião, moralidade, e política não há como evitar a doutrinação e que em áreas como a física e a astronomia não fazem sentido falar-se em doutrinação, pois os que assim afirmam privilegiam o conteúdo como critério básico e fundamental de diferenciação entre educação e doutrinação. Dada nossa conceituação de educação em doutrinação, tanto podem a religião, a moralidade e a política serem ensinadas de maneira educacional, como podem a física e a astronomia serem ensinadas de modo doutrinacional, como bem mostram algumas pesquisas recentes na área da história e sociologia da ciência.

4.7 Os métodos como critério de doutrinação

Nem é tampouco o método de ensino, como sugerem outros, o critério básico e fundamental de diferenciação entre doutrinação e educação, embora seja de se esperar que aquele que ensina com a intenção de que seus alunos aprendam e compreendam os conteúdos ensinados e aquele que ensina com a intenção de que seus alunos meramente aceitem os conteúdos ensinados venham a se valer de métodos de ensino diferentes. O primeiro possivelmente utilizará métodos que envolvam a livre discussão de idéias, a análise séria de alternativas, e, principalmente, um exame crítico e rigoroso dos fundamentos epistemológicos do conteúdo em questão; na verdade, poderíamos afirmar que ele se preocupará muito mais em fazer que seus alunos considerem a evidência e, à luz da evidência, tirem suas próprias conclusões, do que em fazer com que seus alunos simplesmente aceitem o conteúdo: seu intuito não é persuadir seus alunos a aceitarem o conteúdo, mas levá-los a compreendê-lo, e, em função dessa compreensão, aceitá-lo ou rejeitá-lo. O segundo, mesmo que se refira à evidência, aos fundamentos epistemológicos do conteúdo em pauta, subordinará a análise da evidência à sua intenção de fazer com que os alunos aceitem o conteúdo; é de se esperar, portanto, que esta evidência, se não inteiramente suprimida, seja distorcida, que evidência contrária não seja apresentada, ou, sendo apresentada, não seja analisada com justiça e isenção de ânimos e preconceitos.

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4.8 As conseqüências como critério de doutrinação

Também não é em função das conseqüências do ensino que podemos dizer se o ensino foi educacional ou doutrinacional, como sugerem ainda outros, embora neste caso também seja de esperar que as conseqüências do ensino educacional e do ensino doutrinacional sejam diferentes. Em condições normais, é de se esperar que o ensino educacional resulte em aprendizagem acompanhada de compreensão, e que o ensino doutrinacional resulte na mera aceitação (sem compreensão) dos conteúdos ensinados. É de se esperar, conseqüentemente, que, em decorrência de um ensino educacional, o aluno venha a ter uma mente mais aberta e flexível, que se preocupe com a análise e o exame da evidência, condicionando sua aceitação ou não dos conteúdos ensinados a este exame da evidência, como é de se esperar, também, que em decorrência de um ensino doutrinacional, o aluno venha a ter uma mente mais fechada, uma atitude mais dogmática e menos crítica, um apego mais emocional do que evidencial às suas convicções, pois lhe foi ensinado preocupar-se mais com certas crenças, ou doutrinas, ou teorias, do que com a análise crítica, isenta de preconceitos, da evidência. É de se esperar que o aluno doutrinado acabe por assumir a seguinte atitude: “É nisto que acredito: vamos ver agora se encontro alguma evidência para fundamentar minhas crenças”. Com esta atitude, é possível que suas razões para aceitar suas crenças não passem de racionalizações.

Não podemos nos esquecer, porém, de que tanto o ensino realizado de maneira educacional, quanto o realizado de maneira doutrinacional, podem ser mal sucedidos, em cujo caso as conseqüências que deles poderiam advir não seriam aquelas que, normalmente, se esperariam.

Podemos concluir, pois, que, em nível das intenções, a educação é um processo que tem por objetivo a abertura de mentes, a aplicação de horizontes, o incentivo à livre opção dos alunos, após análise e exame críticos da evidência, dos fundamentos epistemológicos, enquanto a doutrinação é um processo que tem por objetivo a transmissão e mera aceitação de crenças, etc., o fechamento de mentes, a redução de horizontes, a limitação de opções (freqüentemente a uma só), o “desprivilegiamento” da evidência em favor da crença, a persuasão e não o incentivo ao livre exame.

Aquele que ensina de maneira educacional coloca-se na posição de quem, humildemente, está em incessante busca da verdade, através do estudo e do exame da evidência. O que ensina de maneira doutrinacional coloca-se na posição do orgulhoso possuidor da verdade. Desde que, na busca da verdade, não se pode negligenciar nenhum aspecto da evidência que possa ser relevante, a educação é tolerante, pois mesmo as críticas e a evidência

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Filosofia da Educação – volume 1 negativa - diríamos mesmo, principalmente estas - podem contribuir para que nos aproximemos da verdade. Na medida, porém, em que a verdade já é considerada uma possessão, não há mais porque buscá-la, porque tolerar pontos de vista alternativos e conflitantes, pois na medida em que estes divergem da “verdade” só podem ser errôneos ou falsos, e quem os propõe só pode ser ignorante ou mal-intencionado. Daí a conexão, já mostrada por muitos, entre a crença na posse da verdade e a intolerância, mesmo a repressão, de pontos de vista divergentes, que ocorre quando há doutrinação.

Poderíamos mesmo dizer, fazendo paralelo a uma importante corrente de filosofia de ciência e de filosofia política, que a educação se preocupa muito mais em dar ao indivíduo condições de não ser facilmente persuadido, de evitar o erro, a falsidade, e, assim, aproximar-se, cada vez mais, da verdade, enquanto a doutrinação se preocupa muito mais com a persuasão, com as transmissões de crenças que se supõem verdadeiras (ou, mesmo, em alguns casos piores de doutrinação, crenças em que o próprio doutrinador não acredita, mas que, por algum motivo, deseja incutir em seus alunos). 4.9 Observações específicas

Dessa forma, podemos fazer algumas observações específicas em relação aos aspectos mais controversos do problema da doutrinação.

4.9.1 Doutrinação de conteúdos verdadeiros

Em primeiro lugar, o que acabamos de ver nos permite afirmar que é inteiramente possível que haja doutrinação mesmo de conteúdos verdadeiros.

4.9.2 Doutrinação de conteúdos valiosos

Em segundo lugar, temos que admitir que pode haver doutrinação mesmo quando os conteúdos são considerados valiosos e todos aprovam o que está acontecendo. Na verdade, é em situações assim que a doutrinação se torna mais fácil e mais provável, pois ninguém questiona o valor e a veracidade daquilo que está sendo ensinado. É muito mais fácil doutrinar alguém na ideologia capitalista nos Estados Unidos do que em um país radicalmente socialista, onde argumentos contra a ideologia capitalista provavelmente serão muito mais abundantes e comuns; e vice-versa.

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4.9.3 Doutrinação não intencional?

Em terceiro lugar, devemos concluir que não há doutrinação não-intencional. A questão, porém, é mais complexa aqui. Desde que, como vimos, a intenção de alguém (que não nós mesmos) só pode ser determinada pela análise de suas ações em um dado contexto, é possível atribuir a alguém a intenção de doutrinar mesmo que esta pessoa não admita esta intenção. Também no caso de alguém que não tem conhecimento de evidência contrária àquilo que está ensinando, a situação é complexa. Podemos atribuir-lhe a intenção de doutrinar, se ele tem condições de obter acesso a esta evidência e não se preocupa em fazê-lo. Teríamos maiores reservas em atribuir-lhe esta intenção se não houvesse maneiras viáveis de ele obter acesso a esta evidência. Isto significa que professores de conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo visto (crenças, etc.) correm grande risco de doutrinarem (ao invés de educarem) se não estiverem constantemente atualizados acerca dos desenvolvimentos nas áreas que ensinam.

Como observamos atrás, o professor que ensina conteúdos falsos como sendo verdadeiros, ou conteúdos que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros como sendo, de fato, verdadeiros, etc., estará, muito provavelmente, doutrinando, a menos que esteja em condições tais que o acesso a esta evidência lhe seja totalmente impossível. Não importa que ele acredite que os conteúdos que ensina sejam verdadeiros. Esta é uma questão subjetiva. A questão importante é a do relacionamento entre o conteúdo e a evidência, entre os conteúdos e os seus fundamentos epistemológicos - questão esta que, apesar das controvérsias atuais na área da epistemologia e da filosofia da ciência, nos parece ser objetiva.

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Filosofia da Educação – volume 1

Capítulo 5

A Doutrinação Infanto Juvenil

Em quarto lugar, devemos abordar, ainda que brevemente, a complicada questão que se coloca em relação a crianças em tenra idade, que ainda não atingiram a chamada “idade da razão”. Será que, no que diz respeito a estas crianças, só nos resta a alternativa de doutrinação, visto não serem elas capazes, segundo se crê, de compreensão, no sentido visto, de exame de evidência, de opção livre e consciente?

Em relação a este problema devemos distinguir (pelo menos) dois aspectos. O primeiro é que exigir que crianças pequenas se comportem de determinada maneira, ou que adotem determinadas atitudes, não é, segundo nossa caracterização, doutriná-las, porque os conteúdos aqui não são conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo passível de doutrinação (crenças, etc.), mas comportamentos e atitudes. A doutrinação poderá ocorrer no momento em que se procura fazer com que as crianças aceitem certas justificativas para o comportamento e as atitudes que lhes estão sendo exigidos. O segundo aspecto é que mesmo as crianças que ainda não atingiram a maturidade mental e intelectual necessária para compreender a razão de ser de certos comportamentos e atitudes que lhes são exigidos podem ser oferecidas as razões dessas exigências, as alternativas, etc., de maneira bastante aberta e flexível. Haverá doutrinação se a intenção for a de que as crianças aceitam estas justificativas (ou qualquer outro conteúdo do tipo passível de doutrinação) passivamente, sem discussão, a despeito de qualquer outro tipo de consideração, ou argumentação, ou evidência.

5.1 Doutrinação e o dilema da educação

Em quinto lugar, a possibilidade de doutrinação faz com que aqueles que se preocupam com a educação, de seus filhos ou de seus alunos, se confrontem com um sério dilema, semelhante ao grande desafio a que fizemos menção no final da seção anterior. Este dilema, embora possa aparecer em qualquer área, aparece mais freqüentemente naquelas áreas em que a evidência parece ser mais inconcludente, mas em que, por ironia do destino, se encontram algumas das questões mais básicas e importantes com que tem que se defrontar o ser humano: a moralidade, a política, e a religião. Por um lado, acreditamos (por exemplo) ser necessário apresentar a nossos filhos e alunos o ponto de vista moral, o lado moral das coisas, para que venham a ser seres morais. Do outro lado, acreditamos que

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temos de evitar a doutrinação, se queremos realmente educar nossos filhos e alunos, isto é, se queremos que sejam indivíduos livres para pensar e escolher, liberdade esta que é pré-condição para que eles venham a ser seres morais.

É diante desse dilema que os educadores terão que procurar as melhores maneiras de prosseguir, sabendo, de antemão, que a tarefa é dificílima e que muitos, antes deles, optaram, ou por não procurar oferecer nenhum ensino nessas áreas, ou, então, pela doutrinação como única alternativa viável. [E o exemplo?] É em confronto com este dilema que muitos têm optado pela alternativa da chamada “educação negativa”, que não é nem educação nem negativa, devendo, talvez, ser descrita como “não educação neutra”, por paradoxal que esta expressão também pareça: afirmam que o ensino da moralidade, da política, e da religião não deve ser ministrado até que a criança atinja maturidade suficiente para analisar a evidência e tirar suas próprias conclusões. Outros têm se desesperado e concluído que a única alternativa, apesar dos pesares, é doutrinar - estes são os doutrinadores contra sua própria vontade. Tanto os defensores da “educação negativa” como os que, contra a vontade, optam pela doutrinação, não vêem uma terceira alternativa, não vêem uma solução realmente educacional para o problema. Embora não afirmemos que esta solução seja fácil de alcançar, cremos que desenvolvimentos recentes, principalmente no campo da educação moral, têm nos indicado o caminho a seguir na direção de uma educação moral viável e digna do nome. Mas ainda há muito por fazer nesta área.

5.2 Porque a doutrinação é censurável e indesejável

Em sexto e último lugar, gostaríamos de observar que, de tudo o que foi dito acerca da doutrinação, fica claro porque a doutrinação é indesejável e moralmente censurável. Quem doutrina não respeita a liberdade de pensamento e de escolha de seus alunos, procurando incutir crenças em suas mentes e não lhes dando condições de analisar e examinar a evidência, decidindo, então, por si próprios; quem doutrina desrespeita os cânones de racionalidade e objetividade, tratando questões abertas como se fossem fechadas, questões incertas como se fossem certas, enunciados falsos ou não demonstrados como verdadeiros como se fossem verdades acima de qualquer suspeita.

É verdade que esta tomada de posição contra à doutrinação já implica, ao mesmo tempo, um comprometimento com certos valores e ideais básicos, como o da liberdade de pensamento e de escolha dos alunos (e de qualquer pessoa), o da racionalidade, etc. É importante que se reconheça isto para que não se incorra no erro de pensar que a adoção desses valores e ideais

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Filosofia da Educação – volume 1 não precisa ser defensável, e, mais que isto, defendida, através da argumentação. Argumentos contra a adoção desses valores e ideais precisam ser cuidadosamente analisados para que, ao propor a tese da indesejabilidade e falta de apoio moral da doutrinação, não o façamos de modo a imitar os doutrinadores, isto é, tratando como fechada uma questão que é realmente aberta. Cremos não ser esta a ocasião de fazer esta defesa dos valores e ideais da liberdade de pensamento e escolha, nem da racionalidade. Mas isto não significa que estes valores e ideais não precisem ser defendidos.

Com estas observações concluímos esta seção sobre doutrinação. Cremos que a análise desse conceito, além de valiosa em si mesma, nos ajuda a compreender melhor, por contraste, o que seja a educação. Uma análise mais completa deveria incluir um exame das semelhanças e diferenças existentes entre doutrinação, treinamento, condicionamento, lavagem cerebral, etc. Há importantes diferenças, bem como semelhanças, entre estes conceitos. Isto, porém, precisará ficar para um outro trabalho.

5.3 Filosofia da educação e teoria educacional Até aqui foram dadas respostas a algumas das perguntas formuladas no final de nossa primeira seção acerca do relacionamento existente entre o conceito de educação e os conceitos de ensino e aprendizagem, bem como entre educação e valores, educação e cultura, etc. Nossas respostas, reconhecidamente em forma de esboço, são, na verdade, bastante pessoais. É possível e provável que muitos discordem delas. Cremos, contudo, que elas fazem sentido, são justificáveis, e nos ajudam a “colocar a cabeça em ordem” em relação a essas noções. Dada a importância que atribuímos ao conceito de doutrinação, resolvemos dedicar a este conceito uma seção em separado, pois quer nos parecer que a análise desse conceito nos ajuda a compreender melhor, por contraste, o conceito de educação.

A muitos pode parecer que o tipo de investigação que caracterizamos neste trabalho e ilustramos, embora de alguma utilidade e de algum interesse, não seja de grande importância. Mais importante do que a tarefa “classificatória” que a filosofia pode desenvolver, diriam, é sua tarefa “normativa”, à qual ela não se deve furtar: a filosofia deve contribuir - continuariam - para que as grandes e pequenas decisões que diariamente precisam ser tomadas na área da educação sejam tomadas de maneira a evidenciar sabedoria, e não apenas clareza de pensamento. À filosofia da educação competiria, pois, segundo muitos, investigar a questão dos objetivos específicos da educação, propondo metas a serem atingidas e valores a serem promovidos.

Concordamos, em grande parte, com o espírito dessas observações. Achamos que clareza em nossos conceitos e acerca de nossas

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pressuposições básicas não é tudo, não é condição suficiente para a sabedoria de nossas decisões, dos alvos que propomos, a nós mesmos e aos outros, dos valores que adotamos e que desejamos que os outros também cultivem. Contudo, estamos certos de que esta clareza seja condição necessária para esta sabedoria. Embora alguém possa ter clareza quanto às suas concepções, sem ser sábio, ninguém consegue ser sábio sem antes adquirir clareza acerca das convicções mantidas por ele próprio e por outros.

Quer nos parecer, portanto, que a tarefa do educador, e quiçá do filósofo da educação, não termine com a análise e clarificação dos conceitos educacionais básicos e das pressuposições que sustentam a atividade educacional. A tarefa clarificatória da filosofia é apenas um preâmbulo à tarefa mais normativa de examinar, questionar, e propor objetivos e valores. O filósofo, porém, não detém o monopólio destas últimas questões. No que diz respeito aos objetivos e valores que devem nortear a vida, e, conseqüentemente, o processo educacional, o filósofo, como qualquer outra pessoa, estará sempre buscando, procurando, pois na área de valores e objetivos de vida não há peritos e profissionais: cada um, em última instância, tem que escolher os seus valores básicos e os objetivos que deverão nortear sua vida. Não há como abrir mão dessa tarefa solicitando a um filósofo (ou a seja lá quem for) que faça isto por nós, sem abrirmos mão de nossa autonomia, e, em última instância, de nós mesmos.

À filosofia da educação como aqui caracterizada deve, portanto, seguir uma teoria da educação que tenha como principal tarefa o exame dos princípios básicos, objetivos, valores, etc., que prevalecem em nossa cultura e que norteiam, atualmente, a educação em nosso país, a reflexão crítica sobre eles e sobre a realidade social, econômica e cultural que envolve o processo educacional, e, se necessário for (e quase sempre o é), a proposta de novos princípios básicos, objetivos e valores para a nossa cultura e para a nossa educação. À teoria da educação compete, portanto, a tarefa normativa a que fizemos referência, e para se desincumbir desta tarefa a teoria da educação deve recorrer não só à filosofia da educação, mas também à sociologia da educação, à psicologia da educação, à economia da educação, à medicina preventiva e social, etc. - ou, para encurtar, a qualquer ramo do saber que possa contribuir alguma coisa, nunca se esquecendo de incluir na mistura uma boa dose de bom senso.

Para muitos, o que foi caracterizado como sendo a tarefa da teoria da educação nada mais é do que a real tarefa da filosofia da educação. Não temos o menor interesse em discutir rótulos, pois a discussão seria meramente acadêmica. Quer nos parecer, porém, que a bem da clareza, seja recomendável e de bom alvitre estabelecer uma distinção entre a

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Filosofia da Educação – volume 1 filosofia da educação e a teoria educacional, pelas seguintes razões.

a) A filosofia da educação, como aqui caracterizada, é uma atividade reflexiva de segunda ordem, que tem como objeto as reflexões de primeira ordem feitas sobre os vários aspectos do processo educacional; a teoria educacional é uma atividade reflexiva de primeira ordem, no nosso entender, que tem por objeto básico a realidade educacional e não reflexões que tenham sido feitas sobre esta realidade; estas reflexões servirão de subsídios ao teórico da educação para que este elabore suas próprias conclusões, mas ele tem, basicamente, que “debruçar-se sobre a realidade educacional”, para entendê-la, explicá-la, criticá-la e propor sua reformulação;

b) Na medida em que a teoria educacional tem que se valer das contribuições das várias ciências que estudam a educação, ela extrapola os domínios da filosofia e, conseqüentemente, da filosofia da educação. A filosofia da educação, como aqui concebida, deveria ser vista, como observamos, como um prolegomenon, um preâmbulo à teoria educacional, cuja tarefa principal seria fornecer ao teórico da educação os instrumentos conceituais básicos para a sua teoria;

c) A teoria educacional, embora possa (e talvez deva) ser considerada científica, tem uma finalidade que vai além da mera explicação e interpretação da realidade educacional: ela procura orientar e guiar a prática educacional. É por isso que a teoria da educação, além de estudar e examinar a realidade educacional, tem a função de criticar esta realidade e de propor novas direções a seguir. A teoria da educação, para usar uma expressão que se torna comum, não tem como tarefa simplesmente constatar qual é a realidade educacional: ela vai além e contesta esta realidade, não em função de um espírito puramente negativista, mas em função de uma proposta de realidade diferente. E esta proposta envolve, inevitavelmente, valores diferentes. Portanto, a teoria educacional, em sua tarefa de orientar e guiar a prática educacional, envolve, necessariamente, um ingrediente de valores”.

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Filosofia da Educação – volume 1

Capítulo 6

Conceituando a Educação

Nas sociedades primitivas a educação se acha difusa, integrada ao próprio funcionamento da sociedade como tal, de modo que todos educam a todos. À medida que os agrupamentos humanos se tornam mais complexos, surgem organizações especificamente encarregadas da transmissão da herança cultural, como a escola (se bem que em graus de organização variáveis, conforme as necessidades). No entanto, a educação formalizada não substitui totalmente a educação informal (ver próximo capítulo), que permeia o tempo todo as relações entre os homens.

A educação não é, porém, a simples transmissão da herança dos antepassados, mas o processo pelo qual também se torna possível a gestação do novo e a ruptura com o velho. Evidentemente, isso ocorre de maneira variável, conforme sejam as sociedades estáveis ou dinâmicas. As comunidades primitivas resistem à mudança, devido ao caráter divino de suas crenças: o mesmo acontecia nas antigas civilizações do Egito e do Oriente, que eram tradicionalistas. Já nas sociedades urbanas contemporâneas a mobilidade é muito maior.

6.1 O ato de educar

Para o professor J. Carlos Libâneo, “educar (em latim, educare) é conduzir de um estado a outro, é modificar numa certa direção o que é suscetível de educação. O ato pedagógico pode, então, ser definido como uma atividade sistemática de interação entre seres sociais, tanto no nível do intrapessoal como no nível da influência do meio, interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos visando provocar neles mudanças tão eficazes que os tornem elementos ativos desta própria ação exercida. Presume-se, aí, a interligação no ato pedagógico de três componentes: um agente (alguém, um grupo, um meio social etc.), uma mensagem transmitida (conteúdos, métodos, automatismos, habilidades etc.) e um educando (aluno, grupos de alunos, uma geração etc.)”. Diz ainda o professor Libâneo que o especificamente pedagógico está na imbricação entre a mensagem e o educando, propiciada pelo agente. Como instância mediadora, a ação pedagógica torna possível a relação de reciprocidade entre indivíduo e sociedade. Conclui-se, então, que a educação não pode ser compreendida fora de um contexto histórico-social concreto,

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sendo a prática social o ponto de partida e o ponto de chegada da ação pedagógica. No início do processo, o educando tem uma experiência social confusa e fragmentada, que deve ser levada a um estádio de organização. Nesse sentido, o professor Dermeval Saviani define educação como “um processo que se caracteriza por uma atividade mediadora no seio da prática social global”. A fim de não confundir conceitos, convém estabelecer algumas nuanças entre educação, ensino e doutrinação. Educação é um conceito genérico, mais amplo, que supõe o processo de desenvolvimento integral do homem, isto é, de sua capacidade física, intelectual e moral, visando não só a formação de habilidades, mas também do caráter e da personalidade social. O ensino consiste na transmissão de conhecimentos, enquanto a doutrinação é uma pseudo-educação que não respeita a liberdade do educando, impondo-lhe conhecimentos e valores. Nesse processo, todos são submetidos a uma só maneira de pensar e agir, destruindo-se o pensamento divergente e mantendo-se a tutela e a hierarquia. Ao contrário da doutrinação, a verdadeira educação tende a dissolver a assimetria entre educador e educando, pois, se há inicialmente uma desigualdade, esta deve desaparecer à medida que se torna eficaz a ação do agente da educação. O bom educador é, portanto, aquele que vai morrendo durante o processo... Quanto aos dois primeiros conceitos, educação e ensino, não há como separar nitidamente esses dos pólos que se completam. Como se poderia educar alguém sem informá-lo sobre o mundo em que vive? É a partir da consciência de sua própria experiência e da experiência da humanidade que o homem tem condições de se formar como um ser moral e político. Da mesma maneira, toda informação, mesmo que fornecida sem a aparente intenção de formação, ao ser assimilada pelo educando, interfere na sua concepção de mundo. Com freqüência a informação pretensamente neutra está, na verdade, carregada de valores.

6.2 Fins da educação

Pelo que vimos até agora, parece que a práxis educacional, sendo intencional, será mais coerente e eficaz se souber explicitar de antemão os fins a serem atingidos no processo. Retomando a história, vemos que a Grécia dos tempos homéricos preparava o guerreiro: na época clássica, Atenas formava o cidadão e Esparta era uma

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Filosofia da Educação – volume 1 cidade que privilegiava a formação militar. Na Idade Média, os valores terrenos eram submetidos aos divinos, considerados superiores, e assim por diante. Seguindo esse raciocínio, sem dúvida teríamos muita dificuldade em determinar com segurança quais os fins da educação no mundo contemporâneo: que valores se encontram subjacentes ao processo? Se tal elucidação é relativamente simples quando é feita o posteriori, mostra-se problemática quando queremos definir os fins aqui e agora. Em um primeiro momento, é inadequada a procura de fins tão gerais, válidos em todo tempo e lugar. Já vimos no Capítulo 3 que a procura de um ideal de homem universal, válido para todas as épocas, favorece a abordagem ideológica do problema. Portanto, é preciso analisar os fins para uma determinada sociedade e, ainda assim, estar atento para os conflitos a ela inerentes: onde existem classes com interesses divergentes, os fins não podem ser abstratamente considerados. Da mesma forma, não há como analisar os fins da educação em um país desenvolvido, aplicando as conclusões aos países em desenvolvimento.

Há ainda outro problema. A partir de considerações feitas por Dewey, para quem o processo educativo e o seu próprio fim (o fim não é prévio, nem último, mas deve ser interior à ação), o professor argentino G. Cirigliano tece algumas considerações interessantes “No viver diário, vida, atividade e fim se confundem. Os pais criam os seus filhos para torná-los adultos? Ou a sua criação é parte da vida deles e dos seus próprios filhos?” Isso significa que a educação não deve estar separada da vida nem é preparação para a vida, mas é a vida mesma. Não sendo os fins exteriores à ação, não quer dizer que a ação se faça sem a clarificação dos fins, e sim que esses devem ser compreendidos como objetivos que se colocam a partir da valoração por meio da qual o homem se esforça para superar a situação vivida. Por isso as necessidades humanas devem ser analisadas concretamente, e as prioridades serão diferentes se nos propusermos a educar em uma favela ou em um bairro de elite. Portanto, os fins se baseiam em valores provisórios que se alteram conforme alcançamos os objetivos imediatos propostos e também enquanto muda a realidade vivida.

6.3 Educação e política

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A educação não pode ser compreendida à margem da história, mas apenas no contexto em que os homens estabelecem entre si as relações de produção da sua própria existência. Dessa forma, é impossível separar a educação da questão do poder: a educação não é um processo neutro, mas se acha comprometida com a economia e a política de seu tempo. Para o colonizador português, o “bom índio” era o índio submisso, disposto a trabalhar de acordo com o padrão europeu e a se tornar cristão, abandonando suas crenças, consideradas atrasadas. Por isso, a educação não pode ser considerada apenas um simples veículo transmissor, mas também um instrumento de crítica dos valores herdados e dos novos valores que estão sendo propostos. A educação abre espaço para que seja possível a reflexão crítica da cultura. Assim, convém lembrar a importância da formação do educador, para que a superação das contradições seja possível com maior grau de intencionalidade e compreensão dos fins da educação. Nos tempos em que vivemos hoje, algumas tarefas urgentes se impõem. A principal delas é que tenhamos força suficiente para tornar nossa sociedade mais justa e menos seletiva. Tornar a educação verdadeiramente universal, formativa, de modo que socialize a cultura herdada, dando a todos os instrumentos de crítica dessa mesma cultura, só será possível pelo desenvolvimento da capacidade de trabalho intelectual e manual integrados. A educação deve instrumentalizar o homem como um ser capaz de agir sobre o mundo e, ao mesmo tempo, compreender a ação exercida. A escola não é a transmissora de um saber acabado e definitivo, não devendo separar teoria e prática, educação e vida. A escola ideal não separa cultura, trabalho e educação.

Capítulo 7

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Filosofia da Educação – volume 1

A Filosofia da Escola Tradicional

Não é por sadismo que a escola tradicional exige silêncio e imobilidade, que faz colocar os alunos em filas e que concede tanta importância ao aprendizado das regras, inclusive ortográficas e gramaticais. É porque se apóia sobre uma pedagogia da disciplina, da antinatureza. É, mais profundamente ainda, porque considera a natureza da criança originalmente corrompida. (Bernard Charlot)

7.1 Origem da escola tradicional

É difícil o desafio de delimitar um conceito tão extenso quanto o de “escola tradicional”. Sob essa denominação articulam-se as mais diversas tendências no decorrer de pelo menos quatro ou cinco séculos (desde o século XVI até o século XX), período em que a escola tradicional sofreu inúmeras transformações. Em face das justas críticas feitas a ela pela escola nova, costuma-se caracterizar de forma negativa a totalidade da escola tradicional, vista com desprezo e muitas vezes de forma caricaturada. A fim de evitar o risco de uma análise superficial, que nos levaria a posições simplistas e grosseiras, vamos fazer um brevíssimo retrospecto dessa tendência multifacetada. A escola se institucionaliza de maneira mais complexa a partir do Renascimento e da Idade Moderna, quando exige o confinamento dos alunos em internatos, a separação por idades, a graduação em séries, a organização de currículos e o recurso dos manuais didáticos. Essas mudanças levaram a uma maior produção teórica dos pedagogos.

Em um primeiro momento, a atenção dada à escola é fruto dos interesses da burguesia nascente, que começa a ver a família e a criança de maneira diferente, buscando “proteger” seus filhos dos desvios do mundo e dando-lhes uma educação sólida, voltada para o passado. A visão da criança como frágil, sujeita à corrupção, leva à exigência de uma disciplina severa, cujo melhor exemplo está na escola jesuítica.

Outra forte tendência se configura na rejeição da escola medieval, de inspiração religiosa e excessivamente contemplativa, e na reivindicação de uma escola realista, adaptada ao mundo moderno, que se encontra em transformação. As necessidades da burguesia em ascensão exigem outro tipo de educação, mais voltada para a vida e com o olhar no futuro.

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A partir da Revolução Industrial (século XVIII) a ampliação da rede escolar se torna ainda maior, uma vez que o operário das fábricas, mais do que o camponês, precisa pelo menos saber ler, escrever e contar. Quanto aos níveis superiores de escolarização, surge a necessidade de transmissão dos conhecimentos advindos das novas ciências, bem como o estímulo para novas descobertas, a fim de que a tecnologia se desenvolva ainda mais.

No século XVIII e, sobretudo no XIX a legislação de diversos países revela o interesse do Estado em assumir a educação, tornando-a leiga e gratuita. No entanto, nessa época a escola tradicional passa a ser alvo de diversas críticas. Muitas delas resultam das descobertas científicas, sobretudo nas áreas da biologia e das ciências humanas - como a psicologia e a sociologia -, que trouxeram subsídios para uma análise mais rigorosa da educação. A partir dessas descobertas, é dada uma maior atenção às diferenças individuais, buscando-se também técnicas mais eficazes de aprendizagem.

Diante da dificuldade em analisar de forma homogênea a que seria a “escola tradicional”, veremos em primeiro lutar o que chamamos genericamente de características gerais, mesmo correndo o risco das simplificações, para em seguida fazer um breve histórico que possibilite introduzir algumas nuanças nessa abordagem.

7.2 Características gerais dessa escola

Quanto à relação entre professor e aluno, a educação tradicional é magistrocêntrica, isto é, centrada no professor e na transmissão dos conhecimentos. O mestre detém o saber e a autoridade, dirige o processo de aprendizagem e se apresenta, ainda, como um modelo a ser seguido.

Essa relação vertical, porque hierárquica, tem como conseqüência, nos casos extremos, a passividade do aluno, reduzido a simples receptor da tradição cultural. O conteúdo visa a aquisição de noções, dando-se ênfase ao esforço intelectual de assimilação dos conhecimentos. Daí derivam o caráter abstrato do saber, o verbalismo e a preocupação em transmitir o saber acumulado. A valorização do passado é inevitável, assim como o destaque ao estudo das “obras-primas”. O exagero desses aspectos leva a um distanciamento com relação à vida e aos problemas cotidianos e atuais.

Quanto à metodologia, é valorizada a aula expositiva, centrada no professor, com destaque para situações em sala de aula nas quais são feitos exercícios de fixação, como leituras repetidas e cópias. Submetidos a horários e currículos rígidos, os alunos são considerados um bloco único e homogêneo, não havendo qualquer preocupação com as diferenças individuais.

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Filosofia da Educação – volume 1

Todas essas características evidenciam a posição empirista, que dá ênfase à assimilação, por parte do aluno, do conhecimento que lhe é externo e deve ser adquirido por meio de transmissão, sem a exigência de maiores elaborações pessoais.

A avaliação valoriza os aspectos cognitivos (de aquisição de conhecimentos transmitidos), superestimando a memória e a capacidade de “restituir” o que foi assimilado. As provas assumem um papel central entre os instrumentos de avaliação, chegando a determinar o comportamento do aluno, sempre preocupado em “estudar o que será avaliado”, não em “estudar para saber”, simplesmente. Se de um lado o professor “dá a lição”, de outro o exercício ou a prova representam o momento de “restituição”, em que ele “toma a lição”.

Como o processo de verificação da aprendizagem se torna artificial, ela passa a ser estimulada por meio de prêmios e punições, assim como há uma valorização da competição entre os alunos, submetidos a um sistema classificatório.

A institucionalização da escola surgiu sob o signo da hierarquia e da vigilância. Assim, para ser “protegida”, a criança se submete a um sistema disciplinar paternalista, autoritário e dogmático. Rigidamente estipuladas, as normas garantem a submissão do aluno, para quem a obediência se torna a virtude primeira.

A manutenção da disciplina e da ordem é garantida freqüentemente por meio do castigo corporal, prática pela qual se mantinha a ordem pela intimidação e que até bem pouco tempo atrás era considerada normal.

7.3 As muitas faces da escola tradicional

7.3.1 Renascimento e Idade Moderna

Como já dissemos, a escola tradicional é multifacetada e adapta-se às exigências históricas ao longo do tempo, como também tem sido a implantação do liberalismo.

Em um primeiro momento, durante os séculos XVI e XVII, os colégios são organizados, sobretudo pelas ordens religiosas, interessadas também no processo de evangelização. Destaca-se a ação dos jesuítas, cuja importância advém inclusive da expansão da cultura européia para as terras recém-descobertas. Rigorosos na disciplina, os jesuítas desenvolvem cuidadosa prática pedagógica para orientar a atuação dos professores. Privilegiam a tradição clássica, preferem o ensino do latim às línguas vernáculas e, indiferentes às

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críticas feitas à filosofia medieval, permanecem fiéis ao pensamento filosófico de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino. Alheios à disputa entre racionalistas e empiristas, recusam-se a tratar das descobertas científicas de Galileu e Kepler. Eles ignoram e condenam Descartes, que, aliás, foi um de seus ilustres alunos. Dão pouca importância à história, à geografia e à matemática, enfatizando a retórica e os exercícios de erudição.

Configuram-se aí as linhas mais rígidas da chamada escola tradicional, que era um universo exclusivamente pedagógico, separado da vida e preservado do mundo. Temperada pela clausura, pela renúncia e pelo sacrifício, a disciplina é imposta por meio da vigilância total. O esforço individual é estimulado por atividades competitivas, como torneios intelectuais e emulações constantes, incentivadas por prêmios e punições.

Paralelamente, embora a maior parte das escolas permaneça efetivamente nas mãos dos jesuítas, uma tendência mais realista se delineia, tentando resgatar o contato com o vivido, em direção a um saber mais ativo.

O realismo pedagógico, por considerar que a educação deve partir da compreensão das coisas e não das palavras, exigirá uma nova didática. Nesse trabalho de instauração da nova escola se empenham educadores leigos, mas também religiosos.

Entre os religiosos, Lutero (1483-1546), por exemplo, iniciador da Reforma Protestante, defende intensamente a implantação da escola primária para todos e, de acordo com o espírito do humanismo, repudia os castigos físicos e o verbalismo oco da escolástica, a filosofia medieval. Propõe jogos, exercícios físicos, música, valoriza os conteúdos literários e recomenda o estudo de história e de matemática.

No século XVII, os oratorianos se opõem à linha dos jesuítas e, dentro do espírito moderno, voltam-se para as novas ciências e para o pensamento cartesiano; ensinam francês e outras línguas modernas, além do latim; estudam história e geografia com o uso de mapas; encorajam a curiosidade científica e utilizam um sistema disciplinar brando.

A tendência realista na educação teve seus principais adeptos, no entanto, na vertente leiga que defendia a secularização do pensamento, bem ao gosto do movimento humanista, voltado para a superação da visão religiosa do mundo. No Renascimento, destacam-se o pensamento de Erasmo, de Rabelais e de Montaigne. No século XVII, vários teóricos se preocuparam com a questão metodológica, o que se reflete nas indagações a respeito da pedagogia: se há método para conhecer corretamente, existe método para ensinar de forma mais rápida e mais segura.

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Filosofia da Educação – volume 1

É nesse sentido que se dirige o esforço de João Amós Comênio (1592-1670), autor de Didática Magna, para quem o ponto de partida da aprendizagem deve ser sempre o conhecido. Partir das próprias coisas, valorizar a experiência, educar os sentidos são passos de uma educação que se faz pela ação e voltada para a ação: “só fazendo aprendemos a fazer” é um dos lemas de Comênio.

Essa mudança de orientação enuncia de certa forma as preocupações da escola ativa, e Comênio inova quando defende a escola única, universal e a cargo do Estado. Porém, é um típico representante da escola tradicional na sua busca pela ordem, que se revela no cuidado com o método que estipula os passos da aprendizagem. Com isso, valoriza o papel do professor como controlador do processo.

Segundo Georges Snyders, “Comênio, ao mesmo tempo em que institui a escola tradicional, a ultrapassa por certos aspectos de sua obra e de seu pensamento. E, nos livros escolares que escreveu, já podemos ver uma como síntese feliz entre dois aspectos da pedagogia”.

O inglês John Locke (1631-17041) é conhecido, na política, pela elaboração do pensamento liberal e, na teoria do conhecimento, pela defesa das teses empiristas.

Ao criticar as idéias inatas de Descartes, Locke desenvolve uma nova concepção da mente infantil e, conseqüentemente, de educação, enfatizando o papel do mestre em proporcionar experiências fecundas que auxiliem a criança a fazer uso correto da razão.

Na linha dos principais críticos da velha tradição medieval, Locke lamenta a excessiva preocupação com o latim e o descaso com a língua vernácula e o cálculo. Como bom representante dos interesses burgueses, considera importante o estudo de contabilidade e de escrituração comercial, visando a preparação mais ampla para a vida prática. Sua pedagogia realista recusa a retórica e os excessos da lógica, propondo o estudo de história, geografia, geometria e ciências naturais.

No entanto, ainda que as idéias realistas permeiem as teorias pedagógicas do século XVII, nem sempre se fazem presentes efetivamente, predominando de fato o ensino acadêmico e intelectualista.

7.3.2 O ideal iluminista de educação

O século XVIII é conhecido como Século das Luzes. Iluminismo, Ilustração ou

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Aufklärung. Luzes significam, nesse contexto, o poder da razão humana para interpretar e reorganizar o mundo. Tal otimismo com respeito à razão vinha se revelando, desde o Renascimento, no processo de secularização da consciência, antes impregnada de religiosidade.

Foi importante o esforço dos franceses La Chalotais, Condorcet e Lepelletier. Autores de projetos apresentados à Assembléia Legislativa tinham por objetivo tornar a escola leiga e função do Estado.

Para Kant (1724-1804), um dos maiores pensadores iluministas, a Aufklärurng “é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio responsável”. Esse caminho novo é expresso no lema da Ilustração, Sapere aude! (“Tenha coragem de usar seu próprio entendimento!”).

As reflexões de Kant a respeito da moral se tornam fecundas para a pedagogia tradicional, na sua busca de laicização. Segundo ele, é por meio da consciência moral que o homem rege sua vida prática, partindo de certos princípios racionais. No entanto, o homem não realiza espontaneamente a lei moral, fundada no dever, mas a moralidade resulta da luta interior entre a lei universal e as inclinações individuais.

Portanto, a moral formal, que se constrói a partir do postulado da liberdade e se baseia na autonomia, exige a aprendizagem do controle do desejo pela disciplina, a fim de que o homem atinja seu próprio governo e seja capaz de auto-determinação.

A educação, ao desenvolver a faculdade da razão, leva à formação do caráter moral. Por isso, quando Kant diz “Mandamos, em primeiro lugar, as crianças à escola, não na intenção de que nela aprendam alguma coisa, mas a fim de que se habituem a observar pontualmente o que se lhes ordena”, não pretende levar a criança à passividade da obediência, mas sim que ela aprenda a agir com planos e pela submissão às regras. Kant busca a “obediência voluntária”, fruto do reconhecimento pessoal de que as exigências são razoáveis e superiores aos caprichos momentâneos.

7.3.3 A escola tradicional no século XIX

O sucesso da industrialização e o desenvolvimento das ciências trazem algumas preocupações específicas à escola tradicional do século XIX. Por um lado, acentua-se o dualismo escolar, que consiste no fato de existir uma escola para a elite e outra para o segmento popular operário. Por outro, surge a necessidade de não privilegiar, na formação dos jovens, apenas as humanidades, mas estimular o estudo das ciências.

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Filosofia da Educação – volume 1 Nesse intuito, destacou-se o papel dos positivistas interessados na “formação do espírito científico”. Augusto Comte, fundador do positivismo, estava convencido de que cada homem passa, durante sua vida, pelas mesmas etapas percorridas pela humanidade. Dessa forma, o pensamento fetichista da criança deveria ser superado pela concepção metafísica na adolescência, sendo o estado positivo (ou científico) fruto da maturidade.

Essa tendência é responsável pelo cientificismo que marcou muitas vezes a escolha dos currículos escolares. Se lembrarmos a influência positivista no ideário republicano brasileiro, poderemos reconhecer aí a preocupação com a transmissão de um conteúdo enciclopédico, na tentativa de dar conta da imensa contribuição das ciências, sobretudo das ciências da natureza.

No que se refere às ciências humanas, destacam-se o pensamento do alemão Herbart (1776-1841) e seu projeto de educação da vontade. Ele oferece uma importante contribuição para o desenvolvimento da pedagogia quando propõe uma abordagem realista, baseada na busca de maior rigor dos métodos, cujas linhas principais são dadas pela psicologia. Podemos dizer que Herbart é o iniciador, ou pelo menos o precursor, de uma psicologia experimental aplicada à pedagogia.

A pedagogia social e ética tem por finalidade a formação do caráter moral por meio de uma vontade esclarecida, que se alcança pela instrução. Por isso, é enorme a importância do professor, que educa os sentimentos e os desejos dos alunos mediante o controle de suas idéias.

Dessa forma, Herbart assume uma posição intelectualista que privilegia o conhecimento, considerando o sentir e o querer funções secundárias e derivadas do processo ideativo. Convicto de que a educação tradicional ensina muita coisa inútil para a ação, ele julga importante a utilização rigorosa do método. A conduta pedagógica deve, então, seguir três procedimentos básicos: o governo, a instrução e a disciplina.

O governo é a forma de controle da agitação infantil, aplicado inicialmente pelos pais e depois pelos mestres, visando submeter a criança às regras, do mundo adulto e tornando possível o início da instrução. Se necessário, recorre-se a proibições, ameaças, punições e vigilância constante, desde que sejam evitados os excessos contraproducentes. Para tanto, é preciso combinar autoridade e amor e manter a criança manter ocupada.

A instrução é o procedimento principal da educação, baseia-se no desenvolvimento dos interesses. Para Herbart, a instrução é compreendida como construção (aliás, é esse o sentido etimológico do termo), pois não se

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separa a instrução intelectual da moral, sendo uma condição da outra. Formar moralmente uma criança é educar sua vontade, e isso só pode ser feito por meio de maior clarificação das representações e do crescimento das idéias na mente da criança.

Com tal finalidade, ele propõe os cinco passos formais que propiciam o desenvolvimento do aluno:

• preparação - o mestre recorda o já sabido; • apresentação - o conhecimento novo é apresentado ao aluno; • assimilação (associação ou comparação) - o aluno é capaz de

comparar o novo com o velho, percebendo semelhanças e diferenças;

• generalização (sistematização) - além das experiências concretas, o aluno é capaz de abstrair, chegando a concepções gerais:

• aplicação - por meio de exercícios, o aluno mostra que sabe aplicar o que aprendeu em exemplos novos.

Examinamos até agora dois procedimentos básicos da conduta pedagógica: o governo e a instrução. Resta analisar a disciplina, procedimento pelo qual se mantém firme a vontade educada no propósito da virtude. Enquanto o governo é exterior e heterônomo, sendo, por isso, mais usado com crianças pequenas, a disciplina supõe a autodeterminação, característica do amadurecimento moral que leva à verdadeira formação do caráter.

Numa rápida avaliação de seu trabalho, é preciso reconhecer que Herbart conseguiu elaborar, pela primeira vez, uma pedagogia que se propunha como verdadeira ciência da educação, apresentando caráter de objetividade na análise, tentativa de psicometria, rigor dos passos seguidos e tentativa de sistematização. Se, no entanto, sua psicologia sofre diversas restrições, isso não impede que tenha exercido grande influência no pensamento pedagógico.

A maior crítica feita a ele posteriormente, sobretudo pela escola nova, deve-se ao caráter excessivamente intelectualista de seu projeto, que leva a considerar, inclusive, a possibilidade do controle do sentir e do querer, o que não deixa de ser um exagerado otimismo quanto ao poder da educação. Por outro lado, esse mesmo poder significa, sob certo ponto de vista, a diminuição do campo de atuação livre do educando, o que nos levaria a indagar se tanto controle poderia ainda tornar viável a passagem do governo para a disciplina... 7.4 Críticas

O século XX nasce sob o impacto das idéias escolanovistas, mas a educação

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Filosofia da Educação – volume 1 tradicional continua existindo em grande parte das escolas, convivendo com diversas outras tendências.

Isso se deve a inúmeras causas. Como veremos no próximo capítulo, a implantação da escolar nova trazia exigências como a formação específica dos professores e a reorganização adequada do espaço da escola, dos laboratórios etc., o que tornou esse empreendimento altamente elitizado, restrito a poucos.

A dificuldade de assimilação das novas teorias pedagógicas com freqüência cria um professor “híbrido”, que pensa estar aplicando técnicas novas, mas se encontra preso a concepções tradicionais, que se refletem na sua maneira de ver o mundo.

Além dessa persistência com relação à prática, também na questão teórica alguns pensadores continuaram defendendo determinados valores tradicionais. É o caso do filósofo francês Alain (1868-1951) - cujo nome verdadeiro era Émile Chartier -, que foi professor de Jean Chateau (1908). Para eles, certas inovações partem de mal-entendidos, pelo fato, por exemplo, de resultarem com freqüência de estudos feitos por médicos ou psicólogos clínicos interessados inicialmente em crianças inadaptadas, problemáticas ou até neurologicamente comprometidas e que, ao estender suas análises à criança normal, mais fizeram confundir a educação e desviá-la de pontos importantes.

A ênfase posta na espontaneidade e na criatividade infantis fez esquecer o esforço necessário para a aprendizagem, desprezou o relevante papel do professor e descuidou da transmissão de conteúdos. Ora, a criança gosta do desafio porque é por meio dele que nos tornamos adultos, e o esforço, mesmo que penoso, não dispensa a alegria da consecução do resultado.

A esse propósito, Chateau lamenta que as reformas signifiquem de fato o “triunfo da facilidade”. A mesma idéia aparece na advertência de Alain: “Não aprenderá violino quem apenas se diverte com ele”.

A produção teórica desses dois pensadores mereceu a leitura atenta de George C. Snyders, criador da tendência progressista, que o fez não para negar as contribuições inovadoras da pedagogia contemporânea, mas na tentativa de recuperar o que a escola tradicional oferece de melhor, superando o ranço das críticas ligeiras e caricaturadas que a ela costumam ser feitas. Criticar o intelectualismo da escola antiga não significa descuidar da transmissão de conteúdos: negar o enciclopedismo não implica desprezar a aquisição de informação dosada e necessária; recusar o autoritarismo do

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mestre não é deixar de reconhecer a importância de sua autoridade e a assimetria com relação ao aluno; acusá-la de passadista e de estar a reboque dos acontecimentos não significa abandonar o estudo dos clássicos e toda a herança cultural.

Com isso, não se pretende retornar à escola tradicional, mas sim avaliá-la sem preconceitos, a fim de evitar uma abordagem superficial e falsa, incapaz de reconhecer o que ainda interessa conservar. Afinal, muitos dos valores da escola tradicional são valores iluministas que ainda não foram realizados na escola contemporânea.

Capítulo 8

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Filosofia da Educação – volume 1

A Filosofia da Escola Nova

Obtém-se interesse, exatamente, não se pensando e não se buscando conscientemente consegui-lo; mas, ao invés disto, promovendo as condições que o produzem. Se descobrirmos as necessidades e as forças vivas da criança, e se lhe pudermos dar um ambiente constituído de materiais, aparelhos e recursos – únicos, sociais e intelectuais - para dirigir a operação adequada daqueles impulsos e forças, não temos que pensar em interesse. Ele surgirá naturalmente. Porque então a mente se encontra com aquilo de que carece para vir a ser o que deve. (J. Dewey).

8.1 Aprender a aprender

A escola tradicional nasceu em um mundo ainda de certa forma estável, no qual a educação se fazia com base em modelos ideais. Voltada para o passado, essa escola estava preocupada em transmitir a maior quantidade possível de conhecimento acumulado, valorizando, portanto, um ensino predominantemente intelectualista e livresco.

As críticas à escola acadêmica surgem diante da impossibilidade de se continuar pensando em modelos num mundo marcado por transformações sociais, políticas e econômicas que atingem uma rapidez nunca antes experimentada. Preocupado com o presente e com o futuro, o homem contemporâneo deve se preparar para uma sociedade dinâmica, em constante mutação. Para tanto, precisa aprender a aprender, indo além da fixação de conteúdos predeterminados. Daí o interesse por métodos e técnicas: bem como uma ênfase maior nos processos de conhecimento do que no produto.

Além disso, aspira-se ao acesso de todos ao saber, o que promoveria a mais ampla democratização do ensino e, conseqüentemente - segundo a crença de então -, a mobilidade social.

O movimento educacional conhecido como escola nova surge no final do século XIX justamente para propor novos caminhos à educação, que se encontra em descompasso com o mundo no qual se acha inserida. Representa o esforço de superação da pedagogia da essência pela pedagogia da existência. Não se trata mais de submeter o homem a valores e dogmas tradicionais e eternos nem de educá-lo para a realização de sua essência verdadeira”. A pedagogia da existência se volta para a problemática do indivíduo único, diferenciado, que vive e interage em um mundo dinâmico.

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Daí o caráter psicológico da pedagogia da existência, segundo a qual a criança é o sujeito da educação, ocupando o centro do processo (pedocentrismo). Destaca-se a importância da satisfação das necessidades infantis, bem como a estimulação de sua própria atividade. A criança não mais é considerada “inacabada”, uma miniatura do adulto, um “adulto incompleto”, e por isso precisa ser atendida segundo as especificidades de sua natureza infantil.

8.2 Características gerais da escola nova

8.2.1 O aluno e o professor

Na escola renovada o aluno é o centro do processo, existindo uma preocupação muito grande com a natureza psicológica da criança. Como a escolha dos conteúdos gira em torno dos interesses infantis, o professor se esforça por despertar a atenção e a curiosidade da criança, sem lhe cercear a espontaneidade. Dependendo da escola, existe maior ou menor não-diretividade, tornando-se o professor apenas um facilitador da aprendizagem.

8.2.2 Conteúdo

Segundo a escola nova, as noções gerais não seriam transmitidas pelo professor, pois a abstração deve resultar da experiência do próprio aluno. Se o processo do conhecimento é mais importante do que o produto, o conteúdo que é objeto de aprendizagem precisa ser compreendido, não decorado.

Daí a crítica à escola acadêmica e livresca, que privilegia a transmissão de conteúdos, em detrimento dos processos de descoberta do conhecimento.

8.2.3 Metodologia

A fim de superar o estreito intelectualismo da escola tradicional, a escola nova tem por princípio o “aprender fazendo”. O objeto da educação é o homem integral, constituído não só de razão, mas de sentimentos, emoções e ação.

A escola não está voltada apenas para o intelecto. O corpo também é valorizado, por meio das atividades de educação física e do desenvolvimento da motricidade. O psicólogo suíço Piaget bem mostrou como a atividade mental da criança é inicialmente sensório-motora e, em seguida, predominantemente intuitiva, o que exige maior atenção aos movimentos e à estimulação da percepção. Devido à influência da psicologia e ao fato de muitas escolas novas terem surgido a partir do acompanhamento de crianças anormais, há uma constante preocupação com a individualização das atividades, embora não sejam

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Filosofia da Educação – volume 1 desprezados os trabalhos em grupo, importantes para a socialização das experiências.

Programas e horários tornam-se maleáveis, a fim de atender os ritmos individuais. Como é importante partir do concreto para o abstrato, pesquisas e experiências são estimuladas. Privilegiar a pedagogia da ação significa equipar a escola com laboratórios, oficinas, hortas e até imprensa, conforme a metodologia predominante. Também os jogos não se opõem ao trabalho; antes, constituem atraentes facilitadores da aprendizagem.

8.2.4 Avaliação

A avaliação é compreendida como um processo válido para o próprio aluno, não para o professor. Por isso, representa apenas uma das etapas de aprendizagem, não o seu centro. Despojada do terror que a mistifica, não visa apenas aspectos intelectuais, mas também as atitudes a aquisição de habilidades. O sistema de prêmios é condenado, e a competição é substituída pela cooperação e pela solidariedade.

8.2.5 Disciplina

Numa sociedade em mutação, é preciso educar para o improvável, para o novo; daí ser necessário preparar para a autonomia. O afrouxamento das normas rígidas tem por objetivo estimular a responsabilidade e a capacidade de crítica e estabelecer a disciplina voluntária. Por isso são estimuladas discussões que permitam ao aluno a compreensão do significado e da necessidade das normas coletivas.

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Capítulo 9

Teorias antiautoritárias da Escola Tradicional e da Escola Nova

O maior segredo da educação reside precisamente nisso, de que não cumpre educar. (Ellen Key).

9.1 Contra a autoridade

Uma das mais radicais críticas feitas à escola tradicional talvez esteja na denúncia do seu caráter autoritário. A escola hierarquizada, magistrocêntrica, esclerosada em modelos, impregnada de dogmas e regras é identificada de forma pejorativa a uma “escola-quartel”.

A partir daí, muitos pedagogos, desejosos de dar outra orientação para a escola, voltam-se menos para a questão dos métodos e processos de ensinar, enfatizando a recusa do exercício do poder: a educação deve ser realizada em liberdade e para a liberdade.

Nessa linha se posicionam pedagogos das mais diversas tendências: liberais, marxistas, anarquistas, muitos deles influenciados pelas correntes da psicologia, sobretudo a psicanálise de Freud, outros tendo realizado trabalhos com crianças problemáticas, mas todos preocupados em centrar o processo de aprendizagem no aluno, não no professor.

Embora Freud (1856-1939) não tenha se ocupado com a pedagogia nem possa ser considerado propriamente um teórico antiautoritário, sua análise da formação das neuroses dá elementos para se compreender como a atuação de pais e mestres na educação das crianças pode ser repressora (criando adultos doentes) ou libertadora (educando, para a autonomia).

Segundo Freud, a energia que preside os atos humanos é de natureza pulsional e encontra-se em uma instância psíquica denominada id. Para viver em sociedade, o homem precisa aprender a controlar essas forças, papel reservado ao superego, que se constitui a partir da influência externa da cultura e determina a formação da consciência moral. Cabe ao ego maduro estabelecer o equilíbrio entre as forças antagônicas do id e do superego, a fim de adequá-las ao “princípio da realidade”.

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No entanto, nem sempre esse processo transcorre de modo saudável. Quando o superego se fortalece demais, em função de uma educação excessivamente severa, por exemplo, dá-se um processo de ocultamento das forças pulsionais, consideradas “vergonhosas”, o que favorece a repressão e a conseqüente formação da personalidade neurótica. Por isso é importante não cegar as fontes de energia, mas dar ocasião para que elas sejam livremente canalizadas para a maturidade sadia.

Já o movimento anarquista ou libertário se pauta explicitamente pela recusa de qualquer tipo de autoridade. Embora tenha raízes antigas, o anarquismo surge de forma mais consistente com Proudhon (1809-1865). Bakunin (1814-1876) e Kropótkin (1842-1912).

Contemporâneos de Marx partilham as mesmas críticas à sociedade capitalista e desejam a abolição da propriedade privada dos meios de produção, mas divergem quanto à forma de implantação da sociedade comunista, pois negam toda forma autoritária de poder.

Os anarquistas recusam o Estado, a Igreja ou qualquer instituição que coloque empecilhos para a emancipação humana. Sendo naturalmente capaz de viver em paz com seus semelhantes, o homem poderia realizar “a ordem na anarquia”, pois essa é a ordem natural, enquanto nas instituições a ordem é artificial e, por isso, geradora de hierarquia e dominação.

As organizações anarquistas, fundadas na cooperação voluntária e na autodisciplina, são, portanto, não-coercitivas. Para que a autogestão se torne possível, é estimulada a forma direta de relação, em que as decisões são tomadas nos níveis mais simples e só depois ampliadas para instâncias mais amplas. Com relação à política, por exemplo, as discussões começariam no local de trabalho e nos bairros, nunca se delegando poderes a representante algum.

Vejamos como essas diversas tendências podem ter influenciado, direta ou indiretamente, as teorias pedagógicas não-autoritárias.

9.2 Características gerais Quanto às relações entre aluno e professor, a educação centrada no aluno, típica da escola renovada, é levada até as últimas conseqüências. O professor não comanda o processo de aprendizagem, mas é antes um “facilitador” da atividade do aluno. Embora haja diferenças entre as diversas propostas, predomina a não-diretividade, pela qual o mestre não dirige, mas cria as condições de atuação da criança. Com isso, quer se evitar toda e qualquer hierarquia que propicie o exercício do poder.

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Filosofia da Educação – volume 1 O conteúdo não pode ser dogmático, no sentido de expressar verdades “doadas” externamente, nem resultar de exposição “magistral” (do professor), mas precisa ter ressonância nos interesses dos alunos, isto é, não pode estar desligado de sua experiência de vida. A metodologia, coerente com o que já foi dito, não resulta de caminhos pré-estipulados pelo professor, mas se baseia na autogestão. Se uma das críticas feitas ao ensino tradicional está em que existe uma grande distância entre o que o professor ensina e o que o aluno aprende de fato, aqui é importante apenas a aprendizagem auto-iniciada e autoconsumada. Daí a valorização das “comunidades de aprendizagem”, cuja direção é dada pelo próprio grupo em discussões, encontros e assembléias, considerados meios para aumentar a coesão do grupo, bem como para trabalhar os conflitos. Com relação à avaliação, desprezam-se os seus clássicos instrumentos (exames, qualificações, notas), mesmo porque, não havendo “matéria transmitida”, não há como “tomar a lição”, entendido esse processo como forma de exercício de dominação. Prefere-se a auto-avaliação, que parte da aprendizagem da autocrítica e da responsabilidade. Com isso são descartados também os procedimentos burocráticos, abominados pelos libertários como sendo instrumentos de poder. A disciplina resulta da autonomia e nunca é imposta externamente; nada de prêmios, castigos ou qualquer tipo de sanção artificial.

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Conclusão Concluindo nosso trabalho somos levados a essa conclusão: não basta, pois, ao filósofo da educação deter o conhecimento daquilo que pensaram os filósofos se, ele próprio, não cria suas questões, colocando-as em harmonia com a realidade ao seu redor.

Particularmente no Brasil, onde os males da educação são tantos, a filosofia da educação, definida como o pensar do indivíduo, poderia ter uma importância singular na busca de soluções.

A escola é um lugar próprio da racionalidade técnica, onde os diversos saberes deveriam ser colocados em discussão. Sob a coordenação do professor, detentor de técnicas pedagógicas capazes de estimular a motivação e desenvolver o crescimento dos alunos, os saberes serão trocados e, em cada um, acrescido.

A didática empregada na disciplina Filosofia da Educação deve objetivar com que os alunos sejam capazes de enfrentar o mundo pedagógico na busca de soluções que ofereçam saídas novas. Enfrentar, neste sentido, é poder interferir conscientemente num processo, compromissado com a realidade histórica a que está inserido.

Neste momento o Filósofo da Educação estará não só fazendo história, como sendo protagonista dela. A disciplina Filosofia da Educação tem um papel fundamental que é o de permitir com que os estudantes possam pensar a realidade de forma original e criadora.

Não são os estudantes que têm obrigação de não chegarem medíocres aos cursos que se propõem fazer. Mas cabem aos professores as obrigações de mobilizá-los deste estágio de mediocridade, se porventura se encontrarem nele.

A importância que a escola assume nesta questão é a de permitir uma reflexão nova e não reproduzir o pensamento de outros. Neste sentido o professor deve ser um mediador do surgimento de potencialidades da inteligência. O professor, como mediador, descaracterizaria o poder não democrático que a prática permite. Os alunos seriam os sujeitos-agentes de seu saber e da sua história. E assim a busca do saber partiria deles como um desejo e não como uma imposição. Onde está o obstáculo para se desenvolver mentes pensantes? Após a teoria de Jean Piaget sobre o desenvolvimento da inteligência e os métodos criados

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pelos seus inúmeros seguidores, torna-se possível elaborar uma didática que permita ao homem sair de sua condição de homem-objeto e assumir sua função de homem-sujeito. Por que não fazer? Penso que por questões políticas alheias aos avanços da ciência pedagógica.

Os professores, muitas vezes de forma inconsciente, cumprem o papel de impedir o surgimento de mentes criativas e de potenciais filósofos. Representam, para o Estado, a propaganda ideológica que garante a permanência e o conformismo das idéias já desgastadas. A filosofia, enquanto filosofia da praxis, tem, então, um papel fundamental de mudança. E o que vai permitir o assumir desta característica é, antes de mais nada, a mudança da praxis da filosofia; fazer com que a filosofia seja uma ato de amor do filósofo, do pensador. E não o contrário de fazer com que os estudantes se afastem dela. A tarefa do professor é, portanto, a de incentivar nos estudantes esse amor pela filosofia, pelo ato de refletir e pensar, pelo apreço à busca de suas próprias verdades. Assumindo tal atitude, o professor, permitirá com que a filosofia dentro da educação e fazendo parte dela seja finalmente tratada pelos alunos como um instrumento do conhecimento. Vimos que existe um estudo de filosofia da educação real e outro possível. Mas o “sonho acordado” permite-nos pensar na utopia, fruto do possível imaginário. O ensino e o estudo da filosofia é um tema que não só diz respeito a estudantes e professores, mas também a sociedade de uma forma geral. As mentes críticas e criadoras serão as capazes de mudar o que está exposto. Serão as capazes de pressentir o que está oculto por trás da realidade. E desta forma contribuir para o esclarecimento e mudança do real. Não parece tão absurdo que a filosofia na escola possa assumir esta condição de revolucionária. Basta que os professores, verdadeiramente engajados no processo de mudança educacional, assumam sua consciência histórica e permitam o surgimento de novas inteligências.

Assim o ensino deve preparar o estudante para pensar, agir e viver filosoficamente, vivenciando o verdadeiro sentido da “liberdade estudantil”. De tal forma o sistema está impregnado dessa didática errônea, que a abordagem deste tema pode gerar reações de um grupo de professores que teria por responsabilidade facilitar o processo de mudança da sociedade.

Mas, particularmente, prefiro correr os riscos de dizer, acreditando que a escola seja o fórum ideal para o deflagrar de idéias para discussão.

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Filosofia da Educação – volume 1

Referências

ANDERSON, Perry. O fim da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1974. BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1973. CIVITA, Victor, NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. 3ª ed., São Paulo: Abril Cultural, 1983. DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O que é filosofia?. Rio de Janeiro: 34, 1992. JASPERS, Karl. Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães, 1977. KNELLER, Georges. Introdução à filosofia da educação. 4ª ed.,Rio de Janeiro: Zahar, 1972. SAVIANI, Dermeval. Educação - do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1980.

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Filosofia da Educação – volume 1

AAVVAALLIIAAÇÇÃÃOO DDEE FFIILLOOSSOOFFIIAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO II

Nome: ___________________________________________ Professor:__________________ Unidade:________________ Data: ___/___/____Nota:______ Entregar até:___/___/____

Questionário

1) Como é vista a filosofia no mundo pragmático?

2) O que notamos quanto as grandes crises históricas? Comente.

3) A quê estamos nos referindo ao dizermos “reflexão radical”?

4) Em que consiste a filosofia da educação?

5) Pode haver ensino sem que haja aprendizagem? Justifique.

6) Comente o tema da questão da intenção.

7) Explique o conceito de ensino.

8) Pode haver aprendizagem sem que haja ensino? Analise e forneça uma justificação.

9) Determine o que é educação, ensino e aprendizagem.

10) Justifique o conceito da educação.

11) Pode haver ensino e aprendizagem sem que haja educação? Forneça sua opinião.

12) Pode haver educação sem que haja ensino e aprendizagem? Conceitue.

13) Defina de forma sucinta, educação formal e educação informal.

14) Defina a questão dos objetivos educacionais.

15) Explique:

a) Educação humanística. b) Educação técnico-profissionalizante.

16) Comente o tema “Educação e democracia”.

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17) Faça uma análise filosófica e forneça uma definição da educação e sociedade.

18) Explique: educação e a chamada "classe dominante".

19) Comente o tema “A educação que é e a que deve ser”.

20) Dê uma definição acerca do grande dilema da educação.

21) Como se estabelece a educação e o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo?

22) Explique o conceito de doutrinação.

23) Comente o tema “Conteúdos intelectuais e cognitivos”.

24) O que é o ensino e aprendizagem de conteúdo?

25) Como se define os conteúdos como critério de doutrinação?

26) Qual é a intenção como critério de doutrinação?

27) Explique os métodos como critério de doutrinação.

28) Forneça uma definição das conseqüências como critério de doutrinação.

29) Dê uma definição de doutrinação e o dilema da educação.

30) Porque a doutrinação é censurável e indesejável?

31) O que é filosofia da educação e teoria educacional?

32) O que é o ato de educar?

33) O que é educação e política.

34) Qual é a importância da pedagogia?

35) Qual é a origem da escola tradicional?

36) Como era a escola tradicional no século XIX?

37) Explique o que é aprender à aprender.

38) Forneça as características gerais da escola nova.

• Obs.: Responder este questionário à tinta azul ou preta em folha à parte.

Boa Prova!