filgueiras governo lula 1

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BLOCO DE PODER E POLÍTICA ECONÔMICA NO GOVERNO LULA (Versão Preliminar) Luiz Filgueiras * “Havia uma grande dúvida se o PT era um partido de esquerda, e o governo Lula acabou sendo um governo extremamente conservador... A visão era que o Lula iria levar o país para uma linha socialista. O sistema financeiro estava tensionado, mas, como ele [Lula] ficou conservador, agora está para ganhar novamente a eleição e o mercado está tranqüilo… Não tem diferença do ponto de vista do modelo econômico. Eu acho que a eleição do Lula ou do Alckmin é igual… Os dois são conservadores. Cada presidente tem suas prioridades, mas dentro do mesmo leque de premissas econômicas. Acho que o Lula vai conservar a premissa de superávit primário, de metas de inflação e tudo o mais. São evoluções que estão consolidadas no Brasil e serão mantidas por qualquer presidente.” (Olavo Setúbal – fundador do Banco Itaú e Presidente do Conselho Administrativo do Itaúsa, holding que controla este banco; em entrevista para o jornal Folha de São Paulo em 13/08/2006) 1- Introdução Desde a implementação do Plano Real (1994), vive-se um processo de aprofundamento, consolidação e ajuste de um mesmo modelo econômico (liberal-periférico), que começou a se esboçar a partir do Governo Collor (1990/1992) e tomou sua forma mais acabada no Governo Lula (2003/2006). No entanto, a política econômica e a dinâmica macroeconômica – suas expressões mais aparentes e imediatas – não se mantiveram exatamente as mesmas ao longo de todo o período (1994/2006). Na verdade, pode-se traçar uma linha divisória, que distingue dois momentos distintos na evolução desse modelo econômico, a partir de um acontecimento bem preciso: a crise cambial deflagrada em janeiro de 1999, logo no início do segundo Governo FHC. Esse fato implicou a mudança da política econômica e um ajuste político-econômico do modelo, com implicações importantes para a sua dinâmica macroeconômica. Analisar a política econômica do Governo Lula, a partir dessa percepção, significa distinguir, de um lado, o primeiro Governo FHC (1995/1998) – período mais duro de implantação do novo modelo, no qual a dominância do capital financeiro, no interior do bloco de poder dominante, pode ser qualificada como inconteste e estrita -; e, de outro, o segundo * Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia/Brasil (UFBA). Atualmente é bolsista da CAPES, realizando estágio Pós-Doutoral na Universidade Paris-XIII.

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BLOCO DE PODER E POLÍTICA ECONÔMICA NO GOVERNO LULA

(Versão Preliminar)

Luiz Filgueiras*

“Havia uma grande dúvida se o PT era um

partido de esquerda, e o governo Lula acabou sendo um

governo extremamente conservador... A visão era que o

Lula iria levar o país para uma linha socialista. O sistema

financeiro estava tensionado, mas, como ele [Lula] ficou

conservador, agora está para ganhar novamente a eleição

e o mercado está tranqüilo… Não tem diferença do ponto

de vista do modelo econômico. Eu acho que a eleição do

Lula ou do Alckmin é igual… Os dois são conservadores.

Cada presidente tem suas prioridades, mas dentro do

mesmo leque de premissas econômicas. Acho que o Lula

vai conservar a premissa de superávit primário, de metas

de inflação e tudo o mais. São evoluções que estão

consolidadas no Brasil e serão mantidas por qualquer

presidente.” (Olavo Setúbal – fundador do Banco Itaú ePresidente do Conselho Administrativo do Itaúsa,holding que controla este banco; em entrevista para ojornal Folha de São Paulo em 13/08/2006)

1- Introdução

Desde a implementação do Plano Real (1994), vive-se um processo de

aprofundamento, consolidação e ajuste de um mesmo modelo econômico (liberal-periférico),

que começou a se esboçar a partir do Governo Collor (1990/1992) e tomou sua forma mais

acabada no Governo Lula (2003/2006). No entanto, a política econômica e a dinâmica

macroeconômica – suas expressões mais aparentes e imediatas – não se mantiveram

exatamente as mesmas ao longo de todo o período (1994/2006).

Na verdade, pode-se traçar uma linha divisória, que distingue dois momentos distintos

na evolução desse modelo econômico, a partir de um acontecimento bem preciso: a crise

cambial deflagrada em janeiro de 1999, logo no início do segundo Governo FHC. Esse fato

implicou a mudança da política econômica e um ajuste político-econômico do modelo, com

implicações importantes para a sua dinâmica macroeconômica.

Analisar a política econômica do Governo Lula, a partir dessa percepção, significa

distinguir, de um lado, o primeiro Governo FHC (1995/1998) – período mais duro de

implantação do novo modelo, no qual a dominância do capital financeiro, no interior do bloco

de poder dominante, pode ser qualificada como inconteste e estrita -; e, de outro, o segundo

* Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia/Brasil (UFBA).Atualmente é bolsista da CAPES, realizando estágio Pós-Doutoral na Universidade Paris-XIII.

2Governo FHC (1999/2002) e o Governo Lula (2003/2006) – no qual a hegemonia do capital

financeiro persiste, mas com uma maior acomodação dos interesses de outras frações do

capital participantes do bloco de poder, especialmente os seus segmentos exportadores.

O presente texto tem por objetivo analisar exatamente esse processo, evidenciando a

linha de continuidade que vai do segundo Governo FHC ao Governo Lula, com a manutenção

do mesmo modelo econômico, da mesma política macroeconômica e, não

surpreendentemente, da mesma política social – em que pese algumas diferenças na política

externa e a explicitação de discursos políticos, em alguns momentos, distintos.

Do ponto vista estrutural, o que assegura, e explica, essa continuidade é a

permanência, ao longo de todo o período, do mesmo bloco de poder dominante, construído a

partir do inicio dos anos 1990 sob os escombros do Modelo de Substituição de Importações

(MSI) – bloco este que sofreu acomodações no começo do segundo Governo FHC, mas que

manteve como hegemônico, na sua direção política, o capital financeiro. Mas também foi

fundamental, para a ausência de mudanças significativas entre os dois governos, o processo

de “transformismo” político percorrido por Lula e pelas principais lideranças do Partido dos

Trabalhadores (PT).

Além dessa Introdução, o presente texto está estruturado em mais cinco seções. A

seção 2 explicita e analisa as características essenciais do modelo econômico, e de sua

política macroeconômica, demonstrando a linha de continuidade entre o segundo Governo

FHC e o Governo Lula. Na seção 3, essa mesma continuidade é identificada, e analisada, no

que concerne à política social dos dois governos, detalhando-se algumas das principais

características dessa política no Governo Lula. Posteriormente, a seção 4 trata da natureza e

composição do atual bloco de poder dominante, evidenciando a sua relação orgânica com o

modelo econômico financeirizado vigente e sua política macroeconômica. Na seção 5

apresentam-se as razões mais importantes que podem explicar porque o Governo Lula trilhou

o mesmo caminho daquele que o precedeu, dando uma nova legitimidade a um modelo

econômico – e a sua política macroeconômica – que, do ponto de vista político, ao final do

segundo Governo FHC, parecia estar em estado terminal. Por fim, na seção 6, especula-se

sobre as possíveis trajetórias de um segundo Governo Lula ou de um novo Governo do

PSDB/PFL, com destaque para as suas respectivas políticas e dinâmicas macroeconômicas. 1

1 Os dados utilizados no presente texto são das seguintes fontes de informação: IBGE, Banco Central, IPEA ,SEADE/DIEESE e do MDS; dizem respeito às contas externas, à evolução do PIB e do desemprego, às finançaspúblicas, às dívidas externa e interna, à pobreza e ao Bolsa-Família.

32- Política econômica e dinâmica macroeconômica desde o Plano Real

No Brasil, desde o Plano Real, a taxa de juros se constitui numa espécie de variável-

síntese para compreensão do país. Ela é, ao mesmo tempo, a expressão mais aparente – “a

ponta do iceberg” - da natureza financista do atual bloco de poder dominante e o elemento

central mais imediato de explicação dos principais problemas macroeconômicos, quais sejam:

1- as baixas taxas de crescimento do PIB e sua elevada volatilidade; 2- a grande concentração

de renda e o elevado grau de pobreza de sua população 3- a enorme dívida pública (de curto

prazo) comparada ao PIB e a reduzidíssima capacidade de investimento do Estado; e 4- o tipo

precário de inserção internacional do país e, por decorrência, a sua grande vulnerabilidade

externa.

Estes problemas, estreitamente relacionados entre si – alimentando-se reciprocamente

– têm em suas respectivas origens, como uma espécie de denominador comum, o modelo

econômico que vem sendo consolidado há doze anos e, mais particularmente, a política

macroeconômica adotada a partir de 1999 com a combinação de três elementos: metas de

inflação como o único objetivo da política monetária, ajuste fiscal permanente como

elemento central da política fiscal e um regime de câmbio flutuante, definido essencialmente

pelo mercado, como política cambial.

Nesse contexto, a alta taxa de juros se constitui no instrumento principal da política

macroeconômica, condicionando, decisivamente, as políticas fiscal e cambial, bem como os

seus resultados. Expressão de uma abertura econômico-financeira passiva e desregulada, o

seu manejo, tal como efetivado atualmente, sobrecarrega a dívida pública e impõe a

necessidade de um ajuste fiscal permanente; além de dificultar uma inserção comercial

internacional mais ativa do país.

Primeiro Governo FHC (1995/1998)

O Plano Real, assim como o seu antecessor (Plano Collor), e diferentemente de todos

os outros planos econômicos implementados na segunda metade da década de 1980 (Plano

Cruzado, Plano Bresser e Plano Verão), não se constituiu simplesmente em um plano de

estabilização monetária. Mais do que isso, ele combinou uma estratégia de combate à

inflação que teve como componente fundamental, de sua concepção e implementação, as

“reformas” estruturais de caráter liberal - além da mudança do padrão monetário do país e de

uma política macroeconômica de câmbio (quase) fixo.

O conjunto dessas reformas, iniciadas ainda no Governo Collor e aprofundadas no

primeiro Governo FHC, acabaram por conformar um novo modelo econômico, a partir de

profundas transformações em pelo menos quatro dimensões inter-relacionadas:

41- As relações capital/trabalho sofreram uma inflexão radical que, ao mudar a

correlação de forças a favor do primeiro, implicou a desestruturação do mercado de trabalho

e um processo generalizado de precarização do trabalho – cuja face mais visível é o

crescimento do desemprego aberto de caráter estrutural, o aumento da informalidade e o

enfraquecimento dos sindicatos.

2- A relação entre as distintas frações do capital foi reconfigurada, com o capital

industrial perdendo a sua condição de hegemonia política e de líder do processo de

desenvolvimento e da dinâmica macroeconômica. Em seu lugar assumiu o capital financeiro

– nacional e internacional - e uma fração do capital industrial que se financeirizou

organicamente.

3- A inserção internacional, feita de forma passiva, a partir da abertura comercial e

financeira da economia e tendo por objetivo imediato o combate à inflação, agravou a

vulnerabilidade externa do país, tornando a sua dinâmica macroeconômica mais dependente

dos ciclos do comércio internacional e dos movimentos de curto prazo do capital financeiro.

4- A estrutura e o funcionamento do Estado se redefiniram, através da privatização de

suas empresas e de várias reformas de caráter liberal - como a da previdência social e a

quebra do monopólio estatal do petróleo. Além disso, em virtude da lógica macroeconômica

intrínseca ao Plano Real, o Estado foi fragilizado financeiramente, perdendo completamente a

sua capacidade de investimento.

5- O sistema financeiro passou por um processo de concentração enorme e acentuou a

sua natureza parasitária, operando, essencialmente, no financiamento da divida publica. O

credito de longo prazo ao setor produtivo continuou sendo feito pelo próprio setor e por

instituições financeiras estatais - BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Além

disso, o montante total de crédito concedido por esse sistema ainda representa apenas 32,1%

do PIB, quando a média internacional está acima de 100% - em que pese ter crescido muito

durante o Governo Lula,

No que concerne à dimensão macroeconômica, no primeiro Governo FHC, a taxa de

juros elevada – juntamente com as privatizações das empresas estatais – se constituiu em

elemento-chave para assegurar a estratégia de combate à inflação utilizada pelo Plano Real,

apoiada na abertura comercial e financeira da economia e na sobrevalorização da moeda

nacional (o real). Portanto, uma política que articulou elementos estruturais e conjunturais

que, combinados, possibilitaram, ao mesmo tempo, o sucesso no combate à inflação (a sua

taxa, medida, por exemplo, pelo IGP-DI da FGV, caiu de 908% em 1994 para 1,8% em 1998)

e o aprofundamento e consolidação do modelo liberal-periférico (MLP).

5Durante esse período, a taxa de juros elevada (atingindo mais de 40% ao ano, quando

da crise do México) garantiu o equilíbrio (precário) do balanço de pagamentos, atraindo e

mantendo os fluxos de capitais internacionais necessários para compensar os crescentes e

elevadíssimos déficits na conta de transações correntes do país. As consequências dessa

estratégia para o crescimento, o emprego, o endividamento do país e as finanças públicas

foram dramáticas, configurando-se uma situação de estagnação econômica, vulnerabilidade

externa, fragilidade financeira do setor público e deterioração do ambiente político e social.

A dinâmica macroeconômica, decorrente do Plano Real e de sua política econômica,

teve como característica fundamental a extrema instabilidade, alimentada por sucessivos, e

crescentes, déficits na conta de transações correntes – financiados por capitais internacionais

de curtíssimo prazo que, mesmo com a atratividade de uma elevadíssima taxa de juros paga

pelos títulos do governo, provocaram sucessivas crises cambiais. A lógica dessa instabilidade

macroeconômica pode ser sintetizada da seguinte forma:

1- A abertura comercial e financeira, juntamente com a sobrevalorização do real,

derrubou a inflação; mas, em contrapartida, deram origem a crescentes déficits nas balanças

comercial e de transações correntes.

2- Para compensar esses déficits, e assegurar a manutenção do câmbio

sobrevalorizado, o governo oferecia títulos públicos com rendimento muito superior ao

oferecido pelos títulos do Governo dos Estados Unidos e, mesmo, bem acima da média

vigente no mercado financeiro internacional.

3- Com esse procedimento o governo estimulou o endividamento externo do setor

privado nacional, atraído pela possibilidade de ganhos com a arbitragem do diferencial das

taxas de juros externa e interna, e endividou o Estado, fragilizando-o, mais ainda,

financeiramente.

4- Além disso, a elevada taxa de juros praticada, estimulando o rentismo, deprimiu o

investimento produtivo e determinou uma taxa média de crescimento do PIB quase tão baixa

quanto à da década de 1980 (chamada pelos economistas de “perdida”), com implicações

diretas sobre o desemprego e a precarização do trabalho.

Assim, as sucessivas crises cambiais ocorridas, embora aparentemente vindas de fora,

originadas em outros países, de fato estavam inscritas e contidas potencialmente, desde

sempre, no interior da dinâmica decorrente do próprio Plano Real e da sua política

macroeconômica. Não havia possibilidade, por parte do governo, de acúmulo de reservas

internacionais “sadias”, não voláteis, que permitissem a sustentação do câmbio com o real

sobrevalorizado. Por isso, a tentação dos capitais voláteis em especular contra o real esteve

6presente todo o tempo, criando um ambiente de permanente instabilidade – numa situação

de abertura financeira e perda de controle da política econômica por parte do Estado.

Ao final do primeiro Governo FHC, o déficit acumulado da balança comercial

(1994/1998) chegou a atingir US$ 22,4 bilhões, enquanto o déficit acumulado em transações

correntes, no mesmo período, atingiu US$ 105,8 bilhões. Considerando-se apenas o ano de

1998, este último déficit foi de U$ 33,4 bilhões, correspondendo a 4,3% do PIB, quando em

1994 o mesmo era de US$ 1,8 bilhão. Essa situação insustentável desembocou na

desvalorização cambial de 1999, a partir da qual esses déficits iriam, então, se reduzir ano a

ano.

A vulnerabilidade externa e a fragilização financeira do setor público se expressaram

na grande elevação das dívidas interna e externa – do setor privado e do setor público. Apesar

do amplo processo de privatização realizado, que obteve em torno de US$ 88 bilhões, a

dívida externa cresceu de US$ 145,7 bilhões, em 1994, para US$ 241,6 bilhões em 1998;

enquanto a dívida pública, no mesmo período, aumentou de R$ 153,2 bilhões (30,4% do PIB)

para R$ 385,9 bilhões (41,7% do PIB).

Em quatro anos desse governo, o país sofreu três crises cambiais (1995, 1997 e 1998),

com ataques especulativos contra o real e fuga de capitais. Isso se refletiu em flutuações de

curto prazo, com reflexos nas taxas de crescimento do PIB, que além de muito pequenas,

foram, ao longo do período, se reduzindo, chegando em 1998 a 0,1% - já na ante-sala da crise

cambial de 1999. As conseqüências para as classes trabalhadoras foram dramáticas: elevação

das taxas de desemprego (de 14,3% para 18,2% na Região Metropolitana de São Paulo,

segundo a PED do SEADE/DIEESE), queda do rendimento médio real, precarização dos

postos de trabalho e insegurança generalizada.

Ao final do primeiro Governo FHC e começo do segundo, após quatro anos de

políticas liberais, aprofundamento do MLP e das crises cambiais do México (1994), dos

países asiáticos (1997), da Rússia (1998) e do Brasil (1999) ficou evidente, de forma cabal,

uma característica marcante e estrutural do modelo liberal periférico, qual seja: a sua

instabilidade congênita, que, como se verá a seguir, pode ser minorada, mas não superada. Na

sua forma mais “pura”, com predomínio absoluto do capital financeiro, só pode se manter nos

diversos países da América Latina – ainda assim com reiteradas crises arrasadoras – enquanto

durou o ciclo de privatizações das empresas públicas na região e os fluxos de capitais

internacionais foram abundantes.

7Segundo Governo FHC (1999/2002)

O segundo Governo FHC se iniciou com mais uma crise internacional, desta feita a

partir de uma crise cambial com origem no próprio Brasil. Os sucessivos e crescentes déficits

no conta de transações correntes deram origem a mais um ataque especulativo contra a moeda

nacional, que inviabilizou a manutenção da âncora cambial - apesar de uma enorme elevação

da taxa de juros – e implicou uma grande desvalorização do real frente ao dólar. A partir daí,

o modelo econômico sofreu alguns ajustes, mas a manipulação da taxa de juros (sempre em

níveis elevadíssimos), permaneceu como principal ferramenta da política macroeconômica.

Esses ajustes ocorreram a partir de uma mudança na estratégia de combate à inflação.

Em substituição à âncora cambial, adotou-se uma política de metas de inflação, um regime de

câmbio flutuante e uma política de ajuste fiscal permanente, com metas de superávit primário

acima de 3% do PIB.

Nessa nova estruturação da política macroeconômica, a manipulação da taxa de juros

é feita de forma a que a meta de inflação pré-estabelecida – sempre a níveis extremamente

baixos – seja cumprida. Como resultado, a taxa de juros continuou bastante alta,

impulsionando a especulação financeira e desestimulando o investimento produtivo, tendo

por consequência a manutenção de taxas de crescimento diminutas e altas taxas de

desemprego – agora também tendo como agravante a realização de elevados superávits

fiscais primários. Por outro lado, a taxa de juros elevada aumenta a divida publica e, esta, por

sua vez, tendo um perfil de curto prazo, exige uma taxa de juros elevada para que possa ser

financiada.

Na verdade, a taxa de juros elevada e o permanente ajuste fiscal se constituem, de

fato, em dois lados da mesma moeda: o impacto direto da primeira sobre a dívida pública, via

aumento do montante de juros pagos, dificulta a sua redução absoluta e relativa (dívida /PIB),

reafirmando a necessidade da continuação do ajuste fiscal. A realização definitiva deste, por

sua vez, é tida como uma condição fundamental para a redução da taxa de juros sem

comprometimento das metas de inflação estabelecidas. O resultado final desse círculo

vicioso, além de uma grande elevação da carga tributária - para compensar o baixo

crescimento do PIB, que limita a arrecadação do Estado-, é a manutenção permanente de uma

taxa de juros elevada e de grandes superávits fiscais. Ambos com impactos deletérios sobre o

crescimento, o emprego e a distribuição de renda.

Para os críticos do MLP e dessa política macroeconômica, a queda da taxa de juros é a

condição primeira para se romper esse circulo vicioso, pois reduziria os encargos da divida

publica, estimularia o crescimento econômico e aumentaria a receita do Estado. Com isso, os

8superávits primários seriam reduzidos, liberando-se recursos para o investimento e os gastos

sociais. Mas, como será visto a seguir, a redução da taxa de juros para níveis compatíveis

com o investimento produtivo não é nada trivial, porque significa atingir um dos pilares MLP

no Brasil.

O regime de câmbio flexível, por sua vez, funciona como uma espécie de pára-choque

(precário) em relação à instabilidade do mercado financeiro, mas à custa de uma grande

volatilidade da taxa de câmbio, que passa a ser determinada de forma especulativa pelo

diferencial dos juros interno e externo e a expectativa de valorização do real – com efeitos

diretos sobre a instabilidade das taxas de crescimento.

Do ponto de vista do balanço de pagamentos, a desvalorização cambial, no início do

segundo Governo FHC, reduziu o déficit da balança comercial num primeiro momento

(1999/2000), principalmente em virtude da redução das importações, e implicou,

posteriormente, na obtenção de superávits crescentes, com a aceleração do crescimento das

exportações (2001/2002). A partir daí, e já no Governo Lula, esses superávits cresceram de

forma impressionante, dando saltos sucessivos, impulsionados por uma nova desvalorização

do real - motivada por outra crise cambial ocorrida em 2002 – e tendo como circunstância

determinante mais geral uma conjuntura internacional muito favorável para as exportações de

commodities agrícolas e industriais dos países periféricos. Além do crescimento da

competitividade de alguns setores de bens comercializáveis, em particular, o agronegócio –

como consequência do processo de reestruturação produtiva.

Ao final do 2o Governo FHC, já era visível a recuperação da balança comercial: o seu

déficit, que atingiu US$ 6,6 bilhões em 1998, reduziu-se para US$ 1,2 bilhão em 1999 e U$

0,7 bilhão em 2000, transformando-se em superávits de US$ 2,7 bilhões em 2001 e U$ 13,1

bilhões em 2002! A conta de transações correntes, por sua vez, que chegou a ter um déficit de

mais de US$ 33 bilhões em 1998, chegou em 2002 com um déficit bem menor, de US$ 7,6

bilhões. Como conseqüência desses movimentos, o déficit comercial acumulado do primeiro

Governo FHC (US$ 22,4 bilhões), transformou-se num superávit acumulado de US$ 13,9

bilhões, enquanto o déficit acumulado em transações correntes (US$ 105,8 bilhões) se

reduziu para US$ 80,5 bilhões – com reflexos sobre a dívida externa, que se reduziu de R$

241,6 bilhões para US$ 227,7 bilhões. Em contrapartida, cresceram as remessas de juros e

lucros e dividendos, que passaram de um total acumulado de US$ 55,8 bilhões (primeiro

Governo FHC) para US$ 74,7 bilhões (segundo Governo FHC) – variação esta quase toda

associada ao crescimento do montante de juros remetidos.

9A dívida pública, no entanto, apesar da aprovação da “Lei de Responsabilidade

Fiscal” e da obtenção de elevados superávits fiscais primários (R$ 165,3 bilhões acumulados

em quatro anos), chegou a R$ 881,1 bilhões, passando de 41,7% do PIB em 1998 para 55,5%

ao final de 2002. Duas grandes desvalorizações cambiais, uma em 1999 e outra em 2002,

juntamente com as elevadas taxas de juros praticadas pelo Banco Central – que variaram

entre entre 15,25% e 45% ao ano, esta última estabelecida quando da crise cambial do início

do governo -, foram as responsáveis pelo seu crescimento nesse período.

Por fim, as taxas de crescimento do PIB e do PIB per-capta foram mais reduzidas

ainda, quando comparadas com as do 1o Governo; com exceção do ano 2000, nos outros três

anos essas taxas ficaram abaixo de 2% em cada um deles. Com isso, as taxas de desemprego

continuaram a crescer, chegando a mais de 19% na Região Metropolitana de São Paulo.

A importância assumida pelas exportações a partir do 2º Governo FHC – com seus

efeitos multiplicadores sobre o mercado interno e o conjunto da economia -, não mudou, no

essencial, o MLP, apenas tornou a sua dinâmica macroeconômica menos instável e atualizou

a dependência externa do país. O dito (grande) capital produtivo – industrial e agrícola -, em

tese, oposto ao capital especulativo, além de já estar também financeirizado, passou a fazer

parte, de modo mais orgânico, da dinâmica macroeconômica do modelo, tornando-se uma de

suas peças fundamentais: passou a ser gerador das divisas necessárias à remuneração do

capital financeiro, garantida em primeira instância pela rolagem da dívida pública com altas

taxas de juros e pela política fiscal de obtenção de grandes superávits fiscais primários. Em

suma, para remunerar o capital financeiro, não basta a obtenção de elevados superávits

primários na moeda nacional, é necessário que os mesmos possam se transformar em dólares

para ingressarem no circuito financeiro mundial.

Nessas novas circunstâncias, a dinâmica do mercado interno passou a depender, cada

vez mais, das exportações e dos fluxos financeiros internacionais, que condicionam, e mesmo

subordinam, as políticas econômicas adotadas. Com tudo isso, se inviabiliza, de novo,

qualquer possibilidade (séria) de distribuição da propriedade e da renda, restando o caminho

político de uma pseudo distribuição através da utilização de políticas sociais compensatórias

focalizadas.

Governo Lula (2003/2006)

O Governo Lula manteve a mesma política econômica do segundo Governo FHC –

metas de inflação, ajuste fiscal permanente e câmbio flutuante -, com o agravante de ter

aumentado os superávits fiscais primários para mais de 4,25% do PIB (4,3% em 2003, 4,6%

em 2004 e 4,8% em 2005). O círculo vicioso, alimentado por taxa de juros elevada e

10permanente ajuste fiscal, continuou em pleno movimento - mantendo-se baixas e voláteis

as taxas de crescimento do PIB (0,6% em 2003, 4,9% em 2004 e 2,3% em 2005) e elevadas

as taxas de desemprego – que aumentaram no primeiro ano de governo (19,9%) e, depois,

recuaram um pouco, estando hoje em 16% da população economicamente ativa. No entanto,

essa redução do desemprego foi acompanhada pela criação de postos de trabalho precários: a

maioria com rendimentos de até 1,5 salário mínimo, com destaque para o emprego

doméstico.

A evolução medíocre do nível do produto e do emprego é particularmente

impressionante porque ela ocorreu apesar da existência de uma conjuntura internacional

bastante favorável, principalmente a partir de 2003. Isto significa dizer que o desempenho

macroeconômico seria pior ainda se não houvesse o impulso proveniente do mercado

externo, uma vez que este vem se constituindo na única fonte de dinamismo da economia,

tendo em vista o arrocho fiscal (R$ 306,6 bilhões de superávit primário acumulado até julho

de 2005), o reduzido nível de investimento (em torno de 20% do PIB) e a quase estagnação

do consumo das famílias.

Mais recentemente, esse consumo foi impulsionado pelo crédito consignado às

pessoas físicas – trabalhadores e, mais especificamente, funcionários públicos e aposentados

e pensionistas da previdência social -, no qual o montante referente à amortização e ao

pagamento dos juros (com taxas de 40% ao ano, apesar do risco ser praticamente nulo para os

bancos)- é retirado diretamente dos salários dos trabalhadores, através de débito automático

nas folhas de pagamento das empresas e do governo. Entretanto, este mecanismo está se

esgotando rapidamente, em razão do ritmo muito lento de crescimento da renda, pois as

pessoas estão atingindo o limite de endividamento – como resultado, a inadimplência voltou a

crescer.

No entanto, a mudança na situação do balanço de pagamentos, com os crescentes

superávits comerciais ultrapassando, a partir de 2004, os déficits estruturais da balança de

serviços e rendas, tornando, assim, a conta de transações correntes superavitária, reduziu

conjunturalmente – e no plano estritamente comercial – a vulnerabilidade externa da

economia brasileira. Com isso, ao contrário de crises cambiais sucessivas, como as ocorridas

nos dois Governos FHC, o que se vem observando é um processo de valorização cambial que

reforça o combate à inflação - impulsionado por uma taxa de juros básica que chegou a ser de

26,5% ao ano no início do governo e que, ainda hoje, continua muito elevada (14,25 % ao

ano), alimentando a especulação financeira e atraindo um grande fluxo de capitais de curto

prazo.

11Nos primeiros três anos do Governo Lula os superávits da balança comercial

cresceram rapidamente, dando saltos impressionantes (US$ 24,8 bilhões em 2003, US$ 33,6

bilhões em 2004 e US$ 44,8 bilhões em 2005) – empurrados pela nova desvalorização

cambial de 2002, o crescimento das economias americana e chinesa, que puxaram o comércio

mundial, a recuperação da Argentina e a disparada dos preços das commodities. Com isso, o

déficit em transações correntes, que chegou a atingir US$ 33,4 bilhões (4,3% do PIB) em

1998, e que já vinha se reduzindo durante o 2o Governo FHC, transformou-se em sucessivos

superávits: US$ 4,2 bilhões em 2003, US$ 11,7 bilhões em 2004 e US$ 14,2 bilhões em

2005, respectivamente, 0,8%, 1,9% e 1,8% do PIB.

Esse desempenho do setor externo significou, no período, um superávit comercial

acumulado de US$ 103,2 bilhões e um superávit acumulado na conta de transações correntes

de US$ 30, 2 bilhões (contra déficits acumulados de US$ 105,8 bilhões e US$ 80,5 bilhões,

respectivamente, no primeiro e segundo governos de FHC). No entanto, a conta de serviços e

rendas - estruturalmente deficitária -, após ter tido uma diminuta redução no segundo

Governo FHC, estabilizando-se em torno de US$ 25 bilhões, voltou a se deteriorar no

Governo Lula, atingindo US$ 34,1 bilhões em 2005. Essa evolução implicou um déficit

acumulado, até 2005, de US$ 82,8 bilhões e se deveu, fundamentalmente, ao crescimento da

remessa de lucros e dividendos. Isto significa que o equilíbrio da conta de transações

correntes e, por extensão, do balanço de pagamentos, depende, cada vez mais, de crescentes

superávits na balança comercial.

Esse excepcional desempenho das exportações – com seus efeitos multiplicadores

para o mercado interno – não foi suficiente para evitar uma taxa média de crescimento do PIB

(2,7%) muito próxima à do governo anterior. Esse crescimento medíocre do PIB, muito

semelhante ao do Governo FHC, torna-se mais evidente quando se considera que, ao longo

desse período, a taxa média de crescimento do PIB dos países da América Latina e Caribe foi

maior do que a do Brasil: 2,0% contra 0,6% em 2003, 5,9% contra 4,5% em 2004, 4,5%

contra 2,3% em 2005 e 4,6% contra 3,5% para 2006 (estimativa) - em virtude, também, em

menor ou maior grau, do aumento de suas exportações2. Portanto, é importante destacar, que

esse movimento de transformação de déficits em superávits nas balanças comerciais dos

países latino-americanos e, mais recentemente, a obtenção de taxas de crescimento um pouco

maiores, é um fenômeno geral dos chamados “países emergentes” – que se beneficiam da

fase ascendente do ciclo do comércio internacional.

2 O mesmo ocorreu com o PIB per-capta: respectivamente, 0,5% contra –0,9% em 2003, 4,4% contra 3,4% em2004 e 3,0% contra 0,9% em 2005.

12Na área fiscal, apesar da obtenção de superávits primários enormes (US$ 306,3

bilhões acumulados até julho 2005, contra US$ 165,3 bilhões do governo anterior), a dívida

pública cresceu de R$ 881,1 bilhões (55,5% do PIB) para mais de um trilhão de reais (50,5%

do PIB). Essa redução relativa, de apenas cinco pontos percentuais como proporção do PIB,

coloca em questão, claramente, o benefício dessa política fiscal - principalmente em se

considerando que essa redução foi produto apenas da diminuição da dívida externa líquida do

setor público, propiciada por grandes superávits da balança comercial e pelo crescimento das

reservas cambiais (de US$ 37,8 bilhões ao final de 2002 para US$ 53,8 bilhões atualmente).

Em sentido contrário, a dívida interna líquida cresceu mais R$ 390,9 bilhões, atingindo

51,2% do PIB (um aumento de 10 pontos percentuais em relação a dezembro 2002). Portanto,

qualquer reversão na situação internacional, que piore o balanço de pagamentos do país,

poderá fazer subir rapidamente, de novo, o total da dívida pública como proporção do PIB –

com o seu montante absoluto dando um grande salto.

De um ponto de vista mais estrutural, o Governo Lula recolocou na ordem do dia a

continuação das reformas liberais - implementando uma reforma da previdência dos

servidores públicos, iniciando o processo para uma reforma sindical e sinalizando para uma

reforma das leis trabalhistas. Além disso, logo no início do governo, alterou a Constituição,

para facilitar, posteriormente, o encaminhamento da proposta de independência do Banco

Central. E, mais recentemente, aprovou a lei de falências e a lei das chamadas parcerias

público-privado (PPP), com o intuito de desencadear uma nova fase das privatizações, agora

abarcando a infra-estrutura do país – uma vez que a política de superávits primários reduz

drasticamente a capacidade de investir do Estado.

Em resumo, o Governo Lula, com a mesma política econômica do governo anterior e

sem mudar a natureza passiva da inserção internacional do país, mas com uma conjuntura

internacional muito favorável, vem obtendo resultados expressivos na balança comercial –

apesar do processo de apreciação cambial reiniciado em setembro de 2004 – com a taxa de

câmbio evoluindo de R$ 3,00 para R$ 2,15 atualmente. Essa valorização do real, que deriva

da manutenção de um diferencial grande entre as taxas de juros interna e externa e vem

servindo de reforço, no curto prazo, no combate a inflação, tem uma contrapartida perigosa:

ela reduz a competitividade das exportações – que não se explicita imediatamente nas contas

do balanço de pagamentos em razão da conjuntura favorável do comercio internacional.

Essa situação conjuntural bastante favorável da área externa, em que pese um

desempenho interno medíocre, tem lhe possibilitado manter intocável o modelo econômico,

nas suas características fundamentais. Além disso, lhe permite, também, administrar mais

13facilmente eventuais contradições no interior do bloco de poder e defender, agora

abertamente, uma política econômica que estava completamente desacreditada ao final do

segundo Governo FHC.

Todavia, a implementação dessa política econômica - determinada pela dominância da

lógica financeira nos âmbitos político, econômico e social -, além de implicar uma quase

estagnação da renda per-capta e do mercado interno, trás com ela uma armadilha fatal no

médio e longo prazo: ela perpetua a inserção internacional do país, apoiada, essencialmente,

em produtos industriais com baixo e médio conteúdo tecnológico, intensivos em trabalho e

recursos naturais - mantendo o país em uma situação de grande vulnerabilidade em relação

aos ciclos do comércio internacional. A elevada taxa de juros, além de impulsionar o círculo

vicioso que justifica o permanente ajuste fiscal e estar na origem da quase estagnação do

mercado interno, torna extremamente difícil, senão impossível, a transição para um outro tipo

de inserção internacional – apoiada em produtos de maior conteúdo tecnológico e com

demanda em expansão no mercado mundial. Em sentido contrario, a pauta de importações

concentrada em produtos de média e alta tecnologia, além da ausência de uma política

industrial ativa, agrava mais ainda a situação.

Isto significa que, do ponto de vista estrutural, a política econômica reforça um padrão

de especialização produtiva que tende a distanciar o Brasil, ainda mais, dos países

desenvolvidos e mesmo de outros países periféricos – como a China, a Coréia do Sul, a Índia,

etc. – deixando-o para trás no comércio internacional. E mais, significa também que a

vulnerabilidade externa, do ponto de vista estrutural, está se aprofundando; e isto ocorre não

apenas em virtude do fosso tecnológico que tende a se alargar cada vez mais.

Apesar da melhora conjuntural do balanço de pagamentos e, consequentemente, dos

indicadores de vulnerabilidade financeira externa – derivados da balança comercial e da conta

de transações correntes -, esta também tem se aprofundado estruturalmente em virtude do

crescimento do passivo externo líquido da economia brasileira, principalmente através do

aumento dos investimentos de portfólio e do montante de capitais de curto prazo.

Em síntese, o Governo Lula não moveu um milímetro para alterar a essência do

modelo de desenvolvimento, caracterizado, sobretudo, pela dominação da lógica financeira –

juntos, o segundo Governo FHC e o Governo Lula, propiciaram ao capital financeiro um

montante de mais de um trilhão de reais de juros da dívida pública e pagaram, com os

superávits primários, R$ 468,9 bilhões (correspondendo a 8% e 8,2% do PIB,

respectivamente, no segundo Governo FHC e no Governo Lula, e a 25% dos gastos totais do

Estado atualmente). Mais recentemente, seguindo essa mesma lógica, as exportações foram

14liberadas da cobertura cambial, com a internalização de suas receitas passando a ser

condicionada, de forma especulativa. pelas mesmas variáveis que determinam a taxa de

câmbio: o diferencial das taxas de juros interna e externa e a expectativa de valorização

cambial

Um modelo com um padrão de distribuição de renda de enorme desigualdade,

reduzidas taxas de crescimento, uma inserção internacional passiva e grande vulnerabilidade

externa. Assim, o Governo Lula reafirmou a política econômica herdada do governo anterior

e, apoiado no melhor desempenho conjuntural do setor externo, deu um novo fôlego ao

modelo, legitimando-o politicamente e soldando mais fortemente os interesses das diversas

frações de classes participantes do bloco de poder dominante.

3- A política social do Governo Lula

A linha de continuidade entre os dois governos, como seria de se esperar, também se

expressou na área social. Nos dois casos, a política social foi estruturada a partir de

programas focalizados de combate à pobreza – tal como preconizados pelo Banco Mundial.

Esse tipo de política tem limites dados, necessariamente, pelo modelo de desenvolvimento

vigente e se articula funcionalmente a ele como uma espécie de contra-face da política

macroeconômica ortodoxa - cujos pilares, como já se viu, são ajustes fiscais calcados em

enormes superávits primários e estabelecimento de metas de inflação cada vez mais

reduzidas. Daí o seu caráter seletivo e restrito, expresso em programas focalizados de

transferência de renda, de caráter assistencialista, em que pese os discursos dos governos em

contrário, e tendo por objeto os segmentos sociais mais miseráveis entre os pobres.

Esse casamento, entre políticas econômicas ortodoxas e políticas focalizadas de

combate à pobreza, vem acompanhado (de fato ou ainda em intenção) da redução das

políticas publicas universais; a lógica é de que o Estado deve dirigir suas ações para os mais

pobres e miseráveis - conforme o estabelecimento de uma linha de pobreza minimalista,

empurrando os demais para a contratação de serviços no mercado (saúde, educação e

previdência, principalmente).

Desse modo, e em contra-partida, essa mesma lógica libera recursos financeiros para

serem direcionados para o pagamento da divida publica, através da obtenção de elevados

superávits fiscais primários. Esses superávits, obtidos sistematicamente a partir do segundo

Governo FHC, vieram acompanhados de uma elevação da carga tributaria de 8 pontos

percentuais (de 29% para 37% do PIB). Em suma, há uma brutal transferência de renda do

conjunto da sociedade para o capital financeiro e os rentistas, em particular dos rendimentos

15do trabalho para o capital em geral e dos rendimentos do "capital estritamente produtivo"

(pequenos e médios) para os grandes grupos econômicos financeirizados.

Do ponto de vista político, realiza-se uma espécie de aliança informal (ou, no mínimo,

uma identidade de interesses) entre o grande capital, os miseráveis atendidos pelas políticas

focalizadas e um novo tipo de classe média ainda em formação no Brasil, assentada na

informalidade de alta renda (certas camadas de trabalhadores autônomos). A consequência é

o esvaziamento do trabalho assalariado garantido que, juntamente com a existência de uma

concorrência feroz no âmbito dos pequenos e médios empresários, tem reduzido a dimensão e

a importância econômica de antigas camadas da classe média - de assalariados e pequenos

proprietários.

Do ponto de vista social, toda essa lógica se completa com o processo de

flexibilização/precarização do trabalho, com a retirada de direitos sociais e trabalhistas

universais, em particular saúde, educação e previdência social - através das reformas

trabalhista, previdenciária e universitária. Em suma, embora, em si mesmas, essas políticas de

combate à pobreza reduzam, momentaneamente, as carências das populações mais

miseráveis, as mesmas estão, de fato, inseridas numa lógica mais geral liberal e num

programa político conservador e regressivo socialmente, próprios da nova fase por que passa

o capitalismo sob hegemonia do capital financeiro3.

Aqui também, na política social, o Governo Lula aprofundou o modelo herdado do

governo anterior, levando-o às suas últimas consequências. De fato, os programas sociais

focalizados, tanto do ponto de vista dos montantes transferidos quanto do número de famílias

atingidas, assumiram uma dimensão nunca antes vista. Mais do que o Governo FHC, que deu

início a este tipo de política, Lula levou a sério a importância político-social das mesmas no

que se refere a sua função "amortecedora" de tensões sociais no conjunto do projeto liberal; e

este é o seu objetivo essencial, pois não inclui de forma estrutural e permanente, mas apenas

funcionaliza a pobreza - mantendo em permanente estado de insegurança, indigência e

dependência o seu publico alvo, permitindo, assim, a sua manipulação política para objetivos

estranhos aos seus reais interesses.

A relação política estabelecida é direta – presidente/eleitor -, sem mediação de

partidos ou outras instituições da democracia formal, uma das características de todos os tipos

3 Na verdade, esses programas, podem também, eventualmente, ser implementados num outro contexto, nointerior de um outro modelo econômico e com um outro bloco de poder – numa perspectiva claramenteemergencial e articulados com políticas estruturais –, mas aí, embora ainda dirigidos a uma parcela específica dasociedade, eles perderiam o seu caráter focalizado tal como concebidos em sua origem liberal.

16de populismo. As pesquisas de opinião pública da atual eleição para presidente da república

mostraram que, entre os eleitores que participam do bolsa-família, o percentual de intenção

de voto no candidato Lula da Silva ultrapassava, significativamente, o percentual de intenção

daqueles que não participam. Com a apuração do primeiro turno das eleições, constatou-se

uma larga vantagem de Lula em todos os estados do nordeste, região que mais recebe,

proporcionalmente, os benefícios dos programas de transferência de renda..

Especificamente, o Bolsa Família unificou, num único programa, os programas

sociais focalizados já existentes no Governo FHC (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e

Auxílio Gás) e o Cartão Alimentação (do Fome Zero). Este último programa, lançado com

grande publicidade no início do governo, não conseguiu decolar. Depois de muita confusão e

do fracasso da tentativa de sua operacionalização, a unificação realizada a partir do Bolsa-

Família proporcionou mais facilidade no controle dos recursos e dos beneficiários e maior

agilidade de operação.

O programa tem como público potencial (recentemente alcançado) 11,2 milhões de

famílias (53 milhões de pessoas) com renda per-capta mensal de até R$120,00 (até há pouco

tempo esse limite era de RS$ 100,00). Aquelas consideradas extremamente pobres, com

renda mensal de até R$ 60,00 (anteriormente RS$ 50,00), podem participar do Programa

independentemente de sua composição. Por sua vez, as famílias consideradas pobres, com

renda mensal per-capta entre R$ 60,01 e R$ 120,00 (anteriormente entre RS$ 50,01 e RS$

100,00), podem participar do programa desde que tenham gestantes, nutrizes e crianças e

adolescentes entre 0 a 15 anos. As do primeiro grupo recebem uma complementação de renda

no valor de R$ 50,00 e as do segundo grupo no valor de R$ 15,00 por filho, até o máximo de

R$ 45,00 (três filhos). Como as do primeiro grupo podem acumular os dois tipos de

benefício, os valores pagos pelo Bolsa-Família variam de R$ 15,00 a R$ 95,00.

Em suma, as famílias participantes do programa (orçamento de R$ 8,4 bilhões em

2006) recebem uma complementação de renda de acordo com a sua renda per-capta e o seu

número de crianças. Atualmente o benefício médio pago, por família, é de R$ 65,00. Este

valor por família “retira” da pobreza uma parcela muito pequena de famílias. Segundo a

PNAD de 2004, considerando todos os programas de transferência de renda do governo (em

todos os níveis), 7 milhões de pessoas “cruzaram” a linha de pobreza e, assim mesmo,

retornariam à condição anterior, imediatamente, caso os programas fossem suspensos.

O programa não se configura como renda mínima, pois além de não ser universal,

também não é constitucional e nem seu valor guarda relação com as necessidades mínimas

reais de sobrevivência da família e das pessoas (o salário mínimo, de acordo com o DIEESE,

17deveria ser, atualmente, em torno de R$ 1.600 para uma família de quatro pessoas, o que

daria uma renda mínima per-capta de R$ 400).

O Bolsa Família se constitui, de fato, numa política assistencialista e clientelista e,

portanto, manipulativa do ponto de vista político, em particular em se tratando do seu publico

alvo: uma massa de miseráveis desorganizada e sem experiência associativa e de luta por seus

direitos. A renda por ele transferida às famílias não se constitui num direito social da

cidadania, podendo ser reduzida e/ou retirada a qualquer momento, ao sabor dos interesses de

cada governo - bem ao gosto da política fiscal liberal-ortodoxa, que não concorda com

nenhuma vinculação orçamentária entre receita e despesa; com exceção, obviamente, do

pagamento dos juros da divida publica (a lei de "Responsabilidade Fiscal" tem exatamente

esse objetivo).

Por outro lado, o investimento social universais, que atingem o conjunto da população

tem se reduzido, afetando dramaticamente um enorme contingente da população que é pobre

e tem todo tipo de carências, mas que não se beneficia dos programas focalizados porque têm

uma renda acima daquela estipulada pela linha de pobreza. Essa população defronta-se,

cotidianamente, com a deterioração dos serviços públicos. E aqui são necessárias três

observações: 1- as linhas de pobreza são estipuladas a partir de um nível de renda

extremamente baixo, como condição para que os recursos transferidos sejam muito limitados

- por exemplo: em 2005, o valor total destinado ao Bolsa-Família foi de, mais ou menos, R$ 6

bilhões de reais, enquanto a previdência social rural (de forma constitucional e permanente)

destinou R$ 17 bilhões aos trabalhadores rurais aposentados - tendo eles contribuído ou não

quando em atividade - e os juros do capital financeiro atingiram mais de R$ 150 bilhões de

reais; 2- a classe média, no geral (inclusive parte da chamada classe média baixa), há tempos

supre no mercado suas necessidades (em particular com escolas e planos de saúde privados),

não fazendo uso desses serviços ofertados de forma precária pelo Estado; 3- a decadência da

classe media tradicional não está associada à transferência de recursos para os miseráveis

mas, fundamentalmente, decorre da desestruturação do mercado de trabalho (desemprego,

nova informalidade e precarização), das privatizações de empresas publicas e do arrocho

salarial, especialmente no setor publico.

Uma outra vertente (secundária) da política social, também bem ao gosto do Banco

Mundial, são os programas de micro-crédito, dirigidos a determinados segmentos sociais

pobres (mas não miseráveis), com o objetivo de integrá-los ao mercado. No entanto, como é

praxe no Brasil, são extremamente limitados e não têm maior relevância; na verdade, são

dirigidos para atividades tradicionais (precárias) que acabam não conseguindo se auto-

18sustentar na competição intercapitalista. Em suma, esses programas também não

conseguem incluir de forma permanente e estrutural.

Em resumo, a política social do Governo Lula, tal como a sua política econômica, é

também de natureza liberal, coerente com o modelo econômico vigente e serve de

instrumento poderoso de manipulação política de uma parcela significativa da sociedade

brasileira, ao mesmo tempo que permite um discurso "politicamente correto" da parte do

capital financeiro, do projeto liberal e de seus governos.

Na verdade, as políticas sociais compensatórias, através da implementação de

programas de transferência de renda assistencialistas - cimento de um novo tipo de

populismo, regressivo -, estão possibilitando a construção de uma nova base de apoio ao

Governo Lula; tendo em vista a tendência do descolamento desse governo de suas bases

sociais tradicionais (os segmentos de trabalhadores mais organizados e politizados), bem

como a dificuldade em controlar politicamente esses trabalhadores. Como já visto, essa nova

base está assentada no segmento da população de mais baixa renda do país – “os mais pobres

entre os pobres”. Do ponto de vista financeiro, conforme já se viu, o montante global de

recursos direcionados a esses programas é relativamente pequeno, mas a sua amplitude já

atinge um grande contingente de pessoas (concentradas principalmente no Nordeste e em

pequenas cidades).

4- A natureza do bloco de poder dominante

A formação do atual bloco de poder dominante foi resultado de um longo processo,

que se iniciou com a crise do MSI no começo dos anos 1980, prosseguiu com a

implementação inicial das reformas liberais nos primórdios dos anos 1990 (Governo Collor),

avançou com a consolidação dessas reformas durante os dois Governos FHC e, enfim, mais

recentemente, chegou ao seu estágio mais avançado durante o Governo Lula – que deu maior

coesão política a esse bloco de poder, reduziu significativamente os seus opositores e

enfraqueceu sensivelmente a capacidade de mobilização dos movimentos sociais e sindical.

Esse processo, que culminou com a afirmação do projeto político liberal e a

construção de um novo modelo econômico, redefiniu as relações políticas entre as classes e

frações de classes que constituíam a sociedade brasileira. A vitória desse projeto expressou,

ao mesmo tempo em que estimulou, um movimento de transnacionalização dos grandes

grupos econômicos nacionais (produtivos e financeiros) e seu fortalecimento no interior do

bloco dominante, além de exprimir, também, a fragilidade financeira do Estado e a

subordinação crescente da economia brasileira aos fluxos internacionais de capitais.

19Assim, nessa nova configuração, faz parte da fração hegemônica do bloco

dominante4: o capital financeiro5 internacional - expresso na movimentação dos fundos de

pensão, dos fundos mútuos de investimentos e dos grandes bancos dos países desenvolvidos -

; os grandes grupos econômico-financeiros nacionais6, que conseguiram sobreviver, até aqui,

ao processo de globalização, em função de sua capacidade competitiva ou através da

associação (subordinada) com capitais estrangeiros; e o capital produtivo multinacional

(associado ou não ao capital nacional); todos eles tendo aumentado suas respectivas

influências no bloco dominante.

As demais frações do bloco dominante, situadas numa posição subordinada, são os

grandes grupos econômicos, não financeirizados organicamente, e os grandes e médios

capitais que têm uma maior “especialização” no processo de acumulação: agronegócio,

indústria, comércio ou serviços, estando voltados para o mercado externo e/ou interno.

Aqui é importante distinguir entre a lógica financeira - que se constitui na lógica mais

geral do capital, desde sempre, e que caracteriza a atual fase do desenvolvimento capitalista

em escala nacional e internacional, imprimindo, de forma dominante, a dinâmica do modo de

produção e influenciando as mais diversas esferas das sociedades e dimensões da vida social

4 Na formulação gramsciana, a classe ou fração de classe hegemônica é aquela que ocupa/exerce o lugar/funçãomais estratégico(a) e decisivo(a) no modo de acumulação num determinado período histórico e, a partir de seusinteresses específicos – econômicos e políticos -, consegue soldar organicamente (compatibilizar) os interessesdas demais frações do capital, de forma que a sua dominação é aceita (consentida) por estas últimas. Quando afração de classe hegemônica consegue também expressar e articular os interesses das frações de classessubalternas, essa hegemonia se estabelece sobre o conjunto da sociedade, obtendo-se, assim, um consenso.Segundo Gramsci, quando isso ocorre, o grupo social hegemônico afirma sua capacidade de liderança e direçãopolítica, intelectual e moral. Como se verá adiante, uma das dificuldades do projeto neoliberal, sob o comandodo capital financeiro, está, justamente, na incapacidade de transformar sua dominação em hegemonia, isto é, deconstruir um consenso para além do bloco dominante, incorporando os grupos sociais subalternos da sociedade.5 O conceito de capital financeiro possui duas versões clássicas. A de Hilferding, formulada em 1910 a partir darealidade alemã e situada no campo marxista, afirma que esse capital é produto da fusão/integração (aliançaorgânica) entre o capital bancário e o capital industrial, com a dominação do primeiro; ele é a expressão maiorda fase monopolista e imperialista do capitalismo, que se iniciou no último quarto do século XIX. A outraconcepção, de viés heterodoxo, elaborada em 1906 e referenciada na realidade inglesa, é a de Hobson; nela, ocapital financeiro surge a partir da constituição de uma solidariedade de interesses financeiros da comunidade denegócios, que articula o capital industrial e o capital bancário, sem, contudo, haver, necessariamente, umafusão/integração orgânica. Essa teorização, embora mais ampla que a anterior, também define uma dominaçãogeral (não orgânica) do capital bancário. No presente texto, a noção adotada, de capital financeiro, é mais geraldo que as duas mencionadas anteriormente; refere-se à fração do capital que se reproduz, fundamentalmente, ouprincipalmente, na esfera financeira, no âmbito da acumulação fictícia, podendo assumir várias formasinstitucionais - não excluindo, portanto, as duas possibilidades anteriores.6 Esses grandes grupos econômico-financeiros nacionais além de atuarem diretamente na esfera financeira, sefazem presentes também em outras esferas (atividades econômicas) da acumulação: agricultura, indústria,comércio e serviços; embora possam estar mais focados em alguma delas em particular – o que depende muitoda origem inicial das atividades do grupo e do seu poder de diversificação. Quando necessário,internacionalizaram-se, associando-se e fundindo-se com capitais estrangeiros, em uma ou mais atividades dogrupo; e transnacionalizaram-se, expandindo suas atividades para outros países. Os seus lucros são realizadostanto no mercado interno quanto no externo (exportação).

20– das formas institucionais assumidas pelo capital financeiro, que definem os sujeitos que

comandam concretamente esse processo, articulando os mais diversos interesses, a partir do

domínio, controle e propriedade de instituições financeiras.

Desse modo, embora todos os grupos econômicos e as frações do capital estejam,

hoje, financeirizados – no sentido de estarem subordinados à lógica financeira e aplicarem

seus excedentes no mercado financeiro, em particular nos títulos da dívida pública -, apenas

aqueles que se articulam organicamente com a esfera financeira, através do controle e

propriedade de uma ou mais instituições financeiras, são os sujeitos fundamentais dessa

lógica, que subordina inclusive o Estado, a política econômica e social e a ação política em

geral. Apesar da maioria dos grandes grupos econômicos, no Brasil, não estar ligada,

organicamente, ao capital financeiro – através de um banco ou outro tipo de instituição

financeira de propriedade do grupo -, esses grupos também se beneficiam da especulação e

do financiamento da dívida pública, ganhando também com as elevadas taxas de juros.

Adicionalmente, o projeto liberal e a sua política têm como importante aliado a classe

média alta: “novos ricos” que participam ativamente da especulação financeira e rejeitam

qualquer coisa parecida com um Estado de Bem-Estar Social, do qual não se beneficiariam -

pois ajudariam a financiá-lo com impostos, mas não fariam uso de seus serviços. Esse

segmento é formado por executivos de empresas, certos segmentos de profissionais liberais, a

alta burocracia governamental, uma nova intelectualidade identificada com os valores e

hábitos forâneos e um pequeno grupo de consultores e trabalhadores autônomos altamente

qualificados, ocupados em atividades econômicas recém surgidas e típicas dos novos

paradigmas tecnológicos. Um segmento social que se beneficiou com a abertura comercial e

também com as altas taxas de juros e que, ao descobrir os padrões de consumo próprios dos

países desenvolvidos, e a ele ter acesso, se deslumbrou e se sentiu incluído no primeiro

mundo.

Desse modo, é evidente que o domínio da lógica financeira na dinâmica das relações

econômico-sociais é, exatamente, o elemento que dá coesão a esse bloco dominante,

soldando os interesses dos seus distintos participantes e apoiadores. Por isso, a taxa de juros

hoje no Brasil não se resume, simplesmente, a um instrumento clássico de política monetária;

é muito mais do que isso. Além de ser uma “ferramenta” a ser utilizada conforme cada

conjuntura econômica específica, ela se constitui em um elemento fundamental que estrutura

e, ao mesmo tempo, expressa, as relações de classe e de poder - configuradas num poderoso

bloco político dominante.

21Isto significa que a disputa política travada hoje no Brasil, a propósito do nível da

taxa de juros – adequado ao desenvolvimento do país -, não se resume apenas à melhor forma

de manipular, conjunturalmente, um instrumento usual da política monetária, ou mesmo à

pertinência ou não de se redefinir o conjunto da política macroeconômica. Além disso, e mais

essencial – evidenciado nas seções anteriores do texto -, o que está em jogo é a mudança, ou

não, do modelo econômico atual, com as suas correspondentes políticas macroeconômicas e

sociais, que tem por condição prévia, indubitavelmente, a derrota política, ou a reafirmação,

do atual bloco de poder dominante.

Após a crise cambial de 1999, no início do segundo Governo FHC, o bloco dominante

sofreu uma pequena acomodação entre as forças políticas que o constituem: os segmentos

exportadores do grande capital ganharam mais relevo, em virtude da importância da atividade

para o equilíbrio das contas externas e, por consequência, para o pagamento, em dólar, dos

rendimentos do capital financeiro.

Essa acomodação ficou mais clara a partir do Governo Lula, quando dois dos seus

representantes ocuparam dois ministérios importantes, o da agricultura e o do

desenvolvimento. A fase ascendente do ciclo do comercial internacional facilitou a nova

situação, pois garantiu a rentabilidade dos exportadores mesmo com a valorização cambial

que vem ocorrendo desde setembro de 2004 – valorização esta resultante, principalmente, da

manutenção da taxa de juros em nível elevado, o que garante também a rentabilidade do

capital financeiro. No entanto, é importante destacar que o conflito (latente) entre essas duas

frações do capital se expressa, exatamente, no manejo da taxa de juros e da taxa de câmbio,

que a atual conjuntura internacional favorável ameniza.

5- O transformismo do Partido dos Trabalhadores e o Governo Lula

O Governo Lula, em todas as esferas – econômica, social, política e ética – se

apresentou, para a grande maioria das pessoas que acompanham minimamente o processo

político brasileiro, como uma grande surpresa - no limite, completamente inimaginável. De

fato, as trajetórias do PT e do candidato - orgânica e historicamente articuladas aos

movimentos sociais, ao movimento sindical e à esquerda anti-stalinista, que sobreviveu ao

período da ditadura militar (1964/1985) - e a firme oposição político-institucional,

comandada por esse partido, ao projeto e às políticas liberais, não pareciam apontar, de

nenhum modo, para um “transformismo” político tão rápido e amplo como o que se assistiu.

Mesmo durante o processo eleitoral de 2002, a composição político-partidária (já

bastante ampliada), que deu a vitória a Lula, trabalhou as contradições de dentro do bloco

22dominante ainda fazendo uma crítica dura ao capital financeiro e defendendo

vigorosamente o capital produtivo, inclusive dando expressão política e visibilidade a este

último com a presença de um industrial de grande porte na posição de candidato a vice-

presidente7. E isto ocorreu apesar da famosa “Carta aos Brasileiros” assinada pelo candidato

– que assegurava ao capital financeiro o respeito aos contratos estabelecidos pelo governo

anterior.

Entretanto, como já se viu, uma vez constituído, o Governo Lula deu prosseguimento

à política econômica implementada pelo segundo Governo FHC, desde a crise cambial de

janeiro de 1999, reforçando o modelo econômico financeirizado. Lula e a aliança política que

o elegeu – adaptando as suas ações, o seu programa e a sua política aos limites da disputa das

diversas frações do capital -, mantiveram em primeiro plano os interesses e a política

econômica do capital financeiro; mas, na mesma linha do segundo Governo FHC, acenou

também para a importância das exportações para a redução da vulnerabilidade externa e, por

consequência, para uma menor instabilidade da dinâmica macroeconômica.

À esquerda do espectro político, os críticos mais contundentes desse transformismo

não têm dúvida em identificar nesse processo, corretamente, uma traição política jamais vista

em toda história do Brasil - de grande dimensão e longa repercussão. Entretanto, para se

entender o que ocorreu com o PT e o Governo Lula deve-se perceber que, para além de se

concordar, ou não, com identificação de uma traição por parte de Lula e das direções

partidárias, o que parece ser uma mudança brusca - repentina e inesperada -, foi, na verdade,

produto de um processo; o mesmo que levou à vitória político-ideológica do neoliberalismo

no Brasil. Assim como essa vitória não foi resultado de um big-bang (o Governo Collor) , o

transformismo do PT e de lideranças partidárias e sindicais também não o foi; na verdade, em

lugar de servir de explicação, a traição (ou qualquer outra qualificação que se queira dar) é

que carece de ser explicada - enquanto um dos elementos de um processo muito maior e mais

complexo, que culminou em uma grande derrota para as forças populares do país.

Desse modo, o primeiro passo, nessa direção, é reconhecer que a reestruturação

produtiva e as políticas liberais mudaram o perfil e a composição das classes trabalhadoras no

Brasil: houve uma redução do peso relativo dos assalariados e dos trabalhadores industriais,

tendo como contrapartida o crescimento da informalidade, com uma maior fragmentação da

classe trabalhadora. Em resumo, uma maior fragilidade e heterogeneidade da classe

trabalhadora e, portanto, uma menor identidade entre os seus diversos segmentos, com

7 A ênfase no capital produtivo também foi a estratégia adotada pelo candidato do PSDB, não havendo aínenhuma diferença entre as diversas candidaturas, tanto no primeiro quanto no segundo turno das eleições.

23redução de sua capacidade política de pressão e negociação. Isto tudo se deu em razão da

desestruturação do mercado de trabalho, acompanhada por um processo de

desregulamentação das relações trabalhistas, que levou ao crescimento do desemprego e ao

aprofundamento da precarização do trabalho e das formas de contratação (cooperativas,

terceirização, etc.).

Adicionalmente, assistiu-se também ao empobrecimento/enfraquecimento de

segmentos da “classe média” assalariada associada ao antigo MSI – em razão do desemprego

e da queda do rendimento -, em particular trabalhadores com maiores rendimentos, atingidos

pelo processo de reestruturação das empresas, e os assalariados de carreira do setor público,

atingidos pelas reformas administrativa e previdenciária, além do arrocho salarial decorrente

da política de obtenção de elevados superávits ficais primários.

Todas essas transformações atingiram também, em cheio, a esquerda e as

organizações representativas dos trabalhadores, em especial os sindicatos e o Partido dos

Trabalhadores. O ponto de inflexão foi a vitória de Collor nas eleições de 1989 – mesmo ano

da derrocada do socialismo real -, que empurrou os movimentos sociais e trabalhistas, a partir

de então, para a defensiva e foi responsável por um lento, mas permanente, movimento de

transformação político-ideológica da maior parte de suas direções, no sentido de restringir a

sua atuação política aos limites dos espaços que a nova ordem lhes reservava.

Assim, gradativamente, o movimento sindical combativo - cuja expressão maior era a

CUT - encolheu-se e passou a adotar uma estratégia defensiva – economicista e fragmentada

corporativamente - de adaptação à nova ordem; estratégia essa denominada,

eufemísticamente, de propositiva ou de resultados.

Concomitantemente, o PT, com o aprofundamento de sua institucionalização – com

vitórias eleitorais em municípios e estados importantes -, iniciou a escalada progressiva que o

transformaria num partido da ordem. Para isso, teve que passar por transformações internas

fundamentais, com uma enorme centralização das decisões e o enquadramento das suas

tendências mais à esquerda pela tendência majoritária (Articulação), reduzindo o espaço de

debates, formulações e questionamentos, cuja expressão maior foi a destruição dos núcleos de

base que formavam o Partido. Agora, pode-se ver, claramente, que, de eleição em eleição

(1989, 1994, 1998 e 2002), o Partido foi se transformando politicamente, se configurando

como um enorme aparelho burocrático - instrumento eficiente de ascensão econômico-social,

através da geração de emprego, prestígio e proximidade com o poder econômico. Isto se

refletiu diretamente no financiamento das campanhas eleitorais, nos programas de Governo

apresentados, nos discursos falados, nas alianças político-eleitorais efetivadas e, mesmo, nas

24formas de recrutamento e de fazer as campanhas – com a substituição, gradativa, de

militantes por cabos eleitorais remunerados.

Nesse quadro, de dominância da ideologia neoliberal, mas incapacidade hegemônica

do projeto a ela associado, assiste-se a uma crise das instituições políticas e de representação

política (dos sindicatos e partidos), que é decorrente do processo objetivo de redefinição da

composição da classe trabalhadora, mas também de cooptação político-institucional de

parcela majoritária das direções sindicais e partidárias - acentuada com a chegada ao governo

do PT. Essa cooptação serve de anteparo para o governo na sua relação com os movimentos

sociais e o movimento sindical (basta observar no que se transformaram as manifestações do

dia 1o de maio organizadas pela CUT e as demais centrais sindicais).

Essa crise de representação é fortemente alimentada pelo Governo Lula, ao realizar o

amálgama entre governo, partido e sindicato, na mais pura tradição stalinista (“fora de

lugar”), de aparelhamento do Estado e transformação das organizações de massa em “correias

de transmissão” do governo. O comportamento subserviente da CUT, a partir do Governo

Lula, e a indicação do seu Presidente para ocupar o cargo de Ministro do Trabalho, são

exemplos paradigmáticos desse fenômeno

Os partidos, em particular o PT, se “estatizam”, acentuando um processo de

profissionalização que já vinha ocorrendo muito antes da eleição de Lula – no sentido de seus

quadros “viverem” da política, com a cooptação político-ideológica através da ocupação de

cargos e funções no aparelho de Estado e no próprio partido. O militante ideológico

tradicional perde espaço no partido e reproduzem-se e renovam-se os traços fundamentais

característicos da relação dos setores dominantes com o Estado, qual seja, o patrimonialismo,

o clientelismo e o empreguismo – com o crescimento da importância de um segmento social

específico, que já vinha se constituindo e consolidando durante a década de 1990, cuja

característica maior de seus integrantes é o fato de serem gestores/administradores de fundos

públicos e de fundos de pensão de empresas estatais, ao mesmo tempo em que têm forte

influência na CUT e no PT, confundindo-se com a burocracia e o corpo de funcionários

dessas organizações.

Desse modo, a crise da democracia representativa formal, produto da incapacidade

histórica da burguesia se tornar hegemônica, bem como a imposição da ‘via única’ para o

desenvolvimento do capitalismo no Brasil, também ajudam a entender a natureza do Governo

Lula e a explicar o transformismo do PT e de seus principais quadros dirigentes. Ao não

conseguir se constituir em um Partido claramente socialista – uma vez que a sua dubiedade

político-ideológica foi uma constante -, as sucessivas vitórias eleitorais para prefeituras de

25municípios e governos de estados, num momento de fragmentação e enfraquecimento

político das classes trabalhadoras, o transformaram, aos poucos, em mais um Partido da nova

ordem liberal. A vitória para a Presidência da República apenas explicitou, de forma bastante

clara e, para muitos, dolorosa, a conclusão desse processo.

Com o abandono do programa histórico do PT, de caráter social-democrata-nacional-

popular, e com a manutenção do programa e das políticas liberais, o Governo Lula evitou

enfrentamentos com o bloco dominante, governando com e para ele. Portanto, nem de longe,

está se vivendo uma fase de transição pós-neoliberal, mas sim um ajustamento/consolidação

do modelo liberal – que, por um lado, tem possibilitado uma maior unidade política do bloco

dominante, isto é, tem reduzido o atrito no seu interior e, por outro, tem aprofundado as

divergências políticas no interior das classes trabalhadoras – em especial no que concerne ao

comportamento das direções sindicais e dos movimentos sociais frente à avaliação do

governo e de suas políticas econômico-sociais.

Na verdade, o Governo Lula vem expressando, num sentido político mais abrangente

e não imediato, uma tentativa de constituição de uma hegemonia burguesa com significado

amplo, isto é, que além de procurar soldar ainda mais as diversas frações do capital, busca

obter o consentimento das classes trabalhadoras para um projeto (discurso) “social-liberal-

desenvolvimentista”. Mas essa tentativa tem fôlego curto, porque o modo de acumulação

vigente não permite um crescimento sustentável – demanda interna reprimida, forte

concentração da renda, crédito caro e reduzido investimento publico e privado - e nem é

capaz de contemplar os interesses dos distintos segmentos de trabalhadores, embora no curto

prazo dificulte, sobremaneira, a rearticulação e retomada dos movimentos sociais e do

movimento sindical, de forma independente e combativa, no sentido da construção de um

outro projeto.

Em suma, da lógica financeira e da natureza concentradora e excludente do modo de

acumulação resulta a incapacidade/impossibilidade estrutural de o projeto liberal tornar-se

hegemônico, isto é, de incorporar, parcialmente, as demandas mais significativas das classes

trabalhadoras, em particular dos seus segmentos organizados; restando-lhe, assim, articular

de forma precária, e marginalmente, uma massa pauperizada e desorganizada, através das

políticas sociais focalizadas e de caráter assistencialista.

Daí a necessidade do Governo Lula de tentar controlar politicamente os movimentos

sociais e sindical, através da cooptação – material e ideológica - das suas direções, com o

objetivo de reduzir as tensões e impedir a sua autonomia, dificultando, assim, as ações de

26mobilização e construção de um projeto democrático-popular alternativo ao do bloco

dominante.

Como conseqüência desse processo, desde o Governo Collor, vem se acentuando a

balcanização do Estado (expressão da redução da autonomia relativa do Estado frente aos

interesses imediatos dos setores dominantes), com as distintas frações do capital se

apoderando abertamente de segmentos do aparelho estatal.

Com o Governo Lula, o capital financeiro manteve o controle sobre o Ministério da

Fazenda e o Banco Central, exigindo a independência legal deste último – uma vez já a tendo

conquistado na prática. A partir dessa duas instituições determina a política econômica e

controla a execução do orçamento federal, subordinando as ações do Estado nas demais

áreas. No limite, se necessário, ameaçam desestabilizar econômica e politicamente o pais. O

agronegócio e os interesses exportadores, por sua vez, apoderaram-se do Ministério da

Agricultura e do Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Exterior, a

partir dos quais defenderam, e conseguiram aprovar, a liberação dos transgênicos na

agricultura e medidas compensatórias para o câmbio valorizado.

De outro lado, o Governo Lula renovou o patrimonialismo e o empreguismo na

relação do governo com as direções dos partidos - que compõem a sua base de apoio - e os

dirigentes sindicais; especificamente, diretorias dos fundos de pensão das empresas estatais

(PREVI, PETRUS e FUNCEF) e conselhos dos bancos oficiais - com destaque para o Fundo

de Amparo ao Trabalhador (FAT) do BNDES - foram ocupadas por sindicalistas e

funcionários do Partido dos Trabalhadores, com poder de decisão sobre o direcionamento de

vultuosos montantes financeiros.

Por fim, as sucessivas crises do Governo Lula, de caráter ético-moral, são, na

realidade, a ponta do iceberg; de fato, o centro dessas crises é sempre político e se refere à

fragilidade e irrelevância da democracia representativa no contexto liberal, no sentido de não

conseguir encaminhar os interesses das classes trabalhadoras. Essa realidade se explicita de

modo mais visível na balcanização do Estado, no crescimento da autonomia relativa do

sistema político – descolando-se das suas bases de representação - e na profissionalização

explícita da atividade política.

Do ponto de vista do bloco dominante, a disputa entre o PT e o PSDB expressa uma

competição política para saber quem conduz, articula e sintetiza melhor, os interesses das

diversas frações da burguesia – soldando-os e tornando-os mais compatíveis entre si8. No

8 Do ponto de suas respectivas bases sociais, o PT, apesar das transformações por que passou, ainda tem umabase popular e uma militância, embora já bastante reduzida, articulada – associadas ao movimento sindical e aos

27entanto, do ponto de vista político mais imediato, e além de divergências menores e

interesses particulares conjunturais –, esses partidos se diferenciam, hoje, pelo grau e a forma

como defendem o MLP: com o PSDB representando um fundamentalismo liberal mais

orgânico/ideológico e o PT com uma atuação mais pragmática e ainda com um discurso de

esquerda desenvolvimentista – cada vez mais difícil de ser sustentado, descambando para a

“defesa genérica dos pobres” e fortemente apoiado nos programas de transferência renda. No

entanto, no PSDB também se encontra uma ala menos financista – que procura mitigar a

hegemonia do capital financeiro com um discurso a favor da produção. Além disso, o “modus

operandi” de ambos, no fundamental, já não se diferencia; o financiamento das campanhas, o

nepotismo e a ocupação patrimonialista do Estado, as relações fisiológicas como balizador

dos acordos e as relações utilitaristas com os grandes grupos econômicos se constituem em

um padrão geral desses partidos e dos profissionais da política em geral.

6- As perspectivas do Segundo Governo Lula ou do retorno do PSDB/PFL

As circunstâncias econômicas internacionais muito favoráveis, vigentes durante todo

o Governo Lula, começam a dar sinais de esgotamento. A conjuntura de grande liquidez

internacional e o ciclo ascendente do comércio, que favoreceu enormemente as exportações

de todos os países da periferia, inclusive o Brasil, estão ameaçados pelo impacto que poderá

provocar a desaceleração da economia americana, ainda mais se considerando os seus efeitos

sobre a economia da China. Caso isso se materialize (cenário mais provável?), qualquer que

venha a ser o futuro governante do Brasil, as fragilidades do MLP reaparecerão com toda a

força, evidenciando os limites, mais uma vez, da sua política macroecômica.

Os efeitos sobre a economia brasileira e a resposta das autoridades econômicas são

conhecidos. A desaceleração do comércio mundial terá um impacto imediato sobre o valor

das exportações, com a redução das quantidades exportadas e a queda dos preços das

commodities agrícolas e industriais. A redução dos saldos da balança comercial, e por

consequência, da conta de transações correntes, implicará um aumento da dependência com

relação ao fluxos de capitais internacionais – necessários para o equilíbrio do balanço de

pagamentos. Como essa situação será a regra dos países periféricos, as taxas de juros exigidas

pelos capitais de curto prazo – e com tendência de buscar proteção nos títulos do governo

americano - tenderão a se elevar, provocando, em cadeia, um aumento das taxas de juros

domésticas. Em resumo: reaparecerá a vulnerabilidade externa da economia brasileira –

movimentos sociais -; o PSDB é, claramente, um partido de segmentos sociais mais elevados, sem militância debase orgânica.

28mascarada até aqui pelos grandes saldos obtidos atualmente no comércio exterior -, agora

também explicitada pelo seu lado comercial e reforçada pelo lado financeiro.

O crescimento da vulnerabilidade externa, num quadro de redução dos saldos da

balança comercial e elevadas taxas de juros, será acompanhado de uma aceleração do

crescimento da dívida externa e interna, que tornará ainda mais débil os efeitos da política de

elevados superávits primários – evidenciando-se, mais uma vez, que o problema fundamental

da fragilidade financeira do Estado se localiza na própria dívida pública.

Por outro lado, a desaceleração do crescimento (já muito reduzido), provocada pela

elevação da taxa de juros, dificultará mais ainda a obtenção dos superávits primários – em

razão da redução das receitas tributárias do Estado e do crescimento dos gastos obrigatórios

com a seguridade social. A face mais perversa do processo será o crescimento do desemprego

e da pobreza, bem como uma maior transferência de renda para os rentistas.

Em suma, as circunstâncias internacionais favoráveis, até aqui, não foram

aproveitadas, pelo Governo Lula, para reduzir estruturalmente a vulnerabilidade externa do

país. Muito pelo contrário, embalado por elevados superávits comerciais, manteve o MLP

intacto, abrindo ainda mais a conta financeira do balanço de pagamentos.

Como das outras vezes, o futuro governo – Lula ou Alckmin – buscará a saída da crise

elevando, de novo, a taxa de juros para níveis estratosféricos, o que implicará em maior

fragilidade do setor público e mais ajuste fiscal. Como a carga tributária já está muito elevada

e o investimento público praticamente já não existe, restará, dentro do modelo, o corte de

despesas correntes, com uma maior desvinculação entre receita e despesa (um maior

percentual para a DRU) e… novas reformas liberais: trabalhista e outra da previdência social,

com redução de direitos sociais e trabalhistas. Ou seja, dentro do MLP, o caminho de saída da

crise será sempre no sentido de seu maior aprofundamento, uma eterna fuga para frente. Não

há escolha alternativa; até que venha uma nova crise.

Caso esse cenário se materialize, qualquer que seja o governo, haverá uma enorme

probabilidade de ser um governo de crise, como foi o segundo Governo FHC. Mas as razões

para essa possibilidade vão além das circunstâncias econômicas. A origem imediata da

instabilidade, em ambos os casos, terá como pano de fundo, o agravamento do processo, já

em curso há alguns anos, de enfraquecimento e desmoralização das instituições democráticas

formais – partidos e parlamento. Além disso, o resultado apertado das urnas restringirá a

representatividade e a autoridade política do futuro governo. Contudo, além dessas razões

comuns, há outras mais específicas associadas a cada um dos possíveis governos.

29No caso de um Governo Lula, em razão da completa desfiguração do Partido dos

trabalhadores (PT), a sua base política deverá ser constituída de forma ainda mais precária e

fisiológica do que foi até agora. Pautado em acordos pontuais pragmáticos – com partidos e

personagens tradicionalmente parasitas do Estado – o governo tenderá a ter uma trajetória

errática. As alianças político-eleitorais realizadas nos estados no primeiro turno, e as que

estão sendo anunciadas pelo próprio presidente Lula para o segundo turno, confirmam

antecipadamente o que deverá ser o comportamento de um futuro Governo Lula. Os apoios já

anunciados, de Collor e Maluf (ambos muito bem votados), são exemplares dessa tendência.

Em resumo: o crescimento do “lulismo” gerará uma grande instabilidade política –

maior do que a do primeiro Governo -, com o posicionamento do governo flutuando entre o

centro e a direita do espectro político, ao sabor da conjuntura mais imediata. Nesse cenário,

de mais restrições orçamentárias, maior desemprego e queda da renda, haverá uma tendência

dos movimentos sociais e dos sindicatos para pressionar o governo, passando por cima das

lideranças que conseguiram, até aqui, “blindar” o Governo Lula e segurar a insatisfação

política em nome da governabilidade e de futuras mudanças.

No caso de um Governo Alckmin, o cenário, provavelmente, não deverá ser muito

diferente, conforme já se viu nos dois Governos FHC. A relação com o Congresso Nacional

continuará a ser feita de forma oportunista, preservando o “toma lá dá cá”- e sempre no

intuito de aprofundar, a qualquer preço, as reformas liberais. Ademais, haverá uma tendência

para a reconstituição de uma oposição de esquerda mais vigorosa e aguerrida, com a

retomada dos movimentos sociais, o surgimento de novas lideranças e a oscilação política das

atuais lideranças vinculadas ao lulismo.