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Felipe da Silva Braga Igreja, sacramento de salvação: a comunidade cristã como testemunha e continuadora da salvação de Cristo no mundo Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre pelo Programa de Pós- graduação do Departamento de Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Orientadora: Profª. Ana Maria Tepedino Rio de Janeiro Agosto de 2008

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Felipe da Silva Braga

Igreja, sacramento de salvação: a comunidade cristã como testemunha e continuadora da salvação de Cristo

no mundo

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre pelo Programa de Pós- graduação do Departamento de Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Orientadora: Profª. Ana Maria Tepedino

Rio de Janeiro Agosto de 2008

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Felipe da Silva Braga

Igreja, sacramento de salvação: a comunidade cristã

como testemunha e continuadora da salvação de Cristo no mundo

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre pelo Programa de Pós- graduação do Departamento de Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª. Ana Maria de Azeredo Lopes Tepedino Orientadora

Departamento de Teologia- PUC-Rio

Prof. Abimar Oliveira de Moraes Departamento de Teologia- PUC-Rio

Prof. Luiz Fernando Ribeiro Santana ISTARJ

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós Graduação e Pesquisa

do Centro de Teologia e Ciências Humanas- PUC-Rio

Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 2008

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da Universidade, do autor e do orientador.

Felipe da Silva Braga

Graduado em Teologia pela PUC-Rio e em Filosofia pela Faculdade Eclesiástica de Filosofia João Paulo II, da Arquidiocese do Rio de Janeiro. É padre desde julho de 2005 e está incardinado na Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Ficha Catalográfica

CDD: 200

Braga, Felipe da Silva

Igreja, sacramento de salvação: a comunidade cristã como testemunha e continuadora da salvação de Cristo no mundo / Felipe da Silva Braga; orientadora: Ana Maria Tepedino. – 2008.

122 f.; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Inclui bibliografia

1. Teologia – Teses. 2. Igreja. 3. Sacramento. 4. Sinal. 5. Símbolo. 6. Cristo. 7. Salvação. 8. Revelação. I. Tepedino, Ana Maria. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

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Agradecimentos

À minha orientadora, Professora Ana Maria A. Lopes Tepedino, pelo estímulo,

atenção, carinho e profissionalismo com que me auxiliou na elaboração deste

trabalho.

Ao CNPq e à PUC- Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não

poderia ter sido realizado.

Aos meus grandes amigos Wagner Toledo e Abimar Oliveira de Morais. Estes

foram os grandes responsáveis pela minha entrada no curso de mestrado e

continuidade nos estudos.

Aos professores e alunos da PUC- Rio, que fizeram parte deste importante

período da minha vida.

Aos meus familiares e amigos que de alguma forma contribuíram para esta

conquista.

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Resumo

Braga, Felipe da Silva; Tepedino, Ana Maria; Igreja, sacramento de

salvação: a comunidade cristã como testemunha e continuadora da

salvação de Cristo no mundo. Rio de Janeiro, 2008, 122p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Toda Revelação cristã é essencialmente sacramental. A sacramentalidade

constitui uma importante realidade sem a qual a humanidade não poderia

compreender e muito menos aderir à proposta divina. Na História da Salvação

Deus sempre se manifestou por meio de sinais, denominados sacramentos. Estes

são os instrumentos por meio dos quais Deus comunica a sua Graça e salvação,

entre os quais está a Igreja. Após o seu retorno para junto do Pai, a Igreja se

tornou o grande sinal comunicador e continuador da salvação operada na cruz,

símbolo da pessoa de Cristo no meio da humanidade.

Palavras-chave

Igreja; sacramento; sinal; símbolo; Cristo; salvação; Revelação.

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Abstract

Braga, Felipe da Silva; Tepedino, Ana Maria; Church, sacrament of

salvation: the Christian community as witness and continuator of the

salvation of Christ in the world. Rio de Janeiro, 2008, 122p. MSc. Dissertation - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

All Christian Revelation is essentially sacramental. The sacramentalidad

constitutes an important reality without which the humanity could not understand

much less to adhere to the proposal divine. In the History of the Salvation God

always it was disclosed by means of signals, called sacraments. These are the

instruments by means of which God communicates its Favour and salvation,

between which it is the Church. After his return for next to the Father, the Church

if it became the great signal communicator and continuator of the salvation

operated in the cross, symbol of the person of Christ in the way of the humanity.

Keywords

Church; sacrament; signal; symbol; Christ; salvation; Revelation.

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Sumário

1. Introdução 9

1ª parte: Fundamentos 14

2. Simbolismo sacramental 15

2.1. Problemática 15

2.2. Definição de símbolo 17

2.3. Fundamentos para um simbolismo sacramental 21

2.3.1. Revelação 21

2.3.2. Constituição antropológica 23

2.4. Sacramentos, símbolos de salvação 25

3. Cristo, sacramento original 32

3.1. Introdução 32

3.2. A Encarnação como fundamento da sacramentalidade cristã 33

3.3. Cristo, sacramento do Pai 41

3.4. A morte de Cristo como sacramento da sua entrega 43

3.5. A ressurreição de Jesus como sacramento da nova vida 47

3.6. A ressurreição de Jesus como sacramento da esperança 53

2ª parte: A Igreja 56

4. Compreensão de Igreja 57

4.1. Introdução 57

4.2. Definição de Igreja 57

4.3. Imagens da Igreja 60

4.3.1. Povo de Deus 61

4.3.2. Corpo de Cristo 65

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4.3.3. Templo do Espírito Santo 69

4.4. A Igreja no projeto de Deus 71

4.4.1. A Igreja como obra do Espírito Santo 72

4.4.2. Igreja de comunhão 76

4.4.3. Povo de Deus ou casa do Pai? 79

4.4.4. Proposta do Vaticano II 80

4.4.5. Hierarquia e laicato 82

4.4.6. Histórico e definição etimológica do leigo 87

4.4.7. O tríplice múnus dos fiéis 88

4.4.8. Espiritualidade de comunhão 90

5. A Igreja, sacramento de salvação 92

5.1. Introdução 92

5.2. Sacramentos, prolongamento da sacramentalidade de Cristo 92

5.3. A Igreja, sacramento radical 97

5.4. Ritos sacramentais: manifestações da sacramentalidade eclesial 102

5.4.1. Batismo 105

5.4.2. Eucaristia 108

5.4.3. Crisma 112

6. Perspectivas 116

7. Referências bibliográficas 119

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1 Introdução

Motivação

Há uns quatro anos, durante a graduação, tive uma disciplina chamada

“Introdução aos sacramentos”, onde o professor abordou, entre outras coisas, a

temática da Igreja como sacramento. Pra mim foi surpreendente por ser também

uma novidade. O que eu sabia até ali era que existiam sete sacramentos somente,

tal como me disseram na catequese. O tema me encantou.

De fato eu já tinha uma queda ou um gosto todo especial pela

sacramentologia, chama-me muito a atenção, por exemplo, a idéia dos sinais, do

mistério, da mística, dos símbolos... Não foi à toa que passei a freqüentar a Igreja

Católica a partir de uma bela celebração da Eucaristia que participei num domingo

de Ramos: incenso, cantos, ramos... A idéia dos sinais me encantou

profundamente.

E fiquei ainda mais empolgado quando descobri que a Igreja é também um

sinal de Cristo neste mundo, um sacramento. Percebi que ela é muito mais que

uma instituição burocrática/ humana, mas que é a própria presença continuadora

da salvação de Cristo nesta vida. Isto nos dá uma consciência muito mais

profunda e diferente da nossa responsabilidade e missão neste mundo. Muda a

consciência que a Igreja tem de si mesma e valoriza sua presença.

O interesse pelo tema surge, portanto, como o resultado da minha própria

experiência de fé, enquanto Igreja. Surge ainda do desejo de fazer com que

também outros conheçam essa realidade tão importante para nós. Importante

porque muda, conforme já expus, a consciência que a Igreja tem de si mesma, da

sua realidade, missão e responsabilidade neste mundo. É neste sentido que

pretendemos trabalhar o tema.

Breve histórico

Por muito tempo existiu na Igreja uma compreensão restritiva a respeito dos

sacramentos. Essa palavra era utilizada e pronunciada unicamente com referência

aos sete sacramentos ou ritos sacramentais. Entretanto, é preciso dizer que essa

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restrição consiste num empobrecimento da sacramentologia. A realidade

sacramental não é suficientemente expressa se reduzida ao setenário litúrgico-

celebrativo. Existem outros centros de sacramentalidade que, longe de se oporem

aos sete sacramentos ou diminuírem o seu valor, constituem o próprio quadro para

a sua compreensão, celebração e realização na vida.

Não se trata de nenhuma novidade. Nos primeiros séculos, o termo

sacramento era empregado para designar também outras realidades distintas dos

sete ritos sacramentais, como Cristo, a Igreja, a Escritura, a Páscoa, a Encarnação,

a Quaresma, o mundo, etc. Foi apenas através de um lento processo histórico que

se chegou a uma diferenciação entre os sacramentos maiores (Batismo e

Eucaristia) e os demais sacramentos, bem como entre estes e os outros sinais

sagrados.

Segundo D. Boróbio, foi sobretudo a partir da controvérsia com os

reformadores, na Idade Média, que a expressão passou a indicar unicamente os

sete sacramentos. Para os protestantes a essência do sacramento estava na

promessa por parte de Cristo e no sinal externo, que, para eles, se cumpria apenas

no Batismo e na Eucaristia. Negavam explicitamente a afirmação católica da

eficácia ex- opere operato. Isto levou a uma fixação e utilização mais restrita do

conceito. Daí por diante, ele só se aplicaria às realidades que preenchem estes

requisitos: instituição por parte de Cristo, estrutura de matéria e forma, eficácia,

intenção por parte do ministro e disposições por parte do sujeito.

O Concílio Vaticano II utilizou a expressão em seu sentido mais original,

aplicando-o a Cristo, à Igreja, e, num sentido mais difuso, ao cristão, a todo

homem, às realidades criadas. Hoje, a teologia baseando-se nas fontes da

revelação e no magistério da Igreja, não hesita em denominar “sacramento”

também outras realidades que ultrapassam o campo do setenário sacramental. Não

se trata de um simples nominalismo (nome sem conteúdo) nem de um

pansacramentalismo (tudo é sacramento). Trata-se de reconhecer a essência

sacramental nas diversas realidades, reconhecendo os seus elementos comuns e

diferentes, de tal modo que a intercomunicação e a comparação nos revelem toda

a riqueza aí encerrada 1.

1 Cf. BOROBIO, D. (Org.). Organismo sacramental pleno: realidades sacramentais e dimensões de sacramento, em A celebração da Igreja. Vol.1. São Paulo: Loyola, 1990, p. 293-294.

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Problemática

Mas em que sentido a Igreja é sacramento de Cristo? O Concílio Vaticano

II, motivado por alguns teólogos, recuperou da Patrística a extensão do conceito

sacramento. Mas o modelo sacramental adotado pelo Concílio Vaticano II parece

ter sido assimilado e transmitido pela catequese que temos recebido? Sendo

sacramento, a Igreja é um prolongamento da corporeidade de Cristo sobre a terra.

Para que existe esse prolongamento? Quais as implicações desse pensamento para

a doutrina e para a pastoral da Igreja?

Hipóteses

Cristo é sacramento primordial da salvação, o sacramento de Deus por

excelência2: “Quem me vê, vê o Pai” 3. Seus atos, sua vida são a manifestação do

amor divino pelos homens, sinais e causa de salvação. O Filho de Deus tornou-se

verdadeiramente homem e no encontro com ele temos um encontro pessoal com o

Deus vivo, pois aquele homem é, pessoalmente, o Filho de Deus. “O encontro

humano com Jesus, é, pois, o sacramento de encontro com Deus” 4.

Porém, como podemos encontrar o Senhor glorificado se após a sua

ressurreição e glorificação ele desapareceu do nosso horizonte visível?

Após sua ressurreição e ascensão, “Cristo torna sua presença ativa de graça

visível e palpável entre nós, não diretamente por sua corporeidade, mas

prolongando, por assim dizer, sua corporeidade celeste sobre a terra, em formas de

manifestação visíveis, que exercem entre nós a ação de seu corpo celeste. São

precisamente os sacramentos o prolongamento terrestre do “corpo do Senhor”. E

concretamente a Igreja”5.

O mistério da redenção através da corporeidade se fundamenta no próprio

mistério da encarnação e da redenção cristã. Na pessoa de Cristo a corporalidade

se tornou fonte de glória, redenção e santificação para nós e tornou possível o

encontro humano recíproco entre Cristo e a humanidade, após a sua ascensão.

2 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro com Deus. Petrópolis: Vozes, 1967, p.20. 3 Cf. Jo 14,9. 4 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 47. 5 Cf. Ibid., p. 48.

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Neste sentido, “a Igreja terrestre é a aparição dessa realidade de salvação no

plano da visibilidade histórica. Ela é a comunidade visível da graça” 6,

“manifestação visível da graça redentora de Cristo na figura de um sinal social”.

“Ela é, pois, de modo quase idêntico, “o Corpo do Senhor”” 7, o “sacramento

primordial” 8 de Cristo. Nesse sentido escreve Henri De Lubac: “A Igreja é um

mistério, isto é, um sacramento. Lugar total dos sacramentos cristãos, ela é ela

mesma o grande sacramento que contém e vivifica todos os outros. Ela é aqui em

baixo o sacramento de Jesus Cristo, como Jesus Cristo, ele mesmo, é para nós, na

sua humanidade, o sacramento de Deus” 9.

Seus atos devem, como em Jesus, encarnar a palavra do Pai e torná-la

palpável aos homens pelo testemunho, pela vivência da comunhão e do amor, pela

solidariedade aos mais pobres. Isto significa ser o sinal vivo da presença ativa de

Cristo no mundo.

Método

Nosso ponto de partida será o livro Cristo, Sacramento do encontro com

Deus (fonte primária), de E. Schillebeeckx, que, se baseando em testemunhos

explícitos da Escritura e dos Padres da Igreja, deu uma importante contribuição à

Teologia Católica ao retomar e aplicar, na modernidade, o conceito “sacramento”

tal como era compreendido no início da Igreja. A leitura de Schillebeeckx nos

introduz também numa das grandes perspectivas teológicas do Vaticano II, que

sob a influência de Congar, Rahner e De Lubac retomou e definiu a Igreja como

Sacramento na Constituição Dogmática Lumen Gentium10.

Nosso método, portanto, consistirá no estudo de fontes que tratam do tema

(livros, artigos...), bem como dos documentos conciliares e pós-conciliares que

expressam a retomada dessa concepção na teologia católica atual, entre eles

Lumen Gentium e Puebla.

6 Cf. Ibid., p. 53. 7 Cf. Ibid., p. 54. 8 Cf. Ibid., p. 60. 9 Cf. DE LUBAC, Henri. Méditation sur l’Eglise. Paris: Aubier, 1968, p. 164: “L’Eglise est un mystére, c’est-à-dire, aussi bien, un sacrement. <<Lieu total des sacrements chrétiens, elle est elle-même le grand sacrement qui contient et vivifie tous les autres. Elle est ici-bas le sacrament de Jésus-Christ, Comme Jésus-Christ lui-même est pour nous, dans son humanité, le sacrament de Dieu”. 10 “A Igreja é como que sacramento isto é, sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano [...]” Cf. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, n.1 em DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II. São Paulo: Paulus, 1997.

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Nosso trabalho será constituído de duas partes. Na primeira, colocaremos as

bases da nossa pesquisa, os fundamentos e as definições para se compreender a

Igreja. Esta primeira parte será subdividida em dois capítulos. O primeiro,

antropológico: neste abordaremos a questão dos símbolos, definição, história e

compreensão do conceito “sacramento” e em que sentido devem ser

compreendidos os símbolos na teologia católica. O segundo, cristológico: Neste,

trataremos de Cristo como sacramento revelador do Pai. Trata-se de descobrir a

cristologia subjacente à questão da sacramentalidade eclesial e porque a Igreja foi

escolhida como continuadora da salvação cristã para os tempos hodiernos.

A segunda parte deste trabalho consiste no centro da nossa pesquisa e

também está subdividida em dois capítulos. No primeiro, faremos uma reflexão

sobre a compreensão da Igreja: fundamentos, definições, imagens da Igreja na

Sagrada Escritura, a Igreja de comunhão... Trata-se de uma fundamentação

necessária para se chegar ao segundo capítulo, centro da nossa reflexão, a Igreja

como testemunha e sacramento da salvação. Este segundo capítulo é ápice da

nossa pesquisa. Nele trataremos da Igreja como o sinal social da salvação do

Senhor entre nós. Também trataremos dos ritos sacramentais como expressões da

sacramentalidade eclesial.

Tendo em vista a vasta bibliografia sobre o assunto e as várias

possibilidades de abordagem do mesmo, vamos nos restringir àquilo que julgamos

ser o mais importante e útil para a nossa pesquisa.

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1ª Parte Fundamentos

Esta primeira parte da nossa pesquisa consiste de dois capítulos e tem como

objetivo estabelecer os alicerces do nosso trabalho. No primeiro, trataremos da

característica simbólica dos sacramentos: o que é o símbolo, sua função, sua

eficácia e de que modo os sacramentos são entendidos como símbolos de

salvação. A idéia deste primeiro capítulo é mostrar que enquanto símbolo os

sacramentos comunicam aquilo que simbolizam. E assim, a Igreja.

No segundo, o foco será a Cristologia: Cristo, sacramento original. Neste

segundo capítulo trataremos da vida de Cristo, seu exemplo, a salvação operada

na cruz, sua ressurreição. Enfim, a vida e a pessoa de Cristo como o grande

sacramento revelador de Deus à humanidade. Cristo é a razão pela qual a Igreja

existe, e os mistérios salvíficos, aquilo que ela comunica à humanidade. Portanto,

a Cristologia constitui a base da eclesiologia. Daí a sua importância.

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2 Simbolismo sacramental

2.1 Problemática

Poucas vezes as categorias simbólicas estiveram tão ameaçadas como na

nossa cultura atual. O imperialismo da técnica e do racionalismo instrumental-

capitalista sobre o valor da pessoa, mesclado a um contexto de indiferença e

incredulidade religiosas, tem subjugado o símbolo a uma situação de fragilidade e

pobreza, que afeta o sentido da vida e a identidade do gênero humano neste

mundo11.

A desertização do sentido, a perda da identidade humana e a carência de

acolhida em uma sociedade pós-revolucionária e neoliberal têm levado muitas

pessoas à busca dos neomisticismos e esoterismos, ofertados facilmente nos

“mercados” da fé12.

Por um lado, o objetivismo racionalista, que não enxerga a possibilidade de

um encontro do humano com o transcendente; por outro, o subjetivismo

psicologizante ingênuo, que tem como principal proclamação o encontro imediato

do humano com o divino. De um modo ou de outro, trata-se de uma tentação da

modernidade por se edificar sobre uma experiência e uma razão sem mediações13.

A recuperação do simbolismo identifica-se com uma proposta de

contraposição à cultura e à situação histórica atuais, responde a uma necessidade

de re-humanização da nossa sociedade, bem como à mudança de estilo de vida14.

Trata-se de recuperar o primado da pessoa, com todas as suas dimensões, frente ao

progresso da técnica e do intimismo inconseqüente.

Já há algum tempo, sobretudo a partir do século passado, as ciências

humanas vêm reconhecendo que o símbolo (pensamento mítico-simbólico)

contém uma verdade que razão alguma pode esgotar. As catástrofes, barbáries e

montanhas de cadáveres produzidas nestes últimos tempos têm nos interrogado

11 Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA, J.T. (org.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 779. 12 Cf. MARDONES, J.M. A vida do símbolo: a dimensão simbólica da religião. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 7. 13 Cf. Ibid., p. 8-9. 14 Cf. Ibid., p. 10.

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sobre a lógica do racionalismo, apesar de todas as suas contribuições positivas à

sociedade; os fatos históricos levaram a humanidade a um questionamento da

experiência e do pensamento dominantes.

De outro modo, a ausência de práticas religiosas providas de uma

consciência social-comunitária, que conduza o crente à uma incidência

transformadora positiva do mundo no qual habita, leva-nos a questionar a

autenticidade dessas experiências. Não raras vezes, por descontrole imaginário,

desconhecimento ou ingenuidade, incorre-se no desrespeito da devida distância

simbólica entre o significante e o significado, entre o símbolo e a realidade

simbolizada15.

Esta crise da linguagem simbólica afeta diretamente o cristianismo, pois este

também é, em seu núcleo essencial, uma verdade tão profunda quanto frágil, que

só se deixa expressar no símbolo. O seu centro, o Cristo, é o próprio mistério de

Deus revelado na história humana e, enquanto tal, é o símbolo supremo da fé.

Nele estão enraizados os elementos fundamentais que configuram o cristianismo e

a partir dele se estabelecem as realidades da fé, da Igreja, do culto e também dos

sacramentos. Todos de natureza simbólica16. Segundo K. Rahner, Jesus Cristo é o

símbolo original, centro de toda simbologia cristã, do qual decorrem todos os

outros17.

No simbolismo encontra-se a consistência dos ritos e elementos da fé. Nele

torna-se possível a abertura ao transcendente e a presença do infinito no limitado.

Um cristianismo sem vitalidade simbólica será um cristianismo talvez com alguma força institucional, mas sem capacidade de inquietação e sugestão. Será filho do ritual, mas sem oxigênio renovador nem impulsionador. Terá consistência da organização, da boa administração e da burocracia e até sofisticada conceituação teológica, mas carecerá do dinamismo e da alegria que apontam para o mistério e vivem dele. Teremos uma fé inflexível, carente esperança e do futuro, da celebração e da festa, da amplidão do sentido e da expansão da existência18.

Deste modo, quando o símbolo entra em crise, o cristianismo também sofre.

No símbolo se diz o inefável e o invisível se manifesta. Sem o símbolo a

experiência religiosa e cristã se tornaria estéril.

15 Cf. Ibid., p. 137. 16 Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA J.T., op. cit., p. 779. 17 Cf. Ibid., p. 784. 18 Cf. MARDONES, J.M., op. cit., p. 11.

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As origens do simbolismo religioso também podem ser encontradas na

constituição natural humana, isto é, o ser humano é religioso por que é, antes de

tudo, animal simbólico, um ser aberto à profundidade do mistério. No símbolo

acontece a expressão máxima da experiência religiosa. Por meio dele o divino se

revela no humano, sem serem confundidos nem separados. Só no símbolo e

através do símbolo se revela o divino e podemos nos abrir a ele e entrar em

comunhão com ele19.

Com efeito, também para o cristianismo, “o símbolo é a única forma de

inserção do mistério na história” 20.

Neste primeiro capítulo queremos apresentar o valor da dimensão simbólica

da religião, e de um modo particular, sua relação com os sacramentos. Trata-se de

compreender em que sentido os sacramentos são símbolos de salvação para a

humanidade.

Tendo em vista as várias concepções e atribuições possíveis ao termo, e a

conseqüente falta de uma definição comum a todas as ciências, faremos uma

breve introdução especificando o que estaremos entendendo por símbolo, e,

posteriormente, definiremos em que sentido o aplicamos às realidades

sacramentais.

2.2

Definição de símbolo

Um grande equívoco que se levanta quando se tratam dos símbolos é pensar

que simbolismo seja sinônimo de uma simples imaginação e/ou que o mundo

simbólico seja necessariamente contrário à realidade e à razão.

A palavra Símbolo provém do termo grego symbolon21, derivação do verbo

symballein, que, entre outras possibilidades, significa “lançar com, por junto, unir,

juntar”. No seu sentido clássico trata-se de um objeto composto de duas partes

cujas metades não têm valor estando sozinhas. O valor simbólico das partes

advém da relação com a outra metade. Mais. Symballein não significa somente

19 Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA, J.T., op. cit., p. 784. 20 Cf. Ibid., p. 784. 21 Termo grego de origem militar. “Quando um soldado saía do quartel, quebrava-se uma vara; uma parte era dada àquele que saía e a outra era guardada pelo porteiro; quando o soldado voltava, o colocá-las juntas e comparar ambas as partes da vara encaixando-as bem era o que se chamava de símbolo”. Cf. FERNÁNDEZ, C. Manual de liturgia II: CELAM: a celebração do Mistério Pascal: fundamentos teológicos e elementos constitutivos. São Paulo: Paulus, 2005, p. 87.

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“colocar junto”, mas juntar alguma coisa que já estava junto antes e agora não está

mais. Deste modo, o símbolo não é algo que cria a unidade, mas a restabelece. Em

outras palavras, o que constitui o símbolo é que os portadores das metades têm a

possibilidade de se comunicar um com o outro e só tem sentido por causa dessa

comunicação22.

Um bom exemplo para compreendermos esta explanação é a imagem do

joelho. Duas metades movidas por uma única articulação e que só têm sentido se

unidas. A locomoção das pernas depende do trabalho conjunto das metades.

Essas definições são importantes porque nos ajudam a compreender o

processo de simbolização. O pensamento simbólico é algo consubstancial ao ser

humano; precede a linguagem e a razão discursiva. Não se trata de uma criação

irresponsável da psiqué, mas algo que preenche uma função e responde a uma

necessidade humana23.

Os símbolos revelam certos aspectos da realidade que desafiam qualquer

outro tipo de conhecimento e linguagem. Expressam muito mais do que alguém

poderia exprimir pela linguagem analítica24. Constituem a parte do humano que

não pode se apresentar diretamente à sensibilidade25. “Revelam uma modalidade

do real e da estrutura do mundo que não é evidente no nível da experiência

imediata” 26. Trata-se, portanto, de uma categoria universal27.

No campo religioso, o teólogo Paul Tillich entende o símbolo como a

linguagem mais própria para a fé: “A fé, como a condição em que se está tomado

por aquilo que nos toca incondicionalmente, não conhece outra linguagem a não

ser a do símbolo” 28. Isto significa dizer que as pessoas só conseguem

compreender e expressar a sua fé e a sua religiosidade, num sentido bem amplo,

utilizando-se do visível para falar do invisível, do presente para falar do ausente,

do humano para falar do divino, do imanente para falar do transcendente. “Aquilo

22 Cf. AUGÉ, M. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. 2ªed. Ave Maria: São Paulo, 2004, p. 99-100; GIRARD, M. Os símbolos na Bíblia: Ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal. Paulus: São Paulo, 1997, p. 26. 23 Cf. ELIADE, M. Imagens e símbolos. Martins Fontes: São Paulo, 1996, p. 8. 24 Cf. Ibid., p. 13. 25 Cf. MARDONES, J.M., op. cit., p. 90. 26 Cf. Ibid., p. 89. 27 Cf. ALDAZÁBAL, J. Gestos e símbolos. São Paulo: Loyola, 2005, p. 15. 28 Citação de PAUL TILLICH em KLEIN, R. O lugar e o papel dos símbolos no processo educativo-religioso. Disponível em: http://www.est.com.br/publicacoes/estudos_teologicos.

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que toca o homem incondicionalmente precisa ser expresso por meio de símbolos,

porque apenas a linguagem simbólica consegue expressar o incondicional” 29.

Alguns traços marcantes acompanham e identificam a experiência

simbólica.

Primeiro, do ponto de vista cognitivo o símbolo deve ser sempre objeto de

conhecimento imediato, capaz de ser assimilado e conhecido com facilidade;

Também do ponto de vista lingüístico deve ser facilmente exprimível, simples de

ser compreendido. O simbolizante está para ajudar a compreender o simbolizado,

e não para dificultar a sua compreensão30.

Do ponto de vista semântico, o simbolizante deve ser o mais possível

expressivo (objeto, palavra, gesto, pessoa...), bem como facilmente reconhecido

por uma coletividade. O símbolo deve ser algo que faz parte da sociedade na qual

está inserido, facilmente reconhecido e identificado por todos, e, portanto, ligado

à vivência/ experiência pessoal ou coletiva de uma determinada pessoa ou grupo,

respectivamente. Neste sentido, o símbolo só se torna instrumento de

comunicação se atinge a experiência vivida daqueles que o recebem31. Deve ser

extraído do quotidiano daqueles a quem se dirige.

Evidencia-se, assim, o papel e o poder das imagens e dos símbolos nas

religiões e na religiosidade das pessoas.

Pode-se dizer que do ponto de vista teológico até a visão e a interpretação

que o homem tem e faz do mundo são de natureza simbólica. Os meios que se

utiliza para transmissão dessa cosmovisão, tais como a linguagem, por exemplo,

são igualmente de natureza simbólica.

No simbolismo descobrimos uma nova relação com a realidade e,

sobretudo, uma possibilidade de comunicar e de comunicar-nos com tudo aquilo

que nos circunda de uma forma muito mais profunda do que qualquer outro modo

nos permita. A capacidade simbólica do homem não consiste em dizer ou fazer

determinadas coisas, mas em ver todas as coisas de uma determinada maneira, na

sua integração global e significativa32.

Neste sentido, só é possível chegar a uma visão coerente, unitária e

significativa da realidade se ele se abre ao transcendente, de tal forma que o

29 Cf. TILLICH, P. Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1974, p. 30 em Klein, R. op.cit. 30 Cf. GIRARD, M., op. cit., p. 37. 31 Cf. Ibid., p. 38-39. 32 Cf. AUGÉ, M., op. cit., p. 100.

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aspecto mais característico do homo symbolicus é a sua dimensão religiosa, isto é,

a capacidade que o ser humano tem de se relacionar com o sagrado. O simbolismo

religioso é a expressão mais íntima da necessidade da pessoa humana ultrapassar

os limites do próprio eu e abrir-se a novas experiências que dificilmente podem

ser sistematizadas em nível racional33.

Isto significa dizer que o ser humano não está restrito ao campo da

existência material. Pelo fato de ser constituído de corpo e alma, ao mesmo

tempo em que vive no mundo material, transcende-o34.

“A tensão dialética entre o natural e o sobrenatural, entre história e

escatologia, entre imanência e transcendência, encontra no simbolismo a

possibilidade de sair da contradição fundamentalmente de concorrência para

evoluir rumo a uma situação de efetiva e recíproca afirmação” 35.

Toda a imensidade de Deus se torna presente na pequenez de um símbolo.

Trata-se de uma autêntica e real contradição. Isto faz parte da natureza do

símbolo: a realidade que se esconde e se comunica por ele é sempre maior que a

capacidade humana de perceber a realidade que é simbolizada ou mesmo a própria

mediação simbólica. Constituem a síntese da iniciativa de Deus, que se comunica

adiantando-se gratuitamente em direção ao sujeito e da capacidade que esse

sujeito tem em si mesmo de responder a essa iniciativa; trata-se da busca por

expressar o indizível36.

Isto se torna ainda mais compreensível quando distinguimos os símbolos

reais dos símbolos representativos, ou, em outros termos, símbolos realizadores

dos símbolos informativos.

O sinal de trânsito informa ao motorista sobre uma realidade que está por vir

ou acontecida, como por exemplo, um acidente ou quebra-molas à frente; não é

ligado à realidade do tráfego que regula a não ser pela convenção de representá-lo

ou regulá-lo. Em outros termos, ele não contém a realidade, mas comunica algo

sobre a mesma.

Já os sacramentos são símbolos reais, realizadores daquilo que significam.

Seguindo a tradição Escolástica, no fundamento da compreensão dos sacramentos

33 Cf. Ibid., p. 100. 34 Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 88. 35 Cf. AUGÉ, op. cit. p. 101. 36 Cf. BELLOSO, J.M.R. Os sacramentos: símbolos do Espírito. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 57-58.

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como sinais está imbutida a noção de causa. Os sacramentos são sinais

causadores da graça. “No sacramento a graça de Deus se coloca eficazmente

presente ao criar sua expressão, sua concretude histórica dentro do espaço e

tempo, ou seja, seu símbolo” 37. É palavra criadora de realidade. É um símbolo

representativo.

Em síntese, podemos dizer que o símbolo “é signo de que a dispensação

divina enraíza-se na confluência da inteligência, do afeto e do inconsciente

humanos, o que permite à realidade significada antecipar-se na receptividade

humana” 38.

Daí, portanto, que a compreensão de que a função primordial dos

sacramentos como símbolos de fé é a de nos comunicar a pessoa divina e sua

salvação.

2.3 Fundamentos para um simbolismo sacramental

2.3.1 Revelação

Os fundamentos para a teologia de um simbolismo sacramental se

encontram na própria história da salvação judaico-cristã. A afirmação de uma

autocomunicação divina - no Antigo Testamento, sobretudo por meio da Lei e dos

profetas; no Novo Testamento, por meio de Jesus Cristo e dos seus discípulos -

encontra, necessariamente, nas suas raízes uma admissão àquilo que

compreendemos como “mediação”:

Muitas vezes e de modos diversos falou Deus aos Pais por meio dos profetas; agora nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho39; Há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo40.

Segundo a tradição judaico-cristã, Deus sempre se comunicou por meio de

sinais concretos, compreensíveis e acessíveis àqueles a quem se revelava,

37 Cf. RAHNER, K. Theologie des symbols em SCHNEIDER, T. (org.). Manual de Dogmática. Vol. II. Petrópolis: Vozes, p. 192. 38 Cf. BELLOSO, J.M.R., op. cit., p. 59. 39 Cf. Hb 1, 1-2. 40 Cf. 1Tm 2,5.

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condição necessária inclusive para que soubessem que estava se revelando41.

Trata-se de uma comunicação corporal, histórica, mediatizada42.

Para Israel, a história é um processo que Iahweh dirige para um término que

prefixou43. O campo privilegiado de ação da palavra44 profética é a história. Por

meio dela, Deus se manifesta e revela os seus desígnios de Salvação: retira o povo

da escravidão do Egito, leva-os até a terra prometida, chama-os à conversão por

meio dos profetas, socorre-os no exílio... Para Israel as promessas de Deus se

cumprem no concreto de suas vidas45.

Neste contexto, um elemento que ganha considerável relevância é a Tora, a

qual constitui o Sinal mais concreto e realizador da dispensação dos benefícios de

Deus para com o seu povo. Nela está contida a eleição do povo de Israel, com ela

Deus possibilita vida bem sucedida para o seu povo na terra prometida e através

dela o povo pode louvar a Deus no culto.

Toda a história de Israel tem caráter simbólico, desde os seus processos

políticos, em que Deus intervém e dirige o seu povo através de reis e homens

escolhidos, até as grandes epifanias e outras intervenções extraordinárias, tais

como a sarça ardente e as pragas do Egito46, através das quais o povo eleito

também percebe a presença do Deus libertador.

No Novo Testamento Deus se comunica com a humanidade mediante o seu

Filho, que se insere na história e nas leis próprias da natureza humana para nos dar

a sua salvação47. Novamente a historicidade torna-se a palavra chave e o critério

para a compreensão da revelação neotestamentária. Historicidade que exprime

muito mais que mera conexão de fatos e eventos, mas que indica a consciência

41 “O homem é um ser sacramental; no nível religioso, exprime suas relações com Deus num conjunto de sinais e símbolos; Deus, igualmente, os utiliza quando se comunica com os homens. Toda a criação é, de certa forma, sacramento de Deus, porque no-lo revela”. Cf. DOCUMENTO DE PUEBLA 920 em DOCUMENTOS DO CELAM. São Paulo: Paulus, 2004, p. 506. 42 Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 89. 43 Cf. LATOURELLE, R. Teologia da Revelação. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1985 p. 33. 44 “A religião veterotestamentária é a religião da “palavra”, mas, como no caso de qualquer linguagem, a primeira reação ao “dizer” não é outro dizer, mas o silêncio e a escuta”. FISICHELLA, R. Introdução à teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 71. 45 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 174. 46 Cf. Ibid., p. 175. 47 “O Novo Testamento dirá que em Cristo “a graça de Deus se manifestou para a salvação de todos os homens” (Tt 2,11) e que nele “se manifestaram a bondade e o amor de Deus, nosso salvador” (Tt 3,4; 2Tm 1,10). “Cristo é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15) a irrupção da divindade na carne visível (Cl 2,9). Os Padres, como Agostinho, reconhecerão que “não há outro sacramento de Deus senão Cristo”. E outros admirarão a união sem confusão das duas naturezas que visa um divino intercâmbio”. Cf. BOROBIO, D. (org.). A celebração da Igreja: liturgia e sacramentologia fundamental. Vol.1. São Paulo: Loyola, 2002, p. 298.

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que o próprio Jesus tinha ao situar-se diante da sua vida, do sentido a dar a ela e

da resposta que ele realmente deu a essa vida48.

O sinal inequívoco e realizador de Deus por excelência no Novo Testamento

é, portanto, a pessoa de Jesus Cristo, definido por são João como o Verbo eterno

de Deus feito carne49 para manifestar aos homens o amor50 e a Verdade de Deus51;

e, depois dele, a comunidade na medida em que atua no poder do ressuscitado.

Sua vida e seu exemplo são para a humanidade sinais de vida e salvação52.

A esta comunicação divina deve-se, por parte dos crentes, a resposta

obediente e confiante a que denominamos fé. O fato de ser realmente Deus que

age e é experimentado no evento salvífico não se pode comprovar

independentemente da fé53; pois da experiência faz parte não somente o evento,

mas também a sua interpretação54.

Por ser um evento dirigido aos seres humanos de forma humana, a revelação

não poderia deixar de ser simbólica. Entenda-se por “simbólica” primeiramente a

capacidade de se dirigir ao humano por uma linguagem não analítica, mas

compreensível, já que composta por elementos próprios de um determinado grupo

ou pessoa; depois, a capacidade de comunicar aquilo que se simboliza por meio

do simbolizante.

Neste sentido, a revelação é um ponto fundamental para a compreensão de

todo o simbolismo sacramental.

2.3.2 Constituição antropológica

Todas as afirmações sobre as realidades sacramentais nos levam a entender

que sua manifestação se dá por meio de sinais, gestos e ações concretos, ou, em

outras palavras, que os sacramentos devem ter um caráter sensível e visível.

48 Cf. FISICHELLA, R., op. cit., p. 81-82. 49 Cf. Jo 1,1-14; 1Jo 5,7; Ap 19,13. 50 Cf. Jo 3,16; 1Jo 4,10; 1Jo 4,16. 51 Cf. Jo 14,6. 52 Cf. LATOURELLE, R., op. cit., p. 41-90. 53 “É pela fé que se tem acesso ao mistério, ao Evangelho, à palavra. De fato, é pela fé que o homem reconhece como verdadeiro o plano de salvação, realizado por Deus na morte e ressurreição de Cristo, adere inteiramente a esse plano, se bem que desconcertante para a humana sabedoria (1Cor 1,17-30; 2,1-4). A pregação do evangelho tem por finalidade conseguir a obediência da fé (Rm 16,26; 2Cor 10,5). Fé é a resposta específica do homem à palavra do Evangelho” (LATOURELLE, R., op. cit., p. 65). 54Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 174-177.

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Além disso, como símbolos, os sacramentos não podem ter significado

incompreensível ao ser humano. Se deixarem de ser compreendidos, faltar-lhes-á

o caráter sacramental. Se o evento sacramental deixa de ser compreensível, deixa

também de comunicar aquilo para que existe55.

O que se quer expressar com símbolo na teologia dos sacramentos pode ser

desenvolvido inicialmente a partir de um ponto de vista antropológico. Em virtude

de sua estrutura corpo-espírito, o ser humano se realiza em expressão corporal. À

medida que este é e tem um corpo, do qual não pode prescindir, precisa exprimir-

se por meio dele.

Neste sentido, os símbolos sacramentais contêm e comunicam a realidade

simbolizada por meio de sua corporalidade e significação. Ao mesmo tempo em

que são atos essencialmente humanos, são também necessariamente corpóreos. O

ser humano necessita de sinais e símbolos porque é um ser de natureza simbólica;

precisa de sacramentos porque é um ser sacramental. Para significar e concretizar

o seu encontro com Deus, uma expressão e comunicação da graça adaptada à sua

condição corporal-sensível exige necessariamente os sacramentos56.

No termo símbolo estão contidos o reconhecimento da corporalidade

essencial de toda comunicação inter-humana, bem como a experiência da

variedade de dimensões de uma mesma realidade. Para a teologia hodierna o

pensamento simbólico representa um novo entendimento da teologia sacramental,

uma porta de abertura para fugir do ritualismo estéril.

Segundo a filosofia metafísica, o ser humano é símbolo do Ser. É, em si

mesmo, um ente necessariamente simbólico porque precisa dos seres para

exprimir-se. Em resumo, o símbolo constitui a presença do Ser no ente particular

e o cosmos, um grande símbolo do Ser.

A psicologia encontra nos símbolos uma via de expressão da interioridade

subconsciente. Segundo Jung, a função mediadora do símbolo entre o

inconsciente o consciente se torna possível graças às imagens e arquétipos

estabelecidos pela sociedade.

A teologia parte do princípio de que todo discurso sobre Deus é simbólico.

Reconhece que o símbolo tem lugar insubstituível no discurso da fé. Entende que,

55 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., passim. 56 Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 320.

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o simbolismo deve conservar a alteridade do simbolizado, sem deixar, no entanto,

de ser um segmento da realidade significada.

De uma forma ou de outra, o símbolo continua sendo a dimensão mais

original e fundamental do ser humano. A origem e a raiz do símbolo estão na

própria constituição do ser humano, na natureza mesma do seu ser57.

2.4 Sacramentos, símbolos de salvação

Na história da humanidade é comum que as religiões utilizem símbolos para

expressar sua busca de relacionamento com a divindade.

No Antigo Testamento encontramos vários desses sinais sagrados, tais como

a circuncisão, os sacrifícios, o cordeiro pascal, a arca da aliança, os pães sem

fermento... Ora evocavam a aliança de Iahweh com seu povo, como uma maneira

da sua perpetuação na vida israelita, ora simplesmente como uma expressão ritual

da necessidade do homem religioso de manifestar sua aspiração de comunhão

com Deus58.

No Novo Testamento os sinais evocam a aliança realizada por Cristo,

mediador do acesso ao Pai. Enquanto estruturas e funções rituais simbólicas,

inserem-se no grande contexto dos sinais sagrados, assemelhando-se aos do

Antigo Testamento e de outras religiões, porém, com a diferença na condição de

não somente sinalizar, mas realizar de maneira eficaz a obra de Jesus Cristo no

mundo, que é a salvação de todo gênero humano. A estes sinais damos o nome de

sacramentos.

O termo sacramento entrou na linguagem cristã através de Tertuliano no

início do século III, embora não tivesse sido ele mesmo o criador do termo.

Inicialmente, na literatura latina clássica, sacramentum59 significava o ato de

57 Cf. Ibid., p. 325-326. 58 Cf. GOMES, C. F. Riquezas da mensagem Cristã. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1989 p. 502. 59 O termo é formado pela raiz “Sacr-” e pela desinência “-mentum”. “Sacr”, que origina os termos “sacrum”, “sacrare”, “consecrare”, indica sempre uma relação com o numinoso, o divino. Além do mais, na cultura latina destaca comumente o aspecto público e jurídico do religioso. Por isso, a “res sacra” se distinguia da mera “res religiosa”, que pertencia ao âmbito da religiosidade privada. O sufixo “-mentum” designa o meio pelo qual algo se torna sagrado. Daí “sacramento” significar o instrumento através do qual alguém ou algo se torna sagrado. De fato, devido a um enriquecimento semântico, “sacramentum” chegou a ter um sentido ativo e passivo, podendo ser aplicado indistintamente ao agente, ao meio, à ação consagrante e ao objeto

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consagração com que o soldado prometia fidelidade ao seu imperador. Como

marca desta pertença trazia em seu corpo um sinal, que Tertuliano usou como

exemplo para descrever o Batismo e, posteriormente, todo o rito da iniciação

cristã, definindo-os como a inscrição na milícia de Cristo, designados até então

pelo termo grego mysterion60.

Embora tenha origens pagãs, o termo sacramento já possuía um sentido de

consagração, pertença e referência às coisas sagradas. Etimologicamente

sacramento designa o meio pelo qual algo se torna sagrado; trata-se de uma

relação com o numinoso.

Na história da Igreja, por muito tempo existiu na Igreja uma compreensão

restritiva do que se entendia por sacramento. O termo era usado e pronunciado

unicamente para designar os sete sacramentos ou ritos sacramentais. Todavia,

tratava-se de um empobrecimento da compreensão dos mesmos. A realidade

sacramental não é esgotada no setenário litúrgico-celebrativo. Existem outros

centros de sacramentalidade que, longe de se oporem aos sete sacramentos ou

diminuírem o seu valor, constituem o próprio quadro para a sua compreensão,

celebração e realização na vida61.

Não se trata de nenhuma novidade. No início da era cristã, a palavra

sacramento era empregada para designar também outras realidades distintas dos

sete ritos sacramentais, como Cristo, a Igreja, a Escritura, a Páscoa, a Encarnação,

a Quaresma, o mundo, etc. Foi apenas através de um longo e lento processo

histórico que se chegou a uma diferenciação clara entre os “sacramenta maiores”

(Batismo e Eucaristia) e os “sacramentos menores” (os outros sacramentos), bem

como entre estes e os outros “sinais sagrados”.

consagrado. (para aprofundamento cf. MARSILI, S. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 2001, p. 1059 passim). 60 A palavra sacramentum entrou no vocabulário cristão como uma tradução do termo grego mysterion, utilizado primeiramente pelos pagãos, sobretudo pelos gnósticos. Foi adotado e freqüentemente aplicado por Paulo nas suas cartas para designar os “mistérios” da vida de Cristo, isto é, todo evento da salvação realizado em Jesus Cristo, especialmente sua encarnação, morte e ressurreição: “o desígnio divino oculto em Deus desde todos os séculos” (Ef 3,9; Cl 1,26), agora “revelado em Cristo” (Cl 1,27). Com a vinda de Cristo o mistério salvífico se faz “revelação manifesta” (1Tm 1,9-10; Tt 2,11) e presença entre os homens (Jo 1,9-14; Ap 21,3). Embora tivesse origem pagã, o uso termo mistério, na compreensão cristã, nada tinha a ver com os cultos pagãos e a compreensão gnóstica da época (cf. MARSILI, S., op. cit., p. 1059). Nos Padres da Igreja a palavra mysterion encontra outros significados. Fala-se, no plural, dos “mistérios” do AT., da vida de Jesus e dos ritos cristãos. Neste último sentido pensa-se na comunicação do invisível através das realidades sensíveis (Cf. GOMES, C.F., op.cit., p. 503.). 61 Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 293.

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Segundo D. Boróbio, foi sobretudo a partir do século XIII (mais

especificamente a partir do Concílio de Trento), que a expressão foi utilizada para

indicar somente os sete ritos sacramentais da Igreja. A controvérsia com os

protestantes tratou de agravar ainda mais a situação, a tal ponto que daí por diante

só seria aplicado às realidades que preenchem os requisitos da instituição por

parte de Cristo, estrutura de matéria e forma, eficácia “ex opere operato” e

intenção por parte do ministro62.

Para os Padres da Igreja os sacramentos manifestam, presentificam e

realizam a salvação. Encontraram na filosofia platônica o fundamento para a

afirmação dos sacramentos como símbolos reais de salvação. Segundo a filosofia

platônica existe uma distinção entre a imagem original (mundo ideal) e a realidade

concreta, que é imagem-cópia da realidade ideal, sendo que a imagem original se

mostra na cópia, ainda que de modo mais fraco quanto à sua essência. Ademais,

tinham conceito amplo de sacramento, não os restringindo ao setenário litúrgico

sacramental63.

A teologia do Concílio Vaticano II, como toda a teologia católica atual, é

caracterizada por um movimento de retorno às fontes. Por este motivo, recuperou

a expressão e a aplicou em seu sentido mais original, em relação a Cristo, à Igreja,

ao cristão, ao homem, bem como a outras realidades criadas.

Baseando-se na Revelação e no Magistério, - destacamos aqui a grandiosa

contribuição da Patrística - a Igreja não hesitou em reconhecer como sacramento

outras realidades que não estão contidas no setenário sacramental. Não se trata de

um nominalismo (nome sem conteúdo) nem de um pansacramentalismo (tudo é

sacramento). Trata-se de uma ampliação da compreensão da sacramentalidade,

sem negar a sua verdade tradicional e genuinidade. É uma busca por reconhecer a

essência sacramental, com toda a sua originalidade, presente nas diversas

realidades, bem como os seus elementos comuns e diferentes, de tal modo que a

intercomunicação e a comparação nos revelem toda a riqueza aí encerrada 64.

Os sacramentos têm papel fundamental na vida da Igreja e do mundo. Desde

a ascensão do Senhor ao céu até o momento da sua parusia são eles que

continuam, atualizam e realizam, pela graça do Espírito Santo, a salvação de

62 Cf. Ibid., p. 294. 63 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 180. 64 Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 293-294.

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Cristo na história. Essa afirmação é importante, pois quer dizer que a obra

salvífica não cessou com o retorno do Cristo para junto do Pai e que, portanto, a

salvação não foi um ato restrito a um grupo de pessoas de uma época delimitada,

mas se estende a toda humanidade de todos os tempos e lugares.

De acordo com o Concílio, os sacramentos devem ser reconhecidos no

quadro global da experiência cristã65. Diz ainda que pela participação da Igreja,

sacramento radical de Cristo, somos inseridos no esquema ternário das funções ou

ofícios de Cristo, sacerdote, profeta e rei66. Sua perspectiva é mais funcional que

essencialista, mais prática que teórica. Não se prende tanto em explicar o que são,

mas em definir o que fazem67.

Os sacramentos destinam-se à santificação dos homens, à edificação do corpo de Cristo e ainda ao culto a ser prestado a Deus. Mas, sendo sinais, destinam-se também à instrução. Não só supõem a fé, mas por palavras e coisas também a alimentam, a fortalecem e a exprimem. Por essa razão são chamados sacramentos da fé. Conferem certamente a graça, mas, além disso, sua celebração também prepara os fiéis do melhor modo possível para receber frutuosamente a graça, cultuar devidamente a Deus e praticar a caridade68.

Os sacramentos nos colocam em sintonia com a mesma obra histórico-

salvífica que Cristo realizou no mundo. São sinais eficazes da salvação nos nossos

dias. No imanente se manifesta o transcendente, por meio da realidade visível dos

sinais sacramentais, o dom da salvação. De modo particular, a Igreja, sacramento

de Cristo, tem a missão de anunciar o Reino de Deus e a ressurreição do Senhor,

por seu exemplo e por sua pregação até os confins do mundo69.

Os sacramentos são o eterno desígnio salvador de Deus que se revela e se realiza com eficácia entre os homens. Ou é ação e obra divinas nas quais Deus, enquanto manifesta seu plano salvador, o realiza sobra a terra para que os homens reconheçam o Deus salvante nessa velada revelação e realização em curso, creiam nele, afirmem-no, deixem-se apreender por ele, e se salvem neste pessoal encontro com o Deus da sua salvação. É de Deus ao mesmo tempo uma ação e uma obra porque tanto a iniciativa e atividade divina quanto a sua execução podem ser

65 Cf. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, n.10-12, 14-15, 34, 37, 42; DECRETO CONCILIAR AD GENTES, n. 6, 9; DECRETO CONCILIAR PRESBYTERORUM ORDINIS n. 2, 4 em Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Paulus: São Paulo, 1997. 66 Cf. SESBOUÉ, B. (org.). História dos dogmas: os sinais da salvação. Tomo 3. São Paulo: Loyola, 2002, p. 218. 67 Cf. Ibid., p. 231. 68 Cf. CONSTITUIÇÃO CONCILIAR SACROSSANTUM CONCILIUM, n. 59 em Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Paulus: São Paulo, 1997. 69 Cf. Mt 28, 19-20; Mc 16, 15-18; At 1,8; BOROBIO, D., op. cit., p. 295-297.

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assinaladas no interior do homem. É um sinal eficaz por ser uma expressão da força salvadora divina de cima nos homens e converte a si70.

Os sacramentos como símbolos de fé não só informam catequeticamente

sobre o que têm por fim representar, mas têm também um papel mediador,

comunicante, unificador, transformador71... O comer e beber da eucaristia, por

exemplo, é a linguagem simbólica e eficaz da comunicação que Cristo nos faz de

seu corpo e de seu sangue, e da fé com que nós o acolhemos72. Deste modo, o

símbolo não somente transmite uma mensagem, mas provoca uma identidade,

uma aliança, comunica a própria natureza do simbolizado73. Segundo Tomás de

Aquino, não somente sinalizam, mas “efetuam o que representam” 74.

Deus se serve dos sacramentos perpassando por eles o seu poder, tal como

uma extensão da humanidade de Cristo75. Através do sinal sacramental traz ao

indivíduo a participação nos frutos da sua paixão, morte e ressurreição, dando

continuidade à obra outrora começada76.

Segundo E. Schillebeeckx, o simbolismo religioso sacramental possui uma

bivalência: eclesiológica e antropológica. Enquanto eclesiológica compreende o

sacramento como um ato do Senhor glorioso para a santificação da sua Igreja.

Enquanto antropológica, um ato de louvor da Igreja ao seu Senhor. Para ele os

sinais sacramentais servem tanto para comunicar a graça e a salvação de Cristo ao

mundo, como para glorificar a Deus (anábasis e katábasis77). Segundo o mesmo

teólogo, essa dupla função é comunicada em Jesus Cristo, salvador do gênero

humano e perfeito adorador do Pai78.

A concepção do Concílio Vaticano II, acompanha a teologia de

Schilibeeckx. Diz que os sacramentos são, em primeiro lugar, a iniciativa do

próprio Deus em direção à humanidade - santificação e edificação do corpo de

Cristo-, movimento fundamental, que dá sentido a um segundo, a resposta do ser

humano que se abre à iniciativa divina pela fé.

70 Cf. BARAÚNA, G. (org.). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 410. 71 Cf. LUMEN GENTIUM, n. 7, op.cit. 72 Cf. ALDAZÁBAL, J., op. cit., p. 18. 73 Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 93. 74 Citação da Suma Teológica III.ª, q.62, a1, 1m, em GOMES, C.F., op. cit., p. 503. 75 Esta teoria faz parte da compreensão do Concílio Vaticano II, por exemplo, na Sacrossantum Concilium, n. 7. 76 Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 507. 77 Sobre o aprofundamento dos termos ver BOROBIO, D., op. cit., p. 332. 78 Essas conclusões foram abstraídas da sua obra clássica Cristo, sacramento do encontro com Deus, citada ao longo do corpo do texto.

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Já os documentos pós-conciliares expressam a retomada dessa concepção da

teologia católica atual. Entendem os sacramentos no seu sentido mais original,

aplicando-o de forma mais abrangente. Os sete sacramentos ou setenário

sacramental são vistos não como um esgotamento da realidade sacramental, mas

como uma concretização da sacramentalidade da Igreja, que está presente em

várias outras circunstâncias e realidades da vida. Entre os documentos destacamos

Medellín e Puebla, pela sua repercussão na América Latina.

O homem é um ser sacramental; no nível religioso, exprime suas relações com Deus num conjunto de sinais e símbolos; Deus, igualmente os utiliza quando se comunica com todos os homens. Toda a criação é, de certa forma, “sacramento” de Deus porque no-lo revela79; “Cristo é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15). Como tal é o “Sacramento” primordial e radical do Pai: “Aquele que me viu, viu o Pai” (Jo 14,9)80; A Igreja é, por sua vez, “sacramento” de Cristo para comunicar aos homens a vida nova. Os sete sacramentos da Igreja concretizam e atualizam esta realidade sacramental para as diversas situações da vida 81.

Os sacramentos são sinais indicativos do presente. Manifestam ao olhar da

fé a aplicação da obra salvífica do Senhor à nossa vida atual: nossa iniciação na

vida do Reino, nossa refeição espiritual, nosso reerguimento, nossas

possibilidades de vivermos a santidade e justiça todos os dias e todas as grandes

situações humanas. Os sacramentos atestam o Deus presente, o Cristo que

prometeu estar conosco “todos os dias até a consumação do século” 82.

Em relação ao futuro, nutrem a esperança escatológica, porque nos lembram

que a obra de Deus prossegue até a realização definitiva do homem novo no Reino

de Cristo ressuscitado 83. Colocam-nos em conexão com o Reino presente entre

nós, mas ao mesmo tempo nos projetam para a realidade que ainda está por vir.

A superação do racionalismo e do mecanicismo, bem como a recuperação

de uma espiritualidade saudável, que acredita na possibilidade do encontro do

humano com o divino, sem, no entanto, confundir as duas realidades, passam,

necessariamente, pelas categorias simbólicas.

É necessário redescobrir o símbolo como categoria constitutiva da teologia

sacramental, como um elemento fecundo do encontro do Deus salvador com a

79 Cf. DOCUMENTO DE PUEBLA, n. 920 em DOCUMENTOS DO CELAM. São Paulo: Paulus, 2005 80 Cf. PUEBLA, n. 921, op. cit. 81 Cf. PUEBLA, n. 922, op. cit. 82 Mt 28,20. 83Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 504-506.

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humanidade redimida. Ele é a linguagem própria para a fé, pois consegue exprimir

de maneira simples, mas de forma profunda e compreensível, a realidade

simbolizada, sem esgotá-la.

O símbolo nos coloca em sintonia com realidade comunicada, não somente

representa, mas nos permite entrar em contato com o simbolizado, comunicando-

o. É neste sentido que entendemos os sacramentos, como agentes comunicadores

daquilo que simbolizam: a graça, a salvação, a pessoa divina. E neste contexto

está a Igreja, sacramento radical de Cristo, sinal de salvação para a humanidade.

Esta perspectiva simbólica, desde que compreendida corretamente, também

pode ser aplicada à pessoa de Cristo. No capítulo seguinte queremos apresentar de

que maneira Cristo é sacramento/ símbolo do Pai. Note-se que, mesmo que por

algumas vezes o termo símbolo seja omitido da nossa pesquisa, a dinâmica e a

perspectiva simbólicas não só perpassarão, mas constituirão a base de todo o

nosso trabalho. Daí a importância deste primeiro capítulo.

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3 Cristo, sacramento original

3.1 Introdução

Toda teologia sacramental cristã parte da pessoa de Jesus Cristo. Ele é o

sacramento primordial da salvação, o sacramento de Deus por excelência84:

“Quem me vê, vê o Pai” 85. Este versículo constitui um dos textos chaves para a

compreensão da sacramentalidade de Cristo. Em Jesus está a pessoa de Deus

humanizada. Nele, Deus se tornou conhecido e acessível aos homens. Cristo é o

rosto de Pai no sentido que nos revela a pessoa, os desejos e os planos de Deus.

Seus atos, sua vida são a manifestação do amor divino pelos homens, sinais e

causa de salvação.

Pelo mistério da encarnação, o Filho de Deus tornou-se verdadeiramente

homem e no encontro com ele temos um encontro pessoal com o Deus vivo, pois

aquele homem é, pessoalmente, o Filho de Deus. “O encontro humano com Jesus,

é, pois, o sacramento de encontro com Deus” 86.

Cristo é, por sua encarnação, o sacramento original, o sinal realizador, o

símbolo real por excelência, a corporificação de Deus para dentro de nosso

mundo. É sinal no sentido de que é a palavra que não apenas fala de Deus, mas é o

próprio Deus atuante na História87.

Sua vida terrena é a mais concreta manifestação da bondade divina. Acolheu

os pecadores, deu paz aos aflitos e anunciou, por seus próprios atos, o amor e a

solidariedade como os sinais mais importantes da presença do Reino de Deus

entre nós. Revelou-nos, por seu exemplo, que a autêntica vivência cristã se

encontra na doação integral de uns aos outros.

Sua entrega até a morte se tornou o sinal mais concreto do seu amor pela

humanidade. Sua ressurreição e glorificação, sinais de esperança, protótipo

daquilo que há de se manifestar em todo ser humano na plenitude dos tempos.

84 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20. 85 Jo 14,9 86 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p.47. 87 Cf. SCHNEIDER, T. (org). Manual de dogmática. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 199.

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Enquanto aguardamos a realização plena e definitiva da promessa, a Igreja

se manifesta como grande referencial, sinal perpetuador da salvação, despertando,

nutrindo e sustentando a esperança da vida futura na vida dos seus membros.

A conseqüência disso é que todo sacramento deve ser posto em relação a

Cristo e vivido a partir da sua sacramentalidade, pois só têm sentido em relação a

ele. Cristo é o sacramento original do qual provém todos os outros.

Neste segundo capítulo queremos apresentar em que sentido a encarnação

e a vida de Cristo constituem o fundamento e o sentido da sacramentalidade

eclesial e qual a relação da Igreja com o mistério de Cristo. Trata-se de um

capítulo de característica cristológica, fundamental para a compreensão da

sacramentalidade cristã.

3.2 A Encarnação como fundamento da sacramentalidade cristã

Jesus é o homem que inteiramente e sem reserva entrou em união com Deus

e com o próximo e a eles se entregou. Toda a sua existência, vida, morte e

ressurreição é um grande gesto de reconciliação 88. Sua paciência e bondade com

os pecadores são sinais da graça divina que procura os perdidos e os salva da

morte da sua culpa. Seus atos e sua vida são uma manifestação do amor divino

pelos homens e do amor humano para com Deus89. Desse modo, Jesus aparece

como o grande sacramento, sinal do amor salvífico de Deus inserido na

humanidade, ação divina para todos os homens e entre eles90.

Jesus é sacramento pela sua atuação, pela sua verdade ética, pela totalidade

da sua ação messiânica e salvadora. Sua vida é uma verdadeira missão junto dos

homens: dedica-se ao próximo, ouve suas misérias, dúvidas e anseios; cura os

doentes, perdoa os pecadores, reconduz os perdidos91. Ao fazer-se servo92 e

membro dos exilados torna-se a manifestação e a revelação do próprio coração de

Deus, de tal forma que em Jesus podemos ver o próprio “rosto” misericordioso do

Pai: “Quem me vê, vê o Pai” 93. Por sua vida revela a intimidade e a profundidade

88 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 411. 89 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 23. 90 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 412. 91 Cf. Ibid., p. 411. 92 Cf. Fl 2,6-11. 93 Jo 14, 9.

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de Deus aos homens: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o

Filho o quiser revelar” 94. Através de seus atos o mistério da encarnação vai se

esclarecendo e se manifestando e a sacramentalidade “ontológica” de Cristo surge

como sacramentalidade ética95.

Demonstra através do seu comportamento e da sua pregação uma abertura

radical a seus contemporâneos, sem distinções e reservas, sem discriminações ou

diferenças. Por isso mesmo atropelou, freqüentes vezes, costumes respeitados,

convenções sociais e tradições marginalizantes. Desse modo, teve trato com todos

os grupos sociais de seu tempo: doentes, leprosos, pecadores, publicanos,

saduceus, zelotas, samaritanos, sem excluir pessoa alguma. E ainda foi mais além

ao dar preferência aos que na época eram considerados os mais afastados do

Reino de Deus, como os pobres e os pecadores. Os pobres por desconhecer a lei,

não a praticavam e, portanto, não tinham chance alguma diante de Deus. Os

pecadores, por terem pecado e, estariam assim, condenados96.

O fundamento da sua conduta era a experiência que tinha de Deus como

alguém que o amava infinitamente, que o aceitava totalmente e que fundamentava

sua resposta incondicionada. Toda sua vida girava em torno do Pai, que ocupou

sempre o centro da sua vida e pregação. Vivia em obediência e entrega ao Pai o

completo despojamento de si. Neste sentido, era alguém sempre voltado ao outro,

mesmo que isso significasse prejuízo, sofrimento, incompreensão, conflito e

ameaça97.

É sacramento por seus atos privilegiados, isto é, pelos atos nos quais se

manifesta de forma especial o seu poder salvador, a presença maravilhosa de Deus

nele: “Pois bem, para que saibais que o Filho do homem tem poder na terra de

perdoar pecados... disse então ao paralítico: levanta-te, toma teu leito e vai para

casa” 98. Essas ações, embora realizadas em forma humana são, por sua natureza,

ações de Deus, como podem ser os milagres, o perdão dos pecados, o oferecer o

seu corpo como comida e o seu sangue como bebida e, sobretudo, a sua morte,

ressurreição e glorificação: mistério pascal, a partir do qual toda as demais coisas

assumem sentido e valor. Por esses atos, Jesus revela a obediência ao Pai e o amor

94 Mt 11,27 95 Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300. 96 Cf. MIRANDA, M. F. A salvação em Jesus Cristo: A doutrina da graça. São Paulo: Paulus, 2004, p. 71. 97 Cf. Ibid. p. 72-73. 98 Mt 9,6

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aos homens, glorifica ao Pai e santifica os homens. “São os atos mais perfeitos de

um novo culto” 99.

Por sua morte ensinou-nos o que é o abandono de si e a obediência ao Pai;

Pelo sofrimento associou-se a nós e fez da solidão uma das experiências mais

ricas de comunhão com Deus e com os irmãos. Pela paixão se tornou a oblação

perfeita, uma oferenda viva em prol da humanidade. Por sua ressurreição se

tornou a ponte que nos permite voltar a Deus, bem como participar da vida eterna.

Assim, o homem Jesus, manifestação terrestre e pessoal da graça redentora

divina, é o sacramento primordial, pois este homem, filho de Deus, é querido pelo

Pai como o único acesso à realidade da salvação. Pois há um só Deus e, também,

um só mediador entre Deus e os homens, que é o homem Jesus Cristo100. Quem

encontra esse homem, quem se entrega a ele, quem constrói sua vida sobre ele e se

deixa assumir por ele, este encontra a força redentora de Deus e é salvo por ele.

A vontade de Deus teve em Cristo sua real presença histórica no mundo.

Cristo é o sinal da vontade salvadora e da misericórdia divina. É ao mesmo tempo

a realidade da graça tornada perceptível na história. A encarnação se tornou o

grande evento salvador pelo qual Deus alcançou a humanidade de maneira

historicamente sensível101.

Uma das afirmações mais profundas e anunciadoras da missão de Cristo

junto a nós está no Evangelho de João: “Deus amou tanto o mundo que enviou o

seu Filho único para que todo o que nele crer não morra, mas tenha vida eterna” 102. Deus amou-nos, é a primeira afirmação do texto. E amou-nos para que

fôssemos salvos, em seu Filho. A finalidade concreta da encarnação do Filho de

Deus é a salvação do gênero humano, que em outros termos denominamos

“redenção”. Tal redenção consiste em libertar o homem do pecado e levá-lo a uma

comunhão de graça e de amor para com Deus. O amor humano de Jesus é a

própria manifestação do amor divino pela humanidade. A vivência desse amor faz

dos seres humanos imagens semelhantes a Deus. Por este amor Cristo os

diviniza.103.

99 Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300. 100 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 22. 101 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 412. 102 Cf. Jo 3,16 103 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 23.

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Mas não somente isso. Numa perspectiva ascendente, Cristo faz da sua vida

um verdadeiro culto de adoração ao Pai, uma oblação perfeita. Não apenas revela

a salvação de Deus, mas se faz, ele mesmo, o adorador supremo do Pai, a

realização suma e perfeita de toda religião. Mostrou-nos por sua vida o que é um

homem inteiramente entregue a Deus104.

Se considerarmos que a humanidade de Jesus é representativa de todos nós,

torna-se claro que o movimento de baixo para cima é um movimento que parte de

toda a humanidade e vai a Deus, através da humanidade representativa de Jesus.

Nele encontramos o protótipo realizador supremo e perfeito da resposta de amor

com que a humanidade deve corresponder ao projeto do Pai. Por seu oferecimento

em nosso nome e em nosso lugar, o homem Jesus se torna pessoalmente fonte e

norma de todo encontro e diálogo com Deus105. Neste contexto adquirem

particular importância os eventos da vida de Jesus.

A páscoa é o mistério da submissão plenamente amorosa de Jesus ao Pai,

até a morte, a fidelidade do encarnado ao Pai; é ao mesmo tempo o mistério da

resposta divina a esse dom de amor. A misericórdia de Deus sobre esse sacrifício

é a anulação do pecado pela ressurreição.

Embora na ordem cronológica tenha ocorrido primeiro, na ordem da fé, o

mistério da Encarnação não foi a primeira verdade contemplada pelos apóstolos; a

primeira foi a ressurreição. No entanto, foi somente a partir deste primeiro olhar,

de característica ascendente106, que se chegou a entrever a divindade de Jesus na

sua humanidade107.

Nos textos bíblicos, a encarnação aparece já nas primeiras páginas dos

evangelhos como o sinal por excelência do Novo Testamento: “E o Verbo se fez

carne e habitou entre nós; e nós vimos sua glória” 108. Cristo entra na história

humana como um “sinal-sacramento”: “Quando, porém, chegou a plenitude dos

tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para

104 Cf. Ibid., p. 24. 105 Cf. Ibid., p. 25. 106 Cf. At 2,22-36; 4,10ss; 13,16-41; Rm 1,2ss; Fl 2, 6,11 107 A reflexão sobre a encarnação do Cristo deu margem para vários debates e heresias. De um lado os que acentuavam a divindade em detrimento da humanidade de Cristo (docetismo, apolinarismo, monofisismo monotelismo), do outro os que acentuavam sua humanidade (adocianismo e nestorianismo) em detrimento da sua divindade. Para aprofundamento deste assunto ver SERENTHÁ, M. Jesus Cristo ,ontem, hoje e sempre. Ensaio de Cristologia. São Paulo: Dom Bosco, 1986. 108 Jo 1,14

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remir os que estavam sob a lei” 109. A encarnação é entendida como o

cumprimento de uma presença prometida: “Tomar-vos-ei por meu povo, e serei o

vosso Deus” 110; a concretização de uma resposta fiel esperada desde o Antigo

Testamento (esperança messiânica): “Muitas vezes e de modos diversos, falou

Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos falou-

nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual

fez os séculos. É ele o resplendor de sua glória e a expressão do seu ser” 111.

O Mistério salvífico de Deus, que se revela no fato histórico da Encarnação,

consiste em que “Deus não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos

nós” 112. E o Filho, em seu amor e na força da obediência total ao Pai113, pode de

tal modo esvaziar-se de si mesmo, que por nós e em nosso lugar se fez homem

como nós114; privando-se de sua glória divina e assumindo a existência de

pecado115 se entregou a mais extrema humilhação, sofrendo uma morte

vergonhosa116, destinada a ladrões e pessoas perigosas para a sociedade da época.

“Somente quando se considera este fim da existência humana do Filho de

Deus é que se pode calcular qual o mistério que operava em Deus, no início, no

‘momento’ em que o Filho era enviado para dentro da história, a fim de assumir,

pessoal e definitivamente, tal ‘ser homem’”. Somente nesta perspectiva a

katábasis117 do Filho de Deus assume verdadeiro sentido118. A Encarnação de

Cristo, o mistério de sua entrada na existência humana, constitui o início do seu

rebaixamento e humilhação para a nossa salvação119.

Segundo as Escrituras, a história da salvação tem o seu ponto culminante e

significado supremo em Jesus Cristo. Nele todos nós recebemos “graça sobre

graça” 120 e também nele somos reconciliados com o Pai121.

109 Gl 4, 4-5; O Novo Testamento nos mostra Cristo como um só indivíduo (Jo 2,19; 3,13; 1,5; 1Cor 2,8; At 3,15; 20,28; Jo 1,14; Fl 2,6). Fala-se de um só Cristo, de sua igualdade com o Pai e de sua igualdade conosco (1Jo 1,2; Rm 1,3; 8,3.32; 1Tm 2,5; Cl 2,9). 110 Ex 6-7; Jr 7,23 111 Hb 1, 1-3; Cf. BOROBIO, D., op.cit., p. 297. 112 Rm 8,32 113 Cf. Jo 5,19 114 Cf. Fl 2, 6ss. 115 Cf. Rm 8,3; Hb 12, 2 116 Cf. Mt 27,46 117 Palavra de origem grega. Significa o movimento de descida que Deus fez ao assumir a nossa humanidade, seu rebaixamento humilhação para a nossa salvação (Fl 2,1ss). 118 Cf. FEINER, J; LOEHER, M. Mysterium Salutis: Compêndio de dogmática histórico-salvífica. Vol.III/5: O evento Cristo. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 33. 119 Cf. Ibid., p. 33. 120 Jo 1, 16

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Trata-se de um evento situado num instante exato do tempo, onde o Verbo

de Deus, em obediência à vontade do Pai, assumiu a carne do pecado e entrou na

história, na existência humana. “O momento preciso deste acontecimento é como

que o ponto de junção por um lado, entre a eternidade divina na qual o Filho

sempre esteve junto do Pai, mas também já estava no mundo que ele criara e, por

outro lado, o tempo da história da humanidade” 122.

Todavia, a encarnação do Filho de Deus não deve ser entendida como um

momento isolado ocorrido na história, tal como um fato acontecido que logo

cessou, mas uma condição permanente da existência de Cristo, que não se desfaz:

toda a vida de Jesus Cristo é o mistério da encarnação, uma realidade permanente

do seu ser humano e divino. A união hipostática123, que começou no momento da

concepção virginal de Jesus no seio da Virgem Maria é indissolúvel. Esta é a sua

característica mais importante124. Uma realidade permanente que nem mesmo a

morte suprimiu. A divindade que constituía a pessoa de Jesus estava unida não só

à alma, mas igualmente ao corpo125.

A Encarnação do Filho de Deus é uma realidade que vai se desenvolvendo

paulatinamente na história humana. Não é somente a concepção no seio de sua

mãe, mas uma realidade que foi crescendo através de toda a sua vida e que atingiu

o seu ponto culminante no evento da sua morte, ressurreição e glorificação. A

Encarnação não é apenas o evento do Natal, mas todo o conjunto da vida morte e

glorificação do Senhor126. Trata-se de toda a vida de Cristo, começando no seio

materno, continuando através de dos seus atos e culminando na morte,

ressurreição e constituição como Senhor e aquele que, juntamente com o Pai,

envia o Espírito Santo.

Pela encarnação Cristo se fez pecado para nos libertar do pecado. Assumiu

as nossas transgressões para nos reconduzir a uma vida de comunhão com Deus.

Viveu a dor e o abandono na obediência ao Pai para nos mostrar que só em Deus

podemos encontrar sentido para os sofrimentos da vida.

121 Cf. Rm 5, 10; 2 Cor 5, 18; INCARNATIONIS MYSTERIUM. Bula de proclamação do grande jubileu do ano 2000. In http://www.vatican.va 122 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. III/5, op. cit., p. 29. 123 Com a expressão “hipóstase” ou “união hipostática” quer-se acentuar que a presença divina em Jesus não é algo exterior a ele, mas é a base do seu ser, a raiz do existir humano de Cristo. O homem Jesus e o divino Verbo são um só ente, uma só hipóstase, uma só pessoa. 124 Cf. Sl 110, 4; Hb 7,24-25; 13,8 125 Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 307. 126 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 25.

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No núcleo humano de sua experiência pessoal, Cristo é realmente aquele que carregou nossos pecados. E é assim que ele se encontra diante do Pai. “Todos pecaram e se privaram da glória de Deus” (Rm 3,23), ou melhor, não possuem o Espírito de Deus, Na manifestação humana de Jesus sobre a terra, a “glória de Deus” está ausente. Jesus podia, pois, pedir com insistência ao Pai, imediatamente antes de sua morte: “Pai, agora, glorifica o teu filho”, isto é, “dá tua glória a este homem Jesus”. Durante a vida terrestre de Jesus, diz são João, “não havia ainda Espírito, pois Cristo ainda não havia sido glorificado 127.

Outro elemento importante é que a humanidade de Cristo não foi um

acidente na história da redenção cristã, mas um fato querido e estabelecido por

Deus desde toda eternidade128, parte do seu plano para a salvação do gênero

humano, bem como do messianismo de Cristo129. Jesus é a própria manifestação

da Graça corporificada, o amor de Deus no plano da visibilidade histórica130.

Toda relação do Cristo com a humanidade se realiza por meio da sua

corporeidade. O “eu divino” quis viver não só no amor e no intelecto divinos, mas

quis ter também como seus o intelecto e a vontade humanos, o sentir e até o

morrer humano131. O encontro humano de Deus com a humanidade se realiza pela

e na presença visível do corpo132.

A definição dogmática de Calcedônia133, segundo a qual Cristo é uma única

pessoa em duas naturezas, significa que uma só e mesma pessoa, o Filho de Deus,

resolveu manifestar-se sob a forma humana. Cristo é o Filho de Deus até em sua

humanidade. A segunda pessoa da Santíssima Trindade é pessoalmente Deus. Em

outras palavras, Cristo é Deus de uma maneira humana.

[Confessamos] um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que deve ser reconhecido em duas naturezas, sem confusão e sem transformação, sem divisão e sem separação; a diferença ente naturezas não fica absolutamente suprimida pela união entre as duas, mas ao contrário, as propriedades de cada uma das naturezas permanecem intactas, e unem-se numa só pessoa [prósopon] ou hipóstase; (confessamos) não (um filho) dividido ou distinto em duas pessoas, mas um só e mesmo filho, unigênito, Deus, Verbo, Senhor, Jesus Cristo, como os profetas já

127 Cf. Ibid., p. 33. 128 Cf. Ef 1,4; 1Cor 2,7; 2Cor 1,20; Col 1,25s; 1Pd 1,20. 129 Cf. Mc 1,15; Ef 1,10. 130 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium salutis. III, 5, op. cit., p. 30. 131 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 21. 132 Cf. Ibid., p. 22. 133 O Concílio de Calcedônia se desenrolou entre 08 e 31 de outubro de 451, na Basílica de Santa Eufêmia e se debruçou sobre a questão das naturezas de Cristo e a unidade da sua pessoa.

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disseram dele, como o próprio Senhor Jesus Cristo, ensinou, e como o símbolo dos santos Padres nos transmitiu 134.

Antes, o Concílio de Éfeso (431) já havia definido que só existe uma única

pessoa em Jesus Cristo. Segundo o mesmo Concílio, é na pessoa do Filho que se

unem o divino e o humano e a diferença entre as duas naturezas jamais foi

suprimida ou afetada por essa união135. Sua intenção era a de resguardar a verdade

da humanidade do Verbo de Deus, concretizada na pessoa de Jesus Cristo136.

Pois não dizemos que a natureza do Verbo, transformada, se fez carne; nem tampouco que se mudou no homem inteiro, composto de alma e corpo; mas que, tendo unido consigo o Verbo, segundo a hipóstase ou pessoa, a carne animada de alma racional, se fez homem de modo inefável e incompreensível, e foi chamado filho do homem, não somente pela vontade ou complacência, nem tampouco pela assunção somente da pessoa, e que as naturezas que se juntam em verdadeira unidade são distintas, mas que de ambas resulta um só e mesmo Cristo e Filho; não como se a diferença das naturezas se destruísse pela união, mas porque a divindade e a humanidade constituem, antes, para nós um só Senhor e Cristo e Filho, pela concorrência inefável e misteriosa na unidade... Porque não nasceu primeiramente um homem vulgar, da santa Virgem, e logo então desceu sobre ele o Verbo; mas que, unido desde o seio materno, se diz que se submeteu a nascimento carnal, como quem faz seu nascimento da própria carne... Desta maneira [os santos padres] não consideraram inconveniente chamar mãe de Deus à santa Virgem 137.

Também o Concílio de Nicéia, realizado em 325, esclareceu, a propósito de

um suposto subordinacionismo do Filho em relação ao Pai, que o Filho de Deus

possui a mesma substância divina do Pai, e que por esse motivo possui a mesma

dignidade. À luz dos Concílios e reflexões posteriores, podemos afirmar que essa

dignidade e consubstancialidade do Filho em relação ao Pai, definida pelo

Concílio de Nicéia, perpassa a pessoa do Cristo também na sua humanidade.

Num outro contexto e de modo atualizado essa visão se repete também nos

documentos do Concílio Vaticano II e subseqüentes. Sem a preocupação de

defender-se de acusações e heresias, como no contexto dos documentos

anteriormente citados, a Igreja reafirma a sua fé na humanidade de Cristo e

134 Definição do Concílio de Calcedônia em DS 302: DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/ Loyola, 2007. 135 Cf. RUBIO, A. G. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para os nossos dias. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 168-169. 136 Para aprofundamento ver SESBOUÉ, B. (org). História dos dogmas: O Deus da salvação. Tomo 1. São Paulo: Loyola, 2002, p.317-334. 137 Definição do Concílio de Éfeso em DS 250, op. cit.

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encontra nela fundamento para uma vida cristã mais autêntica, inserida na

realidade do mundo, sem, no entanto, com ele equiparar-se.

Imagem do Deus invisível (Col. 1,15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que, nele, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado. Cordeiro inocente, mereceu-nos a vida com a livre efusão do seu sangue; n 'Ele nos reconciliou Deus consigo e uns com os outros e nos arrancou da escravidão do demónio e do pecado. De maneira que cada um de nós pode dizer com o Apóstolo: o Filho de Deus «amou-me e entregou-se por mim» (Gl. 2,20). Sofrendo por nós, não só nos deu exemplo, para que sigamos os seus passos, mas também abriu um novo caminho, em que a vida e a morte são santificados e recebem um novo sentido 138.

Em Jesus Cristo temos verdadeiramente um homem, capaz de consciência e

de livre arbítrio, um corpo animado de espírito. Seu amor é a forma humana do

amor redentor de Deus139.

Se, portanto, o amor e todos os atos de Jesus possuem força divina de

salvação, a manifestação dessa força inclui essencialmente um aspecto de

visibilidade concreta dessa salvação: em outras palavras a sacramentalidade. O

homem Jesus, manifestação terrestre e pessoal da graça redentora divina, é o

sacramento primordial, é querido pelo Pai como único acesso à realidade da

salvação140.

3.3 Cristo sacramento do Pai

Com o evento da Páscoa iniciou-se uma reflexão explícita sobre a vida de

Cristo. À medida que os primeiros cristãos aprofundavam sua fé, a Cristologia do

Novo Testamento se desenvolvia. Partindo da ressurreição, começaram a se

questionar sobre a vida histórica de Jesus de Nazaré. Afinal, o ressuscitado era o

mesmo que caminhava com eles pregando o Reino de Deus. O que havia de

138 CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES, n. 22, em Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 563. 139 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20. 140 Cf. Ibid., p. 22.

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especial naquele homem que mereceu tão grande “fim”? Quem era ele? Estas

perguntas compõem o centro do Kerygma141 primitivo.

O ápice dessa reflexão foi a conclusão de que o Cristo glorioso e

ressuscitado, o mesmo que nasceu no meio de nós e morreu livremente para a

nossa salvação, preexistia no mistério de Deus desde toda a eternidade.

Começando pelo estado glorioso e a condição de ressuscitado, a identidade

pessoal de Jesus e sua filiação divina foram gradativamente estudadas e

desvendadas num processo retrospectivo, que, partindo dos mistérios de sua vida

até o seu nascimento humano, chegaram à sua preexistência em Deus142.

A conseqüência foi que puderam ver em Jesus a face de Deus manifestada

aos homens, o sinal revelador do Pai. Jesus de Nazaré é o Filho de Deus feito

homem para a nossa salvação. O sacramento realizador das promessas divinas.

É sacramento, em primeiro lugar, pelo seu próprio ser, por sua própria

verdade ontológica, por sua presença entre os homens como Filho de Deus: “O

Verbo se fez carne” 143. Não se trata de um homem qualquer, mas do próprio Deus

feito homem entre os homens. O fato de Cristo ter assumido a natureza humana e

de assim ter manifestado, corporal e visivelmente, a bondade de Deus faz dele um

verdadeiro sacramento144.

“Através do homem - Jesus se chega a Deus e através do Deus - Jesus se

chega ao homem. Nele, há perfeita adequação e harmonia entre o seu ser de Deus

141 Palavra de origem grega, cujo significado pode ser traduzido por “anúncio”. Diz respeito à Boa nova do Reino pregada por Cristo, bem como os mistérios da nossa salvação, que são a paixão, morte e ressurreição do Senhor. Nas primeiras comunidades cristãs, diz respeito ao anúncio da salvação em Jesus Cristo, que tem como finalidade a conversão e adesão à fé por parte de quem recebe o anúncio. As características da cristologia do Kerygma primitivo podem ser sintetizadas em poucas palavras deduzidas do sermão de Pedro no livro dos Atos dos Apóstolos, capítulo 2: trata-se de uma cristologia pascal , baseada na ressurreição e glorificação de Jesus pelo Pai. Sua exaltação é uma ação do Pai, sobre Jesus, em nosso favor, a que devemos responder com nosso arrependimento e conversão, concretamente simbolizados pela adesão ao batismo cristão. O mistério pascal constitui o centro do Kerigma primitivo, acentuado na ressurreição de Jesus (1Cor 15, 3-7; Rm 1, 3-4; 1Tm 3,16; 1Ts 1, 10; Gl 1, 3-5; 3, 1-2). Cf. DUPUIS, J. Introdução à Cristologia. São Paulo: Loyola, 1999. 142Embora não haja unanimidade entre os exegetas, segundo Dupuis a primeira cristologia neotestamentária palestina desenvolvida foi a da “parusia” (marana tha), que unia a ressurreição de Jesus à sua vinda escatológica: aquele que devia voltar é o mesmo que ressurgiu glorioso, vencedor da morte. A cristologia do ressuscitado estava estreitamente ligada à esperança da sua volta futura. O “já” da ressurreição era a garantia do cumprimento da promessa do “ainda não” escatológico. “Jamais houve fé numa parusia de Jesus sem exaltação, como também nunca houve fé na exaltação pura e simplesmente. O que se esperava era a parusia daquele que fora alcançado até a divindade”. Cf. DUPUIS, J., op.cit., p. 79-80. 143 Jo 1,14. 144 Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 299.

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e para Deus e o seu ser de homem para o homem” 145. Por ser Deus, Cristo é capaz

de revelar-nos fielmente os planos do Pai; por ser homem, pode representar-nos

de modo perfeito diante de Deus. Estando perfeitamente com Deus, ele está

perfeitamente com o homem e vice-versa. A fronteira humana de Deus e a

fronteira divina do homem aparecem de modo maravilhoso na pessoa de Cristo,

tornando possível o encontro radical. A partir do seu próprio ser, Cristo é o

sacramento desse encontro146.

“Cristo é a imagem do Deus invisível” 147. Como tal é o “Sacramento

primordial e radical do Pai” 148. Ao assumir a natureza humana Jesus torna-se

homem como nós e vive, com liberdade, na sua humanidade, a vontade do Pai. Na

sua vida está realizada a absoluta comunhão do homem com Deus. Em Jesus o ser

humano atinge o ápice da comunhão com o seu criador149. Ele é o Sacramento

original sobre quem está estabelecido todo pensar teológico-sacramental cristão e

é o fundamento de toda e qualquer expressão sacramental eclesial150.

3.4 A morte de Cristo como sacramento de sua entrega

A morte de Cristo se revela como o ápice da sua vida sacramental entre os

homens, sua entrega total ao Pai, em favor da humanidade. Toda a vida de Jesus

foi uma existência para os outros151, fundada na doação constante aos pobres,

pecadores e marginalizados. Doação incondicional que encontra na paixão e morte

de cruz a expressão máxima da sua entrega: “Ele nos amou e se entregou a si

mesmo por nós” 152; “Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou para a nossa

justificação” 153; “Amou a Igreja e por isso entregou-se por ela” 154.

A novidade trazida por Jesus incomodou demasiadamente os fariseus. Suas

pregações e exemplos eram fortes demais para serem aceitas pacificamente pelos

“doutores da fé”: Jesus se opunha às estruturas de comércio, dominação e

145 Cf. Ibid., p. 299. 146 Cf. Ibid., p. 300. 147 Cl 1,15. 148 Cf. PUEBLA, n. 921. 149 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 411. 150 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20; BARAÚNA, G., op. cit., p. 410. 151 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M. Mysterium Salutis: compendio de dogmática histórico salvífica. Vol. III/6: O evento Cristo. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 57-62. 152 Ef 5,2. 153 1Cor 15,3-4; Rm 4,25. 154 Ef 5, 25; Cf. MIRANDA, M. F., op. cit., p. 76.

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manipulação da religião. Sua comunhão com as pessoas desprezadas e que

transgrediam as prescrições relativas à pureza e ao sábado tiveram efeitos

consideráveis. O escândalo decisivo provocado por Jesus residia na pretensão de

agir em nome e no lugar de Deus. Mais ainda: Jesus não só se voltou em nome de

Deus à pessoas excluídas, mas também negou que o limite entre justos e

pecadores estabelecido pelos “guardiões da lei” fosse entendido como vontade de

Deus155.

O conflito se agravou quando Jesus foi para Jerusalém e passou a lidar

diretamente com os saduceus e sacerdotes superiores que lá dominavam156.

Segundo as tradições judaicas, ele deveria ser condenado à pena de morte,

mediante apedrejamento157. Foi condenado pelo Sinédrio por ser considerado um

blasfemo por ter se identificado como “Filho de Deus” 158. Mas como isso não era

suficiente para sua condenação, já que se tratava de um motivo religioso, levaram-

no às autoridades romanas sob o pretexto de que ele seria mais um daqueles

pretendentes a messias, que apareciam repetidamente na época, embora no direito

judaico, a pretensão de ser messias não era um delito que merecesse a morte.

Suspeito de ser um perturbador da ordem pública, Jesus foi condenado como um

agitador político por representar uma ameaça ao império159. Sobre sua cabeça o

motivo de sua morte: julgavam que queria ser rei dos judeus160.

A forma da execução de Jesus, a cruz, era aplicada somente a escravos e

rebeldes, mas nunca a cidadãos romanos. Era considerada a forma mais cruel e

vergonhosa com que se poderia executar alguém, o que representou uma

verdadeira catástrofe para aqueles que nele acreditavam161.

Mas que diferença tem a morte de Cristo da morte de tantas outras pessoas

que também viveram uma existência para os outros e até por causas muito justas?

O que há de específico na morte de Cristo que a diferencia das demais e que a

coloca num grau de importância superior?

155 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 254-255. 156 Cf. Mc 14, 1 ss. 157 Cf. At 7,54-60. 158 Cf. Mc 14, 61. 159 Cf. Lc 23, 2-5. 13-24. 160 Cf. Mt 27,37. 161 Cf. Ibid. p.256.

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A Escritura nos diz que “um só morreu por todos, então todos passaram pela

morte” 162, e ainda, que Cristo “provou a morte em favor de todos” 163. No alto da

cruz fez ecoar o grito que brota das profundezas da infelicidade e da dor de toda a

humanidade: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste!” Grito de quem se

identificou em tudo com o sofrimento humano e viveu até o fim a nossa fraqueza.

Na iminência da morte sentiu medo e angústia164, realidades que sugerem a idéia

de um homem tomado por profunda pertubação e solidão165, mas que por seu

despojamento e entrega total ao Pai renovou e dignificou a humanidade: “Pai, em

tuas mãos eu entrego o meu Espírito” 166.

O valor da morte de Cristo está no fato não somente dele ter se doado “por

nós”, mas em ter se doado “em nosso lugar”. Ofereceu-se, gratuitamente, pelo

perdão dos pecados de quem já estava condenado. Seu sacrifício pagou

definitivamente a nossa culpa. Desse modo, Jesus é identificado como o “servo

sofredor” do livro de Isaías, no Antigo Testamento167: o justo que é oferecido em

expiação pelos pecados do mundo168. Jesus morreu por amor a nós, em proveito

nosso e em nosso lugar169.

Expiação170 é, antes de tudo, entrega total para salvar a vida de quem já está

condenado; sacrifício oferecido por uma situação irreparável, por uma culpa que

mereça a morte ou por uma vida irremediavelmente perdida. A expiação consiste

na libertação da vida condenada. Na compreensão do Antigo Testamento, um

animal oferecido em expiação de uma pessoa substituía a vida daquele em prol de

quem se oferecia o sacrifício, era oferecido no lugar da pessoa e pagava pelo

crime da mesma. O bode expiatório constituía um exemplo muito conhecido171:

carregado com os pecados do povo, o bode era solto no deserto, onde morria. 162 Cf. 2Cor 5,14. 163 Cf. Hb 2,9. 164 Cf. Lc 22,44. 165 Cf. CANTALAMESSA, R. Nós pregamos Cristo crucificado. São Paulo: Loyola, 1996, p. 132. 166 Lc 23,46. 167 Cf. Is 52, 13-53,12. 168 Cf. Rm 6,10; 1 Pd 3,18; Hb 7,27; 9,12; MIRANDA, M.F., op. cit., p. 77. 169 Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 127. 170 “Teologicamente, compreende os conceitos de expiação do pecado e de reconciliação do homem com Deus. No Antigo Testamento, o termo chave que se refere à expiação é o hebraico kapper, que significa “cobrir” “ocultar” o objeto que ofende, removendo assim o obstáculo à reconciliação. No ritual cultual, o termo é usado em sentido técnico para indicar um ato de expiação realizado através da aspersão do sangue da vítima”. No Novo Testamento o termo hebraico encontra várias traduções, com vários significados, entre as quais está hilasmos, aplicado a Jesus com o sentido de reconciliação (Cf. MACKENZIE, J. L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 2005, p. 329-330). 171 Cf. Lv 16,20-26.

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Realizava-se assim a expiação substitutiva172. Tais sacrifícios eram

constantemente denunciados pelos profetas, que convidavam o povo a uma

conversão real e sincera.

Segundo a doutrina cristã, Cristo é o Cordeiro imolado oferecido em

expiação dos pecados do mundo condenado: “Todos pecaram e estão privados da

glória de Deus” 173; “Todos estão condenados à morte decorrente do pecado” 174.

Cristo é o justo oferecido no lugar dos ímpios: “Aquele que não cometeu pecado,

Deus o fez pecado por nós, para que por ele nos tornemos justiça de Deus” 175.

Se o pecado consiste essencialmente num ato livre, com o qual a vontade do

homem desobedece a Deus, então a redenção não poderia configurar-se senão por

um retorno à perfeita obediência e à submissão à vontade de Deus. Assim, Jesus

aparece como modelo mais sublime de obediência. Assume a obediência em nome

de toda a humanidade, e por sua atenção à vontade do Pai, resgata e aniquila a

desobediência do primeiro Adão. Sobre isto Paulo nos diz: “Como pela

desobediência de um só, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela

obediência de um só, muitos e tornaram justos” 176.

Outro ponto importante é que a cruz de Cristo não era a cruz de um homem

qualquer, mas a cruz de um homem-Deus, de Deus humanizado, que abraçou

livremente o sofrimento, a dor e a morte pela causa da salvação da humanidade.

Muitas outras pessoas já haviam morrido crucificadas no tempo de Jesus,

inclusive ao seu lado, onde foram colocados dois ladrões177. Mas nunca se ouviu

dizer que a cruz de algum deles tivesse salvado alguém. Em nenhum lugar da

Sagrada Escritura está dito que algum daqueles que morriam diariamente

crucificados tivesse salvado alguém. Mas a cruz de Cristo salvou. Não pelo

simples fato de ser uma cruz, mas por ser a cruz do próprio Deus, que não se

valeu de sua condição, mas esvaziou-se completamente, entregando-se até a

morte, em nosso lugar, por nossos pecados178. Em Cristo, Deus morreu por nós.

Nisto consiste o valor do seu sacrifício e a possibilidade da expiação das

nossas culpas. O Santo dos Santos carregou os nossos pecados sobre a cruz para 172 Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 126. 173 Cf. Rm 3,23. 174 Cf. Rm 5,12. 175 Cf. 2 Cor 5,21; MIRANDA, M. F., op. cit., p. 78. 176 Cf. Rm 5,19; CANTALAMESSA, R. O mistério da Páscoa. Aparecida: Santuário, 2003, p.29-31. 177 Cf. Mc 15, 27. 178 Cf. Fl 2, 6-11.

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rasgar nosso título de dívida e, então, triunfar sobre os principados e as

potestades179. Mas esse triunfo foi conseguido com o brado do abandono divino,

em meio às trevas180 “bebendo o cálice” dos nossos sofrimentos e morte181.

Por sua morte, Cristo despojou a morte de seu poder182. Destruiu pela morte

o dominador da morte183. Cristo morreu e reviveu para ser o Senhor dos mortos e

dos vivos184. Ressuscitado dos mortos, Cristo não morre mais: a morte não tem

mais domínio sobre ele185.

A vinda do Filho de junto do Pai e sua entrada no mundo pecador

constituem para Jesus a missão de atestar dentro da humanidade a dependência

dessa mesma humanidade ante o Pai, até o fim mais amargo186. Cristo consagrou-

se inteiramente ao Pai pela sua vida e pela sua morte187.

3.5 A ressurreição de Jesus como sacramento da nova vida

Com a paixão e morte de Jesus, a luz que ia se acendendo na alma dos

discípulos não resistiu à prova de seu trágico fim. Uma escuridão os encobriu e

aqueles que chegaram a reconhecer Jesus como o enviado de Deus, como aquele

que era mais do que todos os profetas, agora não sabiam mais o que pensar. O

estado de espírito dos discípulos é nos apresentado por Lucas no episódio dos dois

discípulos de Emaús: “Nós esperávamos que ele fosse o Messias, mas já se

179 Cf. Col 2,14s. 180 Cf. Mc 15, 33-37. 181 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. III/6, op. cit., p. 32. 182 Cf. 2Tm 1,10; 1Cor 15,25s. 183 Cf. Hb 2,14. 184 Cf. Rm 14,9. 185 Cf. Rm 6,9; MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 633. 186 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 35. 187 Sem dúvida, podemos afirmar que no contexto da paixão a Eucaristia é um elemento que assume grande importância. Trata-se do próprio memorial continuador da paixão do Senhor junto a nós. “Ao instituí-lo, Jesus não se limitou a dizer ‘isto é o meu corpo’, ‘isto é o meu sangue’, mas acrescenta ‘entregue por vós’, derramado por vós (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sacrifical, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois realizaria na cruz pela salvação de todos”.“Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se tratasse simplesmente de uma oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual” (Cf. JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 12. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 17).

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passaram três dias que essas coisas aconteceram” 188. Em outras palavras, o caso

Jesus estava considerado encerrado189.

A ressurreição de Jesus constitui o artigo mais fundamental da fé cristã, a

ponto de São Paulo poder dizer: "Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação;

vã também é a vossa fé... e ainda estais nos vossos pecados" 190. A ressurreição de

Jesus ocupa um lugar primordial e indispensável no conjunto das verdades cristãs.

Sem ela tudo teria se encerrado com a morte de Cristo na cruz e toda e qualquer

perspectiva de continuidade, atualização e celebração do mistério pascal perderia

o seu sentido.

A ressurreição é a fé central da Igreja, constitui o nervo, o ponto crucial da

nossa fé e da vida de Cristo. É um mistério do qual vive a cada dia: a Igreja afirma

que o ressuscitado vive com ela e se faz presente na vida quotidiana, na comunhão

fraterna, na vida litúrgica, tanto quanto na primeira experiência pascal191. Isto nos

é revelado pelos sacramentos. Daí a relevância de abordarmos o tema da

ressurreição como elemento constitutivo e fundamental da teologia sacramental.

Nada se afirma a respeito do modo como teria ocorrido a ressurreição. O

motivo é simples, trata-se de um acontecimento sem testemunhas. Ninguém

estava presente no momento em que Jesus ressuscitou. Da ressurreição só se tem

notícias mediante as aparições do próprio Jesus, que é posterior ao evento. O

anúncio, portanto, é feito não a partir de testemunhos oculares do evento, mas a

partir do encontro dos discípulos com o ressuscitado192. A origem e o fundamento

da fé na ressurreição encontram-se nas aparições do próprio ressuscitado aos seus

discípulos193.

Por estas, Deus revela que aquele Jesus, morto, está agora plenamente vivo.

Constituem uma experiência de fé da ação reveladora de Deus às suas

testemunhas. Entretanto, não é a fé que cria o ressuscitado, mas a revelação de

Deus a respeito da sua ressurreição que constitui a origem e o fundamento da fé.

188 Lc 24,21. 189 Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 50. 190 1Cor 15, 14. 17. 191 Cf. CHARPENTIER, E. Cristo ressuscitou. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 41. 192 Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 52. 193 Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 107.

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Não se trata de uma invenção brotada da esperança frustrada dos discípulos, mas

de um acontecimento concreto, factual194.

A ressurreição de Jesus constitui a confirmação da sua vida e exaltação até

Deus. Delas brota a percepção de que ele fora confirmado por Deus. Os que o

viram reconheceram que aquele que se manifestava era o Jesus terreno que

pregava em seu meio. Neste sentido o testemunho seria a confirmação da

pregação. Possui uma implicação missionária195.

O Evangelho nos diz que o Senhor “ressuscitou verdadeiramente” 196, quer

dizer, de fato, realmente. Sua ressurreição deve ser compreendida como o início

da plenitude final, tal como na perspectiva escatológica judaica. Nele estão as

primícias da ressurreição dos mortos197. Através dela Deus revelou

definitivamente a si próprio.

O Novo Testamento enuncia a fé na ressurreição de Jesus a partir de três

elementos principais: primeiro, a partir das confissões ou fórmulas de fé198;

segundo, pelo exemplo das testemunhas que afirmam a realidade da ressurreição e

que tiveram um encontro com o ressuscitado; e, por fim, a partir dos relatos

evangélicos sobre o ressuscitado199.

Entre os principais testemunhos do Novo Testamento encontramos os textos

de 1Cor 15, 1-11; Rm 1,3-4; At 2, 23-24. Tais fórmulas provavelmente se

desenvolveram em ambiente litúrgico e constituem alguns dos substratos mais

194 Com este parágrafo, sem entrar no mérito da discussão, queremos apontar para um debate levantado, sobretudo por R. Bultmann e pela corrente protestante liberal, sobre a veracidade do evento da ressurreição. Segundo ele, a ressurreição não passaria de uma visão psicogênica, de alguns sonhos, ou ainda, de uma invenção dos discípulos de Jesus, por causa da frustração de terem perdido o seu mestre, em quem colocaram toda a sua esperança. Esta teoria tem por base a teoria da demitização. Segundo Bultmann só é possível chegar ao conhecimento verdadeiro de Cristo retirando os mitos que compõe os evangelhos. Eles seriam modos de pensar e representar o mundo de uma época pré-científica, que concebia o universo formado por planos sobrepostos: o de Deus, o do homem e dos infernos. Segundo ele, essa concepção mítica estaria superada. A escola de Rudolf Bultmann julga ainda que todo episódio transcendental só pode ser ficção ou mito. Por isto nega a ressurreição corpórea de Jesus. Afirma, sim, que o que ressuscitou foi a Palavra de Deus; esta foi ameaçada de sufocação pelos judeus perseguidores, mas superou as adversidades e propagou-se vitoriosamente pelas regiões do Império Romano. Segundo Bultmann, o que teria ressuscitado não seria propriamente o Cristo, mas a mensagem de Cristo, por meio da pregação apostólica. 195 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1, p. 385. 196 Lc 24, 34. 197 Cf. 1Cor 15,20; RUBIO, G., op. cit., p. 110. 198 Tratam-se de fórmulas nascidas no entusiasmo da comunidade: nascidas espontaneamente ou compostas, são apreendidas e proclamadas, especialmente por ocasião do Batismo ou diante dos tribunais. Formam o núcleo central do Kerygma ou anúncio primitivo (Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 41). 199 Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 104-108.

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antigos e ricos das pregações e confissões de fé das comunidades primitivas200.

Nelas encontramos aquilo em que acreditavam os primeiros cristãos, seu modo de

viver e de entender a fé. Sua compreensão a respeito do mistério salvífico de

Cristo.

O que lhes transmiti, foi em primeiro lugar, o que eu tinha recebido: que Cristo morreu por nossos pecados e que ressuscitou ao terceiro dia, cumprindo as mesmas escrituras; que apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Posteriormente apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim, que sou como quem nasceu fora do tempo 201.

Pela ressurreição Cristo abre um horizonte para além da história. Entende-a,

não como um retorno às mesmas condições de existência e vida mortal, mas uma

passagem à existência definitiva202. Uma realidade que só pode ser apreendida e

experimentada mediante a fé203.

A Revelação consiste num evento ocorrido na história, mas que só poderá

ser plenamente manifestado e compreendido quando esta história estiver

terminada. Isto é o que dá à ressurreição de Cristo o caráter de unicidade e

decisão: ela é a antecipação do acontecimento do fim dos tempos, que resume a

história, e, ao mesmo tempo, por ser antecipação do fim, a revelação definitiva de

Deus.

Segundo J. Moltmann a ressurreição de Cristo cumpre, de modo antecipado,

a promessa de Deus, sem esgotá-la, e nos projeta para um futuro204. Ela não

encerra a profecia ao cumpri-la, mas a abre, pois reforça a promessa confirmando-

a. A segunda vinda de Cristo não será apenas um desvendar do que já aconteceu

de modo oculto, mas o cumprimento final da promessa205.

Jesus adotou a crença judaica na ressurreição dos homens e no mundo

futuro, tal como se acha expressa nos textos apocalípticos do Antigo

Testamento206, inclusive na sua linguagem, mas se diferenciou dos mesmos

200 Cf. RUBIO, G., op. p.104-105. 201 1Cor 15, 3-8; Trata-se de uma confissão pré-paulina, recebida por Paulo da comunidade primitiva da Palestina. Constitui um resumo do Kerygma pascal (cf. RUBIO, G., op. cit., p. 106). 202 Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 51. 203 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol.1, p. 258. 204 Cf. MOLTMANN, J. Teologia da Esperança. São Paulo: Loyola/ Teológica, 2005. 205 Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 26. 206 A crença na ressurreição dos mortos é muito antiga, anterior ao cristianismo, podendo ser encontrada já no judaísmo tardio. Surge como uma forma de afirmar uma recompensa para os justos frente ao problema dos sofrimentos. Questionava-se se não existiria uma realidade pós-

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quando disse que a ressurreição consiste na vida eterna em comunhão com Deus.

Além disso, estabeleceu uma grande diferença quando fez uma identificação entre

o “filho do homem” e ele próprio. Jesus também se apropriou de textos dos

salmos em que os justos exprimiam a confiança de serem arrancados por Deus às

garras da morte207 e aplicou a si os textos judaicos que falavam da ressurreição 208.

Verdadeiramente a ressurreição de Jesus foi um evento inovador e

surpreendente para os apóstolos. Eles não só não acreditavam como também não

compreendiam o que Jesus queria dizer quando falava da sua ressurreição. A

expressão “terceiro dia”, utilizada pelos evangelistas para se referir à promessa da

ressurreição, constitui menos uma informação cronológica que a certeza de um

triunfo final.

Para os apóstolos a ressurreição não evoca a reanimação de um cadáver,

mas a passagem definitiva para onde se viverá plenamente com Deus numa

existência corporal transfigurada. Se eles o esperavam para o “terceiro dia”, isto

significa para o “dia da consolação dos mortos”, no fim dos tempos, o dia em que

Deus dará a vida aos mortos, e não o dia depois do amanhã, cronológico.

Na verdade, em nenhum momento os apóstolos esperavam a ressurreição de

Jesus como aconteceu e como acreditamos hoje. Não só não aguardavam a

ressurreição para o domingo, como também não acreditaram quando viram o

Senhor ressuscitado. Isto porque não compreenderam o que Jesus lhes dizia sobre

sua própria ressurreição209, pois para eles o Messias não podia morrer210.

morte onde os justos receberiam a recompensa pelas boas obras praticadas, enquanto os maus, os castigos pelas faltas cometidas nesta vida. Desta forma surge no judaísmo, embora de forma ainda não definida, a idéia de uma vida pós-morte, fruto da justiça de Iahweh, que honra o seu povo. Citamos dois textos bíblicos que atestam aquilo que afirmamos: Jó 19, 25-26: “Eu sei que o meu defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó; depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele, e em minha carne verei a Deus”; Dn 12,2: “E muitos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbio, para o horror eterno”. 207 Cf. Sl 16. 208Todos os crentes do tempo de Jesus esperavam o cumprimento da promessa de Deus. Porém, esta expectativa se diversificava na sua concepção, segundo os diversos grupos e ideologias existentes na época. Alguns acreditavam na ressurreição, outros negavam-na explicitamente. Entre os mais conhecidos, citamos: 1) os saduceus: grupo de radicais conservadores, que tinha como princípio a fidelidade rigorosa à lei de Moisés fixada no Pentateuco. Rejeitavam explicitamente a ressurreição. 2)os fariseus: acreditavam firmemente na ressurreição dos mortos, embora sob duas posições: uns acreditam que a ressurreição aconteceria antes da vinda do messias; outros, após a sua vinda. 3) Os essênios: estes falavam pouco a respeito da ressurreição. Não está claramente atestada nos textos de Qumran. Consideravam-na como a entrada num universo transformado (Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 36). 209 Cf. Mc 9, 9-10. 210 Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 97.

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Tudo isto nos permite compreender como ficaram desorientados diante da

morte de Jesus. Nos permite entender também porque nada esperaram da manhã

do domingo (que, no entanto, era o terceiro dia); continuavam aguardando o

“verdadeiro terceiro dia” da ressurreição geral do fim dos tempos. Além disso, a

esperança que tinham colocado em Jesus desmoronou a partir da sua morte na

cruz211.

Pela ressurreição Jesus também entrou num novo modo de presença,

conhecimento e amor em relação ao seu Pai e à humanidade. Foi constituído o

Senhor do mundo inteiro pelo Pai, que através de Cristo estabeleceu o seu Reino

sobre o mundo, o qual deve ser transfigurado para e pela nova condição do

ressuscitado212.

Outro ponto importante e que deve ser considerado, é que a interpretação da

vida e morte de Jesus sempre tem como pressuposto o evento da ressurreição. Isto

significa dizer que a interpretação do evento salvífico de Cristo é sempre uma

leitura pós-pascal; que só é possível compreendê-lo a partir da sua nova condição

de ressuscitado213.

Do mesmo modo, mas no sentido inverso, também a ressurreição só

encontra significado salvífico se em unidade com a vida humana de Jesus Cristo.

Está intimamente ligada à sua vida e constitui o ápice da sua missão salvadora.

Representa a salvação e a consumação de Jesus, bem como a confirmação divina

da sua história terrena. Por meio dela Cristo se manifesta definitivamente como o

Filho de Deus e atinge o ápice da sua comunhão com o Pai214. A ressurreição é a

ação soberana do Pai, pelo Espírito, em relação a Jesus, o Filho215, é a

consumação da vida e morte de Jesus pelo Pai216.

Jesus é o mensageiro escatológico e o portador da salvação de Deus, o

Messias, o Filho e Verbo encarnado. Somente a partir da páscoa pode-se dizer que

a humanidade de Jesus é a própria auto-comunicação de Deus para dentro da

nossa história, que Deus entrou na história para revelar o seu amor redentor. Na

ressurreição também é revelado que uma vida a partir de Deus e para os outros

211 Cf. Ibid., p. 39. 212 Cf. Ibid., p. 89. 213 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1, p. 382. 214 Cf. Ibid., p. 383. 215 Cf. Gl 1,1; Rm 1,4; 1 Pd 3, 18; Ef 1, 19ss. 216 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 383.

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tem um sentido indestrutível e que a comunhão de amor com Deus e com os

irmãos é o sentido pleno de toda a criação217.

Por sua confiança e entrega total ao Pai, Cristo, que por amor já tinha

assumido a cruz como sinal da sua doação total por nós, por sua ressurreição

também nos dá a nova vida. Jesus viveu numa relação singular de entrega e

confiança a Deus Pai por meio de sua vida e morte. “Lançou-se para dentro do

Deus incompreensível, que aparentemente o abandonara e morreu dentro dele” 218.

O amor de Deus, porém, não permitiu que a vida de Jesus fosse subjugada pela

morte, de tal modo que Jesus foi amparado pela ação ressuscitadora do Pai ao

morrer e sua morte não caiu no “nada”, mas foi acolhido na vida eterna de Deus e

conservado como pessoa (como ele mesmo) justamente ao receber a vida nova da

ressurreição.

Ao ressuscitar Jesus, Deus Pai se mostra a favor de seu Filho, contra todos

os que o haviam condenado, e conseqüentemente, na humanidade de Jesus, a

favor de todos pelos quais Jesus havia morrido, os pecadores. Deste modo,

confirma o anúncio que Jesus fizera, de um Deus amoroso e acolhedor. A

ressurreição é, portanto, a ação reveladora e autocomunicadora de Deus219.

3.6 A ressurreição de Jesus como sacramento da Esperança

O que aconteceu com Jesus é antes de tudo, um sinal para nós. Para

compreendermos o que somos e o sentido da história, seria necessário que

pudéssemos nos situar no termo desta história. Ora, o que aconteceu com Jesus é o

que Deus havia prometido para o fim dos tempos. Em sua ressurreição, o

acontecimento do fim se torna presente diante de nossos olhos. No ressuscitado já

podemos contemplar o termo para o qual nos encaminhamos. Nele todo o sentido

de nossa existência de homem, pessoal e coletiva, nos é desvendado. A

ressurreição se tornou o protótipo daquilo que se realizará em toda a humanidade,

o sacramento mais expressivo da esperança da humanidade na vida futura. A

ressurreição de Cristo é o sacramento, o sinal eficaz, da nossa passagem, com todo

217 Cf. Ibid., p. 386. 218 Cf. Ibid., p. 383. 219 Cf. Ibid., p. 384.

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o universo, para a vida de Deus220. O que seremos um dia já se acha realizado em

Cristo.

Com efeito, sua ressurreição é uma antecipação da nossa. O que seremos um dia já se acha realizado nele. Após a ressurreição, o cristão pode certamente sofrer com sua morte, mas não pode ficar surpreendido com ela: pois já a viveu em Jesus, ‘servo sofredor’; poderá certamente maravilhado de ser introduzido um dia junto de Deus, mas não ficará espantado, pois desde já, em Jesus ‘Filho do Homem’, ‘Deus nos vivificou juntamente com Cristo... com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus’ 221.

Por sua ressurreição encontramos uma outra face para a morte, não mais a

de um fim, como se fosse o ponto final da nossa existência, mas a de um novo

nascimento, como uma ponte que nos permite o acesso à nova vida.

Segundo Moltmann, em Jesus ressuscitado tudo já está feito. Deus cumpriu

sua promessa para ele e para nós. Mas, no entanto, tudo ainda está por fazer, no

sentido de que aquilo que já está realizado em Jesus deve nos incitar a trabalhar

para que a promessa se realize também em nós e o senhorio do crucificado se

realize sobre todas as coisas.

Se levarmos a sério a ressurreição de Cristo, nossa esperança será

exigência de uma transformação histórica de vida. Os cristãos são as testemunhas

de uma promessa que faz surgir o novo na história e que lhes proporciona um

futuro possível. A teologia da esperança termina numa teologia de missão na

Igreja222.

Ora, se Jesus viveu inteiramente ligado a Deus e para os outros, sua

ressurreição também só pode ser compreendida sob este olhar, isto é, a partir da

sua dupla relação com Deus e conosco. Não se trata de uma consumação para si

mesmo, mas uma concretização da sua vida para “o outro” e só pode ser

compreendida sob este duplo aspecto da sua exaltação para a plena imediatez com

Deus e unidade permanente com ele (relação com o Pai) e exaltação para a

posição permanente de mediador da salvação (relação com a humanidade). O

humilhado se tornou Senhor223.

Enquanto exaltação para junto de Deus, entendemos a sua glorificação, o

Senhorio que Deus lhe concedeu, após a sua ascensão. A ressurreição e a 220 Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 102. 221 Cf. Ibid., p. 91; Ef 2, 5-6. 222 Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 93. 223 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 387.

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exaltação são a entrada também da humanidade de Jesus Cristo na glória do Pai,

que o Filho eterno já possuía antes da criação do mundo224. O Novo Testamento

se serve de várias expressões para falar sobre isto: entronização do Filho de Deus

no reino celeste; a imagem do Filho sentado à direita do Pai; ascensão de Jesus

aos céus. Trata-se de um relacionamento de extrema unidade e simultânea

diferença. Foi exaltado como conseqüência material da encarnação e humilhação

de Deus até a morte.

Mas a ressurreição também é a exaltação do Filho para a posição de

mediador. Jesus não viveu para si, mas para os outros e seu senhorio leva também

e permanentemente a marca do seu amor auto esvaziador. Ele não se eleva

triunfalmente sobre seus torturadores, mas permanece o humilde, que abre mão de

toda demonstração de força e ocupa o último lugar para servir a todos. Deste

modo, Jesus assumiu definitivamente o lugar de único mediador da salvação225 e

está permanentemente ativo em termos soteriológicos, mesmo depois da sua

ascensão aos céus.

Ele permanece para sempre o que foi outrora: aquele que nos prepara um lugar junto de Deus (Jo 14,2) e a auto promessa ou auto comunicação de Deus a nós em pessoa, o sacramento pessoal em que Deus nos entende a si mesmo e convida. Assim, o Cristo exaltado continua sendo a proposta de relação que Deus nos faz, a mão estendida de Deus 226.

Da ressurreição brotam ainda algumas implicações teológicas, entre as

quais: corroborar e autenticar a pregação de Jesus, pois só Deus pode ressuscitar

um morto; colocar sua chancela sobre a missão de Cristo; torná-lo penhor da

nossa própria ressurreição, pois há continuidade entre a sorte de Cristo e a nossa

própria sorte; condição para que o Espírito Santo fosse enviado aos homens como

arrematador da obra de Cristo; é o Espírito Santo quem congrega todos os povos

no Corpo de Cristo que é a Igreja, a fim de que recebam de Cristo as graças

necessárias para chegarem à vida eterna.

Esta temática da perpetuação da salvação, pela ação do Espírito, na vida dos

fiéis, constitui exatamente o centro da nossa pesquisa, ao qual dedicamos toda a

segunda parte do nosso trabalho.

224 Cf. Jo 17,5. 225 Cf. 1Tm 2,5. 226 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 387.

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2ª Parte A Igreja

Esta segunda parte da nossa pesquisa consiste no ápice do nosso trabalho e

se subdivide em dois capítulos. No primeiro, apresentaremos o que entendemos

por Igreja, suas definições, etmologia, formação e desenvolvimento. O objetivo

deste primeiro capítulo é apresenatar e esclarecer todas os conceitos e elementos

necessários sobre a Igreja para um melhor desenvolvimento e aproveitamento do

tema. No segundo, chegando ao termo da nossa pesquisa, compreenderemos a

razão pela qual a Igreja é denominada sacramento de salvação. Neste também

desenvolveremos a temática dos ritos sacramentais como expressões da

sacramentalidade eclesial, suas implicações e importância para a vida dos fiéis.

Trata-se de dois capítulos de cunho eclesiológico, cujas bases foram prefixadas

pela Antropologia e Cristologia nos capítulos anteriores.

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4 Compreensão de Igreja

4.1 Introdução

A compreensão da Igreja como sacramento de salvação depende de vários

outros componentes, que constituem a base desta reflexão. Só é possível entender

porque a Igreja tem a incumbência de salvar, por exemplo, quando se entende sua

etmologia e formação.

Este terceiro capítulo pretende ser uma apresentação de todos esses

elementos básicos e necessários para o nosso estudo, tal como um alicerce para o

quarto capítulo. Neste sentido daremos alguns apontamentos sobre o conceito de

Igreja, sua fundação e missão. Apresentaremos também alguns elementos

bíblicos, que possam nos enriquecer, dentre eles a imagem da Igreja como o

Corpo de Cristo presente no mundo.

Enfim, será um capítulo de definições e elementos básicos, mas necessários

para toda e qualquer reflexão posterior.

4.2 Definição de Igreja

A palavra igreja deriva do grego clássico ekklesia, que significava a reunião

dos cidadãos de uma cidade com objetivos legislativos ou deliberativos. Tal

assembléia reunia somente os cidadãos que gozavam de plenos direitos. O termo

indica a dignidade dos membros e a legalidade da assembléia.

Embora não tivesse sentido e aplicação religiosos, o termo foi adotado pela

Septuaginta para traduzir o termo hebraico Qahal, que juntamente com o termo

’Edah, significava, no hebraico tardio, a assembléia religiosa dos israelitas (Dt

31,30), mais precisamente, a assembléia religiosa local dos judeus que viviam fora

de Jerusalém227.

No Novo Testamento, seu uso mais antigo reflete tanto a idéia da

assembléia religiosa de Deus (Qahal Yahweh), como da assembléia local.

Inicialmente sua aplicação era restrita à Igreja de Jerusalém, mas com o tempo

227 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/1..., p.126.

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estendeu-se a todos aqueles que acreditavam em Jesus e que sucediam

legitimamente a assembléia de Deus israelita228.

A experiência da ressurreição de Jesus e do envio do Espírito suscitou na fé

dos apóstolos a certeza de viver no tempo escatológico então iniciado, em que

Deus iria reunir e salvar definitivamente o seu povo. Um povo que não é mais

santificado por determinados ritos, mas por Jesus Cristo e pela participação na sua

vida e na vivência segundo o Espírito229.

Em sua fase inicial a Igreja cristã não tinha clara a sua distinção do

judaísmo. Não se via como uma nova religião. Somente quando os gentios foram

admitidos em número considerável e formaram, em outras cidades, novas igrejas

locais é que se tornou necessário afirmar que a Igreja cristã era uma comunidade

distinta do judaísmo. Contrariando a fé judaica, na Igreja os gentios podiam ser

admitidos com dignidade e plenos direitos, sem a necessidade de se tornarem

judeus e de se submeterem às normas judaicas. Essa questão, inclusive, deu

origem ao primeiro Concílio cristão, o de Jerusalém 230.

Nos evangelhos sinóticos só encontramos o termo ekklesia três vezes, todas

no evangelho de Mateus231. No capítulo dezesseis232 a Igreja é comparada a um

prédio erguido sobre o apóstolo Pedro, seu alicerce. Em outro trecho233 há

insistência para que os discípulos levem ao conhecimento da assembléia os

membros que se recusam à correção fraterna, pela missão a eles conferida.

Neste contexto, o uso do termo ekklesia identifica-se claramente com o

grupo dos doze, que o próprio Jesus havia formado e que deveria continuar após a

sua partida. Esse grupo recebeu a missão de conquistar outros seguidores. Já a

construção sobre Pedro não indica somente uma peculiaridade do apóstolo em

relação à comunidade dos discípulos, mas também a unidade e a continuidade do

grupo que Jesus havia estabelecido234.

Nos Atos dos Apóstolos o termo aparece 23 vezes e designa apenas a igreja

local, normalmente a de Jerusalém, mãe e protótipo das outras igrejas. Isto porque

era Jerusalém quem examinava as condições das outras igrejas locais. Também 228 Cf. KEHL, M. A Igreja: Uma eclesiologia católica. São Paulo: Loyola, 1997, p. 257; Mackenzie, J. L., op. cit., p. 432. 229 Cf. Ibid., p. 256. 230 Cf. At 15; Ef 2,11-22. 231 Cf. 16,18; 18,18. 232 Cf. Mt 16,18. 233 Cf. Mt 18,18. 234 Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 432.

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era ela que, reunida em assembléia, decidia sobre os problemas postos pelas

outras igrejas235. Apesar disso, cada igreja local, com seu clero e com seu povo,

era considerada ekklesia com toda sua propriedade e integralidade. A inserção na

Igreja se dava pelo rito do Batismo236.

Devemos lembrar também que os Atos dos Apóstolos muitas vezes

acrescentam à palavra ekklesia a expressão tou Theou (de Deus) 237. Este

acréscimo indica que é Deus quem conclama e reúne a comunidade toda e nela se

encontra presente. Um outro elemento importante é que nos Atos nos Apóstolos a

Igreja nunca é denominada “Igreja de Cristo”, mas sempre como “Igreja de

Deus”. Isto encontra sua explicação no fato da expressão ter sido retirada do

Antigo Testamento e evidentemente deve expressar o pensamento de que aqueles

que acreditam em Cristo são os legítimos herdeiros do povo de Deus238.

Em Paulo a palavra ekklesia aparece 65 vezes, na maior parte dos casos

significando a igreja local239, mas também a universal. É o primeiro a usar o termo

no plural (ekklesiai) para indicar a igualdade das várias igrejas locais240. Em

Efésios e Colossenses utiliza-o com referência aos seguidores de Jesus, dispersos

pelo mundo. Fala de Cristo como cabeça do corpo, princípio mediante o qual se

realiza a plenitude da Igreja241. Vê em Cristo o esposo da Igreja242, modelo de

amor que os maridos devem testemunhar às suas mulheres. Por esta imagem,

retoma a antiga concepção de Yahweh como o esposo de Israel243.

A imagem da Igreja como corpo de Cristo também está na base do

pensamento paulino. Segundo ele, cada cristão é chamado a desempenhar com

amor sua função no corpo. Paulo dá aos membros da Igreja o título de “santos”,

isto é, aqueles que amam a Deus, aqueles que são santificados em Cristo, que

235 Cf. At 15,22. 236 Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 433; At 10,1ss. 237 Cf. At 20,28. 238 Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. IV. 1: a Igreja um mistério de fé. Petrópolis: Vozes, p. 20. 239 Cf. 1Ts 1,1; 1Cor 1,1; 2Cor 1,1; 1Cor 16,1; 1Cor 16,19; Fm 2. 240 Cf. 1Ts 2,14; 1Cor 4,17; 11,16; 16,1; 2Cor 8,1. 241 Cf. Ef 1,22-23; Cl 1,18. 242 Cf. Ef 5,25ss. 243 Cf. Os 2,2ss; Jr 2,2.

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foram chamados a ser santos244, os eleitos de Deus245. Títulos que entendem a

Igreja como o verdadeiro Israel, a legítima herdeira da promessa da Aliança246.

Para ele, onde quer que os crentes se reúnam e formem uma comunidade em

Cristo aí se realiza a ekklesia de Deus em sentido pleno; ali está a Igreja de Cristo

de maneira inteira e concreta247. Na Igreja particular se entrevê e se realiza a

Igreja universal248.

Nos textos de João a palavra ekklesia três vezes na terceira carta249 e vinte

vezes no Apocalipse, sempre com referência a igrejas particulares. Entre outras

atribuições, como no seu evangelho, Jesus é descrito como o Bom Pastor, que dá a

vida por suas ovelhas, os seus discípulos. Em outra passagem250 estes também são

descritos como ramos os quais devem estar unidos ao tronco, que é Cristo. Ao

final do seu evangelho, Jesus pede ao Pai pela unidade do rebanho251 e o confia a

Pedro, que seria o seu pastor252.

Todos esses textos têm em comum a consciência da ekklesia como igrejas

locais, reunidas em torno de uma organização própria. Gozam da união e da

presença do seu fundador. A Igreja é sempre compreendida como o corpo

organizado através do qual a salvação de Cristo é transmitida a toda a

humanidade. Vêem na Igreja a herdeira da Aliança e das promessas do Antigo

Israel, a manifestação e a propagadora do Reino de Cristo entre os homens253.

Essa realidade é apresentada pela Sagrada Escritura através de imagens

representativas, que têm como finalidade ajudar a entender e expressar aquilo que

é a Igreja do Senhor. É o que passamos a aprofundar agora.

4.3 Imagens da Igreja

Os autores sagrados nos apresentam esta nova realidade da ekklesia através

de imagens, em especial Paulo, com o objetivo de expressar aquilo que é a Igreja

244 Cf. 1Cor 1,2. 245 Cf. Cl 3,12; 2Tm 2,10; Tt 1,1. 246 Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 433; SCHMAUS, M. A fé da Igreja. vol. IV.1…, p. 20. 247 Cf. 1 Ts 2,14; KEHL, M., op. cit., p. 257. 248 SCHMAUS, A fé da Igreja. vol. IV… p. 20. 249 Cf. 3Jo 6.9.10 250 Cf. Jo 15. 251 Cf. Jo 17,20. 252 Cf. Jo 21,15. 253 Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 434.

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de Jesus Cristo na sua natureza. Entretanto, considerando a grande variedade de

possibilidades, escolhemos apenas três para o nosso aprofundamento: Povo de

Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Os critérios para a escolha dos

mesmos foram a importância e a originalidade com que são apresentadas pelos

autores.

4.3.1 Povo de Deus

A multiplicidade de termos utilizados pela Sagrada Escritura para designar a

Igreja resulta de que nenhum deles consegue abranger na totalidade a sua

realidade. A expressão “povo de Deus” 254 visa ressaltar o caráter mistérico e

histórico da Igreja. Mistérico enquanto encontra sua origem na iniciativa divina.

Não se trata de um esforço humano para chegar até Deus, mas de um povo

constituído historicamente pelo próprio Deus, um povo que recebeu um chamado

e o acolheu. Histórico porque é um povo operante no mundo, num tempo e num

espaço, e que caminha na história, ainda não chegou à sua pátria definitiva. Nesta

relação o mistérico constitui o histórico e o histórico evidencia e revela o

mistérico.

Fazendo referência a Agostinho, E. Schillebeeckx nos diz que esse povo

surgiu num tempo bem anterior ao da Nova Aliança estabelecida por Cristo e foi

preparado por três etapas, as quais compreendem as três fases da Igreja255.

A primeira é referente ao paganismo religioso, quando pelo senso religioso

(sensus fidei) o homem percebe que é chamado a uma vida de comunhão com

Deus; trata-se de uma fase obscura, caracterizada pelo politeísmo. Toda a

humanidade está sujeita ao apelo interior de Deus, que convida a comunhão de

graça com ele. No paganismo este apelo vago, na medida que é ouvido por um

coração sincero, suscita logo um sentimento obscuro de Deus redentor que se

empenha pessoalmente pela salvação dos homens. Mas tal experiência religiosa

interior, operada pela graça, não alcançava ainda a forma visível desta graça, que

permanecia, por assim dizer, oculta, sob a forma desconhecida, no mais profundo

254 A palavra povo, Láos em grego, é muito significativa. Comporta um caráter salvífico, isto é, a missão da Igreja na continuação da obra de Cristo. O que designa a qualidade diferencial desse povo é o adjunto adnominal restritivo a ele atribuído: de Deus. Não se trata de um povo qualquer, mas o “povo do alto”, os “cidadãos do céu”. 255 Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 13.

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do coração humano. Também o paganismo procurou dar forma à sua expectativa

interior, que originou uma diversidade de formas religiosas. Por não terem eles a

sustentação de uma revelação especial e visível de Deus tornaram-se um

emaranhado de religiosidades, de deformações e até de decadência moral. Apesar

disso, a “comunidade religiosa pagã” 256 foi o primeiro e providencial esboço da

futura Igreja de Jesus Cristo257.

A segunda fase trata do povo de Deus presente no Povo de Israel. É a Qahal

Adonai258, onde acontece a primeira manifestação visível da graça de Deus, cujo

tema é aliança259 e o lema, a fidelidade: “Sereis o meu povo e eu serei o vosso

Deus” 260. Do ponto de vista semântico, esse conceito está associado

principalmente ao diálogo entre Iahweh e Israel. É empregado, sobretudo, quando

Deus ou um dos seus profetas interpela Israel e quando Israel ora a Iahweh. Nos

tempos pós-davídicos, a expressão “povo de Deus” é aplicada na maioria das

vezes para referir-se a todo o Israel. Expressa a sua autocompreensão de ser o

povo de propriedade de Iahweh, que ele escolheu para si e com o qual ele sabe ser

comprometido em aliança261.

A terceira fase refere-se à Igreja dos primogênitos, fundada sobre os

apóstolos e instituída na nova Aliança. O Novo Testamento designa tanto Israel

quanto a Igreja como Povo de Deus. Todavia, esse emprego com referência ao

Israel contemporâneo restringe-se somente àquela parte que aceitou a fé em Jesus

Cristo262. Pode-se dizer que as fases anteriores à Igreja cristã foram para esta uma

preparação e que por este Israel que se tornou cristão a Igreja está em

continuidade com o povo de Deus do Antigo Testamento e com a aliança que este

fez com ele263. Deste modo, encontramos a imagem da vinha, do pastoril, do

corpo místico, da casa de família, do povo de Deus, entre outras. Dentre todas

essas o Concílio Vaticano II preferiu dar maior enfoque à compreensão da Igreja

como povo de Deus, pois ressalta a comunhão dos batizados e a sua dimensão

256 Expressão utilizada pelo próprio autor. Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 16. 257 Cf. Ibid., p. 14-16. 258 Expressão hebraica usada no Antigo Testamento para designar o povo escolhido, a assembléia de Deus reunida em oração. 259 Cf. Dt 8,6-7. 260 Cf. Ex 6,7. 261 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 272. 262 Cf. At 3,23; 15,4; Rm 9,24. 263 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 274.

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histórica enquanto presente neste mundo e evidencia a natureza comunitária da

Igreja. Sobre isto nos diz a Constituição Dogmática Lumen Gentium:

Deus (...) escolheu, por isso, a nação israelita para Seu povo. Com ele estabeleceu uma aliança; a ele instruiu gradualmente, manifestando-Se a Si mesmo e ao desígnio da própria vontade na sua história, e santificando-o para Si. Mas todas estas coisas aconteceram como preparação e figura da nova e perfeita Aliança que em Cristo havia de ser estabelecida e da revelação mais completa que seria transmitida pelo próprio Verbo de Deus feito carne. Eis que virão dias, diz o Senhor, em que estabelecerei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova aliança... Porei a minha lei nas suas entranhas e a escreverei nos seus corações e serei o seu Deus e eles serão o meu povo... Todos me conhecerão desde o mais pequeno ao maior, diz o Senhor (Jer 31, 31-34). Esta nova aliança instituiu-a Cristo, o novo testamento no Seu sangue ( 1Cor 11,25) 264.

Esse povo nasce da fé em Cristo. É o “povo que em outro tempo não era

povo mas agora é povo de Deus”265. Tem por cabeça Cristo, por condição a

dignidade de filhos de Deus, por lei o mandamento do amor e por ideal a busca do

Reino de Deus. A Constituição Dogmática Lumen Gentium no capítulo 13 afirma

que todos são chamados a fazer parte desse povo. Nele não há mais separação

entre judeus e gentios266. Seus membros são verdadeiramente irmãos267, pois são

filhos do mesmo Pai268. Pertencem a Cristo, porque são seus discípulos269.

Ao novo Povo de Deus todos os homens são chamados. Por isso, este Povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os séculos, para se cumprir o desígnio da vontade de Deus que, no princípio, criou uma só natureza humana e resolveu juntar em unidade todos os seus filhos que estavam dispersos (Jo 11,52). Foi para isto que Deus enviou o Seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas (Hb 1,2), para ser mestre, rei e sacerdote universal, cabeça do novo e universal Povo dos filhos de Deus. Para isto Deus enviou finalmente também o Espírito de Seu Filho, Senhor e fonte de vida, o qual é para toda a Igreja e para cada um dos crentes princípio de agregação e de unidade na doutrina e na comunhão dos Apóstolos, na fração do pão e na oração (At 2,42) 270.

Neste novo povo se cumprem as promessas ao antigo Israel, de tal forma

que Paulo pode aplicar a Igreja a fórmula da primeira aliança: “ Serei o seu Deus e

264 Cf. LG 9. 265 Cf. 1Pd 2,10 266 Cf. At 15,14. 267 Cf. Mt 18,34. 268 Cf. Mt 18, 1-4. 269 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 324. 270 Cf. LG 13.

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eles serão o meu povo”271. Chama a Igreja de “Israel de Deus”272 e a distingue do

Israel segundo a carne273. Vê nos cristãos os descendentes de Abraão e os

herdeiros da promessa274. Aplica à Igreja predicados atribuídos a Israel: “Vós,

porém, sois uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo

adquirido para Deus, a fim de que publiqueis as virtudes daquele que das trevas

vos chamou à sua luz maravilhosa” 275.

Apesar disso, deve-se rejeitar toda idéia de que o “novo” povo de Deus viria

para substituir ou romper com o Antigo Testamento. Ao contrário, o povo de

Deus no Novo Testamento é um conceito teocêntrico, que garante a continuidade

da história de Deus com Israel. Assim como há um só Deus, assim também há um

só povo de Deus276.

O Evangelho de Mateus é o que mais nos permite seguir a origem e a

transformação desse Povo. Para ele, a Igreja é o verdadeiro Israel. Todo o enfoque

que Mateus dá à revelação do Antigo Testamento é para mostrar que há uma

continuidade entre a Antiga e a Nova Aliança, que o teocentrismo do Antigo

Testamento se realiza em Cristo Jesus. Ele é o messias esperado, em quem se

realizou a promessa de Deus. Identifica o Reino de Deus com o Reino pregado

por Cristo e vê o Povo de Deus como uma das manifestações desse Reino,

presente entre nós277. Para ele, Jesus é o novo Moisés, o qual tem a missão de

conduzir o povo à sua nova pátria, à terra prometida, que agora passa a ser o

Reino dos céus.

Lucas também tem suas características próprias. Desenvolve uma teologia

da história da salvação. Para ele os acontecimentos do mundo se desenrolaram

numa perpétua evolução dirigida por Deus. Mostra que é o Espírito quem

assegura a presença e a ação de Deus nas comunidades, a unidade e a comunhão

da Igreja. Segundo ele, a Igreja, bem como toda a história da salvação, foi

preparada por Deus na sua providência278.

Tanto Mateus quanto Lucas destacam que o Mestre veio para dar início a

um novo tempo e a uma nova economia de salvação. Ora, na última ceia, no 271 Cf. 2Cor 6,16. 272 Gl 6,16. 273 Cf. 1Cor 10,18. 274 Cf. Gl 3,29. 275 Cf. 1Pd 2,9. 276 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 274. 277 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 324. 278 Cf. Ibid., p. 325.

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momento em que o drama da paixão atingiria o seu ponto máximo Jesus anuncia a

eclosão da Nova Aliança. Dá sua vida pela redenção de muitos. Seu próprio

sangue é o selo dessa Aliança. Diz que estará presente nas reuniões daqueles que o

invocarem279 e que os discípulos renovarão essa benção do pão e do cálice em sua

memória, na esperança da sua volta280. O grupo dos doze se vê no centro de uma

forma nova de aliança baseada na morte redentora de seu mestre e na continuação

de seu sacrifício281.

Mas a escolha de Doze apóstolos282 também não foi ocasional. Seu número

relembra o das doze tribos de Israel. Os Apóstolos passam a ser entendidos como

os novos patriarcas, sobre quem Cristo estabeleceu o novo Povo283. Trata-se do

início de um novo tempo, o da Igreja. “Ninguém entre os evangelistas é tão

explícito sobre os caracteres da Igreja como Mateus. Coloca-nos diante dum

grupamento tão organizado que se pode falar de instituição” 284.

Mostra que os apóstolos são conscientes da sua unidade, função, poderes e

missão285 e que ser discípulo implica comunhão de existência com os outros

discípulos e com Mestre, bem como o reconhecimento de Jesus como Messias.

Participam das instruções especiais, levam uma vida semelhante à de Jesus. Por

fim, participam da mesma sorte do seu mestre: sofrimento, morte e

ressurreição286.

A Igreja é o germe da salvação, início do Reino de Deus aqui na terra, a

reunificação definitiva de Israel, instrumento de redenção para todos, sacramento

universal de salvação.

4.3.2 Corpo de Cristo

Essa imagem é própria de São Paulo e reflete a comunicação que Cristo faz

de sua vida aos ressuscitados pelo Batismo e pela Eucaristia287. Os cristãos são

membros uns dos outros por participarem da mesma vida divina de Cristo. O 279 Cf. Mt 18,20. 280 Cf. Lc 22,19. 281 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 326. 282 Cf. Mt 10,9. 283 Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 326. 284 Cf. Ibid., p. 324. 285 Cf. Mt 18, 17-18. 286 Cf. Mt 17, 21; BARAÚNA, G., op. cit., p. 324. 287 Cf. 1Cor 10,16; 12,12-27; Rm 12,4-8.

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elemento fundamental de comunhão pelo qual todos os fiéis se tornam membros

desse corpo é a vida nova em Cristo obtida pelos méritos de sua redenção.

A figura da Igreja como corpo está na base do apelo Paulino à unidade e à

cooperação dos cristãos288. Desenvolve esta imagem a partir de dois níveis: o

primeiro, na Carta aos Coríntios e aos Romanos. Nelas Paulo enfatiza a dimensão

horizontal da comunhão cristã, isto é, a relação de cooperação e solidariedade

entre os membros do Corpo. Trata-se da caridade como princípio de unidade,

comunhão e solidariedade entre as igrejas locais e dos membros de cada igreja

entre si.

Já o segundo nível, se dá na Carta aos Efésios e aos Colossenses. Nestas

Paulo enfatiza a necessidade da unidade do corpo com a cabeça, que é Cristo

(dimensão vertical) para lutar contra os principados e as potestades, que tentam

fazer com que os membros da Igreja se percam. Neste segundo nível, a Igreja

aparece como uma realidade celestial, repleta das forças divinas.

Estes dois níveis se desenvolvem na Igreja a partir de três realidades:

Primeiro, a partir do próprio Cristo, que por nós se entregou reconciliando-nos

com Deus e entre nós289; segundo Paulo ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja290.

Dele todo o corpo recebe crescimento e desenvolvimento na sua edificação291.

Como cabeça, Cristo também é o sustentador e o conservador deste corpo social,

que é a Igreja292. Esta imagem é própria de Efésios e Colossenses293 e não se

encontra nas outras cartas de Paulo 294.

Cristo é cabeça da Igreja porque avantajando-se na plenitude e perfeição dos dons sobrenaturais, desta plenitude haure o seu corpo místico. Com efeito, notam muitos Padres, assim como no corpo humano a cabeça possui todos os cinco sentidos, ao passo que o resto do corpo possui unicamente o tato, assim todas as virtudes, dons e carismas que há na sociedade cristã, resplandecem de modo singularíssimo na cabeça, Cristo. "Aprouve que nele habitasse toda a plenitude" (Cl 1,19); a ele exornam todos os dons que acompanham a união hipostática; porquanto nele habita o Espírito Santo com tal plenitude de graças, que não se pode conceber maior. A ele foi dado poder sobre a carne (cf. Jo 17,2); nele se encerram "todos os riquíssimos tesouros de sabedoria e ciência" (Cl 2,3). A própria ciência de visão é nele tal que supera absolutamente em compreensão e clareza a ciência correspondente de todos os bem-aventurados. Enfim, é ele tão

288 Cf. 1Cor 12,12ss; Rm 12, 4ss. 289 Cf. Rm 7,4. 290 Cf. Cl 1,18. 291 Cf. Ef 4,16; Cl 2,19; CARTA ENCÍCLICA MYSTICI CORPORIS, n. 33 em www.vatican.va 292 Cf. Mystici Corporis, n. 51-57. 293 Cf. Cl 1,18; Ef 1,22; 4,15s. 294 Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 61.

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cheio de graça e verdade, que todos nós recebemos da sua inexaurível plenitude (cf. Jo 1,14-16) 295.

O segundo, diz respeito à Eucaristia, sinal de unidade e comunhão da Igreja.

Por este sacramento, a Igreja, em comunhão de fé e de oração, se torna também

ela sacramento corporal de Cristo entre nós e para o mundo296. Da participação no

único corpo os cristãos passam a ser o próprio Corpo do Senhor 297. A unidade de

um só corpo é simbolizada pela participação no único pão e no mesmo cálice298.

Por ela os irmãos se tornam um só em Cristo Jesus 299.

Ao participar realmente do corpo do Senhor, na fração do pão eucarístico, somos elevados à comunhão com Ele e entre nós. «Porque há um só pão, nós, que somos muitos, formamos um só corpo, visto participarmos todos do único pão» (1Cor 10,17). E deste modo nos tornamos todos membros desse corpo (1Cor 12,27), sendo individualmente membros uns dos outros» (Rm 12,5) 300.

O terceiro e último nível é eclesiológico: o batismo no único Espírito nos

insere no único corpo301. Os membros da Igreja são um porque são batizados por

um só Espírito, na mesma fé, e inseridos em um único corpo302. Em Coríntios são

chamados de um só corpo de Cristo303.

Segundo Paulo, os batizados formam uma comunidade em Espírito, fazem

parte de um mesmo corpo. Mas não um corpo qualquer, mas o corpo de Cristo304.

Segundo Paulo, Cristo e o Espírito são o princípio unificante deste corpo uno,

criado pelo Batismo dessa comunidade uma dos crentes entre si, produzida por

esse sacramento. Neste corpo, também chamado de mistério de Cristo305, se

cumpre o eterno plano salvífico de Deus, que abrange a todos os homens, judeus e

295 Cf. Mystici Corporis, n. 47. 296 Cf. Fl 3,21; 1 Cor 15, 44ss; 1Cor 10,16s; 11, 24s. 297 Cf. 1Cor 12,27; Rm 12,5; KEHL, M., op. cit., p. 262. 298 “O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão” (1Cor 10, 16-17). 299 Cf. MACKENZIE, J.L., op. cit., p. 433. 300 Cf. LG 7. 301 Cf. 1Cor 12,13; Gl 3,28; Ef 4,4; Cl 3,15. 302 Cf. 1Cor 12,13. 303 Cf. 1Cor 12,27; 6,15. 304 Cf. 1Cor 12,12. 305 Cf. Ef 3,4.

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pagãos na unidade de uma só fé306. Já os outros sacramentos nos fazem viver mais

intimamente a vida do corpo, em especial a Eucaristia307.

Este último se refere, sobretudo, à unidade da comunidade308 e à

solidariedade aos mais fracos e necessitados309.

Esta imagem da Igreja como corpo aparece com bastante regularidade nos

textos paulinos, mas nem sempre da mesma maneira. Apresenta algumas

diferenças entre o uso nas epístolas pastorais e nas demais, (Coríntios,

Colossenses, Efésios e Romanos). O apóstolo fala do corpo como “membros de

Cristo” 310, como “corpo de Cristo” ou ainda, do “corpo em Cristo” 311. Apesar

disso, em nenhuma parte encontramos em Paulo a imagem da Igreja como corpo

místico de Cristo. O termo místico só foi associado à imagem do Corpo, bem mais

tarde, provavelmente a partir de meados do século XII, pela teologia312.

Outro elemento importante da corporalidade eclesial diz respeito aos

ministérios. Para Paulo, a unidade da Igreja também se manifesta sob a via

carismática. Assim como num corpo existem vários membros, cada um com a sua

função específica, assim também a Igreja possui uma diversidade de carismas e

funções, que compõem a sua riqueza e organicidade: apóstolos, profetas, doutores,

taumaturgos. Para ajudar a Igreja, Deus conferiu carismas de cura, assistência,

governo, línguas, e outros. Cada cristão deve cumprir a função que lhe foi

atribuída313 e usar dos diferentes dons de maneira que correspondam ao seu

destino e ao bem de toda a comunidade 314. Em tudo, Paulo insiste na caridade

como o maior dos dons315. Sobre isto nos diz a epístola aos Romanos: “Assim

como em um só corpo temos muitos membros, mas todos os membros não têm a

306 Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 61. 307 Cf. Ibid., p. 59-60. 308 Cf. 1Cor 12, 12-27. 309 Cf. 1Cor 11,22ss. 310 No capítulo 6 da primeira carta aos Coríntios Paulo combate uma falsa compreensão da liberdade cristã, que levava os cristãos a dispor de si numa busca desordenada do prazer. Contra isso o apóstolo recorda à comunidade de Corinto que devido ao batismo o homem todo, corpo e alma, é propriedade do Senhor e que por esse motivo, não pode mais fazer o que simplesmente lhe apraz. Pelo batismo, o Espírito estabeleceu uma união tão intima entre Cristo e os cristãos que podem ser denominados membros de Cristo: Não sabeis que vossos corpos são membros de

Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo algum! (1Cor 6,15). Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 59. 311 Cf. Ibid., p. 59. 312 Cf. Ibid., p. 58. 313 Cf. 1Cor 12,28ss. 314 Cf. MACKENZIE, J.L., op. cit., p. 433. 315 Cf. 1Cor 13, 1-13.

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mesma função, assim nós, embora sejamos muitos somos um só corpo em Cristo,

e cada um de nós membros uns dos outros”316.

4.3.3 Templo do Espírito Santo

Segundo o apóstolo Paulo há um terceiro conceito fundamental, que faz

parte do conceito geral do que se entende por Igreja. É a compreensão da Igreja

como templo de Deus317: “Não sabeis que sois o templo de Deus, e que o Espírito

Santo habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá.

Porque o templo de Deus é sagrado, e isto sois vós” 318.

Este conceito está associado à idéia de um edifício e alude à Igreja como

uma estrutura orgânica, estabelecida sobre a graça de Deus319. Se evocarmos a

teologia veterotestamentária do valor do templo, passamos então a compreendê-la

como o lugar privilegiado das epifanias divinas, onde se cumpriram as promessas

feitas320 a Israel321.

Segundo Agostinho “O que é o nosso espírito, isto é, a nossa alma em

relação aos nossos membros, assim é o Espírito Santo em relação aos membros de

Cristo, ao Corpo de Cristo que é a Igreja” 322. Esta formulação entrou nos textos

do Concílio Vaticano II. O Espírito é o princípio vital dos serviços e dos membros

da Igreja, a garantia da unidade e da presença da Igreja através dos tempos.

Relaciona-se com a Igreja de modo semelhante à relação existente entre a alma e

o corpo A imagem significa que a Igreja é o que é pelo Espírito Santo. Na sua

ação encontra sua identidade e autenticidade. É o Espírito Santo que faz da Igreja

o templo vivo de Deus entre os homens323. Segundo Santo Irineu, “onde está a

Igreja, ali também está o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, ali está

a Igreja e toda graça” 324.

316 Cf. Rm 12, 4-5. 317 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 133. 318 Cf. 1Cor 3, 16-17. 319 Cf. Ef 2,19; Gl 6,10; 1Cor 3,5ss; Ef 2,19ss; 4,7ss. 320 Cf. Lv 26,11s; Ez 37,26; Zc 8,8. 321 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 134. 322 Citação de Santo Agostinho, Sermões 267,4, em CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, São Paulo: Loyola/ Vozes, 1993, n. 797, p. 230. 323 Cf. 2Cor 6,16. 324 Citação de Santo Irineu, adv. Haer. 3,24,1 em CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit., 797, p. 230.

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O Espírito é chamado 'alma da Igreja' também no sentido de que leva sua

luz divina a todo o pensamento da Igreja, que guia para a Verdade325. É a ele que

a Igreja deve a sua existência, por ele se edifica, é ele o doador de seus dons e o

princípio de conversão para os crentes. É também por ele que o descrente é

surpreendido pelos membros da comunidade repleta do Espírito, e pode adorar a

Deus, confessando que realmente ele está no meio de nós326.

Nesta dinâmica, compreendemos como templo de Deus não só a Igreja

“toda”, pensada universalmente, mas também cada fiel particular e pessoalmente

considerado. Todo cristão, por ser membro do único Corpo de Cristo, que é a

Igreja, também é habitado pelo Espírito Santo e é conduzido por sua graça327. O

Espírito está presente na Igreja e a enche, nela ora e instrui. É ele que dá vida,

ação e movimento à Igreja. O Espírito Santo está em atividade permanente nos

membros da Igreja328. Ele é o principio de toda ação vital e verdadeiramente

salutar de cada uma das diversas partes do corpo 329.

O Espírito opera de múltiplas maneiras a edificação do corpo inteiro na

caridade: pela palavra de Deus, que tem o poder de edificar330, pelo Batismo,

através do qual forma o corpo de Cristo, pelos sacramentos, que proporcionam

crescimento e cura aos membros de Cristo, pela "graça concedida aos apóstolos,

que ocupa o primeiro lugar entre os seus dons" 331, pelas virtudes que fazem agir

segundo o bem, e enfim pelas múltiplas graças especiais, chamadas de carismas,

através das quais torna os fiéis aptos e prontos a tomarem sobre si os vários

trabalhos e ofícios, que contribuem para a renovação e maior incremento da Igreja 332.

A este Espírito de Cristo, como o princípio invisível, deve atribuir-se também a união de todas as partes do corpo, tanto entre si como com sua cabeça, pois que ele está todo na cabeça, todo no corpo e todo em cada um de seus membros 333.

Todos nós que cremos em Cristo somos as pedras vivas desse Templo.

Contudo, a chave desta casa é a vivência do amor. Por ser compreendido como o 325 Cf. Jo 16, 13-15. 326 Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 134. 327 Cf. Ibid., p. 134. 328 Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 68. 329 Cf. Mystici Corporis, n. 54-55. 330 Cf. At 20,32. 331 Cf. LG, n. 7. 332 Cf. LG, n. 12. 333 Cf. Mystici Corporis, n. 55.

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amor intradivino, e a Igreja viver desse Espírito, pode-se dizer que a Igreja

aparece como a comunidade do amor. O amor é o mais profundo mistério da

Igreja, não apenas pela associação e vivência de seus membros, mas como uma

aliança decretada pelo amor de Deus334. Sobre isto nos diz o Papa João Paulo II:

“É bom pensar que esta casa está ainda em construção pelo mundo inteiro. Temos

por construtora a graça de Deus” 335.

O que o Espírito fez para a constituição da Igreja, continua a fazer no

decorrer da sua história. Ele está sempre ativo como enviado do Pai celeste, como

presente e dom, que Jesus Cristo fez à sua Igreja, que é o seu corpo. Segundo os

Atos dos Apóstolos, também é o Espírito quem dá a incumbência definitiva de

levar a salvação aos pagãos 336.

4.4 A Igreja no projeto de Deus

O Novo Testamento não chama de ekklesía a reunião dos discípulos antes

da morte de Jesus na cruz, nem designa por este termo o grupo dos doze

apóstolos. Antes, entende por ekklesía o grupo daqueles que depois da Páscoa

crêem na Ressurreição337.

Para os evangelistas, especialmente Lucas, a realidade da Igreja é

inseparável do mistério da Páscoa de Cristo, que começa na encarnação, passa

pela morte e chega ao seu máximo na ressurreição do Senhor. Neste contexto está

o Pentecostes como o grande fruto da Páscoa, a “festa da colheita” da salvação

que o Senhor realizou em nosso favor. Sua importância está no fato de que através

dele a Igreja se tornou publicamente a continuadora deste Mistério nos tempos de

hoje. Traz em si a novidade da salvação proclamada pelo Senhor.

Dentre as várias formas com que a Igreja é chamada a testemunhar a fé em

Jesus está a experiência da comunhão. Os Atos dos Apóstolos atestam que o

testemunho dos primeiros cristãos era motivo de conversão para muitos que os

viam e que o amor (caridade) era o fundamento dessa relação com o outro338. A

334 Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 68. 335 JOÃO PAULO II em L' Osservatore Romano de 02-12-90. 336 Cf. At 28,28; SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 62. 337 Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia, carne de Cristo: en las fuentes de la eclesiologia de comunion. Verdade e Imagem: Salamanca. 1994, p. 15. 338 Cf. At 4, 32-35.

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comunhão se encontra na base do projeto divino para a vida da Igreja e constitui

um dos seus elementos mais essenciais.

Mas tudo isso só é possível, pela ação do Espírito Santo, desde o início

compreendido como alma da Igreja, princípio e comunhão de Deus em si, e da

humanidade com Deus. É também por ele que os cristãos se tornam capazes de

testemunhar o ressuscitado em meio aos desafios da vida.

Assim, nos propomos a apontar, embora de maneira muito sintética, qual a

relação existente entre a Eclesiologia e a Pneumatologia e qual a contribuição que

ambas podem dar uma à outra e a partir da ação do Espírito, princípio de

comunhão, apresentar o tema da comunhão eclesial.

4.4.1. A Igreja como obra do Espírito

Segundo os relatos do Novo Testamento, a percepção da Igreja enquanto

comunidade historicamente constituída (ekklesia) começa a acontecer a partir do

derramamento do Espírito Santo, no evento de Pentecostes339. O Espírito é visto

como o dom de Deus prometido aos crentes, o fruto da Páscoa realizada em Jesus

Cristo, para que estes possam cumprir a missão que receberam: testemunhar o

Senhor até os confins da Terra340. Na medida em que Deus cumpre a sua

promessa, ele reúne o seu povo numa configuração verdadeira e definitiva, a

Igreja, herdeira legítima da promessa.

No dia de Pentecostes (no fim das sete semanas pascais), a Páscoa de Cristo se realiza na efusão do Espírito Santo, que é manifestado, dado e comunicado como Pessoa Divina: de sua plenitude, Cristo, Senhor, derrama em profusão o Espírito. Nesse dia é revelada plenamente a Santíssima Trindade. A partir desse dia, o Reino anunciado por Cristo está aberto aos que crêem nele; na humildade da carne e na fé, eles participam já da comunhão da Santíssima Trindade. Por sua vinda e ela não cessa, o Espírito Santo faz o mundo entrar nos "últimos tempos", o tempo da Igreja, o Reino já recebido em herança, mas ainda não consumado341.

Desde o seu início, a Igreja é vista como o espaço concreto e histórico em

que se dá o agir do Espírito Santo. Tanto a Igreja como a consumação da história

na ressurreição dos mortos e na vida eterna são consideradas na fé cristã como os

339 Cf. At 2, 1-36. 340 Cf. At 1,8. 341 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit., n. 731-732.

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modos por excelência pelos quais o Espírito atualiza permanentemente e consuma

definitivamente o evento da auto-comunicação de Deus 342.

A Igreja é o lugar destacado e indestrutível343 da presença do Espírito de

Deus no mundo, presença que une (una), santifica (santa), que abrange tudo

(católica) e faz permanecer na verdade original (apostólica).

Dentre estes modos de ação gostaríamos de destacar o aspecto da

comunhão, visto que o Espírito, como o amor unitivo de Deus, reúne os homens

numa verdadeira “comunidade de fé”. Este ponto de vista também é ressaltado

bastante pelo Concílio Vaticano II; neste sentido, encontramos na Constituição

sobre a Igreja: o mesmo Espírito une por si e por sua força, assim como os

membros unem o corpo por meio da ligação interna, produz e estimula o amor

entre os fiéis 344; ou ainda, no Decreto sobre o Ecumenismo:

O Espírito Santo, que habita nos crentes, que enche e governa toda a Igreja, é quem realiza maravilhosa comunhão dos fiéis e une todos tão intimamente em Cristo, sendo o princípio da unidade da Igreja. É ele quem causa a diversidade das graças e dos ministérios 345.

Poderíamos nos perguntar: Quais os motivos para se fazer uma análise

pneumatológica da Igreja enquanto comunhão? Segundo M. Kehl, existem alguns

argumentos aos quais podemos acorrer: primeiro, o Espírito Santo como aquele

que possibilita a fé comunitária.

Normalmente, trata-se do Espírito a partir de Cristo. Pelo Cristo

historicamente perceptível, exaltado em sua morte e ressurreição, é transmitido o

Espírito Santo como dom da sua presença permanente entre nós. Em outras

palavras, para se saber quem é o Espírito Santo deve-se olhar para Jesus Cristo

histórico e glorificado. Neste sentido, o Espírito é compreendido como o dom do

amor de Deus ofertado a nós em Jesus Cristo, Deus feito homem para a nossa

salvação.

Por outro lado, existe outra perspectiva um pouco menos difundida e

valorizada, não obstante a isso, igualmente legítima, que vê o espírito Santo como

a possibilidade “transcendental” da fé em Jesus Cristo. Que o Jesus histórico é

342 KEHL, M., op. cit., p. 63. 343 Cf. Mt 16,18. 344 LG, n. 7. 345 DECRETO CONCILIAR UNITATIS REDINTEGRATIO, n.2 em DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Paulus: São Paulo, 1997.

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realmente o Cristo e, portanto, o acontecer da auto-comunicação de Deus em

pessoa, que o crucificado ressuscitado dos mortos e exaltado, só pode ser

reconhecido no poder e na ação do Espírito Santo346. Neste sentido, a cristologia

implica a pneumatologia como seu pressuposto347.

Da mesma origem formal que a habitação de Deus em nós do Espírito Santo como “espaço” único e abrangente que possibilita a nossa fé na revelação de Deus em Jesus Cristo. Todo encontro de fé com o Deus que nos agracia acontece “no Espírito Santo”; sem essa pré-condição do espaço do encontro, proporcionado por Deus e que nos abre os olhos, ou seja, o Espírito Santo, não pode haver fé. Pois só quem se permite entrar na amorosa relação entre o Pai e o Filho, neste Espírito que os une, pode ganhar os olhos do amor, com os quais pode reconhecer nos Jesus histórico o Filho eterno do Pai. No Espírito Santo ficamos inteiramente preenchidos e tomados por ele, de sorte que podemos confessar na fé: “Jesus Cristo é o Senhor!” (Rm 10,9; 1Cor 12,3; Fl 2,11). Vale, pois, para uma teoria teológica do conhecimento: ‘Deus, por assim dizer, já está no Espírito lá onde ele chega por meio do Logos348.

Daqui torna-se compreensível que a Igreja, enquanto relação de fé

comunitária com Deus, só pode surgir e existir na medida em que os homens

entram em comunhão com o Espírito Santo349. Na medida em que o Espírito

possibilita, de uma só vez, esta fé pessoal e comunitária em Jesus cristo como

salvador, surge a Igreja. Também por esse motivo, a Igreja torna-se o espaço que

possibilita concretamente a fé, que os indivíduos recebem, pela pregação e pelo

Batismo e a desenvolvem na comunhão com os irmãos e em outras realizações da

Igreja350.

Ele dá, então, o "penhor" ou as "primícias" de nossa herança: a própria vida da Santíssima Trindade, que é amar "como Ele nos amou". Este amor (a caridade de 1Cor 13) é o princípio da vida nova em Cristo, possibilitada pelo fato de termos "recebido uma força, a do Espírito Santo" (At 1,8). É por este poder do Espírito que os filhos de Deus podem (dar fruto. Aquele que nos enxertou na verdadeira vida nos fará produzir "o fruto do Espírito, que é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio" (Gl 5,22-23). "Se vivemos pelo Espírito", quanto mais renunciarmos a nós mesmos, tanto mais "pelo Espírito pautemos também a nossa conduta (Gl 5,25) 351.

346 Cf. 1Cor 12, 3. 347 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 64. 348 Cf. Ibid., p. 65 349 Cf. Ibid., p. 65. 350 Cf. Ibid., p.66. 351 Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit., n. 735-736.

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Em segundo lugar, temos como argumento em prol da relação entre

eclesiologia e Pneumatologia, o Espírito Santo como comunhão em Deus. Trata-

se de uma perspectiva trinitária sobre a ação do Espírito Santo na realidade

intradivina.

Aqui, o Espírito Santo é entendido como a unidade, como a união e

comunhão personificadas do amor em Deus, que se oferta e recebe infinitamente.

Essa concepção nos remete a Agostinho, que na sua obra De Trinitate tenta

cuidadosamente se aproximar da natureza do Espírito Santo. Segundo Agostinho,

o Espírito é o amor entre o Pai e o Filho. A doação de um ao outro se desenvolve

neste Espírito comum. Por outro lado, porém, o Espírito também procede dessa

doação. Ao mesmo tempo em que ele possibilita a doação, é ele mesmo o fruto

dessa doação recíproca. Nele culmina o doar-se mútuo entre o Pai e o Filho, nele

“se objetiva” e assume a figura de um dom352.

Se esse Deus vier depois a se doar às suas criaturas, chegará a elas como

esse dom, como força do Espírito para estabelecer unidade com Deus e entre todas

as criaturas. E chamamos exatamente de “Igreja” a esse acontecer do dom de

Deus acolhido353.

Em terceiro lugar, M. Kehl apresenta o Espírito Santo como entrega de

Jesus crucificado e ressuscitado; Ele entregou o Espírito354. Ou seja, na morte de

Jesus se manifestou a mais íntima dinâmica do amor de Deus como entrega e

doação, pois aí se entregam inteiramente o amor do Pai e do Filho, por aquele

doado e por este aceito, como dom do Espírito Santo aos homens e, de fato,

concretamente àqueles que foram com Jesus até o fim do caminho da cruz e se

mantiveram sob a cruz. Segundo São João, tal como uma pequena célula que

representava toda a Igreja, aqueles que estavam ao pé da cruz receberam, ao

morrer Jesus, o Espírito Santo como dom que lhes permitiu viver segundo o novo

mandamento de Jesus: Amai-vos uns aos outros! Assim como eu vos amei deveis

amar-vos uns aos outros355. Amor que se manifesta concretamente na entrega de

uns aos outros356.

352 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 67. 353 Cf. Ibid., p. 68. 354 Cf. Jo 19,30. 355 Cf. Jo 13,34; 356 Cf. Jo 15,12ss.

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Neste gesto de entrega surge a Igreja como ícone de comunhão e amor do

próprio Deus357. A água e o sangue que brotam do coração aberto de Jesus na cruz

também são significativos. Segundo os Padres da Igreja podem ser interpretados

como os sinais do Batismo e da Eucaristia (interpretação espiritual), e neste

sentido, a consumação da sua entrega por nós. Neste contexto, estes sacramentos

da Igreja seriam, dentre outras, a forma como o Espírito nos faz participantes do

mesmo mistério salvífico de Cristo e ícones desta comunhão de amor no mundo.

Juntamente a estes sinais, pode-se associar a paz com que Jesus saúda os

discípulos após a ressurreição358. Esta deve ser lida como o sinal e fruto concreto

da entrega e da vivência do amor, que se realizam ação do mesmo Espírito Santo.

Toda a missão, testemunho, comunhão e realização da Igreja, inclusive os

sacramentos, sem a ação do Espírito não passariam de ações humanas e perderiam

toda “capacidade” de salvação, que é uma atribuição estritamente divina. Sem o

Espírito, a Igreja, Corpo Místico de Cristo, deixaria de ser templo do Espírito e se

tornaria uma mera instituição. Perderia, portanto, todo aspecto místico-

sobrenatural, apesar de situada historicamente num tempo e num espaço.

Assim, Pneumatologia e Eclesiologia possuem uma relação inegável e que

jamais pode ser desfeita, sob pena de a Igreja perder a sua razão de existir.

4.4.2 Igreja de comunhão

A existência cristã é fundamentalmente uma existência na Igreja. Se

pudéssemos resumir numa só palavra a natureza ou o princípio da vida cristã,

deveríamos falar propriamente de “comunhão” – comunhão com Deus e com os

demais na fé, na caridade e na esperança.

Acontece, porém, que muitas vezes resumimos esta comunhão ao âmbito do

serviço, como se a comunhão fosse um mutirão de pessoas reunidas para um

determinado trabalho. Na verdade ela implica mais que um serviço, implica a

vontade de estar com os demais na confissão de um mesmo Deus, para a

promoção do Reino de Cristo. Implica a busca de um mesmo ideal. “Não nos

enganamos ao afirmar que, sempre que se fala de uma existência evangélica

357 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 69. 358 Cf. Jo 20, 19-23.

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vivida diante de Deus, o outro se encontra necessariamente no horizonte” 359. A

existência cristã é necessária e essencialmente uma existência de comunhão.

Outro grande equívoco quando se fala de comunhão é pensar que unidade

seja sinônimo de uniformidade, duas realidades bem diferentes. Estar em

comunhão não significa uniformidade de pensamento ou opinião. A grande

característica e riqueza da Igreja de comunhão é que a unidade se estabelece na

diversidade. A diferença não é algo estranho à comunhão eclesial, mas parte

integrante e necessária do seu ser. Este princípio vale tanto para as comunidades

particularmente consideradas quanto para a comunhão entre as Igrejas locais

(paróquias, dioceses, conferências episcopais...) 360. É também nesse sentido que

deve ser entendida a catolicidade ou universalidade da Igreja, isto é, no sentido

que reúne na única comunhão de Cristo as diversidades que brotam de sua

capacidade criadora. A uniformidade restringe o verdadeiro espírito de comunhão

da Igreja na medida em que se fecha à diversidade dos carismas361.

Nos textos paulinos a relação com o outro é apresentada como algo

essencial. O “outro” evoca primeiramente o Cristo, objeto do evangelho de Deus:

“Cristo morreu por todos a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas

para aquele que por eles morreu e ressurgiu” 362. Ele é a fonte da vida cristã363,

aquele através do qual o Pai estabeleceu comunhão com os seres humanos364.

Neste conjugado da relação de Cristo com o Pai e do cristão com Cristo se define

a existência cristã365.

Um estudo ainda mais atento e apurado dos textos de Paulo nos permite

perceber também que a comunhão com Cristo é igualmente uma comunhão com o

Espírito. Todas as vezes que Paulo usa a expressão “em Cristo” está sempre a

associando à expressão “no Espírito”. Isto nos permite dizer que a vida em Cristo

é também uma vida no Espírito, que estar em Cristo é estar sob o signo e o poder

359 Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 13. 360 Cf. Ibid., p. 21. 361 Cf. Ibid., p. 22. 362 Cf. 2 Cor 5,15. 363 Cf. Rm 8, 31-39; TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 14. 364 Cf. Gl 2, 19-20; 6,17. 365 Daqui deriva uma situação que marcará profundamente a condição cristã. “A existência cristã é em sua fonte radicalmente, por obra de Deus, a negação absoluta de toda auto-suficiência, de todo isolamento do indivíduo em si mesmo”. A relação com o outro- esse outro que é antes de tudo Deus- é intrínseca à existência cristã, a constitui. Onde não há comunhão com Jesus Cristo, não há existência cristã365. Mas a relação com Cristo é inseparável da relação com os outros. O “outro” [Deus] implica os “outros” [os irmãos na fé]. Cf. Ibid., p. 15-16.

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do Espírito Santo e que o Espírito de Cristo é de forma semelhante o Espírito dos

cristãos. Estar em Cristo é, portanto, viver esta em Comunhão com o Espírito366.

Por outro lado, não se entende a atuação do Espírito senão em relação à obra

redentora de Cristo. Santo Irineu dizia que o Filho e o Espírito são as duas mãos

de Deus. O Espírito é aquele que recorda e faz acontecer a mesma obra salvífica

de Cristo no plano da visibilidade histórica, por meio da Igreja, “manifestação

visível da graça redentora de Cristo na figura de um sinal social” 367. Isto significa

dizer que existe uma relação de comunhão entre aqueles que acolheram o

evangelho. Para falar da comunhão nesta unidade de vida que vem do Espírito na

dependência de Cristo Paulo usa a expressão “Corpo de Cristo” 368.

São João também tem expressões próprias para falar dessa comunhão. Fala

através da imagem da vinha, isto é, dos ramos ligados à videira369; Fala da morada

como lugar de comunhão: “A casa de meu pai tem muitas moradas” 370. Mas é,

sobretudo, no capítulo dezessete que São João explicita com toda clareza o

modelo de comunhão que Cristo deseja para a sua Igreja: “Que sejam um como eu

e o Pai somos um” 371. Aqui Jesus explicita o máximo do seu desejo de que nós

sejamos na Igreja aquilo que ele mesmo é na sua relação pessoal com o Pai. Uma

comunhão que resguarda a individualidade das respectivas pessoas e que é

estabelecida sobre a virtude do amor, tal como podemos verificar no capítulo

quinze: “Ninguém tem maior do que aquele que dá a vida pelos amigos” 372,

portanto, “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, amor que em Tiago é

interpretado por solidariedade, sobretudo pela acolhida aos pobres373.

Somos um povo sacerdotal e a nossa verdadeira liturgia deve ser o

oferecimento da nossa vida como um sacrifício vivo agradável aos olhos de Deus,

e é também neste sentido que deve ser entendida a Eucaristia, como o ápice da

comunhão e da nossa entrega de uns para como os outros e de todos a Deus374.

366 Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 16. 367 Cf. SCHILLEBEECKX, op. cit. p.54. 368 Cf. 1 Cor 12,13; TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 17. 369 Cf. Jo 15. 370 Cf. Jo 15,4. 371 Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 25-27. 372 Jo 15,13. 373 Cf. Tg 2, 1-13.26. 374 Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 97-108.

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Segundo São Cipriano o nosso perfeito sacrifício é a nossa paz e concórdia

fraterna e o povo reunido em comunhão 375.

Este princípio de paz e de concórdia pela comunhão fraterna tem

implicações diretas sobre a organização estrutural da Igreja. Afeta a participação e

o senso de responsabilidade dos fiéis e nos leva a uma reflexão sobre a realidade

na qual nos encontramos. Em outras palavras, comunhão implica participação. É o

que nos propomos a desenvolver no próximo ítem.

4.4.3 Povo de Deus ou casa do Pai?

“Povo de Deus” e “casa do Pai” são duas lógicas diferentes que refletem e

determinam a nossa maneira de pensar e agir na e como Igreja e que afetam

diretamente a constituição e a estrutura da mesma.

A primeira lógica, do Povo de Deus (Láos tou Theou), tem como base o

princípio de igualdade e inclusão de todos os batizados, os quais constituem a

Igreja de Cristo, e que corresponde exatamente à proposta de retorno às fontes

primitivas empreendida pelo Concílio Vaticano II. Nesta proposta todos são vistos

como membros de um mesmo corpo, com igual dignidade, embora com funções

diferentes. Essa lógica ganha importância sobretudo quando se trata de ressaltar a

missão e a dignidade do leigo contra toda forma de totalitarismo e outros abusos

por parte dos clérigos, bem como de compreender e aplicar o ministério

hierárquico como uma forma de serviço.

Em segundo lugar temos a lógica dos códigos familiares greco-romanos,

que penetrou na Igreja e transformou a experiência da igualdade fundamental e da

comunhão entre os batizados numa escala de dominações e dependências. Sua

constituição é piramidal e o poder é concentrado, na sociedade romana, nas mãos

dos homens, e, posteriormente, na Igreja, nas mãos dos clérigos. Os leigos se

tornam meros espectadores, sujeitos às resoluções dos mesmos. A grande

conseqüência desse sistema é que os leigos não são considerados membros ativos,

sujeitos-protagonistas da fé. As comunidades ficam à mercê da “boa vontade” dos

padres, sem qualquer poder de decisão ou direito à participação. Os clérigos são

colocados em grau de superioridade e os leigos em situação de subserviência.

375 Cf. Ibid., p. 109.

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Este tema é importante porque quando se trata de recuperar a eclesiologia de

comunhão é preciso ver a todos com respeito, dignidade e igualdade. O ponto de

partida é sempre o Batismo, sacramento que nos faz todos irmãos na mesma fé e

membros de um mesmo corpo. De acordo com a proposta conciliar é preciso que

a comunidade seja o lugar privilegiado da experiência da fé, e que todos sejam

protagonistas dessa missão376.

Embora ainda encontremos inúmeras dificuldades para superar os

problemas que insistem em se sobrepor à estrutura e à prática de comunhão, a

Igreja já deu grandes passos para a sua implementação. Destacamos aqui a

proposta do Concílio Vaticano II com seus avanços e desafios.

4.4.4 Proposta do Vaticano II

O Concílio foi acelerado por uma série de mudanças histórico-culturais --

proximidade do fim da Segunda Guerra Mundial, crescimento do número de

ateus, aparecimento do fenômeno da secularização, descrédito das instituições --

que o tornaram indispensável para um “aggiornamento” da Igreja. Segundo João

XXIII o grande objetivo do Concílio era que a Igreja, revendo sua prática, seu

testemunho e sua experiência, pudesse promover de modo mais eficaz a

evangelização do mundo na época. A maneira do Concílio realizar isso foi uma

forte tendência de retorno às fontes da Tradição e um reatamento das relações

rompidas entre Igreja e sociedade. Pelo Vaticano II passa-se de uma visão da

Igreja como “sociedade perfeita” (Concílio Vaticano I) para uma concepção mais

bíblica da Igreja enquanto “sacramento de salvação”, fórmula que se torna

fundamento para várias outras definições da Igreja377. Vários textos conciliares

apontam para uma eclesiologia de comunhão378.

O Concílio compreende o conceito de comunhão a partir de dois sentidos:

vertical e horizontal. Entende-se por comunhão vertical a comunhão com o

próprio Deus, que sendo Trindade é também um mistério de comunhão em si

mesmo; e no sentido horizontal, a comunhão dos homens entre si. Fala da relação

entre unidade e diversidade de modo harmonioso; diz que a Igreja é plural e que a 376 Cf. TEPEDINO, A. M. Eclesiologia de comunhão: uma perspectiva. In Atualidade teológica, Rio de janeiro, Ano VI – 2002 – n. 11 – maio/agosto, p. 161-188. 377 Cf. PIE-NINOT, S. Introdução à Eclesiologia. São Paulo: Loyola, 1998, p.22. 378 Cf. LG 4, 8, 13-15, 18, 21, 24s; DV 10; GS 32; UR 2-4, 14, 17-19, 22.

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unidade se dá na diversidade de carismas e expressões. Dentre os documentos de

maior relevância do Concílio destacamos:

Lumen Gentium: resgata a perspectiva da Igreja como mistério de

comunhão sob a insígnia de “Povo de Deus” 379, capaz de unir os homens entre si

e, numa dimensão mais profunda, os seres humanos a Deus. Realça a condição

cristã comum a todos os batizados, embora esse princípio ainda não tenha sido

bem assimilado. Valoriza o sacerdócio comum dos fiéis. Questiona o modelo de

eclesiologia estabelecido a partir da hierarquia. Dá mais valor às iniciativas e

tradições das igrejas particulares/ locais380, bem como à idéia de colegialidade

entre os conselhos, conferências e igrejas particulares. Passa de uma eclesiologia

onde o sujeito adere à Igreja para uma outra em que o sujeito é Igreja,

participante, membro ativo da comunidade de fé.

Gaudium et Spes: insere propriamente a Igreja no contexto no mundo atual.

Denuncia tudo o que ofende a dignidade e a vida humanas; ressalta o valor do

matrimônio e da família; valoriza o papel dos leigos no mundo para a construção

de uma nova civilização pautada no amor e na palavra de Cristo; são chamados a

ser testemunhas de Cristo no meio da sociedade381; ressalta também o valor da

cultura e dos meios de comunicação de massa; pede que seja empreendida e

concretizada uma “mentalidade de comunhão” 382; o cristão é compreendido como

aquele que deve viver a comunhão com Deus, com a Igreja e com a humanidade,

sobretudo através da promoção da justiça, da caridade e da paz. Apresenta a idéia

da comunhão através das imagens bíblicas do corpo de Cristo e do povo de Deus.

Vê a comunhão na Igreja como uma abertura para um diálogo com o mundo de

hoje.

Outro ponto também importante que não poderíamos deixar de mencionar

diz respeito ao ecumenismo, que a partir do Vaticano II teve grandes progressos.

A Constituição Lumen Gentium e o documento Unitatis Redintegratio

desenvolveram longas reflexões sobre o tema. Entre os avanços está a

compreensão de que a Igreja “subsiste” na Igreja católica, e não “é” a Igreja

Católica, compreendendo assim a legitimidade da presença de Cristo em outras

379 Cf. LG 2. 380 LG 23. 381 Cf. GS 36. 382 Cf. GS 53.

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denominações religiosas cristãs383 e a denominação das outras confissões a partir

da sua auto-compreensão como “igrejas e comunidades eclesiais”, com as quais a

Igreja Católica está em comunhão ou conjunção384.

4.4.5 Hierarquia e laicato

Durante séculos a ação evangelizadora e apostólica da Igreja tem se

debruçado com muito exclusivismo sobre os clérigos e religiosos, sobre os que de

alguma forma fazem profissão de segregar-se do mundo ou apartar-se das coisas

terrenas para dedicar-se às coisas divinas.

Hoje a Igreja recorda aos fiéis leigos que a ação apostólica é também

incumbência sua, e que esta é a hora em que a eles compete principalmente,

atenção aos sinais dos tempos, por sentido e sinal cristão em todas as coisas de

nosso tempo, com o testemunho de sua vida e com sua intervenção, sobretudo nas

coisas temporais: família, sociedade, política, cultura... É exatamente pelo que são

que os leigos foram chamados a desempenhar uma ação apostólica de tipo laical,

secular, mas autenticamente eclesial.

O interesse da Igreja pela questão do laicato passa, historicamente, pelo

movimento de secularização. Este fenômeno marcou profundamente os primeiros

ensaios teológicos do Concílio e gerou discussões e reações em relação à entrada

desta realidade na definição tipológica do leigo. Segundo E. Schillebeeckx, tal

discussão teve o mérito de contribuir para que o termo leigo fosse definido

eclesiologicamente, isto é, a partir da própria natureza da Igreja, embora, num

primeiro momento, fosse lhe dada uma definição teológica e canônica negativa,

em oposição ao clero e aos religiosos, do leigo como “o não clero” 385. O Concílio

definiu como Leigo:

O conjunto dos fiéis, com exceção daqueles que receberam uma ordem sacra ou abraçaram o estado religioso aprovado pela Igreja, isto é, os fiéis que, por haverem sido incorporados em Cristo pelo Batismo e constituídos em Povo de Deus, e por participarem a seu modo do múnus sacerdotal, profético e real de

383 Cf. LG 8. 384 Cf. LG 15; UR 13-24. 385 Cf. SCHILLEBEECKX, E. La définition typologique du laic chretien selon Vatican II em BARAÚNA, G., L’Eglise de Vatican II. tomo 3. Paris: Cerf, 1966, p.1013.

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Cristo, realizam na Igreja e no mundo, na parte que lhes compete, a missão de todo povo cristão386.

Para J.B. Libânio foi fundamental a inversão da ordem dos capítulos da

Constituição, que coloca o Povo de Deus (cap.2) antes da hierarquia (cap.3) - ele

chama de “revolução copernicana” da Eclesiologia. A importância de tal

“revolução” está em que o documento parte não de uma distinção de classes, mas

da igualdade fundamental e da comunhão estabelecida entre os batizados, que os

leva ao serviço de uns aos outros e que dá a todos direito e dignidade de

participação na mesma obra387. Porém, o fato de ter chegado ao nível do consenso

teológico não foi ainda suficiente. Segundo o mesmo autor, a definição de leigo

permaneceu ambígua, faltando-lhe ainda um caráter ontológico, que lhe desse

consistência na ordem do ser, do existir, e não fosse uma mera descrição

impressionista. 388.

O leigo é definido pelo Concílio por sua pertença ativa ao povo de Deus, a

Igreja. E por este motivo é visto como aquele que “compartilha da missão integral

da Igreja toda” 389. “Frisa a riqueza e a qualidade de ser membro e põe em relevo

tudo que é comum ao sacerdote e ao leigo no seu ser cristão e na sua atividade

cristã” 390: Leigos e clérigos são igualmente membros do povo de Deus. O

Concílio reconhece as distintas funções do clero e dos leigos sem, no entanto,

deixar de vê-los como uma única comunidade (koinonia). Trata-se de uma

distinção funcional, pois no nível do valor intra-eclesial possuem a mesma

dignidade391. Hierarquia e laicato são vias complementares de ação para a

edificação de um mesmo edifício, que é a Igreja; longe de se oporem, devem se

completar.

Segundo E. Schillebeeckx, o reconhecimento do mundo como campo de

missão, foi uma grande conquista do Concílio, apesar de todas as hesitações392. A

partir dela o Concílio pode perceber e valorizar a presença daqueles que também

são membros da Igreja, participantes da “encarnação eclesial de Cristo” e, por ela,

386 LG 31. 387 Cf. LIBÂNIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo: Loyola, 2005, p. 113. 388 Cf. Ibid., p. 114. 389 Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique…, p. 1023. 390 Cf. Idem. 391 Cf. LG 32. 392 Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique..., p. 1024.

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da sua da tríplice função, sacerdote, profeta e rei393. Através dos leigos a Igreja se

faz presente e atuante na sociedade. São agentes propagadores do Reino nos

meios seculares.

A Igreja tem uma missão a cumprir no mundo e a grande peculiaridade do

leigo é esta: ser sal da terra e luz no mundo. O mundo como campo de experiência

e transfiguração cristã é propriedade irrenunciável do leigo394: viver no tempo

cada uma das atividades e profissões, bem como a vida familiar e social para nelas

testemunhar o Cristo. Só assim responderão à sua vocação e serão

verdadeiramente cristãos395.

No único povo de Deus, o Espírito suscita os pastores chamando-os a uma

função essencial de magistério, de governo e de santificação; a distinção entre os

pastores e laicato é e continua sendo de direito divino. Contudo, a continuação da

obra da salvação é tarefa de todos os fiéis396. Não é ocasional que no número 32

da Lumen Gentium se fala de “verdadeira igualdade” quanto à dignidade e ação

comum dos fiéis, o que indica uma relação de necessidade recíproca e de co-

responsabilidade na missão. Em certos lugares, inclusive, a ação da Igreja só se

torna possível através da presença dos leigos397.

Tal definição, entretanto, ficou restrita ao âmbito jurídico, dependente da

“benevolência” do clero. Contudo, existe um tipo de participação dos leigos na

missão salvífica da Igreja que não depende da vontade da hierarquia: é uma

participação que brota de uma perspectiva sacramental e encontra a sua fonte nos

sacramentos do Batismo e da Crisma. Segundo M. Gozzini a solução deste

problema está na superação do aspecto jurídico pelo sacramental398, que, segundo

ele, é também uma das vias de superação do clericalismo.

De extraordinário auxílio pode ser a aplicação rigorosa e severa da reforma

litúrgica. A missa como ato comunitário do celebrante e do povo juntos,

requerendo participação pessoal e não somente assistência de espectadores pode

393 Cf. MONSEGÚ, B. In Concílio Vaticano II: comentarios a la Constituición sobre la Iglesia. BAC: Madrid, 1966, p.643. 394 Cf. Ibid., p. 644-645. 395 Cf. Ibid., p. 650-651. 396 Cf. LG 30. 397 Cf. LG 33. 398 Entende-se por perspectiva sacramental do povo de Deus a missão que brota dos sacramentos que receberam. Não se trata de um reconhecimento por parte do clero dos carismas e aptidões dos leigos, mas de uma exigência que brota do próprio sacramento e que independe do aspecto jurídico da Igreja.

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ser uma imagem perfeita da vida eclesial autêntica, com o fiel que leva ao altar a

sua vida, como verdadeira hóstia viva ao Senhor. Só quando uma consciência

deste gênero tiver sido universalmente afirmada em todos quantos se dizem

católicos, e o comportamento prático destes houver se modificado também nas

relações com a hierarquia poderão ser vividas numa perspectiva diversa, e não

mais clericalista. Trata-se de uma passagem de um catolicismo meramente

sociológico e/ou de tradição a um catolicismo autêntico, que nasce de uma

decisão interior, de modo que todos os fiéis se sintam testemunhas e apóstolos, em

conseqüência dos sacramentos recebidos399. Trata-se ainda de um elemento

fundamental para uma frutuosa vida religiosa dos leigos.

Em segundo lugar, manifesta-se em medida sempre crescente a necessidade

de um conhecimento mais profundo da fé professada: “Os leigos procurem

diligentemente um conhecimento mais profundo da verdade revelada, e

instantemente peçam a Deus o dom da sabedoria” 400. Enquanto a hierarquia

continuar a manter numa espécie de menoridade os leigos, não os preparando para

assumir as tarefas que lhes seriam próprias; enquanto a fé dos leigos não dispuser

de raízes mais profundas e a hierarquia se fiar nos leigos que aguardam as ordem

eclesiásticas para agir sem prepará-los para iniciativas próprias; a Igreja

continuará sendo uma Igreja clericalista.

Sabem os pastores que não foram instituídos por Cristo a fim de concentrarem em si sozinhos toda a missão salvífica da igreja no mundo. Seu preclaro múnus é apascentar de tal forma os fiéis e reconhecer suas atribuições e carismas, que todos, a seu modo, cooperem unanimemente na obra comum401.

Todavia não seria justo esperar que as inovações venham dos institutos e a

formação dos fiéis seja um fato adquirido. A participação nasce do interior das

comunidades menores402. É necessário que se comece logo a inovação dos

costumes. E que se comece pela supressão dos vários títulos aplicados aos bispos;

que a hierarquia seja entendida numa perspectiva paterno-fraterna; ao laicato seja

motivado o diálogo com a hierarquia e não somente uma obediência passivo-

399 Cf. GOZZINI, Mario. Relations entre les laïcs et la hierarchie em BARAÚNA, G., L’Eglise de Vatican II..., p. 1087- 1088. 400 Cf. LG 35. 401 LG 30. 402 Cf. LIBÂNIO, J. B., op. cit., p. 117.

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servilista; que a hierarquia se abra um diálogo que valorize os carismas e as

aptidões dos leigos.

Dentro dessa perspectiva levanta-se também outro problema, o da falta de

respaudo aos leigos por parte do Direito canônico, que na maioria das vezes só os

menciona em relação ao clero. “O mal estar freqüentemente sentido na Igreja,

decorre de que a parte canônica, legislativa, que deveria dar corpo a tal intuição

do Concílio Vaticano II, não a acompanha, antes fica presa ao esquema anterior ao

da "virada copernicana” 403.

Corrigir quando necessário está certo, mas extinguir, fechar a possibilidade

de uma ação, isto não é certo! “A providência que bloqueia, ou mesmo o conselho

negativo, devem ser algo excepcional, e não um exercício freqüente; porque há

uma virtude superior à obediência, isto é, a caridade, o amor à Igreja, o impulso

apostólico. E sobre esta virtude devem se conduzidos também os juízos de

oportunidade” 404.

No tocante à representatividade, os organismos episcopais dos leigos

deveriam reunir em torno do bispo, com uma estrutura o menos possível rígida e o

mais possível ágil e aberta às situações particulares e às diversas inspirações dos

homens, aqueles que servem de ponte entre a Igreja e o mundo.

Com efeito, há situações que os leigos se deparam mais freqüentemente e

fazem com que estejam mais informados que o clero, sobretudo no que tange aos

assuntos temporais; sabem quais são as necessidades mais gritantes do mundo e

da Igreja. Tornar participantes, e de algum modo co-responsáveis na vida da

Diocese ou da paróquia todos os chefes de família é uma orientação indispensável

para vitalizá-las.

A partir dessa afirmação aparece como uma das conseqüências mais

concretas e importantes da Constituição que os leigos possam participar, ao menos

parcialmente, da administração dos bens eclesiásticos em todos os níveis405.

403 Cf. Ibid., p. 116. 404 Cf. GOZZINI, M., op. cit., p. 1091. 405 Cf. GOZZINI, M., op. cit., p. 1095-1099.

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4.4.6 Histórico e definição etimológica de leigo

Muitas foram as dificuldades encontradas pelo Vaticano II para chegar a

uma definição do leigo que correspondesse de fato à sua realidade.

Com efeito, a própria palavra leigo suscita diversas dificuldades. Segundo

M. Kehl ela deriva só indiretamente da palavra grega láos, a qual significa povo,

multidão do povo. Na Septuaginta, designava o Povo de Israel e, posteriormente,

no Novo Testamento, o Povo de Deus, a Igreja406, contraposto ao povo profano ou

pagão407.

“Diretamente a palavra leigo procede do adjetivo grego laikos, com o qual

no grego extra bíblico originalmente se designavam objetos profanos, não

destinados ao culto, o que ocasionalmente influenciou também a linguagem das

traduções do Antigo Testamento fora da Septuaginta. Esporadicamente também se

fala aí de pessoas ou do povo como “leigos” em oposição aos sacerdotes 408 e aos

seus dirigentes409. No Novo Testamento não aparece esse adjetivo, pois todos são

“santos” e “eleitos de Deus”, “templos do Espírito Santo” e membros de um único

povo. “Se no Antigo Testamento havia distinção entre sacerdotes ou profetas e o

povo, isso não ocorre no Novo Testamento” 410.

Na literatura cristã o termo leigo aparece pela primeira vez na Carta de

Clemente referindo-se à ordem litúrgica judaica. Com relação a uma diferenciação

entre os detentores do ofício sacerdotal e os demais fiéis (leigos), só aparece no

século III em Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e alguns outros, como

uma tentativa de ressaltar a sacralidade do ofício ministerial, sobretudo o do

bispo. A oposição teológica e política, como uma divisão de classes, entre o clero

e os leigos só acontece a partir do século XI com a reforma gregoriana, que

atingiu o seu ápice na Idade Média411. Havia, portanto, antes da reforma, uma

relação de igualdade entre os membros do corpo no que se refere à sua dignidade,

embora os ofícios fossem diferentes.

406 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 110 407 Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 641. 408 Cf. Is 24,2; Os 4,9; KHEL, M., op. cit., p. 111. 409 Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique…, p. 1014. 410 Cf. KHEL, M., op. cit., p. 110. 411 Cf. KHEL, M., op. cit., p. 111.

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Segundo B. Monsegú, a compreensão do termo leigo também foi fortemente

marcada pela Revolução Francesa, por correntes irreligiosas e anti-religiosas, que

o deram um sentido pejorativo. Proclamando-se leigos os Estados modernos

pretenderam quebrar a linha da tradição cristã, que prevalecia na Europa desde os

tempos de Constantino e que teve sua expressão mais alta na Idade Média, quando

o civil e o religioso, o Estado e a Igreja, andavam intimamente unidos, estando a

“espada a serviço da Cruz”.

Contra esta espécie de hipoteca que padecia todo o humano, de forma

particular o cultural e político, no início da Idade Moderna, começaram a rebelar-

se as novas nacionalidades, que sob a influência da Reforma protestante,

empreenderam a Revolução Francesa. Uma das suas primeiras medidas era

proclamar-se leigos, separando a religião e a política, a Igreja do Estado412.

Houve, portanto, uma espécie de seqüestro ou “secularismo" da palavra leigo, que

perdeu seu sentido cristão: leigo é aquele que nada tem a ver com a religião. Tal

separação gerou no leigo um estranhamento em relação à Igreja, como se a igreja

fosse exclusivamente os clérigos413.

4.4.7 O tríplice múnus dos fiéis

Pelo tríplice múnus, sacerdotal, profético e régio, os leigos receberam a

missão de consagrar o mundo “co-naturalizando-se” com ele414.

Membros de um corpo sacerdotal, a Igreja, sacerdotalmente nascida de

Cristo e fundada sobre o seu sacerdócio, e, por isso, também sacerdotes em Cristo,

os leigos, consagrados por este caráter, devem oferecer e consagrar a Deus o

mundo em que vivem. Possuem um caráter sacramental que os distingue dos não

crentes. São chamados a oferecer com sua vida, por sua fé em Cristo, um contínuo

culto de louvor ao Senhor. O ápice do oferecimento de si e do exercício do seu

sacerdócio é a celebração Eucarística onde, em torno da mesa sagrada, o cristão se

solidariza com o sacrifício de Cristo, sacerdote e vítima, dá testemunho da

unidade cristã, une suas orações ao do presidente da celebração, se apropria dos

sentimentos de Cristo, e faz seu o próprio sacrifício do Cristo ao Pai. Exclui-se a

412 Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 640. 413 Cf. Ibid., p. 648. 414 Cf. Ibid., p. 672.

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participação mecânica ou de mera assistência (como expectador) na celebração

dos sacramentos.

Na sua missão sacerdotal o leigo deve consagrar o mundo sem mundanizar-

se; fazer com que, pelo seu sacerdócio, todas as coisas mundanizadas sejam

restauradas em Cristo. Tudo deve ser convertido em sacrifício a Deus através de

sua vida e ação415.

Com a salvação oferecida e sua ascensão aos céus, Cristo finalizou uma

etapa para dar início a uma outra: a da Igreja. O novo povo de Deus, a Igreja, tem

também como missão prolongar no tempo e na história a ação salvífica de Cristo,

por meio da sua missão profética.

Cristo é o sacramento do Pai, a Igreja é o Sacramento de Cristo e, num

sentido amplo, podemos dizer que os leigos são também sacramentos da Igreja,

pois são os instrumentos da evangelização, sinais de fé, canais por aonde a

verdade de Cristo chega aos demais homens e mulheres. O testemunho profético

dos leigos no mundo é, portanto, um sacramento de salvação.

Segundo G. Heras “o testemunho dos leigos é muito mais persuasivo que

dos sacerdotes, pois que ninguém suspeitará de um interesse, já que não vivem do

altar. O melhor gênero de pregação será a sua santidade de vida” 416, embora

também seja necessário que esse testemunho se prolongue pela palavra417.

Tem singular importância o testemunho da vida matrimonial-familiar, onde

se encontra, diz a Constituição, “verdadeiro exercício de uma alta escola de

apostolado dos leigos. Nela têm os cônjuges a própria vocação para serem, um

para o outro e para os filhos, testemunhas da fé e do amor de Cristo” 418.

A vocação matrimonial é uma missão na Igreja419. Um chamado que não se

reduz a uma tendência natural a um estado de vida, mas uma missão concreta

dentro do mistério da Igreja. Esta vocação realizam os esposos juntamente com

seus filhos sendo testemunhas da fé e do amor em Cristo. Descobrir e desenvolver

o sentido da fé é tarefa dos esposos e filhos cristãos. A família é o verdadeiro

templo e a escola do amor. Os filhos são o principal sinal do amor dos esposos. 415 Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 666-673. 416 Cf. HERAS, J. G. em Concílio Vaticano II: comentarios a la Constituición sobre la Iglesia. BAC: Madrid, 1966, p. 678. 417 Cf. Ibid., p. 680. 418 Cf. LG 35; Infelizmente a própria palavra vocação, utilizada pelo texto da constituição, tem sido utilizada quase exclusivamente para significar o chamado ao estado sacerdotal ou religioso. 419 Referência à distinção de Philips entre vocação à Igreja e vocação na Igreja, em HERAS, J. G., op. cit., p. 686-687.

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Entretanto, a família é uma das instituições que mais tem padecido nos tempos

modernos. Correntes como o laicismo, o materialismo, o egoísmo e o hedonismo

têm contribuído para uma grande crise de valores nas famílias.

Ainda sobre a missão profética do leigo, não se diga que o apostolado

acontece também na vida secular, pois o leigo evangeliza também pelo simples

fato de ser um bom profissional.

E ainda, os leigos não realizarão plenamente sua missão profética se

carecerem de um conhecimento profundo da Revelação. A propagação do

Evangelho é impensável sem um sólido conhecimento da teologia. Em outras

palavras, como o leigo tem a missão de propagar a fé é necessário que ele a

conheça, por isso a necessidade de um estudo teológico. A ignorância religiosa é

sem dúvida um dos grandes males do nosso tempo420. O mesmo se poderia dizer

da necessidade de uma espiritualidade mais sólida.

4.4.8 Espiritualidade de comunhão

Entende-se por espiritualidade de Comunhão “ter o olhar do coração

voltados para o mistério da Trindade, que habita em nós e cuja luz deve ser

percebida também no rosto dos irmãos que estão em nosso redor” é igualmente “a

capacidade de sentir o irmão de fé na unidade profunda do Corpo Místico, como

‘um que faz parte de mim” 421. Significa ver na Trindade o modelo perfeito de

comunhão entre pessoas. O documento de Puebla afirma que “o Pai, o Filho e o

Espírito vivem em perfeita comunhão de amor” e que nisto consiste “o mistério

supremo da unidade” 422.

“Jesus, tendo cumprido a vontade do Pai, volta para Ele e envia-nos o

Espírito Santo que edifica, santifica e guia a Igreja na sua missão de salvação

universal. É o Espírito que continuamente enriquece a Igreja com os seus dons e a

“cada um é dada à manifestação do Espírito em ordem ao bem comum” 423. O

Espírito é a superabundância do amor divino, o Espírito é vida e doa esta vida a

todo homem. Enquanto doador de vida, o Espírito gera na Igreja a comunhão. Sua

ação principal e fundamental é a Koinonia. Ele nos comunica os dons que o Pai 420 Cf. Ibid., p. 705. 421 JOÃO PAULO II. Carta apostólica novo millennio ineunte. São Paulo: Loyola, 2001, n. 43. 422 PUEBLA 212. 423 1Cor 12, 7.

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deu ao Filho e ao mesmo tempo nos faz participar da plenitude da vida divina424.

Ele nos leva a uma vida de perfeita comunhão com as demais pessoas da

Trindade, fazendo com que o Pai e o Filho venham ao nosso encontro e passem a

agir em nós.

O valor dessa Espiritualidade de comunhão está no fato de que por meio

dela é possível superar problemas como o individualismo, a competição e o

indiferentismo. O grande desafio se torna ser um com o outro, valorizando-o,

como o exemplo da Trindade. Tanto João Paulo II quanto o atual Bento XVI

apresentam a amizade com Deus e com o próximo, como possíveis vias para uma

autêntica espiritualidade de comunhão425.

Não se trata de um privilégio para a Igreja, mas de uma necessidade, que

brota da experiência do conhecimento do próprio Deus, que é comunhão, por que

é Trindade. A experiência da comunhão torna-se ainda mais necessária quando

ouvimos do Senhor: “que sejam um como eu e o Pai somos um”, e mais, “para

que o mundo creia”. A salvação ou a aceitação da Palavra de Deus por parte dos

que não crêem passa, segundo as palavras de Cristo, pela experiência da

comunhão eclesial. Grande responsabilidade, que, apesar das grandes reflexões

apresentadas pelo Concílio, teve, na prática, ainda poucas assimilações ou

repercussões práticas.

Todos estes elementos são importantes para que a Igreja seja realmente

testemunha de Cristo no mundo. Sem a vivência da comunhão, do amor, da

solidariedade, entre tantas outras coisas, a Igreja se distanciaria da palavra de

Cristo e da sua vontade. Deixaria de dar testemunho daquele por quem e para

quem foi constituída. Seu testemunho tem como principal finalidade fazer com

que também outros creiam em Jesus como salvador e que nenhum daqueles que

foram confiados ao Cristo se perca. Trata-se da Igreja como instrumento da

salvação cristã, ou, como é o tema da nossa pesquisa, sacramento de salvação.

424 Cf. OLIVEIRA, J. L. M. Teologia da vocação. São Paulo: Loyola, p. 40-41. 425 BENTO XVI. Carta encíclica Deus é amor. São Paulo: Loyola, 2006, n.18.

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5 A igreja, sacramento de salvação

5.1 Introdução

Cristo é a luz dos povos. Por isso, este sagrado Concílio, congregado no Espírito Santo, deseja ardentemente que a luz de Cristo, refletida na face da Igreja ilumine todos os homens, anunciando o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16,15). E, porque a Igreja é em Cristo, como que sacramento, isto é, sinal e instrumento, da união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano, retomando o ensino dos concílios anteriores, propõe-se explicar com maior clareza aos fiéis do mundo inteiro, a sua natureza e missão universal426.

O derramamento do Espírito sobre os apóstolos reunidos em Jerusalém, no

acontecimento de Pentecostes, constitui um evento importantíssimo para a

realização da Igreja no Novo Testamento. Ele constitui a manifestação pública da

sua natureza e da sua presença no mundo427. Nele encontramos aquilo que

caracterizou a eclesiologia do Vaticano II: a comunhão, princípio fundamental que

valoriza a diversidade das igrejas particulares, mas que as congrega em torno de

uma única convicção, a fé em Jesus Cristo.

Não existe, no Novo Testamento, uma uniformidade de compreensão a

respeito da Igreja. Pode-se constatar que, de acordo com os diversos autores e

livros da Sagrada Escritura, existe também uma variedade de percepções sobre

pontos que afetam a natureza e a missão da comunidade de fé. Essa diversidade

não significa necessariamente uma contradição, mas impõe um desafio quando se

pretende chegar a uma harmonia entre as diversas visões.

De fato, todas essas interpretações têm um mesmo fundamento, a fé em

Jesus Cristo. Todos crêem firmemente pertencer à comunidade dos discípulos do

Senhor, comunidade de salvação que vem de Deus e está ligada à promessa do

426 Cf. LG 1. 427 Não há, entre os teólogos, uma uniformidade de pensamento sobre o momento exato do surgimento da Igreja. Uns colocam-no no momento em que Jesus convoca e institui o grupo dos Doze apóstolos; outros, no momento da cruz quando, transpassado pela lança, jorraram de seu peito aberto sangue e água; outros ainda encontram na ceia eucarística o momento do seu surgimento, expressão de um novo culto e, portanto, de uma nova religião. Esta variedade de interpretações é devida às diferentes possibilidades de leitura global que se pode fazer do mistério pascal de Cristo. Cf. TILLARD, J. M. R. Iglesia de Iglesias. Salamanca: Ed. Sígueme. 1999, p.14-15. Segundo a Encíclica Mystici Corporis, “o divino Redentor começou a fábrica do templo místico da Igreja, quando na sua pregação ensinou os seus mandamentos; concluiu-a quando, glorificado, pendeu da Cruz; manifestou-a enfim e promulgou-a quando mandou sobre os discípulos visivelmente o Espírito paráclito” (MC 25). Já na Lumen Gentium lemos: “descendo sobre os apóstolos, o Espírito Santo deu início à Igreja” (LG 19).

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Reino, nasce da fé e está encarregada de anunciar a boa nova. No entanto, apesar

dos elementos em comum, também é possível encontrar várias diferenças sobre o

ser e a práxis eclesiais.

Neste contexto, entendemos que um olhar atento, à procura de uma

definição ontológica para a Igreja, não pode se deter única e exclusivamente nos

dogmas de fé existentes hoje e/ ou em algumas contribuições exegéticas, mas que

é preciso um retorno às origens da tradição cristã para compreender a caminhada e

o processo pelos quais se desenvolveram tais definições 428.

A temática da Igreja como sacramento de salvação passa também pela

experiência da comunhão. Valoriza a vocação e a atuação de todos os cristãos,

seja na Igreja ou na sociedade, e reconhece que todos são membros do mesmo

Povo de Deus e, por isso, possuem dignidade e responsabilidade, cada um

segundo a sua vocação e carisma próprios.

Nossa proposta neste quarto capítulo é desenvolver o tema central do nosso

trabalho: em que sentido a Igreja é sacramento de salvação? Quais as suas

implicações para a teologia e pastoral das comunidades de fé? É o que nos

propomos a abordar nesta seção da nossa pesquisa.

5.2 Sacramentos, prolongamento da sacramentalidade de Cristo

Cristo é o sacramento primordial, o sinal de Deus por excelência429. Aquele

sobre quem está estabelecida toda a realidade da salvação, o único nome debaixo

do céu pelo qual podemos ser salvos430. Sua vida é a própria manifestação do

amor de Deus pela humanidade. Ao encarnar-se, o Filho de Deus tornou-se

homem como nós e no encontro com ele temos um encontro com o Deus vivo,

pois aquele homem é, pessoalmente, o Filho de Deus, o sacramento revelador do

Pai no meio da humanidade431.

Mas esta afirmação nos coloca diante de um problema: como podemos

encontrar o Senhor glorificado se após a sua ressurreição e glorificação ele

428 Cf. TILLARD, J. M. R., Iglesia de Iglesias..., p. 11-13. 429 Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 20. 430 Cf. At 4,12. 431 Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 47.

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desapareceu do nosso horizonte visível? Porventura a salvação teria cessado com

o retorno de Cristo para junto do Pai? Se não, como continua a realizá-la?

Após sua ressurreição e ascensão, “Cristo torna sua presença ativa de graça

visível e palpável entre nós, não diretamente por sua corporeidade, mas

prolongando, por assim dizer, sua corporeidade celeste sobre a terra, em formas de

manifestações visíveis, que exercem entre nós a ação de seu corpo celeste. São

precisamente os sacramentos o prolongamento terrestre do corpo do Senhor. E

concretamente, a Igreja.432. Assim como Cristo é o sacramento do Pai, a Igreja é o

sacramento de Cristo.

O retorno de Cristo para junto do Pai, por ocasião da sua ascensão433, não

foi o fim da sua missão salvífica junto a nós. Antes, a sua realização plena. Seu

desaparecimento e glorificação constituem a antecipação da nossa união corporal

glorificada com o Senhor, inaugurada pela Parusia, o ponto final e eterno de toda

vida cristã. Precede, por assim dizer, a nossa divinização, isto é, a perfeita união

do ser humano com Deus. Por sua glorificação Cristo preparou-nos uma

morada434 junto do Pai 435.

A vida cristã é um constante advento. Aguardamos vigilantes o retorno

glorioso do Senhor e a implantação definitiva do seu Reino. Sofremos como em

dores de parto o dia-a-dia da espera por esta manifestação definitiva, cuja

realização não sabemos como e quando se dará436. Enquanto somos parcialmente

privados deste encontro pessoal com Jesus Cristo, vemos como num espelho,

marchando para o encontro e ansiando pelo dia em que o veremos face-a-face437.

Esta espera pelo encontro em plenitude só é compreensível porque já temos,

em certa medida, o Cristo glorificado, não apenas pela lembrança dos fatos

acontecidos no passado, ou tão somente por uma fé imaginária, mas porque Cristo

também torna sua presença ativa e palpável entre nós, não diretamente por sua

corporeidade, mas pelos sinais concretos e eficazes da sua graça, prolongamentos

de sua corporeidade, denominados sacramentos.

A resposta do porque ou para que existem esses prolongamentos estão na

própria pedagogia de salvação: Deus sempre nos propôs o Reino dos céus de uma

432 Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48. 433 Cf. At 1, 6-11. 434 Cf. Jo 14,2. 435 Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48. 436 Cf. Mt 24,36. 437 Cf. 1Cor 13,12; SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48.

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maneira terrena, sob formas e manifestações humanas. Se não fosse assim, um

aspecto profundamente humano da encarnação de Deus teria se perdido por não

conseguirmos atingir e compreender a sua comunicação a nós438. Não bastaria a

boa vontade de Deus em se comunicar a nós ao se encarnar se não pudéssemos

compreender e aceitar a sua proposta de salvação.

Encontro humano inclui reciprocidade. É verdade que por sua humanidade

glorificada Cristo celeste pode atingir e influenciar a todos. Mas nós, seres

humanos, não podemos encontrá-lo em sua carne viva por causa da sua

invisibilidade. Daí se segue que se Cristo não der, de uma maneira ou de outra, a

sua corporeidade celeste uma visibilidade no plano de nosso mundo, sua redenção

não acontecerá mais para nós. Sua mediação humana seria sem significado e uma

vez realizada a redenção, a humanidade de Cristo não teria mais sentido de

continuar a existir439.

O mistério da redenção através da corporeidade se fundamenta no próprio

mistério da encarnação e da redenção cristã. Na pessoa de Cristo, a corporalidade

se tornou fonte de glória, redenção e santificação para nós440. Toda convivência,

inter-relação e comunicação humanas só são possíveis dentro e pela corporeidade.

Ela é condição necessária nos relacionamentos humanos.

Segundo E. Schillebeeckx, a possibilidade de nos influenciar por sua graça

como homem é dada pela ressurreição. Isto tem uma importância capital. Temos

sempre a tendência de dissolver a vida humana de Cristo e olhar para além da sua

humanidade, para sua divindade. Mas é enquanto homem que Cristo é mediador

de graça, em sua humanidade e segundo sua humanidade441. Sua mediação de

graça supõe sua corporeidade. Em outras palavras, é a humanidade de Cristo que

o permite influenciar-nos442.

Aqui entendemos o porque se tornou necessário tratar dos símbolos no

primeiro capítulo deste nosso trabalho. Eles constituem como que a matéria prima

da Revelação cristã. Um elemento de característica essencial para a compreensão

da economia sacramental. Da mesma forma, entendemos o porque da necessidade

dos sacramentos. Eles constituem a face da redenção voltada para nós, a forma

438 Cf. Ibid., p. 49. 439 Cf. Ibid., p. 50. 440 Cf. Catequeses de João Paulo II em 21/07/82 em http://www. vatican.va. 441 Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 49. 442 Cf. Ibid., p. 50.

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pela qual encontramos o Cristo vivo após a sua ascensão e glorificação celeste.

Assim que o sacramento primordial deixou o mundo, por ocasião da sua ascensão,

entrou em ação, como prolongamento da encarnação, a Igreja, que por sua vez,

nos possibilita os outros sacramentos443.

A sacramentalidade lança uma ponte sobre o afastamento ou desproporção

que existe entre o Cristo celeste e a humanidade não glorificada, e torna possível o

encontro humano recíproco entre Cristo e a humanidade, após a sua ascensão. A

existência e religiosidade cristãs são necessariamente uma existência e

religiosidade sacramentais. A economia sacramental é parte integrante e

constitutiva do seu ser. E encontra como fundamento a própria revelação do

Cristo feito homem444.

Esta necessidade, ao mesmo tempo antropológica e cristológica, “mostra

que os sacramentos da Igreja não são coisas, mas encontros de homens sobre a

terra com o homem glorificado445, Jesus, mediante uma forma visível. São, na

dimensão da visibilidade histórica, uma manifestação concreta do ato de salvação

celeste de Jesus Cristo” 446.

Os sacramentos nos permitem entrar em contato vivo com o próprio

mistério santificante de Cristo. Sob o véu terrestre os sacramentos são esse

mistério da manifestação terrestre da salvação cristã447.

Embora a atual presença de Cristo seja ainda uma presença abscôndita e

muito provisória, ela nos impele para o encontro pleno e desvelado com ele face-

a- face, para estar plenamente junto de Deus. Essa presença provisória, mas real e

pessoal, é atestada e realizada por Cristo através desses sinais palpáveis, que a fé

percebe como lugares fidedignos de sua ativa presença no Espírito, entre os quais

está a Igreja, comunidade dos fiéis, Corpo de Cristo, templo vivo da Graça de

Deus448.

443 Cf. Ibid., p. 51. 444 Cf. Ibid., p. 51. 445 Esta afirmação é de grande importância para a teologia pastoral sacramental. A compreensão dos sacramentos, não como “coisas”, mas como “encontro” exige necessariamente uma catequese mistagógica e menos sacramentalista; A experiência da fé passa a ter como foco não o “objeto” em si, mas aquele que se pode conhecer por meio do “objeto”. A conseqüência prática dessa idéia será uma Igreja mais consciente da sua missão e comprometida no discipulado de Nosso Senhor Jesus cristo, que é proposta da última conferência do Conselho Episcopal Latino Americano, em Aparecida/SP. 446 Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 52. 447 Cf. Ibid., p. 52. 448 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1. p. 388.

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“A Igreja terrestre é a aparição dessa realidade de salvação no plano da

visibilidade histórica. Ela é a comunidade visível da graça” 449, “manifestação

visível da graça redentora de Cristo na figura de um sinal social”. “Ela é, pois, de

modo quase idêntico, “o Corpo do Senhor”” 450, o “sacramento primordial” 451 de

Cristo.

Assim, a Igreja aparece como o próprio “braço” de Cristo, que perpetua na

história sua ação salvadora, concretizada no sacrifício da cruz e corroborada por

sua ressurreição e glorificação pelo Pai.

A compreensão da Igreja como sacramento tornou-se uma das principais

categorias da eclesiologia atual, situando-se inclusive entre as mais adequadas

quando se trata de exprimir a profunda ligação da Igreja com o mistério de Cristo,

os aspectos visíveis e invisíveis da sua constituição natural, bem como para

designar a sua índole missionária e sua designação como servidora da

humanidade.

Mas em que sentido a Igreja é o sacramento de Cristo? Sendo sacramento, a

Igreja é um prolongamento da corporeidade de Cristo sobre a terra. Para que

existe esse prolongamento? Quais as implicações desse pensamento para a

doutrina e para a pastoral da Igreja?

5.3 A Igreja, sacramento radical

A concepção da Igreja como sacramento não é uma novidade trazida pelo

Concílio Vaticano II, mas a retomada de uma concepção presente já na literatura

bíblica452, dos Padres da Igreja e, embora ofuscada e sem grande relevância,

também na Idade Média. Entretanto, constitui para a modernidade uma mudança

eclesiológica importantíssima, pois impõe uma nova concepção do que é a

comunidade de fé, gerando “uma espécie de decentração da Igreja com relação a

449 Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 53. 450 Cf. Ibid., p. 54. 451 Embora a expressão “Sacramento primordial” seja aplicada com propriedade à pessoa de Cristo, E. Schillebeeckx e O. Semmelroth aplicam-na também à Igreja, designando-a “sacramento primordial de Cristo”. Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 60. 452 “Embora, no Novo Testamento, mal se encontre uma expressa caracterização da Igreja como sacramento e na Patrística seja muito rara, não existe, provavelmente, nenhuma expressão mais apropriada para a originária visão da Igreja do que a categoria sacramental”. Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 397.

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si mesma e colocando-a em relação a Cristo” 453. Fornece uma nova chave de

leitura para uma nova consciência eclesial, fundamentada na encarnação e, de

modo mais amplo, no evento da salvação em Jesus Cristo454.

Apesar disso, o Concílio foi cauteloso em sua formulação, pois na

constituição sobre a Igreja (n.1), diz que ela é em Cristo “como um sacramento ou

sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero

humano”. Contudo, a palavra “como” é omitida no texto do capítulo segundo455,

onde afirma que a Igreja é convocada e constituída por Deus para ser um

sacramento visível da unidade. Neste segundo capítulo a nota remete a

Cipriano456, o qual assegura que a Igreja é o sacramento indissolúvel da

unidade457.

Vários teólogos modernos aplicaram o termo sacramento à Igreja: M.

Scheeben, E. Schillebeeckx, H.U.Von Balthasar, K. Rahner, Y.M.J. Congar. Sua

retomada aconteceu na década de 30 com o movimento jesuíta francês de retorno

às fontes – a Novelle Theologie - e teve como grande precursor e expoente o

teólogo católico Henri de Lubac458, na sua obra Catholicisme, publicada em 1938,

na qual diz que “se o Cristo é o Sacramento de Deus, a Igreja é para nós o

sacramento de Cristo” 459. Em Méditation sur l’Eglise faz as mesmas afirmações:

A Igreja é um mistério, isto é, um sacramento. Lugar total dos sacramentos cristãos, ela é, ela mesma, o grande sacramento que contém e vivifica todos os outros. Ela é aqui em baixo o sacramento de Jesus Cristo, como Jesus Cristo, ele mesmo é para nós, na sua humanidade, o sacramento de Deus. 460. A Igreja, toda a

453 Cf. Ibid., p. 396. 454 Cf. TIHON, P. A Igreja em SESBOUÉ, B. (Org). História dos dogmas: Os sinais da salvação. Tomo 3. Loyola: São Paulo, p. 433. 455 LG 9. 456 Citação da Carta 69, 6 em LG 9. 457 Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol. V. 2: Caráter sacramental da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 7. 458 Nascido em Cambrai, na França, no ano de 1896, Henri De Lubac é um dos personagens que mais representa a última renovação teológica e seu pensamento atual. Jesuíta tomista, professor de Teologia Fundamental e História das Religiões nas faculdades católicas de Lyon, empreendeu junto à “Escola de Fourvière” um importante movimento de superação da estagnação de uma teologia escolástica que havia se estabelecido e se fechava às possibilidades de um diálogo com o pensamento contemporâneo. 459 “Si le Christ est le sacrament de Dieu, l’Eglise est pour nous le sacrament du Christ”. Cf. DE LUBAC, H. Catholicisme: les aspects sociaux du dogme. Paris: Cerf, 1983, p.50. 460 Cf. DE LUBAC, H. Méditation sur l’Eglise. Paris: Aubier, 1968, p. 164: “L’Eglise est un mystére, c’est-à-dire, aussi bien, un sacrement. <<Lieu total des sacrements chrétiens, elle est elle-même le grand sacrement qui contient et vivifie tous les autres. Elle est ici-bas le sacrament de Jésus-Christ, Comme Jésus-Christ lui-même est pour nous, dans son humanité, le sacrament de Dieu”

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Igreja, e só a Igreja, esta de hoje como a de ontem e a do amanhã, é o sacramento de Jesus Cristo 461.

São as primeiras intuições, sem grandes elaborações. Idéias que não são

originais de De Lubac, mas que ele recupera da literatura Patrística, sobretudo de

Irineu e Cipriano462, suas fontes principais. Vê na Igreja o “ponto de encontro dos

desejos do homem e dos desejos de Deus” 463. Teve o mérito de ser o primeiro a

recuperar, na modernidade, esta concepção, que mais tarde seria aprofundada e

sistematizada por O. Semmelroth e, posteriormente, por K. Rahner, que também

deu grandes contribuições464.

Igual relevância teve a Encíclica Mystici Corporis, do papa Pio XII, lançada

em 1943. Embora não designe a Igreja pelo nome de sacramento, o documento,

que gira em torno da temática da Igreja como corpo, ofereceu grandes

contribuições aos teólogos. Estes entenderam a corporalidade como a forma

mediante a qual Deus encontra o ser humano e vice-versa, e nisto, o que a

qualifica como sacramento.

O Concílio Vaticano II, valendo-se das contribuições desses teólogos

também aplicou à Igreja o conceito de sacramento para determinar sua relação

específica com o agir salvífico de Deus em prol do mundo465. Expressou com este

conceito a unidade inseparável e a diversidade inconfundível entre a Igreja e a

auto-comunicação de Deus em Jesus Cristo, no Espírito Santo. A Constituição

sobre a Igreja começa afirmando que Jesus é a luz dos povos e que a Igreja é o

reflexo dessa luz 466. “Ela é como que o sacramento, isto é, sinal e instrumento, da

união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano” 467. E é justamente

neste sentido que a Igreja é entendida como sacramento da salvação, isto é, como

o reflexo e sinal eficazes da salvação realizada pelo Pai, em Jesus Cristo. A Igreja 461 “L’Eglise, toute l’Eglise, la seule Église, celle d’aujour-d’hui comme d’hier et de demain, est le sacrament de Jesus Christ”. Cf. DE LUBAC, H. Méditation…, op. cit. p. 171. 462 Cipriano denomina a Igreja “sacramentum unitatis”. Cf. citação de CIPRIANO. De cat. Eccl. Unitate, 4 em BORÓBIO, D., op.cit., p. 301. 463 Cf. DE LUBAC, Catholicisme…, op. cit., p.234. 464 Na verdade, H. De Lubac não teve a preocupação de uma sistematização ou um aprofundamento mais elaborado do tema, mas recuperar a teologia presente no início da Igreja, de forma especial, na Patrística, da qual De Lubac era grande conhecedor e se servia para fazer suas meditações. O mérito de O. Semmelroth em relação a H. De Lubac foi que ele sistematizou e aprofundou a problemática levantada pelo teólogo francês. Foi o primeiro, pode-se dizer, a sistematizar o tema. Cf. Ibid., p. 433; GIBELLINI, R. A teologia do século XX. Loyola: São Paulo. 2002, p. 182-191. 465 Cf. LG 1, 9, 48, 59; SC 5, 26; GS 42,45; AG 1,5. 466 Cf. KEHL, M., op. cit., p. 77-78. 467 LG 1.

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é, no mundo de hoje, o meio pelo qual Cristo continua a realizar a sua obra

redentora, o sinal ordinário pelo qual continua a levar os homens ao conhecimento

da sua salvação: É o sacramento de Cristo para comunicar aos homens a vida nova 468.

Assim entendemos em que sentido Jesus e a Igreja são designados como

sacramentos:

Sacramento é o eterno desígnio salvador de Deus que se revela e se realiza com eficácia entre os homens. Ou é ação e obra divinas nas quais Deus, enquanto manifesta seu plano salvador, o realiza sobre a terra para que os homens reconheçam o Deus salvante nessa velada Revelação e realização em curso, creiam nele, afirmem-no, deixem-se apreender por ele, e se salvem neste pessoal encontro com o Deus de sua salvação. É de Deus ao mesmo tempo uma ação e uma obra porque tanto a iniciativa e atividade divina quanto a sua execução podem ser assinaladas no interior do homem. É um sinal eficaz por ser uma expressão da força salvadora divina de cima nos homens e converte a si 469.

A Igreja é o sacramento primordial de Cristo, seu corpo sobre a terra470;

encontra nele, sacramento do Pai, o fundamento e a razão da sua própria

sacramentalidade. É sacramento enquanto Cristo é sacramento e enquanto

participa da sacramentalidade do seu Senhor. É sacramento enquanto

continuadora da sua obra salvífica sobre a terra. Daí, por exemplo, o motivo de O.

Semmelroth denominar a Igreja não como sacramento original de salvação, mas

sacramento radical de Cristo, vendo em Cristo o sacramento que dá origem a

todos os outros sacramentos, e a Igreja como raiz plantada na pessoa de Cristo471.

Isto significa dizer que a Igreja, que recebeu a salvação, tem a capacidade e

missão de transmitir a salvação, não por seu próprio poder, mas como instrumento

de Jesus Cristo. Isto lhe confere o caráter de um sacramento universal de segunda

ordem. Possui uma função mediadora na comunicação da salvação472.

Seus atos devem, como em Jesus, encarnar a palavra do Pai e torná-la

palpável aos homens: “O homem de nossos dias sente-se psiquicamente onerado

468 Cf. PUEBLA 922. 469 Cf. BARAÚNA, G., A Igreja do Vaticano II..., p. 410. 470 Cf. 1Cor 12, 12-30. 471 Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja como sacramento de salvação em FEINER, J.; LOEHRER, M. Mysterium salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica. Vol. IV/2. Vozes: Petrópolis, 1975, p. 89-90. 472 Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol. V. 2..., p. 10.

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de ver, precisamente quando busca uma fé interior, sincera e pessoalmente

profunda, que a Igreja signifique tanto para uma fé assim” 473.

A Igreja, enquanto comunidade de fé, é também a comunidade dos fiéis, já

que “são os fiéis o sujeito comunitário da fé em Deus”; “O indivíduo torna-se fiel

em pleno sentido, não tanto pela opção individual isolada do seu interior, mas por

integrar-se à comunidade de fé da Igreja, dando com isso à sua fé individual uma

expressão histórica salvificamente determinada” 474, é o que chamamos de

testemunho, que, segundo O. Semmelroth, possui dois aspectos: primeiro, o

anúncio das maravilhas divinas por palavra e obra; segundo, a presença da Igreja

como motivo de credibilidade475.

D. Borobio apresenta três razões pelas quais a Igreja é sacramento: em

primeiro lugar porque manifesta visivelmente as realidades invisíveis do Cristo e

do Espírito; é um sinal histórico salvífico-social. Em segundo lugar, por que é

testemunha-presença de Deus no mundo por seu comportamento ético: “E sereis

minhas testemunhas” 476. Em terceiro lugar, pelos sinais que acompanham a sua

atuação: “Ide, portanto e fazei que todas as nações se tornem discípulos,

batizando-os em nome do Pai e do Filho e do espírito Santo” 477.

E. Schillebeeckx afirma que “o homem messiânico Jesus é impensável sem

a sua comunidade de salvação” 478. Recorre a Agostinho para dizer que “Cristo

morre para que a Igreja nasça em sua morte” 479. Segundo ele a sacramentalidade

da Igreja se dá também pela via carismática, isto é, da visibilização da graça pela

atividade dos pastores e dos fiéis480. Entende que a ministerialidade é um

elemento constitutivo do ser eclesial e que a manifestação sacramental da Igreja

realiza-se também de maneira formal, ministerial e funcional481.

Os sacramentos, neste contexto, tornam-se auto-realizações da própria

Igreja para o cumprimento da sua missão, a partir da salvação de cada um de seus

membros482. São atos do sacramento primordial que é a Igreja, expressão da

473Cf. Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja como sacramento..., p. 81-82. 474Cf. Ibid., p. 83. 475Cf. Ibid., p. 84. 476 At 1,8. 477 Mt 28,19-20. 478 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo sacramento do Encontro..., p. 53. 479 Cf. Ibid., p. 53. 480 Cf. Ibid., p. 58. 481 Cf. Ibid., p. 55-56. 482 Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300-304.

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comunhão na graça. São a atividade da salvação em Cristo sob a forma da

aparição de um ato eclesial 483.

A consciência de uma Igreja sacramental afeta diretamente a atuação e a

consciência que os fiéis têm da sua participação na Igreja e do seu papel no

mundo. Vivemos num tempo de recuperação do valor do leigo como membro

ativo da Igreja; tempo de desafios no que se refere ao ecumenismo e à comunhão

entre as religiões. Tempo em que a presença da Igreja em muitos continentes

começa a ser escassa e a laicização dos Estados se torna fator determinante para o

cerceamento das atividades evangelizadoras, senão até a sua proibição. Tempo,

enfim, em que a falta de sentido e grande variedade de alternativas religiosas,

todas requerendo para si o primado da verdade, aliados à falta de testemunho por

parte daqueles que dizem crer, fazem com que cada vez mais cresça o número

daqueles que se dizem sem religião, ou ainda, ateus.

Ser sacramento de salvação, sinal vivo da presença ativa de Cristo no

mundo, é mais que um privilégio, tornou-se uma necessidade. Talvez por isso o

Concílio tenha definido o tema da sacramentalidade da Igreja como um dos seus

mais importantes conceitos e definições. Ser sacramento de Cristo é perceber-se

um membro ativo deste grande corpo, que é a Igreja. É reconhecer que na sua

missão evangelizadora não somos apenas expectadores, mas protagonistas

principais.

Esta consciência também se faz presente na compreensão dos ritos

sacramentais. Depois do Vaticano II, os sacramentos deixaram de ser entendidos

somente como atos do sacrifício de Cristo para serem compreendidos também

como expressões da sacramentalidade da Igreja. Aliás, esse passa a ser o foco

principal da teologia sacramental. Sem deixar de lado o elemento sacrifical, passa-

se a enfocar a dimensão comunitária dos sacramentos. É o que nos propomos a

aprofundar em seguida.

5.4 Ritos sacramentais: manifestações da sacramentalidade eclesial

O mistério da salvação que nós chamamos sacramento é também o mistério

da união da palavra salvadora ao sinal salvífico instrumentalizado. A cruz do

483 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro..., p. 60.

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Gólgota está presente de um modo dinâmico-atuante nos sinais sacramentais. Em

cada um deles se mostra um aspecto concreto sob o qual se torna presente o

sacrifício da cruz. Na ceia Eucarística, por exemplo, encontramos o mesmo

sacrifício pessoal de Jesus ao Pai. Por meio dele tornam-se presentes a morte e a

ressurreição do Senhor e se cria e aprofunda a comunhão dos irmãos entre si e

destes com Deus. Já na Crisma se atualiza a cruz de Cristo sob o aspecto de que

nesta o salvador se opôs vitoriosamente ao mal à vista de todo o mundo484.

Primeiramente devemos dizer que os sacramentos só podem ser

compreendidos corretamente se os entendemos em comunhão com a perspectiva

geral da História da Salvação. Estes são uma forma especial de transmissão da

salvação pela palavra sinalizada. A Meta dos sacramentos é estabelecer um

diálogo entre Deus e os homens e dos homens entre si. Através da palavra e do

sinal a salvação se torna inteligível e eficaz. Em virtude da sua transcendência,

Deus não pode ser visto e ouvido imediatamente. Sua comunicação com a

humanidade só se torna possível mediante o uso de instrumentos audíveis, visíveis

e concretos. Este instrumento é, sobretudo, a Igreja, que está capacitada para esse

fim em virtude da sua união com Cristo485.

Isto só se torna compreensível se entendemos a relação de Cristo com a

Igreja e do Pai com Cristo. Após ter cumprido todo o plano da salvação, Cristo

voltou para o Pai. Hoje, ele se faz presente no mundo por meio da Igreja. Por

meio dela se dá o chamado para o seguimento a Cristo. Quem se deixa captar por

esse chamado, participa do movimento vital de Jesus Cristo, cabeça desta

comunidade, pois na Igreja está presente a vida de Jesus. E aqui está a

sacramentalidade da Igreja.

Neste contexto é que devem ser entendidos os sete ritos sacramentais, como

concreções, sínteses, manifestações da sacramentalidade total da Igreja.

Manifestações que se adequam às situações vitais do indivíduo e da comunidade

eclesial.

A comunidade necessita de uma festa (Eucaristia). Tem necessidade de um rito de aceitação para os novos membros (Batismo). Requer uma contínua reflexão sobre si mesma e auto-renovação (Penitência). Ela há de superar o problema da enfermidade e da morte (Unção dos Enfermos). Necessita de uma ordem interna (Ordem). Há de resolver o problema de como cada cristão realiza sua fé em Cristo

484 Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2..., p. 16. 485 Cf. Ibid., p. 16-17.

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dentro da vida diária diante das tentações (Confirmação). Além disso, o homem e a mulher devem realizar seu encontro sexual dentro da comunidade marcada por Cristo em forma adequada à sua fé nele (Matrimônio) 486.

De acordo com a fé católica, todos os sete ritos foram instituídos, direta ou

indiretamente, pelo próprio Cristo. Entretanto, uma análise cuidadosa da Sagrada

Escritura nos mostra que alguns dos sacramentos sequer são mencionados por ele.

Ora, só podemos falar sobre a vontade de Cristo de instituir os sacramentos se na

Sagrada Escritura encontrarmos textos que pelo menos germinalmente dêem

testemunho dessa vontade. E de fato encontramos tais pontos de apoio. Estes se

referem, sobretudo, ao Batismo e à Eucaristia, sobre os quais encontramos textos

diretos487. Quanto aos demais sacramentos, pode- se dizer que a Sagrada Escritura

nos dá apenas indícios e que sua raiz está no período apostólico. A modalidade

dos sinais continuou a se desenvolver para além do século I, de acordo com as

necessidades do tempo, mas sem abandonar o núcleo do seu conteúdo

fundamental488.

O ato do Concílio de Trento de estabelecer uma ordem diversificada para os

sacramentos, ressaltando o Batismo e a Eucaristia sobre todos os outros, se

harmoniza perfeitamente com a diferença relativa à clareza do testemunho e à

modalidade do sinal no Novo Testamento489.

O sinal sacramental é a manifestação e a forma de comunicação divina da

salvação, que é a Graça. Não se trata de um recipiente, no sentido de que o sinal

contém em si mesmo o que comunica, como dizia a Escola de Hugo de São

Victor, no período Escolástico, mas de uma espécie de “agente comunicador”, no

sentido de que o sacramento é um “símbolo real” daquilo que evoca, um

instrumento tal como uma corporalização social e histórica daquilo que significa,

a Graça. O valor não está no sinal em si, mas na graça que ele comunica. Ora, na

medida em que se atribui o valor ao sinal comunicador, e não ao que é

comunicado, pode-se desembocar numa espécie de magia ou superstição,

atribuindo um poder divino a uma simples criatura490.

486 Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. V. 2..., p. 20. 487 Lc 22,14-20; Mc 14, 22-25; Mt 26, 26-29; Lc 3, 21-22; Mc 1, 9-11; Mt 3, 13-17. 488 Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. V. 2..., p. 21. 489 Cf. Ibid., p. 21. 490 Cf. Ibid., p. 27.

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Esta realidade pode ser compreendida ainda melhor levando-se em conta

que o sinal está essencialmente constituído pela palavra. Isto significa dizer que

enquanto se anuncia o projeto salvífico de Deus, torna-se evento a sua vontade

salvífica. É o que Karl Rahner chamou de causa sine qua non, isto é, os

sacramentos, não como simples sinais externos, mas como forma e caminho da

autocomunicação divina. Exercem sua eficácia pelo ato de significação. Têm uma

função não só interpretativa, mas também criadora, no sentido de que faz

acontecer aquilo que significa e é anunciado491.

Também os sacramentais (pequenos sacramentos) devem ser compreendidos

a partir da sacramentalidade geral da Igreja. Compreendem-se sob este termo

aquelas bênçãos e consagrações pelas quais a Igreja ora sobre determinados

objetos e lugares, a fim de que as pessoas que os usam com devoção cresçam na

fé e na caridade. Estes provocam e convidam os fiéis a estenderem para

quotidiano de suas vidas os sinais da santidade e da graça salvífica de Cristo492.

Devido à sua relevância, vamos agora abordar alguns sacramentos

particularmente. Tendo em vista que o foco do nosso trabalho não está nos ritos

sacramentais em si, mas em que sentido eles manifestam a sacramentalidade

eclesial, não discorreremos sobre todos os sacramentos, mas nos limitaremos aos

ritos da iniciação cristã, por sua importância e características.

5.4.1 Batismo

O Batismo é o sacramento que nos introduz na vida Igreja. Ocupa um dos

lugares de maior importância entre todos os sacramentos. Pode-se dizer que ele

configura e determina toda a vida cristã. É o sacramento através do qual a Igreja

incorpora a si novos membros, assegura e amplia incessantemente a sua

existência. Mas não somente isto. É, também, um elemento salvífico. Desde o

início, pertence ao conteúdo do anúncio da fé. Segundo as Escrituras, a pregação

precede ao Batismo e interpreta a existência do batizado. Neste contexto, o

Batismo aparece como a resposta de fé à pregação e como a base da existência

cristã, sinal concreto da adesão do convertido à pessoa de Cristo. Pela adesão

491 Cf. Ibid., p. 28. 492 Cf. Ibid., p. 35.

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formal, através do batismo, o novo crente é enxertado no corpo de Cristo, que é a

Igreja, e, por ele, no mistério salvífico cristão493.

O Novo Testamento trata do Batismo sob a perspectiva de uma nova vida.

Vê o Batismo como um banho renovador e regenerador494. Uma vez batizado, o

cristão deve levar uma vida afastada do mal e do pecado e deixar que a Luz de

Cristo, recebida no sacramento, a salvação, irradie por toda a sua vida e daqueles

com os quais convive495.

O sentido que mais se destaca é o de destruição e morte, imagem presente já

no Antigo Testamento, nos eventos do dilúvio e da travessia do Mar vermelho 496,

entre outros. Esses dois simbolismos são freqüentemente aplicados ao batismo

cristão 497 e fazem referência à morte e ressurreição do Senhor 498. Segundo as

Escrituras, o batizado é aquele que morreu com Cristo para viver uma nova vida,

segundo a Graça de Deus. Proveniente do aramaico, a expressão “ser batizado”

alude à idéia de submersão e elevação. Submersão enquanto passagem pela morte

de Cristo, e ressurgimento para a nova vida499. Trata-se de uma passagem da

morte ao pecado e à injustiça para a vida na bondade e na graça “crísticas”.

Assim como os judeus seguiram Moisés e passaram, com ele, pelas águas da

morte, simbolizadas pelo mar vermelho, e encontraram, dessa maneira, a vida e a

liberdade, do mesmo modo os cristãos que agora seguem o destino de Jesus até a

morte, que se expressa simbolicamente pelas águas do batismo, encontram no

sacramento o destino de sua vida e a verdadeira liberdade500. Morrer com Cristo

significa morrer para o mundo e para os seus poderes 501, para escravidão da lei 502

e a vida no pecado 503.

A morte de Jesus, portanto, é a chave para a compreensão do Batismo

cristão. O batizado é a pessoa que assume na vida o destino da morte de si pelos

493 Cf, Ibid., p. 109. 494 Cf. Tt 3,5; Ef 5,26; Hb 10, 22. 495 Cf. Rm 6,4; 1Jo 3,9. 496 Cf. Gn 7,18-24; Ex 14. 497 Cf. 1Pd 3,20s; 1Cor 10,1s. 498 Cf. Rm 6,3-5. 499 Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 41. 500 Cf. Ibid., p. 42. 501 Cf. Cl 2,20. 502 Cf. Rm 7,6. 503 Cf. Rm 6,6.

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outros, que entrega sua vida livremente pela salvação do próximo. Ele deve

morrer para tudo aquilo que não seja a vida que o Senhor o ensinou504.

A primeira conseqüência dessa adesão é que quem o recebe é revestido de

Cristo 505. Pelo Batismo a mesma vida de Cristo está presente e age naquele que o

recebeu 506. Trata-se de uma referência à mudança ontológica operada pelo

sacramento naquele que o recebe, mas também à conduta que deve assumir a

partir dessa nova constituição.

Outro aspecto de grande relevância diz respeito à relação entre o batismo e à

ação do Espírito Santo. A presença do Espírito no batizado é característica

essencial e específica do batismo cristão. Segundo os relatos do Novo

Testamento, o batismo cristão não é só um batismo na água, como o de João, mas

o próprio mover do Espírito na vida do crente 507. O Espírito também é o

fundamento da experiência de força, amor, alegria e liberdade que impulsionou e

impulsiona ainda hoje tantos homens e mulheres à experiência da missão, da

comunhão e do serviço508. Trata-se de uma experiência forte que age com energia

na vida do cristão e o impulsiona a testemunhar 509 com audácia, liberdade e

autoridade a mensagem de Jesus 510.

Neste sentido, o batismo só pode ser entendido a partir do mistério pascal de

Cristo, o qual compreende sua morte, ressurreição e o derramamento do Espírito

sobre a Igreja, no evento de Pentecostes. A Igreja é a manifestação histórica desse

mistério, seu sinal visível para a humanidade. Ela é, no mundo, o sinal visível da

páscoa eterna 511. E o Batismo é um dos modos pelos quais a Igreja atualiza esse

mistério na vida dos crentes.

Da mesma maneira que a passagem pelo Mar Vermelho foi, para os

israelitas, a passagem da escravidão à liberdade e o que os vinculou ao destino de

Moisés 512, assim também o batismo cristão se tornou a experiência fundamental

504 Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 43. 505 Cf. Gl 3,27. 506 Cf. Rm 6,3; 11,36; 1Cor 8,6; 12,13; Ef 2,15.21-22. 507 Cf. Mt 3,11; Mc 1,8; Lc 3,16; Jo 1,33; At 1,5; 10,47; 11,15-17; 19,3-5; 1Cor 12,13. 508 Cf. Mc 13, 11; Mt 10, 20; Lc 2,27; At 13,4; 20,23; Lc 10,21; At 9,31; Rm 5,5; 14,17; 15,30; 1Cor 13,13; 2Cor 3,17. 509 Cf. At 1,8; 4,31. 510 Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 43. 511 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro…, p. 161. 512 Cf. 1Cor 10,2.

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de liberdade. Não se trata de uma libertação para a libertinagem 513, mas uma

libertação do pecado e da vida profana 514.

De acordo com os elementos que se podem apreender da comunidade

primitiva, o Batismo é, desde o início, entendido como a porta de entrada para a

recepção na comunidade de salvação515. Por ele tornamo-nos membros do povo de

Deus, povo que é Filho do Pai, pela virtude do Espírito de filiação que já nos é

dada no Batismo. Por ele também somos inseridos nessa mesma força do Espírito,

a fim de rendermos culto filial ao Pai516.

A Igreja, sacramento de salvação, é também a comunidade dos batizados,

daqueles que foram configurados a Cristo por sua morte e ressurreição. Por sua

vocação batismal, tem que ser, no mundo e na sociedade, a comunidade dos que

livre e conscientemente assumiram um destino de vida: sofrer e dar a vida pelos

outros. É a comunidade dos que se revestiram de Cristo e que, por este motivo,

devem reproduzir na própria vida o que foi a vida de Jesus.

Enfim, depois de tudo o que dissemos só podemos entender que o Batismo

que é um sacramento fundamental para a compreensão da sacramentalidade

eclesial. Ele constitui a base da experiência cristã, a razão pela qual devemos ser

Cristo para o mundo. Tal como no Batismo esta exigência também brota da

Eucaristia, sacramento de tão grande importância para a vida de fé da Igreja e para

o aprofundamento do nosso estudo.

5.4.2 Eucaristia

A Constituição sobre a Igreja afirma que o sacrifício Eucarístico é a “fonte e

o centro de toda a vida cristã” 517. Dela a Igreja “vive e cresce” 518. Já o

Documento Ecclesia de Eucharistia, recuperando o texto da Constituição, afirma

que “a Igreja vive da Eucaristia” 519. A Eucaristia ocupa lugar central na vida da

experiência eclesial:

513 Cf. Rm 6,1. 514 Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 44. 515 Cf. At 2,41. 516 Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro..., p. 164. 517 Cf. LG 11 518 Cf. LG 26 519 Cf. JOÃO PAULO II, Ecclesia de Eucharistia. 12ªed. São Paulo: Paulinas, 2005, n.1, p. 3

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Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, na qual ‘Cristo, nossa Páscoa, foi imolado’ (1Cor 5,7), realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1Cor 10,17) 520.

Desde o princípio os cristãos reconheceram o vínculo existente entre a

Eucaristia e a vida fraterna. Este vínculo pode ser verificado na própria Sagrada

Escritura. A última ceia celebrada por Jesus com seus apóstolos foi

verdadeiramente uma cena de comunhão. O rito da fração do pão significava antes

de tudo que ao redor da mesa se estabelecia uma verdadeira comunidade. A

comunhão no mesmo cálice significava a mesma sorte, o mesmo destino com

aquele que lhes dava de comer e beber, uma partilha de vida521. “Ao oferecer-lhes

o seu corpo e sangue como alimento, Cristo envolvia-os misteriosamente no

sacrifício que iria consumar-se dentro de poucas horas no Calvário” 522.

Paulo fala de um só pão partido e de um só cálice distribuído entre todos523.

Já a Didaqué nos diz que a Eucaristia é o Sacramento prefigurativo da comunhão

de todos no Reino: “Da mesma maneira como este pão quebrado primeiro fora

semeado sobre as colinas e depois recolhido para tornar-se um, assim das

extremidades da terra seja unida a ti a tua igreja (assembléia) em teu reino; pois

tua é a glória e o poder pelos séculos! Amém.” 524. Quando, provavelmente na

África, em meados do século III, aparece a forma explícita do simbolismo da água

e do vinho na liturgia, Cipriano vê no símbolo destas duas substância mescladas,

tanto a unidade de todos os cristãos com Cristo como a unidade mútua entre eles

mesmos525. Esta unidade tem seu fundamento em Deus e é fruto do Batismo, que

a Eucaristia leva à consumação526. O efeito principal da Eucaristia está, portanto,

na inserção no Corpo de Cristo. Corpo que tem como cabeça o Senhor

ressuscitado, é vivificado pelo Espírito e formado pelos membros batizados.

A incorporação em Cristo, realizada pelo Batismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifício Eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe a cada um de nós. Ele intensifica sua amizade conosco: “Chamei-vos amigos” (Jo 15,14). Mais ainda, nós vivemos por

520 Cf. LG 03 521 Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia... p. 44. 522 Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia..., n.21. 523 Cf. 1Cor 10,17. 524 Cf. DIDAQUÉ: Catecismo dos primeiros cristãos. 4ªed. Petrópolis: Vozes, 1983, n. 9,4, p.32. 525 Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 46. 526 Cf. Ibid., p. 47.

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ele: “O que me come viverá por mim” (Jo 6,57). Na comunhão Eucarística, realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: “permanecei em mim e eu permanecerei em vós” 527.

Nos primeiros séculos os sacramentos da iniciação cristã (Batismo, Crisma e

Eucaristia), além de nunca serem pensados de forma separada, eram concedidos

juntamente, numa única celebração. Nesta unidade ritual a Eucaristia constituía o

momento sacramental em que se significava e se selava a inserção do novo

membro de Cristo no Corpo onde viveria a nova vida528.

Segundo Agostinho, na Eucaristia a Igreja recebe aquilo que ela mesma é,

um único pão, sinal da unidade dos fiéis. Através do pão e do vinho, pela ação do

Espírito, o sacrifício redentor de Cristo é renovado na comunidade dos fiéis. Do

mesmo modo, os membros da Igreja devem ter a sua vida animada e movida pela

graça de Deus, transformada todos os dias em hóstia viva, oferecida com Cristo,

ao Pai. Pelo Espírito, os cristãos, membros do único corpo, formam uma unidade

inseparável 529.

A Eucaristia também é o sinal evidente da catolicidade da Igreja, não

somente no sentido da sua presença e expansão nas diversas partes do mundo, mas

também como a entende Agostinho, isto é, como a atualização do mistério pascal

em todas as situações da vida humana. Isto significa dizer que após a sua

ressurreição, Cristo segue vivendo os dramas humanos por sua unidade

inseparável com o seu corpo, a Igreja530. O resultado da encarnação é que ele

continua inseparável do seu corpo eclesial, e por isso mesmo, ainda padece

tribulações, não mais em sua carne, mas naqueles que fazem parte da comunhão

da Igreja531.

A catolicidade da Igreja de Deus, por conseguinte, não se limita a uma reunião da totalidade das pessoas tomadas individualmente. A Igreja é também a comunhão entre si de todas as comunidades humanas reconciliadas em Cristo com suas riquezas e pobrezas, suas histórias e seus projetos. Em uma palavra, é a humanidade nova, onde a imensa variedade da obra criadora e o enriquecimento que o lhe proporciona o gênio humano se inserem no amplo mistério do amor, que tem a sua fonte no coração de Deus. A catolicidade da Igreja tem toda esta

527 Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia..., n.22. 528 Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 48. 529 Cf. Ibid., p. 53-55. 530 Cf. Ibid., p. 63. 531 Cf. Ibid., p. 64.

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amplitude. (...) É eucarística. Porque a carne da católica é a do corpo dado, celebrado e reunido na mesa do Senhor. Agora se compreende o porquê 532.

A unidade da Igreja não consiste na soma dos seus membros, mas em

deixar-se integrar pelo Espírito na comunhão onde todo o humano, com suas

diferenças, diversidade, gozos e penas, se convertem em uma unidade sólida com

Cristo no amor da cruz e da ressurreição533. O corpo de Cristo é corpo de

comunhão. Na mesa eucarística os grãos de trigo, que são os crentes, se

convertem, pelo fogo do Espírito, num único pão, tal como o que recebem, que é

o Cristo assumindo a humanidade reconciliada534. A força e a coesão dessa

unidade vêm do próprio Senhor, que é em si mesmo, com o Pai e o Espírito,

mistério de unidade535.

São João Crisóstomo penetra no mistério desta unidade sob a luz do

evangelho da reconciliação. Mostra que a comunhão com Cristo acaba com toda

distinção de raça, cor, dignidade ou classe social. Em Cristo somos todos iguais.

Na fonte batismal e na mesa eucarística não existem preferências ou privilégios536.

Esta igualdade fundamental dos batizados ante os sacramentos do Batismo e da

Eucaristia é carregada de implicações e significados para a vida da Igreja. Em

especial, a solidariedade para com os mais pobres e sofridos. Socorrer e servir a

um desses pequeninos é fazer da vida cristã objeto de louvor e sacrifício a Deus. É

renovar na história o mesmo sacrifício de Cristo na cruz, dar a vida pelos que

necessitam. A Eucaristia, portanto, possui uma dimensão de comprometimento

social e histórico irrenunciável. A participação na ceia deve nos levar

necessariamente a uma atitude de compromisso e responsabilidade para com o

mundo537.

O pão e o cálice são o foco de uma comunhão evangélica chamada a

atualizar-se em gestos, em atitudes, em sentimentos de solidariedade quotidiana,

alicerçados no amor e na fidelidade à Palavra de Cristo. Seria mister que os

membros de Cristo e as comunidades cristãs entre si vivessem de verdade esta

532 Cf. Ibid., p. 88-89. 533 “Desde então e até o fim dos séculos a Igreja edifica-se através da comunhão através da comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós”. Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia..., n.21. 534 Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 70. 535 Cf. Ibid., p. 83. 536 Cf. Ibid., p. 75. 537 Cf. Ibid., p. 79.

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proposta formando um só coração e uma só alma, um só corpo por onde circulasse

nada mais que o amor. A Eucaristia é por sua própria natureza o sacramento da

Igreja, da Igreja de comunhão.

5.4.3 A Crisma

Inicialmente, convém dizermos que houve grande resistência para se

compreender e aceitar a crisma como um sacramento “autônomo”, desvinculado

do Batismo. Primeiro porque ela constitui, juntamente com o Batismo e a

Eucaristia, o rito completo de iniciação à vida cristã e, por isso mesmo, não pode

ser pensada separadamente. Depois, porque ambos estão ordenados ao mistério

pascal de Cristo, integralmente, tanto à Páscoa como ao Pentecostes. Além disso,

tanto o Batismo como a Crisma são sinais integrais da vida e da atividade da

Igreja538.

A Crisma se desenvolveu a partir do rito de iniciação cristã que

originalmente era um só, chamado de batismo, na Igreja primitiva539 e não é,

como se diz, o sacramento de Pentecostes, mas tanto quanto o Batismo é o

sacramento do mistério pascal de Cristo, que compreende tanto a sua morte e

ressurreição, como o derramamento do Espírito em Pentecostes. O erro desta

afirmação está em pensar que o derramamento do Espírito é um acontecimento

restrito à Crisma, ou que o derramamento que acontece no Batismo não é

suficiente para mover a Igreja 540.

Ora, o Batismo confere o Espírito tanto quanto a Crisma. A diferença entre

esses dois sacramentos não está no fato de comunicar ou não o Espírito, mas nos

efeitos que o Espírito Santo produz na vida do cristão a partir de cada um deles. A

missão do Espírito no dia de Pentecostes deu início ao tempo da atividade

sacramental eclesial, que durará até o retorno do Senhor. Além disso, deu início

ao novo modo da presença de Cristo, tanto na Igreja de modo geral, como em seus

membros particulares, através do seu Espírito. Mas o derramamento do Espírito

também acontece no Batismo. Depois, a crisma não faz referência somente ao

evento de Pentecostes, mas a todo o mistério pascal de Cristo.

538 Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2…, p. 135. 539 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 234. 540 At 2, 1-13.

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Um outro equívoco é pensar a Crisma como o sacramento da maturidade ou

“maioridade” cristã. Deste modo, o batismo é visto como o sacramento das

crianças e a crisma, dos adultos. Ora, a crisma não vive e nem é valorizada por

uma desvalorização do Batismo. Ambos tem o seu papel e o seu valor. Talvez o

batismo de crianças tenha constituído a base para essa mentalidade. Mas essa

distinção não tem nenhuma fundamentação no Novo Testamento, nem na

Patrística, e nem mesmo na teologia medieval. Antes, contradiz a todas elas541.

Toda essa problemática nos leva a pensar que o sentido específico da crisma

ainda não está claro para todos e reflete a incerteza teológica a respeito da

importância específica deste sacramento.

Perguntamo-nos então: Qual é a operação do Espírito na crisma, que de tal

maneira se diferencia da transmissão do Espírito pelo Batismo, que se deve a um

sacramento peculiar?

Não se conhece, no Novo Testamento, um rito próprio de concessão do

Espírito, separado do Batismo, como regra de iniciação cristã542. Para o Novo

Testamento o dom do Espírito faz parte do evento batismal. Em duas passagens

dos Atos dos Apóstolos a concessão do Espírito, parte integrante do Batismo, se

encontra no contexto de uma imposição de mãos pelos apóstolos543. Na Epístola

aos Hebreus, batizar e impor as mãos são mencionados com naturalidade um após

o outro. Enumera a imposição de mãos, junto com o Batismo, a ressurreição e o

juízo eterno entre os conteúdos fundamentais da doutrina cristã544.

Por outro lado, também se pode encontrar nos Atos dos Apóstolos o

Batismo e o dom do Espírito sem fazer referência à imposição de mãos545. Além

disso, trata uma única vez de um batismo cristão no qual o Espírito não foi

concedido. Este fato se deu por ocasião das missões empreendidas pelos

missionários do apóstolo Filipe, na Samaria. Somente quando Pedro e João lhes

impuseram as mãos é que o espírito foi derramado, apesar dos sucessos na

missão546. Já os textos de João falam do derramamento do Espírito como um

541 Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2..., p.135. 542 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 235. 543 Cf. At 8, 17s; 19,6. 544 Cf. Hb 6,2 545 Cf. At 2,38; 10, 44-48. 546 Cf. At 8,16s.

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renascimento “da água e do Espírito”, sem necessariamente estar ligado a algum

rito próprio de concessão547.

Na Patrística, encontramos vários testemunhos sobre a crisma. Trata-se da

imposição das mãos seguida da unção com óleo, que se seguem ao Batismo. Mas

nem sempre se pode saber com clareza se se trata de um ato que ainda pertence ao

batismo ou do sacramento da crisma como distinto daquele. Foi somente no

Concílio de Florença, por ocasião dos conflitos com os reformadores, que a

crisma foi definida como um sacramento548.

Segundo a nova compreensão litúrgica- catequética, pautada sobretudo nas

orientações do Vaticano II, pela comunicação do Espírito através da imposição

das mãos na Crisma, os discípulos recebem nova força para dar testemunho

daquilo que crêem549, bem como uma compreensão mais profunda e uma firmeza

maior na fé550. A idéia do “selo”, recuperada pelo novo rito de 1971, serviu de

base para esta nova compreensão. Significa, sobretudo para aqueles que foram

batizados ainda criança, um sinal de decisão e de fé pessoal, tal como uma

confissão de fé. Sublinha o aspecto de pertença à Igreja, com todos os direitos e

deveres próprios da vida cristã. Representa ainda o comissionamento e o

fortalecimento para o testemunho551.

Na antiguidade, o gesto de imposição de mãos estava associado à idéia de

dispensação e transmissão de vida, força, poder e benção552. Também era utilizado

para invocar a cura553 e como sinal de participação na mesma obra missionária554.

Neste sentido, a imposição das mãos na Crisma simboliza a aceitação e inclusão

na esfera de vida divina, cura da culpa alienante e o envio para a construção do

Reino de Deus555.

De igual valor simbólico está a unção com o óleo, usado na antiguidade

especialmente depois do banho, por causa do seu perfume. Também se usava a

unção antes da luta para tornar o corpo escorregadio, difícil de ser agarrado. Em

547 Cf. Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 234. 548 Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol.V.2..., p. 137. 549 Cf. Lc 24,19; At 1,8. 550 Cf. Jo 14,26; 16,13. 551 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 239. 552 Cf. Gn 48,14s; Mc 10, 13-16. 553 Cf. Mc 5,23; 6,5; At 28,8. 554 Cf. Nm 27,15-23; Dt 34,9; At 6,1-6; 1Tm 4,14; 2Tm 1,6. 555 Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 236.

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Israel, sacerdotes e reis eram empossados em seus cargos por meio da unção556.

No Novo Testamento não se constata nenhum rito de unção em conexão com o

derramamento do Espírito; no entanto, a “unção” se tornou a figura para designar

a concessão do Espírito ocorrida no Batismo557.

A relevância deste sacramento para a vida sacramental da Igreja está na

consciência mais amadurecida que se tem da fé, no compromisso do testemunho e

na identidade que cada cristão deve assumir diante do mundo. Os sacramentos não

podem ser reduzidos a meros gestos rituais, mas têm de nos projetar para um

compromisso de vida concreto, caracterizado pela conversão pessoal e a

transformação da sociedade pelo nosso diferencial de vida.

556 Cf. Ex 29,7; Lv 4,3; 1Sm 16, 1-13; 2Sm 2,4. 557 Cf. 2Cor 1,1s; 1Jo 2,20. 27.

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6 Perspectivas

A consciência de uma Igreja sacramental afeta diretamente a atuação e a

consciência que os fiéis têm da sua participação na comunidade de fé e do seu

papel no mundo.

Tratamos, ao longo do trabalho, dentre vários outros ítens, da dimensão

simbólica da religião e mostramos o quanto ela é necessária para se entender que a

Igreja é mais que uma instituição burocrático-administrativa e humana. Tem na

base da sua reflexão uma dimensão mística, que jamais pode ser esquecida, sob a

pena de perder o próprio sentido para o qual existe.

Ora, na medida em que compreendemos a pedagogia divina, que escolheu

salvar os seres humanos e manifestar a sua divindade na nossa própria

humanidade, também passamos a compreender e a relevar as várias falhas e

necessidades humanas que nela ocorrem. Aprendemos a ver na Igreja o Cristo,

que se revela fraco, pobre, humilde, mas extremamente rica de conteúdo e de

significado, exatamente pelo fato de ser simbólica. Na realidade humana eclesial

se projeta o encontra com o divino. Na finitude do humano, a grandeza do eterno.

Trata-se do simbólico que através de si, nos projeta para além de si.

Deste modo, entramos no mistério de Deus que se fez homem para a nossa

salvação. Vimos na pessoa de Jesus o próprio sacramento do Pai, que nos ensinou,

por sua vida, a sermos também nós sacramentos uns para os outros. Seus gestos,

sua vida, suas palavras, são a própria manifestação do amor divino pela

humanidade e desta para com o Pai. O Cristo humanizado é a porta de acesso ao

Deus transcendente. Na humanidade do Verbo torna-se possível o encontro com o

divino.

O mistério da Encarnação é, portanto, o coração da sacramentalidade

eclesial. Nele está a razão pela qual a Igreja pode revelar Deus e transcender-se a

si mesma. Nele está o sentido, a autoridade e a legitimidade da sua missão no

mundo.

Para dar continuidade à sua missão, após o seu retorno para junto do Pai,

Cristo congregou a Igreja e ensinou-a a observar e reproduzir, no dia-a-dia da

nossa história, as mesmas atitudes de amor, solidariedade e compaixão para com o

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próximo, que ele mesmo realizou. Cabe a ela, portanto, a grande tarefa de

continuar e manifestar nos tempos hodiernos a graça e a salvação Cristo,

derramadas sobre a humanidade no Sacrifício da cruz. A salvação não cessou. A

graça de Cristo continua a se manifestar. Pentecostes continua a acontecer na vida

dos fiéis. Mas isso não é tão simples quanto parece.

Vivemos num tempo de recuperação do valor do leigo e da sua atuação

como membro ativo da Igreja. Tempo de desafios no que se refere ao ecumenismo

e à comunhão entre as religiões. Além disso, a tentação de uma religião fácil, sem

compromissos ou exigências, a multiplicidade de denominações religiosas e de

ofertas para resolver os problemas quotidianos daqueles que sofrem, aliados ao o

crescimento da pobreza e das diferenças sociais se tornaram um prato cheio para

as “raposas” de plantão, isto é, pessoas mal intencionadas que longe de se

comprometerem com a verdade do evangelho, fazem da religião e da boa fé dos

seu fiéis um modo de satisfazer suas próprias vontades e caprichos.

Tempo em que a presença da Igreja em muitos continentes começa a ser

escassa e a laicização dos Estados se torna fator determinante para o cerceamento

das atividades evangelizadoras, senão até a sua proibição. Tempo, enfim, em que

a falta de sentido e a grande variedade de alternativas religiosas, todas requerendo

para si o primado da verdade, juntamente com a falta de testemunho da parte

daqueles que dizem crer, fazem com que cada vez mais cresça o número daqueles

que se dizem sem religião, ou ainda, ateus.

Ser sacramento de salvação, sinal vivo da presença ativa de Cristo no

mundo, é mais que um privilégio, tornou-se uma necessidade. Talvez por isso o

Concílio Vaticano II tenha definido o tema da sacramentalidade da Igreja como

um dos seus mais importantes conceitos. Ser sacramento de Cristo é perceber-se

um membro ativo deste grande corpo, que é a Igreja. É reconhecer que na missão

evangelizadora não somos meros expectadores, mas protagonistas principais.

Trata-se de uma prioridade nos projetos de ação, evangelização e formação da

Igreja.

Mas que modelo de Igreja queremos ser e apresentar para a sociedade?

Como fazer com que de fato a Igreja seja sinal de salvação? Que respostas

queremos dar ao mundo frente aos desafios levantados? A humanidade nos

interpela. É possível ser sinal de esperança em meio a tantos conflitos e

contradições?

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Ora, uma Igreja mais participativa e mais consciente da sua missão passa

também pela oportunidade e pela capacitação, sobretudo daqueles que mais tem

carecido desta atenção, os fiéis leigos. Quais os passos empreendidos nesta

direção? Que atitudes concretas têm sido realizadas para que isto se aconteça?

Não seria, porventura, a hora de recuperar a idéia de comunidades mais

participativas, co-responsáveis na missão do evangelho, decentralizadas na

questão da autoridade e do poder, e iluminadas pela proposta de uma Igreja de

comunhão?

Sabe-se, que o Concílio Vaticano II deu grandes avanços com a proposta de

recuperação de alguns valores e modelos da Igreja primitiva. Contudo, também é

possível dizer que o modelo eclesial adotado pelo Concílio ainda não foi

totalmente assimilado e transmitido pela catequese que temos recebido.

No âmbito do direito, é preciso fazer com que a legislação canônica

acompanhe a renovação proposta do Concílio e que a Igreja sacramental não seja

mais um elemento utópico, no sentido de que sempre se apresenta como um ideal,

mas quase nunca como uma realidade. Do contrário, as propostas e definições da

Igreja nunca passarão de documentos.

A missão da Igreja é ser sal da terra e luz no mundo. O mundo como campo

de experiência e transfiguração cristã é propriedade irrenunciável da Igreja,

especialmente do leigo: viver no tempo cada uma das atividades para nelas

testemunhar o Cristo. Só assim responderão à sua vocação e serão

verdadeiramente cristãos.

Grande auxílio também pode nos dar a liturgia. A missa como ato

comunitário do celebrante e do povo juntos, requerendo participação pessoal e não

somente assistência de expectadores pode ser uma imagem perfeita da vida

eclesial autêntica, o fiel que leva ao altar a sua vida, como verdadeira hóstia viva

ao Senhor. Somente quando uma consciência deste gênero tiver sido

universalmente afirmada em todos quantos se dizem católicos os fiéis

compreenderão a necessidade de fazer a sua parte no trabalho da messe.

Concluímos nosso trabalho lembrando que a proposta desta pesquisa não foi

a de fechar questões ou apresentar conclusões sobre os aspectos tratados, mas

simplesmente despertar para a necessidade de um aprofundamento do tema e,

dessa forma, dar uma contribuição para a teologia e para a pastoral da Igreja. Meta

que esperamos ter alcançado.

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