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A Reforma Sindical do Governo Lula Flávio Tonelli Vaz Pluralidade sindical e autonomia privada para os acordos trabalhistas Uma análise da Emenda Constitucional que modificou a Justiça do Trabalho e da Proposta de Reforma Sindical O Governo Federal pretende enviar ao Congresso Nacional, em março, a sua proposta de reforma sindical. Considerada uma reforma estrutural, essa proposta foi discutida no Fórum Nacional do Trabalho – FNT. Segundo a mensagem presidencial (a), busca-se "um novo paradigma nas relações sindicais" e "é, na verdade, o primeiro passo para um amplo reordenamento jurídico-institucional do sistema de relações de trabalho, que do ponto de vista normativo deverá envolver o direito sindical, a legislação do trabalho, os órgãos de administração pública do trabalho, a Justiça do Trabalho e o direito processual do trabalho". A implementação da reforma começa com modificações no texto constitucional. E são, basicamente, dois os blocos de alterações: nas disposições relativas às relações sindicais, que integram os direitos coletivos, e na parte dispositiva sobre a Justiça do Trabalho, especialmente quanto à sua competência. Basicamente, essas alterações instituem a pluralidade sindical e a liberdade de negociação coletiva, restringindo a competência da Justiça aos conflitos sobre os cumprimentos dos contratos de trabalho coletivos ou individuais. As discussões sobre essa matéria são complexas, envolvem interesses diversos e, é preciso ressaltar, as mudanças nas relações sindicais são a base para as reformas trabalhistas. Assim, é urgente buscar compreender o conteúdo e o seu significado. Será preciso um grande esforço para assegurar que as mudanças promovidas pela Reforma Sindical estejam

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A Reforma Sindical do Governo Lula

Flávio Tonelli Vaz

Pluralidade sindical e autonomia privada para os acordos trabalhistas

Uma análise da Emenda Constitucional que modificou a Justiça do Trabalho e da Proposta de Reforma Sindical

O Governo Federal pretende enviar ao Congresso Nacional, em março, a sua proposta de reforma sindical. Considerada uma reforma estrutural, essa proposta foi discutida no Fórum Nacional do Trabalho – FNT. Segundo a mensagem presidencial (a), busca-se "um novo paradigma nas relações sindicais" e "é, na verdade, o primeiro passo para um amplo reordenamento jurídico-institucional do sistema de relações de trabalho, que do ponto de vista normativo deverá envolver o direito sindical, a legislação do trabalho, os órgãos de administração pública do trabalho, a Justiça do Trabalho e o direito processual do trabalho".

A implementação da reforma começa com modificações no texto constitucional. E são, basicamente, dois os blocos de alterações: nas disposições relativas às relações sindicais, que integram os direitos coletivos, e na parte dispositiva sobre a Justiça do Trabalho, especialmente quanto à sua competência. Basicamente, essas alterações instituem a pluralidade sindical e a liberdade de negociação coletiva, restringindo a competência da Justiça aos conflitos sobre os cumprimentos dos contratos de trabalho coletivos ou individuais.

As discussões sobre essa matéria são complexas, envolvem interesses diversos e, é preciso ressaltar, as mudanças nas relações sindicais são a base para as reformas trabalhistas. Assim, é urgente buscar compreender o conteúdo e o seu significado. Será preciso um grande esforço para assegurar que as mudanças promovidas pela Reforma Sindical estejam integralmente identificadas com o fortalecimento da estrutura sindical e em defesa dos interesses dos trabalhadores. Já o anteprojeto de lei que regulamentará as alterações constitucionais trazem detalhes sobre a organização da pluralidade sindical, sobre o direito de greve e as relações dos sindicatos com o Estado, com a criação do Conselho Nacional das Relações de Trabalho.

O fortalecimento das entidades sindicais não é um processo simples ou instantâneo, nem as negociações coletivas serão de imediato suficientes para valorizar o trabalho e recuperar o poder de compra dos salários. Sem a proteção mínima da lei e da Justiça, sem políticas econômicas e setoriais voltadas para a geração de emprego e distribuição de renda, os trabalhadores dificilmente reverterão a precária situação em que se encontram.

Essa nota analisa o anteprojeto de emenda à Constituição divulgado pelo Ministério do Trabalho e do Emprego (b) e sua conexão com as Reformas Trabalhista e do Judiciário, utilizando como instrumentos as discussões e as versões de anteprojeto de regulamentação da reforma construídas a partir das discussões no Fórum Nacional do Trabalho.

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O teor desta nota é de responsabilidade de Flávio Tonelli Vaz, assessor técnico na Assessoria da Liderança do PCdoB, e não expressam necessariamente a opinião do Partido Comunista do Brasil ou de seus deputados.

(a) Mensagem ao Congresso Nacional de 2005.(b) A proposta de emenda Constitucional e de projeto de lei estão www.fnt.mte.gov.br

– versão de fev/2005.

1. Os principais pontos da reforma sindical: pluralidade e negociação

Nas relações sindicais, as principais mudanças alteram a estrutura sindical:

a) fim da unicidade, criando um modelo com pluralidade da estrutura sindical em todos os seus níveis;

b) a negociação coletiva em todos níveis, como principal instrumento de regulação dos direitos trabalhistas – instituindo um cenário de “autonomia privada coletiva” e “estimulando a composição voluntária dos conflitos”;

c) a legitimação para que as entidades sindicais de grau superior participem das negociações coletivas; hoje federações e confederações somente celebram acordos e participam de dissídios com autorização dos sindicatos, que têm participação obrigatória – essa alteração é uma demanda das centrais;

d) a especificação de critérios de representatividade e democratização interna dessas entidades; e

e) novos mecanismos de financiamento da estrutura sindical, com o fim do imposto sindical e de “qualquer recurso de natureza parafiscal para o custeio dessas entidades”.

Há muitas divergências quanto a esses pontos, e também quanto ao processo de sua implementação – a começar pelo fim da unicidade sindical. A reforma constrói uma pluralidade nem sempre sustentada pela filiação direta dos trabalhadores; admite a existência de entidades dotadas de exclusividade de representação; mas essa faculdade é uma regra de transição, somente as entidades pré-existentes à reforma podem candidatar-se a essa prer-rogativa, as regras para alcançar essa exclusividade são difíceis, exigindo elevado índice de sindicalização, e deverão ser mantidas, podendo ser constantemente contestadas.

A negociação sindical, com o fim do poder normativo da Justiça do Trabalho, passa a ser o principal instrumento de regulação dos direitos trabalhistas. Nas versões anteriores da regulamentação, existia um comando que determinava que, havendo contradições entre a legislação e a matéria acordada, prevaleceria sempre a disposição mais favorável ao trabalhador. Esse dispositivo foi suprimido na redação atual. A mensagem fala na criação de uma “autonomia privada

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coletiva”, porque a lógica que impera na reforma é exatamente ampliar o poder negocial das entidades, suprimindo em parte até mesmo as restrições legais. Essa é a razão pela qual a reforma sindical é a principal base para a reforma trabalhista.

A reforma passa a exigir critérios de representatividade para a concessão e manutenção da personalidade sindical. Mas, além da representatividade determinada pela filiação direta dos trabalhadores, as entidades de grau superior (Centrais, confederações e federações) podem também criar outras entidades, as chamadas “entidades orgânicas”.

Um ponto importante e positivo desta reforma é a exigência de democratização interna para as entidades sindicais. No entanto, na proposta de regulamentação, ela está restrita às entidades com exclusividade de representação. A democratização interna deveria ser uma exigência para todas as entidades sindicais e não um ônus da exclusividade de representação.

2. As principais mudanças na Justiça do Trabalho: composição voluntária de conflitos

As modificações na Justiça do Trabalho têm instrumentos diversos. Parte já ocorreu, com a Emenda Constitucional n.° 45 (promulgada em 8/12/2004). Há ainda a proposta de emenda constitucional remanescente (com as modificações já aprovadas no Senado Federal, que agora tramitam na Câmara dos Deputados - PEC n.° 29, de 2000) e as outras mudanças estão propostas pelo Executivo na mesma Proposta de Emenda Constitucional da reforma sindical.

A parte já promulgada da reforma da Justiça do Trabalho não foi elaborada no âmbito do FNT, mas as votações finais ocorreram no Senado Federal já durante esse governo (c). E há contradições evidentes entre o texto promulgado e as discussões no Fórum.

Embora os debates sobre a Reforma do Judiciário tenham sido centrados na transparência (criação do controle externo, etc.) e na busca da celeridade (súmula vinculante, súmula impeditiva de recurso, etc.), ela também estabeleceu novas disposições fundamentais quanto à competência da Justiça do Trabalho. Somente no campo dos direitos dos trabalhadores, suprimiu-se o poder normativo da Justiça do Trabalho e ainda restringiu-se a capacidade de solucionar conflitos, condicionando o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica ao comum acordo entre trabalhadores e empregadores.

Convalida-se, assim, a determinação de direcionar as demandas, individuais e ou coletivas, para a via negocial ou arbitral. À Justiça do

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Trabalho restariam demandas específicas, filtradas pelas Comissões de Conciliação Prévia, ou ações individuais ou coletivas diante de descumprimento de cláusulas negociais.

Afastar a Justiça do Trabalho da decisão sobre questões substanciais dos contratos segue a lógica de fortalecer a natureza das negociações coletivas, enquanto negócio entre partes privadas, como agentes que atuam no mercado, igualmente dotados de força e vontade. Ou seja, na prática, modifica o histórico conceito do trabalho como pólo hipossuficiente em suas relações com o capital.

O governo – em sua mensagem de abertura dos trabalhos do Congresso – fala em “eleger a boa-fé como fundamento do diálogo social e da negociação coletiva”. Mas, neste cenário de desemprego, informalidade e de pequeno grau de organização sindical, ainda falta muito para que os trabalhadores possam combater as iniqüidades, a concentração de renda, os baixos salários, escudando-se na boa-fé do capital.

O que agrava o efeito dessas modificações na Justiça do Trabalho (o fim do dissídio e do poder normativo) é que elas nem mesmo estarão acompanhadas da instituição dos novos modelos de negociação coletiva e de arbitragem pública e privada – que a reforma sindical pretende implantar. Mesmo que houvesse a instituição simultânea do fim do poder normativo e das novas regras de negociação coletiva nem todos os problemas estariam resolvidos; mas a adoção dessas regras a posteriori coloca os trabalhadores em uma situação criticamente desfavorável, porque a recusa à negociação ou ao acordo por parte dos patrões encontrará os assalariados sem alguns dos mecanismos legais até então existentes.

O art. 114 da Constituição Federal deve sofrer pequenas alterações, pois a proposta de reforma sindical pretende novas mudanças. O dissídio, será denominado de “ação normativa”, mas, continua sendo exigido “comum acordo entre as partes” para que seja interposto na Justiça do Trabalho. (c) Essa reforma iniciou-se muito antes, em 1992, mas somente em 1999, com a CPI do Judiciário, ganhou corpo e atenção. A Câmara concluiu as votações em 2000, enviando a proposta ao Senado, onde tramitou até novembro de 2004. Parte do texto foi promulgado, com a Emenda Constitucional n.° 45 (em 8/12/2004), o restante volta para discussões na Câmara dos Deputados.

3. A Reforma da Justiça do Trabalho na Emenda Constitucional n.° 45, de 2004 (d)

No dia 8 de dezembro de 2004 foi promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a Emenda Constitucional 45, que

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entrou em vigor a partir do último dia 31 de dezembro. Uma outra parte da chamada reforma do Judiciário ainda permanece na Câmara, que ainda apreciará as novidades introduzidas pelo Senado como a de nova competência para a Justiça do Trabalho e a criação da súmula vinculante também para o Superior Tribunal de Justiça – STJ.

Do ponto de vista da estrutura da Justiça do Trabalho (tratada nos agora art. 111 e 111-A, da Constituição), o número de Ministros do Tribunal Superior do Trabalho – TST – foi aumentado de 17 para 27; sendo modificada também a forma de sua escolha, que será feita agora pela aprovação por maioria absoluta do Senado Federal e não mais por maioria simples. Foram criados ainda o Conselho Superior da Justiça do Trabalho - para exercer a supervisão administrativa, orçamentária, financeira e patrimonial da Justiça do Trabalho de primeiro e segundo graus - e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho - para regulamentar os cursos oficiais para o ingresso e promoção na carreira.

No entanto, as modificações que aqui nos interessam são as que afetam a competência da Justiça do Trabalho. Pelo texto de 1988, a competência dessa Justiça, inscrita no caput do art. 114, era “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores (...) e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”.

A partir da EC n.° 45, o caput do art. 114 passa a ter nove incisos para especificar a com-petência da Justiça do Trabalho para julgar:

a) as ações oriundas da relação de trabalho, abrangendo entes de direito público externo e da administração pública; e as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;

b) as ações que envolvam o exercício do direito de greve;

c) as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;

d) as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;

e) a execução, de ofício, das contribuições sociais previdenciárias e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;

f) outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei e ainda conflitos de competência entre órgãos com jurisdição

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trabalhista, e os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição.

(d) Essa nota analisa somente as mudanças que afetam a Justiça do Trabalho e que antecedem ou interferem na reforma sindical.

Alguns desses pontos já constavam do texto constitucional, as mudanças são apenas na forma. Mas, algumas modificações foram introduzidas nos incisos do caput do art. 114; dentre elas merecem destaque:

a) a ampliação da competência para abranger as ações oriundas das relações de trabalho. É uma inovação importante - ao texto em vigor restringe a competência às ações entre trabalhadores e empregadores. O novo texto responde melhor a uma realidade onde apenas uma pequena parte das relações de trabalho se identifica com a relação de emprego. Com essa mudança abrem-se espaços para que também prestadores de serviço, autônomos, cooperativados, etc, possam buscar na justiça especializada a solução para demandas individuais e coletivas referentes às relações de trabalho. Naturalmente a abrangência dessa competência será definida na regulamentação e pelos julgados ao longo do tempo, mas a abertura é benéfica. Os debates sobre se também estariam incluídas as ações relativas aos servidores públicos foram imediatamente abortados. A Associação dos Juízes Federais do Brasil fez um primeiro questionamento quanto a esses dispositivos, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 3395. Buscaram e conseguiram liminar (ainda ad referendum do Pleno) mantendo a competência da Justiça Federal para julgar os casos relativos às relações de trabalho dos servidores públicos federais, com reflexos diretos para os demais servidores públicos;

b) a competência foi também ampliada para julgar as ações relativas ao exercício do direito de greve. Essa questão, embora não fosse constitucionalizada, sempre esteve no âmbito da Justiça do Trabalho. No entanto, as discussões no FNT apontavam para “não haver julgamento de objeto nem mérito da greve” e que “a responsabilidade pelos atos praticados ilícitos ou crimes cometidos no curso da greve” seja apurada segundo a legislação trabalhista, civil ou penal. O novo texto constitucional determina que será objeto o “exercício do direito de greve”, um grande retrocesso frente às deliberações do FNT;

c) foi suprimida a expressão “conciliar os conflitos”. Em tese, os procedimentos judiciais buscam uma conciliação entre as partes, mas a Justiça do Trabalho, pela sua natureza especial, tinha na Constituição Federal explicitada essa competência.

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Outras grandes alterações na competência da Justiça do Trabalho foram introduzidas por alterações no § 2° do art. 114 e dizem respeito ao fim poder normativo e à exigência de comum acordo para o ajuizamento do dissídio coletivo.

O § 2° do art. 114 foi rescrito para estabelecer: (e) “§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.”

A redação anterior do § 2° do Art. 114 da Constituição Federal: (e)“§ 2º - Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.”

Dentre essas modificações, merece destaque a inclusão da exigência de “comum acordo” das partes para o ajuizamento do dissídio coletivo. Isto significa que os trabalhadores e patrões devem acordar que a Justiça do Trabalho é o foro para a solução dessas controvérsias. Na prática, é o fim do dissídio coletivo, pois sem a anuência do patrão, os trabalhadores estão impedidos de recorrer à Justiça para a solução dos impasses resultantes da não negociação. Com a exigência do acordo prévio quanto ao Juízo, o dissídio muito se aproxima de uma arbitragem, que tem tal anuência prévia como premissa. A Justiça deixará de ser o árbitro natural, o último refúgio, para onde se dirigem as pretensões exatamente diante da recusa da parte contrária em negociar ou acordar. Instala-se um cenário de grande desproteção judicial para o trabalhador. Na verdade, a concordância prévia para o dissídio tem um alcance muito mais profundo, tendendo a reduzir o âmbito do conflito passível de ser resolvido pela via judicial apenas aos decorrentes da execução dos contratos e não aos termos substantivos de sua negociação entre as partes. O que implica também, na redução ou mesmo anulação do instituto da hipossuficiência jurídica do trabalho frente ao capital.

Até então, a ação de dissídio coletivo se dava após “frustada, total ou parcialmente a auto-composição dos interesses coletivos” e tinha como finalidade “preservar a data-base da categoria” (f), já que, sem o dissídio, os trabalhadores perderiam a possibilidade da revisão periódica de seus vencimentos e demais cláusulas de natureza econômica de seus contratos de trabalho. Não significava que em ações de dissídio coletivo os trabalhadores sempre obtinham vitórias, nem que sempre a Justiça buscava equilibrar as relações, identificando no trabalhador a condição de parte mais fraca da relação. Mas, existia a

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esperança de buscar, na Justiça do Trabalho, uma resposta às reivindicações dos trabalhadores, diante da recusa à negociação e ao acordo, especialmente nos momentos em que a fragilidade organizativa dificultava a vitória via negociação. (f) Instrução Normativa n.° 4, de 1993, do Tribunal Superior do Trabalho.

Além das inúmeras discussões sobre o real significado dessas modificações, há questionamentos judiciais sobre essa exigência de “comum acordo”. A Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL – entrou com uma ADI (ADI 3392) exatamente impugnando a expressão “de comum acordo”. O relator é o Ministro Cezar Peluso.

Em suma, essas mudanças no §2° do art. 114 são muito prejudiciais aos trabalhadores.

Primeiro, porque, na prática, o acesso dos trabalhadores ao Judiciário nesses casos dependerá da anuência dos patrões, em afronta a uma garantia fundamental inscrita no art. 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal. Esse dispositivo, que integra as chamadas Cláusulas Pétreas, não pode ser ofendido nem por emendas constitucionais. Mas, esse pode não ser o entendimento do Supremo, aliás quando da instituição das Comissões de Conciliação Prévia, diante de um questionamento semelhante, o STF negou liminar sobre a matéria (ainda pendente de decisão final).

Segundo, porque podendo impedir a ação de dissídio coletivo, crescem as vantagens para os patrões. Sem negociações e sem Justiça do Trabalho, prevalecem as condições vigentes da contratação, inclusive o congelamento dos salários, rebaixados pelo efeito da inflação e dos ganhos de produtividade. Aos trabalhadores resta pouco a fazer diante do alto nível de desemprego, da grande informalidade e da grande fragilidade de suas entidades sindicais, problemas que não se resolverão a curto prazo.

Terceiro, porque criou-se mais uma exceção a prejudicar os trabalhadores. Todos os contratantes podem recorrer ao Judiciário para a repactuação das condições acordadas, especialmente para buscar recompor o equilíbrio econômico em seus contratos. Sem essa recomposição, o prejuízo imposto a uma das partes resulta em enriquecimento sem causa à outra. Restará ao trabalhador, se inconformado com a recusa dos patrões à negociação, pedir demissão – o que nem sempre é opção.

Porém, esses argumentos jurídicos podem ser vencidos no Supremo Tribunal se este adotar um entendimento restritivo sobre a natureza do conflito entre capital e trabalho, relacionando-o apenas àqueles decorrentes do cumprimento do contrato, que está interligado à

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negação da hipossufiência jurídica do trabalho já comentada. A tendência dessa interpretação, de natureza claramente neoliberal, no entanto, pode ser majoritária na atual composição do Supremo (como também já aconteceu no Congresso por ocasião da aprovação da Emenda 45).

A reforma trabalhista de FHC já vinha dificultando o acesso individual à Justiça do Trabalho ao exigir prévia discussão nas Comissões de Conciliação Prévia. O que esta reforma implementa é um novo obstáculo intransponível para o ajuizamento das demandas coletivas pelos trabalhadores, a prévia anuência do patronato.

Para as demandas individuais, a legislação exige que se dê conhecimento prévio ao patrão, através das Comissões de Conciliação Prévia. Para os dissídios coletivos será exigida o comum acordo dos patrões.

Suprimiu-se ainda a expressão “estabelecer normas e condições”, que é o poder normativo da Justiça do Trabalho. Desde 1993, por decisão do TST, essa competência normativa somente foi utilizada diante da inexistência de norma jurídica que estabelecesse minimamente a proteção de trabalho no caso específico. Agora, nem assim.

As modificações introduzidas no §2° do art. 114 devem ser analisadas não somente pela supressão do poder normativo e pela desqualificação do dissídio coletivo, mas, fundamentalmente, pelo vazio que se criou diante da recusa à negociação. Esse vazio não foi criado por um descuido, mas porque a super valorização da negociação coletiva, inclusive com a prevalência do acordado sobre o legislado, o esvaziamento da Justiça do Trabalho, etc, correspondem a um modelo de relações de trabalho.

Uma outra conseqüência importante que deriva dessa análise referente à mudança quanto ao direito ao dissídio coletivo e de uma nova interpretação do Supremo sobre a natureza do conflito judicial trabalho vs. capital é que a Emenda 45 já procedeu uma importante alteração nas relações trabalhistas, que muda a correlação de forças – desfavorecendo ao trabalhador, na negociação futura tanto da reforma sindical como da trabalhista.

4. O conteúdo do anteprojeto de emenda constitucional de Reforma Sindical

Para buscar uma maior representatividade do movimento sindical é preciso enfrentar diversos problemas. Após mais de uma década de reestruturação do mercado de trabalho, de desemprego em massa, precarizações e terceirizações das relações de trabalho, e,

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principalmente de condutas antisindicais do patronato, as entidades sindicais enfrentam diversos problemas, que se materializam no baixo nível de sindicalização e na incapacidade política e organizativa de responder às investidas do capital frente aos direitos dos trabalhadores.

Mas, é preciso ressaltar que amplos setores, dentro e fora da base de apoio ao governo, e pelos mais diversos motivos, pretendem pôr fim à unicidade sindical e, especialmente, viabilizar o processo de negociação coletiva, fundamental para a reforma trabalhista que se avizinha. Se diversos segmentos defendem algum nível de reforma visando democratizar e fortalecer o movimento sindical e a luta dos trabalhadores por melhores salários, é por outros motivos que as reformas sindical e trabalhista constam da agenda e dos acordos dos vários organismos internacionais.

Embora a unicidade sindical seja um preceito constitucional, multiplicaram-se entidades de diversas categorias e de setores econômicos mal definidos, sem qualquer preocupação com o fortalecimento da representação sindical, mas, ao contrário, pulverizando ainda mais a sua estrutura.

Nesse cenário, há muitos exemplos de entidades sob influência direta do patronato ou para defesa exclusiva dos interesses da sua diretoria, quase sempre protegidas por práticas e estatutos antidemocráticos. Há razões de sobra para se defender um processo de mudanças no sistema sindical.

Mas os textos divulgados do anteprojeto de emenda constitucional e do anteprojeto de lei que vai regulamentar o novo modelo não asseguram, nem se resumem a buscar o fortalecimento e democratização da representação sindical.

Hoje, a Constituição determina uma ampla liberdade e autonomia sindical submetida exclusivamente às limitações contidas no próprio texto constitucional, como a exigência de unicidade e o município como base de representação territorial mínima. O poder público não pode interferir ou intervir na organização sindical.

O anteprojeto de emenda constitucional é radical em pôr fim à unicidade sindical, revogando inclusive a definição do município como base territorial mínima da representação. Para evitar uma multiplicidade inesgotável de entidades sindicais, a reforma estabelece que cabe ao Estado atribuir personalidade sindical às entidades. Hoje o Poder Público apenas registra as novas entidades, após um período em que é permitido às demais entidades impugnarem essa nova entidade. É uma solução radical estabelecer essa nova competência ao Estado, mesmo que ressaltando que é uma saída melhor do que a que constava

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das versões anteriores, que admitiam a intervenção do poder público na organização e na estrutura sindical. Assim, de forma paradoxal, os defensores da liberdade sindical pelo pluralismo acabam dando mais poder ao Estado para interferir na organização dos trabalhadores.

O fim da unicidade promovido por essa reforma não assegura o fortalecimento das entidades sindicais, muito ao contrário. O anteprojeto de lei que regulamenta as mudanças constrói um modelo que mescla representatividade direta, pautada em um mínimo de filiação, com a indireta – derivada - ancorada em outras entidades de grau superior. A exclusividade de representação, que impede a constituição de outras entidades sindicais naquela esfera de representação, somente é criada enquanto um dispositivo transitório, cabível exclusivamente às entidades pré-existentes à reforma e que atenderem a outros requisitos fixados em lei. Com esse modelo há uma implantação efetiva do pluralismo sindical.

Um ponto importante para o enraizamento e fortalecimento da estrutura sindical é a criação e disseminação da representação sindical por local de trabalho. Neste caso, houve um avanço na nova redação do anteprojeto da emenda constitucional frente às versões anteriores: suprime da Constituição serem essas representações fóruns “com a finalidade exclusiva de promover-lhes [dos trabalhadores] o entendimento direto com os empregadores”. Mas, apesar de sair da Constituição, na regulamentação contida no anteprojeto de lei, ainda está presente essa grande restrição, e as estruturas por local de trabalho acabam mais identificadas com as Comissões de Negociação Prévia do que com o movimento sindical propriamente dito.

A preocupação com a democratização das entidades também não está plenamente incorporada na nova reforma. Pelo anteprojeto de lei, a democratização não é um pressuposto universal aplicável a todas entidades, ela ficará restrita àqueles sindicatos que adotarem a exclusividade de representação.

Outro tema importante para a reforma é o modelo de financiamento da estrutura sindical. A reforma pretende “extinguir qualquer recurso de natureza parafiscal para o custeio das entidades sindicais”. Com o fim do imposto sindical, as entidades receberão, além das mensalidades dos seus filiados, uma contribuição acertada nos acordos coletivos (negociações coletivas ou arbitragens).

A reforma estabelece que esta contribuição poderá ser instituída por lei, cabendo às assembléias definir o seu valor. Nessa questão, é imprescindível que se estabeleça: a) um financiamento extensivo a toda a categoria, afastando preceitos liberais de financiamento exclusivo aos filiados; e, b) uma transição para o fim do imposto

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sindical, um tema que o anteprojeto de emenda constitucional não abrange, impedindo a lei de fazê-lo.

5. A tramitação da PEC e seus possíveis desdobramentos

O Fórum Nacional do Trabalho, muito apropriadamente, adotou como estratégia que a reforma sindical, visando o fortalecimento e a democratização do movimento sindical, deveria preceder os debates ou movimentos de reforma trabalhista. Esta, inclusive, deveria aguardar ainda um cenário de crescimento econômico, que diminuísse o desemprego e criasse melhores condições para a atuação e o fortalecimento das entidades.

É um fato muito positivo que o anteprojeto de emenda à Constituição adote esse posicionamento, não avançando em temas associados à reforma trabalhista, como por exemplo, a prevalência do acordado sobre o legislado, ou mesmo a discussão dos direitos trabalhistas. No entanto, como vimos, as mudanças da Emenda 45 frente ao dissídio coletivo podem ter enfraquecido os trabalhadores nos embates das duas reformas.

Um dos problemas que necessita de atenção é que o processo de tramitação da PEC pode levar a resultados indesejáveis, podendo antecipar, de forma transversa, mudanças significativas nas relações de trabalho. E o novo cenário com a eleição da nova Mesa da Câmara dos Deputados somente reforça esses receios. O problema é que a proposição de emenda à Constituição que será encaminhada pelo Executivo irá tramitar apensada a outras propostas de emendas que buscam também alterar o art. 8° da Constituição Federal (que trata da questão sindical). E existem várias delas (vide anexo II), muitas de autoria de parlamentares do PT. A tramitação em conjunto significa, dentre outras questões, que o conteúdo constante de todas as proposições poderá ser tratado como uma única matéria. Tomemos por exemplo a PEC n.° 252, de 2000, de autoria do Dep. Ricardo Berzoini. Uma modificação contida nessa proposta altera o mesmo art. 8° para introduzir um inciso com a seguinte redação:

“VI – o contrato coletivo de trabalho por ramo de produção é a base do sistema jurídico do trabalho, podendo ocorrer a contratação complementar por empresa, por região ou local de trabalho, sendo obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações e nas contratações coletivas de trabalho;”

Uma redação como essa, ou outra similar que transforme o contrato de trabalho na base do sistema jurídico do trabalho, resume uma reforma trabalhista, colocando inclusive a prevalência do contrato sobre a legislação mínima de direitos e de proteção ao trabalho. Assim,

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precisamos constituir maiores garantias para proteção dos direitos dos trabalhadores durante o processo de tramitação da reforma sindical no Congresso Nacional, assegurando compromissos do governo e de toda a sua base que afaste outras mudanças constitucionais ou mesmo no âmbito da legislação trabalhista voltadas para a reforma trabalhista. Essas matérias não podem tramitar no vácuo da reforma sindical, segundo o entendimento construído no Fórum Nacional do Trabalho.

Flávio Tonelli Vaz é assessor da Liderença do PCdoB na Câmara dos Deputados. [email protected]