fÉ cientÍfica e poder polÍtico: a igreja positivista...
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FÉ CIENTÍFICA E PODER POLÍTICO: A IGREJA POSITIVISTA DO BRASIL E A CONSOLIDAÇÃO DA PRIMEIRA REPÚBLICA
Paper preparado para apresentação no XXIV Congresso Internacional Latin American Studies Association - LASA
Dallas, Março de 2003
Elisabete Leal Programa de Pós-graduação em História Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, RJ Brasil e-mail: [email protected]
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Fé Científica e Poder Político: a Igreja Positivista do Brasil e a Consolidação da Primeira República
Elisabete Leal
Doutoranda em História – UFRJ (...) quando diante do ministério vencido o Marechal Deodoro alteava a palavra imperativa
da revolução, não era sobre ele que convergiam os olhares, nem sobre Benjamim Constant, nem sobre os vencidos — mas sobre alguém que a um lado, deselegantemente revestido de uma sobrecasaca militar folgada, cingida de um talim frouxo de onde pendia tristemente uma espada, olhava para tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E quando, algum tempo depois, os triunfadores, ansiando pelo aplauso de uma platéia que não assistira ao drama, saíram pelas ruas principais do Rio, quem quer que se retardasse no quartel-general veria sair de um dos repartimentos, no ângulo esquerdo do velho casarão, o mesmo homem vestido à paisana, passo tranqüilo e tardo, apertando entre o médio e o índex um charuto consumido a meio, e seguindo isolado para outros rumos, impassível, indiferente, esquivo...
E foi assim — esquivo, indiferente e impassível — que ele penetrou na História.
Euclides da Cunha, O Marechal de Ferro. In: PENNA, Linclon A. República Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1999. p. 55.
(...) Sobre Floriano, por exemplo, não me era possível fazer melhor. Floriano era a negação
do homem retratável. Não nascera para o cartaz. Era tudo o que há de mais chão, como figura capaz de inspirar um artista. Tudo nele era caimento, moleza, falta de expressão e de atitude. (...) Floriano era tudo o que há de negativo em estampa. Viajei com ele uma vez, certa manhã, todo um suarento circuito de bondinho, sem saber que ele era ele, tão desengonçado, tão frio, soturno, caído, se mostrava. Neste tempo Floriano estava na presidência, em pleno período da revolta. Mesmo assim, andava sozinho, de bonde, calças brancas cerzidas no joelho, paletó de lustrim, fisionomia apagada e amorfa... Bem vê as dificuldades que tive para emprestar-lhe majestade...
Eduardo de Sá. O Jornal, Rio de Janeiro, 01.08.1926. A historiografia sobre a Primeira República no Brasil destaca o papel dos líderes da Igreja
Positivista apenas nos debates sobre a organização do novo regime, afirmando que conseguiram
efetivar poucas das suas idéias. “Ordem e Progresso" é o lema da bandeira republicana brasileira e
esse é considerado o legado mais importante, ou concreto, da presença das idéias positivistas no
Brasil. Certos estudiosos afirmam que o positivismo foi o transplante de uma doutrina que mudou a
mentalidade das elites, outros entendem que fez parte de um modismo cultural e para alguns foi
apenas uma forma rebuscada de falar. Os estudos sobre os positivistas no Brasil classificam os adeptos
em políticos, simpatizantes e religiosos ou ortodoxos, com a intenção de medir o grau de pureza e
coerência doutrinária dos seguidores da doutrina.
Este paper tratará de analisar uma das formas eficientes de propaganda da Igreja Positivista,
fundamental para a doutrina: erguer monumentos públicos. Entende-se que o contraste entre
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positivismo político e positivismo religioso não é aqui pertinente, pois o grupo identificado pela
historiografia com positivistas religiosos era completamente politizado, e a arte, para eles, deveria ser
religiosa e cívica ao mesmo tempo. Será analisada a confecção do monumento a Floriano Peixoto,
segundo presidente militar no Brasil entre 1891 e 1894.
A República no Brasil - de positivistas e militares A historiografia sobre a Primeira República no Brasil destacou o grande número de idéias
filosóficas e grupos políticos em permanente conflito, enfatizando os chamados “positivistas”, uma
genérica atribuição a quase todos os envolvidos na implementação da República brasileira. No caso
deste paper, positivistas são os membros da Igreja Positivista, que foi fundada em 1881, inicialmente
ligada ao movimento religioso francês e depois autônoma em sua direção filosófica. Sob direção de
Miguel Lemos e mais tarde Teixeira Mendes, a Igreja Positivista teve participação no debate a respeito
da natureza da República a ser implementada no país, na promulgação de leis e decretos no novo
regime, na definição de um panteon cívico nacional, e no estímulo à grande número de obras de arte
em homenagem a heróis nacionais.
A atuação dos membros da Igreja Positivista, principalmente de seus diretores, se realizava
por meio de estratégias de convencimento e influência, com visitas aos governantes, envio de
publicações, imagens, cartas, publicação de artigos nos jornais. Essas práticas de divulgação dos
valores positivistas eram coerentes com a doutrina comteana: era o poder espiritual (a Igreja
Positivista) guiando e orientando o poder temporal (os dirigentes do governo republicano). Os líderes
da Igreja entendiam que fazia parte de suas funções religiosas empreender uma propaganda
sistemática das soluções propostas por Comte, e assumidas pela Igreja, que de forma geral, apontavam
para a regeneração moral da humanidade, e de forma específica, no caso do Brasil, para a consolidação
do regime republicano. Sobre as intervenções públicas, principalmente junto aos governantes, os
Diretores da Igreja justificavam: “julgamos cumprir um sagrado dever que nos é imposto pela nossa
dupla qualidade de cidadãos brazileiros e de apóstolos da Religião da Humanidade.”1 Tais
intervenções ocorriam principalmente por meio de cartas enviadas aos governantes, publicadas nos
jornais e republicadas nos folhetos editados pela própria Igreja. Eles buscavam influenciar os cidadãos
sobre os assuntos defendidos pela Igreja, criticar medidas governamentais, responder a seus críticos e
corrigir “erros” alheios de interpretação do positivismo.
Levantamento em todas as publicações numeradas da Igreja revelou o número significativo de
títulos que tratavam de assuntos políticos, pois a Religião da Humanidade era científica, cívica e
política. Os adeptos não separavam suas ações políticas de suas crenças religiosas. No entanto, para
1 LEMOS, Miguel e MENDES, R. Teixeira. A Ultima Crise. Rio de Janeiro: IPB, 1891. p. 14. Nos títulos da Igreja citados neste paper, mantém-se grafia original.
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efeito de melhor compreender o perfil “editorial” da Igreja Positivista, considerar-se-á três tipos de
publicações: as religiosas, aquelas que se referem exclusivamente ao culto e dogmas religiosos da
Religião da Humanidade e a episódios ligados aos membros da Igreja, como por exemplo os títulos
Comemoração Anual da Morte de Augusto Comte , Um cazamento pozitivista no ano 112-1900 e A
hora terrível – ensaio religioso sobre a morte de nosso santísssimo; as publicações políticas, aquelas
que se referem à administração pública ou a questões de definição do novo regime republicano, como
O novo código de posturas municipais, Bazes de uma Constituição política ditatorial federativa para
a República brazileira e A situação política brazileira e a verdadeira política republicana; as
publicações mistas, que se referem a temas ligados aos dogmas da Religião da Humanidade, como
festas cívicas, fatos polêmicos ligados ao cotidiano do cidadão, temas de dogma religioso e o poder
temporal e a política internacional, como por exemplo, A liberdade espiritual e a vacinação
obrigatória , O sientismo e a defesa dos indígenas brasileiros e O militarismo e a política moderna.2
Quadro I - Publicações da Igreja Positivista classificadas em Religiosa, Política e Mista
Tipo de Publicação
Período Religiosa Política Mista Total* Total de publicações
1881-1890 45,3% 28,1% 26,6% 100 64 1891-1900 53,3% 18,9% 27,8% 100 90 1901-1910 33,3% 13,9% 52,7% 99,9 165 1911-1920 33,6% 14,6% 51,9% 100,1 158 1921-1930 54,9% 16,1% 29,1% 100,1 93
Total 570 * Nem todos os totais são exatamente 100, devido ao arredondamento das porcentagens.
Fonte: LEAL, Elisabete e PEZAT, Paulo Ricardo (orgs.) Capela Positivista de Porto Alegre: acervo bibliográfico, documental e iconográfico. Porto Alegre: SMC/Fumproarte; PPG/História-Ufrgs, 1996. 155p.
Percebe-se no quadro I que as publicações classificadas como políticas e mistas somadas
resultaram na maioria das publicações da Igreja 3. Destaca-se na primeira década o maior volume de
publicações de cunho político; não por acaso é o período de propaganda e instalação da República no
Brasil, no qual os positivistas da Igreja se engajaram ativamente no debate, como será visto a seguir.
Das 570 publicações apresentadas no quadro, 80 delas possuem no título as palavras república,
republicano ou republicana e em 47 títulos aparecem a palavra política. A alta porcentagem de
2 Em 1996 organizei juntamente com o historiador Paulo Pezat o acervo da Capela Positivista de Porto Alegre. Nesse trabalho foi possível fazer um arrolamento completo de todas as publicações da Igreja Positivista, aquelas editadas oficialmente pela instituição no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e Paris. Esse arrolamento foi publicado em: LEAL, Elisabete e PEZAT, Paulo Ricardo (orgs.) Capela Positivista de Porto Alegre: acervo bibliográfico, documental e iconográfico. Porto Alegre: SMC/Fumproarte; PPG/História-Ufrgs, 1996. 155p. 3 A partir de 1930 nota-se um contínuo decréscimo no número das publicações tendo-se nas décadas de 1930, 52 títulos; 1940, 26 títulos; 1950, 8 títulos e 1960, 3 títulos. Nas décadas de 1930 e 40 existe uma porcentagem elevada de publicações políticas e mistas versando sobre o militarismo e a II Guerra. Os títulos da Igreja citados neste paper obedecem a grafia das publicações.
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publicações mistas nas décadas de 1901 a 1920 provém da campanha anti-vacinista por ocasião da
Revolta da Vacina, na primeira década e a oposição à Primeira Guerra Mundial, na segunda.
Toda essa produção editorial era feita com a contribuição financeira dos adeptos da Igreja.
Com uma gráfica própria, instalada nas dependências do Templo, os membro da Igreja traduziam e
publicavam obras de Comte, editavam textos, gravuras, folhetos e livros, que eram enviados aos
governantes, aos legisladores, e a todos aqueles que poderiam influir na organização administrativa e
legislativa do novo regime. As publicações poderiam também ser compradas na sede da Igreja. Além
de publicações de folhetos e livros, a Igreja Positivista foi responsável pela encomenda, ou incentivo,
de grande número de obras artísticas, não só para culto religioso, mas também para culto cívico, como
bustos, bandeiras, monumentos públicos, mausoléus fúnebres. É nessa dimensão cívico-religiosa que
procura-se compreender as ações da Igreja Positivista, no ambiente da Primeira Republica.
Esses positivistas da Igreja afirmaram que não tiveram participação no levante militar que
proclamara a República em 1889, nem seu prévio conhecimento, mas que apoiaram o Governo
Provisório dos militares porque além de inevitável, “era o sentido da evolução pátria”. Estabelecido o
novo regime, tentaram aconselhar o chefe do Governo Provisório, General Deodoro da Fonseca e seus
Ministros e disseram não terem sido atendidos. Porém, em mensagem enviada a Deodoro, dois dias
depois da Proclamação, os positivistas da Igreja propunham o lema Ordem e Progresso, como resumo
de todo o programa republicano4, e quatro dias após a Proclamação, saiu o decreto de adoção da nova
bandeira brasileira, desenho e lema proposto pelos mesmos positivistas.5
Com o Congresso Constituinte, reunido em 1891, novamente empreenderam esforços para
definir os rumos do novo regime, dizendo que foram contemplados parcialmente.6 Para eles a
Constituição republicana brasileira acabou sendo um somatório de “preconceitos revolucionários”, de
“tendências retrógradas” e de “aspirações positivistas”. Esta soma resultou em um reforço do Poder
Executivo, pois a forma parlamentarista fora derrotada; na autonomia dos estados, através do
federalismo; na independência entre Ministério e Congresso; na liberdade espiritual, com a divisão
entre poder da Igreja e poder do Estado e no livre exercício das profissões. Em 1890, por ocasião da
eleição dos constituintes, os líderes da Igreja já tinham uma proposta completa de Constituição
republicana, que foi enviada aos deputados para divulgar as idéias dos positivistas quanto à
organização do Estado7. Para os adeptos da Igreja Positivista, a Constituição votada não era a ideal,
nem a que eles haviam proposto, mas estabeleceu bases fundamentais para a regeneração humana e a
evolução da Pátria à Ditadura Republicana, e por isso era dever de todos os brasileiros respeitá-la. 4 Mensagem ao General Deodoro da Fonseca. Rio de Janeiro, 17.11.1889. In: MENDES, R. Teixeira. Benjamin Constant. Esboço de uma apreciação sintética da vida e da obra do fundador da República brasileira. Rio de Janeiro: IPB, 2a. ed. 1913. p. 613. 5 Sobre as negociações dos positivistas da Igreja para aprovação do decreto da Bandeira republicana ver: CARVALHO, José M. A Formação das Almas – o imaginário da república no Brasil.São Paulo: Cia. das Letras, 1990. Capítulo V. 6 LEMOS, Miguel e MENDES, R. Teixeira. A Ultima Crise... p. 8. 7 LEMOS, Miguel e MENDES, Raimundo T. Bazes de uma Constituição Política Ditatorial Federativa para a República Brazileira. 2a. ed. Rio de Janeiro: IPB, 1934.
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O levante que resultou na proclamação da República contou com a participação destacada de
três militares que disputaram a liderança pelo movimento: Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant e
Floriano Peixoto. Os adeptos de Deodoro e Constant disputavam o atributo de fundador da República,
enquanto havia mais consenso sobre Floriano como o consolidador.8
Dos três militares, Benjamin Constant foi defendido pelos positivistas da Igreja como o
verdadeiro fundador e ideólogo da República, por sua ligação com o positivismo religioso, embora ele
tivesse rompido com a direção da Igreja Positivista; por ser mais um professor do que um militar; e
por ter apresentado e defendido o decreto de adoção da bandeira positivista, com o lema “Ordem e
Progresso”. A adoção da bandeira, segundo Teixeira Mendes, foi o motivo do reatamento das relações
entre Constant e os membros da Igreja.9 Em função desta reabilitação moral, segundo os positivistas,
Constant foi o único que teve um monumento erguido sob iniciativa direta da Igreja Positivista.10
A relação dos positivistas com Deodoro foi mais comedida, restringindo-se a aceitar seu
governo pelo caráter constitucional que assumira. Em 1891, quando esse Presidente militar resolveu
fechar o Congresso porque aprovou uma Lei que restringia os poderes do Executivo, os membros da
Igreja passaram a criticar Deodoro por ter desrespeitado a Constituição. Em carta publicada em um
periódico e dirigida a Deodoro por ocasião do fechamento do Congresso, Miguel Lemos apela para
que o presidente se mantenha na legalidade, pois do contrário não seria digno de ser o principal
colaborador de Benjamin Constant quando da Proclamação da República. Na visão dos positivistas,
Deodoro tinha uma reputação a zelar, que era coletiva, e que estava para sempre ligada à fundação da
República.11
Com a crise advinda do fechamento do Congresso, Deodoro renunciou e assumiu seu vice,
Floriano. No debate a respeito da constitucionalidade da permanência de Floriano como Presidente, os
positivistas entenderam que convocar novas eleições seria uma outra perturbação política, decidindo-
se por apoiar sua permanência, pois o militar já havia demonstrado, em 1889, sinais de confiabilidade.
Para os dirigentes da Igreja, o papel de Floriano na Proclamação da República fora patriótico, pois as
tropas do império, sob suas ordens, fraternizaram-se com as forças republicanas. Teixeira Mendes
assim descreve a atitude de Floriano: “Perante a revolução, em presença de uma luta sanguinolenta
prestes a travar-se, quando via contra o governo, entre outros camaradas a quem prezava, Benjamin
Constant à testa das escolas militares, com que fim patriótico ia (Floriano) empenhar uma ação
fratricida?”12 Floriano estava, assim como Deodoro, para sempre ligado à História republicana, por sua
decisão de unir-se ao movimento encetado por Constant. Mesmo que Floriano tenha sido colaborador
8 CARVALHO, José Murilo de. A Formação... p.36. 9 MENDES, R. Teixeira. Benjamin Constant. Esboço... Prefácio. 10 É importante ressaltar que os positivistas se empenharam, desde a morte de Benjamin Constant, em definir os protagonistas do episódio da Proclamação. Nesta versão, Constant foi a principal liderança, tendo por colaboradores Deodoro e Floriano. Esta história foi largamente relatada e fartamente documentada por Teixeira Mendes na biografia de Benjamin Constant, escrita cinco meses após sua morte, em 1891. Ver nota no. 3. 11 LEMOS, Miguel e MENDES, R. Teixeira. A Ultima Crise... p.13. 12 MENDES, R. Teixeira. Benjamin Constant. Esboço... p. 353.
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de Constant, os positivistas da Igreja afirmaram que nunca o consideraram um grande estadista, nem
em vida, nem em morte, muito menos um estadista positivista. Completaram: “Pelo contrário, sempre
deploramos as suas imensas lacunas políticas, com a mesma sinceridade com que proclamamos os
seus relevantes serviços na fundação e na inquebrantável defesa da República.”13
Embora não aceitassem muitas das decisões políticas desses dirigentes republicanos, e muitas
vezes os criticavam por meio dos jornais ou dos folhetos, os positivistas os respeitavam por fazerem
parte da história pátria republicana. Esses líderes políticos acabaram por integrar o panteon cívico
positivista e ter seus bustos encomendados pela Igreja Positivista, para serem utilizados em festas
cívicas no Templo. Estas imagens também foram algumas vezes usadas em cerimônias cívicas
públicas, como procissões, féretros e exposições. Os usos políticos dessas imagens faziam parte do
culto público estabelecido por Comte, que os positivistas brasileiros tentaram seguir, mesmo a
despeito da “imperfeição” da república que se instalara no país e do “despreparo” de seus dirigentes
políticos. Mas isto era desculpável porque os “destinos irrevogáveis da pátria” levariam aos
necessários aperfeiçoamentos sociais, na visão destes positivistas. Para compreender essas práticas de
“publicidade” dos valores positivistas, mediante textos e imagens, é necessário destacar agora a ênfase
constante do Positivismo comteano na História, como ação coletiva, e o uso da Arte para divulga-la.
História e Arte no positivismo de Augusto Comte
Para o positivismo, a humanidade é o sujeito coletivo do conhecimento histórico e ela deve ser
estudada segundo as condições historicamente dadas em cada época. Por isso, o objeto da história é
sempre coletivo e o indivíduo é sempre histórico. Para isso, Comte subordinou o autoconhecimento ou
autoconsciência individual ao conhecimento da história, ao afirmar que “não se pode explicar a
humanidade pelo homem, mas o homem pela humanidade” e ao sugerir que “para vos conhecer,
conhecei a história”14. Seguindo essa premissa, Comte traçou um paralelo entre as fases de vida de
uma pessoa: infância, maturidade e velhice, e as fases evolutivas da humanidade: teológica, metafísica
e positiva. Tanto o indivíduo quanto a humanidade deveriam superar (evoluir) sucessivamente essas
fases.
Para o positivismo, a velhice era o coroamento da experiência individual e a vida não acabava
quando a pessoa morria, pois restava sua memória que deveria ser cultuada e lembrada por seus
familiares. A morte (a imortalidade subjetiva) era uma forma de ressurreição por meio da entrada para
a História, mas somente para aqueles que subsistiram, por suas ações, na recordação dos vivos, seja no
âmbito familiar, seja no coletivo. É pela influência do passado sobre o presente e no sentido memorial
que deve ser entendido o lema comteano “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos
13 MENDES, R. Teixeira. A propózito da comemoração do Marechal Floriano. In: Boletim do Apostolado Pozitivista do Brazil. No. 32p, 16 de julho de 1904, Rio de Janeiro. 14 Citado In: MORAES FILHO, Evaristo de (org.). Comte – Sociologia. São Paulo: Ática, 1989. p. 29.
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mortos”, e não no sentido sobrenatural, já que Comte renegava as crenças metafísicas, como alma e
espírito.
O pensamento de Comte foi, grosso modo, dividido em uma fase cientificista e uma fase
religiosa, que são complementares. Na primeira, Comte estabeleceu os princípios da filosofia da
história, baseados em critérios científicos. Foi na fase religiosa que a lembrança do passado passou a
ser cultuada e central na vida familiar e pública. A Religião da Humanidade criada por Comte era,
assim, uma religião da história e um culto aos mortos, no sentido memorial.
Essa religião era composta por um culto privado e um culto público. O primeiro ocorria no
espaço doméstico, e era voltado para a lembrança dos familiares mortos, estimulando diariamente a
rememoração da história dos antepassados, e sua transmissão. Esta atividade coletiva-familiar dotava o
indivíduo de um passado coletivo, e incluía para isso as narrativas históricas dos antepassados,
atividades artísticas, como leitura de poesias e audição de óperas, e leitura de livros, principalmente da
história da humanidade, indicados na Biblioteca Positivista. A mulher era a ordenadora desse culto
doméstico.
O culto público ou coletivo ocorria nos templos positivistas e era destinado a celebrar a
Humanidade e seu passado. Tratava-se de uma “religião da memória e da cultura, (...) da história”15.
Esse culto público era uma forma de cultura histórica, pois incluía uma narrativa da história da
humanidade, uma espécie de ensinamento enciclopédico que recapitulava toda a memória social.
Como essa religião se baseia no passado dos indivíduos, da comunidade, da nação, representações que
estimulassem lembranças eram fundamentais, sejam por textos ou imagens. Portanto, no desenho de
templo proposto por Comte, as treze capelas deveriam conter estátuas ou bustos dos homens que
contribuíram para a evolução da humanidade, reservando a décima quarta capela para o grupo das
mulheres.16
Esses homenageados são os mesmos do Calendário Positivista que, proposto para substituir o
gregoriano, expressava o desejo de marcar o tempo de forma a lembrar a história e os “ciclos
marcantes da evolução humana, assinalado por um dos nomes mais expressivos que a história
registra.”17 No Calendário, Comte reconheceu a influência do passado sobre o presente e destacou os
ciclos marcantes da evolução da humanidade e os representantes mais destacados deles, que deveriam
ser consagrados por serem os exemplares da raça humana. Para cada ciclo, representado por um mês
com 28 dias, há um homenageado. Cada semana, com sete dias, tem um representante
hierarquicamente inferior ao do mês, e cada dia tem outro representante hierarquicamente inferior ao
da semana. Destaca-se aqui o oitavo mês, dedicado à Epopéia Moderna, representado por Dante. Sua
segunda semana tem como homenageados os artistas, cujo representante principal é Rafael, seguido de
15 GRANGE, Juliette. La religion positive. In: La Philosophie d’Auguste Comte: Science, politique, religion. Paris: PUF, 1996. p. 403. 16 COMTE, Auguste. Catecismo Positivista. São Paulo: Abril Cultural. 2a. ed. 1983. p.189. 17 SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil – 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: Age; Editora da Universidade. 1998. p. 79.
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Leonardo da Vinci, Miguelangelo, Holneia, Paossin, Velásquez e Teniers. Comte estabeleceu um
calendário que chamou de concreto, pois baseou-se em seres reais, que pertencem à humanidade e que
contribuíram para sua evolução. Esse Quadro Concreto da Preparação Humana não era fixo, podendo
seus representantes serem substituídos com o tempo.
Como forma de culto ao passado, Comte também propôs uma Biblioteca Positivista com cento
e cinqüenta volumes divididos em Poesia, Ciência, História, Filosofia, Moral e Religião.18 A
Biblioteca, com uma parte dedicada à História, visava dirigir intelectualmente a formação cultural do
adepto, de forma que ele se inteirasse do passado da humanidade, por meio da leitura desses livros.
Tanto o Calendário como a Biblioteca expressam o desejo de Comte que o presente seja
continuamente marcado pelo passado e que a vida privada e pública também o seja. No plano
individual as figuras que se destacam são os familiares mortos que contribuíram para a história pessoal
de cada indivíduo, no plano nacional as figuras reverenciadas são os “heróis nacionais” que
contribuíram para a evolução da história pátria. Mas essas figuras cultuadas nunca o são por razões
personalistas, e sempre por suas contribuições à coletividade humana – a Humanidade, que é síntese
de passado e presente.
Com isso, a Religião da Humanidade possuía um culto coletivo e público, que era reforçado
por atividades que incentivassem a sociabilidade cívica, fora dos templos. As comemorações públicas
cívicas ou culturais, exaltando os grandes homens que contribuíram positivamente para a história da
humanidade, a construção de prédios públicos dedicados a fins culturais e a confecção de monumentos
públicos, estátuas, bustos, bandeiras, mausoléus fúnebres, faziam parte da estratégia de ação religiosa,
fora dos templos. “O espaço inteiro da cidade será a comemoração, a adoração da Humanidade pela
nominação de ruas, tecendo no espaço o Calendário Positivista.”19 Em suma, a vida social, pública e
coletiva, que estimulasse a lembrança do passado e as diferentes formas de celebrá-lo, integrava
também o culto da Humanidade. Essa proposta de vida social e cultural visava criar uma unidade
simbólica entre os cidadãos. Era o conhecimento do passado, da história, que uniria os homens, e a
arte era um dos caminhos. “É a arte, que não é arte somente no sentido da estética, que permite dar
uma identidade imaginária ao coletivo. Esta identidade se expressa aos olhos de todos de uma maneira
18 COMTE, Auguste. Catecismo Positivista... p.132. Os de livros de história da Biblioteca Positivista são: Resumo de Geografia Universal, de Malte-Brun; Dicionário Geográfico, de Rienzi; Viagens de Cook; Viagens de Chardin; História da Revolução Francesa, de Mignet; Manual da História Moderna, de Heeren; O Século de Luís XIV, de Voltaire; As Memórias de Madame de Motteville; Testamento Político, de Richelieu; Vida de Cromwell; A História das Guerras Civis de França, de Davila; As Memórias de Benvenuto Ceilini; As Memórias de Comines; Resumo da História de França, de Bossuet; As Revoluções de Itália, de Denina; Compêndio da História de Espanha, de Ascargota; A História de Carlos V de Robertson; A História de Inglaterra, de Hume; A Europa durante a Idade Média, de Hallam; A História Eclesiástica, de Fleury; A História da Decadência Romana, de Gibbon; O Manual da História Antiga, de Heeren; Tácito completo; Heródoto e Tucídides; As Vidas de Plutarco; Os Comentários de César e as Expedições de Alexandre, de Arriano; A Viagem de Anacársis, de Barthélemy ; A História da Arte entre os Antigos, de Winckelmann; O Tratado da Pintura, de Leonardo da Vinci; As Memórias sobre a Música, de Grétry. 19 GRANGE, Juliette. La religion positive… p. 402.
10
indireta em um grande número de formas de expressão: estátuas e monumentos, nomes de ruas e obras
de arte.”20
A arte era uma auxiliar da razão e da verdade, mas apoiava-se nos sentidos humanos, visando
a sensibilização moral, sobretudo coletiva, porque tinha a função de educar o homem e a sociedade, e
aperfeiçoar a humanidade, por meio da apreciação do belo e admirável. Ela tinha função moralizadora
e era a principal base da educação, portanto era essencialmente social e política, não era mais somente
fruição do belo. Para isso, a arte se voltou para o passado e para as figuras exemplares que deveriam
ser imortalizadas em representações. Em estudo sobre a arte republicana francesa, Genet-Delacroix
destaca que Kant, Condorcet, Saint-Simon e Comte contribuíram para o enfraquecimento do conceito
de arte como fruição do poético ou do belo; agora ela tem função pública: “Arte fica assim investida
de um novo poder, o de exprimir, de mostrar e de dizer, ao mesmo tempo, o direito e a lei que regem
as relações sociais e políticas no novo contexto liberal”.21
Ao destacar as figuras exemplares no passado, a arte positivista marcava também o futuro,
pela mensagem de uma época a outra, por meio de uma linguagem universal, entendida por todos ao
longo do tempo. “Como a História que narra os fatos ocorridos no passado, a arte também há-de
sempre apresentar no esplendor de sua beleza o passado da Humanidade, tornando-o presente.” 22
Comte, instituiu o uso de imagens e ritos que deveriam se transformar numa forma de culto
social, dando uma dimensão imaginária à vida cívica, tendo por âncora o passado. As festas católicas e
as festas públicas revolucionárias são modelos para Comte, ambas utilizando-se fartamente de
imagens e de evocações da História. Sua proposição era uma síntese da alegoria republicana, com a
estatuária, e da simbologia cristã, com a pintura. Ambas formas de expressão artística tiveram a
capacidade de ligar o passado ao presente. “Comte espera sintetizar duas concepções opostas da
mediação social e da figuração artística que se reencontrarão e funcionarão espontaneamente: a
imagem cristã e a estátua alegórica republicana, a missa e a festa.”23
A historiografia já apontou que as festas revolucionárias francesas foram experiências
rousseaunianas que Comte tomou como exemplo. Ao analisar as demonstrações públicas de fé
republicana (festas, oratória, gestos, poesia, música), Shama entende que eram carregadas de uma
teatralidade emocional, eram um circo revolucionário , onde todos eram atores iguais, visando criar
uma identidade fraterna entre os cidadãos. Para ele a religião da fraternidade era uma espécie de
“universalismo cristão rousseauniano.”24 Também para Girardet a festa revolucionária foi a realidade
historicamente viva das idéias de Rousseau. Citando Ozouf, destaca que ela expressava uma vontade 20 GRANGE, Juliette. Rôle social de l’arte e art social. In: Auguste Comte – La politique et la science. Paris: Odile Jacob, 2000. p. 237. 21 GENET-DELACROIX, Marie-Claude. A riqueza das belas-artes republicanas. In: RIOUX, Jean-Pierre, SIRINELLI, Jean-François (orgs.) Para uma história cultural. Lisboa: Estamp a, 1998. p. 214 22 ROSA, E. R. Proença. Augusto Comte e a Arte. Rio de Janeiro: Oficina Gráfica da Universidade do Brasil, 1957. p. 19. 23 GRANGE, Juliette. Rôle social de l’arte e art social... p. 244. 24 SHAMA, Simon. Atos de Fé. In: Cidadãos: uma crônica da Revolução Francesa . São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 389.
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pedagógica, por seu caráter repetitivo, disciplinar e propagandístico dos ideais republicanos, e
expressava também a vontade do indivíduo de pertencer a uma coletividade, de estar em uma reunião
fraterna.25 Para Catroga, as festas cívicas inauguradas pela Revolução Francesa eram ritualizações da
história, “formas ritualistas de evocar o passado, tendo em vista criar representações simbólicas que
pudessem funcionar como lições vivas de memorização.”26
Com isso, a exaltação do passado visava criar, no presente, uma identidade comum nos
cidadãos, impulsionada mais pelos sentimentos do que pela razão, utilizando mecanismos de
sensibilização e fervor coletivo. As obras de arte empregadas em celebrações públicas, festas e
procissões, as comemorações aos grandes homens ou eventos históricos, a construção de um panteon
cívico para a nação, faziam parte de algumas estratégias de ação religiosa com fins políticos, ou nas
palavras de Girardet, “de uma teologia moral do político”27.
Os positivistas da Igreja incentivaram formas de culto social, que foram adotados por
diferentes grupos simpatizantes do positivismo, como é o caso dos seguidores de Floriano Peixoto,
como será visto adiante.
Floriano, jacobinos, positivistas e consagração cívica
Floriano Peixoto, segundo presidente entre 1891 e 1894, é avaliado pela historiografia como o
primeiro grande líder político popular na história republicana.28 Seus seguidores eram militares e civis,
chamados de florianistas ou jacobinos, oriundos de grupos populares e das camadas médias da cidade
do Rio de Janeiro, da jovem oficialidade da Escolar Militar da Praia Vermelha e dos sócios oficiais do
Clube Militar, nesta mesma cidade. A adoção de ações violentas nas ruas, ou não, era o que distinguia
jacobinos dos outros florianistas.29 Ambos os grupos tinham em comum a fidelidade a Floriano, e,
depois, a sua memória. A política econômica austera, aliada a um discurso nacionalista, e a defesa
incondicional da República, com destaque para a primazia do Poder Executivo, também os uniam a
Floriano.
Seus opositores eram qualquer um que demonstrasse inclinações à monarquia; os estrangeiros,
principalmente os comerciantes portugueses; e os liberais, chamados de “casacas”, que estavam mais
25 GIRARDET, Raoul. Da religião civil ao poder espiritual. In: Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 149. 26 CATROGA, Fernando. Ritualizações da História. In: História da História de Portugal. Lisboa: Temas e Debates, 1998. p. 221. 27 GIRARDET, Raoul. Da religião... op. cit. p. 155. 28 Sobre o governo de Floriano, os florianistas e jacobinos brasileiros ver: CARVALHO, José M. Os Bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ª ed., São Paulo: Companhia da Letras, 2000; PENNA, Lincoln de Abreu. O Progresso da Ordem – o florianismo e a construção da República. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997; PENNA, Lincoln de Abreu. República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Os radicais da República. São Paulo: Brasiliense, 1986; QUEIROZ, Suely Robles Reis de. O jacobinismo na historiografia republicana. In: LAPA, José R. do Amaral. História política da República. Campinas: Papirus, 1990. 29 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. O jacobinismo... p. 72.
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interessados em seus negócios do que na consolidação do regime republicano.30 Os florianistas
militares se ressentiam especialmente com os bacharéis, herança do civilismo da época da Império.31
Floriano desenvolveu em seu governo uma administração moralizadora dos serviços públicos,
fiscalizadora dos gastos do erário público e um governo central forte. Em termos políticos, embora não
tenha se engajado nas campanhas republicanas anteriores a 1889, Floriano promoveu a defesa
intransigente da República e de suas instituições, e defendeu a idéia de um Estado nacionalista forte.
Essas idéias também eram defendidas pelos positivistas, com exceção do nacionalismo. “Floriano
combinou o ideal positivista da ditadura da ‘coisa pública’ com a pregação do jacobinismo mais
chegado ao nacionalismo exacerbado e aos interesses sociais.”32
Floriano não estava só, tinha o “povo” a seu lado, isto é o que dava legitimidade a sua obra
política, que fora coletiva. Era uma “relação dialética que se justificava porque Floriano e florianistas
se apropriavam reciprocamente.”33 Os positivistas respeitavam uma liderança genuína, saída da
aclamação popular, desde que o líder assumisse a tarefa de guiar o povo e sabiamente governar, sem
pretensões democráticas com eleições e contagem de votos. Estes eram expedientes desnecessários,
pois as leis naturais que regiam a sociedade já estavam dadas e não dependiam da vontade dos
homens. Para a direção política era necessário apenas o decreto de medidas por um líder sábio. Para os
membros da Igreja, esse líder era Benjamin Constant, que inclusive incentivaram a proclamar a
ditadura republicana, quando a República foi instituída em 15 de novembro de 1889. Constant não
aceitou esta sugestão. Floriano não era o líder sábio ideal, mas tinha o carisma popular, além do fato
de Floriano ter participado “positivamente” para a Proclamação da República, como já foi tratado.
As ações enérgicas, autoritárias e centralizadoras de Floriano contribuíram para sua
popularidade. O comando da crise, herdada do governo de Deodoro, resultou na sua consagração
pública. O controle da Revolta da Armada, da Revolução Federalista, dos governadores dissidentes
nos estados, legou-lhe a alcunha de “O Marechal de Ferro”. A liderança na defesa da República
ameaçada deixou-o conhecido como “o consolidador”. Os positivistas da Igreja, mesmo com as
ressalvas quanto às soluções políticas de Floriano, também compartilhavam esse reconhecimento,
ligando-o às ações de seus colaboradores. “Esse triunfo foi em boa hora obtido, graças ao admiravel
entuziasmo de nossa mocidade, á patriotica fidelidade da força publica de terra, ao acrizolado civismo
de um punhado de oficiais de marinha, e á firmeza inquebrantavel do chefe da nação, que assim
resgatou seus erros e fez esquecer suas grandes lacunas como estadista.”34 As opiniões dos positivistas
da Igreja a respeito do militarismo mudaram muito durante a Primeira República e, durante o governo
de Floriano, as críticas ainda não estavam tão contundentes. Em texto publicado por Teixeira Mendes
em 1892, este elogiou a classe militar, dizendo que concorreu para o bem da nação brasileira na
30 PENNA, Lincoln de Abreu. República... p. 63-64. 31 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. O jacobinismo... p. 79. 32 PENNA, Lincoln de Abreu. República... p. 66. 33 PENNA, Lincoln de Abreu. O Progresso ... p. 18. 34 O Apostolado Pozitivista do Brazil - Décima-Terceira Circular Anual - 1893. Rio de Janeiro: IPB, 1894. p. 19.
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Proclamação da República, mostrando que não era um elemento distinto do restante da nação; pelo
contrário, trabalhava junto com os demais grupos.35
São as relações entre Floriano, positivistas, florianistas e jacobinos que interessa neste ponto.
Floriano não era positivista, nem tampouco recebera total aprovação dos mesmos, como foi visto
anteriormente. No entanto, ele era militar, ex-aluno de Benjamin Constant na Escola Militar e, senão
adepto, pelo menos familiarizado com os princípios básicos da doutrina. O mesmo pode-se estender
aos jovens cadetes que o seguiam, pois entre os alunos desta Escola havia diferentes tipos de
positivistas: os científicos, principalmente interessados nos estudos de matemática, como Comte nos
primeiros anos, e alguns seguidores da Religião da Humanidade. Na Escola também havia aqueles que
não eram positivistas.36
A familiaridade dos militares com a doutrina positivista por um lado, o respeito dos
positivistas à hierarquia, à disciplina e à ordem por outro, possibilitou que os dois grupos
comungassem de valores simbólicos comuns, o que não implicou necessariamente na defesa das
mesmas idéias, práticas e soluções para o país. O apreço por demonstrações públicas de patriotismo,
por cerimônias cívicas, por solenidades em exaltação a figuras nacionais admiráveis, são estratégias
comuns a positivistas e militares. É importante lembrar a parada militar que consagrou a Proclamação
da República em 15 de novembro. A formação em tropa em um desfile militar, as salvas de tiros de
canhões, são práticas simbólicas semelhantes às promovidas pelos positivistas como a festa cívica a
Tiradentes, em 1891, os cortejos fúnebres, as procissões com o Estandarte da Humanidade. Todas são
ações de ritualizações da história, no sentido apontado por Catroga, e pela hegemonização de poderes
simbólicos, constituem uma “estratégia unanimista, geralmente animada pela pretensão de fomentar o
patriotismo e a unidade nacional, (...) ferida pelos conflitos de interesses que atravessa as
sociedades.”37
O apoio incondicional à república uniu positivistas e jacobinos, embora seus métodos não
coincidissem. Os positivistas atuavam principalmente pela via editorial, que propiciava a discussão, a
polêmica e o debate público, buscando o convencimento pela força das idéias; os jacobinos se
centravam nas ações de rua, com manifestações públicas, tumultos e confrontos violentos, e menos na
palavra.38 A radicalidade das estratégias de ambos os grupos fez com que fossem vistos, pelos
opositores políticos, como atuando conjuntamente, por mais que os positivistas da Igreja negassem
essa associação.
Com o término do governo de Floriano e com a ascensão do primeiro governo civil iniciou-se
a desarticulação do fenômeno do florianismo, embora ainda tenha tido ações genuinamente
35 O Apostolado Pozitivista do Brazil - Décima Circular Anual - 1890. Rio de Janeiro: IPB, 1892. p. 33. 36 CASTRO, Celso. Os militares e a República – um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1995. p. 66-67. 37 CATROGA, Fernando. Ritualizações... p. 222. 38 PENNA, Lincoln de Abreu. O Progresso ... p. 112-113.
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jacobinescas, como será visto a seguir. Na verdade, iniciava-se “uma política de desarmamento dos
espíritos mais exaltados que assegurasse a implementação do projeto liberal-federalista.”39
O governo de Prudente de Morais, após o de Floriano, se deu sob a ameaça de ações dos
florianistas, já desde a posse, em novembro de 1894. Apoiado por seus seguidores, Floriano cogitava
permanecer no cargo, porém suas condições de saúde não permitiram. A idéia de entregar o governo a
um civil era algo que não agradava a burocracia militar nomeada por Floriano, mesmo que a aliança
com os paulistas estivesse consolidada desde a queda de Deodoro. Em ato simbólico, o primeiro
presidente civil no Brasil fora empossado sem a presença de Floriano e seus seguidores militares, pois
estes não foram entregar o cargo.40
Em junho de 1895 Floriano morreu e deixou a seus apoiadores uma carta, um “testamento
político” que iria empolgar as ações futuras dos jacobinos. Mesmo sendo longa, vale aqui reproduzir
parte da mesma.
"A vós, que sois moços e trazeis vivo e ardente no coração o amor da Pátria e da República, a vós corre o dever de ampará-la e defendê-la dos ataques insidiosos dos inimigos. Diz-se e repete-se que ela está consolidada e não corre perigo. Não vos fieis nisso, nem vos deixeis apanhar de surpresa. O fermento da restauração agita-se em uma ação lenta, mas contínua e surda. Alerta! pois. A mim me chamais o consolidador da República. Consolidador da obra grandiosa de Benjamin Constam e Deodoro são o Exército Nacional e uma parte da Armada, que à Lei e às instituições se conservaram fiéis (...) é a Guarda Nacional, são os corpos de polícia da Capital e do Estado do Rio (...) é a mocidade das escolas civis e militares (...) finalmente, é o grande e glorioso Partido Republicano, que, tomando a forma de batalhões patrióticos.. ."41 Sob grande comoção foi realizado seu enterro, a maior manifestação popular voltada a cultuar
a memória de um político, ocorrida até então no Rio de Janeiro. Assim afirmou Luiz Edmundo,
jornalista que esteve presente em toda a solenidade: “Jamais uma romaria cívica, até hoje, logrou, que
eu saiba, uma imponência igual. Os funerais de Rio Branco foram notáveis, foram, mas não tiveram,
como os de Floriano, a solenidade, a magnificência e até mesmo o concurso de uma tão grande massa
popular.”42
Seu corpo foi embalsamado e colocado na Igreja da Cruz dos Militares, e a semana inteira
recebeu multidões que passavam silenciosamente para ver seu corpo. As flores extras vindas de
Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo para abastecer as floriculturas, logo se acabaram. Ao
enterramento precedeu um cortejo pela cidade, formado por populares e onze Batalhões Patrióticos
(formados por militares e civis e organizados durante a Revolta da Armada para defender o governo
do Floriano). Completa Edmundo sobre a multidão:
39 PENNA, Lincoln de Abreu. O Progresso ... p. 77. 40 CARONE, Edgar. A República Velha – II evolução política (1889-1930). 4a. ed. São Paulo: Difel, 1983. p. 163. 223-224. 41 Artur Vieira Peixoto, Biografia do Marechal Floriano Peixoto. Rio de Janeiro: MEC, 1939. p. 226-228. In: CARONE, Edgar. A República Velha... p. 163. 42 EDMUNDO, Luiz. De um livro de memórias. Rio de Janeiro: s.ed., 1958. In: SODRÉ. Nelson Werneck. História Militar do Brasil. 2a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 176.
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“Um terço dos moradores da cidade ou, talvez, mais, assistiu à solene passagem desse cortejo, que levou horas e horas a desfilar. Pelas calçadas, portas e janelas das casas, toda uma multidão se aglomerava, em cachos. Vi homens de joelhos, pelas ruas, senhoras que choravam. Gente trepada pelos combustores da iluminação, pelos postes dos fios telegráficos e até pelos beirais de altos e íngremes telhados...”43 No cemitério, “os discursos pronunciados à beira de seu túmulo foram violentos, terminando
com vivas a Floriano e morras para Prudente.”44 Foram atos solenes de reverência ao morto e
sobretudo atos políticos que precisavam ser publicizados aos oponentes, reforçando o discurso da
República não corrompida, inaugurada por Constant e reforçada por Floriano. Entre estes atos houve
também leitura de poesias, como a do positivista da Igreja, Generino dos Santos45, escrita em 1895,
provavelmente lida a beira do túmulo.
Irmãos d’armas
Junto aos túmulos de BENJAMIN CONSTANT E FLORIANO PEIXOTO
Talhados para o bronze subjectivo
Que os conduz pelos seculos a fóra: — Raios reflexos d'uma mesma aurora Que se encontram n'um mesmo objectivo;
Um — pensador, que, agindo, amor devora;
Outro — braço que acção consome vivo: — Par social, ingenuo e primitivo, “Em quem poder não teve a morte" agora:
Encontraram-se os dois, n'alva incendida
De novembro, jamais se separaram: — O que um fundara, o outro consolida,
Justando juntos, juntos repousaram
Que exemplo ! — ali, nessa porção querida Do chão da Patria que elles tanto amaram!
O primeiro aniversário da morte de Floriano também seguiu esse modelo apoteótico,
ocorrendo uma grande procissão cívica pela cidade do Rio de Janeiro com diversos representantes da
sociedade civil e militar, onde destacou-se a Igreja Positivista, o Clube Militar, a Guarda Nacional, o
Partido Republicano Federal, a Escola de Medicina, entre outras associações. A visita ao túmulo de
Floriano se seguiu, sempre no aniversário de sua morte, pelos anos seguintes. A morte e o culto à
memória do falecido eram maneiras de entre para a História. Por meio dessas formas de recordação,
Floriano continuava a pautar as ações de seus seguidores. “Mais do que militar, o pensamento
43 EDMUNDO, Luiz. De um livro... p. 176. 44 PENNA, Lincoln de Abreu. O Progresso ... p. 159-161. e CARONE, Edgar. A República Velha... p. 163. 45 Generino dos Santos foi um jornalista e poeta pernambucano que atuou no Rio de Janeiro. Freqüentava a Igreja Positivista.
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jacobino revela clara influência positivista na defesa que faz (...) do culto aos heróis concretizado na
glorificação de Floriano cuja figura foi por eles elevada à condição de mito.”46
O mandato de Prudente de Morais não fora tranqüilo, e isso os florianistas trataram de
garantir, culminando com um atentado frustrado a sua vida, em novembro de 1897. Militares
florianistas importantes estavam envolvidos. Houve boato que se tratava de uma conspiração do Clube
Militar e também de uma tentativa do vice-presidente da nação, o florianista Manuel Vitorino Pereira,
assumir interinamente. Corriam insinuações na imprensa de que os positivistas da Igreja também eram
responsáveis em certa medida, embora indiretamente, por “aconselhar a ditadura republicana, por
querer suprimir as crenças religiozas, e por ter corrompido o espírito cristão de nossos soldados!”47
Após o julgamento, as ações enérgicas do governo tentaram conter as forças florianistas organizadas,
proibindo a formação dos batalhões patrióticos, fechando o Clube Militar e reprimindo as
manifestações na Escola Militar.
No ano de 1904, quando o terceiro mandato civil, como governo de Rodrigues Alves, pensava
já debeladas as forças florianistas/jacobinas, houve a Revolta na Escola Militar, crise econômica em
abril e maio, greves operárias e a Revolta da Vacina, a partir de outubro.
As ações dos florianistas contra a vacinação obrigatória aparecem novamente em sintonia com
as dos positivistas da Igreja, que se engajaram na Revolta, lançando inúmeros folhetos indignados
contra a invasão do governo na vida íntima dos cidadãos. A Igreja tentou se desvincular das ações
violentas, mas a associação foi feita tanto pelos revoltosos que liam seus textos, quanto pela imprensa
que os criticou. O governo também achava que florianistas e positivistas da Igreja atuavam em
conjunto, como consta no relatório do Chefe de Polícia acerca das agitações de novembro, afirmando
que todos estavam conjurados, até a Igreja Positivista, para que o povo pudesse falar em nome dos
direitos individuais.48 Destacava-se também a liderança do Clube Militar, que depois de entregar um
ultimatum ao presidente Rodrigues Alves, tentou tomar o poder com o apoio dos alunos da Escola
Militar do Realengo e da praia Vermelha, mas a ação foi frustrada pelas forças do governo.49
A campanha contra a vacina se deu também no âmbito parlamentar, com a oposição de
militares, positivistas e florianistas, que formaram na Câmara de Vereadores uma frente de oposição
aos projetos de lei que regulamentassem a obrigatoriedade da vacina, e uma frente de luta pela
“purificação da República, contra o governo do ex-monarquista e conselheiro Rodrigues Alves e
contra as oligarquias estaduais que dizia serem o sustentáculo da República prostituída.”50 Os
positivistas da Igreja não faziam parte da Câmara, mas participaram dessa campanha parlamentar
46 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. O jacobinismo... p. 79. 47 O Apostolado Pozitivista do Brazil – Décima-Setima Circular Anual - 1897. Rio de Janeiro: ipb, 1899. p. 53. 48 MENDES, R. Teixeira. Uma reclamação urgente – a propózito de um trecho do relatório do Sr. Chefe de Polícia, acerca dos sucessos de novembro ultimo. In: Boletim do Apostolado Pozitivista do Brazil. No. 33p, 29 de dezembro de 1904, Rio de Janeiro. 49 CARONE, Edgar. A República Velha... p. 223-224. 50 CARVALHO, José M. Os Bestializados... p. 97.
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publicando manifestos nos jornais e editando seus folhetos, que eram enviados aos vereadores. Este
assunto foi o que mais resultou em publicações da Igreja .
Juntamente com artigos incendiários nos jornais, se dava a organização de abaixo-assinados,
com milhares de assinaturas, de meetings, de passeatas, de agressões à polícia, de queima de bondes,
de barricadas nas ruas, de sublevações nos quartéis. Os que participavam eram positivistas, militares,
jacobinos, operários e uma grande massa da população em geral.
As razões dos líderes eram de ordem política, contra o governo das oligarquias, com intenções
inclusive se tomar o poder e devolve-lo a um militar que estivesse disposto a assumir. Havia também
justificações de ordem moral: o desrespeito à liberdade individual, a virtude feminina, à honra familiar
e à intimidade doméstica.51 “Ao decretar a obrigatoriedade da vacina pela maneira como fizera, o
governo violava o domínio sagrado da liberdade individual e da honra pessoal. O inimigo não era a
vacina em si mas o governo, em particular as forças de repressão do governo.”52 Era um governo dos
fazendeiros, dos oligarcas, dos republicanos de “casacas”, não de fardas.
O ano de 1904 foi marcado por mais uma ação, também simbólica, de florianistas e
positivistas: erguer um monumento a Floriano, em um dos pontos mais centrais da cidade do Rio de
Janeiro. Conforme Catroga, o ritualismo comemorativista, representado também por monumentos, é
uma exaltação dos mortos, para adular ou ferir os vivos. O ano de 1904, pelas mobilizações sociais
ocorridas, foi propício para esta intenção.53
Monumento a Floriano – história pátria e propaganda à Religião da Humanidade
Em 1898, o artista plástico Eduardo de Sá organizou no Rio de Janeiro uma exposição em
homenagem a Benjamin Constant, chamada Exposição Republicana de Belas Artes. No folheto de
lançamento da exposição Sá criticou aqueles que eram cultores da arte pela arte, que buscavam a mera
satisfação dos sentidos estéticos, satisfação do próprio egoísmo, segundo o artista. Para ele, a arte
perdera sua verdadeira missão social: estimular os sentimentos humanos e estabelecer a concórdia
social pela moralização dos homens.
Seu objetivo com a exposição era chamar a atenção dos artistas e do público para a
necessidade do florescimento da arte “ao seu serviço normal, ao serviço dos mais sagrados ideais
humanos, à sua inteira subordinação à Moral, à sua incorporação ao Culto, à Religião.”54 Para Sá, a
conversão religiosa dos artistas acarretaria em duas importantes mudanças: um novo olhar para a
mulher, “não um simples modelo, cuja imagem impudentemente, sem outro motivo que o do
51 Sobre esse assunto ver: LEAL, Elisabete. O Positivismo comtiano, a moral e a mulher. In: O Positivismo, O Partido Republicano Rio-Grandense, a Moral e a Mulher (1891-1913). Porto Alegre: PPG/História – Ufrgs, 1996. (Dissertação de Mestrado). 52 CARVALHO, José M. Os Bestializados... p. 136. 53 CATROGA, Fernando. Ritualizações... p. 222. 54 SÁ, Eduardo de. Exposição Republicana de Bellas-Artes em homenagem a Benjamin Constant. Rio de Janeiro. Tip. Pinheiro & C, 1898. p. 5.
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escândalo, apresenta despida de todo o recato à grosseria publica, (...) mas a suprema representação da
Humanidade.”55 A outra mudança estava ligada à relação do artista com sua obra e com a história.
Como foi já foi afirmado, para o positivismo a história é sempre coletiva e o homem deve tudo o que
sabe e o que tem ao passado. Seguindo esta idéia, Sá entendia que as obras não são do artista, mas de
toda a espécie humana. O artista deveria viver a vida de toda a Humanidade e se sentir irmanado com
todas as gerações do passado para aspirar à sua glória, se inspirar artisticamente e realizar obras que
são representações da Humanidade no passado e no presente.
Na sua visão, estando a arte novamente a serviço do social, deveria sair dos círculos da
burguesia artística e tornar-se popular, chegando “a máscula sinceridade do proletariado, até a pureza
cultual da mulher.”56 Foi em nome dessa causa social que o artista chamou a exposição de republicana,
como coisa pública.
A conversão de Sá ao positivismo religioso se deu em 1889, quando, após completar seus
estudos na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, foi se aperfeiçoar em Florença e
ficou muito doente, tendo 22 anos. Só e doente nesta cidade, recebeu de presente o Catecismo
Positivista, e após a leitura, converteu-se. Depois disso, teve seu trabalho pautado pela leitura de
Comte e pela orientação da Igreja Positivista, embora nunca tenha se tornado membro efetivo desta
organizaçao. A partir de seu retorno ao Brasil, em 1890, passou a pintar quadros para a Igreja
Positivista, tendo por temática Clotilde, Comte e imagens da Humanidade. Pintou ainda quadros com
temática histórica, sempre centrados nos protagonistas republicanos. Para propaganda, Sá lançava
folhetos e publicava artigos nos jornais explicando o esboço das telas e expunha as mesmas em locais
públicos. Ao mesmo tempo em que justificava as razões cívicas das obras, solicitava doações para
realizá-las. Concluído o trabalho, ele era doado a algum órgão do governo, para ornar as salas dos
prédios públicos.
Em 1898, Sá expôs o croquis de um quadro na Livraria Fauchon, no Rio de Janeiro, chamado
Floriano Peixoto – a resistência republicana, cujo objetivo era homenagear os mortos em defesa da
República e comemorar os serviços prestados por Floriano. A tela seria a representação de um
cenotáfio57, que no futuro seria erguido no Morro do Castelo. No cenotáfio Floriano apareceria
protegendo o Altar da Pátria, e nele se leria o nome dos brasileiros que, sob o comando do Marechal,
seguem o caminho apontado por Tiradentes, José Bonifácio e Benjamin Constant. O quadro era uma
abstração do tempo e do espaço, segundo o artista, e nele a imagem de Floriano se uniria aos que
contribuíram para a República: os heróis da Lapa, o defensor de Niterói, às vítimas de Canudos,
55 SÁ, Eduardo de. Exposição Republicana... p. 6 56 SÁ, Eduardo de. Exposição Republicana…p .7. 57 Cenotáfio é um monumento sepulcral erigido em memória de um defunto sepultado em outro lugar. Coerentemente com a doutrina positivista, Sá pensava em um cenotáfio, pois é uma espécie de túmulo que dispensa a transladação de restos mortais, já que a doutrina positivista condenava tal prática.
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seguidores de Antonio Conselheiro, os Batalhões Patrióticos, a marinha e a cavalaria gaúcha.58 Este
quadro não foi executado. No entanto, pelo que parece, o cetonáfio referido se transformou no embrião
do monumento a Floriano, como será visto a seguir.
No quinto aniversário de morte de Floriano, em 1900, Sá propunha realizar uma outra obra de
arte que consagrasse a figura do militar. Coerente com sua ideologia positivista, Sá dedicou o quadro
Figura 1
ao primeiro ditador republicano que surgira
nas “Pátrias Brasileiras”. Deve-se levar em
conta que vários colaboradores militares de
Floriano, e alguns positivistas também,
incentivaram-no a proclamar a Ditadura e
não entregar o governo aos civis. No texto de
lançamento do quadro, Sá ressaltou a morte
do militar, a saudade que sentem os seus
comandados, a amargura nacional pela perda
do patriota e pela orfandade nacional de uma
liderança com pulsos de ferro. Em nenhum
momento o nome de Floriano é registrado,
mas todos os elementos que o identificam
estão presentes. Esse quadro, intitulado Ao
mais digno! é uma representação de Floriano
no leito de morte, envolto à bandeira com
Benjamin Constant ao fundo e entre eles uma
representação da República, uma mulher com
uma espada na mão, envolta em um ramo de
louros.59 Esta tela foi executada e está em exposição no Museu da República, no Rio de Janeiro.
Como foi visto, o Clube Militar reunia os seguidores de Floriano, era conhecido como um
centro de agitação política de orientação positivista e participara dos episódios de sustentação do
governo de Floriano e de repúdio à ascensão dos civis na Primeira Republica. Entre inúmeros sócios,
será destacado um, que dedicou parte de suas atividades a promoção de obras de arte, um espécie de
mecenas militar. Agostinho Raymundo Gomes de Castro foi aluno de Benjamin Constant na escola
Militar da Praia Vermelha e positivista religioso independente da Igreja Positivista. Típico de militar
jacobino, seguidor de Floriano, que venerava Benjamin Constant, quando aluno da Escola Militar.
Como membro do Clube Militar esteve envolvido em todas as tentativas de golpe encetadas pela
associação, no indiciamento do atentado a Prudente de Morais, encabeçando a lista de votos contrários
58 SÁ, Eduardo de. Floriano Peixoto – a resistencia republicana – Quadro commemorativo da defesa da Republica. Artigo de jornal sem referência. 09.02.1898. 59 Sá, Eduardo de. Ao mais Digno! 29.06.1900. Folheto. 1p.
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à vacinação obrigatória, no Congresso, no comando da revolta militar de 1904, e em todos os atos de
consagração cívica de Floriano: organização das visitas anuais a seu túmulo e das subscrições públicas
para erguer-lhe um monumento. Três aspectos interligados interessam neste momento: a participação
na Revolta da Vacina, sua conversão religiosa e suas atividades de incentivo às obras de arte,
especialmente monumentos.
“O pozitivismo e o recurso às insurreições” é o título de um folheto lançado pela Igreja
Positivista em 1906, em resposta ao artigo “O pozitivismo e o direito de insurreição” publicado nos
jornais por Gomes de Castro. No artigo o major justifica a insurreição militar de novembro de 1904,
em que foi um dos líderes, argumentando que Comte condenava o recurso às revoluções apenas
quando estas eram injustas, mas quando representavam um recurso extremo contra a tirania (que para
ele, era o caso brasileiro), estavam plenos de direito. Mas o que mais revoltou os positivistas da Igreja
foi que o militar utilizou-se de folhetos da Igreja pra justificar a insurreição, dizendo sobre o ano de
1904: “os monumentais artigos do próprio Sr. Teixeira Mendes contra o despotismo me fês pegar
aínda uma vês em armas em defeza da liberdade.”60 Deve-se recordar o esforço da Igreja para se
desligar dos movimentos violentos em torno da Revolta da Vacina, mas o artigo do militar, dois anos
depois, vinha novamente corroborar.
O longo artigo de Gomes de Castro é revelador porque mostra a relação conflituosa entre a
juventude militar idealista e a ortodoxia da Igreja. Gomes de Castro representou bem esses jovens.
Essa juventude sentiu-se traída pelo excesso de purismos doutrinários dos líderes da Igreja Positivista
e por aquilo que o militar chamou de uma “teoria clerical da obediência passiva.”61 O final do artigo é
um manifesto de independência da Igreja Positivista: embora não negasse que devia muito ao ensino e
às prédicas religiosas de Teixeira Mendes, dizia que não necessitava de seu placet e do seu Apostolado
para ser positivista. O desfecho desta contenda é Gomes de Castro arrependido, pedido de desculpas a
Teixeira Mendes e à Igreja Positivista, dias depois. Porém, essa disputa por competências da
interpretação de Comte e de práticas condizentes com a doutrina já estava estabelecida, inclusive na
promoção de obras de arte. Gomes de Castro e a Igreja Positivista iriam mais duas vezes disputar
competências na promoção de monumentos cívicos.
Em 1891, no dia seguinte a morte de Constant, o Congresso Nacional aprovou a construção de
seu monumento. Depois, Deodoro decretou a execução do monumento e Floriano lançou a pedra
fundamental. Somente em 1913 formou-se a comissão para providenciar a confecção do monumento,
com Gomes de Castro como tesoureiro. Passaram-se vários anos e o monumento não foi erguido,
provavelmente por divergências entre Gomes de Castro e os membros da Igreja. Por fim, o
monumento foi pago por um adepto da Igreja, feito todo segundo orientação de Teixeira Mendes e
executado por outro artista positivista, Décio Villares, com a colaboração de Eduardo de Sá. Ao que
60 MENDES, R. Teixeira. O pozitivismo e o recurso às insurreições. Rio de Janeiro: IPB, 1906. 23. 61 MENDES, R. Teixeira. O pozitivismo e o recurso às insurreições... p.107.
21
parece, Gomes de Castro não participou da fase de execução do monumento, que foi inaugurado
somente em 1926.
Em 1911, ano seguinte à inauguração do monumento a Floriano, Gomes de Castro presidiria a
comissão para o monumento fúnebre a D. Leopoldina, com a transladação de seus restos mortais. Ele
enviou o convite da solenidade aos positivistas da Igreja, que não compareceram por não estarem
convencidos dos serviços de Dona Leopoldina à Pátria e por serem contra atos de transladação de
restos mortais. A lista de subscrição também foi enviada a Igreja e devolvida a Gomes de Castro, com
a justificativa de que por razões doutrinárias não poderiam participar desta iniciativa cívica. Todos
esses atos foram acompanhados de publicação de longos artigos nos jornais, com réplica e tréplicas de
ambos os lados, e com publicação de folhetos pela Igreja Positivista.62 O monumento acabou sendo
inaugurado em 1937, sem ligação nenhuma com os positivistas. Mas foi durante a promoção do
monumento a Floriano que se iniciou a disputa entre Gomes de Castro e a Igreja, como será visto a
seguir.
Em 1904, os florianistas, reunidos no Clube Militar, formaram uma comissão para planejar as
medidas para a glorificação pública de Floriano. O presidente da comissão era Gomes de Castro. Entre
as atividades de homenagem estava a romaria cívica ao túmulo de Floriano no aniversário de sua
morte, como era corrente acontecer todos os anos, e a colocação da pedra fundamental do monumento
à memória do militar, para ser erguido em ponto central e de destaque na cidade do Rio de Janeiro.
No ambiente urbano o local escolhido para erguer monumentos nunca é aleatório ou casual,
pois “o espaço não se apresenta como um elemento natural ou físico, mas sobretudo como um produto
social, resultado histórico das disputas em torno da significação do território (...) e disputas de poder
da sociedade”63. O local e o monumento concretizam a ritualização da história, pois marcam os
poderes simbólicos dos diversos grupos e interesses que integram a sociedade civil.64 O local
escolhido para erguer o monumento a Floriano foi o Largo da Cinelândia, que depois passou a
chamar-se Praça Floriano. Estava em um ponto central da cidade e reunia no seu entorno importantes
prédios públicos voltados para a cultura, como o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional, a Escola
Nacional de Belas Artes e, ainda, o Palácio Pedro Ernesto, do Conselho Municipal. Uma das críticas
ao monumento, publicada no jornal A Notícia, em dezembro de 1907, apontava justamente o quanto
era significativo o local estabelecido para erguê-lo, dizendo sarcasticamente que o monumento ficaria
bem perto da Escola Nacional de Belas Artes. “Boa vizinhança para a Escola”.65
Para levar adiante o projeto do monumento foi realizada uma concorrência pública para a
escolha da maquete. Uma das cláusulas do edital exigiu que o artista fosse brasileiro - e aqui não deve-
62 MENDES, R. Teixeira. Ainda a comemoração social e a situação modérna – reflessões a propozito da subscrição pública para erigir-se no Cemitério São João Batista, um monumento a Imperatriz D. Leopoldina e seus decendentes. Rio de Janeiro: IPB, 1912. 63 KNAUSS, Paulo (org.). Cidade Vaidosa – imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. p. 7 64 CATROGA, Fernando. Ritualizações... p. 222. 65 A Estatua do Marechal Floriano. A Notícia. 10.12.1907.
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se esquecer das medidas nacionalistas de Floriano - e que comungasse dos mesmos princípios políticos
dos militares florianistas, leia-se, princípios positivistas que nem mesmo Floriano adotara. A mídia
novamente associou os florianistas com os positivistas da Igreja, já que esses eram conhecidos por
suas campanhas de glorificação cívica a protagonistas republicanos. O Jornal o País publicou em
junho de 1904 um artigo criticando a romaria ao cemitério e o concurso para o monumento,
questionando a competência dos juízes, do artista e a qualidade do projeto vencedor. Alegou ser tudo
produto da influência da Igreja Positivista, o que a Igreja negou também em artigo de jornal.66
Participaram do concurso os artistas Correia Lima e Eduardo de Sá, vencendo este último. A
maquete vencedora foi duramente criticada por artistas e críticos, servindo de assunto para muitas
caricaturas nos jornais cariocas (Figura 2 – Maquete do Monumento). Assim escreveu Gonzaga
Duque, um importante crítico de arte na época, a respeito da maquete: “o seu projeto apresentava-se
cheio de complicações, superabundavam em símbolos, metia -se-lhe a filosofia de Comte pela linhas,
esbarrava-se com a grande revolução francesa a todo o momento... todas essas coisa ameaçavam-nos
de uma formidável erudição positivista em pedra e bronze desesperadamente jacobinescas...
Realmente, era para nos pôr frios.”67
A maquete foi rechaçada pelo público não
só pelos elementos simbólicos que a compunham,
mas diziam as críticas nos jornais que ela era
muito feia e mal acabada, referindo-se à forma.
Havia uma incompreensão acerca da função de
uma maquete no processo criativo do artista. É
nela que ocorre o ato de criação artística, o
momento em que o artista dá forma à idéia, sem
preocupações com os acabamentos.68
O concurso gerou revolta no meio
artístico, pois a concorrência foi entendida como
sectária, privilegiando a posição ideológica de Sá.
Outro questionamento dos artistas dizia respeito à
capacidade de Sá em fazer escultura, pois
conheciam-no como pintor. Além disso, a verba
para execução do monumento foi adquirida por
subscrição popular e por subvenção votada no
Figura 2
66 MENDES, R. Teixeira. A propózito da comemoração do Marechal Floriano. In: Boletim do Apostolado Pozitivista do Brazil. No. 32p, 16 de julho de 1904, Rio de Janeiro. P. 21. 67 GONZAGA-DUQUE. Estatua do Marechal Floriano por Eduardo de Sá. In: Revista Kósmos. out. 1907. 68 WITTKOWER, Rudolf. Escultura . São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 240.
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Congresso Nacional; portanto havia verba pública e isso não era condizente com as condições
excludentes impostas pelo concurso.
A despeito destes protestos, a maquete de Sá foi escolhida pela Comissão encarregada. O
artista rumou para Paris para executá-la. Diante do questionamento da capacidade do artista em
realizar escultura, sua viagem foi motivo de outros falatórios, inclusive a afirmação de que poderia por
lá comprar uma bela escultura.69 Esse boato foi reforçado quando Sá enviou uma nova maquete,
limpada dos tantos símbolos que se amontoavam na primeira, mas mantendo sua concepção original.
Esta não foi a primeira vez em que o artista se envolveu em controvérsias artísticas, gerando
muitas notícias e entrevistas nos jornais. Ele sabia capitalizar essas grandes polêmicas em visibilidade
para sua obra, respondendo às críticas e questionamentos de forma sutil e transformando isso em
propaganda de seu trabalho. Por exemplo, diante da dúvida se ele de fato era escultor, fotos dele
esculpindo o monumento em seu atelier parisiense chegaram ao Brasil; foram enviadas às redações
dos jornais e levadas à Câmara, por Gomes de Castro, para serem expostas aos deputados que votaram
a verba pública.
A polêmica em torno do concurso e do monumento demonstra a dificuldade de Sá em ser
aceito no meio artístico e no meio político. Mas ele não teve a mesma dificuldade entre os militares
encomendantes do trabalho. O debate oscilava entre suas opções estéticas e suas opções filosóficas.
Mas os elogios sobre sua conduta, seriedade e dedicação à pátria superavam as críticas, fazendo-as
parecerem resultado de mero ciúmes profissional. O artista sabia criar situações que angariavam
simpatias como, por exemplo, devolver ao Clube Militar a verba que sobrou de sua estada em Paris,
receber um salário igual ao de seus ajudantes no atelier ou colocar na fralda da bandeira, no ápice do
monumento, a inscrição comovente e dúbia: “À minha pátria dedico o que esta obra me fez sofrer”.
Aparentemente os líderes da Igreja Positivista não se envolveram nesse polêmico concurso,
nem na confecção do monumento, mas a ligação explícita do artista com a Igreja Positivista era
conhecida por todos. Na inauguração da obra, dia da comemoração cívica a Tiradentes, em 21 de abril
de 1910, o diretor da Igreja, Teixeira Mendes, disse em entrevista que os positivistas da Igreja não
compareceriam em grupo na solenidade, e nem em outras, para evitarem a vinculação com os
florianistas, mas que iriam individualmente. Com isso tentavam mais uma vez se desvincular da
solenidade, da obra de arte e dos florianistas, mas o monumento falava por si: era uma apologia do
positivismo religioso pregado por Gomes de Castro, por Eduardo de Sá e pela Igreja.
69 Notas de um Fluminense. A Tribuna. 17.12.1907.
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Figura 3
O monumento é formado por uma coluna em cujo
topo esta o “o conjunto da bandeira” (figura 3), composto
pela bandeira nacional desfraldada ao vento, com as faces
dos três principais heróis nacionais: José Bonifácio,
Tiradentes e Benjamin Constant. No alto da coluna
também está o homenageado, Floriano, defendendo a
bandeira. Ao centro, saindo das dobras da bandeira uma
mulher paira sobre as demais figuras do monumento. É a
alegoria da Pátria. Essa imagem feminina não é uma
representação da República, é a figura da Pátria, que na
descrição de Sá, é arrojada e aponta para o horizonte,
representando o futuro da nação, agora republicana. “A
composição eleva-se sobre as demais, realçando-lhe a sua
primazia, dando-lhe a atitude em que se compreende a
pátria, acima de todos os preconceitos, de todas as
paixões.”70 Na parte posterior da bandeira há um grupo de
crianças brincando por entre as dobras da bandeira. Elas representam as gerações futuras (Figura 4).
Não há registro sobre a opção de colocar o
homenageado no alto da coluna, se foi do artista ou dos
encomendantes. Independente disto, o resultado não foi
satisfatório do ponto de vista visual, pois quase não é possível
ver a figura de Floriano. Soma-se a isso o fato de que a
bandeira desfraldada ao vento forma uma sombra constante
sobre as figuras que compõe este conjunto, inclusive Floriano
que, a princípio, deveria ter maior visibilidade. É possível que
o artista tenha pensado a composição sem levar em conta a
incidência de luz no Largo da Cinelândia ou ainda que o local
não estivesse definido, quando o conjunto escultórico foi
desenhado. Deve-se lembrar que Sá já havia pensado em
erguer um cetonáfio a Floriano no Morro do castelo, no Rio
de Janeiro. Talvez o monumento executado tenha sido
Figura 4
pensado para este local. Falconet esclarece que a luz e a sombra são essenciais na idealização de uma
escultura de grandes dimensões e que os artistas deveriam fazer modelos ou esboços no local onde
ficariam as obras, porque “é ali que podem assegurar-se da luz e das sombras adequadas e certificar-se
de que a impressão geral da obra é correta. Se compuserem sua obra à luz do atelier, ela poderá
70 GONZAGA-DUQUE. Estatua do Marechal Floriano por Eduardo de Sá. In: Revista Kósmos. out. 1907.
25
parecer satisfatória ali, mas, quando for colocada no cenário a que estava destinada, o resultado poderá
ser extremamente insatisfatório.”71
Nas quatro faces da coluna Sá colocou baixos-relevo de indivíduos representando os grupos
que contribuíram com Floriano na defesa do regime republicano. São eles: o Exército, com o general
Gomes Carneiro; a Marinha, com o Almirante Jerônimo Gonçalves; a Polícia, com o General Fonseca
Ramos; e os civis, com Júlio de Castilhos. Já em 1893, Miguel Lemos, então diretor da Igreja,
propunha que Gomes Carneiro fosse glorificado em um monumento pelo heroísmo na defesa da
cidade de Niterói, dizendo que foi a “personificação eminente da dignidade militar e do devotamento
cívico.”72 A preferência da Igreja Positivista por Júlio de Castilhos, presidente da província do Rio
Grande do Sul entre os anos de 1892 e 1898, também era conhecida, já que mais de uma vez a Igreja
lançou manifestos a favor de sua candidatura a Presidente da República.73 Castilhos por outro lado,
também demonstrou adesão ao positivismo, adotando para a Constituição Estadual do Rio Grande do
Sul, a proposta pelos dirigentes da Igreja por ocasião do Congresso Constituinte em 1891. Ele morreu
subitamente em 1903 e seus monumentos cívico e funerário foram feitos pelo artista positivista Décio
Villares, também colaborador da Igreja Positivista. Seus monumentos foram feitos na mesma época
que o de Floriano. Os colaboradores de Floriano incluídos no monumento são os mesmos referidos no
cenotáfio idealizado por Sá em 1898.
A base do monumento é composta por cinco nichos. Quatro deles possuem conjuntos
escultóricos homenageando a poesia nacional, dominada pela influência feminina, diz o artista.74 Para
conceber essa narrativa histórica nacional, o artista escolheu quatro poemas nacionais que
representassem “os primeiros surtos históricos do povo, da sua gênese étnica”75 O artista representou
os índios, que simbolizam a idade primeira da pátria, quando eles aqui dominavam, com Y-Juca-
Pyrama, canto VI do poema Tymbiras, de Gonçalves Dias (Figura 5); o período de catequese, com
Evangelho das Selvas, canto II do poema Anchieta, de Fagundes Varella (figura 6); a conquista
portuguesa, com o poema Caramuru, de Santa Rita Durão (figura 7); e a contribuição da “raça
africana” ao povo brasileiro, com o poema Cachoeira de Paulo-Affonso, de Castro Alves (Figura 8).
71 FALCONET, E. M. , Refléxions sur la Sculpture. In: WITTKOWER, Rudolf. Escultura . p. 233. 72 LEMOS, Miguel. Circular no. 4. In: O Apostolado Pozitivista do Brazil – Décima-Terceira Circular Anual -1893. Rio de Janeiro: IPB, 1894. p. 55. 73 MENDES, R. Teixeira. A candidatura prezidencial do Cid. J. de Castilhos. In: Boletim do Apostolado Pozitivista do Brazil. No. 5p, 6 de março de 1898, Rio de Janeiro. p. 8. 74 La statue du maréchal Floriano. In: Le Courrieur du Brèsil. 04.04.1907. 75 Correio da Noite. 21.04.1910.
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Figura 5
Figura 6
Figura 7
Figura 8
27
O nicho principal é um altar cívico, colocado à frente do monumento (Figura 9). Ele é
composto por outra figura feminina em vestes colantes, com o semblante forte, mas ao mesmo tempo
tranqüila e meiga.76 Ela, segundo a descrição do artista, oferece uma flor como símbolo da
“fraternidade, não somente nacional, mas humana, que deve, um dia, predominar sobre a Terra.”77
Maurice Agulhon evidenciou um aspecto
importante na escultura pública do século XIX na
França, a obsessiva presença de corpos femininos,
devido à banalização de uma cultura humanística
clássica e uma mentalidade masculinista que se
satisfazia com a exibição e a contemplação voluptuosa
de imagens de mulher-objeto. É por isso que pelas ruas
encontram-se belas mulheres esculturais, vestidas ou
desnudas, sedutoras ou inexpressivas, contrastando com
o realismo moderno e expressivo de imagens de
homens, afirma Agulhon.78 Imagens idealizadas de
mulheres, ao lado de imagens realistas dos heróis nos
monumentos podem ser observadas também no Brasil.
O monumento a Floriano possui um número
significativo de mulheres – quatro no total –, mas não
eram retratadas de maneira sensual, porque o
positivismo entendia que a arte servia para sensibilizar,
Figura 9
e a imagem de uma mulher, demonstrando medo, com uma criança no colo, ou oferecendo uma flor,
era um meio eficaz para isso.
O monumento não apresenta aspectos biográficos do homenageado, nem de sua
personalidade. No entanto, são usadas alegorias que revelam a função social do herói: ele aparece ao
lado de.um canhão e empunhando uma espada, pois era a representação do principal militar
combatente na defesa do regime republicano Portanto, as armas não podiam ser totalmente omitidas.
Mesmo que essa fosse a representação da defesa da República, era militarista e bélica demais para o
gosto dos positivistas. A solução encontrada pelo artista foi colocar uma mulher ascendendo sobre
Floriano, que está rodado de crianças, em uma posição no monumento que não é a mais privilegiada
para ser vista. Sá foi acusado por artistas e pela imprensa de ter feito apenas um resumo da história
pátria, com um civismo confuso e uma prodigiosa propaganda à Religião da Humanidade, quase
esquecendo de Floriano. Também sofreu críticas pela multidão de acompanhantes de Floriano, 25
figuras. 76 GONZAGA-DUQUE. Estatua do Marechal Floriano por Eduardo de Sá. In: Revista Kósmos. out. 1907. 77 La statue du maréchal Floriano. In: Le Courrieur du Brèsil. 04.04.1907. 78 AGULHON, Maurice. Histoire Vagabunde – Ethnologie et politique dans la France contemporaine. Paris: Gallimard, s/d. p. 112-113.
28
Apesar da intenção cívico-pedagógica dos monumentos, pois segundo Comte a arte servia
para “educar as mentes e sensibilizar os corações”, nem sempre serviam bem para esse fim. Muitas
vezes o público não aceitava o conteúdo simbólico positivista ou a forma artística; outras, não
compreendia o monumento ou não concordava com a exaltação do herói. Gonzaga-Duque afirmou em
seu artigo, mas sem se referir ao monumento a Floriano, que monumentos de rua só devem
homenagear heróis já admirados pelo povo; senão, a sua estátua não tem sentido e vira apenas uma
peça decorativa em praça pública. Floriano foi figura muito controversa, sendo fanaticamente seguido
por uns, e duramente criticado por outros, principalmente por ter fomentado as ações violentas de seus
seguidores. Parece que o artista comungou dessa impressão negativa, pois disse em entrevista, muitos
anos após a inauguração do monumento, que fez grande esforço para enquadrar Floriano no
monumento, pois ele era a “negação do homem retratável (...). Era tudo o que havia de mais chão
(...).Tudo nele era caimento, moleza e falta de expressão.”79 Essas impressões o artista teve de uma
viagem de bonde em um domingo, em que Floriano, então presidente da República, era um dos
passageiros. Disse Sá que teve dificuldade em identificar que era o Presidente, pois tanto era o
desengonçamento e falta de expressão de Floriano: “calças brancas cerzidas no joelho, paletó de
lustrim, fisionomia apagada e amorfa”. Completa Sá ao jornalista: “Bem vê as dificuldades que tive
para emprestar-lhe majestade.”80 Isto demonstra a grande distância entre o jovem artista idealista
republicano, quando da proposta do primeiro quadro de Floriano, em 1898, e o artista decepcionado
com os rumos políticos do país em 1926, ano do depoimento. Também pode-se cogitar que o
artista assumiu a posição reticente da Igreja Positivista com relação aos florianistas e ao próprio
Floriano.
O recurso utilizado pelo artista para criar um monumento cujo homenageado não era, para ele,
tão admirável, foi combinar dois discursos - um da história pátria centrada na composição étnica e na
história republicana; outro a mensagem positivista de exaltação da mulher - e, com isso, diminuir a
centralidade e visibilidade do homenageado. O uso de figuras de mulheres, crianças, flores e poesia
em um monumento a um militar não foi bem compreendido pelo povo. Uma anedota que corria na
boca do povo no dia da inauguração do monumento mostra que a abundância de figuras em uma obra
que pretendia homenagear um homem era visto como algo curioso. Assim diz o texto no jornal:
“Tantos, porém, são os vultos patrióticos enchendo saliências e vãos da solene escultura, que achou o povo de explicar a atitude marcial do Marechal de Ferro, com a sua espada na mão, como a de um homem apavorado com a pletora de tantos companheiros a cerca-lo que, do alto do pedestal em que se encontra, diz, para baixo, entre apreensivo e furioso: Aqui não sobe mais ninguém!...”81 Frente a esta recepção do monumento, Gomes de Castro, explicou em seu discurso na
inauguração que o monumento era coletivo porque a obra política de Floriano fora coletiva e não se
79 Convivendo, por momentos, com Eduardo de Sá. In: O Jornal. Rio de Janeiro. 01.08.1926. 80 Convivendo... 81 EDMUNDO, Luiz. De um livro de Memórias. – Eduardo de Sá. Artigo de jornal sem referência.
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tratava de uma obra de devotamento a nenhuma individualidade, pois “a espécie domina sempre o
individuo, e qualquer acto humano é sempre social em sua origem, embora pessoal em seu
exercicio”,82 explicação absolutamente oportuna para um monumento com tantos integrantes e
condizente com os princípios positivistas, pois somente aqueles que ficaram na memória familiar ou
coletiva, por suas ações, mereciam ser cultuados. Era uma forma de ressurreição por meio da história.
A rpresentação deveria refletir as condições historicamente vividas pelo homenageado, sua
experiência passada e relação com o meio e com os outros homens, de forma a criar identidade com o
presente.
Por um lado, os militares reconheciam a autoridade intelectual dos positivistas da Igreja,
embora não conhecessem a fundo a doutrina no que se referia a obras de arte, com exceção de Gomes
de Castro, e por isso aceitaram o monumento que era mais de exaltação à Religião da Humanidade, do
que ao Marechal Floriano. Os positivistas da Igreja, por outro, incentivaram eficientemente o culto
social a heróis, com a construção de monumentos públicos, porém nem sempre conseguiam controlar
quais heróis iriam ser exaltados nas praças públicas brasile iras. O artista, por seu turno, profundamente
imbuído da concepção estética de Comte, conseguiu fazer um monumento positivista a Floriano -
jacobino.
82 Floriano Peixoto – a inauguração do monumento. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro. 22.04.1910.