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verve 127 Famílias abertas e famílias fechadas famílias abertas e famílias fechadas 1 colin ward Ao se escolher um parceiro, procura-se tanto reter as rela- ções desfrutadas na infância, quanto retomar fantasias que se lhe foram negadas. Consequentemente, a seleção de um com- panheiro ou de uma companheira torna-se para muitos uma tentativa de arranjar um papel particular em uma produção fantasiosa própria. No entanto, na medida em que ambas as partes tem a mesma intenção, mas raramente as mesmas fan- tasias, o resultado pode ser muito bem o duelo entre dois pro- dutores rivais. Há homens, como Stanley Spencer disse de si próprio, que necessitam duas esposas que se complementam, e mulheres que precisam de dois maridos complementares, ou ao menos dois objetos amorosos complementares. Se, em primeiro lugar, insistirmos que isso é imoral ou infiel, e, em seguida, que se isso ocorresse haveria uma obrigação de cada objeto ama- Colin Ward (1924-2010). Anarquista nascido no Reino Unido, foi arquiteto, urbanista e pedagogo. Depois da Segunda Guerra passou a contribuir com o pe- riódico Freedom, fundado por Piotr Kropotkin no século XIX. Editou o periódico Anarchy entre 1961-1970. Entre suas obras mais importantes estão Anarquia e ação (1973) e A Criança na Cidade (1978). verve, 17: 127-135, 2010 Verve 17 Final com mudanças na heliografica.indd 127 5/10/2010 12:27:18 AM

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    Famlias abertas e famlias fechadas

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    colin ward

    Ao se escolher um parceiro, procura-se tanto reter as rela-es desfrutadas na infncia, quanto retomar fantasias que se lhe foram negadas. Consequentemente, a seleo de um com-panheiro ou de uma companheira torna-se para muitos uma tentativa de arranjar um papel particular em uma produo fantasiosa prpria. No entanto, na medida em que ambas as partes tem a mesma inteno, mas raramente as mesmas fan-tasias, o resultado pode ser muito bem o duelo entre dois pro-dutores rivais. H homens, como Stanley Spencer disse de si prprio, que necessitam duas esposas que se complementam, e mulheres que precisam de dois maridos complementares, ou ao menos dois objetos amorosos complementares. Se, em primeiro lugar, insistirmos que isso imoral ou infiel, e, em seguida, que se isso ocorresse haveria uma obrigao de cada objeto ama-

    Colin Ward (1924-2010). Anarquista nascido no Reino Unido, foi arquiteto, urbanista e pedagogo. Depois da Segunda Guerra passou a contribuir com o pe-ridico Freedom, fundado por Piotr Kropotkin no sculo XIX. Editou o peridico Anarchy entre 1961-1970. Entre suas obras mais importantes esto Anarquia e ao (1973) e A Criana na Cidade (1978).

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    do em exigir direitos exclusivos, ns simplesmente estaramos adicionando dificuldades desnecessrias a uma questo que po-deria ter se apresentado sem nenhuma, ou ao menos com pou-cas, caso fosse permitido a cada um resolv-la em seus prprios termos. Alex Comfort (Sexo na Sociedade).

    Uma revoluo essencialmente anarquista, que tem avanado enormemente em nossos dias, a revoluo se-xual. anarquista precisamente porque envolve a negao da autoridade das normas estabelecidas pelo Estado e por diversas iniciativas religiosas em relao s atividades dos indivduos. Pode-se afirmar que tem avanado, no por causa do colapso da famlia que os moralistas (em geral erroneamente) enxergam por todo lado, mas porque, na sociedade ocidental, mais e mais pessoas decidiram con-duzir sua vida sexual como acham melhor. Aqueles que profetizaram consequncias terrveis como o resultado da maior liberdade sexual defendida pelos jovens bebs indesejados, doenas venreas, etc. so geralmente os mesmos que buscam a realizao de suas profecias ao se oporem ao livre acesso dos jovens aos anticoncepcionais e eliminao do estigma e mistificao que cercam as doenas sexualmente transmissveis.

    O cdigo oficial sobre questes sexuais foi transmitido ao Estado pela igreja crist e tem sido cada vez mais dif-cil de ser justificado devido ao declnio das crenas sobre as quais est baseado. Anarquistas, de Emma Goldman a Alex Comfort, observaram a conexo entre represso poltica e sexual. Embora aqueles que pensam que a li-berao sexual leva necessariamente liberao poltica e econmica provavelmente sejam otimistas, esta certamen-

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    te faz as pessoas mais felizes. O fato de no haver bases imutveis para os cdigos sexuais pode ser observado a partir da ampla variedade de comportamentos aceitos e da legislao acerca de temas sexuais em diferentes perodos e em diferentes pases. A homossexualidade masculina tornou-se um problema apenas porque virou assunto da legislao. A homossexualidade feminina no era um pro-blema, pois sua existncia foi ignorada pelos legisladores (homens). As anomalias legais so algumas vezes hilrias: Quem pode explicar exatamente por que a relao anal legal na Esccia entre homem e mulher, mas ilegal entre homens? Por que a relao anal entre homem e mulher ilegal na Inglaterra, mas sancionada entre homens se am-bos forem maiores de 21 anos?

    Quanto mais a lei remendada no esforo de torn-la mais racional, mais absurdos aparecem. Isso significaria que no h cdigos racionais para o comportamento sexu-al? Obviamente no: eles apenas esto submersos nas ir-racionalidades ou desqualificados por meio da associao com proibies irrelevantes. Alex Comfort, que encara o sexo como o mais saudvel e importante esporte huma-no, sugere que o prprio contedo do comportamento sexual muda provavelmente muito menos entre as culturas do que a capacidade individual de desfrut-lo sem culpa. Ele asseverou duas injunes ou mandamentos morais acerca do comportamento sexual: No devers explorar os sentimentos de outra pessoa, e No devers causar em nenhuma circunstncia o nascimento de uma crian-a indesejada. A referncia a esses mandamentos levou o professor Maurice Carstairs a provoc-lo com a questo: por que, enquanto um anarquista, Comfort estaria pres-crevendo regras? ao que este retrucou que uma filosofia

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    da liberdade demandava um nvel mais alto de responsa-bilidade pessoal do que uma crena na autoridade. A falta de prudncia e cortesia habituais que pode ser observada no comportamento adolescente de hoje decorreu, como ele sugeriu, precisamente da determinao de um cdigo de castidade que no faz nenhum sentido em detrimento de princpios que so imediatamente compreensveis e aceitveis por qualquer jovem sensvel.

    Certamente no necessrio ser um anarquista para perceber a famlia nuclear moderna como uma resposta do tipo camisa de fora s necessidades funcionais do lar domstico e da criao de filhos, que impem restries intolerveis a muitas pessoas que so capturadas nessa ar-madilha. Edmund Leach assinalou que longe de ser a base da boa sociedade, a famlia, com sua estreita priva-cidade e espalhafatosos segredos, a fonte de todos os nossos descontentamentos. David Cooper a denominava a insupervel e mais letal cmara de gs de nossa socieda-de, e Jacquetta Hawkes disse que uma forma indutora de terrveis demandas aos seres humanos capturados por ela: fortemente carregada pela solido, exigncias exces-sivas, restrio e fracasso. Obviamente, para alguns ela funciona como o melhor arranjo, mas nossa sociedade no toma providncias para os outros, cujo nmero se pode deduzir ao se fazer a pergunta: Quantas famlias felizes eu conheo?

    Consideremos o caso do Man Cidado. Em virtude de algumas noites alegres na discoteca, ele e Maria fazem um contrato com o Estado e/ou com alguma corporao religiosa para viverem juntos por toda vida e recebem uma licena para copular. Assumindo que eles superaram os problemas de encontrar algum lugar para viver e formar

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    uma famlia, olhemos para eles alguns anos depois. Ele, a cada dia lutando do trabalho para casa, sente-se capturado em uma armadilha. Ela sente o mesmo, a solitria dona de casa sem nenhuma ajuda, acorrentada pia e ao balde de fraldas. E as crianas tambm, cada vez mais, com o passar dos anos, sentem-se em uma armadilha. Por que papai e mame no nos deixam simplesmente em paz? No preciso continuar essa saga porque a conhecemos de trs para frente.

    Em termos de felicidade e plenitude dos indivduos en-volvidos, a famlia moderna mostra-se melhor em relao sua predecessora do sculo XIX ou s vrias alternativas institucionais sonhadas por autoritrios utpicos; e pode-se muito bem argumentar que hoje no h nada que im-pea as pessoas de viverem da maneira como gostam. No entanto, de fato, tudo em nossa sociedade, dos anncios publicitrios na televiso s leis de herana, est baseado na suposio da compacta pequena unidade consumidora da famlia nuclear. A moradia um exemplo bvio: para as moradias municipais no esto previstas unidades fora do padro e no setor privado nenhum emprstimo ou hipote-ca esto disponveis para a formao de comunidades.

    Os ricos podem evitar a armadilha pelo simples expe-diente de pagar outra pessoa para fazer o servio domsti-co e cuidar de suas crianas. Mas para as famlias comuns, o sistema faz exigncias que muitas pessoas no conse-guem dar conta. Aceita-se isso pois universal. De fato, o padro se tornou to ubquo que os Kibbutz israelenses ou as comunas chinesas so os nicos exemplos que Dr. Leach poderia citar, onde crianas crescem em grupos do-msticos amplos e mais flexveis, centrados na comunida-de e no na cozinha da me. Mas mudanas se anunciam:

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    o movimento de liberao feminina um lembrete que o preo da famlia nuclear a subjugao da mulher. As comunas ou moradias conjuntas que alguns jovens esto estabelecendo so sem dvida, parcialmente, uma conse-quncia da necessidade de dividir aluguis inflacionados, mas em muitos casos, so tambm uma reao contra o que eles percebem com a estultificada natureza rgida da pequena unidade familiar.

    A mstica do parentesco biolgico resulta em que al-guns casais vivam em desesperada infelicidade por causa de sua infertilidade, enquanto outros tm crianas que so indesejadas e negligenciadas. Isso tambm gera a situao comum de pais agarrados a suas crianas por-que depositaram muito do seu capital emocional neles, enquanto que estas querem desesperadamente escapar de seu amor possessivo. Um lar seguro, escreve John Hartwell, muitas vezes significa uma atmosfera sufo-cante onde as relaes humanas se tornam uma pardia e onde gotas de criatividade so esmagadas como evidn-cia de desvios. Estamos muito longe do tipo de comu-nidade na qual as crianas poderiam escolher localmente figuras parentais s quais elas gostariam de se ligar. No entanto, um bom nmero de sugestes interessantes est no ar, todas indicando um afrouxamento dos laos fami-liares no interesse de ambos: pais e filhos. H a ideia de Paul e Jean Ritter de uma casa de crianas no bairro atendendo 25 a 30 famlias; h o conceito de Casa dos Jovens de Paul Goodman, instituio anloga de al-gumas culturas primitivas; e h a Unidade de Moradia de Famlias Mltiplas, sugerida por Toddy Gold. Essas ideias no esto baseadas em nenhuma rejeio de nossa responsabilidade em relao aos jovens: elas envolvem

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    repartir essa responsabilidade pela comunidade e aceitar o princpio que, como Kropotkin colocou, toda criana nossa criana. Elas tambm implicam dar responsabi-lidades s prprias crianas, no apenas em relao a elas mesmas, mas comunidade, o que exatamente o que a nossa estrutura familiar fracassa em fazer.

    As necessidades e aspiraes pessoais variam de modo to amplo, que to insensato sugerir alternativas este-reotipadas, quanto recomendar conformidade universal ao padro existente. Em uma ponta da escala, est a de-formao da criana pelo acidente da paternidade, tanto pela possessividade, quanto pela perpetuao da sndrome familiar de inadequao e incompetncia. Na outra ponta, est o embrutecimento emocional da criana por meio da falta de ligao pessoal em uma situao de abrigo institu-cional. Conhecemos lares convencionais permeados com afeio casual onde responsabilidades e tarefas domsticas so repartidas, enquanto que facilmente imaginamos um lar comunal no qual as mulheres so verdadeiros burros de carga coletivos, e no individuais, e uma criana que no seja muito atraente e assertiva foi no apenas isola-da, mas tambm negligenciada. Mais importante do que a estrutura da famlia a expectativa que as pessoas tm do seu papel nela. O tirano domstico da famlia Vitoriana era capaz de exercer sua tirania apenas porque os outros estavam preparados para suport-la.

    H um velho slogan entre educadores progressistas; acolha-os, ame-os e deixe-os em paz. Mais uma vez, isso no encoraja a negligncia, mas enfatiza que metade das misrias e frustraes pessoais dos adolescentes e dos adultos em que eles se transformam decorrente das pr-fidas presses ao indivduo para que este faa o que outras

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    pessoas acreditam ser apropriado para ele. Ao mesmo tem-po, a contnua extenso dos processos de educao formal adia cada vez mais a aceitao da efetiva responsabilidade do jovem. Qualquer professor de educao continuada ir relatar a diferena entre jovens de dezesseis anos que esto trabalhando e frequentam cursos vocacionais de meio pe-rodo e aqueles da mesma idade que ainda esto na educa-o em tempo integral. Naqueles pases tenebrosos onde ainda se permite que crianas trabalhem, percebe-se no apenas o elemento de explorao, mas tambm a maturi-dade que acompanha incumbir-se das responsabilidades funcionais do mundo real.

    Os jovens so capturados em uma delicada armadilha: a idade da puberdade e a idade do casamento (na medida em que nossa sociedade ainda no permite a experimentao de alternativas) so admitidas, ao mesmo tempo em que a aceitao no mundo adulto continuamente adiada apesar da reduo da maioridade formal. No surpreende que muitos adultos paream estar presos a um modelo de imaturidade. Na vida em famlia no se desenvolve uma genuna sociedade permissiva, mas apenas uma sociedade na qual difcil tornar-se adulto. Por outro lado, para uma minoria de jovens, uma minoria que tem aumentado, os esteretipos do comportamento sexual e papis sexuais que confinaram e oprimiram as geraes anteriores por sculos, simplesmente se tornaram irrelevantes; fato que poder certamente no futuro ser considerado como uma das conquistas positivas da nossa era.

    Traduo do ingls por Beatriz Carneiro.

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    Nota1 Traduzido de Open and closed families. Publicado pela primeira vez em Anarchy in action, Londres, Editora Allen & Unwin, 1973. (N.T.)

    ResumoA revoluo sexual uma revoluo anarquista, nega a famlia e suscita experincias de liberdade. O autor retoma outros anarquistas, ao alertar para as consequncias do papel da famlia na subjugao da mulher e frustrao de pais, crianas e jovens. Descarta tanto alternativas estereotipadas, como padres universais existentes. Ressalta ainda a importncia da educao livre e comunitria das crianas. palavras-chave: revoluo sexual, famlia, crianas.

    AbstractSexual Revolution is an anarchist revolution which denies family and raises experiences of freedom. The author incorporates other anarchists by alerting to the consequences of the family role in the subjugation of women and in the frustration of parents, children, and youth. He highlights yet the importance of free and communitarian education for children.keywords: sexual revolution, family, children.

    Indicado para publicao em 1 de maro de 2010.

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