fatos do passado na mídia do presente

616
1

Upload: kim-pires

Post on 06-Nov-2015

141 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

comunicação

TRANSCRIPT

  • 1

  • 2Conselho Editorial INTERCOM

    Diretor Editorial Osvando J. de Morais

    Presidente Raquel Paiva (UFRJ)Muniz Sodr (UFRJ])Maria Teresa Quiroz (Universidade de Lima/Felafacs)Jos Manuel Rebelo (ISCTE, Lisboa)Luciano Arcella (Universidade d Aquila, Itlia)Alexandre Barbalho (UFCE)Moha Hajji (UFR)Mrcio Guerra (UFJF)Marialva Barbosa(UFF)Lus C. Martino (UNB)Nelia Del Bianco (UNB)Pedro Russi (UNB)Etienne Samain (UNICAMP)Norval Baitello (PUCSP)Olgria Matos (UNISO)Paulo Schettino (UNISO)Giovandro Ferreira (UFBA)Ana Silvia Medula (UNESP Bauru)Juremir Machado da Silva (PUCRS)Erick Felinto (UERJ)Alex Primo (UFRS)Christa Berger (UNISINOS)Afonso Albuquerque (UFF)Cicilia M. Krohling Peruzzo (Univ. Metodista)

    Fatos do passado na mdia do presente: rastros histricos e restos memorveis

    OrganizaoAriane Pereiraris TomitaLayse NascimentoMarcio Fernandes

    Capa, projeto grfico e diagramaoLucas Gomes Thimteo

    So Paulo, abril de 2011ISBN 978-85-88537-72-9Alguns direitos reservados. Venda proibida.

  • 3

  • 4

  • 5Sumrio

    PARTE 1: Histria e Memria na Mdia Impressa

    1. Jornalismo paranaense no incio do sculo XX: o Dirio da Tarde escrevendo a histria da imprensaKarina Janz WOITOWICZ

    2. Estado do Iguau: apontamentos sobre personagens relevantes e coberturas regulares da ImprensaGabriel BALDISSERAMarcio FERNANDES

    3. A imprensa e a construo da memria: ditadura militar de 1964, fragmentos e razes do silncioLayse Pereira Soares do NASCIMENTO

    4. O estabelecimento dos fatos: rastros memoriais da Folha de S.Paulo durante o regime militar no BrasilAndr Bonsanto DIAS

  • 65. A cobertura do caderno Ilustrada dos festivais independentes no BrasilWyllian CORREA

    6. Um exemplo de jornalismo literrio: a revista TarjaReynaldo CASTRO

    7. Aquecimento global e efeito estufa nas pginas de Veja: tom de alarme e urgncia nos discursos que navegam pela binmio esperana-descrenaAriane PEREIRA

    8. Imprensa feminina e representaes sociais: a mulher na revista Grande HotelNncia Ceclia Ribas Borges TEIXEIRA

    9. A resistncia das mulheres atravs da imprensa: feminismo e ativismo miditico nos anos 1970-80 no BrasilKarina Janz WOITOWICZ

    PARTE 2: Histria e Memria na Mdia Audiovisual

    1. Fotografia, memria e poder: as disputas por operaes memorveis na Revolta

    dos Posseiros de 1956verly PEGORARO

  • 72. O uso da imagem na mdia impressa em Belm: percurso e configurao

    Netlia Silva dos Anjos SEIXAS

    3. A TV pblica no ParMaria Atade MALCHER

    4. Memria e Histria: as minissries como restos do passadoMarialva Carlos BARBOSA

    5. Debates nas campanhas presidenciais: Brasil 1989-2010Maria Berenice da Costa MACHADO

    6. Cerveja X Refrigerante: apontamentos sobre 40 anos de similaridades na esttica de suas propagandasSergio KULAKMarcio FERNANDES

    7. Pistas para (re)construir uma histria da radiodifuso em Jujuy, ArgentinaMarcelo BRUNET

  • 8PARTE 3: Reflexes acerca da relao entre Histria, Memria e Mdia

    1. Teorias da publicidade na Amrica Latina: a perspectiva da recepo em Eliseo VernRodolfo Rorato LONDERO

    2. Acesso aos bens culturais, diversidade cultural e polticas pblicasCladia Herte de MORAES

    3. Educao e comunicao nos movimentos sociais ruraisEmerson dos Santos DIAS

    4. Estudos Culturais urbanos na Amrica Latina: comunicao, cidade e polticaAlejandra GARCIA VARGAS; Patria ROMN-VELSQUEZ

    5. O relato como notcia e histria: a relao entre moradores e Tenentistas durante a ocupao de Foz do IguauEmerson dos Santos DIAS

    Sobre os autores

  • 9PrefcioUma das mais importantes reas do conhecimento neste sculo 21, as

    Cincias da Comunicao tm recebido a devida ateno no mbito da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) nos ltimos anos. A prpria entrega deste e-book - denominado Fatos do passado na mdia do presente: rastros histricos e restos memorveis - comunidade acadmica brasileira e internacional um excelente demonstrativo disso.

    A viso institucional da Unicentro para o universo comunicacional clara: todas as aes devem ser pautadas pela integrao Ensino-Pesquisa-Extenso, operando-se em rede tanto quanto possvel, tanto do ponto de vista de contedos como sob a tica geogrfica - vale ressaltar que, por estes tempos, a rea de Comunicao da Unicentro

    mantm ou est fomentando laos com parceiros da Argentina, Chile, Portugal e Espanha, dentre outros pontos do planeta. Em paralelo, tambm nos ltimos anos, diversos livros englobando a Comunicao e outros campos tm sido publicados com o apoio da Unicentro, demonstrando que possvel sim, a partir do interior de um Estado (neste caso, o Paran) se produzir conhecimento, em busca da excelncia cientfica.

    Ademais, nossos alunos e egressos de Comunicao Social cada vez mais se destacam em diversas mdias e partes do Brasil, fruto tambm de um processo permanente de qualificao docente e dos agentes universitrios. Cabe dizer que,

    em 2006, a rea de Comunicao da Unicentro possua dois professores efetivos -

  • 10

    um mestre e um especialista. At 2013, este nmero deve ser transformado em 13 docentes concursados, 10 dos quais doutores.

    Em um cenrio assim, torna-se difcil (e, muito provavelmente, desnecessrio) apontar se esta ou aquela ao mais importante dentro deste projeto de desenvolvimento comunicacional que a Unicentro est estimulando. O mais correto pensar (e defender sempre) que, juntos, cresceremos com a devida qualidade que tem pautado nossa Universidade nos ltimos anos.

    Boa leitura,Vitor Hugo Zanette e Aldo Nelson Bona, reitor e vice-reitor da Unicentro,

    respectivamenteAbril de 2011

  • 11

    Apresentao Geral

    Trs anos nos separam de maio de 2008. Data em que a Universidade Estad-ual do Centro-Oeste (Unicentro), atravs do Grupo de Guarapuava, como seria desig-nado mais parte pelo professor Jos Marques de Melo quando da indicao (vence-dora) do Prmio Luiz Beltro de Cincias da Comunicao 2009, na categoria Grupo Inovador , organiza e sedia o Intercom Sul daquele ano. Evento que fomentou as discusses que resultaram nos trs primeiros exemplares da coleo 3C Conversas Contemporneas em Comunicao: Retratos Miditicos do Meio Ambiente Gestos de Interpretao, Retratos Transdisciplinares e Retratos Sociais da Mdia, organizados por professores do grupo e convidados de outras instituies. De l at aqui, outros dois exemplares se juntaram coleo: Recortes bra-sileiros de ativismo miditico e Cidadania, manifestaes culturais e questes de gne-ro. Alm disso, o mesmo grupo tambm organizou o e-book Jornalismo Reflexivo

    vises terico-metodolgicas de autores do sul brasileiro, publicado pela Intercom, abrindo a coleo Intercom E-livros. A mesma que, agora, publica Fatos do passado na mdia do presente: rastros histricos e restos memorveis. Assim, estes organizadores tm a satisfao, de mesmo estando no interior do Paran, longe dos grande centros e instituies, mais uma vez suscitar discusses na rea da Comunicao. Afinal, acreditamos que o debate e a reflexo que nos levaro

    uma prtica comunicacional, bem como a um ensino a uma pesquisa mais efetivos.

    Os organizadores.

  • 12

  • 13

    Parte 1

  • 14

  • 15

    Apresentao Parte 1

    Professores, pesquisadores, acadmicos e profissionais da Comunicao, do

    Paran e de Santa Catarina, se reuniram em junho de 2010 para refletir e debater

    acerca da histria da mdia. Discusses que, pensamos poca, no poderiam ficar

    restritas as salas de aula da Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste), onde foi realizado o I Encontro Paran-Santa Catarina de Histria da Mdia; deveriam extrapolar as dependncias da universidade, suscitar novos debates... Dessa maneira, pensamos que, a partir das discusses, os resumos-expandidos apresentados poderiam ser ampliados e publicados em livro, em formato eletrnico. E assim, os autores foram convidados a produzir artigos para o e-book. Mas no s eles... Pesquisadores de outros estados do Brasil e da Argentina tambm foram convidados a escrever. Reflexes que hoje esto presentes em Fatos do passado na mdia do presente: rastros histricos e restos memorveis. E-book que, para fins de organizao, foi dividido em trs partes: Histria e Memria na Mdia Impressa composta por 9 artigos; Histria e Memria na Mdia Audiovisual que engloba 7 textos; e Reflexes acerca da relao entre Histria, Memria e Mdia formada por mais 5 artigos. Jornalismo paranaense no incio do sculo XX: o Dirio da Tarde escrevendo a histria da imprensa, de autoria de Karina Janz Woitowicz, o artigo de abertura da primeira parte. Nele, a autora paranaense procura analisar as principais caractersticas

  • 16

    (em se tratando tanto de forma quanto de contedo) do jornal mais antigo do Paran, nos primeiros anos do sculo XX, a fim de compreender o espao construdo pelo

    jornalismo para dizer a realidade em meio aos acontecimentos de uma poca. O artigo seguinte, de Gabriel Baldissera e Marcio Fernandes, Estado do Iguau: apontamentos sobre personagens relevantes e coberturas regulares da imprensa, reflete sobre a participao, a favor ou contra, da imprensa do sul do Brasil

    ao longo das campanhas pr-criao do Estado do Iguau, sobretudo a partir da dcada de 1960. Mesmo perodo a que se dedica a professora Layse Nascimento em sua pesquisa que resultou em A imprensa e a construo da memria: ditadura militar de 1964, fragmentos e razes do silncio. Neste artigo, o de nmero trs da primeiro parte, ela toma como objeto artigos publicados pela Folha de S. Paulo, em 2010, e pela revista Realidade, em 1967, para demonstrar que, se de um lado, h uma preocupao com a seleo de fragmentos de memria, de outro, o que se procura controlar a memria que ser recuperada no futuro. A ditadura militar brasileira e a mesma Folha de S. Paulo tambm fazem parte da reflexo seguinte: O estabelecimento dos fatos: rastros memoriais da Folha de

    S. Paulo durante o regime militar no Brasil, de Andr Bonsanto Dias, que procura analisar algumas vises sobre a atuao do jornal durante o regime, perspectivas essas que, para o autor, so apenas fragmentos de um passado e evidenciam uma memria sempre seletiva que , portanto, portadora de uma identidade prpria.

  • 17

    A Folha de S. Paulo continua a ser analisada no artigo 5 dessa primeira parte: A cobertura do caderno Ilustrada dos festivais independentes no Brasil, de Willian Correa que questiona os laos entre jornalismo e indstria cultural e como essa relao pode ser percebida na cobertura de uma produo cultural alternativa ou, nas palavras do autor, alm dessa lgica. O jornalismo cultural, s que o praticado na Argentina, o tema da reflexo

    de Reynaldo de Castro, intitulada Um exemplo de jornalismo literrio: a revista Tarja. Tal texto discorre sobre o impacto na mdia andina da revista Tarja, considerada pelo autor como o mais original produto grfico da histria da imprensa dos Andes e

    da Argentina, cujas influencias, 50 anos depois, ainda se fazem sentir no jornalismo

    daquele pas. Da revista Tarja para a revista Veja, do jornalismo cultural para o jornalismo ambiental. Assim, o stimo artigo dessa primeira parte - Aquecimento global e efeito estufa nas pginas de Veja: o tom de alarme e urgncia nos discursos que navegam pelo binmio esperana-desesperana, de Ariane Pereira trata de como, ao longo dos anos, de 2006 a 2009, a revista de maior circulao nacional,variou o tom dos discursos jornalsticos acerca do meio-ambiente, variando do caos climeatico as possveis solues para o planeta. Outra revista, a Grande Hotel, o objeto de estudo de Nncia Ceclia Ribas Borges Teixeira, em Imprensa feminina e representaes sociais: a mulher na revista Grande Hotel, oitavo artigo dessa primeira parte. Para a autora, as revistas femininas so

  • 18

    importantes fontes de pesquisa para quem quer estudar a evoluo da mulher dentro da sociedade. Afinal, para ela, essas revistas agem como espelhos do comportamento

    feminino e tambm como incentivadoras de mudanas de comportamento. Tambm falando de imprensa feminina, Karina Janz Woitowicz encerra a primeira parte de Fatos do passado na mdia do presente: rastros histricos e restos memorveis, com A resistncia das mulheres atravs da imprensa: feminismo e ativismo midtico nos anos 1970-80 no Brasil. Nele, a autora procura demonstrar como o movimento feminista, na medida em que se constitui como um espao de resistncia e luta em defesa das mulheres, passa a incorporar em suas aes diversas prticas relacionadas aos processos miditicos, promovendo, assim, o debate sobre as causas do feminismo a partir da publicizao de determinados assuntos na esfera pblica. Essas so os temas discutidos em Histria e memria na mdia impressa. Boa leitura!

  • 19

    Jornalismo paranaense no incio do sculo XX:O Dirio da Tarde escrevendo a histria da imprensa

    Karina Janz Woitowicz

    Jornalismo e construo da histriaA partir de uma perspectiva que entende a imprensa como prtica social e

    instrumento de constituio de modos de viver e pensar, o presente texto procura analisar as principais caractersticas (em se tratando tanto de forma quanto de contedo) do jornal Dirio da Tarde, mais antigo do Paran, nos primeiros anos do sculo XX, a fim de compreender o espao construdo pelo jornalismo para dizer a

    realidade em meio aos acontecimentos de uma poca.Sabe-se que a leitura de um jornal desgastado pelo tempo capaz de revelar

    uma srie de caractersticas de um contexto mais amplo sobre o qual este mesmo jornal atua. Portanto, apontando para uma via de mo dupla, pretendemos esboar possveis intromisses da imprensa na sociedade curitibana e tambm do povo nas pginas dos jornais, tendo em vista o dilogo entre histria e sociedade no jornalismo paranaense.

    Para estabelecer esta relao, torna-se necessrio recuperar historicamente o papel do jornalismo na sociedade brasileira, lanando mo de referncias pontuais sobre o modo como se fez jornalismo nesta poca e a importncia da imprensa

  • 20

    enquanto nico meio de informao e transmisso de idias e valores. Afinal, a

    passagem do sculo XIX que vivenciou grandes transformaes como a abolio da escravido, a proclamao da Repblica, a ampliao acelerada do mercado interno e a imigrao em massa, s para listar os momentos mais expressivos para o sculo XX corresponde ao perodo de formao da imprensa nacional, isto , da transformao de jornais que passavam de experincias isoladas e aventuras passageiras a grandes e estveis empresas. A imprensa peridica, nesse contexto, ao construir espaos urbanos e participar de mltiplas disputas sociais, pode ser pensada como uma experincia cultural, espao de idias e aes que se insere e se articula no cotidiano dos brasileiros.

    De maneira mais ou menos acelerada, as cidades passam a sentir as transformaes nos espaos urbanos e a efervescncia de idias e hbitos culturais. A imprensa, ao servir de mediadora e impulsionadora destas mudanas, torna-se uma dimenso importante da experincia social, um espao privilegiado para compreender os modos de viver e conviver em sociedade.

    Atravs da investigao de algumas marcas presentes na folha de maior circulao do Paran, busca-se perceber a presena do jornalismo na vida social e os traos de sociabilidade que ultrapassam os limites do papel.

    Forma e fazer jornalstico: a imprensa brasileira no incio do sculo XXPara melhor compreender as formas de ser e de dizer da imprensa paranaense,

    assim como a sua representatividade no perodo estudado, importante ter presente

  • 21

    um cenrio mais amplo da prtica jornalstica realizada no Brasil no incio do sculo XX, quando o pas vivencia o crescimento demogrfico e o processo de urbanizao

    das cidades. No por acaso, a imprensa se insere no cotidiano da sociedade e participa ativamente dos acontecimentos que marcaram a histria contempornea. Interessa-nos, portanto, levantar algumas referncias sobre este importante momento da imprensa em transio, identificando possveis marcas deste fazer jornalstico nas pginas do Dirio da Tarde e percebendo em que medida a imprensa traduzia tendncias, tenses e formas de sociabilidade.

    Mesmo considerando os diferentes ritmos de desenvolvimento do jornalismo no territrio nacional - e sendo o Paran ironicamente o ltimo estado a registrar a presena da tipografia, em 1854 -, sero utilizadas para esta recuperao histrica obras

    que registram e discutem as etapas evolutivas do jornalismo, mais especificamente no

    que se refere ao momento de passagem da imprensa artesanal para o modo industrial de se fazer jornalismo.

    De um modo geral, menciona-se que, at meados do sculo XIX, a imprensa, tanto a oficial ou oficiosa como a de oposio, caracteriza-se por um grande

    envolvimento com as disputas polticas, atuando como uma espcie de tribuna de luta contra ou a favor das diversas causas que empolgam o pas. Os jornais, ainda que no descartassem o interesse em vendas e anncios, eram feitos para veicular uma determinada mensagem, que podia ser de interesse pessoal, poltico ou literrio do prprio jornalista ou de algum grupo que ele representasse.

  • 22

    Conforme analisa Gisela Taschner, em estudo sobre o grupo Folhas,

    So muito freqentes, nos estudos sobre a imprensa, as referncias ao jornalista antigo, que escreve com paixo, porque gosta, ao seu carter no-profissional, no-burocrtico, sua vida bomia. Mas a lgica que preside a elaborao da mensagem pode ser tambm a lgica poltica: defender ou atacar determinada causa ou elemento do sistema de poder ou o prprio sistema de poder. (TASCHNER, 1992, p.29)

    Esta lgica pautada no posicionamento poltico confere ao jornalismo praticado at o final do sculo XIX um carter de parcialidade e comprometimento;

    no concretamente com a informao, mas com as alianas polarizadas nas correntes liberal e conservadora que agiam na imprensa. Segundo Francisco Rdiger, o regime jornalstico dominante, que no pode ser compreendido fora das relaes sociais vigentes, seguia as regras e finalidades ditadas pela racionalidade poltica (RDIGER,

    1993, p.45).A partir de fins do sculo XIX, algumas mudanas se fizeram sentir na

    imprensa. No apenas em se tratando do desenvolvimento das tcnicas de produo, com a utilizao da litografia e da gravura, como tambm na lgica de mercado

    que passou a reger a atividade jornalstica. As inovaes tecnolgicas - utilizao de mquinas rotativas, linotipos e surgimento das bobinas de papel - tambm influram

    sobre as caractersticas dos jornais, que evoluram para o formato standard e puderam ampliar suas tiragens, aproximando-se do modo de produo industrial. De outro

  • 23

    lado, os jornais, ao assumirem contornos mais empresariais, do incio a modificaes

    no processo do trabalho e no prprio estilo, adotando o jornalismo literrio noticioso (que teve seu apogeu entre os anos de 1890 a 1920) e especializando-se na discusso de assuntos de atualidade, desvinculando-se gradualmente do comprometimento doutrinrio.

    Sabe-se que esta imprensa pautava-se essencialmente nos telegramas oficiais

    e em uma forma romanceada de se fazer jornalismo, verificada pelo uso abusivo de

    adjetivos e por narrativas e retricas prximas ao discurso literrio (como crnicas e artigos). Foi a partir da dcada de 1880 que, dentro deste padro jornalstico, ocorreu a proliferao de jornais, com o crescimento de assinaturas e de anncios; neste perodo, intensificaram-se os rgos de imprensa, partindo da necessidade de fazer a

    opinio nas pginas dos peridicos.Nos fins do sculo XIX, um importante marco para o desenvolvimento da

    imprensa registrado: a imprensa artesanal estava sendo substituda pela imprensa industrial; a imprensa aproxima-se, pouco a pouco, dos padres e das caractersticas peculiares a uma sociedade burguesa (SODR, 1999, p.261). Passou-se, ento, a caracterizar o jornalismo como empresa, da pequena grande, e a compra da opinio tornou-se parte da rotina dos jornais. Sobre este momento de transio na forma e na feitura jornalstica, Luiz Garcia observa que foi preciso esperar pelo sculo XX para que nascesse o jornal/empresa politicamente mais ativo, mas j trabalhando a informao como mercadoria a ser vendida pelo seu valor intrnseco, e no pelo servio que representasse para quem

  • 24

    a veiculava (RITO, 1989, p.31). O movimento de expanso da imprensa torna visvel a participao da sociedade nas pginas dos jornais, que passam a servir como focos de formulao e articulao de concepes, prticas culturais e difuso de projetos.

    Dados e textos recuperados no estudo de Sevcenko possibilitam apreender algumas pistas sobre a estrutura social da nao na virada do sculo XX: o nmero de analfabetos no Brasil, segundo estatstica oficial, era, em uma populao de 14.333.915

    habitantes, de 12.213.356, isto , sabiam ler apenas 16 ou 17 em 100 brasileiros. Entre os pases presumidos de civilizados, difcil seria encontrar to alta proporo de iletrados, o que permite concluir que o que se produzia era uma literatura de poucos, interessada a poucos (SEVCENKO, 1983, p.88). O analfabetismo quase total da populao brasileira neste momento histrico impedia, assim, o desenvolvimento de um amplo mercado editorial.

    Em contrapartida, o desenvolvimento do jornalismo representa um fenmeno marcante na rea cultural, com repercusses sobre o comportamento da sociedade. Trata-se da idade de ouro da imprensa: o mercado em expanso, a adoo de novas tcnicas de impresso e edio, que permitiam o barateamento da imprensa, alm do acabamento mais apurado e o tratamento literrio e simples da matria intensificaram

    o consumo de produtos culturais pelo pblico. As mudanas experienciadas pela imprensa no perodo marcam um momento da histria do Brasil em que a sociedade e o periodismo passaram a manter vnculos de reciprocidade mais definidos, uma vez que o jornal traduz e participa do movimento

    de transformao da sociedade e permite intromisses do povo em suas pginas.

  • 25

    Interessa, portanto, compreender a escrita como espao em permanente relao com a poltica e a organizao dos brasileiros, servindo como campo de (re)constituio das dinmicas que regem a sociedade.

    Imprensa e cotidiano paranaense em (trans) formaoO presente texto convida a um mergulho no tempo atravs das pginas de

    jornais antigos. O cenrio? O ambiente da imprensa que se desenvolveu na capital paranaense nas primeiras dcadas do sculo XX. O foco de interesse? Descobrir como os diversos setores da sociedade produzem, traduzem e alteram a realidade atravs do trabalho com as notcias. O caminho? O prprio jornal, entendendo-o como agente dos processos de transformao por ele noticiados.1

    No entanto, para compreender e decifrar algumas marcas do jornalismo paranaense atravs da leitura do DT, torna-se necessrio situar historicamente o desenvolvimento da imprensa paranaense e a presena do jornal no contexto do perodo. Sendo o Paran o ltimo estado brasileiro a contar com o surgimento da imprensa - e tendo como registro deste marco a implantao da Typographia Paranaense em Curitiba, de onde saa, em 1 de abril de 1854, o primeiro nmero do jornal O Dezenove de Dezembro - somente em 1884 foi possvel conhecer a primeira folha diria. A partir desta data registra-se na histria da imprensa paranaense a proliferao de jornais de diferentes grupos e estilos, como os de imigrantes, clubes, folhas literrias e esportivas.

    1 Nos trechos transcritos do jornal Dirio da Tarde, preservou-se o sentido original dos textos, ainda que a grafia tenha sido adaptada linguagem atual.

  • 26

    Pode-se dizer que o jornal Dirio da Tarde acompanhou e participou de maneira significativa dos principais acontecimentos da histria do Paran desde o

    seu surgimento, em 18 de maro de 1889. Mais do que isso, o jornal representou um veculo de informao e transmisso da cultura, da sociabilidade e da trajetria poltica da capital paranaense, servindo como porta-voz de tendncias, tenses e posicionamentos da sociedade em momentos distintos da vida pblica.

    Osvaldo Pilotto reproduz o objetivo do fundador do Dirio da Tarde, Estcio Correia, ao fazer circular um jornal em virtude da necessidade que sente o nosso Estado de uma folha que seja, entre as lutas partidrias, um elemento ponderativo. Com um estilo popular, manifestando os problemas e as conquistas da capital e traduzindo o seu processo de desenvolvimento, o jornal consolida-se como a folha de maior circulao no Paran. Mesmo passando por mudanas de diretoria e linha editorial, o reconhecimento do jornal junto ao pblico transparece nos espaos dedicados s correspondncias e na cobertura dos fatos, em que o jornal anuncia estar sempre junto ao povo, refletindo o seu sentir, nos momentos de prazer como

    nos dias de luto e sofrimento (06/10/1913). Em relao aos demais jornais existentes na poca, o DT figura como o mais avanado tecnicamente, assim como o que mantm maior adeso e reconhecimento pblico. O prprio jornal, ao divulgar as qualidades de sua produo, aponta aspectos da formao e organizao da imprensa paranaense:

  • 27

    O Dirio da Tarde um jornal moderno, bem feito, noticioso, redigido com elevado critrio, variado e que a gente l com prazer e fica satisfeito de ter bem empregado os 100 ris de seu custo. O servio telegrfico nada deixa a desejar; os assuntos tratados que requerem a emisso de conceitos so feitos com elevao de anlise, sem paixes e a sua redao conhece o cumprimento do dever da imprensa no guiar o juzo poltico, o faz de modo a calar no esprito a verdade e a justeza dos seus comentrios. (04/12/1912).

    Neste quadro da imprensa em fase de expanso e desenvolvimento, o Dirio da Tarde assume representativo destaque, investindo em correspondentes de diversas cidades e noticiando os problemas e conquistas de diferentes regies do Estado. Pode-se dizer, baseando-se na representatividade do jornal na poca, que as relaes entre a imprensa e a sociedade paranaense vo se acentuando de tal forma que, em determinados momentos, o jornal define-se como mediador dos interesses do povo

    e dos poderes que orientam os rumos dos acontecimentos. Igualmente interessante analisar como a histria da imprensa contada e tematizada pelo prprio jornal. Ilustram esta questo os textos sobre a mudana de propriedade do jornal e do desenvolvimento tcnico que se operam no peridico; nesta perspectiva, o Dirio da Tarde anuncia a mudana de 4 para 8 pginas, sendo o primeiro do Estado a fazer a tiragem com este nmero. Acontece, neste momento, uma ampla reformulao do jornal, com a implantao e ampliao de agncias urbanas e suburbanas nos principais bairros da cidade e agentes no interior e no litoral. O jornal noticia com otimismo este marco para a imprensa, em 1912:

  • 28

    Esta folha inicia, hoje, a sua publicao com oito pginas, diariamente. , pois, o Dirio da Tarde o primeiro jornal, no Estado, que faz a sua tiragem com tal nmero de pginas. Era essa uma necessidade nossa e do pblico. Nossa, porque no podamos atender, convenientemente, ao numeroso servio de anncios com que somos favorecidos, bem como a outras publicaes; do pblico, porque no nos era dado, com quatro pginas apenas, satisfazermos os contratos de publicaes ineditoriais nem desenvolver a parte noticiosa. Fizemos agora aquisio de mais uma esplndida mquina linotipo Mergenthaler sistema americano, de maneira que, com as outras mquinas de composio que j possumos, encontramo-nos aparelhados para fazer frente a qualquer exigncia do servio. Estamos em negociaes com uma mquina rotativa de impresso, que ser a primeira que o Paran vai possuir. Com a rotativa, poderemos desenvolver ainda mais o Dirio da Tarde, que, como vem os nossos leitores, no poupa esforos nem sacrifcios para corresponder a aceitao pblica, tornando-se um jornal moderno e que procura, sempre, atender aos interesses do povo com o auxlio do qual vive, desdobrando-se em atividades pelo engrandecimento da terra paranaense. (27/09/1912)

    O texto traz, alm do desenvolvimento tcnico comemorado pelo jornal, referncias que mostram o prprio desenvolvimento da capital. Ao que tudo indica, a ampliao do servio revela uma demanda maior de anncios e notcias (nesta ordem, evidentemente), e da prpria formao de um pblico letrado que faz do jornal um espao de dilogo entre temas comuns.

  • 29

    Mas, que relao o jornal estabelece com a vida cotidiana dos paranaenses? De acordo com o recenseamento de 1900, divulgado por Romrio Martins (s/d), a populao total do Paran era de 331.509 habitantes, sendo a maioria residente em reas rurais, superando os 450.000 habitantes nos primeiros anos da dcada de 1910. Registros da poca recuperados por Slvia Arajo descrevem a capital como um centro onde existiam mais de 30 sociedades, clubes e instituies de ordem popular, seis colgios particulares, cinco livrarias, nove tipografias, uma litografia, oito jornais, dois

    dos quais eram dirios (ARAJO, 1992, p.39).Dados mais precisos ou impresses sobre o cenrio da capital e do Estado,

    enquanto assuntos presentes em praticamente todas as edies, aparecem tambm como registros do prprio desenvolvimento paranaense, evidenciando os laos entre o jornalismo e a vida urbana.

    Traos e caligrafias do Dirio da TardeAnalisar o modo como o peridico se estrutura e organiza seus assuntos e

    formas de dizer, no contexto da vida curitibana, pode ser representativo para uma leitura da imprensa paranaense. Stereotypado e impresso em machinas rotativas Marinoni, o Dirio da Tarde assume papel importante junto opinio pblica (letrada) especialmente em seu editorial na primeira pgina - que, via de regra, a matria principal -, discutindo polmicas ou acontecimentos relevantes da vida cotidiana. Um recurso marcante nessa imprensa o uso do telgrafo, que se expressa na abertura da notcia sob a nomeao de Pelo Telegrapho, um servio especial do jornal. As

  • 30

    notcias por correspondncia, tanto nacionais quanto internacionais, ocupavam uma parte considervel, pois o peridico mantinha correspondentes em diversas cidades do Estado como Castro, Ponta Grossa, Paranagu, etc que informavam sobre poltica e assuntos policiais, em sua maioria, ou reproduziam notcias nacionais, do exterior ou anncios oficiais.

    Outro recurso utilizado pelos jornais da poca era a citao/transcrio do noticirio de outros rgos de imprensa, fossem eles da prpria cidade, fossem do interior, de outros estados ou pases. O Dirio da Tarde tem como principais fontes os jornais O Paiz e Correio da Manh, ambos do Rio, que desse modo repassam informaes sobre as decises e os fatos recentes da capital federal. Vale lembrar que, no menu dos jornais, a literatura tambm no podia faltar. Vinha sob a forma de textos avulsos, em verso e prosa, ou de folhetins que se revelaram uma febre na imprensa. Para Maria Cres Spnola Castro, no ensaio A aventura da imprensa, os folhetins so a expresso do atraso tcnico dos jornais brasileiros, na medida em que preenchiam as lacunas das coberturas dos acontecimentos polticos que dificilmente poderiam ser acompanhados com as tcnicas disponveis (CASTRO

    et al., 1997, p.23).Verificando o processo de transformao da imprensa no qual ela evolui de

    uma fase poltica, panfletria e literria para uma fase em que o jornal assume o carter

    de empreendimento, pode-se identificar tambm no DT o crescimento do noticirio local ao lado das sees de telegramas, das crnicas, dos folhetins abordando

  • 31

    vrios aspectos da vida da cidade, explorando elementos do cotidiano. Aparecem sees dedicadas s reclamaes de moradores sobre problemas da cidade, registros de epidemias e indicaes de providncias tomadas pelo governo, notcias diversas de assuntos polticos, agenda cultural e coluna social. Enfim, um menu variado que

    inclui assuntos relativos vida nacional e local, traando o papel e as caractersticas da imprensa no momento em pauta.

    Queixas do povo construindo um espao pblico na imprensa O dilogo e a relao entre o jornal e a sociedade paranaense se faz presente no apenas na publicao de dados estatsticos sobre o desenvolvimento da capital, notcias polticas ou policiais e servios de utilidade pblica. H, tambm, um espao relevante de produo simblica que faz transparecer as imbricaes entre o pblico e a atividade da imprensa: a coluna Reclamaes, contendo queixas da populao sobre os mais diversos assuntos (caractersticas da cidade, deficincias dos bairros,

    etc), publicada diariamente no Dirio da Tarde. Reunindo problemas emergentes da cidade em formao, o jornal pautava temas de interesse pblico e se colocava ao lado das necessidades e aspiraes do povo, assumindo-se como porta-voz dos descontentamentos dos paranaenses. Os textos que seguem expressam claramente esta questo:

    Um dos maiores deveres municipais zelar pela higiene pblica. Entre ns, porm, esse dever tem sido descenado. Poderamos

  • 32

    apontar centenas de exemplos que reclamam a contra incria e o descaso municipais a respeito. Citemos, apenas, a falta de fiscalizao nos quintais, principalmente nos estabelecimentos que esto em contato com o pblico. Em algumas dessas casas, verdadeiros depsitos de imundcie, nem se pode penetrar, mesmo fazendo uso de desinfetantes, a no ser que esteja com o olfato estragado. Em muitas delas o lixo, os detritos de peixes e mariscos podres, so acumulados durante dias exalando odores. E quando vo retirar estes detritos, o mal cheiro tal que o quarteiro inteiro fica dele tomado. (02/07/1912).

    J que a nova cmara est empenhada em dotar a nossa capital dos melhoramentos de que ela necessita, acho oportuno o momento para solicitar dos senhores camaristas que dem um jeito a fim de arranjar um par de olhos e uma fossa nasal para algum dos empregados da higiene municipal. S assim pode ser que se extinga o foco de miasmas que o trecho da rua Marechal Deodoro. um martrio para as famlias que moram em casas que no tm quintal o problema da limpeza. Os carrinhos de lixo no tm dia nem hora certa para passar nas ruas e o servio feito ao arbtrio dos encarregados. (22/10/1912).

    Higiene pblica, lixo, mau cheiro, abastecimento de gua, molstias, calamento, criminalidade. Estes problemas so alguns dos assuntos tratados como reclamaes do povo nas pginas do DT. Trata-se de um forte lao que se estabelece com os leitores, tornando visvel o papel do jornal junto aos interesses coletivos. o peridico agindo como porta-voz dos problemas e mobilizador das conquistas que se operam entre o dizer e os seus reflexos.

  • 33

    Em meio a este campo polmico, os interesses do povo ganham sentidos variados. Polarizada a discusso entre os problemas e benefcios do assunto de maior relevncia na poca, no demoram a aparecer opinies sobre as condies da estrada de ferro e os grupos ou pessoas atingidos e descontentes. Admitindo que comeou a reao popular, o jornal publica reclamaes em forma de cartas de leitores, como a missiva que segue, escrita por trabalhadores da estrada de ferro So Paulo-Rio Grande2, em que denunciam as injustias que vinham sofrendo.

    Muito agradecemos a publicao da missiva que vos enviamos. Ns procuramos, dirigindo-nos ao Dirio da Tarde, registrar as injustias de que somos vtimas, ns que trabalhamos de sol a sol e que, alm de ganharmos uma insignificncia, recebemos a paga dos nossos servios, depois de 10, 15, 20 ou mais anos, com um ponta p, sem a menor considerao. E isto sem o menor motivo, a ttulo de economia ou para encostar qualquer estrangeiro que aqui aponta. As coisas no podem continuar assim e, como j dissemos, no ser de admirar que, de um momento para outro, tomemos a nossa justa represlia. Ao Dirio da Tarde, pois, deixamos aqui o nosso reconhecimento. (08/03/1913)

    Ao permitir a participao de diversas vozes no campo polmico (MOUILLAUD, 1997) construdo na imprensa, o jornal participa das principais disputas que se operam no cotidiano da sociedade, mostrando seu papel e sua fora 2 Trata-se de uma obra executada pela empresa americana Brazil Railway Company, de Percival Farquar, que recebeu 15 km de terras de cada lado da ferrovia para colonizar a regio, empregando para isso muitos trabalhadores que foram expulsos de suas terras.

  • 34

    na definio e visibilidade dos acontecimentos. Entre palavras elogiosas, denncias,

    queixas e campanhas de opinio pblica, o Dirio da Tarde encena sua atuao na vivncia dos diversos grupos sociais que nele ecoam.

    O jornal dizendo a cidade Neste modo peculiar de organizar temas que devem ser digeridos pela sociedade, a capital e seus traos de urbanidade tambm se vem tematizados nos textos dos jornais. As crnicas, ainda que de forma tmida, comeavam a aparecer nas pginas do Dirio da Tarde, valorizando o espao literrio e divulgando impresses diversas sobre o ambiente social. desnecessrio lembrar que no perodo estudado o discurso jornalstico se constri, sobretudo, pela ao do cronista que, tematizando a vida cotidiana, com especial preferncia pelos costumes e pela poltica, produz a visibilidade de certos acontecimentos que, de outra forma, seriam inacessveis ao habitante da cidade. Usando o registro ficcional, as crnicas veiculavam as impresses

    do autor acerca do cotidiano da cidade, impingindo-lhe um tom crtico atravs da ironia ou do humor.

    O DT esboa, em sua coluna Dizendo, um retrato da capital paranaense, atravs de artigos e crnicas sobre o desenvolvimento scio-cultural da cidade. Assuntos, polmicas e valores morais fazem parte da agenda bsica de temas que entram diariamente nas pginas do jornal, assim como conquistas que conferem capital o clima de progresso. Interessante perceber que o jornal atualiza notcias e debates em

  • 35

    torno de assuntos que envolvem a formao do povo e, na maioria das vezes, assume carter civilizador, apontando os defeitos (sociais e morais) da populao e indicando os caminhos do progresso. Nesta perspectiva, preciso lembrar que as primeiras duas dcadas do sculo XX experimentaram a vigncia e o predomnio de correntes realistas de ntidas intenes sociais, inspiradas nas linhas intelectuais caractersticas da Belle poque (fundamentada no trip cincia/raa/civilizao). Sevcenko analisa o papel da literatura difundida atravs de livros, de jornais e folhetins como um importante espao para a manifestao das tendncias da poca atravs do confronto e divulgao de idias.

    Nesse sentido, observa Mrian Cristina Freire Santos no ensaio intitulado A hora e a vez dos demi-mondains, os homens de imprensa viam-se autorizados a proceder civilizao da sociedade, atravs dos meios de que dispunham, sendo, portanto, o jornal o instrumento de divulgao de textos educativos que enfocavam os mais variados assuntos (CASTRO et al., 1996, p.164). Assim, as cincias, a msica, o teatro, a literatura, as belas artes, a religio, a moda, etc elementos considerados civilizadores eram tratados de forma a promover o enriquecimento intelectual e moral do pblico leitor.

    Est novamente a imprensa patrcia preocupada com a triste situao moral da cidade, mudada, quase que de uma hora para outra, da patriarcal vida provinciana em que atravessou meio sculo para essa compostura de terra cosmopolita e alegre. Est

  • 36

    a imprensa apontando as chagas e pedindo ao poder competente remdio eficaz para que no se contamine a sociedade toda. (..) justo que se revolte o jornalismo contra o mal. A sua misso social muito mais elevada do que essa limitada pelos interesses em conflito, oriundos do egosmo dos homens. As questes morais devem atrair mais a ateno dos combatentes da imprensa do que esses desequilbrios momentneos dos oramentos e essas vidas passageiras dos polticos da Repblica. (18/10/1913)

    O prprio jornal confirma a sua importncia e interferncia nas formas de sociabilidade e na publicizao de questes que envolvem a (trans) formao da sociedade nas primeiras dcadas do sculo XX atravs dos textos que faz circular. Campo de ao e expresso de idias e tendncias, a imprensa se confunde com a vida cotidiana paranaense, traduzindo e produzindo imagens do processo de organizao da sociedade no perodo considerado.

    Impresses e crticas do jornalismo Algumas referncias encontradas no jornal evidenciam, em um primeiro momento, que a relao do peridico com determinados segmentos da sociedade no acontece de maneira to harmnica quanto fazem parecer as cartas e colaboraes dos leitores. H, tambm, uma srie de crticas ao modo como se faz jornalismo, ao apoio e/ou dependncia de determinadas foras que incidem sobre a prtica jornalstica e ao ataque discursivo que se estabelece entre os jornais da capital, do Estado ou mesmo do Pas.

  • 37

    A divulgao das rotinas de produo do jornal, nesse aspecto, relevante para ilustrar em que medida o posicionamento editorial do peridico respaldado ou condenado pelo pblico. Igualmente interessante descobrir atravs da leitura de textos jornalsticos a imagem predominante que se tem da figura do jornalista.

    Como algum que preza pela verdade ou que se deixa comandar por foras maiores do poder, o profissional costuma aparecer em crnicas e artigos que avaliam seu

    comprometimento com os fatos nas mais diversas situaes. O texto que segue, sob o ttulo O jornalista e o jornal, aborda elementos que permitem vislumbrar o consenso produzido em torno da atividade da imprensa.

    No h, seguramente, hoje em dia, profisso mais invejada e tambm mais denegrida do que a de jornalista. O pblico fala muito dessa classe, com admirao ou com despeito, mas, na verdade, conhece-a bem pouco. (...) rgo complexo da vida moderna, motor, s vezes, do progresso, o jornal um fator essencial de nossa poca. E todavia, qual o pai de famlia que no teme, ao proferir a palavra jornalista. Meu filho jornalista! Minha filha casada com um jornalista! Ora, vamos, ser uma profisso esta de conhecer tudo e toda a gente, beber em companhia de polticos e apertar a mo de bandidos!

    Entretanto, o pequeno reprter , em geral, um tipo enrgico e leal e, s vezes, at herico. E nenhum leitor, ao correr de manh os olhos pela folha de sua predileo, suspeita sequer da esforada perseverana e da audcia inteligente de que o reprter d mil provas no desempenho da sua funo. (27/09/1913)

  • 38

    Uma espcie de defesa por vezes apaixonada do pequeno reprter parece pautar a imagem do jornalista idealizada pelo Dirio da Tarde. Alis, sobre esse aspecto, pode-se retomar a noo que o termo campo polmico representa ou se deixa expressar nos prprios modos como o jornal tambm tematiza a imagem que alguns setores e grupos sociais tm dos ento profissionais da comunicao impressa.

    A expresso de perfis contraditrios do jornalista (que diferenciam o pequeno

    reprter dos j entregues aos vcios da profisso) tambm coincide com as

    caractersticas presentes na fase de consolidao da imprensa empresarial, no que diz respeito ao envolvimento do jornalista com os interesses em jogo. Contudo, alguns textos insistem em reafirmar o papel do profissional como um portador de notcias

    e um gerenciador de anncios, destacando uma funo sem vnculo com os desejos pessoais e conflitos com a linha editorial da empresa.

    Percebe-se, portanto, que quando o jornalismo discute o prprio jornalismo seja pela imagem dos profissionais ou por meio de crticas de leitores e determinados

    grupos sociais o jornal passa tambm a tematizar sua prpria conduta, na ousada busca de um padro de crtica e norma de leitura sobre a imagem do profissional da

    notcia. A partir deste enfoque, pode-se dizer que o jornalismo constri um espao prprio para testemunhar os acontecimentos seja atravs da opinio, do atrelamento a determinados segmentos ou mesmo traduzindo as tendncias e conflitos de

    grupos e interesses. Atravs da observao da imprensa da poca, o jornalismo explode: em seu formato, em sua atuao direta ou indireta, como porta-voz das

  • 39

    tenses governamentais e, ainda, como palco de divulgao das idias que marcam o pensamento social de um determinado momento histrico.

    O Dirio da Tarde na memria do jornalismo paranaense Ao investigar as diversas maneiras de dizer a construir a realidade, procurou-se demonstrar que o jornalismo consiste em uma prtica social, ligada ao movimento histrico de formao e informao da esfera pblica. No momento em que o prprio jornalismo conta sua histria por meio das pginas impressas, revela que a prtica discursiva integra uma sociedade, sua histria. Do mesmo modo, ele tambm histria, ou melhor, ele est mergulhado em historicidade. No entanto, este poder de assero sobre a realidade verificado ao longo da trajetria do DT est condenado a cair no esquecimento. Depois de mais de um sculo de atuao, um dos jornais mais antigos do Estado apresenta-se bastante esquecido na histria. De fundamental importncia em momentos de disputas polticas e decises de interesse pblico, o peridico, desde a dcada de 1950 sob a propriedade de Francisco Cunha Pereira Filho, do grupo Gazeta do Povo, foi aos poucos, no incio do sculo XXI, sendo apagado da memria da capital paranaense.

    De acordo com o jornalista da Gazeta do Povo e ento editor do Dirio da Tarde, Rui Joo Staob3, que trabalha no grupo desde 1973, o jornal entrou para a rede como o segundo maior, na dcada de 1950, assumindo um estilo crtico e popular, 3 Entrevista realizada por telefone em abril de 2001.

  • 40

    privilegiando assuntos policiais, esportivos e de utilidade pblica, que teve seu auge na dcada de 1970, quando atingiu uma tiragem de 16 mil exemplares. A trajetria de um jornal crtico, que marcou presena na vida dos paranaenses, est encerrada, relata Staob.

    Adotando o formato tablide a partir de 1983, o jornal entrou no sculo XXI com uma tiragem estimada em mseros 400 exemplares, circulando de tera a sexta-feira e reproduzindo textos redigidos pela equipe da Gazeta do Povo. Folhear duas verses diferentes de jornalismo que se distanciam em mais de um sculo consiste em apreender o sentido histrico do trabalho discursivo e perceber, da mesma forma, o modo como o jornalismo traduz as necessidades e tendncias sociais de cada poca. Embora tenha desaparecido da vida da capital, o jornal preserva em suas pginas momentos expressivos da histria do Estado. Assim, percorrendo temticas e formas de dizer do DT no incio do sculo - assim como a relao que estabelece com a sociedade, as intromisses do povo nas pginas impressas e o acompanhamento e participao da imprensa no processo de desenvolvimento e descoberta da capital paranaense -, acaba-se por entender que a prtica discursiva do jornalismo, sob a alegao de estar informando, opinando e interpretando, vai constituindo sentidos e produzindo histria... uma percepo fundamental para a compreenso e o questionamento da produo e dos efeitos de sentido construdos nas diversas situaes em que os acontecimentos so falados, representados e repercutidos nos jornais histricos.

  • 41

    Referncias

    ABREU, Alzira Alves. A imprensa em transio. Rio de Janeiro: Fundao G. Vargas, 1996.

    ALBERT, Pierre e TERROU, Fernand. Histria da Imprensa. So Paulo: Martins Fontes, 1990.

    ALSINA, Miquel Rodrigo. La construccin de la noticia. Barcelona: Paids, 1989.

    ARAJO, S. e CARDOSO, A.. Jornalismo e militncia operria. Curitiba: UFPR, 1992.

    BALZAC, Honor de. As iluses perdidas. So Paulo: Abril Cultural, 1978.

    BURKE, Peter (org.) A escrita da histria: novas perspectivas. So Paulo: Unesp, 1992.

    CALDEIRA, J. et al. Viagem pela Histria do Brasil. 2.ed. So Paulo: Cia das Letras, 1999.

    CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e histria do Brasil. So Paulo: Contexto, 1988.

  • 42

    CASTRO, Maria Cres et al. Folhas do Tempo Imprensa e cotidiano em Belo Horizonte: 1895-1926. Belo Horizonte: UFMG; Associao Mineira de Imprensa; Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 1997.

    CRUZ, Heloisa de Faria. So Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana 1890-1915. So Paulo: Educ; Fapesp; Arquivo do Estado de So Paulo; Imprensa Oficial SP, 2000.

    DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette Mdia, Cultura e Revoluo. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.

    GARCIA, Luiz. Era uma vez... In: RITO, Lucia (org.). Rio de Janeiro: Imprensa ao vivo, 1989.

    HUDEC, Vladimir. O que o jornalismo? Essncia, caractersticas, funes sociais e princpios do seu desenvolvimento. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1980.

    MARTINS, Romrio. O que o Paran; a terra e o homem. Curityba: Typografia Paranaense, s/d.

    MELO, Jos Marques. Para uma leitura crtica da comunicao. So Paulo: Paulinas, 1985.

  • 43

    MOUILLAUD, Maurice e PORTO, Srgio Dayrell (org.). O Jornal da forma ao sentido. Braslia: Paralelo 15, 1997.

    PILOTTO, Osvaldo. Cem anos de imprensa no Paran (1854-1954). Coleo Estante Paranista. Curitiba: Instituto Histrico, Geogrfico e Etnogrfico Paranaense, 1976.

    RDIGER, Francisco Ricardo. Tendncias do Jornalismo. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1993.

    SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Misso - Tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

    TASCHNER, Gisela. Folhas ao vento Anlise de um conglomerado jornalstico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

    TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: Questes, teorias e estrias. Lisboa: Vega, 1995.

    VERN, Eliseo. A produo de sentido. So Paulo: Cultrix, 1980.

  • 44

    VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. 4.ed. Braslia: UnB, 1998.

    Fonte: Arquivo microfilmado do Dirio da Tarde, 1912- 1916 (Biblioteca Pblica do

    Paran)

  • 45

    Estado do Iguau: apontamentos sobre personagens relevantes e coberturas regulares da Imprensa

    Gabriel BaldisseraMarcio Fernandes

    O que era para ser o imponente Estado das Misses se transformou na bandeira do Estado do Iguau, acabou sendo Territrio do Iguau por trs anos e, subitamente, chegou ao limbo, extinto que foi (o Territrio) apenas trs anos depois de criado, quando o Brasil, ainda abalado emocionalmente pelas cises e cicatrizes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), retomou o discurso da unidade geogrfica. O

    ano da extino em questo era 1946 e, naqueles instantes, chegava ao fim um acalanto

    que remontava pelo menos 120 anos antes, quando Antnio Carlos de Andrada e Silva propunha a diviso das ento Provncias imperiais. A causa ainda sobreviveria pelos 50 anos seguintes, entrando em declnio, ao que parece definitivo, no final do sculo

    20 e tendo seu pice com a recente morte (em maro de 2009) de Edi Siliprandi, provavelmente a maior liderana da histria do Iguau. Neste cenrio, o que o presente artigo perpassa participao da Imprensa brasileira no sonho do Estado do Iguau, em um apanhado histrico que chega contemporaneidade, ora defendendo a ciso geogrfica e econmica ora criticando

  • 46

    a proposta. Quando, no exerccio da presidncia da Repblica, Eurico Gaspar Dutra assinou o documento que interrompia a trajetria do Territrio do Iguau, estava o chefe da Nao muito mais do que encerrando um ciclo que Getlio Vargas, seu antecessor, iniciara em 13 de setembro de 1943, atravs do decreto presidencial 5.812. Iniciava-se naquele instante um debate que teria na Mdia brasileira um de seus espaos prediletos. Este estudo apresenta registros feitos por jornalistas catalogados em duas obras fundamentais para se compreender a causa separatista: o livro O Territrio do Iguau no contexto da Marcha para Oeste, de Srgio Lopes (Edunioeste), com edio original de 2002 e reedio em 2008; e a dissertao Estado do Iguau: regionalismo em questo, de Licrio de Oliveira (1999), apresentada no Instituto de Filosofia e

    Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Juntos, os dois estudos trazem indicaes de 44 veculos brasileiros (Anexo I) que, em distintas pocas, se ocuparam do assunto desde aqueles de circulao regional, como Dirio do Oeste (Cascavel, interior paranaense), at a prestigiosa Folha de So Paulo.

    As primeira sementes da tentativa de partilha, pr-Imprensa As dcadas anteriores aos acontecimentos da dcada de 1940 haviam sido prdigas em escaramuas pr e contra a diviso das terras dos Estados. Jos Jlio Cleto da Silva, jornalista, vereador, prefeito, coronel da Guarda Nacional, historiador, personagem central desse passado lotado de acontecimentos. Deputado estadual

  • 47

    no PR no binio 1916-1917, combateu intensamente as negociaes que envolviam as divisas de SC com o PR e que haviam resultado na Guerra do Contestado (1912-1916). Rebelado intelectualmente, em outubro de 1917, conta Fernando TOKARSKI (2002, p. 58), lanou a pblico a proposta do Estado do Iguau. No obteve muito eco, mas foi o suficiente para entrar nos anais do assunto.

    Antes dele, ainda no sculo 19, quando o Brasil mal dispunha da chamada independncia de Portugal, por volta de 1823, Antonio Carlos de Andrada e Silva (figura expoente do Imprio) j propunha uma rediviso territorial. Sua principal

    justificativa era de que havia estados com rea territorial desproporcionalmente grande

    e outras com rea muito pequena. Temia ele era que, no futuro, os Estados grandes exercessem predomnio poltico e econmico sobre os demais. Da, a necessidade de reorganizao territorial, defendia Andrada. Mas a proposta no seguiu adiante na Corte. Avanando no tempo, chegamos at 15 de novembro de 1889, data fatdica para o Imprio. Por estas pocas, era o Oeste do Paran e de Santa Catarina (futura base do improvvel Estado do Iguau) um descampado praticamente sem povoamento. Curiosamente, dois meses antes, havia partido de Guarapuava (na zona central do Paran) uma expedio que pretendia criar a Colnia Militar de Foz do Iguau. O grupo levou dois meses para l aportar. Foz se desenvolveria lentamente e, nos anos anos 30, o termo Estado do Iguau retomado. Em uma tentativa de nacionalizar a regio Oeste do PR, o

  • 48

    Governo do Estado envia para a regio um grupo policial chefiado pelo tenente da

    PM Gregrio Resende. Ao mesmo tempo, Othon Mader nomeado prefeito da nova cidade. No mbito federal, Getlio Vargas nomeou uma comisso encarregada de verificar in loco a pertinncia da criao do Territrio do Iguau. Liderado por Zeno

    Silva, o grupo via com simpatia a causa que retalharia Paran e Santa Catarina. No PR, o governo local tambm criou uma equipe mas para rebater os argumentos de Zeno. J em 1934, a Constituio Federal proporcionaria contedo para renovar o debate, ao estipular que Territrios com mais de 300 mil habitantes dotados de estrutura para manuteno dos servios pblicos poderiam se transformar em Estados. Mais dois acontecimentos seriam relevantes para o processo que desembocaria no ato presidencial de 1943, dentre tantas propostas havidas de reordenamento espacial do Brasil naqueles anos: o estudo A rediviso poltica do Brasil, de 1937, escrito por Teixeira de Freitas, do Ministrio da Educao e Sade Pblica, e a composio da Comisso Especial de Faixa de Fronteiras, em 1939, tambm pelo governo federal. No primeiro caso, alis, Teixeira propunha a fuso de PR e SC, com o novo nome de Iguau, tendo Curitiba como capital. A viso de Teixeira, conta LOPES (2008, p. 33), era lastreada no que defendia o capito do Exrcito Joo Segadas Viana desde 1929, de criar 18 Estados e 10 Territrios. Nos anos seguintes, Teixeira de Freitas se dedicaria bastante ao estudo da criao de diversos Territrios pelo Brasil, em especial, seguindo as posies de outros pensadores, mas zonas menos povoadas como a rea do Iguau. Estava sendo solidificada, assim, a Marcha para Oeste, que tanto agradava Getlio Vargas.

  • 49

    A entrada da Mdia com suas coberturas regulares As coberturas regulares dos meios de Comunicao do Brasil e, principalmente, do Sul brasileiro acerca do tema Iguau iniciam na dcada de 30, atingindo seu pice em trs momentos, ao longo dos 60 anos seguintes: o perodo da existncia do Territrio (1943-1946); a retomada da causa, no final dos anos 60; e a mais recente e fracassada

    campanha, no comeo da dcada passada. Ora a favor, ora contra, a Imprensa regional sobretudo exerceu papel essencial sobretudo na dcada de 60, quando despontam diversas lideranas no PR Edi Siliprandi a maior delas. No que tange alternncia dos posicionamentos polticos dos jornais, por exemplo, um caso exemplar vem dA Voz de Chapec, peridico do Oeste catarinense, para quem, diante da provvel extino do Territrio em meados de 1946, conforme OLIVEIRA, um erro estava para ser cometido pelo presidente Dutra.

    A criao dos Territrios (...) no foi resultado de improviso, ao contrrio, resultou de cuidados estudos das condies de nossas zonas fronteirias com pases estrangeiros (...). Contra a indiferena de todos antigos os governantes catarinenses e paranaenses pelo Oeste de seus respectivos territrio, o governo federal trouxe assistncia, estradas, escolas, fazendo mais em dois anos do que aqueles em todos os tempos... abriu-se um surto de progresso, de animao dos negcios, de desenvolvimento industrial (...). (OLIVEIRA, 1999, p. 43)

  • 50

    No final daquele ano, A Voz estava mais branda em seu discurso, atestando que o nico acerto da empreitada havia sido a nomeao do engenheiro Serafim

    Bertaso como prefeito local, pelo governador Garcz do Nascimento. E, em texto de 5 de janeiro de 1947 (ano eleitoral, alis), o discurso era outro, como relembra OLIVEIRA, em transcrio:

    Com a criao do Territrio, os habitantes deste municpio, tomaram-se de esperanas (...) Entre os quais estvamos ns, porque tnhamos pela frente a oportunidade sempre desejada de uma administrao apropriada. A impresso dominante atualmente, entretanto, que tudo ficou em vs promessas e nada mais. Alguns empreendimentos (...) foram feitos por iniciativas particulares. (OLIVEIRA, 1999, p.44)

    Por fim, em julho daquele ano, em nome de interesses coletivos, A Voz se derramava em elogios ao governo catarinense, que retomara a administrao de Chapec, com o trmino da curta vida do Territrio. Adiante no tempo, chegamos aos anos 60, quando Rdio tem papel relevante na difuso da causa iguauense. Logo no comeo de 1962, um manifesto da Cmara de Vereadores de Dionsio Cerqueira considerada a primeira manifestao de peso naquele momento pela retomada do ideal separatista. Passo seguinte e um grupo liderado pelo ento estudante de Direito Edi Siliprandi, de Pato Branco, organiza a Codei, Comisso para o Desenvolvimento e Emancipao do Iguau, encarregada de

  • 51

    aes polticas e legais em busca de legitimar o novo Estado pretendido, que abarcaria 69 mil quilmetros quadrados. A partir dali, o que se viu at 1968, quando famigerado Ato Institucional n. 5 (AI-5) promulgado pela ditadura militar que administrava o Pas, foi um alvoroo s, a favor e contra a campanha separacionista. E no mesmo ano de 1968 que acontece o 1. Congresso das Foras Vivas Pr-Criao do Estado do Iguau, em Pato Branco, onde despontam lideranas como Luizinho de Grandi, igualmente estudante de Direito naquele instante e que, adiante, se transformaria em um respeitado reprter e dono de jornais no Rio Grande do Sul. OLIVEIRA (ibidem, p. 67) conta que a Rdio Guaba, de Porto Alegre, liderou uma rede de 42 emissoras do Sul que transmitiram o 1. Congresso, conforme registrado no jornal curitibano Dirio do Paran, de 21 de abril de 68. O cenrio radiofnico se repetiria em julho, quando do 2. Congresso, em Xanxer (SC). Detalhe: as transmisses eram pagas pelo grupo de separatistas. A poderosa Guaba, um colosso fundado 11 anos, havia sido contratada comercialmente, com recursos advindos de doadores da causa do Iguau. Na outra ponta do processo, o Governo do PR, por exemplo, igualmente lanava mo da Mdia para propalar sua estratgia de defesa. O governador Paulo Pimentel (empresrio de Comunicaes, alis) mandava noticiar com alvoroo a inaugurao de usinas hidreltricas, alm de investimentos em Sade e Agricultura. No obstante, em maro de 1968, inaugura o pavimento da rodovia BR-277, de Ponta

  • 52

    Grossa a Foz do Iguau, uma antiga aspirao do Oeste paranaense. Neste desenrolar de acontecimentos, um peridico curitibano teve funo importante, a favor do no-separatismo: a Gazeta do Povo, tradicional veculo fundado no comeo do sculo 20. Mas, como dito h pouco, o AI-5, que ampliava o poder dos governos, especialmente da Unio, fez o movimento frear bruscamente. Nova tentativa somente seria realizada na dcada de 80, quando a ditadura comea a se esgotar.

    A tentativa final

    Epicentro geogrfico paranaense da causa separatista, a cidade de Cascavel

    era a base de Edi Siliprandi anos anos 80. A partir dali, ele se lanaria candidato a deputado federal em 1990, com sucesso, levando o mote pr-Iguau para a privilegiada tribuna do Congresso Nacional, onde, em 1991, protocolaria uma proposta que levaria trs anos para ser apreciada e enterrada. Em 1987, a revista Oeste, da mesma Cascavel, publicava que as aspiraes do grupo de Siliprandi estavam reflorescendo, trs anos depois da reabertura poltica

    brasileira. A mesma publicao, alis, se ocupava do tema desde 1985, pelo menos, conforme levantamento de OLIVEIRA (1998). O jornal O Fronteirio, de Dionsio Cerqueira, era outro da lista. Ainda em Cascavel, outra tradicional publicao, jornal Hoje, costumava dedicar espaos largos ao tema, como o texto pgina 7 de 12 de outubro de 1985, que estampava Estado do Iguau chega a 120 municpios do PR e SC.

  • 53

    No distante Rio Grande do Sul, no municpio de Santa Maria, Luizinho de Grandi, ento proprietrio do dirio A Razo (o mais importante da regio Central do RS), fazia sua parte. Um texto de agosto de 1986 dizia que a criao do Estado do Iguau era apenas uma questo de tempo. A oposio ao grupo de Siliprandi, claro, tambm agia. A Gazeta do Povo de 15 de junho de 1987 veiculava o material No existem razes para o Iguau: Paran continua unido. Estado do Iguau: um erro evitado. Siliprandi, alis, nem estava ainda na Cmara Federal promovendo seu iderio mas o assunto j ganhava repercusso nacional: OLIVEIRA indica que, em 1987, a revista Viso (um dos semanrios mais importantes do Pas poca, ao lado de Veja) publicou reportagem sobre o assunto em agosto, por exemplo. Nos anos seguintes, aponta o pesquisador, diversos seriam os veculos, sobretudo impressos, a fomentar o debate, a favor ou contra o Estado do Iguau. Na lista, O Estado (Florianpolis/SC), A Notcia (Joinville/SC), O Iguau (Chapec/SC), Folha de So Paulo, Dirio da Manh (Chapec), Jornal do Movimento (Laguna/SC), Indstria e Comrcio (Curitiba), Correio do Paran (Pato Branco), dentre outros. E, nesta terceira e derradeira fase do movimento, o clmax seria atingido no final de

    maro de 1993, quando a Cmara dos Deputados rejeitou a proposta de plebiscito em tramitao na Casa, para consultar a populao sulista sobre a criao do novo Estado. Em 1. de abril daquele ano, jornais brasileiros amanheceram com a manchete que informava a negativa da Cmara, levando para o esquecimento, dali em diante,

  • 54

    discursos epopicos como o do deputado paraibano Vital do Rgo, registrado que est nos anais do Legislativo brasileiro, folha 6553 do Dirio do Congresso Nacional:

    No estamos emancipando o Estado do Iguau, estamos querendo que se defina urgncia urgentssima, para que esta Casa diga se o povo do Iguau tem ou no o direito de expressar o seu pedido de emancipao para ser livre, como livres somos todos ns, cidados brasileiros, sem as mordaas, sem as convenincias, sem as vicissitudes, sem as imposies dos que querem o tempo todo a submisso dos que precisam de asas para voar. Somos condores, sr. Presidente (da Cmara dos Deputados), condores da liberdade. Os espaos brasileiros comportam comportam todos os nossos vos e outros vos dos que querem voar, pois quem no for condor, quem no tiver penas para voar e quiser ter os vos baixos dos bacuraus, que fique nas suas prprias insignificncias, mas no tolha as aspiraes dos que querem voar.

    Vital do Rgo deixou a tribuna aplaudido, conforme consta dos anais. Mas no foi o suficiente. A proposta no passou pelo Legislativo. Dali em diante, a Imprensa

    ainda cobriria pelos anos seguintes o tema, mas sem o mesmo discurso apaixonado e mesmo sem tanta regularidade. Destaque quantitativo seria dado somente 16 anos depois, em maro de 2009, quando da notcia da morte de Edi Siliprandi, de cncer, aos 75 anos. Marcelo Bastian, seu sobrinho, em depoimento para a Central Gazeta de Notcias (2009), espelharia bem a viso de seus apoiadores polticos:

  • 55

    uma perda muito grande para Cascavel e regio. Seu Edi foi deputado, lutou por essa regio e trouxe recursos para c. Foi o mentor e o grande guerreiro do Estado do Iguau. E pelo fato de Edi ser uma cabea pensante, um empreendedor ativo, que movimentou economicamente a regio oeste e sudoeste e tambm pelo fato de ter no currculo at a criao de municpios no Rio Grande do Sul. A histria e os feitos dele so vastos.

    Referncias

    ANDRADE, Theives. Edi Siliprandi morre em So Paulo. Disponvel em: http://www.cgn.inf.br/cgi-bin/UltimasNoticias?noticia=1006047;modelo=completa_1. Acesso em 10 abr 2009.

    CONGRESSO NACIONAL, Braslia, Congresso Nacional. 1993. Contm transcries das sesses ordinrias e extraordinrias. Disponvel em: http://www.camara.gov.br. Acesso em 02 abr 2009.

    LOPES, Srgio. O Territrio do Iguau no contexto da Marcha para Oeste. Cascavel: Edunioeste, 2008.

    MARTINS, Herbert Toledo. A fragmentao do territrio brasileiro: a criao de novos Estados no Brasil. Caderno CRH, Salvador, n. 35, p. 263-288, jul-dez 2001.

  • 56

    OLIVEIRA, Licrio. Estado do Iguau: o regionalismo em questo. 1998. Dissertao (Mestrado em Cincia Poltica). Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, Unicamp, Campinas.

    TOKARSKI, Fernando. Cronografia do Contestado Apontamentos histricos da regio do Contestado e do Sul do Paran. Florianpolis: Ioesc, 2002.

    Jornais Consultados

    A Manh, CuritibaA Manh, Rio de JaneiroA Notcia, JoinvilleA Razo, Santa MariaA Voz da Fronteira, So Miguel do OesteA Voz Tocantinense, PalmasCorreio da Manh, Rio de JaneiroCorreio do Paran, Pato BrancoCorreio do Povo, Porto AlegreDesterro, FlorianpolisDirio Catarinense, Florianpolis

  • 57

    Dirio da Manh, ChapecDirio da Tarde, CuritibaDirio dos Campos, Ponta GrossaDirio do Oeste, CascavelDirio Popular, CuritibaEdio do Brasil, Belo HorizonteExpresso, FlorianpolisFolha da Manh, So PauloFolha de Londrina, LondrinaFolha de So Paulo, So PauloFolha do Oeste, GuarapuavaFolha Regional, CaadorGazeta do Povo, CuritibaGazeta do Sudoeste, Pato BrancoHoje, CascavelIndstria & Comrcio, CuritibaIsto/Senhor, So PauloJornal Atualidades, FlorianpolisJornal de Xanxer, XanxerJornal Integrao, Campo ErJornal do Movimento, Laguna

  • 58

    O Dia, CuritibaO Estado, FlorianpolisO Estado de So Paulo, So PauloO Fronteirio, Dionsio CerqueiraO Iguau, ChapecO Iguau, Iguau (atual Laranjeiras do Sul)O Jornal, Rio de JaneiroO Paran, CascavelOeste, CascavelParan Oeste, CascavelTribuna do Oeste, PalmitosViso, So Paulo

  • 59

    A imprensa e a construo da memria:ditadura militar de 1964, fragmentos e razes do silncio1

    Layse Pereira Soares do Nascimento

    Estudar a ditadura militar de 1964 pode parecer ultrapassado e repetitivo, mas o seu tema est longe de se esgotar. O fato de a presidente eleita do Brasil ser uma de suas vtimas pblicas e declaradas, suscinta novas possibilidades no s de investigao acadmica, mas tambm em outras esferas da sociedade. Antes das eleies de outubro de 2010, o jornal a Folha de So Paulo, solicitou na justia o acesso ao processo que levou priso durante a ditadura, de Dilma Rousseff. A autorizao do Superior Tribunal Militar s ocorreu no dia 16 de novembro de 2010, dias depois do segundo turno, e, ainda assim, com algumas restries. Dilma foi presa em janeiro de 1970, quando integrava uma das organizaes da esquerda armada, a VAR-Palmares, e sofreu tortura durante vinte e dois dias (Folha.com, 28/11/2010). Essas informaes constam do processo e deram incio a uma srie de reportagens sobre o assunto. Afinal, para o jornalismo trata-se de uma notcia

    de grande interesse por marcar um perodo histrico sombrio vivido pela sociedade

    1 Trabalho apresentado no 8 Encontro Nacional de Histria da Mdia, realizado em Guarapuava, Paran, entre os dias 28 e 30 de abril de 2011.

  • 60

    brasileira e mais recentemente, por apresentar entre suas vtimas a presidente que assume o pas em 2011. A reflexo proposta neste estudo tomou por base artigos do jornalista da

    Folha de So Paulo, Paulo Moreira Leite, e tambm a matria H Um Novo Tempero no Poder, publicado pela revista Realidade, em junho de 1967. Enquanto de um lado h uma preocupao com a seleo de fragmentos de memria, e no com a memria integral ou completa, como classifica o jornalista, de outro lado h a preocupao em

    tentar controlar que memria ser recuperada no futuro. No dia 22 de novembro, em sua coluna Vamos Combinar, na Folha.Com, veiculou dois artigos tratando do mesmo tema: Dilma na tortura da histria, e, Quem fez o que na ditadura militar. Logo no incio do texto, o jornalista destaca os mritos jornalsticos da reportagem, mas tambm revela um descontentamento com a pergunta que no respondida: afinal, quem mandou torturar e quem torturou?

    Agora conhecemos as revelaes sobre Dilma Rousseff produzidas sob a tortura do regime militar. Mas continuamos sem saber quem mandou torturar, quem torturou e o destino de cada um. Isso vergonhoso. A reportagem de Matheus Leito e Lucas Ferraz publicada pela Folha de S. Paulo tem mritos jornalsticos. Os brasileiros tem o direito de conhecer o passado poltico da presidente eleita. (Dilma na tortura da histria, Folha.com, 28/11/2010)

  • 61

    Para o jornalista preciso falar do passado com alguma seriedade. E justifica:

    Naquele Brasil dos anos 70 o pas vivia sob um regime que derrubou um presidente constitucional e mudou o calendrio eleitoral porque no pretendia devolver o poder aos civis. No havia liberdade poltica, a tortura era praticada de modo regular e a oposio era perseguida com violencia (sic). Nessa situao, todo ato de resistncia constituiu um gesto que merece respeito, apesar dos erros e desvios que possam ter sido cometidos. Isso vale tambm para a me que se mobilizava para proteger filhos presos, para o operrio que fazia greve proibida, para o ator que protestava contra a censura e outros gestos semelhantes. (Dilma na tortura da histria, Folha.com, 28/11/2010)

    Paulo Moreira Leite continua o texto afirmando que A busca pelas informaes sobre o passado de Dilma Rousseff foi realizada em ambiente de criminalizao e seletivo, porm. De acordo com o jornalista, d-se mais importncia ao fato de que Dilma pegou em armas, comandou assaltos, do que continuidade das investigaes, e, no caso da imprensa, das apuraes, e trazer a pblico as responsabilidades dos militares envolvidos, grupos paramilitares ou de extermnio que atuaram conjuntamente no perodo da ditadura militar, principalmente nos chamados anos de chumbo, que caracterizou o governo dos generais que, como Emlio Garrastazu Mdici, estavam inequivocadamente identificados com os linhas-duras (Skidmore, 1998, p.219).

  • 62

    Por coincidncia, h poucas semanas o senador Romeu Tuma, um dos principais responsveis pela represso poltica em So Paulo, homem de ligao entre o servio de informaes do Exrcito e a mquina da polcia poltica, descansou em paz sem que seu passado despertasse a mesma curiosidade e interesse. Denuncias (sic) de presos polticos torturados durante a longa gesto de Tuma no DOPS esto a na internet, mas ficaram no ar. Os elogios da imprensa a Tuma chegaram a provocar uma reao indignada por uma parte de presos polticos mantidos sob sua responsabilidade. No sei se essas denncias so verdadeiras. Mas acho curioso que ningum tenha tido o interesse em apur-las. (Dilma na tortura da histria, Folha.com, 28/11/2010)

    O jornalista considera essas informaes importantes na medida em que possibilitam conhecer o real contexto da poca e entender que um regime violento produziu atos violentos de resistncia. Apurar um termo tcnico bastante usual do jornalismo. Jornalista apura os fatos. Portanto, Leite se dirige explicitamente a imprensa que, na morte do senador Tuma, tece elogios ao homem pblico de contribuies relevantes ao pas, sem, contudo, recordar-se do envolvimento deste com a ditadura militar.

    No de espantar que, pouco a pouco, o passado seja criminalizado. Outro dia, uma adolescente de 18 anos, em dvida na hora de votar, chegou a me perguntar se era verdade que a

  • 63

    futura presidente havia assaltado bancos. A adolescenta (sic) no est errada. Quem est errada nossa memria. S olha para um lado. (Dilma na tortura da histria, Folha.com, 28/11/2010)

    Em outro artigo, Quem fez o que na ditadura militar, Paulo Moreira Leite, aprofunda um pouco mais as questes tratadas:

    Essa semana tivemos o acesso aos documentos produzidos durante a ditadura militar sobre a presidente eleita Dilma Rousseff, por exemplo, que ela passou vinte e dois dias sob tortura e que ela seria responsvel pelo armamento do grupo VAR-Palmares. (Quem fez o que na ditadura militar, Folha.com, 28/11/2010)

    O texto refora que buscar informaes sobre o passado e presente de Dilma Rousseff uma curiosidade legtima, j que se trata da biografia de uma

    personalidade, Dilma Rousseff, presidente eleita, porm preciso analisar os fatos dentro de um contexto. Ou seja, os atos de resistncias podem at ser considerados errados ou crimes, mas devem, na opinio do jornalista, ser situados num contexto poltico, onde estava em vigor um regime violentssimo.

    Esse episdio me lembra mais uma coisa interessante que aquela tradio de que no Brasil a gente s consegue ter informao de um lado. S conseguimos ter informao a respeito das pessoas

  • 64

    que foram vtimas da tortura, das que resistiram ao regime. Mas at agora, ao mesmo tempo de que se abre aps a espera de alguns meses esses documentos sobre Dilma Rousseff, h duas dcadas ns esperamos pela abertura dos arquivos militares. Arquivos que dizem quem fez o que na ditadura militar, especialmente quem foram os responsveis por crimes como a tortura, por crimes como execues, quem deu as ordens, quem a cumpriu. Isso a gente continua sem saber. (Quem fez o que na ditadura militar, Folha.com, 28/11/2010)

    Novamente a informao sobre a morte do senador Romeu Tuma, que era um homem de ligao entre o DOPS e o servio de informao do exrcito e nunca se soube direito o que ele fez. Ento temos uma histria pela metade. O jornalista lamenta o silncio e o mistrio. Para a memria ficar completa preciso desvendar

    o que h nos arquivos militares. Isso muito ruim porque ns somos um pas que ficamos com a memria quebrada, partida. No um pas que consegue ter uma

    memria integral a respeito de si prprio. Leite finaliza seu artigo dizendo que os

    pases vizinhos j abriram seus arquivos e torturadores esto presos e condenados.

    Enquanto no Brasil tenta-se apagar fatos que a gente nem sabe o que aconteceu, nem quem so os responsveis. muito estranha essa nossa forma de fazer histria e eu acho que uma hora ela vai mudar. (Quem fez o que na ditadura militar, Folha.com, 28/11/2010)

  • 65

    Fica evidenciada a indignao do jornalista e a crtica em relao ao tratamento dado a cobertura que a prpria Folha, e o restante da imprensa, faz sobre a ditadura e o envolvimento de Dilma Rousseff na luta armada. Para Leite, falta maturidade e tranquilidade para tratar do assunto. O jornalista pode at ser acusado de ser petista, lulista ou dilmista, mas em seus artigos, apresenta alguns questionamentos que no devem ser desconsiderados, envolvendo a construo da memria de um perodo bastante conturbado da histria do Brasil.

    possvel verificar nos dois artigos o uso de termos como histria, memria,

    silncio, apagamento, conforme as expresses selecionadas a seguir: Quem est errada a nossa memria; (...) aquela tradio de que no Brasil a gente consegue obter informao s de um lado; Lamenta o silncio e mistrio; (...) somos um pas que ficamos com a memria quebrada, partida; No um pais que consegue ter

    uma memria integral; (...) no Brasil tenta-se apagar os fatos; e, muito estranha essa nossa forma de fazer memria. O que o jornalista reivindica a verdade antes que ela se perca, o no silncio, a reparao da verdade. o que Huyssen (2000) chama de memria real contra poltica de esquecimentos:

    A disseminao geogrfica da cultura da memria to ampla quanto variado o uso poltico da memria, indo desde a mobilizao de passados mticos para apoiar explicitamente polticas chauvinistas ou fundamentalistas (...) at as tentativas que esto sendo realizadas, na Argentina e no Chile, para

  • 66

    criar esferas pblicas de memria real contra as polticas do esquecimento, promovidas pelos regimes ps-ditatoriais, seja atravs de reconciliaes nacionais e anistias oficiais, seja atravs do silncio repressivo (HUYSSEN, 2000:16)

    O autor chama a ateno para a dificuldade que h em separar o passado mtico e o passado real. O real pode ser mitologizado tanto quanto o mtico pode engendrar fortes efeitos de realidade (HUYSSEN, 2000:16). Segundo Barbosa (2007), o passado, mesmo se considerado como real, sempre inverificvel. Na medida em

    que ele no existe mais, s indiretamente visado pelo discurso da histria. Assim, tal como a fico, tambm a reconstruo histrica obra da imaginao (Barbosa,

    2007, p.15).Ribeiro (2008), partindo das reflexes de Maurice Halbawachs, afirma que a partir

    da atualidade e estimuladas por ela que se constroem as lembranas. Lembrar no reviver uma experincia passada, mas reconstru-la com imagens e idias de hoje, a partir de materiais que esto nossa disposio (Ribeiro, 2008, p.188) Quando trata dos abusos da memria, Tzvetan Todorov (1995), referenciado por Ana Paula Goulart Ribeiro (2010), enfatiza que h lembranas que no so simplesmente silenciadas, mas apagadas de fato. Nesses casos, os traos do que aconteceu so destrudos ou transformados profundamente; mentiras e invenes substituem por completo a realidade dos acontecimentos. Todorov diz que memria

    no se ope ao esquecimento.

  • 67

    Memria sempre e necessariamente a interao com o esquecimento. A reconstituio integral do passado impossvel. Na memria, certos traos so conservados, outros so imediatamente ou progressivamente, descartados e esquecidos. Normalmente, a memria vista de forma positiva como um ato poltico, de resistncia, de contraposio s foras hegemnicas, pelo poder que estas exercem seja no silenciamento, seja no esquecimento. A memria tambm defendida porque considerada um elemento reparador dos danos sofridos. (Ana Paula Goulart Ribeiro 2010)2

    O jornalista Paulo Moreira Leite, em seus artigos, quando fala que pouco a pouco o passado passa a ser criminalizado, e que a busca pelas informaes sobre o passado de Dilma Rousseff foi realizada em ambiente de criminalizao e seletivo, alerta que, como afirma Todorov (1995), traos do que aconteceu esto sendo

    destrudos ou transformados profundamente. A abertura dos arquivos militares pode revelar o que ocorreu durante a

    ditadura, mas enquanto isso, mentiras e invenes esto substitundo a realidade dos acontecimentos do referido perodo.

    Em um cenrio mais favorvel, Andreas Huyssen (2000) destaca que as culturas de memria esto intimamente ligadas, em muitas partes do mundo, a processos de democratizao e lutas por direitos humanos e expanso e fortalecimento das esferas 2 Referncia feita pela Professora Ana Paula Goulart Ribeiro, do Programa de Ps-Graduao em Comunicao, durante as aulas ministradas no curso Mdia, memria e esquecimento, em 27 de outubro de 2010, no Programa Interinstitucional entre URFJ e Unicentro (PR).

  • 68

    pblicas da sociedade civil. Embora os discursos de memria possam parecer um

    fenmeno global, eles permanecem ligados s histrias de naes e estados especficos.

    Na medida em que as naes lutam para criar polticas democrticas no rastro de extermnios em massa, apartheids, ditaduras militares e totalitarismo, elas se defrontam, como foi e ainda o caso da Alemanha desde a Segunda Guerra Mundial, com a tarefa sem precedentes de assegurar a legitimidade e o futuro das suas polticas emergentes, buscando maneiras de comemorar e avaliar os erros do passado (HUYSSEN, 2000, p.16-17)

    Uma obsesso com a memria e o passado passou a tomar conta da sociedade. Segundo Andreas Huyssen (2000), essas obsesses poderiam ser explicadas em funo do final do sculo (XX), e, o que existe hoje uma cultura da memria.

    A preocupao com o passado e a memria se tornou uma obsesso cultural de propores gigantescas. como se fosse possvel realizar o desejo de puxar os vrios passados para o presente. como se o objetivo fosse conseguir a recordao total (HUYSSEN, 2000: 15). Essa comercializao crescente, teve incio na dcada de 1970, nos Estados Unidos e na Europa, com a restaurao historicizante de velhos centros urbanos, empreendimentos patrimoniais e heranas nacionais, a onda da nova arquitetura de museus, literatura memorialstica e confessional, crescimento dos romances autobiogrficos e histricos ps-modernos, o aumento do nmero

  • 69

    de documentrios na televiso, e ainda comemoraes, pedidos de desculpas pelo passado, e at mesmo o entretenimento memorialstico (HUYSSEN, 2000, p.14).

    Razes do Silncio Dilma Rousseff j havia declarado que durante a ditadura foi presa e

    torturada. Entrevistada pela apresentadora Patrcia Poeta, no programa dominical da Rede Globo, Fantstico, do dia 07 de novembro de 2010, a me da presidente eleita, Dilma Jane Silva Rousseff, limitou-se a dizer acerca dos trs anos em que a filha

    permaneceu presa, que foi um perodo ruim, do qual no quer lembrar, conforme trecho da reportagem transcrito a seguir, que trata especificamente deste assunto:

    1.Patrcia Poeta: Dona Dilma, vamos falar sobre alguns momentos importantes na vida da Dilma. Por exemplo, ditadura militar. Como que a senhora acompanhou esse perodo da vida dela?

    2.Dona Dilma: Esse perodo pra mim foi muito triste e muito sofrido, um perodo que eu j esqueci. J pus uma pedra em cima, nem lembro. Nem quero lembrar.

    3.Patrcia Poeta: Foi um momento muito angustiante pra senhora?

    4.Dona Dilma: Muito, um verdadeiro calvrio, mas j passou. (Fantstico, 07/11/2010)

  • 70

    Com essa frase, Dona Dilma encerra o assunto que, como afirma na

    entrevista, j ps uma pedra em cima, e obriga a reprter a continuar a entrevista com outras perguntas no menos constrangedoras. O silncio tem razes bastante complexas, diz Michael Pollak, ao analisar a questo entre os sobreviventes dos campos de concentrao que, aps serem libertados, retornaram Alemanha ou ustria (POLLAK, 1989, p.7-8).

    Existe o silncio da me e o silncio de parte da sociedade, que tambm no quer mais lembrar. Marialva Barbosa (2010) afirma que a histria pode ser percebida

    como processo complexo, no qual esto engendradas relaes sociais, culturais, falas e no ditos. Compete ao historiador perguntar pelos silncios e identificar no que no

    foi dito, uma razo de natureza muitas vezes poltica (Barbosa, 2010). Sobre as prticas de tortura, das quais a presidente eleita foi vtima e motivou

    uma retomada do assunto na imprensa, h uma vasta bibliografia que trata do assunto.

    Entre elas cito o livro reportagem Brasil Nunca Mais (1985), que revela por meio de depoimentos de vtimas e fichas pesquisadas nos arquivos oficiais, que as atrocidades

    praticadas conseguiam arrancar confisses dos presos que chegavam a inventar lista

    de nomes de subversivos, guerrilheiros, comunistas. O historiador Skidmore (1998), aponta que, sobretudo em 1969, para exterminar a guerrilha que cresce, aperfeioaram-se as tcnicas de tortura:

  • 71

    Mtodos brutais de interrogatrio, como o pau de arara, a cadeira do drago e a geladeira, fizeram muitos suspeitos falar. As torturas dos suspeitos s vezes duravam at dois meses, mesmo quando os inquisidores j haviam perdido a esperana de extrair a mnima informao. A tortura transformara-se em horrvel ritual, num ataque calculado alma e ao corpo. (SKIDMORE, 1998, p.180-181).

    Acobertada pelo novo instrumento militar legal, a censura atingiu a imprensa, no poupando nem mesmo os jornalistas de mais prestgio. Carlos Castelo Branco, o mais conhecido colunista do Brasil, foi preso, juntamente com o diretor do seu jornal, Jornal do Brasil (Skidmore, 1998:166). O longo silncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, a resistncia que uma sociedade civil impotente, ope ao excesso de discursos oficiais. Lembranas traumatizantes podem sobreviver dezenas

    de anos, a espera do momento propcio para serem expressas (Pollak, 1992, p.3). O regime aprimorava suas tcnicas de tortura e chega as elites (Skidmore,

    1998:181). A tortura torna-se um instrumento de controle social, um poderoso instrumento, ainda que degradante para seus usurios, para subjugar a sociedade (Skidmore, 1998, p.514).

    A publicao pela editora Vozes, em 1985, do livro Brasil: Nunca Mais, enervou os militares. O relatrio baseava-se em registros militares oficiais, nomes de

    vtimas e torturadores, alm de poca e local da tortura. O mesmo grupo de So Paulo publicou posteriormente uma lista de 444 policiais e oficiais das foras armadas

  • 72

    envolvidas em atos de tortura, aponta (Skidmore, 1998, p.181). Essa lista com os 444 nomes, nos conta Skidmore (1998), foi publicada nos principais jornais como Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil, alm das revistas Veja e Isto .

    O jornalismo na sua prtica diria de cobertura dos mais variados assuntos, faz histria, conta parte da histria, e seleciona o que vai entrar para a histria. Entrevistar a me da presidente eleita e colher dela informaes sobre a histria da filha, futura

    lder da nao, um fato memorvel que pode ser selecionado. Marialva Barbosa (2007, p.83) afirma: Os meios de comunicao fazem,

    cada vez mais, usos do passado, mostrando em suas encenaes miditicas uma multiplicidade de tempos que se entrecruzam sem cessar. Para a pesquisadora (2007, p.92), so os documentos que fornecem a dimenso histrica para que o passado ressurja no presente. pela ideia de fidedignidade visual em relao aos tempos idos

    que se instaura a ideia de passado absoluto realizado no presente. Ao se reconstruir o presente, a partir dos rastros que o passado deixou como marca, coloca-se tambm em cena a questo memorvel, aponta Barbosa (2007, p.92). Haver sempre algo esquecido e algo lembrado nesse passado reatualizado. Mais do que a questo do objeto memorvel, h que se pensar, pois, na dimenso do esquecimento que essas emisses evocam (Barbosa, 2007, p.94).

    A imprensa, ao noticiar, estabelece um dilogo com seu pblico, ao mesmo tempo em que revela em suas pginas um universo de representaes sociais, polticas, ideolgicas, histricas que marcaram determinada poca. Ribeiro (2008, p.195) destaca

  • 73

    que os meios de comunicao, desde o sculo XX, passaram a ocupar uma posio institucional que lhes conferiu o direto de produzir enunciados em relao realidade, aceitos pelo consenso da sociedade como verdadeiros.

    Ribeiro diz que a histria passou a ser aquilo que aparece nos meios de comunicao de massa. So eles que detm o poder de dar relevncia aos acontecimentos e de eleva-los condio de histricos. O que passa ao largo da mdia considerado, pelo conjunto da sociedade, como sem importncia (Ribeiro 2008, p.195). A mdia elevada ao status de porta-voz oficial dos acontecimentos e da transformao da vida social. Os jornais registram e constroem memrias, e sabem bem disso.

    Construo de imagem O governo Costa e Silva trabalhou arduamente para projetar uma imagem

    conciliatria, afirma o historiador Thomas Skidmore. Comeou seu mandato

    prometendo humanizar a Revoluo, (Skidmore, 1998, p.148). Costa e Silva recebeu a faixa presidencial em 15 de maro de 1967, antes disso, j ocupara as pginas da Revista Realidade, em fevereiro, em matria intitulada: Um garoto chamado Artur.

    Segundo Faro (1999), Luiz Fernando Mercadante escreveu tantas matrias sobre Costa e Silva que acabou se tornando um especialista. Em abril de 1967, a primeira dama teve seu perfil traado pelo jornalista: a tnica era a famlia harmoniosa,

    a histria pessoal construda com os elementos de uma unio e da confiana, o

  • 74

    despojamento da vida pessoal em favor da vida pblica (FARO, 1999, p.171). O ttulo da matria: Dona Yolanda a presidenta.

    Em junho de 1967, a revista Realidade, uma publicao da editora Abril, na sua 15 ed