felipe valoz nova hermenêutica” e “new historicism” – uma breve comparação

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“Nova hermenêutica” e “New Historicism” – Uma breve comparação

Felipe Valoz

“A Música não é uma expressão artística que possui significantes, ela é a própria

linguagem”, enfatizava Pierre Boulez1 em um ensaio sobre Música na segunda metade do

século XX. Porém, o próprio Boulez está munido de um amplo léxico de termos musicais e

não musicais além de uma profunda orientação estética, que o permite discorrer ou escrever

com fluência e persuasão sobre a composição musical tanto do passado como do presente.

Os textos crítico, estético/musical de Theodor Adorno2, assim como as análises do estilo

clássico proferidas por Charles Rosen3, e também as reflexões de Vladimir Jankélevitch4,

que conseguem dar ao texto literário/musical a flexibilização sonora inteirada do discurso

musical, podem ser compreendidas como aspectos da musicologia, legitimada como área de

conhecimento. O compositor Luciano Bério5, sendo questionado sobre os escritos

crítico/teórico de Boulez e Adorno, por exemplo, diz que é importante à Música que ela

tenha seus advogados. Ironias à parte, o fato é que os textos crítico, analítico e estético

sobre música, buscam razões detectáveis auxiliadoras naquilo que é a essência plena e

ontológica da música: o ouvir – como afirma José Eduardo Martins6 a respeito de

Jankélevitch (outro advogado da música?!).

Na literatura, ao contrário da música, percebe-se com mais nitidez um delineamento

de tendências e escolas de interpretação poética, que discutem, polemizam e ainda orientam

e auxiliam na compreensão das obras literárias. Evidentemente não se trata de confundir

análise literária com a explicação literal do texto, confiante na idéia de que a decodificação

do significado referencial basta para conferir consistência à literatura7, mas sim de dar um

passo provisório na iniciação do contato científico com o texto8.

No Brasil, se na literatura existe uma larga aceitação de conceitos crítico-teórico-

histórico, na Musicologia persiste o equívoco e depreciação no que diz respeito a crítica e

abordagem literário/retórica da obra musical assim como a transcrição e restauração (de

partituras9). Ocorre que na área de Música, devido à especialização técnica necessária, na

formação do indivíduo (mesmo que precária) é comum um distanciamento do

conhecimento humanístico, que leva à presunção e ao discurso teórico sem procedência e

sem reflexão profunda dos elementos que envolvem uma composição musical. Esse

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argumento nos lembra o escritor português José Saramago10 quando, questionado pelo fato

de ele próprio não discorrer muito sobre a técnica em que escreve e estilo em que se define,

é bastante sutil, ou ambíguo, ao responder perguntando: Por que o escritor só tem que falar

sobre o que escreve ou sobre literatura? Ora, pudesse questionar algo semelhante no que se

refere ao compositor estudioso de música: por que se preocupar em argumentar apenas com

o encadeamento de tríades ou grupo de sons, motivos rítmicos, detectar a série ou intervalos

predominantes, ou ainda os efeitos produzidos pelo compositor...? É claro que o músico

não deve ter entraves para com a expressão musical, seja qual for o estilo em que se

trabalha. O que é representativo na musicologia é a postura analítico/histórica, integrada

permanente às diversas abordagens que nela se encontram (teórico; crítica; histórica;

estilística; interpretativa; analítica; estética, além das relações entre as mesmas), como bem

afirma o musicólogo Régis Duprat11.

Em conferência realizada no V Encontro Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em

Música, em Salvador, Bahia, em setembro de 1992, Régis Duprat enfatiza a fragilidade da

episteme analítica que esteve em voga nos anos 60 e 70 por influência da tendência

estruturalista ou neo-estruturalista, que parte de uma estrutura já existente, explicando o

conjunto dos significados altamente formalistas de uma obra. Régis Duprat ainda

argumenta que a tendência analítica que se faz recente no Brasil é por parte de uma geração

de especialistas que trazem uma formação e uma preocupação voltadas primordialmente

para a análise musical. Entretanto, a referida tendência se faz de modo tardio, de forma

ultrapassada no momento em que os centros do sistema cultural ocidental passam, em

termos de análise, a prognosticar uma coexistência dos modelos disponíveis, ou seja, de

diferentes modelos de análise musical12.

A essencialidade dos conteúdos e a própria historicidade, quando vinculada a uma

obra analisada, sustenta a interpretação de textos como evento dialógico de onde

observador e obra interagem-se. Nesse aspecto surge uma relação de conteúdos, que no

método estruturalista são repreendidas, e que se traduz, segundo Régis Duprat, como a

“Nova hermenêutica”. O pensamento hermenêutico oferece como base uma reação de

diálogo entre interlocutores (observador e obra), que define a interpretação de um evento.

Contra o pretenso distanciamento do analista, a hermenêutica prognostica a integração do

sujeito observador na compreensão e no evento da verdade da obra13.

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Fazendo um paralelo com a analítica existencial do filósofo alemão Martin

Heidegger, o musicólogo Régis Duprat deduz que a racionalidade da obra musical nós já

trazemos conosco desde o momento em que ela integra a nossa existência concreta; há uma

co-originalidade entre ser e mundo, onde intuição e conceito, sensibilidade e categorias

estão juntas e inseparáveis.

A “Nova Hermenêutica”, abordada por Régis Duprat, sustenta essencialmente que

não é só a técnica que ajuda a compreender a obra de arte, e a partir deste argumento

podemos cotejar o conceito do “New Historicism”14. A comparação que aqui se propõe das

correntes de pensamento da musicologia e da literatura pretende ser apenas elucidativa no

sentido de uma interdisciplinaridade entre as mesmas. Tendo em vista que tanto a “Nova

Hermenêutica” e o “New historicism” podem servir como heurística para o

desenvolvimento da pesquisa em musicologia, ciência que já se faz legítima com a

referência das músicas/pensadores até aqui citados.

É interessante ressaltar que o movimento crítico conhecido como “New

Historicism” teve origem no final da década de 80, por meio da proposta do crítico

americano Stephen Greenbatt. O estudioso proclama o desejo de falar com os mortos, com

franca oposição à orientação lingüística da análise textual defendida pelo estruturalismo,

tendo como objetivo central restaurar polemicamente a dimensão histórica dos estudos

literários.

O que nos chama a atenção para uma comparação com a “Nova Hermenêutica”,

argumentada por Régis Duprat, é o fato de Stephen Greenbatt recusar o entendimento da

literatura como fenômeno isolado das demais práticas sociais, interpretando-a como uma

dentre as muitas estruturas em que se pode ler o espírito de uma época. Segundo Lous

Montrose, outro defensor da proposta, o crítico deve captar simultaneamente a historicidade

do texto e a textualidade da história. Partindo desta perspectiva, o “New Historicism”

procura restaurar a forma mental à época estudada, o que acaba por criar um objeto próprio

de pesquisa literária. Ora, nesse sentido a hermenêutica que traz como uma de suas

definições a interpretação de textos históricos, não se sustenta apenas como uma teoria do

diálogo, mas articula-se como diálogo, empenhado concretamente nos confrontos dos

conteúdos da tradição.15 Essa aproximação das duas correntes de pensamento, torna-se

evidente quando se observa que ambas não tratam de entender a obra como reflexo do

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contexto e muito menos de considerar a história como pano de fundo para um compreensão

supostamente politizada da obra. Trata-se de entender sim, a produção artística como parte

integrante de um discurso mais amplo, o discurso histórico, do qual a obra de arte participa

como um procedimento retórico. As manifestações culturais de um período, no entender de

Hayden White16 são uma constelação de signos da realidade que as compõe, e a obra de

arte integra essa constelação.

Se tomarmos como exemplo os estudos sobre música colonial e Literatura Colonial

no Brasil, podemos nos amparar da tendência no “New Historicism”, considerando que este

atenua os limites entre o discurso social, entendendo aquele como projeção deste. O

ensaísta Stephem Greenblatt recusa a noção de uma mera teoria de veneração do passado e

da tradição, mas ao contrário, propõe, como o musicólogo Régis Duprat, o sentimento de

maravilha, responsável pelo trabalho historiográfico, que não deve apenas se dedicar à

reconstrução da totalidade de culturas, mas também se empenhar na análise dos processos

unificadores, por exemplo, como estilo, influências diversificadas, estrutura e forma,

referências estas que segundo Greenblatt revelam toda estrutura imaginária da sociedade

que os produziu. 1 Pierre Boulez - Compositor, intérprete e pensador francês em ensaio de 1958 sobre música contemporânea. Boulez, Pierre – Música hoje – ed. Perspectiva. 2 Theodor Adorno - Filósofo da Escola de Frankfurt. 3 Charles Rosen - Pianista e musicólogo americano. 4 Vladimir Jankélevitch – Filósofo e musicólogo, especialista em Debussy, biógrafo e crítico. 5 Luciano Bério – Entrevista Sobre a Música realizada por Rossana Dalmonte – E. Civilização Brasileira. Pg. 25 6 José Eduardo Martins – Pianista e professor do Departamento de Música ECA-USP. Artigo: Jankélevitch e os Opostos Sonoros em Harmonia – Revista Música. Vol. 7. 1996. 7 Ensaio sobre o New Criticism de Ivan Teixeira (professor do departamento de jornalismo da ECA-USP). Publicado na Revista Cult Nº 14. 8 Idem. 9 Artigo, Análise, Musicologia, positivismo de Régis Duprat – Revista Música, Vol. 7, 1996. ECA-USP. 10 José Saramago – Entrevista em Programa Roda Viva, Tv Cultura, com o escritor Português. 11 Régis Duprat – Musicólogo e professor do Dep. De Música ECA-USP. 12 Idem nota 9. 13 Idem. 14 New Historicism – O ensaista Ivant Teixeira – professor do Dep. De Jornalismo ECA-Usp – Discorre em uma série de artigos sobre as principais correntes da crítica literária, publicado pela revista Cult, nºs 12, 13, 14, 15, 16 e 17. 15 Idem. 16 Hayden White – Crítico literário americano, que também partilha das idéias do New Historicism.