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1 Ana Maria Carneiro Almeida Diniz FILHOS DA PÁTRIA: A REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES ANGOLANAS NA LITERATURA DE JOÃO MELO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras PPGL da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus Avançado Professora. Maria Elisa de Albuquerque Maia, para obtenção do título Mestre em Letras. Área de concentração: Estudo do texto e do discurso. . Orientador: Prof. Dr. Sebastião Marques Cardoso Pau dos Ferros 2012

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Ana Maria Carneiro Almeida Diniz

FILHOS DA PÁTRIA: A REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES ANGOLANAS NA LITERATURA DE JOÃO MELO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus Avançado Professora. Maria Elisa de Albuquerque Maia, para obtenção do título Mestre em Letras. Área de concentração: Estudo do texto e do discurso.

. Orientador: Prof. Dr. Sebastião Marques Cardoso

Pau dos Ferros 2012

2

3

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha família. Ao meu esposo Raylan que me auxiliou em

todas as etapas do processo de produção. Ao meu filho Ravi Emanuel que nasceu

durante o curso e fez da escrita deste trabalho um momento de superação.

4

O negro não é. Nem tampouco o branco. Franz Fanon

5

AGRADECIMENTOS

A Deus, pelas bênçãos concedidas, entre elas, o ingresso e conclusão desse

mestrado.

Aos meus familiares e amigos, pelo apoio e pelas palavras de incentivo.

Ao professor Sebastião Marques Cardoso, pela dedicação e paciência com que me

orientou na produção desta dissertação.

A Marília e Ricardo, secretários do Programa de Pós-Graduação em Letras, pela

ajuda prestada nos momentos em que, por ocasião de problemas de saúde, não

pude comparecer quando solicitado.

À Banca Examinadora por aceitar convite para avaliar o meu texto.

A todos os membros do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte, Campus de Pau dos Ferros por me proporcionarem

a oportunidade de alargar meu universo do conhecimento através das disciplinas

ministradas.

6

RESUMO

O presente trabalho propõe o estudo das representações identitárias nos contos: Efeito Estufa, Ngola Kiluanje, Tio me dá só cem, O feto, O cortejo e Natasha, que fazem parte do livro Filhos da Pátria, do escritor angolano João Melo. A análise visa elucidar, a partir da investigação das características das personagens de ficção, uma visão crítica acerca de estratégias de representação da identidade do ser angolano, que tiveram início no período colonial e ainda são mantidas no período considerado pós-colonial. Nesse sentido, a interpretação procura mostrar como o autor questiona, por meio da elaboração dos mais variados perfis de seus personagens, a produção dessas identidades. A crítica gira em torno das imagens criadas e fornecidas como representação de uma identidade angolana estereotipada, una e fixa, produzida pelo colonizador e mantida pelo colonizado pós-independência que perturbam o campo de visão de ambos acerca da realidade. Para isso, a realização deste trabalho propõe a interação entre o corpus e os textos que fundamentam a análise proposta, entre eles, textos dos estudiosos Homi K. Bhabha, Edward Said, Stuart Hall, Nestor Garcia Canclini, Franz Fanon e referências afins. PALAVRAS-CHAVE: Estudos Culturais. Pós-colonialismo. Literatura Angolana. João Melo.

7

ABSTRACT

This paper proposes the study of identity representations in tales: Greenhouse, Ngola Kiluanje, Uncle gives me only one hundred, Fetus, The procession and Natasha, who are part of the book Children of the Fatherland, the Angolan writer João Melo. The analysis aims to elucidate, by investigating the characteristics of fictional characters, a critical view about strategies of representation of the identity of being Angolan, which began in the colonial period and are still held in the post-colonial period considered. In this sense, the interpretation seeks to show how the author questions, through the elaboration of various profiles of their characters, the production of these identities. The criticism revolves around images created and provided as a representation of a stereotypical Angolan identity, one and fixed, produced by the colonizer and colonized maintained by the post-independence that disturb the field of view of both about reality. For this reason, this work proposes the interaction between the corpus and texts that underlie the analysis proposed, among them texts of scholars Homi K. Bhabha, Edward Said, Stuart Hall, Nestor Garcia Canclini, Franz Fanon and related references. . KEYWORDS: Cultural Studies. Postcolonialism. Angolan Literature. João Melo.

8

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09 CAPÍTULO 1- IDENTIDADES NACIONAIS X IDEAL DE NAÇÃO POR UMA IDENTIDADE ............................................................................................................. 14

1.1 O espaço-tempo da constituição das identidades ............................................... 15

1.1.1 A fronteira como limítrofe para identidade ..................................................... 16

1.2 Por identidades na(s)/sem fronteira(s) ................................................................ 23

1.3 Um mundo em preto e branco ............................................................................. 25

CAPÍTULO 2- DA PERIFERIA À ELITE DAS IDENTIDADES ANGOLANAS PÓS-COLONIAIS ............................................................................................................... 48

2.1 As identidades dos deslocados ........................................................................... 49

2.2 A velha face da nova elite angolana l .................................................................. 61

3 A IDENTIDADE ANGOLANA CONSTRUÍDA NAS RELAÇÕES DE ALTERIDADE COLONIAL ................................................................................................................ 77 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 107

5 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 112

9

INTRODUÇÃO

Angola está entre os países lusófonos que passaram por processo de

colonização e não escaparam da imposição cultural, da violação de seus costumes e

de sua religião. A literatura angolana de língua portuguesa surge, neste contexto,

como o lugar de denúncia, de negação ao sistema colonial e, principalmente, como

lugar sugestivo de afirmação de uma identidade nacional.

Depois de cinco séculos de intensa luta pela independência, Angola hoje é

um país independente. Como colônia de Portugal, Angola foi submetida a diversos

decretos que visavam aniquilar a cultura local, considerada inferior. Decretos que

objetivavam a construção de uma nova identidade nacional, uniforme, ao modo

europeu. “Ao mesmo tempo, procurou-se desenvolver uma política assimilacionista:

desorganizar e, se possível eliminar, a cultura própria do país, considerada inferior, e

impor a do colonizador, que seria assim uma agente da “civilização”“. 1

Tendo em vista o fato de a independência angolana ter ocorrido há tão pouco

tempo, conclui-se que a ideia de consciência nacional é algo recente e ainda em

processo de afirmação. Observa-se um país em fase de transição, saindo do

sistema colonial e mergulhando no sistema capitalista. Assim, surge a necessidade

de uma identidade para firmá-lo e/ou diferenciá-lo, ressaltando sua revelia. A partir

de então, passa-se a contemplar uma literatura que funciona como determinante

nesse processo de afirmação.

O livro Filhos da Pátria, do escritor angolano João Melo, desvenda

identidades escondidas na penumbra do discurso de um país que busca se afirmar

como nação livre e, contrapondo-se ao colonizador, busca o retorno ao passado pré-

colonial, às raízes de sua identidade, à utopia de um renascimento angolano que,

mais uma vez, reduz a um povo, ou nação, pessoas pertencentes a universos tão

diversificados. Ao mesmo tempo, busca também se inserir, tardiamente, no contexto

de pós-modernidade, tentando, aceleradamente, adequar-se a ele.

Nos contos, o autor prioriza as situações de opressão vivenciadas por certa

parcela da população que se encontra à margem do progresso econômico-social

proporcionado pelo capitalismo. Os contos, além de trazerem à luz histórias

1 ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Literatura, história e política. São Paulo: Ática, 1989.p.186.

10

paralelas ao contexto de uma nação enaltecida pelo progresso, tece uma crítica em

relação ao plano de retomada da cultura autóctone angolana como reversão dos

danos causados pelo colonialismo, à medida que as personagens são chamadas à

existência pela voz do narrador que, por mais que busque omitir opiniões, deixa

explícita sua face crítica e sarcástica em relação a tais posturas.

Essa busca por uma identidade nacional angolana, através da literatura, teve

início em 1948, na cidade de Luanda, com o movimento chamado Vamos descobrir

Angola. Trata-se de um movimento que buscou, por meio dos ideais de negritude,

integrar o negro à sociedade burguesa, exaltando, trazendo à memória os valores,

as tradições da cultura negra.

Assim, a literatura angolana, em sua busca pela reconstrução da identidade

nacional, propõe remontar seu passado, buscando um afastamento da cultura do

colonizador. E para fazê-lo, lança mão da exaltação do negro, da valorização étnica

e cultural, de um revide à violência sofrida no período de colonização. Segundo

Abdala Júnior, “As literaturas de língua portuguesa inserem-se no quadro dos

movimentos de resistência e de luta pela libertação política de seus países e de

afirmação de sua cultura própria”. 2

A literatura contemporânea prossegue em compasso com a composição das

identidades angolanas dentro de um contexto sócio-histórico conturbado e cheio de

contradições, como necessidade de representação e registro desse processo de

identidade que não consegue filtrar e selecionar, ou mesmo reconhecer o que é

puramente angolano, o que são resquícios da colonização ou até mesmo elementos

da globalização proporcionada pela adoção do sistema capitalista: “Associando a

estratégia da memória com a urgência de registrar um presente que será passado,

tal o ritmo das transformações, o escritor Pepetela vai redimensionar caminhos do

chamado romance histórico”.3 Essa observação feita por Abdala Júnior à obra de

Pepeleta pode ser fielmente traduzida para a contística do escritor angolano João

Melo.

Observa-se, pois, que a literatura Angolana, desde o período de libertação até

a atualidade, pode ser compreendida como potência para as denúncias de negação

e como amparo para as manifestações de afirmação. Uma literatura de resistência,

2 ABDALA JUNIOR, Benjamim. (Org.). Margens da cultura: mestiçagens, hibridismo & outras

misturas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. v. 1. P. 188. 3 Id. Ibid. p.215.

11

quando amparada pela memória de uma cultura ou quando busca representações

identitárias híbridas. Um lugar de denúncia das mazelas sociais resultantes do

processo de colonização e intensificadas pelo capitalismo. O fato é que essa

literatura se torna o espelho das vozes reivindicadoras e toma foco em seu estilo

inovador e dinâmico, com conflitos bem mais reais que os estéticos comuns aos

seus colonizadores. Mas, vale ressaltar que, o ético é inserido no contexto literário

sem o desprezo do estético, o que torna a literatura africana ainda mais plural.

A translação de sentido da esfera ética para a estética é possível e já deu resultados notáveis quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida em sociedade: os seus valores. À força desse imã não podem subtrair-se os escritores enquanto fazem parte do tecido vivo de qualquer cultura.4

As literaturas africanas de língua portuguesa ganha dimensão no contexto

que se refere à literatura como forma de resistência, o que se busca constatar na

interpretação da contística analisada. Pode-se observar em tais literaturas a

presença de elementos que demonstram a representação e denúncia da realidade

de um país ainda em fase de transição do colonialismo para o capitalismo mais

avançado, um país em que coexistem a pós-modernidade e a tentativa de afirmação

da tradição.

A literatura contemporânea de João Melo se opõe à representação de uma

Angola que até então teve seu retrato pintado pelo imaginário social e literário

disseminado pela visão europeia, ou mesmo uma Angola estática, imune a

transformações vivenciadas durante os processos colonial e pós-moderno, ou uma

Angola que vivencia todas essas transformações de maneira uniforme. Pode-se

observar que a contística analisada busca desmanchar essa visão uniforme e

inferiorizada lançada sobre Angola, visão assimilada também por angolanos que são

alvos também de críticas por parte do autor.

Nos contos analisados, Melo critica os ideais de representação da identidade

nacional imposta pelos colonizadores e almejada pelos colonizados pós-

independência, concepção baseada em nação como um todo coerente e

organizado. Ideal também representado/disseminado através da literatura que,

4CF BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.p.120.

12

conforme afirma Said5, contribui para construção dessa narrativa histórica de nação

que persiste em ver a história como algo uno e coerente.

Tais narrativas que almejam a formação identitária pautada na uniformidade e

autenticidade negam os princípios da hibridação, mesmo apropriando-se de

elementos gerados através desse processo. Segundo Canclini6, “A história dos

movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de

diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhe dá

coerência, dramaticidade e eloquência”.

Com um toque de sarcasmo, Melo também não poupa críticas à nova classe

dominante que governa o país, pós-colonialismo, sua ostentação, corrupção,

futilidades.

A análise relaciona essa diversidade de personagens que o autor chama à

narrativa à memória de um percurso sócio-histórico-cultural que atravessa os ideais

colonialistas, pós-coloniais e contemporâneo de constituição identitária da nação

angolana e, consequentemente, refletem-se na literatura engajada. Uma literatura

que busca representações de identidades angolanas que contradizem o ideal de

nação criticado por Hall7 que sugere a construção de uma narrativa de nação

homogeneizada por um discurso em que os elementos que prevalecem são os

inventados de maneira hegemônica.

Os elementos que contribuem para construção e perpetuação dos

estereótipos que envolvem o homem negro e o homem branco ao longo do processo

colonial e, posteriormente, pós-colonial também são relevantes à compreensão das

críticas que envolvem as narrativas. A análise desses elementos encontrará também

respaldo no pensamento do escritor Franz Fanon8.

Os cenários das narrativas não serão desprezados pela análise, visto que não

possuem apenas valor descritivo, não funcionam apenas como pano de fundo, mas

supõe-se que tenham valor na constituição discursiva do ideal de formação

identitária do autor. Uma pintura repleta de símbolos que destoam na paisagem de

uma capital em acelerado processo de transformação, Luanda, cenário onde

5 SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das

Letras, 2011. p. 337. 6 CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade

.Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 2003.p.XXIII. 7 HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. 10ª edição. São Paulo: DP&A editora,

1998. P.59. 8 CF FANON, Pele negra máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

13

coexistem as modernas construções, musseques, igrejas centenárias, carros de

luxo, charretes.

Uma breve biografia do autor

O estilo literário de Aníbal João da Silva Melo nem sempre foi a prosa de

ficção, durante um longo período de tempo dedicou-se à poesia.

João nasceu em Luanda, em 5 de setembro de 1955. Fez seus estudos

primários e secundários em Luanda. Cursou direito em Coimbra e Angola. Licenciou-

se em Comunicação Social e, de 1984 a 1992, morou e trabalhou no Brasil, no Rio

de Janeiro, como correspondente de imprensa. Graduou-se em Jornalismo na

Universidade Federal Fluminense e fez mestrado em Comunicação e Cultura na

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Trabalhou como jornalista na Rádio Nacional de Angola, dirigiu vários meios

de comunicação no mesmo país, trabalhou em estatais como a Agência Angola

Press e Jornal de Angola e também no jornal privado Correio da Semana. É membro

fundador da União dos Escritores Angolanos e foi seu secretário-geral e presidente

da Comissão Diretiva. Atualmente, dirige uma agência de comunicação privada e é

deputado pelo MPLA à Assembleia Nacional. É professor universitário em várias

faculdades públicas e privadas em Angola.

Como escritor, é poeta, cronista, ensaísta e contista. Publicou dez livros de

poesia, quatro de contos e um de ensaios. Está representado em várias antologias,

em Angola e no estrangeiro. Teve três menções honrosas, duas no Prêmio

Sonangol de Literatura e uma no Prêmio Sagrada Esperança, ambos em Angola.

Tem obras publicadas em vários jornais e revistas de Angola, ABC, Diário de

Luanda, Jornal de Angola e Lavra & Oficina Gazeta da UEA. Suas obras já foram

traduzidas para o mandarim, alemão, italiano e húngaro. Obras publicadas em

poesia: Definição (1985), Fabulema (1986), Poemas Angolanos (1989), Tanto Amor

(1989), Canção do Nosso Tempo (1991), O Caçador de Nuvens (1993), Limites &

Redundâncias (1997); e contos, Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir (1998);

The Serial Killer e outros contos risíveis ou talvez não (2000), Filhos da Pátria

(2001), O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida (2006); e

na área de ensaios, Jornalismo e política (1991).

14

1 IDENTIDADES NACIONAIS X IDEAL DE NAÇÃO POR UMA IDENTIDADE

É verdade que os defensores da autenticidade...

não gostam muito dessas misturas, mas o que se há de fazer,

se alguns escritores e outros seres marginais teimam em lembrar que elas existem...

(João Melo)

João Melo faz uso de uma postura irônica, sarcástica em seu livro de contos

Filhos da Pátria. Nele, o autor busca oferecer respostas ou mesmo gerar novos

questionamentos acerca das tentativas de constituição identitária angolana. Seus

textos assumem um caráter mais interrogativo que afirmativo sobre a complexidade

das questões relacionadas à formação de uma identidade nacional, frente ao

período de conturbada transição enfrentada pela sociedade angolana

contemporânea.

Os angolanos que, por mais de uma geração, buscam a afirmação de uma

identidade “essencial”, capaz de conciliar diversidades culturais e viabilizar o projeto

de nação, são alvos de parte da crítica presente em seu livro.

Os contos refletem sobre a situação do angolano diante de uma proposta de

resgate cultural essencialista e, ao mesmo tempo, frente a um mundo em constante

mutação, em que as fronteiras desaparecem paulatinamente. Como lançar raízes no

passado após a vivência de intensa aculturação no período colonial? Como

retroceder se a exposição ao desconhecido ainda acontece de forma cada vez mais

frequente?

Tais questionamentos tornam-se ainda mais complexos para os que

atravessaram tardiamente o processo de descolonização. Os que habitam dois

momentos históricos que coexistem e, ao mesmo tempo, se confrontam, o antes e o

depois.

A literatura participa desse contexto, através da representação dos ideais de

construção identitária nacional que, no período colonial, fundamentou-se nos

decretos assimilacionistas portugueses e, posteriormente, após a declaração da

independência, na formação de uma identidade baseada no resgate cultural pré-

colonial envolvida por questões referentes à tradição. E, atualmente, observa-se

uma literatura comprometida com a representação deste momento conturbado e

angustiante de transição.

15

Momento em que a noção de identidade sofre um abalo que faz com que

caminhe para libertação dos ideais que as aprisionavam em definições uniformes e

estagnadas. Esse abalo, traduzido por Hall9 como “Crise de Identidade” ocorreu

devido à decadência das velhas noções de identidade que, por tanto tempo,

nortearam e estabilizaram o mundo social. Tal abalo às definições que tornavam

estável a noção de identidade provoca a fragmentação do sujeito contemporâneo e

desfaz a homogeneização da concepção de identidade nacional.

O fato de Angola passar tardiamente pelo processo de descolonização, já na

contemporaneidade, faz com que a literatura que representa esse contexto passe da

utopia da unificação e continuidade da tradição para o processo incessante de

transformação, fragmentação e contradição.

1.1 O espaço-tempo da constituição das identidades

Não há como falar em construção identitária sem considerar que o sujeito

desse processo esteja situado em um tempo e em um espaço marcados por

questões de ordem política, econômica, social e cultural. A análise de questões

relacionadas à construção da identidade do sujeito no continente africano, mais

especificamente em Angola (país escolhido para análise, em razão do corpus da

pesquisa ser de autoria de um escritor angolano), deve considerar o fato de o país

estar situado em um período de transição, o assim chamado pós-colonialismo.

Dentre os inúmeros estudos, voltados para as questões contemporâneas, o

pós-colonialismo ganha destaque quando as análises inserem-se em estudos

relativos ao contexto africano, particularmente os países de língua portuguesa, já

que a princípio tal termo foi originalmente empregado pelos historiadores no Pós-

Guerra com um sentido claramente cronológico, para designar o momento forte da

descolonização que então se iniciava10. Por terem alcançado recentemente sua

independência, tais países tendem a ter suas manifestações culturais

contextualizadas em um momento pós-colonial, sendo esse termo tratado por alguns

estudiosos de maneira mais ampla.

9 HALL,1998, p.7.

10 CF SCHMIDT, Simone Pereira. Onde está o sujeito pós-colonial?

Disponível em <http://www.uff.br/revistaabril/revista-02/012_simone%20schmidt.pdf>

16

Desde a década de 70, a expressão deixa sua função de marco cronológico e

passa a tornar-se centro de debates polêmicos acerca dos efeitos da colonização, o

que nos permite, hoje, entrever as profundas implicações históricas, políticas e

culturais da questão que traz ao debate. Edward Said e Homi K.Bhabha destacam-

se pela importância de seus trabalhos pioneiros acerca dos estudos pós-coloniais.

A ideia da expressão “pós-colonial” que o presente estudo busca enfocar

encontra-se sintetizada na fala de Ângela Vaz Leão11 que, ao fazer menção ao

contexto das literaturas africanas, faz a seguinte observação de que essa ideia é

[...] entendida por alguns como a situação em que vive(ra)m as sociedades que emergem depois da implantação do sistema colonial, para outros teóricos dos estudos culturais, porém, o ‘pós’ do significante ‘colonial’ refere-se a sociedades que começam a agenciar sua existência com o advento da independência.

Trata-se de momento de agenciamento que teve como forte aliado a literatura

que, mais uma vez, presta-se à representação e à intervenção na constituição

identitária de uma nação por meio da construção de imagens que pretendiam uma

aproximação com o real ou fomentava desejos em relação a ele.

Esse é um momento em que os povos colonizados sentem a necessidade de

projetar seu agenciamento identitário e retomada do poder territorial laçando mão da

estratégia de ancoragem desse agenciamento no passado, dando-lhe uma

legitimação que advinha da tradição, da longevidade. Tal aclamação da tradição pré-

colonial se fazia presente nas palavras de muitos poetas literários nacionais durante

as lutas de independência ou libertação em muitas partes do mundo colonial.12

Para que haja um melhor entendimento de tal contexto, faz-se necessário

uma breve contextualização histórica acerca dos fatos que patrocinaram o desejo de

a literatura, através da memória, propor o resgate de uma identidade africana

pautada na tradição autóctone.

1.1.1 A fronteira como limítrofe para identidade

11

LEÃO, Ângela Vaz (Org.). Contatos e ressonâncias: literaturas africanas de língua portuguesa. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. p.45. 12

CF SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das

Letras, 2011. p.52-54.

17

Durante cinco séculos de colonização, Angola teve a representação de sua

constituição identitária pautada nos ideais eurocêntricos, em que a palavra africano

unia os nativos de todo o continente em um mesmo “recipiente identitário”, onde a

“substância” era homogênea e inferior, tomando como referência o eu/europeu. Essa

imagem criada para o homem africano foi assimilada e disseminada, gerando um

imaginário social e literário acerca da identidade africana que atravessou gerações

e, pela força da repetição, persiste até a contemporaneidade. Said13, ao abordar a

produção literária acerca desse imaginário, escreve sobre os escritos de Cromer

que, pautados em uma visão eurocêntrica de mundo, pregava que o

desenvolvimento de uma política administrativa e civilizatória para os nativos não

exigia complexidade, posto que “eram quase por toda parte mais ou menos a

mesma coisa”.

As divisões territoriais serviram como justificativas para o processo de

colonização em que o outro, o longínquo, o diferente servia como referência para

afirmação da superioridade da cultura europeia sobre as demais culturas

colonizadas. O discurso que legitima a superioridade do colonizador sobre o

colonizado faz uso do Outro/colonizado como ser “[...] irracional, depravado, infantil,

“diferente”; o europeu [como ser] racional, virtuoso, maduro, “normal”14.

Essa concepção de orientalismo estende-se aos povos africanos de língua

portuguesa, pois a identidade desses povos encontra-se ainda marcada pela

imagem de inferioridade inscrita pelo colonizador, acolhida pelo próprio nativo e

compartilhada por outros povos. Fundamentada na perspectiva do olhar do

colonizador, essa ideologia serve também como justificativa para toda violência

física e cultural dos europeus sobre os africanos.

Os portugueses, para organizar/substituir esse universo considerado por eles

homogêneo e ao mesmo tempo caótico do colonizado, buscaram, a partir de

decretos, eliminar a cultura nativa, sem significação, considerada inferior, e ensinar-

lhes a cultura soberana.

A literatura europeia teve papel relevante nesse contexto de representação da

identidade angolana como disseminadora do ideal de generalização e de

necessidade de substituição da cultura nativa. A utilização de padrões éticos e

13

SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.70. 14

Id. Ibidem. p.73.

18

estéticos serviu de instrumento para constituição de uma literatura voltada para a

formação e representação de uma identidade nacional portuguesa em terras

angolanas. Dessa forma, observa-se uma formação identitária fundamentada em um

processo de alteridade que, devido à sua forma assimétrica, exaltava o eu/europeu e

reduzia o outro/colonizado.

A literatura passa a ser narrada, segundo Leão15, “a partir de um lugar

ideológico do poder e do contra-poder”. A priori, ela se encontra sob o poder do

colonizador, que observa o colonizado a partir do lugar de colonizador. Nesse

contexto, a literatura serviu de veículo divulgador e instrumento formador de uma

imagem do ser angolano fundamentada no reconhecimento da diferença como base

para uma teoria que polarizaria a cultura do europeu e a do nativo, sendo

postuladora da supremacia da primeira em detrimento da segunda, o que justificaria

o desejo de eliminá-la, substituí-la, assim como menciona Chaves e Macedo16 “Os

africanos sofreram na pele o processo de desterritorialização, vendo-se

abruptamente inseridos num outro universo, no qual sua língua, suas matrizes

míticas, seus costumes, foram rechaçados e substituídos pelos da cultura do povo

colonizador”.

Posteriormente, a literatura inverte os papéis, mas não os ideais, pois foi,

também, através da literatura que os angolanos lutaram pelo fim do processo de

colonização. Ela serviu como instrumento de formação e representação do ideal de

nação liberta das amarras políticas e culturais impostas durante o período de

colonização. O anticolonialismo apregoado pelos ideais de independência buscava

na memória o resgate de sua identidade nacional. Segundo Leão17, as literaturas,

movidas pelo desejo de representar uma nova realidade oposta à vivenciada durante

a colonização, têm seu ressurgimento marcado pelo signo da utopia e do

contrapoder. Conforme afirma Mata18

15

LEÃO, 2003, p.43. 16

CHAVES, Rita. MACEDO, Tânia(org) Literaturas em movimento. Movimento cultural e exercício crítico. São Paulo: Arte e Ciência, 2003. p. 42. 17

LEÃO, 2003, p. 57. 18

MATA, Inocência. Refigurando o espectro da nação. Disponível em <ttp://www.omarrare.uerj.br/numero13/pdfs/inocencia.pdf>. Acesso em: 22 maio 2012. p.7

19

[...] a literatura angolana (mormente a ficção, porém também a poesia) encetou uma busca de um sentido nacional com recurso a estratégias, por vezes aparentemente centrifugantes, e, deste modo, uma demanda problematizante sobre a construção de uma história com base numa só versão, fosse de matriz colonial(ista) ou anticolonial-nacional(ista).

Nesse contexto, percebe-se que a estratégia literária faz uso apenas de uma

inversão de papéis, posto que, com a independência, os angolanos veem a

necessidade de constituírem uma identidade que pudesse representá-los, pois a

identidade de colonizados não lhes servia mais e, nessa nova identidade, não

haveria lugar para a figura do colonizador. Com o fim do colonialismo, os angolanos

acreditavam que poderiam retomar sua identidade, assim como retomaram suas

terras. O colonizado passa a ocupar o poder e, como providência, propõe o

afastamento de elementos que representem a cultura do colonizador. Esse

pensamento fundamenta uma concepção nacionalista de identidade, unificadora e

hegemônica como a “oferecida” no período colonial.

Mata19 reflete sobre o exercício da dominância presente no discurso literário,

que se apropriava dos fatos e da gestão deles, através dessa dinâmica de

apropriação, durante o momento colonial e, também, no momento considerado pós-

colonial.

[...] se pode chegar à ideia de que, mesmo no tempo colonial, se esteve perante pelos menos duas esferas de dominância: a do poder colonial, dos autores do processo de desestruturação identitária africana, e que intentaram o apagamento da história cujos protagonistas e destinadores eram africanos – em suma, o colonialismo português; e a do contra-poder, isto é, da elite nacionalista que igualmente procedeu à apropriação das representações colectivas, integrando-as numa narrativa cujos ingredientes tiveram como fim a busca de um (único) sentido de nação que constituiu o objectivo do seu labor[...]

A expressão pós-colonial como termo que sugere o agenciamento de uma

identidade nacional (re)inventada a partir da visão angolana, que se desloca do seu

lugar de Outro e passa a ocupar o lugar do Eu narrando sua história, justifica a

utilização da expressão “anticolonial”, como negação de todo o processo

assimilacionista colonial. Segundo Leão20, foi com base na ideologia anticolonial que

a literatura africana/angolana “[...] mobilizou estratégias contra discursividade

19

MATA, 2012, p.5. 20

LEÃO, 2003, p.45.

20

colonial (e refiro-me à concepção ampla de discurso) na fase de emergência,

existência, consolidação e individualização nacional, para afirmar a diferença e

reivindicar a pátria [...]”.

Campos e Salgado21 afirmam que nessa fase de emergência dos países

descolonizados, suas literaturas passam a transitar entre dois vetores.

[...] o vetor da nacionalidade – que fundava a nação e a consciência nacional – e o vetor de uma nova subjetividade – que se impunha desde a formação de um sujeito negro-africano consciente de sua herança tradicional e de seu lugar no mundo hostil – com uma permanente mediação da memória, foi o procedimento mais comum encontrado por essa literatura.

Esse sentimento de rejeição em se relacionar a identidade cultural angolana a

outras identidades possui justificativa quando se observa que a história da

aproximação entre o Ocidente e a África foi/é marcada por toda sorte de violência.

Conforme afirmam Chaves e Macedo.

Esse apego que nós, os estudiosos, cultivamos pela raiz poderia sim nos levar à rejeição de qualquer conceito atravessado pela mistura com outros patrimônios culturais, num temor ainda justificado pelo perigo da alienação que se introduz sempre que se fundem forças desiguais.22

A identidade nacional angolana pautada na ideia de substituição de uma

cultura por outra em nada se diferenciava da estratégia narrativa utilizada pelos

europeus. Segundo Bhabha23, tal estratégia fundamentou o discurso colonial à

medida que o colonizador empreendeu esforços na construção de teorias que

visavam a representação dos antagonismos sob forma de autoridade (do poder e/ou

conhecimento) em uma tentativa de subverter ou mesmo substituir a identidade do

colonizado.

Em um período de conclamação da independência, a literatura angolana

sente-se responsável por refletir acerca da constituição de uma identidade também

independente no que se refere às imposições colonialistas e sente a necessidade de

representação do ser que agora poderia enfim ser angolano. Conscientes de que a

21

CAMPOS, Maria do Carmo Sepúlveda. SALGADO, Maria Teresa. África e Brasil: letras em laços. São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2006. p. 163. 22

CHAVES, Rita. MACEDO, Tânia(org). Literaturas de Língua Portuguesa: marcos e marcas - Angola. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. p.247. 23

BHABHA, 1998, p.47

21

afirmação do ser africano passava, antes de tudo, pelo ser negro e pela

reterritorialização africana, em termos físicos e culturais, os poetas da África de

língua portuguesa sentiram também a necessidade de proclamar a sua negritude24.

O ideal de construção de uma identidade nacional remete ao questionamento

do que representaria a palavra nação nesse contexto, para que se possa entender

que narrativa contemplaria tal ideal. A palavra nação deriva do verbo latino nascor,

que significa nascer. Enquanto Estado político, a nação passa a ressignificar a

expressão povo, utilizada também como referência para as pessoas que nasceram

num mesmo lugar25.

[...] não se refere simplesmente a eventos históricos ou a componentes de um corpo político patriótico. Ele é também uma complexa estratégia retórica de referência social: sua alegação de ser representativo provoca uma crise dentro do processo de significação e interpelação discursiva. Temos então um território conceitual disputado, onde o povo tem de ser pensado num tempo-duplo; o povo consiste em “objetos” históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no pré-estabelecido ou na origem histórica constituída no passado; o povo consiste também em “sujeitos” de um processo de significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redimida e reiterada como um processo reprodutivo26

Bhabha apresenta aqui uma proposta de reflexão acerca das estratégias

complexas utilizadas como identificação da cultura nacional e as interpelações

discursivas que são lançadas em nome “do povo” ou da “nação”, apregoadas

primeiro pelo europeu e posteriormente pelo nativo.

Pensar a visão de povo como massa homogênea, que visa uma construção

pedagógica de uma identidade cultural que possa representá-lo a partir da

metonímia presente no discurso de quem narra a nação, fazendo uso da expressão

todos como um, reduz toda complexidade das mais variadas diferenças, que se

articulam e/ou sofrem conflitos, a uma visão simplista da linearidade temporal

apregoada pelo historicismo, uma temporalidade controladora do início e fim do

evento. Este último como uma circunstância que possuiria causas e consequências

24

CHAVES, MACEDO (Org), 2003, p. 44. 25

CF SANTANA, Gisane Souza. De margens e bordas: a contra-narrativa da nação em Iararana.

Disponível em <http://elhablador.com/debate15_sousa2.html> 26

BHABHA, 1998, p.206.

22

que teriam igual efeito sobre todos os que compõem a nação. Segundo Bhabha27, a

concepção de povo, utilizada como sinonímia de nação,

[...] não é nem o princípio, nem o fim da narrativa de nacional, ele representa o tênue limite entre os poderes totalizadores do social como comunidade homogênea, consensual, e as forças que significam a interpelação mais específica a interesses e identidades contenciosos, desiguais, no interior de uma população.

O conceito de povo é relevante na articulação dos discursos, seja do

colonizador, seja do colonizado. Analisando a literatura produzida por colonizados e

colonizadores, Bhabha28 comenta sobre a narrativa da nação através de discursos

que ele considera híbridos e ambivalentes. Apresentando diferentes tradições de

escrita, o autor enfoca seu estudo na cisão da narrativa historicista, representativa

do povo, enquanto presença histórica a priori, linearmente contada, e a narrativa do

tempo não linear que incita uma dialética entre diversos momentos históricos da

cultura sempre no instante presente29.

As fronteiras espaciais que fundamentam a existência da nação e que

delimitam a representação da existência de um povo como um todo coerente e

organizado serviram/servem como pressuposto para considerar como bárbaras,

desorganizadas, caóticas as culturas nativas. Conferindo ao colonizador a função de

organizá-la, civilizá-la, agasalhá-la debaixo do teto pedagogizador da nação.

No discurso pedagógico, o tempo da narrativa da nação baseia-se na

linearidade, em um tempo homogêneo que não permite a visualização dos

interstícios do presente, de todos os eus traduzidos em nós, no silenciar das muitas

vozes para abrir o espaço para a voz dominante, que transforma a comunidade

numa representação horizontal do espaço. O discurso unificador pertencente à voz

dominante transforma essa escrita da nação em uma narrativa generalizada, que

representa como uma metonímia toda essa comunidade através do que se poderia

denominar História oficial da nação30.

Ao polarizar a diferença, a proposta de resgate nacional angolana priva o

angolano de ter acesso ao” [...] presente da história do povo como uma prática que

destrói os princípios constantes da cultura nacional que tenta voltar a um passado

27

BHABHA, 1998, p.207. 28

CF, BHABHA, 1998. 29

CF SANTANA, Gisane Souza. De margens e bordas: a contra-narrativa da nação em Iararana. 30

Id.Ibid.

23

‘verdadeiro’, frequentemente representado nas formas reificadas do realismo e do

estereótipo”31, abraçando a fixidez do historicismo, que converte num único olhar

sobre o evento, buscando representar através dele a amplitude que possa alçar. A

narrativa da nação que faz uso dessa temporalidade homogênea e vazia não

contempla os eventos que habitam a borda de tal narrativa.

A impossibilidade de cauterização do tempo gera também a impossibilidade

de fixação das identidades em eventos que se localizam em um tempo passado “É o

ato presente que, a cada vez que ocorre, toma posição na temporalidade efêmera

que habita o espaço entre o ‘eu ouvi’ e o ‘você ouvirá’32.

A preocupação com a superação ou rancor, e/ou a necessidade de apagar

todo o sofrimento vivenciado no período de colonização fez com que os militantes

esquecessem a efemeridade temporal e o que a envolve, como o processo de

formação dialógica da cultura e, consequentemente, do sujeito, esquecessem que

esse processo de imposição ou negociação é irreversível, seja pela memória ou até

mesmo pelo esquecimento.

Esse concepção apregoada pelos que buscam a reconstrução da identidade

angolana pós-colonialismo, baseado na perspectiva europeia que concebia a nação

como um grupo racial e étnico bem organizado, entra em contrassenso com a

situação de coexistências étnicas e culturais angolanas e em contradição ideológica

no que se refere à negação da cultura do colonizador e à formação de uma nova

hegemonia cultural como forma de dominação, estratégia que partiu, antes, do

próprio colonizador.

É necessário mencionar, também, que a literatura caracterizada por

representar esse ideal de agenciamento pautado na pureza cultural faz uso do

código linguístico em que predominam elementos da língua utilizada pelo

colonizador, a língua portuguesa. Mesmo em meio a tantas investidas por parte do

movimento anticolonialista, sabe-se que não há como reverter essa situação, posto

que, assim como a língua, outros elementos pertencentes às culturas não

percorrerão o caminho inverso até o pré-colonialismo.

1.2 Por identidades na(s)/sem fronteira(s)

31

BHABHA, 1998, p.215. 32

Id. Ibidem. p.215.

24

A literatura que instituiu a necessidade de um retorno às origens, agora vem

questionar a tentativa de polarização da formação de uma identidade nacional

pautada na visão do colonizador e na representação e disseminação da cultura

autóctone angolana. Segundo Mata33, a produção literária contemporânea busca

representações da nação, mas não mais numa perspectiva nacionalista,

anticolonialista.

Porém, fazendo implodir a “higiénica” (imagem da) nação e da identidade, com o objectivo de propor um outro modelo que busca nas margens e nos loci fixados pela ideologia nacionalista uma nação mais plural... nela a nação está a emergir como corpo fracturado, dilacerado por dissensos, crises e guerras, porém mostrando as suas várias vozes e margens e diferenças de que as suas diversas agências já não abdicam.

No livro de contos Filhos da Pátria, João Melo propõe uma série de

representações que buscam criticar e desmistificar o construto do sujeito colonial

realizado por meio do discurso colonial e do discurso pós-colonial de agenciamento.

Uma ação que pode ser considerada como o rompimento das fronteiras se

fundamentada na concepção de hibridação defendida nos contos, ou a fronteira

como habitat, se a observação refere-se à negação da ambivalência e das imagens

construídas durante e pós-colonialismo que perturbam a visão do ser (ex) colonial

em relação à realidade.

Melo, por meio de suas ironias, caricaturas, propõe uma visão que já não

habita mais nenhum dos campos de oposição, mostrando que tais espaços não são

habitados nem pelo colonizador, nem pelo colonizados, apenas por imagens

geradas pelo discurso colonial e mantidas em uma situação posterior.

O autor chama a atenção do leitor de forma bem humorada para o confronto

entre as imagens que pretendem a tradição e veem-se submersas pela

modernidade, e as representações que consideram o ser angolano em sua

individualidade, sejam eles pertencentes a uma elite local ou os que habitam as

margens do poder político e econômico, gerando uma reflexão sobre o que é ser

angolano.

33

MATA, 2012, p.1

25

Os contos relacionam-se às produções críticas pós-coloniais que revelam a

natureza híbrida da formação identitária, que amplia o caminho para (re)criação de

forma a desconstruir, por meio das representações e das alegorias, os imaginários

apresentados como verdades incontestáveis acerca da constituição de uma

identidade pautada na nacionalidade, nas invenções do passado que visavam a

homogeneização e que calavam as muitas vozes que, de fato, compõem um coro

pouco harmonizado desse país.

Os contos que compõem o livro permitem a visualização de uma Angola na

fronteira de transição de um sistema político-econômico para outro, em que os

eventos refletem-se das mais diversas formas sobre a vida de seus habitantes. Eles

apontam para um país em que a tradição divide espaço e dialoga e/ou estabelece

confronto com a modernidade.

Pode-se observar que o posicionamento do autor é crítico, chega a ser

debochado, tomando-se como base as ironias utilizadas para atribuir comicidade às

situações vivenciadas pelas personagens, sejam elas as de origem bantu,

pejorativamente autointitulados como “autóctones”, os luso-descendentes, os

crioulos, ou os que não tomam parte nessa discussão racial e étnica, pois estão

ocupados em sobreviver em ambientes em que a miséria é a protagonista.

No presente dessas narrativas, encontramos os vários “eus” ocupando o lugar

do “nós”. A identidade nacional una, homogênea, dá lugar às várias peças que

compõem esse quebra-cabeça que é a população angolana. Por intermédio da

literatura, percebemos uma estratégia de representação que busca não exaltar a

diferença, mas reconhecer um contexto de diálogo e embate, de convivência e de

interação, de representação de identidades fragmentadas e transitórias.

1.3 Um mundo em preto e branco

Toma-se como base para análise, nesse primeiro capítulo da pesquisa, a

crítica apresentada, no conto Efeito Estufa e no conto Ngola Kiluanje, acerca da

negação da cultura considerada do Outro/colonizador como estratégia fundamental

para constituição de uma identidade cultural genuinamente angolana.

26

O humor do conto Efeito Estufa reside na forma de representação

caricaturesca da personagem protagonista Charles Dupret, um estilista angolano de

nome anglo-afrancesado que se autointitula um “verdadeiro autóctone angolano/um

preto genuíno”34. O conto evidencia também a frustração da personagem em sua

tentativa de apresentar uma tendência estilística que traduzisse um modo de ser

autenticamente angolano.

A narrativa reflete sobre o desejo de alguns angolanos em agenciar sua

própria constituição identitária nacional após conquistar sua independência, tomando

como base o resgate de uma cultura pretensamente angolana que antecedeu o

colonialismo. Representam a busca pela afirmação de uma identidade que passa

pelo conceito de unidade e pureza. Conceitos que buscam traços que essencializem

essa identidade. No caso de Dupret, a exaltação da cor preta, do ser negro.

O estilista representa a identidade do artista que busca de maneira radical

reafirmar seu discurso de defesa da autenticidade da cultura angolana, discurso

esse que também passa pela afirmação de uma identidade pautada em questões

raciais, que aborda a negritude como essência da identificação da cultura nacional.

Afinal de contas, ele era “O único estilista preto em Angola” que, segundo ele,

era “um país de pretos”35. Esse era um discurso que ele fazia questão de retomar

cada vez que lhe era concedida a palavra.

Charles colocava seu discurso em prática. Ele realizava desfiles em um

cenário escuro, com modelos “legitimamente negras”, vestindo sempre roupas

pretas: “Senhoras e senhores, vão passar a seguir as pretas e os pretos autênticos

de Charles Dupret, os únicos que são imunes ao efeito estufa”.36

As atitudes do estilista tornam-se polêmicas pelo fato de ele procurar

sustentar um conceito de identidade essencialista em tempos em que a questão de

unidade e pureza relacionada à identidade perde seu valor esmagador, seu sinal de

supremacia cultural. Em tempos em que se reconhece que a identidade é um

processo e não um fim. Assim como afirma Canclini.37

[...] não é possível falar das identidades como se se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como a essência de

34

MELO, João. Filhos da Pátria. Rio de Janeiro: Record, 2008, 59. 35

Id. Ibidem. 36

Id.Ibidem, p.62. 37

CANCLINI, 2003, p.XXIII.

27

uma etnia ou de uma nação. A história dos movimentos identitários revela uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e eloquência”.

Dupret toma parte nos movimentos que, em sua luta pela afirmação de uma

identidade, lançam mão de estratégias de discriminação e preconceito. Tais

estratégias tomam como referência imagens pré-estabelecidas e a elas atribui um

juízo de supremacia, deixando à margem os que não tomam corpo nessa crença por

não serem reconhecidos dentro do padrão ditado por tal representação.

Essa tentativa de articulação que ocorre por parte dos grupos hegemônicos

para representação de uma cultura nacional visa, segundo Hall38, a construção de

identidades ao produzir sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais os cidadãos

podem identificar-se.

Aqueles que criticavam o radicalismo com que agia Dupret em suas ações e

discursos eram tidos como seus arqui-inimigos recebiam a alcunha de “[...]

cosmopolitas e luso-tropicalistas sem pátria”.39 Seu discurso tomava uma ampla

dimensão, tornando-se não mais uma crença individual, mas sendo ele o discurso

da própria nação. Pelo fato de Dupret considerar-se um autêntico membro dessa

nação, a ele cabia a missão de divulgação de tal discurso que o favorecia. Esse

discurso não oferecia muitas opções, não compartilhá-lo significava trair a própria

nação, corromper-se. Para o estilista, não comungar com os ideais que

proclamavam que a legitimidade angolana seria alcançada através do resgate da

tradição significava o rompimento patriótico e, também, a negação da sua própria

raça. Aos que apresentavam traços visíveis de mestiçagem e aos nativos

considerados brancos, a exclusão se dava de maneira automática, não cabia a eles

optarem pela aceitação.

A postura da personagem Charles representa a postura dos que

comungavam com a ideologia de que essa autenticidade passava, primeiro, pelo

conceito de raça como categoria biológica que funciona como um elemento

determinante para identificação da cultura. O mais relevante pré-requisito para ser

um autóctone angolano era ser preto.

38

HALL, 1998, p.51 39

MELO, 2008, p.62

28

Tais concepções, em parte, harmonizam-se e, em parte, contradizem os

argumentos apresentados por Hall40 em relação à questão da identidade racial como

categoria discursiva e não biológica.

A raça é uma categoria discursiva e não biológica/ Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representações e práticas sociais que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura de cabelo, características físicas e corporais etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo do outro.

Para ser negro e, consequentemente, um legítimo cidadão angolano,

necessitava ser especificamente preto e, também, deveria agir como negro. Os que

não abraçavam a causa, mesmo possuindo traços visíveis de sua negritude, eram

considerados pela personagem “[...] pretos suspeitos, acastanhados, fulos, cabritos

[...] mulatos sem santo e sem sangue [...]”41

A negação da condição de angolano aos brancos, aos mestiços, e até mesmo

aos negros que rejeitavam tal discurso de seleção racial, revela a postura adotada

no discurso que se vale das prerrogativas de “raça pura”, também igual à “cultura

pura”, reutilizando a estratégia adotada pelo colonizador para exaltar sua raça e sua

cultura de modo a ver a cultura do colonizado como inferior. Esse discurso de

exaltação de uma cultura nacional funciona como instrumento de dominação

utilizado, também, por parte dos nativos como forma de poder e exclusão, como

mostra Said42

[...] a consciência nacionalista pode levar com facilidade à rigidez estática; apenas substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes de cor, diz ele, não é garantia de que os funcionários nacionalistas não repetirão os velhos arranjos.

A inflexibilidade de Charles, no que se refere à questão de quem representa

ou não sua nação, é observada com base em suas perspectivas de constituição de

uma identidade nacional pautada na questão racial, na memória, na tradição.

Através dessas perspectivas, ele legitima o exercício do poder sobre os outros. A ele

é conferido o direito de estabelecer dinâmicas de exclusão e inclusão.

40

HALL, 1998, p.63 41

MELO, 2008, p.59. 42

SAID, 2011, p. 335.

29

Para Charles, “Angola é um país de pretos”43, autênticos e genuínos como

ele. Sua inflexibilidade está fundamentada na negação dos processos de hibridação.

Esses processos datam das origens históricas do homem. Baseado na afirmação de

Gruzinski, Abdala Jr44 comenta que toda matéria é híbrida de partida e que toda

pretensão à pureza é mito.

Pureza racial é mitologia afim de ideologias autoritárias e totalitárias. Na realidade, desde os primórdios, sempre houve deslocamentos humanos, com contatos sexuais consensuais ou violentos, através das invasões. A própria ideia de raça é também ideológica e surgiu como decorrência da necessidade de se justificar o domínio de um povo sobre outros.

O estabelecimento do ideal de pureza racial pressupõe diferença racial e,

consequentemente, diferença cultural, uma vez que esse ideal propõe um discurso

de que associados à cor da pele devem estar, o modo de ser e de pensar. Ideal que

dissemina o preconceito racial, a exclusão, e procura justificar a violência racial e

cultural através da superioridade.

A superioridade do branco colonizador sobre o negro colonizado, da cultura

europeia sobre as culturas dos povos colonizados vivenciada no período colonial,

toma como princípio a cor para o estabelecimento da diferenciação e da distância

entre o homem branco e o homem negro, a partir de então outros traços são

conferidos ao homem negro para acentuar essa diferença enquanto oposição.

A posição discursiva de Charles revela ser ele um mantenedor de tal

estratégia. Sua pretensão à superioridade enquanto negro autêntico revela a ânsia

por um poder justificado pela diferença racial enquanto oposição.

A personagem através de seu discurso exerce uma postura considerada

autoritária e totalitária. Ele dita os pré-requisitos que determinam quem participa ou

não como membro da nação angolana.

Said45, acerca dos discursos nacionalistas, atenta para os perigos de quando

a representação da identidade cultural associa-se à nação ou Estado, dos riscos do

chauvinismo e da xenofobia que essa associação pode gerar dentro de um contexto

em que a cultura passa a tornar-se uma fábrica de identidades.

43

MELO, 2008, p.59. 44

ABDALA JR, Benjamim. Fronteiras múltiplas, identidade plurais – um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Série Livre Pensar, 2002. p. 20-21. 45

SAID, 2011, p.12.

30

[...] a cultura torna-se uma fonte de identidade, e, aliás, bastante combativa, como vemos em recentes “retornos à cultura e à tradição”. Esses “retornos” acompanham códigos rigorosos de conduta intelectual e moral, que se opõem à permissividade associada a filosofias relativamente liberais como o multiculturalismo e o hibridismo.

Baseado nos valores de uma cultura nacional que tem como pressuposto a

autenticidade e a pureza, elementos que remetem a um resgate das tradições, a um

“retorno” às origens para o reencontro com uma cultura anterior ao colonialismo, a

personagem estabelece que ser de fato angolano é unificar as tradições, apagar as

diferenças, harmonizar os conflitos, tornar todos em um.

Aos poucos, Melo desmistifica a ideologia de unidade e pureza, racial e

cultura representada pela personagem Dupret, trazendo à tona o abalo sofrido pelo

discurso historicista que prega a estabilidade.

O discurso de unificação reúne em um grupo maior outros grupos menores,

de classe, de gênero, de instituição, de família e de etnia, fazendo com que todos

eles aportem sua identidade na posse em comum de uma memória que os unifica e

que as substancializa. Conforme menciona Hall46.

Não importa quão diferente seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à grande família nacional.

Em relação à expressão família, “a pequena célula mãe da pátria que é a

família”47.Vale lembrar que o lar, “que para outros constitui uma local de convívio

familiar – Era um dos palanques preferidos de Dupret [...]”48. Os discursos

aconteciam “à cabeceira norte da mesa”, de onde fazia questão de lembrar que

aquele era seu lugar. Era de onde também dava suas ordens acerca das ações mais

excêntricas e proferia discursos acerca de seu ideal de nacionalismo cultural

angolano. À cabeceira, porque é onde se assentam os chefes, palavra utilizada em

seu sentido mais literal, pois que, nesse lar, ele era um chefe, um líder autoritário,

seus discursos e ordens estavam fechados a qualquer questionamento. Ao norte,

pode servir como indicação geográfica que remete à localização da Europa. Seria

46

HALL, 1998, p. 59 47

MELO, 2008, p.65. 48

Id.Ibidem, p.64.

31

Dupret um autóctone angolano que dá ordens, ocupando o lugar de seu colonizador

e ditando o que seria uma moda autenticamente angolana.

A definição de uma cultura nacional, como afirma Said49, nada mais é do que

a aspiração à soberania, à influência, ao predomínio. Dentro desse contexto

contempla-se a substituição de uma ditadura cultural patrocinada pelo colonizador

por uma ditadura cultural patrocinada pelo colonizado. Ditadura, pois o narrador faz

questão de enfatizar que “Charles Dupret era um ditador” inquestionável em suas

imposições: “Em casa, só ele mandava e ponto final [...] uma sugestão sua, quer

dizer, dele, por mais vaga e imprecisa que fosse, tinha que ser entendida como um

despacho peremptório, claro, preciso e, sobretudo, inquestionável”.50

Sua recusa em relacionar-se com tudo quanto representasse a cultura do

colonizador foi posta em cheque quando, questionado acerca de os compradores de

sua arte serem estrangeiros, ele respondeu que se trata de “uma questão de

estratégia! [...] Temos que reaver o que esses brancos nos espoliaram durante

séculos em que nos escravizaram! Eles nos devem muito dinheiro! [...]”51

A personagem comercializa com compradores europeus o que seria a

representação perfeita da cultura autenticamente angolana. Ele o faz não apenas

como autoridade no assunto, mas como possuidor de tal cultura. Dupret contraria a

concepção acerca da barganha cultural mencionada por Said52 de que “a cultura não

é uma questão de propriedade, de emprestar ou tomar emprestado com credores

absolutos, mas antes de apropriação, experiências comuns e interdependência de

todo tipo entre as culturas”

Ao justificar a transação comercial, Dupret também faz uso da filosofia de que

os povos, outrora objetos da exploração do colonizador, agora, pós-independência,

têm o direito de reverter a situação, de alguma forma explorar o colonizador. Aqui,

observa-se mais uma vez o desejo do nativo de ocupar o lugar do colonizador, mas

mantendo seu lugar de colonizado. Tal observação será aprofundada no capítulo

terceiro dessa pesquisa.

Dupret tem razão. De fato, trata-se de uma estratégia. No pós-colonialismo,

surge o desejo de agenciamento de uma identidade cultural nacional, o novo

49

SAID, 2011, p. 51. 50

MELO, 2008, p.63. 51

Id. Ibidem. p.63. 52

SAID, 2011, p. 339.

32

agenciador/o africano faz uso das mesmas estratégias utilizadas pelo velho

agenciador/o europeu.

Toma-se como exemplo dessa estratégia, o evento histórico da crise por que

passaram algumas sociedades europeias pré-modernas que tiveram suas estruturas

abaladas por questões relacionadas à dificuldade em administrar numerosos

territórios ultramarinos e grandes e recentes eleitorados nacionais. Said53 menciona

que para a retomada do controle da situação, as elites europeias buscaram no

passado, na ênfase da tradição, o controle e amenização da pressão popular.

Segundo ele, “Criam-se invenções semelhantes no lado oposto, ou seja, entre os

alguns nativos insurgentes em relação a seu passado pré-colonial”.

As ações de Dupret remontam de forma caricaturesca, como menciona o

narrador do conto, à reação dos militantes literários contra a presença de elementos

que os fizessem recordar os séculos de submissão. Tal reação desperta em seus

agentes o desejo de exaltação de uma identidade de nação liberta. Conforme

observa Said54, tais ações podem ser interpretadas como uma reação às

humilhações sofridas no período colonial, essas reações utilizam-se dos

ensinamentos do nacionalismo europeu que parte da necessidade de encontrar a

base ideológica que fundamente uma unidade mais ampla do que qualquer outra

que jamais existiu.

A busca por uma unidade justificada na proposição de que tudo que é uno é

mais resistente faz com que a narrativa da história passe a representar tal

pensamento, passando a ser concebida como um todo coerente e integral.55

O pensamento que supõe a reconstituição de uma identidade cultural nacional

pautada na tradição é justamente a questão da unidade, mencionada na citação

anterior. Esse ideal dissemina a imagem de uma identidade una e coerente que se

instala no imaginário social e, consequentemente, tece influência nas relações

sociais cotidianas.

Coerente, Integral e impenetrável, é assim como o estilista considera sua arte,

imune a qualquer forma de influência da globalização ou da cultura colonial. Uma

arte que ele faz questão de afirmar que é “imune ao efeito estufa”.

53

SAID, 2011, p. 52 54

Id. Ibidem. p.329. 55

Id. Ibidem. p.329.

33

Sua postura radical em relação à questão de uma identidade que “descera às

origens” e representa de fato o ser legitimamente angolano fazia dele um ditador.

Assim, ele era reconhecido pelos que apresentavam críticas negativas à sua

tendência e até por alguns de seus familiares.

O narrador faz inserções no texto para explicar os fatos, dialogar com o leitor

ou emitir opiniões. No referido conto, o narrador abre parênteses para dar

informações e para, mesmo afirmando sua tentativa de neutralidade diante dos

fatos, deixar clara sua antipatia por pessoas como Dupret, busca adjetivos em

português e até em caluanda para caracterizar a personagem. Além disso, em suas

observações, deixa escapar que a personagem serve como representante de todo

um segmento. Ele menciona que Dupret “representa uma gama de artistas

pretensamente poderosos na sua arrogância, mas terrivelmente patéticos como ele

[...]”56

Para exemplificar a inflexibilidade da personagem em relação à questão da

identidade nacional angolana, o narrador menciona uma das suas inusitadas

imposições apresentada no discurso que ele profere contra o bacalhau que estava

posto à mesa do jantar como de costume.

O bacalhau é o cavalo de Tróia utilizado pelos portugueses para continuarem a ter os angolanos nas mãos! [...] Com o bacalhau vem o vinho, o chouriço, as alheiras, o queijo da Serra amanteigado – enfim, todas essas porcarias que não apenas fazem mal ao colesterol, mas também à nossa identidade! [...]57

No discurso, há o reconhecimento de uma gama de alimentos que são

introduzidos paulatinamente à mesa do angolano. O alimento como simbologia dos

hábitos que chegam pouco a pouco, e passam a fazer parte do cotidiano. E, assim,

vão-se dia a dia tomando parte na cultura.

Ao criticar a presença desses elementos em sua mesa, Charles demonstra

seu repúdio pelas formas de hibridação, como se esse processo de combinação

pudesse tomar caminho inverso a partir do momento em que ele começa a rejeitar

elementos, em sua mesa, em seu cotidiano, que considera pertencer à outra cultura.

A expressão hibridação abordada neste contexto fundamenta-se no conceito

apontado por Canclini.

56

MELO, 2008, p.61 57

Id. Ibidem, p.67

34

[Hibridação] são processos socioculturais nos quais estruturas e práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razões pelas quais não podem ser consideradas fontes puras58.

A busca por estruturas discretas levou o estilista a cometer enganos. Como

substituir os alimentos que costumeiramente eram postos à mesa, por pratos os

quais acreditava serem tipicamente angolanos. Mas, mal sabia Dupret que suas

escolha que considerava como estruturas discretas, se tratavam, na verdade, de

elementos resultantes do processo de combinação, o que Canclini59 chama “ciclo de

hibridação”. Trata-se do trânsito do discreto ao híbrido, dando origem a novas

formas discretas. Esse ciclo refere-se à passagem de formas mais heterogêneas a

outras mais homogêneas, e depois a outras relativamente mais heterogêneas, sem

que nenhuma seja pura ou relativamente homogênea60.

A exclusão de determinados elementos do cotidiano representa o eliminar a

lembrança de um passado que se procura apagar da memória, ou mesmo um

revide, um “pagar na mesma moeda” as tentativas de extermínio da cultura local

patrocinada pelo colonizador. Pois, como afirma Said61, o discurso acerca da

preocupação com imagens puras fundadas em um passado privilegiado e

genealogicamente útil traz consigo a possibilidade de extinguir dele elementos,

vestígios e narrativas indesejáveis.

Polêmica e contraditória é a fundamentação de uma identidade nacional que

busca afirmação na negação da presença do Outro, pois segue, mesmo que

inconscientemente, as mesmas estratégias que antes rejeitavam.

Assim como os europeus, ao ocupar a Àfrica, consideravam-na polemicamente um território vazio [...] da mesma forma os africanos da descolonização julgaram necessário reimaginar uma África despojada de seu passado imperial62.

Um dos enganos cometidos por Dupret foi a substituição do bacalhau e de

todos os elementos que o acompanham de origem estrangeira pelo calulu e

58

CANCLINI, 2003, p. XIX. 59

Id. Ibidem. p.XIX. 60

CF Id. Ibidem, 61

SAID, 2011, p.52. 62

Id.Ibidem. p.330.

35

sarrabulho, julgando tratar-se de peixes típicos da culinária angolana. Ele chegou a

expulsar a mulher e a filha de casa diante da recusa em comer somente calulu e

sarrabulho nas refeições, tomou essa atitude drástica, justificando que tudo isso era

“em nome de nossas raízes”63.

As raízes a que Charles fazia coro se tratavam de tradições que, conforme

afirma Hall,64 parecem ou afirmam ser antigas, mas são, na maioria das vezes, de

origem bastante recente e, algumas vezes, inventada.

Tais tradições apontadas como originais são resultantes do processo de

hibridação. O próprio ideal de narcisismo da negritude é perpassado por esse

processo. Pois, para que o angolano refletisse acerca da sua negritude, foi

necessário o confronto com a imagem do homem branco. Assim também, ocorre

com o discurso de proclamação dessa negritude enquanto diferença e oposição, ele

também é fruto da situação colonial em que estavam presentes tanto o homem

branco como o homem negro.

Por isso o discurso que enfatiza a pureza e origem da tradição calca a linha

perigosa da contradição. Exatamente o que aconteceu com o prato tradicionalmente

angolano escolhido por Dupret, como um símbolo original da cultura de seu país.

Como enfatiza o narrador, “[...] o sarrabulho era proveniente de Goa, na Índia, e que

havia adentrado Angola pelo rompimento de fronteiras ocorrido em outras

épocas.”65. O estilista toma parte da hibridação cultural sem que tenha consciência

desse processo.

Esse desconhecimento por parte da personagem em relação ao processo de

hibridação por que passavam as culturas deve-se ao fato de que ele considera

inviável o uso da expressão Fronteiras perdidas, por isso, ele expõe, como

puramente angolanos, seus modelos. Charles nega essa hibridação, que não possui

data de nascimento, ou mesmo um nascedouro definido, mas que foi intensificada

pelo processo de colonização e posteriormente pela globalização.

O narrador define o estilista como patético e menciona que seu discurso

apresenta uma série de contradições. Entre estas, destaca-se o fato de os discursos

contra a cultura colonizadora serem proferidos fazendo uso da língua portuguesa

com inserção de palavras caluandas. O narrador enfatiza, também, o fato de que o

63

MELLO, 2008, p.70. 64

HALL, 1998, p.54. 65

MELO, 2008, p.70.

36

“maior defensor público da autenticidade angolana”66 tem um gosto musical bastante

estranho. Dupret obrigava toda a família a ouvir as músicas “[...] desse preto armado

em branco, ‘Michael não sei das quantas’”, (Referindo-se ao cantor americano

Michael Jackson)67. Charles também patrocinava os estudos da filha no exterior.

Tais atitudes de Dupret revelam traços que remetem às concepções que

fundamentam os processos de hibridação, mesmo afirmando ser imune a esse

processo, pois é possível identificá-los tanto em seu gosto musical como em seu

desejo em proporcionar à filha uma educação dentro dos padrões europeus.

O representante público da autenticidade angolana teve seu caminho cruzado

por um jornalista que, por ocasião de desentendimentos em uma festa, passa a

questionar a autenticidade e a pureza de sua arte. O jornalista torna-se uma

verdadeira pedra no sapato de Dupret, ou melhor, uma pedra de tropeço.

O jornalista começou a buscar recursos para fundamentar seus escritos

acerca da propalada autenticidade dos modelos do estilista. Recorreu à opinião de

um historiador que lhe havia concedido uma entrevista. Ele definiu como excêntrica

a arte do estilista. A entrevista rendeu uma manchete arrasadora, cujo título era

AUTENTICIDADE DE DUPRET AFINAL É ÁRABE68.

Ao analisar os modelos de Dupret, o historiador finalmente concluiu que os

trajes não passavam de imitação de trajes de origem árabe. Não haverá uma

extensão para análise do historiador que, por sua afirmação, pode ser considerado

tão excêntrico quanto Dupret.

O jornalista acrescentou à sua redação que “[...] os modelos femininos de

estatura elevada, magros e, sobretudo, sem rabo [...]” privilegiados por Charles

“limitavam-se a copiar servilmente os padrões de beleza europeia [...]”69

Charles era um exemplar autóctone, não puramente angolano, mas o

representante de uma fase dedicada ao resgate de uma identidade nacional que

teria passado por processos de hibridação, entre eles o de aculturação portuguesa

no período colonial e que, com o fim do colonialismo, buscava resgatar um estilo

pautado em um passado pré-colonial, que acreditava ser a fonte pura das origens da

cultura angolana. Acreditava que seu estilo, seus discursos, suas ações pretendiam

o resurgimento dessa cultura, como se ela pudesse reaparecer imaculada depois de

66

MELO, 2008, p.66. 67

Id. Ibidem. p.69. 68

Id. Ibidem. p.68. 69

Id. Ibidem. p. 68.

37

tantas décadas de colonização e da exposição frequente a outros costumes através

da globalização proporcionada pelo capitalismo, ou até mesmo por um período mais

remoto.

A ênfase na hibridação não enclausura apenas a pretensão de estabelecer identidades “puras” e “autênticas”, [...] põe em evidência o risco de delimitar identidades locais autocontidas ou que tentem afirmar-se como radicalmente opostas à sociedade nacional ou à globalização70.

Embora o narrador tenha antecipado informações acerca do desfecho da

narrativa, as últimas linhas da narrativa que revelam o fim da personagem propõe

uma reflexão acerca da releitura das velhas identidades e a falta de espaço para sua

representação em um mundo onde as identidades passam por processos mais

acelerados de transformação.

O estilista foi visto em plena Mutamba, em cima de uma espécie de passarela colocada sobre uma fila de cinco contentores de lixo, disfarçado de Michael Jackson, com um pedaço de gadus morrhua (bacalhau) em cada mão, ensinando uma coreografia absolutamente original.71

A personagem teve um fim de fato tragicômico como prometeu o narrador na

segunda página do conto. O comentário mais inusitado proferido acerca da situação

em que se encontrava Charles partiu de um periquito que, segundo o narrador, com

sua vozinha esganiçada dizia: “– Deve ser do efeito estufa! Deve ser do efeito

estufa!”72

Hall,73 ao comentar o pensamento de alguns estudiosos acerca do pós-

colonial, observa que muitas teses apontam para um conceito relacionado à

cronologia, ao pós-colonial como encerramento de um período histórico, como se os

efeitos provocados pelo colonialismo pudessem ser encerrados com ele.

O evento histórico que marca a Independência Nacional Angolana constitui

um novo tempo que se fundamenta, para alguns angolanos, no conceito de período

pós-colonial como marco do fim da presença do colonizador em terras angolanas.

70

CANCLINI, 2003, p. XIX. 71

MELO, 2008, p. 71. 72

Id. Ibidem. p.71. 73

HALL, 2003, p.96

38

A população angolana aguardava ansiosa para viver livre de toda opressão,

exploração. Mas o processo de colonização durou o tempo suficiente para que a

presença do colonizador deixasse marcas profundas, indeléveis, não somente na

alma como também na gene angolana. Excluir elementos relativos à presença do

colonizador seria então excluir membros da população.

O processo de exclusão pretendido pelos que estavam no poder e por parte

da população que aceitava os discursos que justificavam esse processo não poupou

nem aqueles que almejavam a libertação de Angola. Foi o que aconteceu com a

família da personagem António Manuel da Silva, protagonista do conto Ngola

Kiluanje.

O conto narra a história de um nativo angolano que quando tinha catorze

anos precisou fugir do seu país acompanhado por seus pais e uma irmã. Ngola

Kiluanje74 é a alcunha que a personagem-narrador recebeu da namorada brasileira,

Jussara, que achava incoerente um angolano poder chamar-se de António.

O conto principia com a seguinte exclamação proferida por Jussara Mi fodje!

Ngola Kiluanje, seu negro!75 Segundo António, a expressão aguçava o desejo da

namorada, pois fazia com que António assumisse, naquele instante, uma identidade

de fato angolana. As razões que talvez justifiquem o fetiche de Jussara serão

abordadas no terceiro capítulo desta pesquisa.

O fato é que Carlos era branco, o que deveras intrigava sua namorada. Ele

também achava estranho que fosse angolano e branco. Vivia a inverter a oração

concessiva para ver se arrancava um sentido a mais do seu discurso “sou angolano,

embora branco”/“sou branco embora angolano”[...]76

Jussara e António compartilham uma visão idealizada da identidade angolana

disseminada pelos “autóctones” no discurso que havia empurrado Carlos para fora

de seu país. Ele havia saído de lá o tempo suficiente para apagar de sua memória a

7474

Ngola A Kiluanje (1515-56) foi o líder do potentado mais destacado do Antigo Reino do Ndongo, sendo conhecido por Ngola A Kiluanje Inene (o Grande Ngola). Ngola A Kiluanje Inene fundou uma dinastia do que mais tarde se havia de vir a ser conhecida como o Reino de Angola, que então compreendia, entre outros, os distritos da Ilamba, do Lumbo, do Hari, da Quissama, do Haku e do Musseke. Inicialmente o Ndongo era um chefado vassalo do Antigo Reino do Congo até Ngola A Kiluange Inene se declarar independente.

PONTE, Helder. Introdução à História de Angola. Disponível em <http://introestudohistangola.blogspot.com.br> 75

MELO, 2008, p.97 76

Id. Ibidem, p.98.

39

diversidade de faces que compunha Angola e visualizava um país composto por

pretos.

António aceitava ser chamado pelo nome Ngola Kiluanje. Ele afirma que

mesmo sendo branco e não morando mais em Angola, ele conhecia a história do

guerreiro Ngola A Kiluanje, aliás, foi ele mesmo que narrou essa história para sua

namorada. Dizia não ter o desejo de adotar outro nome para ser reconhecido como

angolano, mas, segundo o narrador-autor, quando Jussara o chamava Ngola, ele

assumia ares de soberania e sentia uma sensação reconfortante e vitoriosa.

O fato de um homem branco receber o nome do guerreiro fundador de Angola

é uma das ironias que compõem o conto analisado e até poderia ser chamada de

heresia se, no conto, fosse dada a voz a um “autóctone”.

A lembrança do guerreiro simboliza um olhar para as glórias do passado.

Essa estratégia de um retorno a uma epopeia do mito fundacional representa o

recuar para um tempo vitorioso quando o povo angolano era o autor das conquistas

territoriais, quando esse povo detinha o poder de subjugar outros povos. O angolano

que, durante tanto tempo, serviu como o objeto de conquista para o colonizador, vê

nesse esforço de remontar suas epopeias uma forma de reconstruir sua identidade

como sujeito dominador.

Hall77 afirma que esse recuar para um tempo glorioso esconde uma batalha

para mobilizar as pessoas a fim de que purifiquem suas fileiras, eliminem a presença

dos “outros” que ameaçam sua identidade e se preparem para uma nova marcha em

direção ao futuro.

Tal pensamento pós-colonial que conduz a crença de um tempo de

descolonização, pautado nesse ideal de purificação, assume uma face tão violenta

quanto ao processo de colonização. A expressão eliminar a presença dos “outros”,

“expulsar”, mencionada por Hall, foi observada em seu sentido mais literal, no que

se refere ao período pós-independência angolano.

O esforço em contar e recontar epopeias como a do mito fundacional

angolano consiste em manter viva a tradição, transformando-a em uma herança

cultural indivisível, em que a sensação de poder conferida pelas glórias dos

antepassados só será herdada pelos supostos descendentes dos guerreiros

77

HALL, 1998 , p.56.

40

vitoriosos. Assim, será ofuscada a existência dos que não tomam parte na árvore

genealógica dessa epopeia.

Segundo Canclini,78 a preservação e a transmissão desses bens como

Patrimônio Imaterial Nacional “[...] incorrerem quase sempre numa certa simulação

ao sustentarem que a sociedade não está dividida em classes, etnias e grupos, ou

quando afirmam que a grandiosidade e o prestígio acumulados por esses bens

transcendem essas frações sociais”.

A celebração do passado serve de base para tornar legítimo o poder nas

mãos dos “autóctones” angolanos, pois a proposta de constituir uma identidade

nacional eliminando a participação de elementos referentes ao colonizador projeta a

criação de um Estado onde não há espaço, no poder, para os que são considerados

brancos, mulatos, acinzentados, descendentes de outras etnias que não estejam

apoiadas no mito fundacional, gerando o que poderia ser entendido como

autoritarismo político, considerando que alguns governantes proferem discursos

sugestivos do despotismo sobre a vida dos cidadãos, exercendo a dominação sobre

as pessoas por meio de coação, estabelecendo padrões que visam à inclusão ou

exclusão social.

Segundo Canclinii,79o autoritarismo político que justifica seu poder como

incontestável apoiado na tradição, na ancestralidade constitui uma encenação

monótona em que a relação entre o governo e o povo consiste na teatralização de

um suposto patrimônio definitivo da nação.

O narrador-autor, que divide/disputa espaço na narrativa com o narrador-

personagem, abre uma intersecção na narrativa para reproduzir o discurso de um

escritor literário que acorda com esses ideais expressos pelo movimento de

agenciamento da identidade nacional angolana.

Acontece que acabo de me lembrar de um conhecido defensor dos direitos humanos local que abomina mortalmente o facto de certos autores escolherem brancos para serem os principais protagonistas das suas histórias, pois isso, segundo ele, é um despudorado atentado à nossa identidade.80

78

CANCLINI, Néstor García (1994). O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, 23, p.96. 79

CANCLINI, 2003, p.163. 80

MELO, 2008.p.100.

41

O escritor mencionado pelo narrador-autor mostra-se adepto ao discurso de

reconstrução da identidade angolana que adota um processo de seleção pautado

em concepções étnico-raciais em que presença do homem branco representa uma

ameaça a essa reconstrução, mesmo sendo ele um nativo. A etnia associada à cor,

tendo essa última um caráter predominante, constitui o princípio reformulador dessa

identidade presente na narrativa da nação angolana pós-colonial.

O narrador-autor prossegue, tecendo alguns comentários acerca dessa

seleção, analisando-a como incoerente e contraditória. Ele afirma que seus

comentários serão levemente precatórios, como o que segue.

[...] a verdadeira autenticidade angolana pode ser khoisan e não bantu; os brancos chegaram a Angola antes dos grupos bantus, como os ovimbundos; o maior escritor angolano nasceu numa buala portuguesa chamada Lagoa do Furadouro.81

Os fatos e argumentos explicitados na fala do narrador-autor acordam com o

pensamento de Hall82 acerca de que a estratégia utilizada pelo discurso unificador e,

ao mesmo tempo excludente, que faz uso da estratégia que utiliza da etnia para

fundamentar mitos fundacionais, ocultando as diferenças através da representação

das identidades como expressão da cultura subjacente de “um único povo”, não

encontra espaço em um mundo onde as nações são híbridos culturais. O narrador-

autor do conto analisado tem consciência desse processo de hibridação. Ele encerra

seu comentário, reproduzindo o pensamento do escritor Agostinho Neto de que

Angola “[...] é uma encruzilhada de civilizações e de culturas”.83

Justificar a supremacia de um eu sobre um outro, unificando as identidades

nacionais em torno de uma etnia, é uma estratégia tão falha quanto a que faz uso da

raça para instituição dessa supremacia. A utilização da expressão raça como

categoria genética é, segundo Hall,84 o “último refúgio para ideologias racistas”. Este

vocábulo aparece com frequência no discurso nacionalista no período pós-colonial

angolano. O discurso que envolve esse jogo de supremacia gera discriminação e faz

com que o indivíduo, ao questionar sua identidade, discrimine, ou seja discriminado

por sua cor.

81

MELO, 2008, p. 100. 82

HALL, 1998, p.62. 83

MELO, 2008, p.100. 84

Id.ibidem.

42

Segundo a personagem António, a identidade do branco angolano é mais

complexa que uma simples inversão de frases que vivia a lhe ocupar a mente.

[...] é de admitir que muitos brancos nascidos em Angola não se assumem como tal – o que, aliás, explica por que muitos deles deixaram o país depois da independência -, é igualmente verdade, por outro lado, que a maioria de povo não nos aceita como autênticos angolanos e ainda acredita que todos os brancos são colonos, mesmo que tenha havido alguns que, inclusivamente, lutaram de arma na mão contra o colonialismo.85

Ambos os lados apresentados pela personagem explicitam a questão do

preconceito gerado pelo discurso que fomenta a diferença como oposição. Os

antagonismos aqui expressos estão, de maneira mais predominante, ligados a

questões relativas à raça, mais especificadamente, à cor, percebe-se que pessoas

brancas contagiadas por esse discurso criam uma aversão à própria cor, ou, como

no segundo caso, negam-na, tentando se identificar com seus conterrâneos, os

autóctones, e permanecer em seu país.

Enquanto estavam no avião a caminho de Portugal, o pai permaneceu em

silêncio, apenas dirigia um olhar para António. Este não entendia o porquê de

tamanho silêncio e de um olhar tão hostil, pois não residia em António os motivos

que os fizeram partir, a não ser que tal culpa incidisse pelo fato de ele ter nascido

branco.

Quanto ao meu pai, evitou terminantemente responder às minhas insistentes e repetitivas perguntas acerca do destino daquela estranha viagem, limitando-se a olhar para mim – sei que o que vou dizer é muito esquisito, mas, na minha opinião, na altura, era essa!... -, como se me odiasse profunda e visceralmente. Desde então, o seu olhar adquiriu um brilho sanguíneo e duro, que nunca mais o abandonou86.

As razões que justificavam a violência colonial são semelhantes às razões

que justificam a violência sofrida por António e sua família. O poder instituído no

colonialismo que adotava a eliminação da cultura subalterna por considerá-la

inferior, agora está posto nas mãos do colono. Este agora traça estratégias de

afastamento da cultura e, por mais maravilhoso que pareça, da gene colonial.

85

Melo, 2008, p.99. 86

Id. Ibidem, p. 103.

43

O discurso que promove a discriminação é proferido por aqueles que

deslumbram um poder sem nenhuma sombra de oposição e é acolhido por aqueles

que não estão no poder, mas, em seu íntimo, abrigam um espírito narcisista.

Said, ao mencionar que as estratégias que buscam rememorar/viver um

passado colonial, alimentadas pela ficção romantizada na literatura, na linguagem

dos poetas, durante as batalhas pela independência em parte do mundo colonial,

são reutilizadas politicamente para causas não tão nobres.

Nos Estados nacionais pós-coloniais, é evidente a flexibilidade de essências tais como o espírito celta, a negritude e o islamismo: elas têm muito a ver com os manipuladores nativos, que também as utilizam para encobrir faltas, corrupções, tiranias contemporâneas, e ainda com os contextos imperiais conflituosos de onde surgiram, tendo se afigurado como necessárias naquele momento.87

Tais atitudes explicam o porquê de tantas ex-colônias que, mesmo depois de

terem conquistado sua liberdade, ainda vivem sob estratégias políticas de

dominação imperialistas. Os que governam essas ex-colônias empreendem esforços

em promover o envolvimento da população em lutas nacionalistas que buscam

remontar um passado caracterizado pela admiração/subserviência dessa população,

um passado selecionador e excludente com base na ancestralidade, concedendo

poder aos que desejam manter a ambivalência que agora ocorre no interior da

própria nação. Essa estratégia é justificada/ancorada em um período mais colonial

de que pré-colonial. Tais ações chamam a atenção da população para o passado,

para o rancor em relação a algo que parece exterior a ela, mascarando os abusos

cometidos no interior na nação.

A personagem-narrador tem consciência de que o motivo da não aceitação

dos brancos em Angola é reflexo da difusão desse discurso, e que este é inventado

e disseminado por uma minoria que faz uso dele para se manter no poder. É

possível constatar esta afirmação no fragmento: “[...] tenho dúvidas se é mesmo o

povo que não aceita que os brancos também possam ser angolanos ou se é apenas

uma meia dúzia de oportunistas que o instiga a ter sentimentos e prática racistas”88

António era filho de pais brancos também nativos angolanos. O pai

participava do grupo de angolanos que aguardava ansioso pela independência do

país, mas, logo após o dia 25 de abril, teve que deixar o país às pressas. As

87

SAID, 2011, p.53. 88

MELO, 2008, p.99.

44

lembranças do dia em que entraram em um avião a caminho de Lisboa são muito

vagas para António. O que ele sabe é que, naquele mesmo dia, tinha decidido seu

retorno. Este aconteceu após quinze anos.

Para que haja entendimento de o porquê da data 25 de abril de 1974 ter

ficado marcada na memória de António, precisa-se ir além de um relato histórico

meramente descritivo. Neste, pode-se dizer que a data marca o evento da

Revolução dos Cravos em Lisboa. Revolução que se refere a um período da história

de Portugal resultante de um golpe de Estado militar que depôs o regime ditatorial

do Estado Novo vigente desde 1933, e que iniciou um processo que viria a terminar

com a implantação de um regime democrático que acelera o processo de libertação

das dos países que eran colônias portuguesas.

Os relatos representados no livro Abandonar Angola, da escritora Aida

Viegas, representa de maneira mais aproximada a sensação dos angolanos nesse

momento.

A alegria contagiou tudo e todos e logo se começou a falar em independência. Como tudo iria ser melhor! Arquitectavam-se sonhos de liberdade e progresso. Uma nova era se vislumbrava no amanhecer dum novo dia. Gente de todas as cores parece que bebia o ar da vitória. A Grande Angola iria ser ainda maior. Quanto não iria valer a moeda angolana! […] Até já se faziam câmbios. Repórteres de jornais e revistas vieram para a rua fazer inquéritos [...] Quem pretendia a independência? perguntavam. Todos, era a resposta de brancos, negros ou mestiços. Quem queria continuar, em Angola? Todos é claro. Todos estavam empenhados no futuro desta terra; os que cá nasceram e os que a tinham adoptado como sua.89

Esse sentimento que invadia as ruas e o coração dos angolanos tomou conta

também das emoções do pai de António. No momento em que esse evento foi

anunciado, ele não demonstrou nenhum entusiasmo, tão pouco pavor, continuava a

levar uma vida normal. Apenas repetia, sem maiores explicações, que “Era bom que

este país um dia se tornasse livre!” Mas, quinze anos depois, ele revela ao filho toda

esperança que esse evento havia despertado em seu coração.

Na época, António era jovem demais para entender o contexto. Os pais

recusavam-se a esclarecer os motivos que o fizera partir de Angola. O pai relutava

em aceitar a decisão de António para retornar ao país de origem. Mas, diante da

insistência do filho, ele revela todas as suas frustrações em relação a Angola.

89

VIEGAS, Ainda. Abandonar Angola. Um olhar à distância. Aveiro, 2002, p 67-69.

45

O narrador-personagem, para abreviar a história ou porque não desejasse

tornar público o discurso de desabafo do pai, expressa o desejo em omiti-lo, mas o

narrador-autor, por considerar que o conhecimento de tal desabafo é necessário à

compreensão do leitor, o expõe. Parte deste discurso narra as expectativas criadas

acerca do dia 25 de abril em Portugal.

Quando os militares tomaram o poder em Portugal e se tornou evidente que Angola, como as outras colônias, seria independente mais depressa do que muitos imaginavam, pensei que eu e os meus filhos, finalmente, poderíamos contribuir para construção do nosso próprio país, corrigindo o que estava mal e transformando-o, com certeza, numa autêntica potência em África! Mas o que aconteceu a seguir dói-me tanto, ainda hoje, que não gosto sequer de me lembrar disso [...]90

O discurso da personagem representa a indignação dos civis que ajudaram a

defender e planejar o progresso do país, mas que, com a libertação do país, foram

surpreendidos com toda sorte de hostilidades, tiveram seus sonhos e seus bens

extorquidos, foram expulsos de sua terra, viviam o horror de terem sua vida em risco

a todo instante.

António e sua família foram, de certa forma, condenados a expatriação. O

país que o recebera foi Portugal. Achava-se que os brancos, por serem

descendentes portugueses, deveriam voltar para essa terra, que não era sua pátria

e que nem sequer conheciam. Os angolanos eram recebidos em Portugal com

hostilidade, pois eram brancos, mas não eram portugueses. E, sendo angolanos,

eles também não se sentiam à vontade em Portugal, pois guardavam rancor em

relação à terra do colonizador. Referindo-se a Portugal, o pai de António exclama:

“Maldito país! Nem eu nem sua mãe o aguentou muito tempo!...”91

Segundo o pai de António, eles eram “a face visível imediata do colonialismo

e da exploração de que eles eram vítimas [...]”. Ele busca argumentos como

justificativa para a negação da nacionalidade angolana aos brancos, como se pode

observar no trecho: “O colonialismo fez muito mal aos pretos. Eu próprio, como já

disse, assisti a coisas terríveis [...] É natural, portanto, que eles agora não aceitem

que os brancos também queiram ou possam ser angolanos”.92

90

MELO, 2008, p.109. 91

Id.Ibidem. 92

Id.Ibidem, p.109.

46

Depois de Portugal, António e sua a família vieram morar no Brasil. Este país

representava para António e sua família uma Angola que não os discriminava. O

Brasil era mais distante da África, mas a presença de Angola era mais viva no Brasil

do que em Portugal, segundo narra António. Mas a personagem afirma sentir um

insistente desejo de retornar a Angola, mesmo contra vontade de seu pai.

Os argumentos utilizados para que António não voltasse a sua terra natal são

resumidos por seu pai na ideia de não haver lugar para o filho em Angola, assim

como não havia lugar para a filha na terra do colonizador. Antes da independência

sofriam com as expressões pejorativas que lhes eram atribuídas por não serem

portugueses e, após a independência, continuavam a sofrer insultos por não serem

negros.

Nós angolanos que amamos nossa terra (tenhamos ou não pegado em armas para lutar por ela), temos que nos contentar em ser cidadãos subalternos, do mesmo modo que, durante o período colonial, os outros nos consideravam “brancos de segunda”? Estás preparado para ser “um cidadão de segunda em seu próprio país”?93

Segundo o pai de António, a situação em Angola mudou, mas para pior, o

país tem sido devastado pelas guerras, pela corrupção, pela miséria. Os discursos

pós-independência projetavam nos civis sonhos de liberdade, de progresso, de

melhoria da qualidade de vida de seus habitantes, mas parte dos angolanos que

passaram a ocupar o poder preferiram investir dinheiro e tempo em guerras contra

sua população. Esta afirmação pode ser confirmada em “Toda gente me diz que

Angola está muito mudada, para pior, a guerra nunca mais termina, a corrupção está

espalhada por todo lado”.94

A personagem-autor, ao abrir uma intersecção para falar sobre as

contradições existentes em Angola, mostra ser consciente de que a ideologia que

instiga esse ódio contra os brancos não se trata apenas de uma questão de

vingança, mas de uma legitimação de poder. Segundo ele, as contradições raciais

sempre existiram, mas, tratando-se de Angola, a situação é bem mais complexa,

pois, ao invés de haver um trabalho por parte das autoridades para harmonizar as

contradições, são instigadas a odiarem-se dia a dia, diferente das civilizações que

93

MELO, 2008, p.110. 94

Id.Ibidem, p. 109.

47

aprenderam a conviver com elas e a harmonizá-las, entendendo que desse convívio

nasce uma troca produtiva.

O drama é quando essas contradições, ao invés de harmonizadas, são utilizadas por uns para dominar os outros, esquecendo-se que o grande factor que tem promovido a transformação e o desenvolvimento da humanidade, desde os primórdios, são as trocas e complementaridades e não a exclusão95.

O pensamento da personagem entra em acordo com a observação realizada

por Canclini96 acerca da troca fecunda entre culturas. Segundo o autor, “os poucos

fragmentos escritos de uma história das hibridações puseram em evidência a

produtividade e o poder inovador de muitas misturas interculturais”.

A pretensão que subjaz aos discursos de supremacia cultural seria a

legitimação do poder não mais apenas como troféu que simboliza a derrota do

colonizador, mas, também, como exercício desse poder para dominar e explorar a

própria população.

O argumento apresentado no discurso que legitima esse poder baseia-se em

eventos históricos que são tornados em elementos incontestáveis. Esse poder é

legitimado pela raça, etnia e tradição, não pelas benfeitorias realizadas em favor da

população. O progresso se tornou bem privativo apenas para uma parcela da

população, enquanto a maioria continua à margem desse progresso. O discurso do

pai de António encontra base nesta reflexão: “A colocação de uma data de

indivíduos mal preparados e incompetentes em lugares de responsabilidade, apenas

por serem pretos? Aliás, isso é que destruiu nossa terra [...]”97

O conto mostra que a reterritorialização angolana constitui um imenso

paradoxo. A devolução do território para as mãos dos angolanos deixou muitos

deles desabrigados. A nação una em seu discurso oficial encontra-se por demais

dividida em seu social, pela discriminação e miséria.

95

Id.Ibidem, p.108. 96

CANCLINI, 2008, p.XXI. 97

MELO, 2008, p. 110.

48

2 DA PERIFERIA À ELITE DAS IDENTIDADES ANGOLANAS PÓS-COLONIAIS

Saberíamos muito mais das complexidades da vida

se aplicássemos a estudar com afinco as suas contradições

em vez de perdermos tanto tempo com as identidades

e coerências.

José Saramago

O processo de agenciamento da identidade nacional angolana desperdiça

esforços no ato de concentrar suas forças para inventar uma identidade nacional em

que o enfoque é dado à reconstrução do passado, através da utopia de uma

purificação que exterminaria todo resquício de um processo de colonização que tem

suas consequências estampadas na cor, nas vestes, na miséria de todos os

viventes, sobreviventes ou por que não chamá-los superviventes.

Os pré-requisitos fundamentados no passado que são utilizados por Dupret

em seu processo de seleção estabelece quem ocupará posição privilegiada e os que

não ocuparão nenhuma posição social. Tais esforços que deveriam ser

empreendidos na reconstrução de um país melhor como pregavam os ideais de

libertação que, além de desperdiçados em utopias, são mal direcionados, utilizados

por alguns para legitimar um poder que promove a desigualdade e a corrupção e

que também faz uso dessa estratégia para mobilizar a população em relação a tais

ideais de agenciamento, obscurecendo a visão popular em relação ao desempenho

de uma política administrativa construída a bel prazer.

A libertação de Angola prometia uma concentração de forças para transformar

e fazer progredir o país. O colonialismo representava o entrave a esse progresso.

Livres dele, os projetos deveriam ser concretizados. Então o que justifica uma

distribuição de renda tão desigual, se os projetos que embalavam os ideais de

liberdade eram comunistas?

Melo, através das representações presentes nos contos Tio me dá só cem, O

feto, O elevador e O cortejo revela a discrepância existente entre as condições de

49

vida da nova elite angolana e da população que habita às margens dessa sociedade

que proclama o progresso de um país em fase de reconstrução.

2.1 As identidades dos deslocados

A preocupação com a memória traz consigo o esquecimento. Esquecimento

de uma considerável parcela da sociedade que não se enquadra nos padrões de

identidade que regem a existência dos que tomam parte no discurso oficial da

nação. E, como não existe oficialmente, essa parcela não é lembrada nos discursos

representativos e tampouco pelos dirigentes do país.

No conto Efeito estufa98, por ironia, Charles é transportado ao musseque de

Mutamba. Lá, ele desfila indiferente sobre os contentores de lixo, como se sua

superioridade, suas ideologias acerca da identidade não enxergassem toda aquela

miséria. Conforme menciona o narrador, Dupret representa uma gama de artistas

que acreditam terem achado a fórmula para a constituição de uma identidade

nacional puramente angolana.

Os protagonistas das narrativas analisadas na primeira parte desse capítulo

habita nos musseques, esse lugar invisível aos olhos de Dupret e de todo segmento

que ele representa, abriga a grande massa dos deslocados. Pessoas que foram

expulsas de suas terras no interior do país, por causa das guerras étnico-raciais.

Refugiaram-se na capital e continuaram sendo vítimas da violência, do descaso. O

habitat dos deslocados contrasta com as construções monumentais que exaltam o

novo país livre, tradicional e ao mesmo tempo moderno.

A mesma literatura que em outrora excluiu essa parcela da população, hoje

empresta voz aos esquecidos. Tratando-se do corpus de análise, é possível inferir

que este toma parte em uma literatura angolana que prossegue, exercendo o papel

de denúncia.

Os contos propõem um novo olhar sobre as representações das identidades

angolanas, indo de encontro aos ideais literários que exerciam uma militância

diferente, que se preocupavam com a construção de uma identidade nacional,

baseados na concepção contraditória de uma nova pátria liberta, promissora e, ao

98

MELO, 2008, p. 71.

50

mesmo tempo, ancorada no passado. Uma pátria mãe que esquece seus filhos ou

que os abandona por falta de condições, por preconceito, por negligência, uma

pátria que não se reconhece prostituta, mãe de filhos bastardos, nascidos da mistura

da genética de distintos pais. Mãe de filhos pardos, brancos, mulatos e

acinzentados.

Os contos ironizam essa visão de pátria que constrói seu discurso histórico

solene, esquecendo-se de que as sociedades estão repletas de contradições, e

insistem em escrever um discurso unificador, linear.

As narrativas presentes no livro Filhos da Pátria proferem um discurso que

traz à existência, através de suas representações, as vozes desses seres que

habitam lugares indesejados os quais não é conveniente citar em um discurso que

busca enaltecer a nação. Nessas narrativas, as personagens que habitam as

margens do discurso oficial de nação ganham voz/vozes e entoam um coro

desconcertado.

Tal polifonia é introduzida no livro pela voz de um narrador onisciente, que ora

coloca-se como narrador-personagem, ora como narrador autor. Tal narrador leva o

leitor a adentrar nas sensações físicas e psicológicas que envolvem os seres

marginais. Esse narrador ora exprime sua consciência crítica, ora se afasta da

narrativa e deixa à respondabilidade do leitor as conclusões finais. Intencionar um

leitor ativo é uma das características da contística de João Melo. Ativo para entender

as metáforas representadas no surgimento de cada personagem caricato,

representando as identidades dos que compõem a nação Angola ou dos que têm

sua vida regida pelas imagens fundamentadas na situação colonial. Personagens

como a jovem prostituta que é julgada por ter cometido um aborto ou um garoto que

escapou dos conflitos étnicos no interior do país, tornou-se assaltante e,

posteriormente, assassino, são partes integrantes das representações identitárias

que compõem essas narrativas.

O conto O feto e o conto Tio me dá só cem abordam histórias semelhantes,

ambos narram situações vivenciadas por adolescentes que são interpelados por

terem cometido um crime, o garoto – o assassinato de um estrangeiro - e a garota -

um aborto. Esses jovens migraram do interior do país para capital, conforme eles

mesmos afirmam dizendo que vieram do mato não por vontade própria, mas porque

tiveram sua família dizimada de maneira cruel. Mal sabiam eles que a série de

51

crueldades continuaria na cidade de Luanda. Lá, passariam a vivenciar uma série de

circunstâncias adversas que os levariam à criminalidade.

Não se sabe se a expressão “por força das circunstâncias” seria o melhor

termo para nomear a causa dos crimes. Essa expressão deixa os verdadeiros

culpados sem rosto, sem nome e, consequentemente, impunes.

A situação vivenciada pela menina-moça, protagonista-narradora do conto O

feto, molestada pela primeira vez por um italiano que estava em Luanda a serviço de

uma organização que auxiliava crianças abandonadas, mostra que essas pessoas

são maltratadas justamente pelos que deveriam protegê-las.

A parcela marginalizada da população angolana esperava que, com a

declaração da independência, fossem libertos da opressão, da exploração, do

anonimato, afinal, à vista de todos, o opressor era o colonizador. Dessa forma, a

independência marcaria o fim de toda opressão. Mas isso não aconteceu. Aqueles

que, em outrora, lutavam pelo fim da colonização, agora são os atuais opressores.

Esses compõem a nova administração do país e dão sequência à violência, à

exploração, à corrupção.

Assim como o protagonista do conto Tio me dá só cem, a garota buscava na

cidade de Luanda proteção, mas acabou sendo vítima da miséria, da exploração

sexual e tornou-se personagem antagonista em uma narrativa em que o

protagonista era o feto que ela havia abortado. Nota-se que a ênfase da situação

narrada era posta no feto, todos os que a interpelavam estavam preocupados com a

gravidez interrompida, isso ofuscava a verdadeira polêmica da situação, as

condições de vida daquela criança conforme se observa em: “[...] agora aquele feto

está aí no lixo a ser filmado pela televisão, meu feto vai ser famoso, será que vão

me dá algum por isso.”99

Os policiais e os jornalistas interrogavam-na acerca do aborto e se mostravam

chocados com situação. A garota admirada com a polêmica criada em torno do

aborto, pronuncia-se:

[...] o que é que a rádio e a televisão estão fazendo aqui se a morte de um feto não é notícia, sobretuto tratando-se de um feto angolano, pois como está a vida em Angola é melhor morrer dentro da placenta

99

MELO, 2008, p. 154.

52

do que sobreviver e sofrer como eu e minha mãe estamos sofrendo [...]100

O cenário em que se encontrava o feto era o lixo cercado por ratos e baratas,

o mesmo cenário em que se encontrava o menino do conto Tio me dá só cem. O

garoto não havia sido abortado, mas ocupava o mesmo lugar que o feto, os

contentores de lixo. Todos os dias, estava lá a disputar com os ratos, as baratas por

restos de comida.

Os criminosos apresentados nos contos eram apenas crianças que, ao narrar

sua saga na cidade grande, perdiam-se em seus próprios pensamentos, alternando

em seus argumentos a miséria presente e as lembranças do passado, deixando

evidente o desejo de retornar a ele, mesmo que este não lhes trouxessem boas

lembranças. Esta ideia está presente em: “Quero sentar no teu colo e adormecer

como antigamente quando estávamos no mato antes da guerra chegar, quero

sossego e tranquilidade, quero regressar de novo para o interior de tua placenta,

mãe”.101

“Deslocados” foi uma expressão que se encaixou muito bem para designar

essas pessoas que ocupam um espaço que não lhe pertence, um lugar onde não

são bem vindos. Esses deslocados são os filhos indesejados dessa pátria mãe.

Antes os tivesse abortado quando ainda estavam no ventre, a oferecer tal condição

de vida. Assim como o fez a prostituta do conto.

Entre um dos argumentos apresentados pela menina para justificar o crime é

que tal feto não tem tamanha importância, pois não se sabe de quem é filho, se é de

pai negro, branco ou pardo. Não sendo certa a sua angolanidade, melhor que lhe

seja tirada a vida. Seria ele apenas mais um na massa dos deslocados como se

percebe no registro: “Além disso quem é mesmo o pai dele, não sei, eu sou puta,

fodo com todo mundo, brancos pretos, mulatos, filipinos também [...]”102

Chama-se massa o conjunto das camadas populares observadas na sua

totalidade, ou seja, a individualidade desses populares não interessava aos

expectadores do caso do aborto. O que da garota tinha a declarar não era relevante

para os que acompanhavam o caso, não tinham interesse por suas lembranças,

100

Id.Ibidem. 101

MELO, 2008, p.155. 102

Id. ibidem, p. 147

53

suas sensações e suas emoções, bastava que ela sentisse apenas um sentimento

de resignação e ocupasse seu lugar de componente anônimo nessa massa.

[...] o que estamos a dizer aqui está sendo ouvido na rádio, a minha voz está sendo ouvida na rádio, ah, então quer dizer que posso aproveitar e desabafar tudo aquilo que ensombra o meu coração, dizer embora algumas verdades, ah não, então o que vieram fazer aqui.103

Nos contos, as personagens são narradoras. As falas dessas personagens

dão ao leitor acesso à sua individualidade, à sua confusão de pensamentos que gira

em torno da contradição entre serem autores de um crime ou vítimas da violência.

Através dessas falas, tem-se acesso a uma realidade escondida na penumbra do

discurso homogeneizador.

A representação das situações vivenciadas pelos adolescentes pode ser

associada ao que Bhabha nomeia “tensão entre o discurso pedagógico e o discurso

performativo”, já mencionadas no capítulo anterior. Entendendo que o discurso

pedagógico representa e participa da formação das identidades homogêneas, infere-

se que dele nasça a aceitação ou recusa da sociedade em relação a determindadas

ações. É por meio de tal discurso que as pessoas são pedagogizadas acerca de seu

comportamento, de como devem proceder no seu cotidiano, independente das suas

condições de sobrevivência.

Talvez seja por isso que os crimes cometidos pelas personagens sejam

motivo de polêmica para a imprensa representada e, quem sabe, para alguns

leitores dos contos. As identidades são regidas por regras comuns a todos, a

população deve cumpri-las mesmo que os discursos que as fundamentam se

mostrem descontextualizados à condição de vida de quem as segue. São discursos

comuns, passíveis de interpretações mais flexíveis apenas quando justificam a ação

da minoria que os profere.

Os meninos são responsáveis por um crime, mas ninguém se mostra

responsável por eles. Tal situação remete a um conhecido texto de um escritor

português, chamado Padre Antônio Vieira, o Semão do bom ladrão104.

103

Id. ibidem, p.154. 104

VIEIRA, Antônio. Sermão do bom ladrão In.: Sermões Escolhidos. (Org. José Verdasca). São

Paulo: Martin Claret, 2003.

54

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre por andar em tão mau ofício, porém, ele, que não era medroso, nem lerdo, respondeu assim: _ Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? _ Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres.

No texto acima, Vieira observa a questão da desigualdade no tratamento dos

valores morais estabelecidos nos discursos oficiais. Os contos representam a

realidade de que ninguém é apontado como culpado por ter lançado no lixo a vida

dessas crianças, mas elas são interpeladas pelo crime de assassinato. O ato de

abortar é reconhecido como crime, abandono em massa de incapaz, não.

As ações, porque não chamar reações, realizadas pelos menores, por mais

ilícitas que possam parecer ao leitor, mostram o desconhecimento deles acerca dos

limites entre o legal e o ilegal, o moral e o amoral, Em seu cotididiano, vivem em um

universo em que não se faz presente tais valores em relação à vida, principalmente

no que se refere à vida deles, tratam-se de crianças entregues a própria sorte. Não

mantiveram um relacionamento próximo com as instituições que disseminam esses

discursos morais, escola, igreja [...] a não ser pela presença dessas no momento

das interpelações acerca do aborto, no caso da menina. O garoto comenta uma

passagem pela escola e por um instituição religiosa, mas demonstra, através de

suas falas, que tais passagens foram breves e pouco significativas.

[...] eu então sei contar tio, também andei na escola, cheguei até na quarta, a, bê, CE, dê, um, dois, três, quatro, num é assim tio, é sim senhor, não ri, foi o meu professor é quem me disse, lá no mato adonde eu estava antes de vir aqui em Luanda como deslocado, uns dizem é deslocado, nós lá no mato na nossa escola mesmo nunca é que não vimos essa palavra ... eu não andei só na escola, tio, também sei caminhar sobre as águas como Cristo, o padre é que falou [...]105

Algumas situações descritas na fala do garoto do conto Tio me dá só cem

revelam a dificuldade em expressar-se, pois estava com fome, fraco, sua voz já não

era ouvida, já não despertava mais a atenção do homem a quem pedia dinheiro,

mesmo quando impunhou a arma. O homem manteve a indeferença e continuou a

105

MELO, 2008, p.27

55

não ceder ao assalto, apresentando uma reação semelhante à representada pelas

intituições sociais, padres, policiais, mídia, represetantes de ONG’s, no conto O feto,

pois estes se mantinham ao redor da prostituta, mas não demonstravam disposição

em ouvi-la. Estavam ali não para entender a situação, mas para julgá-la como ilícita.

Pode-se observar o fito em: “[...] falei assim a minha voz quase não se ouvia, tio, mi

dá só cem, a mão estava firme na Kilunga mas a voz era um pequeno fio, os olhos

parados, mortiços, como se fora um bicho, eu sou um bicho, tio, um bicho

desgraçado”106

Alguns momentos da narrativa revelam certa animalização das personagens,

representada por meio de sua impossibilidade de expressão perante a sociedade e

dos instintos de sobrevivência que se sobressaem em algumas ações narradas por

elas. O garoto disputa todos os dias restos de alimentos com cães, gatos e ratos,

dentro dos contentores de lixo. As condições de vida oferecidas a ele animalizam o

menino, mas, em alguns momentos, fazem com que ele tenha uma atitude racional.

Por alguns instantes, para e reflete sobre o lugar que ocupa em um mundo, para ele,

tão hostil.

Assim como a narradora do conto O feto, a personagem do conto Tio me dá

só cem narra sua saga com falas ininterruptas, em um texto composto por um único

período, organizado apenas pelo uso das vírgulas que intercalam uma sequência

desordenada de fatos que ora estão no presente do seu diálogo com o senhor a

quem chama de tio, ora se apresentam em um passado próximo a esse tempo.

Quando narra o fato do assassinato cometido, ora remonta um passado mais

longíquo, sua infância em Chipeta, a lembrança de seus familiares, da situação de

miséria em que se encontravam e, sobretudo, o assassinato de sua mãe que

ocorreu de maneira cruel.

Essa confusão narrativa reflete a confusão de sensações vivenciadas pela

personagem e pode ser associada ao fato de os instintos, intensificados pela fome,

pois havia dois dias não comia, disputarem lugar com seus sentimentos, uma vez

que as lembranças e toda dor provocada por elas apareciam intercaladas à

descrição de sua luta diária nos contentores de lixo e sua jornada de assaltos aos

muatas que iam até o terreno baldio, próximo ao contentores, à procura de

prostitutas.

106

Id. Ibidem, p.29

56

[...] fiquei outra vez sem nada, sem pai, sem mãe, sem irmão, não sei se sou deslocado ou refugiado ou outra coisa qualquer, não sei se amanhã vou acordar, se hoje terei de matar outra vez, se a televisão vai aparecer, se os moços verdes virão, se a carrinha da sopa vai passar, é de mais, tio, eu não aguento, mi dá só cem tio, estou com bué de fome, não diz que não, minha garina foi embora, a minha fome é do tamanho da minha dor, eu tenho muita vontade de chorar, mas aida tenho um kilunza na mão [...]107”

As personagens dos contos analisados recebem por parte da sociedade um

tratamento hostil e encontram na hostilidade uma forma de reação. Têm suas ações

movidas tanto pela necessidade de sobrevivência como pelo desejo de revide a todo

o mal que lhe causam diariamente. Elas encontram na eliminação do que lhe serve

como referência daqueles que os negligenciam ou até mesmo os oprimiram a

satisfação resultante do sentimento de vingança. Apesar de serem ainda crianças,

elas já têm ciência de que são vítimas da violência. Essa consciência é observada

na fala do garoto: “Não gosto de fazer mal a ninguém, então porquê todos me fazem

mal, um dia ainda vou descobrir, tio, juro mesmo, ainda vou descobrir porquê o

mundo me faz mal108

A menina descreve tudo que desejaria fazer para arruinar a vida dos homens

que a exploravam todos os dias. Sua falta de perspectiva em relação à melhoria da

qualidade de vida a faz afirmar que seu desejo de vingança sequer pode ser

reconhecido como um sonho, pois os sonhos são metas a serem alcançadas e ela já

não estabelece mais meta alguma para sua vida, seus desejos não passam de

delírios sem nenhuma possibilidade de vir a se tornar realidade. A menina entende

que a esses homens é dado o poder para arruinar sua vida, mas a sua vida é algo

insignificante para eles. Veja-se a fala dela sobre esta observação: “[...] desde que

abandonei a minha casa no mato nunca mais pude ter sonhos, por isso jamais me

vinguei dos homens que me fizeram sofrer, a não ser ontem, quando joguei esse

feto no lixo [...]109

Livrar-se do feto foi a solução encontrada por ela. O feto estava nela e,

portanto, ela poderia determinar sobre a sua vida. O que não entra em reflexão é

que o feto procedia dos homens que a maltratavam, mas não eram eles. O

sentimento de realização presente no aborto cometido pela garota retoma a

107

MELO, 2008, p. 36 108

MELO, 2008, p.30. 109

Id. Ibidem, p. 152

57

polêmica em torno do desejo de revide presente na política anticolonial, abordada no

capítulo primeiro. A fim de esquecer toda opressão vivida no período colonial, o

agenciamento nacionalista pós-colonial resolveu afastar tudo o que lembrasse seu

opressor, inclusive as pessoas geradas dessa relação, brancos, pardo, mulatos.

Com o menino procedeu da mesma forma. Ao narrar o fato do assassinato,

ele leva o leitor à compreensão de que o faz porque estava com muita fome e

precisava de dinheiro para comprar alimento. A princípio, talvez esse fosse o seu

pensamento. Mas, quando ele é interpelado pela garota sobre o crime, reflete e

entende que havia outros agravantes por trás do crime, quem sabe seriam todas as

mazelas que o acometeram até então e ele encontrou no muata um representante

de todos os seus opressores como mostra o fragmento: “[...] porquê que lhe

mataste, esta pergunta deixou estupefacto, tio, como é que lhe ia explicar que não

era só uma questão de cumbo (dinheiro), pois minha vida é deverasmente mais

complicada do que isso”.110

Os crimes cometidos não podem ser julgados de uma maneira tão simplória,

como uma ação imoral, sem levar em consideração as situações que conduziram a

ele, circunstâncias que são vivenciadas pelos jovens, mas não são geradas por eles.

Os garotos são repreendidos por suas ações não porque podem sofrer

consequências por ocasião delas, mas porque suas ações podem alcançar outros

indivíduos que ocupam outras posições sociais. A personagem Natasha,

protagonista de outro conto que será analisado posteriormente, ao pensar a questão

do adultério praticado pelo marido. Traduz o exposto: “Naturalmente, o adultério sob

várias formas, existe em todas as sociedades, pelo que, inclusive, há quem diga que

não se pode julgá-lo moralmente sem contextualizá-lo, mas tudo isso é fácil de dizer

quando não nos toca na carne [...].”111

A presença da mídia, da polícia, dos padres e, sobretudo, dos brancos das

ONG’s, aborrecia deveras a garota do conto O feto. As propostas apresentadas

como solução para o problema enfrentado pela jovem não diziam respeito à vida de

miséria que a empurrara para prostituição. O debate girava em torno do aborto e

buscava uma solução para estabelecer um planejamento familiar. Ela continuaria

sendo explorada e maltratada como prostituta, apenas não engravidaria e, com isso,

110MELO, 2008, p.32. 111

Id. Ibidem, p. 53.

58

não interromperia a gestação com mais um aborto ou não colocaria no mundo mais

um deslocado.

Esses pulas não mudam mesmo, pensam que continuam a mandar, ajuda, ora, ora, ajuda de quê, querem masé nos impor seus hábitos e costumes, as suas fórmulas, os seus padrões, tunda, tunda, tunda, toda a gente tem direito a deliberar sobre seu próprio corpo, ah é, mas o que significa isso, é preciso educar a população para utilizar métodos de planejamento familiar científicos, porra, falem chinês, a minha decisão de me ver livre do meu feto não tem nada a ver com isso que nem sei o que é, mas simplesmente ao fato de eu ser puta e não poder interromper o meu trabalho para aturar uma criança [...]”112

Lá estão todos a observar e julgar a ação da menina e não as condições que

a levaram a praticar tal crime. Abismaram-se ao ver com quanta indiferença referia-

se ao feto, mas não pararam para entender que ela tem uma vida marcada pela

indiferença, trata-se de uma pessoa anônima, uma menina sem nome.

O discurso pedagógico, reproduzido institucionalmente, seja na família, na

escola, na igreja ou na mídia, escreve a nação de uma forma que converte a

expressão povo em um. Observa-se a opressão marcada por tal discurso inerte,

impessoal, implícito na voz da personagem refletindo a voz dos que a abordavam.

As vozes tomam forma no seu discurso, através dos argumentos apresentados por

ela, observam-se as condenações e interpelações realizadas por aqueles que a

cercam, marcando a presença de um discurso pedagogizador, totalitário, válido para

todos, prostitutas ou não prostitutas, crianças ou adultos, seres marginais ou não,

discurso proferido em uma situação que careceria de uma análise bem particular,

mais contextualizada, mais humana.

Esse povo, que compõe e para quem se compõe esse discurso

pedagogizador, é como imagem estampada em uma tela que atravessa o tempo,

que amarela, mas suas personagens continuam com as mesmas feições, estáticas

em mesma pose. Essas imagens são substituídas no conto pelas pessoas que

pousam e, ao final da pintura, continuam sua vida cotidiana repleta de

transformações, fragmentações e contradições.

Hall113 contesta essa inércia da identidade proposta pelas narrativas

nacionalistas que representam sua população como uma massa inerte. Ele afirma

112

Id. Ibidem, p.154 113

HALL, Stuart. Identidade e diferença. In: SILVA, Tadeu (Org). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópoles: Vozes, 2005. (p.13).

59

que a identidade do sujeito não pode ser representada através de forma fixa e

essencial.

A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.

Para os “vivos” não há espaço nessa estratégia totalizadora utilizada pelos

colonizadores como forma de dominação e adotada por alguns colonizados pós-

independência como forma revide a essa política.

A preocupação com a afirmação de uma identidade nacional unificadora que

exprima a alteridade/superioridade de uma nação em relação à outra nação ofusca o

olhar da nação para o interior dela mesma. Assim como comenta Bhabha,114 “O

problema não é simplesmente pensar a “individualidade” da nação em oposição à

alteridade de outras nações. Estamos diante da nação dividida no interior dela

própria, articulando a heterogeneidade de sua população”.

Os contos são narrados pelos que ocupam as margens. Trata-se da

representação narrada do ângulo diferente dos dois ângulos anteriores, o que

poderíamos chamar de contranarrativa. Na visão de Bhabha,115 “As contranarrativas

da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras [...]

perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais ‘comunidades

imaginadas’ recebem identidades essencialistas”.

Observa-se, nas duas narrativas, a mudança do foco narrativo ou, de certa

forma, uma inversão de foco, se tomado como base o discurso do colonizador em

relação ao colonizado, pois as personagens são de nacionalidade angolana, foram

representadas no discurso generalista eurocentrista. Outrora, elas tomaram parte do

discurso fundamentado pelos ideais de libertação e afirmação de uma identidade

puramente angolana. O fato é que, nem no discurso do colonizador e tampouco no

discurso do colonizado, essas identidades que as personagens representam

ocuparam a posição do eu.

Nas narrativas analisadas, essa mudança no foco narrativo não ocorre entre

colonizadores e colonizados, mas entre nativos angolanos que ocupam situação

114

BHABHA, 1998, p. 209 115

Id. Ibidem. p. 211.

60

social diferente. Eles são narradores de seu cotidiano, em um tempo não

cristalizado. É uma narrativa viva que evidencia que o tempo é efêmero, os fatos e a

identidade também e que, por isso, elas não podem abolir de sua vida as mazelas

deixadas pelo processo colonial ou até mesmo questões relacionadas à tradição

presentes nos conflitos étnico-raciais. Foram expulsas de suas terras. Chegando à

capital, foram exploradas por nativos e estrangeiros e, posteriormente, julgadas por

valores que foram trazidos pelo colonizador.

Essas personagens que se autointitulam deslocados ocupam um espaço

chamado por Bhabha de entre-lugar. O espaço dos que não estão lá (nas teorias

desenvolvidas pelo colonizador acerca dos angolanos) tampouco estão cá (nos

discursos oficiais acerca da identidade angolana).

As vozes narram a performance de eus, que há tempos eram transformados

em nós, e que nos contos são reconhecidos em sua individualidade, nas

particularidades das sensações geradas pelas situações vivenciadas. Essas vozes

ecoam de um lugar que, até pouco tempo, era desconhecido pelas letras que

serviam apenas como instrumento para difusão de um discurso pedagógico

fundamentado na sacralização de uma identidade totalizante.

Bhabha discute acerca das tensões entre priorizar a significação do povo

como presença histórica, o que seria um discurso padagogizador ou construir esse

povo na performance narrativa, considerando seu presente enunciativo.

Quando o pensamento acerca de povo apresenta-se de forma homogênea,

muitos não emprestam voz a essa narrativa, apenas uma minoria a compõe. O que

faz com muitas pessoas, sob pena de sofrerem exclusão ou por desconhecimento

de sua verdadeira condição, sejam pedagogizadas por ela. Há também aqueles que

a desconhecem ou não têm acesso a condições para adaptar-se a ela, a esses não

resta outra opção a não ser a exclusão da participação como membro dessa grande

família chamada nação.

O garoto do conto Tio me dá só cem narra sua história para um interlocutor

que, assim como as pessoas que cercavam a menina em O feto, não ocupa o lugar

de locutor diretamente, mas tem suas ações e interpelações expressas na voz do

narrador. Tal interlocutor, chamado pelo garoto de tio, seria alguém que estaria

sendo assaltado pelo menino e, apesar de o garoto deixar bem claro que traz

consigo uma arma, o homem debocha de cada fato narrado.

61

As vozes representadas nos contos ecoam de um lugar desconhecido. Um

lugar que emerge em um universo que até então estava dividido em Preto e Branco.

Lá estão as personagens que não possuem sua vida marcada pela cor. Durante a

narrativa, não há nenhuma menção de sua cor, mas de sua miséria. São crianças

angolanas que não encontram espaço em seu país. Elas representam as

circunstâncias por que passa a população que independe do discurso de

agenciamento da identidade pautado no ideal de pureza e unificação do colonizador

e do colonizado. O cotidiano das personagens marca uma fratura na linearidade do

tempo das narrativas oficiais da nação. Trata-se de uma rasura no discurso que

compõe essa narrativa.

2.2 A velha face da nova elite angolana

A sociedade angolana aguardava ansiosa pela sua liberdade, pois acreditava

que o evento da independência marcaria sua história com o fim de todo opressão e

exploração do homem pelo homem, ou seja, do homem preto pelo homem branco,

mas essa sociedade acaba sendo surpreendida pela ausência de modificações. Foi

declarado o fim da exploração direta do colonizador sobre o colonizado, mas não do

homem sobre o homem. Essa observação será contextualizada através da análise

do conto O elevador.

O conto apresenta elementos sociais resultantes tanto do processo de

colonização, como de situações geradas/evidenciadas no pós-colinial. O desejo de

livar-se do colonizador expresso na fala da personagem Pedro Sanga, ao lembrar-se

do tempo em que combatia na guerrilha contra o que ele chama status quo colonial

mostra que ele, assim como os que lutavam junto a ele, nutre um profundo

sentimento de aversão ao sistema de governo colonial.

Pedro, personagem protagonista, é um ex-revolucionário (a utilização do

prefixo ex será compreendida logo à frente), que aparenta durante a maior parte da

narrativa manter seus ideais, em um contexto que, segundo o narrador, nos tempos

em que vive, o aproximam do rídiculo.

62

Ao analisar algumas teorias pós-coloniais, Hall alerta para o perigo que tais

interpretações podem gerar socialmente. Por exemplo, Shohat116 critica a visão

universalista do pós-colonial e diz que essa visão é politicamente ambivalente

porque obscurece as distinções nítidas entre colonizadores e colonizados até aqui

associadas ao paradigma do colonialismo, do neocolonialismo e do terceiro

mundismo que pretende suplantar. Segundo a estudiosa, isso elimina a política de

resistência às formas de dominação, pois essa falta de distinção as torna

imperceptíveis.

Hall entende que há ainda algumas diferenças visíveis entre a cultura do

colonizador e a do colonizado, mas atenta para o binarismo que a ênfase nessas

observações pode gerar, ou já provocou quando fundamentaram a mobilização

política anticolonial, se não considerada a dupla inscrição nascida da relação entre

as culturas.

É relevante enfatizar a expressão dupla inscrição porque, segundo Hall, para

muitos críticos o uso do termo pós-colonial é restrito aos países colonizados, e

esquecem que as metrópoles também foram marcadas pelo processo de

colonização e, consequentemente, pelo ‘pós-colonial’.

De fato uma das principais contribuições do termo ‘pós-colonial’ tem sido dirigir nossa atenção para o fato de que a colonização nunca foi algo externo às sociedades das metrópoles imperiais. Sempre esteve profundamente inscritas nelas – da mesma forma que se tornou indelevelmente inscrita nas culturas dos colonizados [...]117

As sociedades colonizadas admitem a inscrição da cultura do colonizador,

mas por ela representar um efeito negativo, esforçam-se para retornar a um conjunto

alternativo de origens culturais não contaminadas pela experiência colonial,

acreditando que tal processo de inscrição pode ser delével.118

Segundo Hall, essa dupla inscrição deveria marcar o fim entre o aqui/lá que

durante tanto tempo alimentaram as histórias do imperialismo e, posteriormente, as

políticas anticoloniais.

A mobilização anticolonial da qual participou a personagem Pedro Sanga e o

companheiro a quem ele dirige sua visita, vê a imagem do colonizador como

presença antagônica a sua. Então para que sua existência seja plena, essa

116

1992 apud Hall, 2003, p. 96. 117

HALL, 2003, p. 102. 118

Id.Ibidem.p.102

63

presença deve ser extinta. A extinção do colonizador e todos os seus resquícios,

representariam a extinção do vilão que assombrava a narrativa dessa nação. Seria

então, o fim de todas as mazelas que assolavam a sociedade angolana.

Em fim, Angola agora seria governada por um autóctone. Esse conhecia as

suas necessidades e tomava parte dela, então, as sanaria. Esse pensamento acerca

da administração de Angola por um autócne traz consigo uma lógica que não foi

suficiente para garantir uma adiministração que visasse o bem comum.

Nem sempre os antagonismos apresentam-se como lutas fundamentadas em

ideologias distintas, mas apenas em lutas pela inversão de posições. A mesma

ideologia que fundamenta o anticolonialismo conduziu a violência cultural do

colonizador sobre o colonizado, quando disseminavam o pensamento de que o

nativo possuía uma cultura pobre e ao mesmo tempo nociva.

Segundo Hall,119 essa ideologia anticolonial que busca uma política bem

definida de oposições, põe em evidência um argumento incoerente com a atual

conjuntura, de que tal política possa “traçar linhas claras na areia” que separem os

bons dos maus.

Esse é um limite bem difícil de estabelecer, primeiro porque é complexo

estabelecer onde residem os bons e os maus. Se os bons são os autóctones e os

maus são os colonizadores, a política deste último já foi suficientemente inscrita na

vida do angolano, a ponto de não deixarem de ser aproveitadas pelos nativos. Afinal

o desejo que moveu a deposição do poder imperialista é o mesmo desejo de agora

ocupa o poder.

Pedro Sanga principia o conto em um elevador, dirigindo-se ao escritório do

seu amigo Funje com Pão, aliás, Pedro faz questão de enfatizar que esse não é

mais a sua alcunha oficial. Soares Manoel João agora atende pela alcunha de

Camarada Excelência. Enquanto o elevador percorre o caminho almejado, Pedro

começa a narrar fatos do passado, sua saga ao lado do companheiro Soares.

Durante essa narrativa, mostra toda a sua indiganação com a condição em que se

encontrava o Camarada Excelência que, como combatente pela libertação de

Angola, tinha outros planos para o seu país.

119

HALL, 2003, p.98.

64

Nessa ‘Angola do futuro’ que o Soares projectava, seria criado “um novo homem”, que teria a missão de edificar o socialismo científico, o regime mais avançado da história da humanidade, onde todos os homens são iguais, nem burgueses, nem proletários, nem brancos, nem mulatos, “e muito menos bailundos”.120

É certo que, para Pedro, os ideiais de igualdade entre as etnias mencionadas

por Soares o pertubavam um pouco, mas agradava-lhe a ideia da igualdade entre as

classes. Pedro afirma não saber se Soares expunha tais ideias acerca das etnias

para espizinhá-lo ou, apenas, por tratar-se daquelas inevitáveis contradições porque

passa todo ser humano. O fato é que Soares parecia um revolucionário.

A personagem dividia o elevador com uma moça, descrita pelo narrador como

“um exemplar autóctone da estética neobarroca”121. O narrador atribui essa

expressão para designar a reunião entre elementos considerados conflituosos em

uma mesma pessoa, por exemplo, o sacro, a cor negra da autócone, e o outro

profano, representados pelas vestes - blusa vermelha transparente, calça colada,

sapatos altos e uma peruca loira.

O narrador, por mais que enfatize que é apenas um descritor, deixa

transparecer sua ciência em relação aos processos de hibridação. Segundo ele, são

essas fricções e contradições que “faz o mundo andar para frente”.122 Por ironia, a

acompanhante de Sanga é uma prostituta que, como ele, vai encontrar o Soares

para cumprir uma negociação ilícita.

A moça é interpelada por Pedro a emitir opinião acerca da sua reflexão sobre

a mudança de pensamento do seu companheiro. A cada vez que julgava as atitudes

de Soares, ele perguntava: “Não concorda comigo? Ela limitou a responder: “– Xê,

eu não sou puta, então!...”123

Esta resposta parecia um pouco descontextualizada, mas, à medida que

Pedro narra seus posicionamentos e eles se aproximam do destino final, a resposta

da moça começa a ganhar significação.

O Camarada Excelência vai tomando forma na voz de Pedro Sanga. A

alcunha Funge com Pão, que lhe foi atribuída no período em que juntos participavam

da guerrilha, deve-se ao fato de Soares apreciar o funge, comida típica angolana,

acompanhado de pão, alimento introduzido no país pelos portugueses. Esse gosto,

120

MELO, 2008, p. 15 121

Id. Ibidem, p.11. 122

MELO, 2008, p.11. 123

Id. ibidem.

65

Segundo Pedro, “é [considerado] uma heresia que os angolanos apenas perdoam

porque, apesar de sua fama de makeiros, não deixam de ser cordatos e gentis”. 124

Soares demonstrava em alguns momentos uma espécie de afronta para com

os companheiros que suportavam com humor as irreverências dele, que se

tornavam cada vez mais frequentes. Não eram apenas as ousadias do passado que

se mostravam contraditórias, sua vida envolvia uma série de situações que

acentuavam as contradições entre o Soares que aparece no presente da narrativa e

o Soares combatente no passado.

Pedro estabele uma relação entre às frequentes ousadias do passado e o fato

de Soares ter se tornado uma figura com atributos tão próximos aos do colonizador,

apresentando o segundo como progressão do primeiro. Segundo ele, “são essas

contradições que aproximam o homem daquilo que eles precisamente mais

odeiam”.125 Não se sabe se o verbo odiar seria o mais adequado, ou poderia ele ser

substituído no contexto pelo verbo almejar.

A alcunha Camarada Excelência lhe foi atribuída logo que se tornou ministro.

Ele passou a ocupar outra posição social e dela fez um lugar oposto ao que antes

ocupara. Sanga passa, na narrativa, a espreitar os pensamentos que levaram

Soares a apropriar-se de teses que “constituem o outro lado da moeda, [como ele]

passa a defender com o mesmo radicalismo teses tão opostas”.126

Sanga não entende como tais mudanças na vida de Soares ocorreram de

forma tão repentina. Soares mal chega a Luanda e já abandona a esposa e começa

a manter um relacionamento com uma mulata. Segundo Pedro, Soares vivia

exclamando que a mulata era uma raça, “um animal doméstico muito perigoso”.

Depois, como ministro, Soares adquiriu uma série de bens.

[...] conseguiu duas casas em Luanda e uma quinta em Viana, além de ter montado uma frota de carros de vários tipos, cores e tamnhos (turismos utilitários e de luxo, jipes, carrinhas, etc.) sem ter gasto um tostão, mas apenas abatendo à carga os veículos do próprio Ministério [...] adquiriu igualmente um apartamento em Lisboa, mais concretamente em Massaná, na freguesia de Queluz.127

124

Id. Ibidem, p14. 125

MELO, 2008, p.16. 126

Id. Ibidem, p.17. 127

Id. Ibidem, p.18.

66

Pedro é constantemente assaltado por lembranças do passado de Soares e

as contrapõe com o presente, o que suscita em um esforço para entender: “Como é

que esse gajo ficou?” 128Ele não entende como é que um combatente pela libertação

de seu país da mão dos opressores se tornaria um opressor em um espaço tão curto

de tempo. A prostituta já entendera e Pedro, ao chegar ao escritório de Soares, logo

seria saciado em sua curiosidade:

O tipo sempre foi o mais radical do nosso grupo, defendia que na Angola do futuro as classes deveriam ser abolidas e a exploração do homem pelo homem, extinta para todo o sempre – como é que se transformou assim num novo-rico tão nojento?129

Soares é um dos representantes dessa nova estrutura política e social que

continua a ocasionar conflitos de exploração e corrupção no interior da nação. Trata-

se de um membro da nova elite angolana, que emerge após a independência, não

mais sob o domínio direto do colonizador, mas sob a política de dominação que

ainda é resquício da política colonial. Nesse contexto, é possível associar esse

poder a um lugar, um trono ideológico, que ainda permanece o mesmo desde a

ocupação portuguesa, o que mudou foi a pessoa que o ocupa. Ao ocupá-lo, essa

pessoa não o possui, pelo contrário, parece possuído pelas ideologias que o

impregnaram.

Os novos ricos, representados na figura dos novos dirigentes do país, dos

novos empresários ou dos que participam dos dois grupos ao mesmo tempo,

adotam a política da corrupção, da exploração. Observa-se, nos contos, uma

Luanda dividida em opostos, não apenas entre o ontem e o agora, como vimos no

capítulo primeiro, mas, também, entre a miséria e o luxo dos que possuem o estilo

de vida das classes acomodadas e abastecidas. Habitantes da mesma Luanda, que

se divide em luxuosos e modernos edifícios e os tensos e violentos musseques.

Conforme Shohat,130 a preocupação com o extermínio da cultura do

colonizador, faz com que a sociedade angolana não se dê conta das transformações

que ocorrem no interior do país, de que os embates “não [ocorrem mais] entre

nações, mas no interior destas, a partir de mudanças constantes entre grupos

dominantes e subalternos”.

128

Id. Ibidem, p.17. 129

Id.ibidem. 130

1992 apud HALL, 2003, p. 99.

67

O poder encontra-se concentrado nas mãos de uma minoria manipulada por

políticas estrangeiras, um grupo de pessoas que governam ao bel prazer,

despreocupados com o bem-estar da população. São pessoas que agem da mesma

forma como agiam seus antigos opressores, pessoas que antes lutavam contra a

política de opressão e que, depois, passou a tomar parte do mesmo corpo, agindo

com corrupção, preocupados em satisfazer a si mesmos.

Tal contexto estabelece uma tensão, não mais entre colonizador e colonizado,

mas entre dois mundos que coexistem de maneira paralela, de um lado/acima a elite

do outro lado/embaixo a população. Esse é o retrato pintado por João Melo da nova

Angola.

O edifício apresentado no conto O elevador não é apenas de uma

composição do cenário como, superficialmente, sugere, mas pode ser observado

como uma das metáforas presentes na narrativa que, com sua altura imponente,

além de demonstrar ostentação, poder, demonstra, também, a posição desse poder

em relação aos que habitam as partes mais baixas, até mesmo lugares onde a vista

panorâmica não consegue alcançar. O escritório do Camarada Excelência, para

onde se dirigiam Pedro e a prostituta, ocupava o cume do edifício.

Do terraço avistava-se inteiramente, como já Funge com Pão tinha dito a Pedro Sanga, a Avenida Marginal, em toda sua majestade, e, à frente, a Ilha de Luanda. Do lado esquerdo, podia divisar-se a Cidade Alta e a Maianga e, continuando a dar a volta, os primeiros edifícios da Sagrada Família e da Avenida dos Combatentes, até a vista alcançar, por fim o morro do Miramar caindo perigosamente sobre o porto.131

Não foi por acaso que a personagem Sanga foi levada até o topo desse

edifício, depois de ter ultrapassado inúmeros andares de elevador. O narrador vai

desvendando aos poucos o motivo da visita de Pedro a Soares. O tempo percorrido

pelo elevador foi suficiente para que a personagem protagonista deixasse pistas

sobre que destino tomaria seus ideais revolucionários.

Pedro narra que depois de exatamente dois dias de sua ida ao escritório do

amigo, havia recebido a visita de Funge com Pão em sua casa. Eles conversaram,

brincaram, relembraram o passado como fazem os velhos amigos quando se

encontram. Segundo o narrador, antes que a embriaguez o fizesse esquecer o real

131

MELO, 2008, p. 26

68

motivo da mudança, Soares se pronuncia, lançando uma proposta para Pedro

Sanga.

Como sabes, a minha empresa participou numa consulta para o fornecimento de equipamentos para o vosso Ministério. Segundo fui informado, o ministro não vai muito com a minha cara, tu tens que fazer tudo para que a malta fique com esse contrato! Como Secretário Geral do Ministério, a tua opinião é fundamental; portanto, peço-te que use a tua influência para ganharmos isso [...] Se quiseres posso dar-te argumentos técnicos, que poderão ser úteis para tu fazeres o teu parecer [...] Quanto à tua parte, não te preocupes: dez por cento são teus!132

Sanga passou grande parte da vida, criticando e a buscando entender o

porquê de pessoas que, como ele, possuíam ideais revolucionários e, com passar

do tempo [na primeira oportunidade], abriam mão de suas teses para aliar-se aos

que ocupavam e honravam o trono deixado pelos regentes portugueses. Talvez a

explicação pudesse ser encontrada no fato de que as políticas de esquerda, se

assim podem ser chamadas, não eram profundamente desejosas em depor os que

estavam no poder por acharem que eles não estavam satisfazendo a necessidade

da população, mas porque almejavam, simplesmente, serem detentoras desse

poder. Shohat133 faz uma observação acerca desse contexto.

Que as três últimas décadas do terceiro mundo [...] produziram um número bastante complexo e politicamente ambíguo de desdobramentos [...] [inclusive] a compreensão de que os condenados da terra não são unanimemente revolucionários [...] e que a despeito dos grandes padrões de hegemonia geopolítica, as relações de poder no Terceiro Mundo são, também, dispersas e contraditórias.

Diante do Camarada Excelência, no terraço, Pedro apresenta a resposta à

sua proposta e, também, a todos os seus questionamentos. O leitor é surpreendido

com a velocidade com que essa resposta ecoa, ainda tímida, da boca de Sanga

quando pregunta “Trinta por cento?”134

Soares, mesmo sabendo muito bem que a corrupção é um processo breve

dependendo da natureza, ou melhor, da quantidade do que é negociado, também se

132

Id. Ibidem, p.23. 133

1992 apud HALL, 2003, p.99 134

MELO, 2008, p. 25

69

admirou da proposta de Pedro. “Caralho! Sanga, ainda há dias me dizias que não

era desses e agora queres trinta por cento!?”135

Fechado o acordo, na presença da prostituta, eles comemoram o início de

uma parceria. Lá estava Pedro, no cume do edifício, apreciando a bela vista. O

narrador onisciente menciona que Pedro exprimia a sensação estranha de já ter

estado ali antes, pois a altura, por exemplo, já lhe parecia algo familiar. Diga-se de

passagem, já parecia bem adaptado, mas ainda havia algo que o incomodava e

provocava nele uma sensação vertiginosa e, agarrando-se a um dos parapeitos do

terraço, vomitou. Devido à altura, seu vômito espalhava-se no ar, imperceptível.

Tudo resolvido. Agora já se sabe o destino dos ideais revolucionários de Pedro,

dissipava-se no ar, nas alturas.

No conto, não há uma preocupação de o narrador descrever a vida de Pedro

quando já haveria que descrever a de Soares Manoel João. Pedro encontrava nele

mesmo a resposta para todas as suas perguntas, principalmente para esta: “até que

ponto iria a capacidade de adaptação do homem?”. Da mesma forma, tinha dúvidas

referentes à significação da palavra adaptação tão explorada pela personagem

durante todo conto em, por exemplo, “E afinal, adaptação o que é?”136 O desfecho

aponta como norte para essa resposta duas outras palavras com que Pedro

embirrava constantemente – acomodação, ajustamento.

A nova elite angolana, assim como a proposta de agenciamento da identidade

nacional no pós-colonial, constitui um paradoxo. Enquanto a personagem Camarada

Excelência abre mão de seus ideais reacionários para se manter no poder, ocupa

este posto pelo fato de fazer parte do grupo de autóctones angolanos.

O ex-guerrilheiro que se torna posteriormente ex-ministro e atual empresário,

mostra uma fonte de enriquecimento através dos esquemas de competências

relacionais, que dá cobertura política a negócios espúrios. O conto O elevador

denuncia pessoas que fizeram uso dos ideais utópicos do agenciamento de uma

nova nação liberta para ocuparem cargos no poder público e faz uso desses para

enriquecerem ilicitamente.

Mata,137, ao analisar a literatura contemporânea, reflexiva e denunciadora,

afirma que ela implode a visão de narrativa fundacional da nação, baseada na

135

Id. ibidem. 136

MELO, 2008, p.9. 137

MATA, 2012, p.7

70

privatização dos fatos históricos para a construção de outra história oficial, produzida

por uma elite que se aproveitou do pensamento utópico para chegar ao poder.

No conto O cortejo, são representadas situações relacionadas a duas famílias

abastadas relativamente jovens que planejavam um grande evento social, o

casamento de seus filhos. São famílias cujos sobrenomes o narrador faz questão de

enfatizar, pois promove a elas ares de fidalguia. São famílias que investem em ritos

tradicionais para ostentarem seu poder, para legitimarem uma falsa aristocracia,

pois, segundo o narrador, eles não fazem parte de nenhuma descendência da

nobreza africana ou ocidental.

O senhor Pedro Ndongala Caposso é um cidadão angolano que se formou

em Economia em Luanda, depois fez mestrado em Bruxelas. Ao retornar a Angola,

assumiu o cargo de diretor financeiro em uma multinacional. Sua esposa D.

Mariquinhas Caposso tem apenas 37 anos. É dona de uma butique de roupas

africanas, viajava constantemente a Bruxelas para adquirir mercadorias para sua

loja.

Júlio Ferreira da Silva, um senhor de apenas 45 anos, tinha sido ministro até

a metade dos anos 90, depois se tornou um próspero homem de negócios. Júlio é

casado com D. Estér, uma moça que, para sanar seus ataques de depressão,

viajava constantemente a Londres e a Paris para renovar seu guarda-roupa. O casal

possuía uma mansão nos Cascais e também casas na África do Sul e nos Estados

Unidos.

Tais famílias têm em comum, além da abastança, o desejo de inscrever para

sempre, através dos ritos tradicionais, seus nomes na História Oficial de Angola e,

com isso, legitimarem seu poder por mais gerações.

[...] este não é apenas mais um casamento. Desde logo, a carruagem que conduziu os noivos até à igreja e que depois os levará para o local da boda – não sem antes tomar parte, em lugar de honra, num cortejo que, de acordo com o desejo expresso dos pais dos nubentes, deverá ficar para sempre nos chamados anais da cidade – é primeiro sinal visível (eu diria mesmo “excessivamente visível”, para não recorrer ao adjectivo obsceno que, do ponto de vista etimológico, significa virtualmente a mesma coisa, mas que não poderá ser entendido como insulto) de que o casamento em questão é diferente da esmagadora maioria dos casamentos realizados na velha Luanda138.

138

MELO, 2008, P.134.

71

Como faz questão de comentar o narrador, o casamento de Leonilde Ferreira

da Silva e Rui Carlos Caposso não seria apenas mais uma cerimônia como as que

ocorrem todos os dias aos milhares, no mundo inteiro, não apenas pelo seu

desfecho inusitado, mas pelo fato de pretender um espetáculo em que a tradição

seria encenada para assegurar aos nubentes sua respectiva família e a geração

vindoura um reconhecimento social de que esse povo que encena a tradição

pertence, também, a um passado que lhe mantém em situação privilegiada na

pirâmide que representa o poder, assegurado pelas origens.

A esperança de remontar um passado glorioso embasou a tese de que

Angola, se governada por uma linhagem de autóctones, teria também um futuro

glorioso. Esse pensamento fez com as pessoas consideradas pertencentes à casta

dos autóctones, que afirmavam descender das etnias fundadoras e que eram

consideradas imunes às transformações proporcionadas pela colonização,

ascendessem socialmente após a proclamação da independência, quando, por

julgarem pertencer a essa tão nobre e pura linhagem de autóctones, ocuparam o

poder político e tiraram proveito dele para adquirir um saliente patrimônio financeiro.

A encenação da tradição, segundo Canclini, 139 serve para legitimar a posse

tão almejada por aqueles que a construíram, assim como, também, para os que se

apropriaram dela. Estes veem a necessidade de colocar em ceá-la em cena para

que seja lembrada não a propriedade, mas deixar o poder do proprietário.

O desejo de perpetuar-se no poder move o desejo de realizar um casamento

que deixe à mostra que os nubentes são pessoas que têm tradição. Para um país

que pautou a constituição de sua identidade nacional na reconstituição de suas

raízes, a cerimônia pretendida seria uma encenação de uma representação

simbólica muito significativa e legitimadora.

Ao comentar acerca da encenação do passado por meio das representações

que encenam as origens da nação em espetáculos promovidos pela população,

Canclini desperta para a reflexão de que, neste momento, a população participa de

um palco em que os grupos hegemônicos fazem com que a sociedade apresente

para si mesma o espetáculo da origem, sem a consciência de que tal espetáculo

serve para manutenção dessa hegemonia.

139

CANCLINI, 2003, p.161-162.

72

A teatralização do patrimônio é o esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora em relação à qual deveríamos atuar hoje. Essa é base das políticas culturais autoritárias. O mundo é um palco, mas o que deve ser representado já está prescrito. 140

No caso das famílias apresentadas no conto O cortejo, os próprios membros

da família participam como atores desse espetáculo que tem como ator/espectador

um país em fase de agenciamento de sua identidade nacional em que tradição é

sinônimo de poder.

A carruagem foi o veículo escolhido para levar os noivos à Igreja da Sagrada

Família. Esta é um dos exemplos de símbolo da ostentação da tradição, uma

espécie de retorno que fundamenta uma visão aristocrática acerca dos nubentes.

Um veículo que contrasta com a visão da moderna Luanda, uma cidade onde

transitam carros dos mais variados modelos e utilidades, de posse de elites tão

exibicionistas como as famílias representadas no conto. Sobre isto, o narrador

comenta:

Luanda é uma das cidades do mundo que, relativamente (em função do total de população existente), importa mais carros durante o ano, de todas as marcas, modelos, cores e estados de conservação, coexistindo nessa matéria (como em outras) com um luxo quase asiático, mas provinciano, e a mais deprimente degradação.141

No cotidiano, os veículos puxados à tração animal são utilizados pela parcela

da população que não possui condições de ter um carro, mas em ocasiões

especiais, como o cortejo dos jovens e ricos nubentes, as carruagens são exibidas

como símbolo de um espetáculo da tradição.

Coexistem nesse contexto social: o moderno, uma tradição que se diz

autóctone traspassada pela hibridação e a miséria resultante desse olhar nivelado

por cima, que só enxerga ou pelo menos finge enxergar os dois primeiros elementos

citados que constituem essa sociedade. Essa coexistência é visualizada através da

descrição do cenário e realizada pelo narrador.

Tais comentários acerca do cenário fazem-se relevante à compreensão da

narrativa, pois, conforme afirma Macedo,142 a correlação personagens ou narrador e

140

Id. Ibidem. 141

MELO, 2008, p.135. 142

MACÊDO, Tânia. Luanda, cidade e literatura. São Paulo: Editora Unesp; Luanda (Angola): Nzila, 2008. p.30-31.

73

espaço pode situar o leitor adequadamente em termos ideológicos, posto que ao

analisar as cidades literárias e a geografia de seus textos, ele é iluminado por outras

forças que não são especificamente literárias.

Ao descrever a elegância do majestoso edifício onde o Camarada Excelência

ocupava o apartamento de cobertura, as aquisições realizadas pelas famílias

abastadas, os carros de luxo que circulam pela cidade e a divisão dessa em ruas

nobres e violentos e miseráveis musseques, o narrador revela uma cidade marcada

pela indiferença dos cidadãos que ocupam o poder político-econômico para com

uma considerável parcela da população angolana.

O narrador, ao descrever a situação financeira das duas famílias, supõe

manter a frieza, ser neutro em seu discurso, realizar um relato meramente descritivo,

sem qualquer juízo de valor. Ele faz uso do diálogo entre os dois cavalos que são

utilizados para conduzirem o cortejo no intuito de expressar sua indignação diante

da situação em que vivia as duas famílias abastadas. O testemunho do que foi dito

pode ser verificado em: “[...] Os dois cavalos achavam que o estilo de vida dessas

duas famílias de novos ricos angolanos era profundamente ignóbil e, dispensavam-

lhe, no íntimo, um desprezo absoluto e definitivo”143.

Os cavalos chegaram a tal conclusão após observarem as crianças que

brincavam junto à carruagem, ao refletirem a situação em que se encontravam

essas crianças, chegaram à conclusão de como seria o futuro de Angola caso não

houvesse modificações desse quadro de miséria.

[...] as crianças eram aquelas que mais faziam os dois animais sentir um dolorido aperto no coração. Isso nada teria de extraordinário [...] não fora o facto de serem aquelas crianças especias: sujas, rotas e descalças, umas com as suas caixas de graxa às costas ou mil e um artigos nas mãos, que tentavam a todo custo vender a quem passava, outras simplesmente de mãos vazias, eram, vamos dizê-lo, a imagem nítida do futuro de Angola, caso os homens não se decidam a dar-lhes a mão.144

A comoção com o presente daquelas crianças e a preocupação com o futuro

do país, por ironia, partem de dois animais, enquanto a nova elite que ocupa o poder

local vive uma realidade totalmente paralela a essa preocupação. Uma realidade

143

MELO, 2008, p.141. 144

Id. Ibidem, p.138.

74

impulsionada pelo consumismo e corrupção desenfreados e um teatro ostentado

pelos ritos tradicionais que legitimam uma fajuta aristocracia.

De facto, a família Caposso e a família Ferreira da Silva eram apenas dois exemplos de uma casta (palavra que, eu sei, tem ressonâncias altamente desagradáveis, mas que os dois animais são forçados a usar, para descrever corretamente o fenômeno) que se começou a formar em Angola a partir de meados dos anos 80, primeiro discretamente, mas logo à escâncaras, de indivíduos que, misteriosamente, ostentavam um nível de vida que contrasta, de modo flagrante, com o da esmagadora maioria da população. 145

O narrador descreve a formação de uma nova geração que passa a ocupar o

poder em Angola, como uma miraculosa mutação, espécimes que foram tornando-

se crescentemente exibicionistas e arrogantes. Uma geração que se comporta “[...]

muito pior do que os velhos dirigentes [...] Aqueles saídos das matas, eufóricos,

arrogantes, assustados e, sobretudo, despreparados”.146

Os nubentes representados no conto são jovens que haviam terminado o

curso superior nos Estados Unidos: ele geologia e petróleos e ela administração de

empresas. Representam os jovens filhos dos primeiros angolanos a ocuparem

lugares privilegiados pós-independência e que foram encaminhados pelos pais para

receberem formação universitária no exterior e, apesar de suporem mais

esclarecidos, dão sequência de maneira ainda mais alienada e intensa

discriminação e miséria. Segundo o narrador, “Estes eram educados, treinados e

capacitados que, contudo, se foram transformando numa elite política, econômica e

social mais discriminatória e insensível que a anterior”147

A miséria e a exploração sofridas pela população durante o período colonial

teve sequência na governança dos velhos dirigentes e intensificação nas mãos da

nova elite angolana. O que poderia significar o encerramento de um período de

descontentamento passou a ser a manutenção desse período. O que houve foi

apenas a substituição da mão que defraudava os bens e castigava a população.

Pepeleta148 comenta acerca da frustração dos ideais relacionados à melhoria da

qualidade de vida da população angolana no período pós-independência.

145

MELO, 2008, p. 141. 146

Id. Ibidem. 147

Id. Ibidem, p.142. 148

2002, apud MATA, 2012, p.8.

75

[…] continuo a defender que a luta pela independência era para criar uma sociedade mais justa e não para substituir uma elite (colonial) por outra. E aconteceu que uma classe dominante substituiu a outra classe dominante. O capitalismo selvagem que temos em Angola não leva a lado nenhum, tal como dantes não levava.

O casamento acontece e o cortejo nupcial, que deveria exibir os noivos em

um passeio pelos principais pontos turísticos, passa a ser uma aventura. Os cavalos

submetem os nubentes, familiares e convidados a um tratamento de choque.

Desviam-se da rota planejada pelas famílias Caposso e Ferreira da Silva e, ao invés

de passar pelos bairros nobres das cidades, leva-os aos musseques de Luanda.

Os participantes do cortejo contemplam a situação de miséria que ocupa o

lado oposto da cidade, o lado ignorado por eles. É apresentada a eles uma visão

que reflete toda a contradição de um país preocupado com aspectos de afirmação

de uma identidade pautada na tradição e no progresso. Os participantes são

forçados a contemplar uma nova paisagem pintada com cores desconcertadas e

figuras bastante assimétricas. O passeio desmancha, a cada beco, a visão de uma

Angola una em seus aspectos culturais e étnicos e em seu processo acelerado de

desenvolvimento econômico.

Os cavalos, após terem conduzido os noivos por esse percurso que, segundo

o narrador, assemelha-se à descida de Dante ao inferno, pois eles “[...] cruzaram

com as piores imagens de degradação e miséria que é possível conceber,149 levam-

nos até uma criança que os conduz à presença de uma inusitada personagem

conhecida como Papá Xitoko que é o curandeiro que os trataria com terapias

utilizadas conforme os usos e costumes da terra”.

Uma das suas terapias mais conhecidas, saudada pela imprensa como uma inovação revolucionária, consiste em amarrar pesadas esferas de ferro nos tornozelos dos pacientes, obrigando-os a viver ao relento e a realizarem praticamente todas as suas chamadas funções vitais num amplo terreiro, juntamente com alguns outros animais desprovidos de razão, pelo menos os que, após milénio de confrontos, já foram domesticados pelo homem.150

O tratamento contra alienação promovido pela personagem Papá Xitoko

consiste em manter os pés dos noivos no chão, ou seja, presos à terra(Angola) por

meio das pesadas esferas de ferro, metaforizando o abrir os olhos para realidade,

149

MELO, 2008, p.144-145 150

Id. Ibidem, p.128.

76

observar e sentir na pele todo o sofrimento da população pobre em sua maratona

por sobrevivência. Visitando o lado oposto, talvez entendessem a miséria dos que

são vítimas da corrupção e exploração de seus atos para, com isso, buscarem

políticas que promovam a amenização desse quadro.

77

3 A identidade angolana construída nas relações de alteridade colonial

Que jamais o instrumento domine o homem.

Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem...

Minha última prece: Ô meu corpo faça sempre de mim

um homem que questiona!

Fanon (Pele negra máscaras brancas)

Para os africanos, a construção de uma identidade descolonizada passa a ser

uma proposta complexa, principalmente pelo fato de ela pretender desfazer imagens

construídas durante um processo que durou cinco séculos. Tais imagens

disseminam uma concepção de identidade pautada na alteridade que emerge na

relação entre colonizador e colonizado.

Como ocorre comumente nas relações humanas, o processo de alteridade

sempre observa a diferença atribuindo-lhe um juízo de valor, e dessa alteridade

nasce uma ambivalência, nela há a proposta de uma relação assimétrica pautada no

ideal de saber/poder legitimador do exercício de dominação do colonizador sobre o

colonizado. Esse processo gera, em ambos, a criação de imagens que se mantêm

vivas através da repetição que faz com que elas sejam perpetuadas através do

imaginário social e literário.

Tais imagens interferem nas relações sociais cotidianas. Em um tempo em

que o ceticismo tomou conta do mundo, encontra-se a valorização de uma crença

fundamentada no ideal de diferença que aprisiona o homem em um tempo passado,

na situação colonial. Essa prisão que detém tanto o colonizador quanto o colonizado

é determinada por ideais considerados racistas. Conforme afirma Fanon, diante de

tal situação, pode-se constatar “O branco fechado na sua brancura. O negro na sua

negrura”151. Brancos e negros estão presos a imagens que são fruto de produções

de conhecimentos dados como científico e reafirmados nas literaturas que se

pretendiam realistas e que asseguravam essa sobreposição do branco, o Eu

europeu, em relação ao negro, o Outro africano.

151

FANON, 2008, p.27.

78

Os povos africanos representados na epistemologia desenvolvida pelos povos

dominadores possuiam uma identidade pautada na inferioridade que fundamentava

a supremacia dos produtores da episteme.

Edward Said, em seu livro Orientalismo, trata de uma reflexão acerca dos

saberes científicos produzidos sobre o homem oriental. Segundo ele, tais saberes

serviam para justificar o regime colonial em terras orientais. A identidade do oriental

foi representada sob o signo do exotismo e da inferioridade nas literaturas

ocidentais.

O estranho e o insólito representados despertavam o interesse geral e,

segundo comenta Said, esses saberes passaram a ser investigados pelas ciências

em desenvolvimento da etnologia, da anatomia comparada, da filologia e da história.

Além desse conhecimento sistemático era acrescentado um corpo de literatura de

bom tamanho produzido por romancistas, poetas, tradutores e viajantes

talentosos.152

A constituição da identidade europeia passava pela constituição da identidade

dos povos descobertos. A irracionalidade do nativo dava luz à racionalidade do

europeu, a selvageria do primeiro fazia da Europa uma civilização evoluída. Tais

observações podem ser aplicadas ao encontro entre o europeu e os povos

angolanos, representados no imaginário como apenas africanos, nativos de um

continente extenso habitado por selvagens que possuíam os mesmos aspectos

físicos e comportamentais.

O conjunto de saberes que supõe a descrição da identidade dos povos

africanos inscreveu no imaginário dos povos, sobretudo, do próprio africano,

estereótipos que persistem até os dias atuais. Desfazê-los implica na disseminação

de saberes que partem de um lugar que esteja situado entre os campos de conflito,

um espaço onde não habitam as imagens dos eus/outros designados pela

expressão colonizadores ou colonizados.

Conforme afirma Said,153 o apontar para o Oriente não trata apenas de uma

questão de localização geográfica. Tais localizações constituem um aqui e um lá, um

espaço que não é meramente físico, mas discursivo. A distância geográfica apenas

fundamenta o desejo de uma distância em relação à identificação dos sujeitos. Essa

distância separa as diferenças de maneira a fundamentar uma superioridade de uma

152

SAID, 2007, p.73. 153

CF-SAID, 2007.

79

em relação à outra. Elas são polos que embasam uma visão maniqueísta das

identidades.

Bhabha, ao analisar a obra de Franz Fanon, comenta acerca desse espaço

pertubador marcado pela distância entre colonizador e colonizado. Segundo ele, a

problemática não reside no reconhecimento da diferença, mas a proposta de

afastamento pautada na produção de um conhecimento que pretende a

inferiorização do Outro e a negação de qualquer semelhança deste com o Eu.

Observe-se o fragmento: “Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a

pertubadora distância entre os dois que constitui a figura da alteridade colonial – o

artifício do homem branco inscrito no corpo do homem negro”.154

A identidade colonial do angolano nasce dessa relação assimétrica entre

colonizador e colonizado que gera, através do imaginário social e literário, a

identidade estereotipada do ser angolano, identidade pautada em uma visão

eurocêntrica das civilizações africanas e que, por vezes, é abraçada pelo próprio

africano. Os europeus tomaram a cor como referência primordial para o

estabelecimento da diferença. Ela é a evidência visível da diferença, sendo ela fonte

para um reconhecimento primário, espontâneo. Ao primeiro contato visual já se é

possível estabelecer/reproduzir um conceito acerca do que é visto. Segundo

Bhabha,155

Este é precisamente o tipo de reconhecimento, espontâneo e visível, que é atribuído ao estereótipo. A diferença do objeto da discriminação é ao mesmo tempo visível e natural – cor como signo cultural/político de inferioridade ou degeneração, a pele como sua identidade natural.

É comum que em um primeiro encontro, a vista capte a diferença que salta

aos olhos, ou seja, o que aparece de mais superficial. A superfície negra serviu

como princípio e fim para a construção da identidade do africano pelo europeu.

Em seu livro Pele negra máscaras brancas, Fanon desenvolve uma reflexão

acerca do encontro, o face a face entre o homem de cor e o homem branco, que

remonta uma situação colonial, um encontro entre aquele que é considerado

civilizado e aquele que é primitivo, mesmo que esse último já tenha lançado mão de

esforços para se tornar um civilizado.

154

BHABHA, 1998, 126. 155

Id. Ibidem.

80

Fanon relata que, após ter sido apontado, inúmeras vezes, por onde passava

e nas demais ter sido gentil, esboçando até um sorriso, em um determinado

momento não suportou o peso da imagem que lhe era atribuída por ocasião de sua

cor. Ele narra o instante em que se deparou com o olhar espantado de uma criança

branca que pedia socorro a sua mãe, pronunciando a seguinte expressão: “Olha, um

negro... Mamãe, olha o negro! Estou com medo”,156 Para ele, já não havia mais

comicidade. Não havia mais espaço para sorrisos gentis. Tinha sido atacado pelo

que ele chama de esquema corporal, que o branco havia tecido para ele em mil

detalhes, anedotas, relatos.

Naquele momento, ele percebe que o seu corpo não é mais apenas o seu

corpo. Era o “esquema corporal, atingido em vários pontos”. Tal esquema dividia seu

corpo em três pessoas, como demonstra em “Eu existia em triplo: ocupava muito

espaço [...] Era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, minha raça e meus

ancestrais”.157

Transpassado pelo estereótipo, Fanon menciona que seus vários

empreendimentos em embranquecer, em participar do que seria naquele momento

um mundo novo e civilizado, fora em vão.

Tal encontro revela as faces das imagens que se mantêm vivas através do

tempo. Imagens que cindem o universo em dois polos opostos, branco e preto, e

que perturbam a visão dos homens brancos e negros em relação a si mesmos e,

consequentemente, ao mundo. Essas imagens revelam as estratégias de violência,

subordinação e desumanização do colonizador ao produzir o colonizado. Veja-se o

que observa Fanon:

156

FANON, 2008, p.105. 157

FANON, 2008, p.105.

81

Lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas. – e então denotaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, os fetichismos, as taras raciais, os negreiros e com “y’ a bon banania”158 [...] Nessa época, desorientado, incapaz de estar no espaço aberto com o outro, com o branco que impiedosamente me aprisionava, eu me distanciei para longe, para muito longe do meu estar-aqui, constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para mim, senão um desalojamento, uma extirpação, uma hemorragia que me manchava todo o corpo de sangue negro?159

No momento em que Fanon é confrontado pela imagem de homem negro

como canibal, um ser aterrorizador, ele diz transportar-se para longe dele mesmo.

Surge, nesse momento, uma autoimagem alienada de si mesmo. Fanon lança como

ponto de partida para sua reflexão os seguintes questionamentos como distintos: “O

que quer o homem?...O que quer o homem negro?”160

Ao acrescentar a palavra “negro” ao questionamento, Fanon, além de apontar

para o fato de haver uma distinção entre o desejo do homem branco e o desejo do

homem de cor, chama atenção para o fato de o homem negro não ser designado

apenas pela sua humanidade. Faz-se necessário, ao mencioná-lo, acrescer outro

determinante que é a sua cor.

Ele comenta que a identidade do colonizador e do colonizado são

fundamentadas na dinâmica do desejo que seria a resposta a esses

questionamentos. Tais desejos estão pautados na condição de antagonismos e

hierarquias entre as diferenças. Eles são responsáveis por gerar uma série de

imagens que funcionam, segundo Bhabha, como autoimagens.

A produção de uma imagem inferior para o colonizado parte do desejo de

representação de uma identidade soberana pelo colonizador. O colonizado, ao

produzir uma imagem livre e autêntica, renuncia à presença do colonizador em uma

ação fundamentada por um desejo de negação e recentimento. Tais desejos fazem

158

Trata-se do slogan da marca de um produto produzido a base de cacau e banana. Esse slogan tornou-se símbolo do colonialismo, pelo fato de buscar em suas propagandas a representação do homem negro como símbolo de força, para promover o valor energético do produto. E, também, pelo fato de que em uma determinada campanha adotou como garoto propaganda um soldado senegalês e, segunda a lenda que envolve tal propaganda, a ele teria sido solicitado a pronúncia da seguinte frase “y’ a bon banania”, por não ter o domínio da língua francesa, teria pronunciado de forma incorreta, modificando o sentido do que pretendia ser anunciado. A segunda frase teria sido adotada pela campanha acompanhada de uma imagem de um homem negro que expressava um sorriso bobo. Tal slogan associado à imagem era acusado de alimentar o estereótipo do homem negro como ser bobo e infantil. 159

FANON, 2008, p.106. 160

Id. Ibidem, p.26.

82

com que a epistemologia colonial e pós-colonial passe a narrar uma encenação

dessas autoimagens.

Segundo Bhabha, essas autoimagens, que são concebidas como identidades,

serão abaladas sempre que venha à tona a descoberta de que se tratam apenas das

fundações de mitos narcisistas de negritude ou de supremacia cultural branca.161

Tem-se, então, a constituição de identidades narradas a partir de um plano de

onde não se encontra de fato o sujeito colonial. Um plano fundamentado no desejo

que alimenta imagens e fantasias que são colocadas em práticas por meio da

violência física e epistemológica. Segundo Bhabha, “A imagem é a um só tempo

uma substituição metafórica, uma ilusão de presença e, justamente, por isso, uma

metonímia, um signo de ausência e perda”.162

Ao observar tal situação pensa-se na posição do sujeito colonizado que teve

sua identidade violada pelo colonizador, mas esquece-se de que o colonizador

também está aprisionado pelas imagens gerados nesse contexto, tanto por ele

próprio como pelo colonizado. Fanon163 menciona que “O preto [encontra-se]

escravizado por sua inferioridade e o branco escravizado por sua superioridade,

ambos se comportam de acordo com uma orientação neurótica”.

Em Pele negra máscaras brancas, Fanon argumenta que o espaço da

consciência e das relações sociais é marcado por visões maniqueístas. Para o

colonizado, o colonizador, como opressor, gera/alimenta sua identidade como vítma.

O colonizador é representado como um opressor. O mal que, se erradicado, traz ao

corpo (o colonizado) a saúde plena. Essa erradicação justifica o desejo por uma

identidade angolana que pretende a representação da pureza, de uma identidade

autenticamente negra e afasta a possibilidade de o angolano ser avaliado em suas

ações no interior da sociedade angolana como o outro polo da estratégia

meniqueísta, o mal. Este será sempre o colonizador, aquele que habita o além-mar

ou o que transparece através da cor os resquícios deixados por ele.

A pele negra passa a fundamentar a construção da identidade pós-colonial

que pretente como sujeito o próprio angolano. Bhabha traz uma reflexão acerca

desse desejo de purificação fundamentado, a priori, na cor e nega ser a adoção

desse fundamento um símbolo de pureza. Ele comenta que a exaltação de uma

161

BHABHA, 1998, p.71. 162

Id. Ibidem, p.87. 163

1991 Apud BHABHA, 1998, p.74.

83

identidade negra traz consigo a hibridação, pois a “alma negra” também é invenção

do colonizador.

A exaltação da cor negra pretendida durante o agenciamento da identidade

dos povos africanos traz consigo a repetição, a ênfase na diferença racial que

fundamenta o racismo e a discriminação responsável por esse sentimento de rancor

que gera outro narcisismo, fazendo desse processo um círculo inquebrável. Fanon,

ao alertar para a mesmice que esse sentimento de narcisismo da negritude

proporciona, comenta que “[...] aquele que adora o preto é tão ‘doente’ quanto

aquele que o excreta”. 164

Pensar a identidade, a própria existência significa pensar na ordem

diferenciadora da alteridade, sem a presença histórica do colonizado, a imagem do

europeu não seria chamada à existência. Sua existência não seria plena, sem a

degradação da existência do Outro.

Uma das estratégias de inferiorização dos povos africanos utilizada pelo

colonizador diz respeito à questão do estabelecimento da diferença biológica entre o

homem negro e o homem branco, fundamentada a princípio na cor. Sob a visão da

epistemologia do colonizador, os indivíduos de cor negra possuiam uma identidade

una, tinham todos as mesmas características físicas e intelectuais.

A partir de então, a identidade do homem africano era resumida a esses

aspectos pré-determinados. Todos já tinham em mente a imagem desse ser. Eram

todos negros e, sendo negros, eram selvagens, em razão das ações instintivas

como atos sexuais que não eram perpassados por questões afetivas, racionais e

culturais. Tinha-se a visão de um ser animalizado.

No conto Natasha, Melo busca desfazer o estereótipo construído como

identidade para o ser angolano, a partir da contravisão do mito da sexualidade

angolana baseada em aspectos tidos como biológicos e que fundamentavam a

referência de uma inferioridade intelectual. Desfazendo também a identidade

assumida pelo angolano no período pós-independência, de uma autenticidade que

fazia com que o homem angolano, a partir do momento em que decide como

estratégia de construção identitária exaltar sua raça negra, abraça a identidade

pautada em uma diferença racial proposta pelo colonizador.

164

FANON, 2008, p.26.

84

O conto narra uma série de depoimentos proferidos pelas personagens

protagonistas Adão e Natasha, que são interpelados pela voz de um narrador

personagem. Os depoimentos das personagens protagonistas levam o leitor à

reflexão acerca das imagens produzidas durante o período colonial e são

consideradas, até hoje, por africanos e estrangeiros.

Ao passar pelo musseque de Terra Nova, o narrador se depara com a figura

de Natasha Pugatchova que lhe chamou a atenção de forma espantosa. Ele a

descreve como “[...] uma jovem completamente branca e loira”165. A visão remeteu-

lhe à lembrança de uma cena semelhante à de um filme pós-guerra italiano.

Segundo ele, a diferença residia apenas no fato de “os figurantes possuirem tez

mais escuras”.166

A cena idealizada pelo narrador coloca Natasha como protagonista de um

filme e as pessoas de cor apenas como figurantes. Infere-se, a partir da descrição

dessa cena, que o narrador não concebe a presença de Natasha apenas como

diferente, mas, também, como superior às demais.

A partir de então, percebe-se que os sentimentos de admiração e

recentimento não aflinge tão somente a personagem Adão, eles são observados

também na figura do narrador, que traduz a curiosidade de todos aqueles que

passavam pelo musseque e questionavam: “O que faz uma moça branca e loira em

um ambiente tão miserável? [...] nesta terra infestada de negros, calor, mosquitos,

guerras e outras epidemias?”167

O narrador expressa sua visão acerca do homem branco como uma imagem

superior à imagem do homem de cor. À presença de Natasha, ele dirige-se com

reverência, atribuindo a ela um status de superioridade. A imagem de Natasha era,

para o narrador, semelhante à descrita/criticada por Fanon de que “Ser branco é

como ser rico, como ser inteligente”. 168 (Visão descrita por Fanon ao comentar as

críticas produzidas acerca da participação de pessoas de cor representando Deus e

os anjos em um filme americano, a inaceitação ou a aceitação que tomava como

base a associação ao comportamento do homem branco).

165

MELO, 2008, p.40. 166

Id. Ibidem. 167

MELO, 2008, p.38. 168

FANON, 2008, p.60.

85

Quebrado o encanto que me tinha transformado, durante alguns minutos, numa autêntica estátua de sal(eu, que não sou eslavo, fiquei mais branco do que a estranha mulher que acabara de dobrar a esquina da Estrada do Catete com a Rua dos Congoleses!) comentei com meus botões, porra!, mais um angolano que enganou uma filha alheia!...169

Ao contemplar aquela figura que exprimia para o narrador a materialização da

superioridade humana, ele revela seu desejo de embranquecer. Segundo Fanon,

trata-se de um desejo que surge da parte mais negra da alma do homem negro que,

ao encontrar-se, com o homem branco, deseja sua supremacia e, ao mesmo tempo,

tem consciência de sua pequenez enquanto negro. O narrador aponta para essas

duas faces: ele desejou a brancura e, ao mesmo tempo, sentiu-se incomodado com

a presença de Natasha.

A simbologia religiosa a que remete a expressão “estátua de sal” utilizada

pelo narrador faz menção a uma passagem bíblica localizada em Gêneses, capítulo

19, que narra o momento em que Deus sentiu-se ofendido por causa da negligência

com a moral dos habitantes da cidade de Sodoma (uma das cinco cidades do vale

de SIDIM) e Gomorra (cidade que ficava na planície ao sul do mar Morto) e resolveu

destruí-las. O relato diz que Deus teve piedade de um cidadão chamado Ló e

resolveu salvá-lo juntamente com sua família. Orientou que fugisse. Depois, fez

chover fogo sobre ambas as cidades. A recomendação dada por Deus a Ló era que

nem ele nem seus familiares olhassem para trás. Sua esposa não atendeu ao

pedido de Deus e, ao voltar-se para trás, tornou-se uma estátua de sal. Isso teria

ocorrido pelo fato de que ela, ao voltar o olhar para cidade, demonstra um desejo de

retorno, um apego a um passado terrível que deve ser destruído para servir de lição

e para que não propague seu mal.

A expressão utilizada pelo narrador, mediante o contexto em que ela se

insere, torna possível a inferência de que a visão de Natasha provocava, no

narrador, um sentimento perturbador de atração e reconhecimento de um passado

que carregava consigo terríveis recordações. Olhar para Natasha representava olhar

para o ideal de superioridade e, ao mesmo tempo, reconhecer nela toda a violência

que o torna inferior. Trata-se de um olhar para trás, pois, como mencionado

anteriormente, o encontro entre o homem de cor e o homem branco ainda o remete

ao passado colonial.

169

MELO, 2008, p.40-41.

86

O narrador resolve voltar ao lugar onde havia visto Natasha para satisfazer

sua curiosidade. Saber o que faz uma russa em território angolano. Antes mesmo de

perguntar, a citação anterior já revela que ele supõe que Natasha havia sido

ludibriada por Adão. Tratava-se de um caso em que “[...] mais um angolano que

enganou uma filha alheia!...”170 Adão responde que não. Reconhece que cometeu

certo exagero ao comentar acerca das maravilhas de Angola para Natasha, mas,

como não se pode considerar exagero como mentira, entende-se que Adão, de fato,

acreditava em parte de sua descrição acerca de si mesmo e acerca de Angola. Veja-

se, por exemplo, a fala: “É claro que lhe contei algumas histórias ... quer dizer...

dourei a pílula, como dizem os tungas!171

O Adão que atraia Natasha variava entre a imagem descrita no estereótipo

mencionado por suas amigas e a imagem de um autóctone angolano, um nativo de

origem aristocrata. Natasha teria sido de fato enganada, mas não teria sido nem por

Adão, nem por suas amigas, e sim, pelas imagens disseminadas pelos desejos

mencionados anteriormente. O engano deve-se ao fato de estarem envolvidos em

um jogo ilusionista. O Eu e o Outro que embasam o processo de alteridade, cuja

pretensão é o distanciamento das identidades do homem branco e do homem de

cor, são fundamentados em imagens fixas e unificadoras, que se colocam em

oposição uma a outra. Isto de forma que o sujeito colonial seja ele o colonizador ou

o colonizado, sempre se posicionando em um lugar onde não se encontram de fato.

Seria o objeto direto do olhar afirmando-se enganosamente como sujeito.

Bhabha questiona a existência do Eu e do Outro, representados no discurso

colonial. Essa representação substitui a realidade e pretende formas ilusórias e fixas

de identidades. Segundo o autor, “[...] o sujeito do desejo nunca é simplesmente um

Eu mesmo, então o Outro não é simplesmente um Aquilo mesmo”.172.

O estereótipo colonial, segundo Bhabha,173 está amparado pela ambivalência

de formas fixas, de um lado o colonizador, de outro, o objeto da curiosidade, para o

qual os atributos de anormalidades já não são suficientes para descrevê-lo. Estes

ganham ênfase ainda maior nos excessos dessas adjetivações.

Dentro dessa perspectiva discursiva, ao negro não basta apenas

desempenhar relações sexuais de forma inculta, irracional, fora de uma moral

170

MELO, 2008, p.41. 171

Id. Ibidem, p. 49. 172

BHABHA, 1998, p. 86 173

CF Id. Ibidem, p.104-128.

87

religiosa ou social proposta pela cultura europeia. Precisam ser, todos, dados a atos

sexuais constantes e incansáveis e possuírem um órgão sexual maior do que o de

todos os outros povos.

É a forma da ambivalência que dá ao estereótipo colonial a sua validade: ela garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes, embasa suas estratégias de individualização e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que, para o estereótipo, deve estar sempre em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente.174

Natasha era uma moça russa que se mudou para Angola para conviver com

Adão, um angolano que morava na Rússia havia 17 anos. Quando questionada pelo

narrador sobre o motivo de ter deixado seu país para ir morar em Angola, ela

responde, descrevendo os aspectos que a faziam desejar a personagem Adão. Esta

explicação pode ser testemunhada no fragmento: “Na verdade ele tem uma coisa

preta que me deixa louca, tão diferente de tudo o que eu conhecera antes e até do

que eu esperava, as minhas amigas sempre me tinham dito, parece que o negro tem

uma pila inacreditável [...]”175

A atração de Natasha por Adão resumia-se a uma curiosidade em relação à

verificação do estereótipo bestial de liberdade sexual dos africanos. Essa imagem

disseminada no período colonial faz com que o negro seja sexualizado ao extremo,

para que suas aptidões intelectuais não sejam inseridas no contexto da sexualidade.

Ao pretender o encontro com um homem negro, Natasha tinha em mente a

anatomia de seu corpo, seu desempenho sexual como algo sobrecomum. Para ela

seria um momento de reconhecimento. Esse ser tão exótico era Adão, um jovem

universitário, um angolano que saiu de sua terra ainda criança, que já não carregava

na memória detalhes da sua infância. Seu exotismo residia apenas no fato de ele ser

negro. Bhabha,176 ao comentar o pensamento de Fanon “O negro permanece um

174

Id. Ibidem, p.106. 175

MELO, 2008, p.38. 176

BHABHA, 1998, p. 117.

88

negro” afirma que “a raça torna-se para o negro um signo não-erradicável da

diferença negativa nos discursos coloniais. Isto porque o estereótipo impede a

circulação do significante ‘raça’ a não ser na fixidez enquanto racismo”.

A identidade do negro está determinada, unificada, fixada na sua cor. O negro

é um ser ao qual é vetado reconhecimento de uma capacidade intelectual. Se

compartilha de atividades intelectuais desenvolvidas antes por homens brancos,

deixa por alguns instantes de ser negro, até o momento em que o homem branco o

alcance com seu olhar e perceba aquilo que não se pode esconder ou apagar, que é

sua cor, o tome de todas as formas apenas por uma única palavra, negro.

Tanto faz que o chame “Preto sujo!” ou simplesmente “Olhe, um preto!”177 A

menção da palavra preto/negro já desencadeia uma série de significações, de

imagens pré-dadas. O estereótipo que é sobreposto à identidade do homem negro

impede de sê-lo. Nega ao homem negro o direito de ser reconhecido enquanto

homem. Em muitas das exclamações, a palavra preto ou negro já constitui uma

derivação imprópria, deixam de ser adjetivos e passam a ocupar a posição do

substantivo, passando a designar o próprio ser, sendo a palavra homem literalmente

apagada do contexto. Nesse contexto, o adjetivo aparece como uma característica

que parece existir independente da existência do ser. Um adjetivo que, mesmo em

alguns contextos, apareça acompanhado do substantivo, parece assumir a posição

de regente, ao contrário do que ocorre comumente.

Ao comentar acerca da negação da humanidade do homem de cor no

discurso colonial, Fanon menciona que teve essa pretensão destruída a partir do

momento em que ele deixa de ser ‘homem e passa a ser objeto da observação do

homem branco. Observe esta ideia em: “Cheguei ao mundo pretendendo descobrir o

sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis

que me descubro objeto em meio a outros objetos.”178 Isto, segundo ele, instiga o

negro a assumir a posição de homem, a adentrar no mundo novo, civilizado,

moldando-se para caber nele. Mas logo o homem negro é confrontado por olhares,

gestos e atitudes que o devolvem novamente ao plano fixo, a uma dimensão

primeira.

177

FANON, 2008, p.103. 178

FANON, 2008, p.103.

89

Segundo Fanon,179 o branco concebe o negro apenas em três dimensões: no

corpo, na raça e na ancestralidade. Se este se sobressair em ações intelectuais, já

pode ser considerado um branco. Mas, menciona ele, “O negro não é. Nem

tampouco o branco é”, referindo-se ao fato de que as identidades criadas pelo

processo de alteridade desenvolvido durante o colonialismo são apenas imagens

que passam a significar pessoas. Tais imagens dividem-se, ocupando cada qual a

posição determinada pela cor que as representa.

No conto, pode-se observar que, antes mesmo de conhecer Adão, Natasha já

projetara uma relação sexual fora do comum. Como ela menciona, diferente de tudo

que já conhecera anteriormente, pois seria a primeira vez que deitaria com um

negro. Antes do primeiro encontro, a identidade de Adão já se revelava em seu

imaginário. Ela iria tão somente verificar, aliás, constatar o que suas amigas já

haviam mencionado acerca da virilidade do homem negro.

A verdade é que todos nós avaliamos os outros com base em determinados estereótipos que, não se sabe como, são formados ao longo do tempo... É por isso que, quando conheci Adão, eu já estava pronta a ser surpreendida, se é que isso não é uma contradição [...]180

Ela reconhece que a atração que sentia por Adão devia-se apenas a uma

questão de estranhamento. Quando interpelada pelo narrador, que exibia toda sua

indignação pelo fato de ela ter enfocado como motivo predominante que a fez deixar

a Rússia sua atração sexual por Adão, ela justifica sua decisão, dizendo que “as

diferenças só assustam quando não encantam [...]”181

Seu desejo em aproximar-se de Adão traduzia uma espécie de atração pelo

(des)conhecido, ou ainda, pela saciedade da necessidade de constatação da

veracidade da imagem informada. Natasha esforçou-se deveras e teve a noite que

esperava. Essa noite faria dela mais um porta-voz da propagação do estereótipo de

sexualidade do homem africano.

No princípio, realmente, tudo se resumia ao estranhamento sexual, mas hoje eu percebo que esse estranhamento correspondia, em grande medida, àquilo que eu própria esperava, em função dos comentários das minhas amigas acerca da virilidade dos africanos.182

179

CF Id. Ibidem. 180

MELO, 2008, p. 39. 181

MELO, 2008, p. 47. 182

Id. Ibidem, p. 39.

90

Ao projetar em Adão o estereótipo colonial, Natasha já mostrava disposição

em manter definido o lugar em que se encontrariam tanto ela como Adão, em um

lugar comum e, ao mesmo tempo, cindido em opostos. Trata-se da retomada de

uma situação colonial, gerada em um encontro entre dois sujeitos que ainda mantêm

viva a chama do discurso colonialista que reflete uma ambivalência que ainda

promove o desejo por estratégias de dominação e revanche.

O encontro teria sido uma encenação do teatro colonial, uma representação

estereotipada que busca a legitimação como real. A virilidade de Adão teria que ser

proporcional ao desejo de Natasha em sentir-se em um posicionamento intelectual

superior a ele. Constatar essa extrema sexualidade no corpo do homem negro, faz

do branco um ser ponderado, racional e moral. Conforme afirma Bhabha,183 o

estereótipo é uma simplificação falsa representação de uma dada realidade porque

é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença,

constitui um problema para a representação do sujeito nas relações sociais. O

estereótipo requer, para uma significação bem-sucedida, uma cadeia contínua e

repetida de outros estereótipos.

Sempre as mesmas histórias devem ser contadas sobre um determinado

elemento da identidade cultural para garantir sua eficácia. Isto aparece como um

reconhecimento espontâneo e visível da diferença, porém Bhabha184 explica que “o

estereótipo é uma pré-construção ou uma montagem ingênua da diferença que

autoriza a discriminação”.

Quando Fanon menciona a utilização de uma anedota que envolve a questão

da virilidade do homem africano, o autor entende que quem a conta a vê apenas

como uma inocente anedota que, segundo ele, não é autêntica, “mas o fato de ter

ganhado corpo e de ter-se mantido através dos tempos é um indício indiscutível de

que ela não é enganadora”.

O estereótipo cria uma falsa representação da realidade que, como é

excessivamente repetida, é transformada em “verdade”. Não é preciso conhecer o

negro, pois “todo” negro é um ser “ignorante; agressivo e ao mesmo tempo infantil”.

Tal ‘verdade’ faz com que o colonizado perca sua individualidade. A inferioridade e

desumanização que lhe são conferidas fazem com que os colonizados sejam

183

BHABHA, 1998, p.117. 184

BHABHA, 1998, p. 123.

91

agrupados em uma única imagem, em um estereótipo que ganha corpo na repetição

das mesmas histórias, lendas e anedotas como a “Y a bom banania” que torna o

estereótipo racista um elemento resistente ao tempo e às transformações.

Trata-se de uma reflexão de Frantz Fanon185 acerca de tudo aquilo que o

homem branco havia construído para traçar seu perfil: os detalhes, as anedotas, os

contos, as lendas, as histórias e, sobretudo, a historicidade. O estereótipo do

colonizado construído pelo discurso colonial, assim como os demais estereótipos,

funciona como um acervo com informações bem limitadas acerca do ser estudado e,

assim como no discurso historicista, essas informações servem para todos quantos

mantêm relação de proximidade com a suposta matriz que serviu como cobaia para

observação.

O objeto desse pretenso conhecimento é um só – negro – africano – ser

amoral, intelectualmente subdesenvolvido. Adão era negro, logo era africano, era

africano logo era negro, consequentemente, era tido como irresponsável,

degenerado, ser com virilidade exacerbada e de capacidade intelectual inferior à de

Natasha.

Bhabha186 afirma que é atribuída uma entre as relações saber/poder e os

estereótipos impostos através desse saber: selvageria, canibalismo, luxúria e

anarquia. São processos de imagens que se desenvolvem através dos estereótipos

e passam a significar o homem africano. Esse discurso serve como base para o

estabelecimento de uma distância, uma negação da cultura do outro, legitimando os

estereótipos tanto do colonizador quanto do colonizado.

Natasha faz alusão ao órgão sexual de Adão como algo que o diferencia dos

homens brancos com os quais ela já manteve relações. Mas, adiante, ela deixa claro

que a ele pertence o corpo, mas as ações, os ritos que conduzem o sexo com mais

racionalidade ficam por conta dela.

Aliás eu percebi-me rapidamente que o estranhamento era mútuo, pois ele era muito pouco imaginativo em termos de, digamos assim, alternativas amorosas, pelo que – posso dizê-lo – eu é que lhe ensinei muitas coisas que hoje fazemos normalmente.187

Nesse contexto, observa-se que o desejo da mulher branca pelo homem

negro é motivado pelo estereótipo de seu vigor físico associado à falta de civilidade

185

FANON, 2008, p. 105. 186

CF BHABHA, 1998, p. 120-121. 187

MELO, 2008, p. 39.

92

e moralidade, que o diferenciava da maneira branca. A eles eram permitidas práticas

e desempenhos sexuais às quais ao homem branco não eram permitidas, pois o

branco era constituído de valores morais que o tornavam um ser civilizado. Trata-se

de um espelho em que a personagem concebe sua imagem na observação do

Outro, que, assim como a identidade que ela projetou, também não passa de uma

imagem.

Dessa forma, sempre há de se imaginar que, ao encontrar um homem de cor,

suas reações aparecem sempre como previsíveis e, de fato, a expectativa criada

pelo estereótipo conduz tanto o homem negro em suas ações como a mulher branca

à crença da satisfação em constatar a verdade do estereótipo.

Adão foi para a União Soviética quando tinha apenas onze anos e voltou a

Angola dezessete anos depois. Segundo ele, já não lembrava mais da sua infância.

Natasha dizia ser “ele um estudante brilhante”. Viveu todo esse tempo adaptado à

cultura dos soviéticos, mas mesmo assim não é visto por Natasha como um deles.

Para ela, tudo em Adão difere do homem branco. Seu modo de ser, seus costumes

são descritos como algo que o acompanhou desde a infância, são características

quase biológicas.

Adão não era um homem, era um espécime que tem seu corpo e seus

instintos conferidos por Natasha.

Logo no início fiquei fascinada com seu jeito calmo e doce, apesar de um pouco retraído, pelo menos em público (ele não era dado a manifestações públicas de carinho, eu achava mesmo que ele era um tanto ou quanto envergonhado, mas depois percebi, observando os colegas dele, também africanos, que era a maneira de ser de todos eles; para mim isso sempre foi estranho, pois pelo menos o Adão transformava-se completamente, quando estivéssemos na cama...)188

Suas análises em relação a Adão sempre terminavam no retorno às suas

origens, finalizavam na imagem que era descrita como comum a todos os nativos

africanos. Essa imagem unificadora e pré-estabelecida faz com que Natasha sempre

o observe dando prioridade ao ser degenerado, farrista e irresponsável em

detrimento do fato de ele ser um brilhante estudante.

188

MELO, 2008, p. 44.

93

[...] mas a verdade é que muitas vezes cheguei a pensar que a problemática relação com o tempo, que ele gostava de apresentar como uma relação de sabedoria africana, não passava no fundo de uma grande irresponsabilidade... Tenho que reconhecer, entretanto, que o Adão, que além de um amante especial, era também um farrista incansável.189

Essa ambivalência entre as identidades propostas para Adão acentuava um

aspecto negativo ao lado de outro ilusoriamente representado como positivo. Na

verdade ambos servem para reforçar aspectos negativos, pois pintam o homem

negro como selvagem, mas, ao mesmo tempo, submisso; como sexualizado e, ao

mesmo tempo, inocente, de forma que é gerada a imagem do ser agressivo e doce.

Adão era facilmente dominado em seus aspectos pelo discurso de Natasha. Esse

poder de moldá-lo a contento dispõe para ela uma posição de dominação em

relação à construção da imagem de Adão. Temos, através de seu discurso, um

colonizado inteiramente degenerado e, se em algum momento é tido de maneira

positiva, será apenas para acentuar seus aspectos vulneráveis à conquista.190

Natasha sempre pedia explicações a Adão sobre o fato de ele desde a

infância morar na União Soviética e ainda gostar tanto assim de farras. Ele replica

“Ora, isso é pergunta que se faça a um angolano ... Está no sangue! Está no

sangue!

Ambos buscavam constatação de um estereótipo que remonta às origens de

Adão, mas o faziam com intuitos diferentes. Adão buscava um pouco de dignidade

em seus ancestrais e Natasha encontrava, nas origens apresentadas por Adão, a

legitimação de seus aspectos mais primitivos.

As adjetivações que Natasha utilizava para caracterizar Adão e todos os seus

conterrâneos remetem a uma reflexão realizada por Bhabha acerca desse

estereótipo do estudante brilhante e da sexualidade animalizada que identifica o

homem negro.

[...] o estereotipo do nativo é fixado nas fronteiras deslizantes entre barbárie e civilização; o medo e desejo insaciável pelo negro: ‘nossas mulheres estão a mercê dos pretos... Sabe Deus como eles fazem amor’; o profundo medo cultural do figurado no temor psíquico da sexualidade ocidental.191

189

Id. Ibidem, p. 45. 190

CF PAGOTO, Cristian, BONNICI, Thomas. A dupla colonização da mulher no romance A escrava Isaura(1985), De Bernardo Guimarães”. In:http://e-revista.unioeste.br/índex.php/línguaseletras/aticle/view/1151 191

BHABHA, 1998, p.71.

94

Natasha não percebe a contradição que há em seu discurso que busca a todo

instante caricaturar Adão, mostrando suas adjetivações apresentadas ao extremo. A

preocupação em tecer seu discurso descritivo acerca do estereótipo que envolve a

imagem de Adão enquanto negro, africano, como um ser que possui características

opostas às dela, não a faz enxergar que entre ela e Adão não havia tamanha

distinção de preferências e prioridades.

O que eu quero dizer é que as farras que os estudantes angolanos organizavam, para nós, um espanto! De certo modo, e muito embora nunca lhe tivesse confessado isso, eu concordava com Adão, quando ele dizia que uma farra é um momento mágico, pois eu via com os meus próprios olhos como é que eles se entregavam à música e à dança, até o dia amanhecer... Eu e minhas amigas não perdíamos uma farra organizada pelos angolanos!...192

Natasha vivia em uma constante busca por características que a

distanciassem de Adão. Quanto a Adão, ora buscava aperfeiçoamento em seus

estudos, ora buscava abraçar o que considerava como sua angolanidade, o que

para ele não passava de uma vaga lembrança das tradições de seus ancestrais.

Fanon, ao analisar a relação entre o homem branco e o homem de cor, ainda

ancorada no discurso colonialista, proporciona uma reflexão acerca da busca do

homem negro por uma identidade que o aproxime do homem branco. Essa busca

resulta em frustração à medida que o homem negro é confrontado pelos

estereótipos raciais que apresentam imagens fixadas ainda no período colonial,

imagens que enquadram tanto o branco como o negro em molduras que apresentam

ainda o mesmo limite para substância: o negro um selvagem, que apresenta

disposição em ser domesticado, o branco um civilizado dotado de inteligência e

solidariedade em civilizar o homem negro.

Tal discurso objetiva apresentar o (ex)colonizado como uma população de

tipos degenerados com base na origem racial, de modo a justificar a conquista e

implantar sistemas de estabilização e instrução. A imagem negativa do colonizado

foi acentuada pelo poder dos povos dominadores ao permitir e mesmo legitimar os

discursos sobre primitivismo e canibalismo. Fazendo do colonizado uma invenção do

colonizador e, ao mesmo tempo, um sujeito degradado do discurso colonial. O

192

MELO, 2008, P.45.

95

colonizador fornece uma representação que patrocina uma ilusão de realidade,

como uma fábrica de “verdades” que produz o colonizado como o Outro, objeto de

exploração, repulsa e desejo.

Trata-se de uma representação que aperfeiçoa a imagem do colonizador e

deforma a imagem do colonizado, manipula, constrói uma realidade baseada no

binarismo: eu”/colonizador e outro/colonizado. E essa divisão traz consigo outra

divisão: o colonizador é ser que merece a posição de poder porque é o sujeito do

conhecimento, enquanto ao colonizado é conferida a posição de subalterno, pois é

infantil, amoral e incivilizado, necessita do amparo do colonizador, uma vez que é

incapaz de governar sua vida e seu território.

Essa realidade acerca da identidade do colonizado é reforçada através do

estereótipo. O estereótipo é uma estratégia que fixa o colonizado em uma imagem

criada no passado. Através da repetição, essa imagem será sempre infiltrada no

presente e com a pretensão de ser propagada de geração em geração. Segundo

Bhabha, A “sua principal estratégia discursiva é uma forma de conhecimento e

identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que

deve ser ansiosamente repetido”.193

Essa manutenção da imagem ou aperfeiçoamento negativo representa a

manutenção de posições do colonizador e do colonizado em um tempo passado, em

uma situação colonial.

Através do estereótipo, a imagem do homem negro é manipulada conforme a

necessidade que a sociedade tenha de representá-la. Segundo Bhabha, trata-se de

uma cadeia de estereótipos misturada e, ao mesmo tempo, cindida, poliforme e

perversa.

O negro é ao mesmo tempo selvagem (canibal) e ainda o mais obediente e digno dos servos (o que serve a comida); ele é a encenação da sexualidade desenfreada e, todavia, inocente como uma criança; ele é místico, primitivo, simplório e, todavia, o mais escolado e acabado dos mentirosos e manipuladores de forças sociais.194

Tal cadeia demonstra um controle dessa imagem diferente e inferiorizada pelo

homem branco que mantém ainda o mesmo discurso colonial de dominação. Em

193

BHABHA, 1998, p.105. 194

BHABHA, 1998, p.126.

96

suas mãos, o nativo é facilmente reformado para que se mantenha sempre a

ambivalência entre a imagem do branco e a imagem do negro.

O conto traz o depoimento da personagem Adão, homem negro que habita

terras estrangeiras. Ele é um homem angolano na União Soviética, terra descrita

pelo narrador como um cenário demasiado branco e frio.195 Lá, ele estuda, é contido,

procura adaptar-se ao meio. É, de certa forma, semelhante à personagem de

Manoni, examinada por Fanon,196 Jean Veneuse, um évolué, uma personagem que

representa um negro de origem antilhana que, como Adão, mora em um país de

brancos.

Veneuse mora na França há muito tempo e adaptou-se ao cotidiano do

homem europeu. É um homem negro que busca o reconhecimento de uma

identidade branca. Quando tem sua identidade observada pelo homem branco

acerca de alguns de seus costumes à moda europeia, diz-se que ele se afasta de

sua negritude, apenas afasta-se, pois ela é chamada à existência sempre que ele é

observado em sua cor e em sua natividade. Então o que torna a transparecer é a

imagem do nativo carregada de significações construídas durante o período colonial,

repetidas e moldadas ao longo do tempo.

Dizer que o homem negro deixa de sê-lo e passa a ser reconhecido como um

homem branco, por sua civilidade, inteligência e moral, traz à tona a manutenção de

uma imagem de homem negro como ser bestial, irracional, imoral. Fanon reflete

sobre esse contexto, analisando o discurso que reconhece a branquitude de

Veneuse pelo europeu.

Este processo é bem conhecido pelos estudantes de cor na França. Recusam-se a considerá-los como verdadeiros pretos. O preto é selvagem, enquanto que o estudante é um “evoluído”. Você é ‘nós’, ... e se o consideram preto é por equívoco, pois de preto você só tem a aparência.197

A palavra aparência é apresentada no contexto da citação por uma

personagem que atribui a ela uma posição irrelevante. Mas é essa aparência,

constantemente evocada e enfocada, que sempre fará de Adão um homem negro e

funcionará como um signo que remeterá a uma imagem associada à raça, corpo e

ancestralidade, mencionada anteriormente. Na perspectiva desse discurso, o

195

MELO, 2008, p.37. 196

CF FANON, 2008, p.69-82. 197

FANON, 2008, p. 73.

97

homem negro não evolui, a não ser com tremendo esforço e, só por alguns

instantes, se torne branco.

Esse olhar sobre o homem negro o debilita, nega a este a possibilidade de ser

um homem. Nessa debilidade, abate-se e entrega-se a aspectos dessa imagem.

Quando, de súbito, lhe vem a consciência de sua condição como pessoa humana,

suas forças já não são suficientes para abraçá-la.

Adão, ao narrar seu primeiro encontro com Natasha, relata que ela, envolvida

pela euforia do momento, pronunciava uma série de expressões, entre elas “África!

África!”198 Essa lhe chamou atenção e fez com que ele, por alguns instantes,

pensasse em reagir, mas para não estragar o momento, preferiu calar-se. “Ainda

pensei em dizer-lhe que Angola não é bem África, ou melhor, que Angola é uma

outra África, que a África, na verdade, não é uma massa informe e grotesca, mas

diante daquelas circunstâncias, achei que não valia a pena [...]”199

O encontro entre Natasha e Adão era movido pela curiosidade e o desejo de

cada um em direção a si mesmo e ao outro. Ela revela sua curiosidade em relação

ao corpo de Adão e seu desejo de reconhecer nele o discurso proferido por suas

amigas, tal reconhecimento estabeleceria sua posição de superioridade enquanto

pertencente à raça branca. Ele, como homem negro, desejava possuir o corpo da

mulher branca, estar mais do que próximo, dentro, daqueles que pareciam tão

superiores e distantes, aqueles que possuíam uma identidade almejada por ele e

que, também, o negavam e ofendiam-no, chamando-o de “negro, macaco e outras

coisas do gênero”.200

Conforme afirma Fanon,201 o desejo de embranquecer vem da parte mais

negra de sua alma. Trata-se do desejo de ser reconhecido pelo branco, de desposar

a mulher branca, a cultura branca, a virtude branca, a civilização branca, a dignidade

branca. A partir do momento em que o homem de cor é confrontado pelo

estereótipo, ele deseja não o ser mais, negar a si mesmo para isentar-se da

exclusão. Para ele, ao tempo que concebe a identidade construída de maneira

negativa pelo colonizador, deseja adquirir um tanto de dignidade que, a princípio, é

uma característica tida como inerente apenas ao homem branco. O estereótipo do

homem branco deixa claro que a ele pertence a virtude, enquanto para o estereótipo

198

MELO, 2008, p.43. 199

Id. Ibidem. 200

MELO, 2008, p. 42. 201

FANON, 2008, p. 69.

98

do homem negro restam os traços negativos que os distanciam e inferiorizam em

relação à cultura branca.

Quando o estereótipo colonial vem à tona, o homem negro percebe que sua

brancura é apenas uma fantasia e que a qualquer hora será despido dela. Após ser

confrontado e enquadrado pelo estereótipo, o homem negro empreende outra

busca. Tentar ser reconhecido em sua negritude como um traço positivo, mostrando

ser membro de uma nação que possui uma rica cultura e nobres antepassados.

Segundo Fanon,202 “[...] alguns negros querem, custe o que custar,

demonstrar aos brancos a riqueza de seu pensamento, a potência respeitável de

seu espírito”. Seus empreendimentos giram em torno do reconhecimento pelo

homem branco, mantendo-se escravo vitalício dele. Empreende esforços para

embranquecer para se aproximar do branco, e se o faz lançando mão de um espírito

narcisista autenticamente negro, também sua visão está voltada para aquisição de

uma dignidade que merece ser reconhecida pelo homem branco. Se deseja extingui-

lo como forma de vingança, ainda procura atingi-lo.

Os adjetivos atribuídos a Adão pelos russos quando ele passava pela rua,

instigavam nele um desejo de vingança. Segundo ele, essa vingança era executada

“fodendo-lhes as mulheres”.203 Ele não conseguia explicar ao narrador a antítese de

sentimentos que envolviam seu relacionamento com Natasha. Era mais que um

relacionamento entre um homem e uma mulher. Era o relacionamento entre um

negro e uma branca, tão complexo que, segundo ele, só “Fanon explica ...”204

Ao analisar o pensamento de Fanon sobre racismo e dominação psíquica em

Pele negra máscaras brancas, Bhabha menciona algumas condições subjacentes à

compreensão do processo de identificar o sujeito colonizado na analítica do desejo.

Tais reflexões acerca do desejo do homem colonial fornece uma explicação próxima

à pretendida por Adão.

No colonizador, há o temor da revanche do homem colonizado ocupar o seu

espaço. Esse temor intensifica o desejo de manter uma imagem inferiorizada do

colonizado para legitimar a supremacia do colonizador e fortalecer a fronteira que os

distancia. A perpetuação dos estereótipos construídos para o homem negro

representa a perpetuação do poder de significar o ser colonizado. No colonizado,

202

FANON, 2008, p. 27. 203

MELO, 2008, p.42. 204

MELO, 2008, p.42.

99

reside o desejo de ocupar o espaço do colonizador, mas, mantendo ao mesmo

tempo o rancor de colonizado. Esses desejos sobredeterminam as relações sociais

mediadas pelas imagens geradas por eles.205

O desejo de manter-se no controle faz com que o homem branco mantenha a

fixidez do seu discurso em relação ao negro. Fazendo com que, no cotidiano, as

pessoas sejam confrontadas por estereótipos relacionados ao homem negro, pelo

ato de repetição. As representações literárias reforçam e são reforçadas pela

imagem do homem negro que aparece como um servo fiel, passivo de

domesticação, ou um demônio confrontado por um herói de cor branca.

O homem negro almeja uma identidade que lhe é apresentada como superior,

busca aproximar-se dos ideais de civilidade e desenvolvimento intelectual. Sua

procura por um reconhecimento como homem de modos evoluídos, civilizados, é

confrontada pela sua cor e, por isso, ele é enquadrado no estereótipo construído

para ele como homem negro. E isso lhe causa dor e ira.

O évolué é o homem que terá sua identidade representada de forma

duplicada, ou melhor, um homem negro de máscara branca. Sua identidade varia

entre o selvagem (negro) e o civilizado (branco), ao passo que desempenha com

brilhantismo a cultura tida como europeia. Ele deixa de ser negro até o momento em

que sua máscara é transpassada pelo olhar de uma criança apavorado como

aconteceu com Fanon.

As imagens alienantes construídas na relação de alteridade entre o

colonizador e o colonizado perturbam o campo de visão de ambos. O branco não é

um herói, tampouco o negro um demônio. Conforme menciona Bhabha,206 a

problemática não reside na mediação da alteridade como identificação, mas no fato

de esse processo acontecer por meio de imagens prefixadas e alienadas dos

sujeitos envolvidos.

O imaginário é a transformação que acontece no sujeito durante a fase formativa do espelho, quando ele assume uma imagem distinta que permite a ele postular uma série de equivalências, semelhanças, identidades, entre os objetos do mundo a seu redor. No entanto, esse posicionamento é em si problemático, pois o sujeito encontra-se ou se reconhece através de uma imagem que é simultaneamente alienante e daí potencialmente fonte de confrontação.

205

CF BHABHA, 1998, p.76. 206

BHABHA, 1998, P.119.

100

Tais sujeitos tomam como referentes o Outro que utilizam como ponto de

partida para uma identificação. O problema reside no fato de que nem o

Eu/colonizador e nem o Outro/colonizado de fato habitam esses espaços

observados, de modo que o sujeito colonial é sempre sobredeterminado de onde

não se encontra. Esse espaço é habitado unicamente por imagens pré-

estabelecidas, alienadas aos sujeitos.

Adão demonstra ser ciente dos problemas provocados pela interposição de

tais imagens que perturbam seu campo de visão em relação a si mesmo, a Natasha

e a realidade dos fatos, a presença da imagem de Natasha atrapalhava seus

projetos em relação à realidade. Esse contexto é observado na fala da personagem

Adão.

O problema - vou-lhe dizer a verdade – é que eu também a amava. Não sei bem como é que isso começou (desde os gregos, pelo menos – será que não havia angolanos ou outros africanos antes dos gregos? -, que os seres humanos andam à procura da resposta a essa e outras perguntas, sem jamais o conseguirem) mas o facto é que, de repente, a sua imagem começou a interpor-se obsessivamente, todos os dias, a toda hora, nos momentos mais estranhos e mais despropositados, entre mim a realidade, de tal maneira que eu passei a ter sérias dificuldades em distingui-la da própria realidade e, sobretudo, dos meus projectos em relação a essa realidade.”207

A personagem questiona-se como teria sido o início dessa relação entre as

imagens dominantes e as imagens representadas como submissas para entender

desde quando a mente humana é aprisionada pelos desejos/sentimento de

dependência proporcionado pela disposição dessas imagens. Ao questionar se

havia angolanos antes dos gregos, ele propõe uma reflexão acerca das estratégias

situadas no campo do racismo colonial. Infere-se que Adão propõe a seguinte

reflexão: para que houvesse supremacia e submissão, seria necessária a presença

do homem “angolano/negro/intelectualmente” inferior para contrapor e chamar à

existência a superioridade de povos considerados tão evoluídos como os gregos.

É desse lugar construído através da imagem e da fantasia que o sujeito

colonial é evocado. Sua condição colonial é um status fixado de onde ele não

consegue mais sair. Os envolvidos nesse contexto que mantém esse discurso

colonial vivo e, ao mesmo tempo, inerte têm sua existência pautada em imagens que

os aprisionam em um tempo remoto.

207

MELO, 2008, p.49.

101

O Eu, no seu lugar de domínio, é, naquele mesmo momento, o lugar de sua

ausência, seja ele ocupado pelo colonizador ou pelo homem colonizado em um

momento pós-colonial.

A sexualidade negra constituía, no imaginário do homem branco, uma

imagem que o aproximava da bestialidade. Adão, em determinado momento da

narrativa, concebe esse ideal de virilidade exacerbada como elemento que o

identifica, o aproximava de sua ancestralidade. Quando interpelado acerca de seu

desempenho sexual, Adão repetia “está no sangue, está no sangue”.

Adão acorda com a imagem proposta pelo estereótipo, como se tais

características relativas à sua sexualidade e o seu gosto pela música, transformados

por Natasha em elementos para construção de sua caricatura, se tratassem de uma

herança genética e fossem suficientes para designar sua identidade como homem.

Adão não é concebido como alguém que possui características individuais, o

discurso colonial não lhe deixa outra opção. Sua imagem será igual à de todos os

seus compatriotas. Ele será sempre determinado por sua cor e sua natividade. Pois

assim o determina o homem branco e ele também ao buscar uma afirmação

identitária pautada na sua cor e sua natividade.

Ele busca na utilização desses elementos uma maneira de reavaliá-los de

forma positiva. Para Natasha, a identidade de Adão resumia-se a uma parte de seu

corpo e ao que ela poderia lhe proporcionar um prazer que não era meramente

sexual. Adão enfoca também seu órgão genial, atribuindo a ele uma metáfora que o

associa a um ícone da sua ancestralidade. Uma lança metafórica que faz dele um

alguém que possui uma árvore genealógica, logo se trata de um homem. Fazia dele

parte de uma linhagem de angolanos que dominavam o território antes da chegada

dos portugueses. Eram fortes e destemidos guerreiros.

Por isso relutava em aceitar parte da expressão utilizada por Natasha para

seu órgão sexual. Aceitava que Natasha utilizasse o adjetivo preto, mas negava que

ela o concebesse como uma coisa.

Chocou-me a linguagem que ela utilizou para se referir ao meu órgão sexual, de modos que, à quinta ou sexta vez, tive que lhe dizer que meu caralho era preto, sim, senhor, mas não era uma coisa: era um ícone da minha ancestralidade, uma perfeita demonstração de que a cultura africana não está morta (antes pelo contrário, como, alias, ela podia verificar com os seus próprios olhos).208

208

MELO, 2008, P.43.

102

O corpo do colonizado é sexualizado e mero elemento de

observação/exploração pelo colonizador. Essa condição é perpetuada na forma do

estereótipo de virilidade do homem africano que explora imagens culturais e de

desempenho intelectual, associados a questões biológicas. Todo seu ser é resumido

na sua cor que remete à anatomia de seu corpo e sua pretensa inferioridade

intelectual que arrasta consigo a inferioridade cultural. Sendo o corpo objeto de

exploração que promove o prazer ao constar nela a inscrição dos referentes de

exacerbação da força física e virilidade. Segundo Bhabha,209 o “corpo está sempre

simultaneamente (mesmo que de modo conflituoso) inscrito tanto na economia do

prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e do poder”.

Adão busca revide em uma aproximação com o passado que lhe rendia o

reconhecimento de que ele pertencia a uma família de costumes tradicionais dos

povos angolanos. Isso fazia dele um ser autenticamente negro, pois, como visto

anteriormente, no conto Efeito estufa, os ideais de autenticidade angolana passavam

pelo campo da negritude e, consequentemente, da ancestralidade. Essa identidade

despertava ainda mais o desejo de Natasha, pois o aproximava cada vez mais da

imagem de homem primitivo, um elemento exótico, objeto de sua curiosidade.

Adão tinha seus valores negados por Natasha. E, levando-se em

consideração a natureza do processo de alteridade, o homem só é reconhecido

como homem no momento em que outro o reconhece como homem. Nesse caso, o

negro seria um não-homem, tomando como base o fato de que, no processo de

alteridade que envolve os sujeitos coloniais, o homem negro só é reconhecido a

partir do momento em que o homem branco o reconhece como tal. Talvez por isso

Adão buscasse na sua ancestralidade não apenas a extinção da cultura colonial,

mas o reconhecimento como um homem por parte dele mesmo e de Natasha. Em

seu discurso, ele possuía antepassados, homens nobres, guerreiros, homens que

possuíam uma cultura, ícones, símbolos, tudo que remete a ações humanas

agrupadas em comunidade, sociedade, formações civis.

Tanto Adão como Natasha reproduzem discursos que significam a imagem do

homem africano a contento. Adão buscava mais dignidade em um passado em que

seus ancestrais não eram representados de maneira submissa.

209

BHABHA, 1998, P.107.

103

O voltar no tempo também representava para os angolanos uma revanche, a

possibilidade de extinção da presença do colonizador, ou uma posição que lhe

permitia atribuir ao colonizador os mesmos maus tratos a que foram submetidos no

período colonial. Para Natasha, situar a imagem de Adão na ancestralidade

propunha uma estratégia que definiria qual o lugar do homem evoluído e o lugar do

homem primitivo.

A maneira com que Adão era tratado despertava nele o desejo de ser branco

e, ao mesmo tempo, fazia dele um homem magoado e ressentido. Ele ocupava dois

lugares ao mesmo tempo e satisfazia simultaneamente dois desejos que se

opunham um ao outro. Ter uma mulher branca seria a chance de ter em mãos o

objeto de seu desejo, ocupar por alguns instantes o espaço do homem branco e, ao

mesmo tempo, estar na cama com uma branca como um homem negro, ressentido,

satisfazendo seu desejo de vingança.

A lança que, segundo ele, herdara de seus ancestrais, não era uma lança

comum, era “[...] uma herança do meu pai, que era um grande caçador, uma

justiceira lança simbólica [...]”210 Seria o instrumento que os remeteria às tradições

de seus ancestrais e que seria utilizado para saciar seu desejo de vingança.

Das tradições as quais fazia reverência, ele entendia pouco, tinha deixado

Angola ainda muito jovem. O que ele entedia bem era que o homem vive em busca

de algo que possa identificá-lo e se esse reconhecimento lhe era negado pelo

homem branco, ele deveria buscar consolo em seus semelhantes e junto com eles

buscar a afirmação de humanidade, de pertencimento.

Ainda hoje, quando me falam nas tradições africanas, eu não deixo de fazer coro – sempre com a maior convicção e veemência possível! -, pois sei perfeitamente que isso me pode ser útil, mas a verdade é que não percebo nada do assunto.211

Segundo Adão, a afirmação que fizera com relação à sua lança deixava

Natasha ainda mais atraída por ele. A situação vivenciada pela personagem

assemelha-se à situação vivenciada por António, personagem do conto Ngola

Kiluanje analisado no capítulo primeiro.

As primeiras frases que principiam o conto também revelam a disseminação

do estereótipo de sexualidade do homem negro, pois a personagem Jussara, para

210

MELO, 2008, P.43. 211

MELO, 2008, P.42.

104

que se sentisse mais atraída por António durante o relacionamento sexual,

chamava-o negro e o alcunhava, utilizando o nome de um guerreiro considerado o

fundador de Angola. A metáfora construída com a imagem da lança também é uma

expressão utilizada por Jussara e acordada por ele. Ela também servia para

designar o órgão sexual de António.

Diferente de Adão, António era um nativo angolano de cor branca, mas para

que se tornasse objeto de desejo de Jussara, precisaria ser representado em sua

fantasia como negro, ser chamado de negro também fazia com que António se

sentisse mais angolano. Tanto a personagem António como a personagem Adão

são transpassadas pela visão estereotipada do ser africano.

As literaturas coloniais e pós-coloniais de agenciamento produzem imagens e,

depois, faz uso delas para representar o ser angolano de maneira generalizada.

Estas imagens são disseminadas sob o signo do realismo, dando ao estereótipo o

status de verossimilhança. São imagens a princípio lançadas pelo colonizador e

abraçadas pelo colonizado como estratégia de reversão, muitas vezes de maneira

inconsciente. Algumas estratégias apontadas pelo colonizado pós-independência

revelam a não ciência de que essas estratégias, por vezes, unem aspectos de ideais

do colonizador e do colonizado.

Nesse caso, pode-se observar que a representação do colonizado na

literatura colonial e pós-colonial é o colonizador que geralmente desenvolve ou

fundamenta a análise de imagens para reafirmar a superioridade étnica, gerando um

conjunto de imagens racistas e discriminatórias para representar o colonizado.

Essas imagens são analisadas como forma de reconhecimento, a partir do momento

em que há a garantia de que essa literatura mantém estreitos laços com o real. O

que legitima tais imagens como verdadeiras.

Bhabha crítica essa análise de imagens como identificação, essa relação em

que o texto/representação e a realidade afirmam estarem unidas por uma verdade

em relação à identidade do homem, dando origem a uma imagem pré-concebida

para o ser, imagem fixa, sacralizada através desse discurso.

Antes de iniciar seu relacionamento com Adão, Natasha já levava consigo

uma imagem pré-constituída do ser africano. Seu pensamento correspondia ao

pensamento de uma gama de pessoas que só tem acesso a informações acerca da

África através da leitura que se faz das literaturas coloniais que a representam como

um extenso continente habitado por negros selvagens e libidinosos.

105

Há anos Adão morava na Rússia, mostrava-se adaptado aos costumes do

lugar, frequentava a faculdade, comungava com hábitos que o aproximavam dos

demais habitantes, mas isso não parecia o suficiente. Mesmo estudando, se

comportando como os russos, por ocasião de sua cor, ele era sempre confrontado

pelo olhar que chamava à existência o estereótipo. Olhar para Adão seria sempre

olhar para um homem negro.

Abraçar a negritude é retomar o ideal que fundamentava o discurso do

colonizador que utilizava a diferença como estratégia de distanciamento e oposição

entre a cultura do colonizador e do colonizado. Essa concepção em relação às

diferenças, sobretudo raciais, foi parte fundamental da estratégia de dominação

colonial. A exaltação da superfície, no caso negra, serviu para a criação de uma

identidade também superficial por parte do colonizador. Ser negro era um aspecto

que reduzia o homem africano a um conjunto de atributos que estivessem

relacionados apenas a sua aparência física, demonstrando desprezo, sentimento de

inferioridade no que se refere ao plano intelectual. Inverter as adjetivações não

apaga o foco de um ideal pautado na cor/raça como determinante para uma

representação estereotipada e, consequentemente, unificadora do ser africano.

Em Natasha, encontramos uma narrativa que mostra o depoimento de

indivíduos que mantinham como porto para sua vida um relacionamento que se

apoiava em imagens pré-estabelecidas, ancoradas em um contexto colonial e pós-

colonial de insurgência. No depoimento, as vozes das personagens, intercaladas

pela voz de uma outra personagem que assumiria a função de narrador,

confundem-se ao narrar um contexto de mentiras, desilusão e frustração entre a

uma mulher russa e um homem angolano que tiveram o início de um relacionamento

marcado pela ausência.

Ele era movido por um duplo desejo que envolvia a imagem de Natasha como

mulher branca, e ela movida pelo desejo de constatar sua superioridade na figura do

estereótipo que designava Adão. Após alguns anos de relacionamento, ambos

demonstram sua frustração diante da constatação de que teriam idealizado uma

relação que não foi concretizada. Adão não conseguiu seu passaporte para o

reconhecimento como “homem”, e Natasha vivia a desilusão em relação ao mundo

descrito através do discurso colonial veiculado por suas colegas e o discurso

narcisista de Adão. Ela constata que a Angola mencionada por ele não existia,

tampouco sua posição aristocrática, assim como a possibilidade de permanecer no

106

mundo fantástico que o estereótipo lhe prometera, uma eternidade de volúpias. Ela

começava a entender que a sexualidade elevada ao extremo no discurso de suas

amigas não passava de uma identificação estereotipada que produziu nela um

sentimento de expectativa, o que fez com que ela se esforçasse para que essa

expectativa fosse correspondida. O que ela encontrou em Angola foi uma realidade

de miséria, infidelidade e mentiras.

107

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As personagens principais dos contos analisados revelam a preocupação do

escritor João Melo com o desvendar das identidades que compõem a sociedade

angolana. João mostra-se engajado em uma literatura militante. Ele trava uma

batalha ideológica que, em alguns aspectos, difere das ideologias utópicas

abraçadas por autores angolanos no contexto de luta pela libertação do regime

colonial e em um período posterior a essa liberdade.

A batalha de João reside no desejo de uma liberdade bem mais significativa

de que a pregada pelo movimento de negritude, que tornava a aprisionar as

identidades, mantendo a estratégia de enquadrar como singular uma sociedade

plural. A liberdade almejada por João trata de uma liberdade que reconhece o

angolano em suas particularidades e renuncia processos coloniais e pós-coloniais

que unifica a população angolana, transformando todas as identidades em uma

“Identidade nacional”.

No conto Efeito estufa, o escritor faz uso da personagem Charles Dupret para

revelar seu ponto de vista acerca dos ideais que buscam a reconstituição de uma

identidade nacional pautada no narcisismo da negritude. Ao ridicularizar a

personagem, Melo propõe uma reflexão acerca da insanidade de tal proposta,

entendendo que os processos de hibridação culturais, sociais e políticos que

envolvem a vida humana são irreversíveis.

As contradições reveladas a cada ato da personagem mostram a contradição

que é propor um processo de purificação para uma sociedade que tem suas origens

marcadas pelo embate e interação entre diferentes etnias que lutavam pela posse

do território, que passam posteriormente por um processo de colonização que tem a

duração de cinco séculos e, com a intensificação do capitalismo, ver-se inserida em

um contexto mais apurado de globalização.

As personagens que se revelam favorecidas pelos ideais de agenciamento

que buscam remontar o passado, a ancestralidade, têm seus discursos marcados

também pela questão de diferença racial. O autor tece uma crítica acerca daqueles

que em outrora revelavam o desejo de manter um distanciamento da figura do

colonizador. Lança mão da mesma estratégia de discriminação racial aplicada por

ele, mantendo uma ambivalência acerca da diferença étnico-racial para estabelecer

108

uma distância entre Eles/colonizado e o colonizador e, sobretudo, entre Eles/os

autóctones e os integrantes da própria sociedade angolana.

O escritor mostra que tal distância é estabelecida para que essa parcela que

representa a maioria da população não represente ameaça a esse poder legitimado

através da raça, da ancestralidade. Para Charles, negar o processo de hibridação e

afirmar que pertence ao grupo dos autóctones privilegiados pela pureza étnica e

racial, fazia dele um estilista diferente/superior aos demais. E um cidadão que

merecia um status também privilegiado. Esse status lhe rendia o poder sobre os

demais, poder para julgar a angolaneidade de cada cidadão, através da estratégia

de seleção que tinha como primordial a cor preta.

João combate a visão romantizada de identidade nacional que envolve tais

ideais de negritude. Ideais que supunham que essa retomada de poder pelos

autóctones geraria uma Angola para os Angolanos. Esse lema que movia a literatura

e outros discursos de luta pela independência é desmistificado pelo autor, que

mostra um resultado totalmente oposto ao que tais ideais afirmavam.

A luta anticolonial criticada pelo autor, ao negar o processo de hibridação,

acaba por tornar-se um paradoxo, pois, boa parte dos Angolanos não usufrui da

liberdade conferida com o fim do colonialismo. Antes, permanecem submissos à

mesma política de injustiças, exploração e discriminação racial promovida pelo

colonizador. Tal contexto encontra-se explícito no conto O elevador que revela o

desejo pela liberdade, para alguns, como desejo pelo poder. Nesse contexto, a

liberdade significaria apenas a substituição de dirigentes e a manutenção das

estratégias políticas de dominação colonial.

O conto Ngola Kiluanje mostra que grande parte dos nativos, entre eles os

considerados mulatos, acinzentados, pertencentes a etnias que não são apontadas

pelos mitos fundacionais e, sobretudo, os nativos brancos, são condenados a deixar

o território angolano, ou permanecem no país em situação de risco e humilhação.

O pai da personagem António narra sua fuga logo após a proclamação da

independência, pois entendia que sua permanência no país representava um risco

de morte para ele e sua família, porque se tratavam de nativos brancos.

Podemos observar através da narrativa O cortejo que a crueldade e

discriminação são intensificadas com a posse desse poder por uma geração que o

narrador chama de nova elite angolana e que se mostra ainda mais insensível às

necessidades da população do que os primeiros governantes autóctones.

109

O autor traça um paralelo entre dois mundos que coexistem e que, também,

se apresentam como opostos. Ele usa a imagem da capital Luanda para realizar

essa representação. Apresenta características referentes às construções da cidade

com a pretensão de fundamentar sua crítica acerca da discrepância entre as

condições de vida da classe dominante e as da população. São apresentados

edifícios luxuosos, em cujo terraço permitia contemplar, das alturas, grande parte da

cidade, inclusive o lado desprestigiado que são os musseques. São mencionadas,

também, as aquisições extravagantes dos representantes da elite, constituída por

ex-governantes que enriqueceram ilicitamente e mostram-se indiferentes às

condições de miséria da parcela que ocupa o ambiente da periferia.

Nos contos O feto e Tio me dá só cem, o autor proporciona ao leitor uma

aproximação com a subjetividade das personagens que representam as pessoas

que compõem a parcela marginalizada da população, crianças que, ironicamente,

apresentam-se como pessoas sem nome e se autointitulam deslocados.

Toda a narrativa é baseada na questão da distância que é estabelecida

através do discurso dos que pretendem o poder. São discursos que partem da

situação colonial e prolongam-se até o tempo considerado pós-colonial. São esses

discursos responsáveis por imagens que interferem na vida real da população, em

suas relações sociais. Posto que os ideais de narcisismo tanto da negritude, quanto

da branquitude determinam as relações cotidianas das pessoas envolvidas por esse

processo de criação.

Os ideais de superioridade pregados pelo homem branco chamam à

existência os ideais de negritude que também se tratam de um processo de seleção

e exclusão. O segundo supondo ser seu ideal o estabelecimento da distância entre

ele e o primeiro, adquire uma posição fundamentada nessa distância, que

estabelece outra, no interior de sua própria nação, entre os que se consideram

imunes ao processo de hibridação e aptos a ocupar o poder e os que não possuem

essa aptidão porque foram envolvidos por esse processo.

Melo atenta para o fato de que a permanência de tais imagens gera um

círculo do qual o homem encontra dificuldade para se libertar. Trata-se de uma

situação que cinde esse universo em branco e preto. Não há espaço para o homem,

apenas para o homem branco e para o homem negro. Os determinantes preto e

branco ofuscam a visão do sujeito acerca da concepção de sua humanidade.

Ofuscam também a visão da população em relação ao poder político e suas formas

110

de administração, legitimadas por esse contexto de enfoque racial. Essa situação

colonial é constantemente chamada à presença cada vez que esses dois mundos

são confrontados, seja no interior da nação, seja pela presença do nativo em terras

estrangeiras. Trata-se de um contexto que atinge tanto angolanos como sujeitos

pertencentes a países europeus.

As identidades apresentadas para o colonizador e para o colonizado durante

o processo colonial e pós-colonial são observadas por Melo como meras imagens

geradas pelos desejos que envolviam as relações entre eles. Elas resistem ao

tempo através do poder de representação que têm os estereótipos alimentados pela

repetição que, por sua vez, é nutrida pelo desejo de manutenção da supremacia da

cultura do homem branco e pelo desejo do homem negro, ferido pelo estereótipo,

em desposar a superioridade branca e, ao mesmo tempo, vingar-se do homem

branco.

Melo trabalha esse contexto em alguns dos contos analisados, mais

especificadamente no conto Natasha, através da análise do estereótipo de virilidade

exacerbada do homem africano que, por sua vez, gera o estereótipo de

superioridade cultural e intelectual do homem branco. Percebe-se, na fala da

personagem Adão, no capítulo terceiro, os estreitos laços entre as representações

das situações narradas pelas personagens e os pensamentos de Franz Fanon em

seu livro “Pele negra máscaras brancas” acerca de tais imagens e de sua

interferência na realidade dos que se reconhecem ou são reconhecidos através

desses estereótipos.

Nos contos analisados, João Melo propõe uma literatura que renuncia a essas

imagens que, por tanto tempo, aprisionam a consciência do homem. Imagens que

concebem a questão da identidade como algo fixo, uno, de temporalidade linear

escrita na História Oficial da nação e inscritas no imaginário social e literário. Tais

imagens são utilizadas para justificar a exploração do homem pelo homem e

confundem o sujeito acerca de si mesmo e de sua realidade social, econômica e

cultural.

A reflexão proposta por Melo encontra respaldo em autores que negam a

abordagem do pós-colonialismo como um tempo de ruptura com o passado colonial,

pautada em uma ideologia racista. Ele mostra que a questão da identificação

humana deve ser observada como algo mais complexo, não podendo ser reduzida

apenas a elaboração de uma identidade una e fixa, pautada em uma utopia de

111

reversão do processo de interação cultural no período de colonização. Mostrando a

impossibilidade de redução de todos os membros de uma nação, ou até mesmo um

extenso continente, a um harmonioso, pré-fixado e limitado grupo de adjetivos. Essa

visão revelada nos contos acorda com o pensamento do escritor Franz Fanon212 de

que o homem não se resume apenas a possibilidade de recomeço, a uma negação,

vai muito além disso.

O estudo realizado conduz a reflexão de que é necessário que o homem

desprenda-se do ideal de sua condição racial como pedra angular para construção

de sua identidade. Só assim ele poderá pensar com maior liberdade sobre si mesmo

e seu relacionamento com o outro.

Espera-se que as interpretações que relacionam as narrativas literárias aos

textos teóricos contribuam para a construção de um novo olhar acerca dos estudos

sobre a constituição de identidades na literatura estudada, que a cada apreciação

sejam agregadas novas significações por parte de leitores pesquisadores e curiosos,

dada à dinâmica dos sentidos que nelas circulam, posto que tais interpretações

adotam como corpus para o estudo o texto literário.

212

CF FANON, 2008, p.26.

112

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