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FACULDADE DE SÃO BENTO GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA CLODOVEU LISBOA BORGES A ORAÇÃO MÍSTICA EM SANTA TERESA D’ÁVILA: MÍSTICA E MESTRA DA ORAÇÃO SÃO PAULO 2019

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FACULDADE DE SÃO BENTO

GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA

CLODOVEU LISBOA BORGES

A ORAÇÃO MÍSTICA EM SANTA TERESA D’ÁVILA:

MÍSTICA E MESTRA DA ORAÇÃO

SÃO PAULO

2019

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CLODOVEU LISBOA BORGES

A ORAÇÃO MÍSTICA EM SANTA TERESA D’ÁVILA:

MÍSTICA E MESTRA DA ORAÇÃO

Monografia apresentada à Faculdade de São Bento como exigência para obtenção

do título de Bacharel em Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Sergio Alejandro Ribaric

SÃO PAULO

2019

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ii

CLODOVEU LISBOA BORGES

A ORAÇÃO MÍSTICA EM SANTA TERESA D’ÁVILA: MÍSTICA E MESTRA DA ORAÇÃO

Monografia apresentada à Faculdade de São Bento como exigência para obtenção do

título de Bacharel em Teologia.

Aprovada em ___ de ____________ de 2019

_________________________________________________

Prof. Dr. Sérgio Alejandro Ribaric

_________________________________________________ Prof. Dr. Domingos Zamagna

_________________________________________________ Prof. Dra. Rita de Cássia Rosada Lemos

SÃO PAULO

2019

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iii

Minha singela homenagem à Santa

Teresa de Ávila, Mística e Educadora

Cristã.

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iv

AGRADECIMENTOS

A Deus que ofereceu aos cristãos:

A Santa Teresa de Ávila que com a sua literatura manifestou o “gênio” feminino

no curso da história aos povos e nações.

Aos professores da Faculdade de São Bento que, com disposição beneditina,

me acompanharam neste trabalho.

Aos colegas de turma pelo exemplo de vida e espírito de classe.

À minha família que me apoiou nesta jornada.

Aos meus pais que me plasmaram na doutrina cristã.

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v

São três atitudes que jamais podem faltar

aos discípulos de Jesus: aprender a dar

graças, sempre e em todos os lugares e

não apenas em certas ocasiões, quando

tudo está certo; fazer da nossa vida um

dom de amor livre e gratuito e construir a

concreta comunhão na Igreja e com

todos.

(PAPA FRANCISCO)

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vi

RESUMO

Os escritos de Santa Teresa de Jesus abraçam um campo muito vasto e tratam de

aspectos da oração que podem ajudar-nos na vivência do nosso ser cristão. Com

simplicidade ela expõe a sua própria experiência que se passa em sua alma. A sua

mensagem é que Deus, Sua Majestade, habita em nosso coração como em um

castelo, como em um castelo de cristal; ademais, é preciso que a fé predomine sobre

a nossa miséria. A oração teresiana é comprometida com a vida e expressa a sua

autenticidade quando se consegue viver em comunhão fraterna e desprendida do

mundo. Teresa procurou ser autêntica com si mesma e com os outros, ensina-nos que

Deus habita dentro de nós; repetia sempre: “só Deus basta!”

Palavras-chave: Teresa de Jesus, mística, espiritualidade.

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vii

ABSTRACT

The writings of St. Teresa of Jesus are a vast field and deal with aspects of prayer that

can help us in our experience as Christians. With simplicity, she outlines her own

experience, she exposes what goes on in her soul. Her message is that God, His

Majesty, inhabits our heart like in a castle, like in a crystal castle; in addition, faith must

prevail over misery. The Teresian prayer is committed to life and expresses its

authenticity when one can live in fraternal communion and detached from the world.

Teresa sought to be authentic with herself and with others, she teaches us that God

dwells within us; she always repeated: "God alone is enough!"

Keywords: Teresa de Jesus, mysticism, spirituality.

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viii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

1 TERESA DE JESUS RELATA SEU MODO DE FAZER ORAÇÃO .................................. 13

1.1 Introdução ...................................................................................................................... 13

1.2 Biografia de Teresa Cepeda Ahumada .......................................................................... 13

1.3 Contexto no qual viveu Santa Teresa de Jesus ............................................................. 19

1.4 Teresa de Jesus: ascese e maturidade espiritual........................................................... 23

2 CAMINHO DE PERFEIÇÃO ............................................................................................. 29

2.1 Introdução ...................................................................................................................... 29

2.2 Vida contemplativa a serviço da Igreja ........................................................................... 29

2.3 Caminho de ascese e de comunhão .............................................................................. 30

2.4 Ascese e a virtude da vida contemplativa ...................................................................... 33

2.5 O pai-nosso, "Caminho de Perfeição" ............................................................................ 36

2.5.1 Relação pessoal com o Mestre ................................................................................... 36

2.5.2 Oração do Senhor como caminho de Perfeição .......................................................... 37

2.5.3 O Pai nosso sob o olhar de Teresa ............................................................................. 38

2.6 Conclusão ...................................................................................................................... 41

3 AS MORADAS DO CASTELO INTERIOR ....................................................................... 43

3.1 Introdução ...................................................................................................................... 43

3.2 Primeiras moradas ......................................................................................................... 43

3.3 Segundas moradas ........................................................................................................ 44

3.4 Terceiras moradas ......................................................................................................... 45

3.5 Quartas moradas ........................................................................................................... 45

3.6 Quintas moradas............................................................................................................ 46

3.7 Sextas moradas ............................................................................................................. 48

3.8 Sétimas moradas ........................................................................................................... 53

3.9 Conclusão ...................................................................................................................... 54

CONCLUSÃO GERAL ........................................................................................................ 56

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 61

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Cc - Cântico dos Cânticos

Cl - Carta de São Paulo aos Colossenses

CIC - Catecismo da Igreja Católica

CP - Caminho de perfeição

Ds - Denzinger

F - Fundações

Fl - Carta aos Filipenses

Gn - Gênesis

Jo - Evangelho segundo João

Lc - Evangelho segundo Lucas

LH - Liturgia das Horas

M - Moradas do Castelo Interior

Mc - Evangelho segundo Marcos

Mt - Evangelho segundo Mateus

OC - Obras completas de Santa Teresa de Jesus

p - página

P - Poesias

1Pe - Primeira carta de Pedro

Sl - Salmos

SC - Sacrossantum Concilium

V - Vida

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10

INTRODUÇÃO

Almejamos apontar neste texto como Santa Teresa de Jesus1 mostra em seus

escritos a interpretação da presença de Jesus na vida de seus amigos; mostra que

esta presença é efetiva, e como sabemos, a Palavra do Mestre não pode ser metáfora.

Metáforas não podem ser, pois o Senhor não procura atenuar as suas palavras,

mesmo sabendo que está “escandalizando” os outros. Logo, a Santa ensina às suas

monjas que Cristo morre para expiar os nossos pecados, ressuscita para nos justificar,

sobe ao céu para nos proteger e enviar o Espírito Santo para nos consolar e que mais

tarde retornará para consumar nossa salvação2.

A presente dissertação foi provocada por dois eventos: primeiro ao desejar

saber o ‘porque’ se comemora o dia dos professores em quinze de outubro e, o

segundo ao ler a biografia de Edith Stein3 onde consta que a sua conversão se deve

à leitura da autobiografia de Santa Teresa de Ávila.

O interesse pela obra de Teresa de Jesus aumenta em função do

questionamento sobre o significado, sentido e a força da oração, a oração cristã4,

como caminho crescente na intimidade com a Santíssima Trindade.

À medida que conhecemos a sua vida e a sua obra, seu testemunho geralmente

fascina e atrai os que dela se aproximam, ou pelo menos, dificilmente se fica

indiferente. Sua figura e a sua obra fez-nos levantar algumas hipóteses de

investigação, por isso, ainda antes do final do curso de Teologia, sob a orientação do

professor orientador, decidimos prosseguir a reflexão iniciada e desenvolver o nosso

trabalho de conclusão de curso sobre Teresa de Jesus.

Em uma primeira avaliação do tema, ficamos “abismados” com o universo

teresiano, ou seja, com a infindável quantidade de estudos sobre Teresa de Jesus,

proveniente das mais variadas áreas e aspectos da sua vida e dos seus escritos,

realizados por pessoas cujos focos são diversos. Desde o início que o itinerário vital

de Teresa suscitou o nosso interesse, a sua “determinação determinada” em crescer

espiritualmente e em caminhar continuamente para Deus. O seu percurso oracional

1 TERESA DE JESUS. Obras completas. (Coord.) Frei Patrício Sciadini. Tradução do texto estabelecido por Tomás Alvarez, 5. ed. São Paulo: Carmelitas/Loyola, 2013. 2 SÃO BERNARDO. Tratado sobre o amor de Deus. São Paulo: Paulus, 2015, p. 23. 3 FELDMANN, Christian. EDITH STEIN, judia, ateia e monja. Bauru-SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, p. 48. 4 Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, reimpressão outubro de 2009, QUARTA PARTE: A ORAÇÃO CRISTÃ, p. 655ss.

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também despertou a nossa atenção especialmente, o fato do mesmo se fundar numa

intensa relação de amizade com Deus, em Jesus Cristo, sobretudo após o “encontro”

com a imagem chagada. Parece-nos valer a pena aprofundar o aspecto de que a

oração não é uma simples repetição de fórmulas prontas, mas algo mais.

Por outro lado, a mistagogia na vida e nos escritos teresianos também chama

a atenção, na medida, em que, a experiência por ela vivida foi também por ela

transmitida com o objetivo de conduzir o maior número de pessoas para Deus.

Finalmente consideramos especialmente significativo encontrar em Teresa de Jesus

uma harmoniosa conciliação entre mística e missão, prova da autenticidade da sua

relação com Deus.

Diversos são os tópicos de seus escritos (ou obras), os quais seriam bons

temas para elaborar um trabalho de conclusão de curso. Contudo, os limites que se

nos colocam e por uma questão de prática metodológica, faremos o nosso estudo no

itinerário oracional teresiano, mais concretamente, na relação entre a vida e a oração,

caminho de perfeição com foco na sua ascese, e finalmente, na mística com incidência

nas moradas do castelo interior.

Com este trabalho, pretendemos também ajudar a refletir a questão da mística

e da sua importância para a vivência e espiritualidade de uma vida cristã

comprometida. Partindo do percurso vital e oracional de Teresa de Jesus

procuraremos evidenciar a importância da espiritualidade e da mística para a missão

da Igreja e para a própria teologia. Desejamos assim entender, talvez contribuir para

“desmistificar” a mística, enquanto desejo do encontro pessoal com o amor de Deus,

em Jesus Cristo, origem do ser cristão e fonte da alegria do Evangelho.

Para cumprir os objetivos propostos visitamos alguns dos escritos teresianos

mais relevantes para as questões levantadas. A partir da sua leitura e análise

procedemos ao seu comentário, com o objetivo de construir uma pequena síntese.

Sempre que necessário, recorremos a estudos e autores que nos ajudam a

fundamentar, desenvolver e esclarecer a nossa reflexão. Procuramos realizar o nosso

trabalho, na medida de minhas possibilidades, de um modo tanto quanto possível do

ponto de vista original.

O presente texto é composto de três capítulos. No primeiro capítulo,

apresentamos uma súmula biográfica de Teresa de Jesus e do seu ambiente vital e

histórico. A espiritualidade e a história andam associadas e neste sentido devemos

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conhecer o contexto em que ela atuou. Realizamos, então, uma breve

contextualização histórica do século XVI espanhol do ponto de vista político, religioso,

cultural e espiritual.

No segundo capítulo, efetuamos um breve enquadramento sobre o “Caminho

de Perfeição”, fonte de sua pedagogia para ensinar a tantos aqueles que querem unir-

se mais intimamente ao Senhor.

E finalmente no terceiro capítulo, “as moradas do Castelo Interior”, um livro um

pouco difícil para ser entendido, cuja leitura oferece um caminho para se purificar dos

pecados, ser admitido à presença de Sua Majestade, na sétima morada e celebrar

com Ele uma união mais íntima. “As moradas do Castelo Interior” trata da vida

predominantemente mística, procura evidências da sua relação com a missão e com

a vocação pessoal de Teresa.

Na conclusão, realizamos um balanço geral do nosso trabalho. Em primeiro

lugar, avaliamos em que medida as questões levantadas obtiveram respostas. Em

segundo lugar, procuramos sintetizar aspectos relevantes da vida e do testemunho

teresiano que continuam válidos hoje, convalidados pelo testemunho de Edith Stein5.

Em terceiro lugar, de forma honesta, apontamos alguns dos limites deste trabalho. Por

último, apresentamos algumas vias deixadas em aberto pelo nosso estudo que

mereçam serem exploradas.

Enquanto em São João da Cruz se concede particular atenção à forma das

'noites' da purificação, como estados infusos na alma, em Santa Teresa de Jesus

encontram-se conciliadas na alegoria dos diversos níveis do desenvolvimento da

consciência, do tratamento interior simbolizado pelas moradas do Castelo Interior

como o lugar psicológico do autoconhecimento e de uma progressiva interiorização

espiritual6.

5 FELDMANN, Christian. EDITH STEIN, judia, ateia e monja. Bauru-SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, p. 48. 6 JOÃO DA CRUZ, São. Obras completas. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 23.

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1 TERESA DE JESUS RELATA SEU MODO DE FAZER ORAÇÃO

1.1 Introdução

Teresa Ahumada, uma mulher que viveu sessenta e sete anos uma vida ativa

e produtiva, apesar de doenças e angústias que teriam levado muitas pessoas à

inatividade, e até mesmo a não sair da cama. Pobremente vestida, sem recursos

financeiros até para uma simples refeição decente; às vezes montada em uma mula

ou em algum carro de camponês, sob calor ou frio extremos. Apesar disso, fundou

dezessete conventos e vários mosteiros. Carregou ao longo de seus 67 anos um

grande desejo de ser autêntica, leal consigo mesma, com Deus e com os outros.

Escreveu a história de sua vida, a pedido de seus confessores, para que colocasse,

por escrito, todas as maravilhas que Deus operava em seu coração. Possuía

habilidade administrativa e humor incomuns. A decisão e intrepidez de um grande

soldado, ao mesmo tempo paciência, obediência e humildade de um santo.

1.2 Biografia de Teresa Cepeda Ahumada

Os biógrafos7 de Teresa de Jesus8 dividem a sua vida em três períodos: a) o

da infância e da juventude, entre 1515 e 1535, caracterizado pelas aventuras infantis

e pela vaidade juvenil9; b) o mosteiro da Encarnação de Ávila10, entre 1535 e 1562,

com vinte anos de idade e anos de luta interior contra si mesma e contra os demais;

todavia, neste período decidiu abraçar a vida religiosa e fez a sua profissão religiosa

7 WALSH, William Thomas. Santa Teresa de Ávila. São Paulo: Cultor de Livros, 2016: o Padre Ribera foi o seu primeiro biógrafo, p. 12. 8 Cf. SOLIMEO, Gustavo Antônio e Plinio Maria Solimeo. A EXTRAORDINÁRIA SANTA TERESA DE JESUS, Reformadora do Carmelo. São Paulo: Petrus Editora Ltda, 2016: Teresa de Ávila se chama Teresa de Jesus. Criou-se o hábito de chamar Teresa de Ávila aquela que, para Cristo e para toda a Igreja, se chama verdadeiramente Teresa de Jesus. No início do século XX, o brilho excepcional na França e no mundo carmelita de Lisieux, herdeira do mesmo nome, irmã Teresa do Menino Jesus, forçou essa denominação para as distinguir. [...], Teresa talvez não tenha nascido em Ávila, e seu corpo, ou aquilo que dele resta, repousa em Alba de Tormes, onde ela deixou esta vida depois de ter marcado um número considerável de cidades, sobretudo através da obra de suas fundações”, p. 7s (Prefácio). 9 Teresa não foi à escola, sua formação foi doméstica; autodidata, sob a orientação da sua meia irmã, Maria de Cepeda, filha do primeiro casamento do pai, bem mais velha. 10 Cf. SOLIMEO: ”O Mosteiro (ou Convento) da Encarnação fora fundado em 1479 como um Recolhimento de Irmãs Terceiras Carmelitas. Mais tarde estabeleceram nele a vida regular da Ordem Segunda, e o recolhimento foi convertido em convento com o título de Nossa Senhora da Encarnação”, p. 25.

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14

(Cf. V 2, 10; V 4, 10), até encontrar o seu próprio caminho; morte de seu pai em

dezembro de 1543; c) o período final, entre 1562 e 1582, o mais frutuoso do ponto de

vista espiritual e apostólico, em que realizou várias fundações, quer femininas, quer

masculinas11. Abraça a vida religiosa e toma o hábito de monja carmelita em 3 de

novembro de 1536 e fez os votos em 3 do mesmo mês em 153712.

Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, seu nome de família, nasceu na

madrugada de 28 de março de 1515, quarta-feira da Paixão, tendo sido batizada uma

semana depois, a 4 de abril, quarta-feira de Páscoa, na paróquia de São João

Baptista, recebendo o mesmo nome da sua avó materna13. Foi a terceira filha do

segundo casamento de seu pai; crescera muito ligada ao seu pai e à sua mãe, ao seu

irmão Rodrigo, ao seu tio paterno Pedro (V 4, 10), e ao seu primo, filho de outro tio

paterno, chamado Francisco (Cf. V 2, 2, nota 4).

O pai de Teresa, Alonso Sánchez de Cepeda, conhecido como “o Toledano”,

por ser natural de Toledo, veio para Ávila com os seus pais, Juan Sánchez de Toledo

e Inês de Cepeda, nos finais do século XV. A família paterna de Teresa era composta

por judeus conversos, fato surpreendentemente ignorado por todos seus biógrafos até

meados do século passado, os quais exaltavam a pureza dos Cepedas como

legítimos descendentes de Vasco Vázquez de Cepeda, nobre que combateu ao lado

de Afonso XI no cerco de Gibraltar14. O seu bisavô, Alonso Sánchez de Toledo, todavia

“era judeu converso e comerciante rico”15. Juan Sánchez de Toledo, o avô paterno,

decidiu partir para Ávila para aí recomeçar a sua vida, após ter sido condenado a

participar nas procissões dos reconciliados durante sete sextas-feiras com o

sambenito (escapulário) vestido, humilhação pública por ser um marrano, ou seja, um

cristão-novo, que ocultamente permanecia judeu16.

11 Cf. TERESA DE JESUS. Obras completas. (Coord.) Frei Patrício Sciadini. Tradução do texto estabelecido por Tomás Alvarez, 5. ed. São Paulo: Carmelitas/Loyola, 2013: prólogo de “fundações”, p. 593; Cf SESÉ, Bernard. TERESA DE ÁVILA, Mística e andarilha de Deus. São Paulo: Paulinas, 2008. 12 SESÉ, Bernard. Teresa de Ávila, mística e andarilha de Deus. São Paulo: Paulinas, 2008, p.26 e 27. 13 WALSH, William Thomás: A declaração do pai da menina, afirmando que, “na quarta-feira, dia 28 de março do ano de 1515, nasceu minha filha Teresa, às cinco horas da manhã, mais meia hora, menos meia hora (estava precisamente a despontar o sol dessa quarta-feira)”, p. 12. 14 WALSH, William Thomas. Santa Teresa de Ávila. São Paulo: Cultor de Livros, 2016, p. 13. 15 Cf. SOLIMEO, Gustavo Antônio e Plinio Maria Solimeo. A EXTRAORDINÁRIA SANTA TERESA DE JESUS, Reformadora do Carmelo. São Paulo: Petrus Editora Ltda, 2016, p. 16. 16 Idem, p. 16; Contudo, gostaria de mencionar uma interpretação mais geral da forte presença de conversos na renovação religiosa de século XVI espanhol, sugerida por Yosef Hayim Yerushalmi, segundo o qual o afluxo de conversos no mais amplo filão do catolicismo espanhol teria desempenhado um papel determinante sobre a renovação teológica e mística, como se os filhos dos judeus convertidos tivessem desejado, tornando-se intérpretes de primeiro plano da transformação religiosa, introduzir no mundo em que estravam, inusitadas abrangências culturais e relevantes novidades, não obstante a

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15

Viúvo do seu casamento com Catalina del Peso (1505), Alonso de Cepeda

casou-se com Beatriz de Ahumada, outra donzela de sangue velho (1509)17. Dom

Alonso procurou ocultar as suas raízes hebraicas, de modo que não há nada na

infância de Teresa que lembre práticas ou costumes judaicos18.

Em sua casa, tanto da parte do pai como da mãe, vive-se uma vida cristã

piedosa: oração, amor à Virgem Maria, leitura da vida dos santos. Fruto deste

ambiente, com cerca de oito anos, Teresa consegue convencer o seu irmão Rodrigo,

mais velho do que ela, a partirem juntos para terra de mouros a fim de serem

martirizados. O zelo dos pequenos aspirantes ao martírio apenas fora impedido pelo

tio, Francisco de Cepeda, o qual os encontrara no caminho (cf. V 1,4).

Do primeiro casamento de Alonso Sánchez de Cepeda, nasceram Maria (1506)

e João (1507). Do segundo casamento, antes de Teresa, nasceram Fernando (1510)

e Rodrigo (1511). Depois de Teresa, sua mãe deu à luz Lourenço, Antônio, Pedro,

Jerônimo, Agostinho e Joana, a caçula, em 152819. Após o nascimento de Joana, dona

Beatriz permanece em Gotarrendura para recuperar suas forças, contudo, falece nos

primeiros dias de 1529. Os numerosos irmãos de Teresa partiram para as Américas,

como era habitual entre os descendentes dos conversos. O seu irmão Rodrigo morreu

durante um combate além-mar, a tal ponto que Teresa o considerava um mártir da fé,

enquanto o seu irmão Dom Lourenço de Cepeda20 (1519-1580) chegou a tornar-se

tesoureiro real em Quito, no Peru; tendo regressado à pátria, patrocinou o convento

fundado por Teresa em Sevilha (cf. F 25, 3).

Teresa, com aproximadamente quatorze anos, após a morte prematura da

mãe, Beatriz de Ahumada, fica inconsolável, pede à Virgem Maria, que a substituísse:

“supliquei-lhe, com muitas lágrimas, que fosse minha Mãe” (Cf. V 1,7).

Teresa agora é uma jovem moça, sua personalidade desenvolve-se e afirma-

se. Sob influência materna, aprecia ler obras de cavalaria; cavaleiros da Távola

Redonda, ou de Amadis de Gaula inspiraram a tal ponto que levou a jovem a escrever

consideração dos confins da ortodoxia. Do texto de Ana Foa, http://www.osservatoreromano.va/pt/news/o-avo-marrano-de-teresa. Acesso em 8 dez 2017, às 11h37min. 17 Obras Completas, p. 679: Fidalgos de sangue limpo: não tinham ascendência judia nem moura. 18 Cf. SESÉ, Bernard, p. 14. 19 Cf. SOLIMEO, p. 16. 20 OC, cf. p. 707, nota 4: [...], que partira para a América em 1540, regressava depois de trinta e cinco anos de ausência, viúvo mas acompanhado dos três filhos: Francisco, Lorenzo e Teresita, bem como do irmão Pedro. Ele desembarcou em São Lucas de Barrameda em agosto de 1575, passando em seguida a ser dirigido espiritualmente pela sua Santa irmã. Cf. Epistolario e, em especial a Relação 46”.

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16

o seu próprio herói: o Cavaleiro de Ávila21. Teresa começa a ter preocupações

próprias de uma jovem donzela da sua idade (cf. V 2,1-2). Na adolescência, acalentou

a sua orfandade com a companhia de amigos e amigas que acalmaram os seus

“fervores da infância” e experimentou os seus “primeiros amores” e também os

prejuízos advindos das más companhias (cf. V 2,3-4). Contava dezesseis anos, o seu

pai a interna no convento das agostinianas de Ávila (cf. V 2,3-4.6) para preservá-la

das más influências.

No convento agostiniano Santa Maria da Graça, em Ávila, apesar de no

princípio não sentir o menor interesse em ser “freira” (Cf. V 2, 8), germinou a vocação

de Teresa para vida religiosa e teve início um período de lutas interiores, típico da

dinâmica vocacional (cf. V 3, 1). Através de Maria Briceño (1498-1584), de ilustre

família avilense, religiosa agostiniana, mestra das pensionistas, o caminho de Teresa

ganhou nova luz (cf. V 2, 10). A companhia desta monja fez com que Teresa não só

perdesse a repugnância à vida monástica, mas ganhasse mesmo alguma afeição à

ideia de seguir a vocação religiosa (cf. V 3,1-2). Contudo, apenas admitia a

possibilidade de entrar no mesmo mosteiro onde estava uma grande amiga sua,

Juana Juárez, monja carmelita (cf. V 3,2).

Ao fim de um ano e meio, Teresa adoeceu gravemente e retornou à casa

paterna. Quando melhorou foi levada para a casa de sua irmã Maria (cf. V 3,3). No

caminho, deteve-se alguns dias na casa de seu tio paterno, Pedro; as leituras

espirituais aí realizadas (cf. V 3,4) e a força das palavras de Deus a ecoar no seu

coração fizeram com que Teresa se determinasse a abraçar a vida religiosa (cf. V 3,5).

Ela própria confessa que, nesta luta interior, foi mais movida antes por um temor servil

do que pelo amor (cf. V 3,6). Após a leitura das Cartas de São Jerônimo, ganhou

coragem e revela ao pai que queria ser monja (cf. V 3,7). A decisão estava tomada a

despeito da resistência paterna (cf. V 3,7). Aos vinte anos, no dia 2 de novembro de

153522, Teresa foge de casa para professar como carmelita no mosteiro de Santa

Maria da Encarnação de Ávila, onde tinha a sua amiga, Joana Juárez (cf. V 4,1). No

21 Cf. SESÉ Bernard, esse texto perdeu-se, p. 17. 22 WALSH, p. 62: A data de entrada de Teresa na Encarnação tem sido discutida. La Fuente e os Bolandistas situam-na logo em 1533. Yepes diz que ela tinha 18 anos, o que levaria ao mesmo ano. Ribera dá 1535. Mir, notando que a escritura de doação que o pai fez ao convento é datada de 28 de Outubro de 1537, pensa que a entrada foi provavelmente em 2 de Novembro de 1536. D. Maria de Pinel, Julián de Ávila e várias testemunhas do processo de beatificação concordam em 1535. Finalmente, o Papa Gregório XV na bula de canonização, declara que ela tinha 20 anos de idade, o que daria o ano de 1535. Isto está de acordo com a afirmação do Historiador das Carmelitas, Fr. Jerônimo (Reforma, livro I, VIII), que diz que ela recebeu o hábito em 1536.

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Encarnação, onde viveu vinte e sete anos, encontrou um mundo não tão santo quanto

sonhara (cf. V 5,1). Viviam lá quase 200 monjas, segundo a regra carmelita mitigada.

À semelhança de outras jovens fidalgas, Dona Teresa Ahumada pôde conservar os

seus apelidos e gozar de certos privilégios (cf. V 4,5). A clausura era pouco observada

(cf. V 7,5), muitas monjas nobres tinham criadas e existiam classes sociais: nobres e

plebeias (cf. V 7,5). Novamente Teresa adoece e vê-se obrigada a retirar-se do

mosteiro para tratamento de saúde (cf. V 4,5).

Fora confiada aos cuidados de uma curandeira e com seus tratamentos

agressivos, a sua saúde piora (cf. V 4,5-7); Teresa quase morre, pois passa quatro

dias aparentemente morta, pronta para ser enterrada, não fora a perspicácia e a

intransigência do seu pai23 (cf. V 5,9-10; 6,1). Em consequência desta enfermidade

esteve cerca de quatro anos praticamente paralisada na enfermaria do Encarnação.

“Eu tinha tanta pressa de voltar ao meu mosteiro que fiz com que me levassem para

lá nesse estado” [...] “Eu estava conformada com a vontade de Deus, mesmo que Ele

me deixasse para sempre naquele estado” (1539-1542; cf. V 6,2).

Observadora atenta da realidade circundante, Teresa mostra ver a vida pulsar

à frente da dor e dos seus sofrimentos. Neste sentido, faz uma crítica contundente à

tibieza da vida religiosa da sua época, antecipando já a necessidade de uma

refundação da Igreja: “Oh! Grandíssimo mal, grandíssimo mal o dos religiosos – falo

agora tanto de mulheres como de homens – que vivem onde não se guarda religião,

onde, num mosteiro há dois caminhos: o caminho de virtude e religião e de falta de

espírito de religião. Usa-se tão pouco o da verdadeira religião, que mais há de temer

o frade e a freira, que deveras querem seguir totalmente a sua vocação, aos de sua

mesma casa, do que a todos os demônios. Não sei porque nos espantamos de que

haja tantos males na Igreja; pois os que deviam ser exemplos de virtude aonde todos

as fossem haurir, têm tão apagado o labor que, com o seu espírito, os Santos

deixaram nas religiões”. “Que a divina Majestade remedie tanto mal, como vê que é

preciso, amém” (Cf. V 7,5).

A doença deixou-lhe sequelas para o resto da vida. Teresa atribuiu a sua cura

à intercessão de São José (cf. V 6,6-8). Desde então, São José assumiu um papel de

relevo na sua vida espiritual. “Quem não encontrar mestre que ensine a rezar tome

por mestre esse glorioso Santo [São José] e “não errará o caminho” (cf. V 6, 8).

23 A sua sepultura estava aberta no mosteiro Encarnação (cf. V 6, 9).

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“Quisera eu persuadir a todos a serem devotos deste glorioso Santo, pela grande experiência que tenho dos bens que alcança de Deus. Não tenho conhecido pessoa que deveras lhe seja devota e lhe presta particulares obséquios, que a não veja mais aproveitada na virtude; porque aproveita de grande modo às almas que a ele se encomendam. Parece-me que há alguns anos que, cada ano no seu dia, lhe peço uma coisa e sempre a vejo realizada; se a petição vai algo torcida ele a endireita para maior bem” (Cf. V 6, 7).

Teresa inicia então uma nova e longa luta interior: viver uma vida entre o amor

a Deus e o amor ao mundo (cf. V 7,17; 8, 2-3)24. Elogia um padre dominicano, seu

confessor, o qual lhe recomenda que não abandone a oração; ela só traz proveito e

Teresa nunca mais abandona a oração (cf. 7, 17), sendo estas suas palavras:

“A minha vida era trabalhosa ao extremo, porque, na oração, eu via melhor as minhas faltas. De um lado, Deus me chamava: do outro, eu seguia o mundo. Davam-me grande alegria todas as coisas de Deus, mas eu me via ligada às do mundo. Tenho a impressão de que desejava conciliar esses dois contrários, tão inimigos um do outro: a vida espiritual e os gostos, alegrias e divertimentos dos sentidos. Na oração eu passava por grandes trabalhos, porque o espírito não era senhor, mas escravo: por isso, eu não podia me recolher dentro de mim (que era o meu modo de proceder na oração) sem levar comigo mil vaidades” (cf. V 7, 17).

Deus triunfa na sua conversão em dois atos: primeiro, diante duma imagem de

um Cristo muito chagado (cf. V 9,1.3), “a partir de então fui melhorando muito” (cf. V

9, 3). Pela leitura das Confissões de Santo Agostinho25 (cf. V 9, 7-8). “Eu bem sabia

que o amava, mas não compreendia, como iria entender, o que é amá-lo

verdadeiramente” (cf. V 9,9). Conforme depreende-se do texto, obra definitiva, por um

dom do Espírito Santo, que lhe deu a capacidade de amar sem apegos nem

dependências, numa plena liberdade interior (1554)26. Este voltar-se para Deus abriu

Teresa às experiências místicas e preparou-a para as suas duas grandes e

importantes obras: ser fundadora da reforma da Ordem do Carmo e ser uma escritora

incontornável em espiritualidade e mística cristã (cf. V 10, 7 e nota 5). Com boa

frequência e com diferentes palavras expressa a sua humildade: “Enquanto eu estiver

24 “Dados interessantes para a cronologia da vida interior de Santa Teresa: ela escreveu isso, provavelmente (primeira redação do livro da Vida), em 1562. Sua vida de oração começou vinte e oito anos antes, em 1534. Mais de dezoito foram de luta: até 1553/62. Houve, contudo, um grande ano sem oração: 1542-1544 (cf. cap. 7, n. 11). – Cotejem-se esses dados com os que a Santa oferece no cap. 10, n. 9 (“nos vinte e sete anos em que me dedico à oração...”); cap. 23, n. 12 (porque se, ao fim de quase vinte anos de prática nada conseguira lucrar... melhor seria deixa-la”). Neste último texto, ela se refere aos eventos de 1554; para essa data, soma-se aos dezoito anos de “luta” um ano de oração mística. 25 A data do Encontro da Santa com o livro do Doutor de Hipona ocorreu, muito provavelmente, no ano de 1554, data de sua conversão. Confissões, L, VIII, cap. 12 (cf. V 9, 8). 26 Cf. SOLIMEO: Teresa contava trinta e nove anos, p. 37.

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viva, está claro que não se deve divulgar o bem; estando morta, isso de nada vai

servir, a não ser para que o bem perca a autoridade e o crédito por ser dito por uma

pessoa tão ínfima e ruim” (cf. V 10, 7).

Teresa preocupa-se com o progresso espiritual das pessoas, razão pela qual

diz ela: “também tentei fazer com que outras pessoas tivessem oração”. Nessa época

o seu pai estava acometido da doença que o matou. Foi cuidar dele; consolava-se no

fato de que o seu pai não estaria em pecado mortal. Embora fosse enfermeira27,

enfrenta grandes trabalhos ao cuidar dele, pois acreditava que o seu pai tivera,

também, grandes trabalhos ao cuidar dela. Após receber a Unção dos enfermos

aconselhou-a que o recomendássemos à misericórdia de Deus. Ele passou quase três

dias sem sentido. Contudo, relata, que no dia de sua morte, o Senhor lhe devolveu a

consciência de um modo tão perfeito que causou admiração aos que o assistiam

naquele momento. Dom Afonso morreu em 24 de dezembro de 1543, último dia do

ano, segundo a contagem então vigente em Ávila (cf. V 7, 14-16).

1.3 Contexto no qual viveu Santa Teresa de Jesus

A história não registra períodos favoráveis às iniciativas femininas, embora,

houvesse numerosas e frutuosas iniciativas isoladas; logo, Teresa de Jesus viveu num

espaço geográfico e num tempo pouco favorável à iniciativa e à atividade feminina28.

Normalmente, a vida de uma mulher fora circunscrita ao marido ou ao intramuros do

convento. Contudo, sendo um momento ímpar da história da Espanha e da própria

Cristandade, pois o país vivia o apogeu econômico e militar, logo, podia exercer

profunda influência nos acontecimentos internacionais29. Todavia, foi neste ambiente

vital que Teresa nasceu, cresceu e viveu a sua vocação, superando-se e superando

inúmeros obstáculos, conforme ela mesma relata em seu livro da Vida. Enunciaremos,

portanto, algumas das principais características do contexto político, cultural, religioso

e espiritual em que Teresa viveu. Pois, a partir da conquista de Granada aos mouros,

a expulsão dos judeus e da descoberta da América por Cristóvão Colombo, ambas

em 149230, a Espanha experimenta grande desenvolvimento, que perdura mais de

27 ROPS, Daniel (1901-1965). A Igreja da renascença e da reforma (II). São Paulo, Quadrante, 2014, p. 130: Cuidar de doentes em estado repugnante. 28 Cite-se a história de Joana D´Arc. 29 Idem, p. 9. 30 WALSH, p. 11.

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cem anos, portanto, chamado “século de ouro” espanhol. Sob o governo de Isabel e

Fernando, chega a tornar-se a primeira potência da Europa.

Walsh questiona: “qual a fonte interior de tão vitais realizações, a que serviu de

meio um corpo enfermiço e, débil, no entanto incorruptível? Considere-se primeiro o

cenário:

“O mundo para o qual ela abriu os olhos na primavera de 1515 era um mundo que passava por revolucionárias agonias da tremenda transição dos tempos medievais para os modernos. Só vinte e três anos tinham passado – uma geração apenas – desde o providencial ano de 1492, em que a cruzada hispânica de 777 anos culminara com a conquista de Granada aos mouros, a expulsão dos judeus e a descoberta do hemisfério ocidental. Havia só nove anos que Colombo estava na sepultura. Eram ainda vivos homens que com ele tinham navegado: alguns gozando na própria pátria do ouro das índias; outros levando a luz da civilização ao México ou à Ásia, sem nenhum deles dar muita importância à predição que ele fizera de que o fim do mundo seria em 1655. A sua protetora, Isabel a Católica tinha morrido onze anos antes. Carlos V era um rapaz de quinze anos. O Papa Leão X, filho de Lourenço de Médicis, sentava-se na cadeira de São Pedro, e em 1524, o ano anterior ao do nascimento de Teresa, tinha promulgado uma importante indulgência, sob as habituais condições de penitência e contrição, para conseguir fundos para levantar em Roma uma nova basílica, em que trabalhava Michelangelo31.

A história e a espiritualidade são inseparáveis. Daí a importância de conhecer

os movimentos espirituais, econômicos e culturais que acompanharam Teresa de

Jesus, em um momento em que a Espanha se espelhava nos seus reis32, os quais

eram monarcas espirituais no rigor da palavra, porque juntavam ao principado uma

espécie de papado; os chefes da sociedade civil eram os patriarcas da sociedade

religiosa.

Como lembra Oliveira Martins, a monarquia espanhola fora a primeira que entre

as da Europa moderna conseguira centralizar o poder no trono. “As tradições e os

acasos particulares da sua história tinham feito com que Fernando e Isabel, ainda

antes de seus súditos lhes descobrirem a América, fossem já os monarcas mais ricos

e poderosos da Europa33.

Reformas e heresias ocorreram no século XVI: a humanista, a protestante, a

católica/tridentino; marcado pelo Renascimento, o século XVI foi uma época de

mudanças. Basta evocar a descoberta do novo mundo e o intensificar das trocas

comerciais e culturais à escala global. A situação político-religiosa europeia e

31 WALSH, p. 10-11. 32 MARTINS, Oliveira. História da civilização ibérica. Portugal: publicação Europa-América, Ltda, sd, 171. 33 Idem, p. 172.

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espanhola muito instável, afirmando mesmo que “Teresa viveu um dos momentos

mais críticos da história da Europa”. Contudo, convém notar que, quando Teresa

desenvolveu a sua atividade, o poder e a glória dos conquistadores e do século de

ouro espanhol já se encontravam em decadência; Erasmo34 e Lutero perturbavam o

sistema de crenças e impactavam a espiritualidade da época. Sendo uma filha da sua

época, a experiência espiritual e mística de Teresa de Jesus é inevitavelmente reflexo

da mesma.

Pretendemos analisar, parcialmente, a relação entre o itinerário de vida e de

oração de Teresa de Jesus, o seu amadurecimento espiritual e a redação das

Moradas do Castelo interior. Na mensagem dirigida ao Bispo de Ávila, por ocasião do

quinto centenário do nascimento de Teresa, o Papa Francisco apresentou a imagem

do caminho como nota dominante e definidora da sua identidade:

“A imagem do caminho pode resumir muito bem a lição da sua vida e da sua obra. Teresa entendia a vida como um caminho de perfeição, ao longo do qual Deus conduz o homem, de morada em morada, até chegar a Ele e, ao mesmo tempo, põe-no a caminho dos outros homens”35.

O pensamento teresiano perpassa em quase todas as religiões. Teresa utiliza

a imagem do caminho – de origem bíblica36 – para significar uma fonte viva da sua

espiritualidade e o seu desenvolvimento no tempo (antes da eternidade). Para Teresa,

caminhar é seguir Jesus e crescer progressivamente, em Cristo, subindo para Deus:

plena configuração a Cristo crucificado. Cristo foi a meta em todo o processo das sete

jornadas da vida espiritual. No Castelo Interior, tema do terceiro capítulo desta

monografia, Teresa oferece-nos a sua própria visão da vida e do desenvolvimento

34 Erasmo de Roterdan (1469-1536) foi o grande cultor do Humanismo cristão no primeiro terço do século XVI. Filólogo e defensor de um retorno às fontes nas línguas originais, mormente à Bíblia, advogou um regresso à simplicidade do Evangelho e rejeitou a escolástica especulativa. Formado no espírito da devotio moderna e da Imitação de Cristo, após ter sido ordenado sacerdote, percorreu vários países e cidades europeias tornando-se fortemente crítico da corrupção da Igreja e dos prelados, dos príncipes, da teologia escolástica e dos seus mestres, da ignorância do clero e da superstição popular, do fanatismo e da intolerância, das indulgências e dos frades. Porém, não se limitou a criticar, mas propôs uma renovação cristã e eclesial para todos, sublinhando a dignidade do matrimônio numa sociedade fortemente clericalizada. Por tudo isto, o erasmismo constituiu uma componente básica. 35 FRANCISCO – Mensagem do Papa Francisco por ocasião do quinto centenário do nascimento de Teresa de Ávila, também conhecida por Teresa Jesus (15 de outubro de 2014), in http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pontmessages/2014/documents/papa-francesco_20141015_messaggio-500-teresa-avila.html (acesso em 06-01-2018). Na Mensagem do Papa Francisco, podemos vislumbrar a dupla dimensão da mísica: 1) a vertical, de relacionamento com Deus; 2) e, a horizontal, em direção ao próximo; ambos os movimentos têm origem em Deus. 36 CI: Teresa não faz exegese nem exibe uma erudição bíblica que não possui. Ela evoca o dado bíblico com frequência e acerto” (cf. Introdução ao CI, p. 436).

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espiritual. Com imagens e esquemas de obras anteriores, aos 62 anos, a partir da sua

própria experiência, apresenta-nos uma síntese criativa e original em que narra o

caminho espiritual como uma progressiva imersão na interioridade do castelo37, ou

seja, no interior da consciência pessoal.

Conforme o autor das linhas introdutórias ao processo das sete jornadas da

vida espiritual, são duas as inflexões do magistério teresiano: mistagógica e

pedagógica:

“O processo descrito no castelo [interior] segue duas linhas: interiorização (linha antropológica) e união (linha teologal cristológica). Elas são desenvolvidas a partir de pressupostos simples: um ponto de partida, presença de Deus no homem; um ponto de chegada, união com Deus, quintessência da santidade; e um caminho a percorrer: oração como atuação da vida teologal, núcleo da vida cristã. Não há oração sem coerência com a vida concreta, e esta tem sua tábua de valores no amor aos demais. O que está em jogo não é o muito pensar, mas o muito amar; e amor é determinação e obras, mais que sentimento e emoção”38.

Em 1562, Teresa, em 24 de agosto, funda o primeiro mosteiro feminino de São

José, na cidade de Ávila. A partir de então, Teresa de Cepeda y Ahumada passaria a

ser simplesmente Teresa de Jesus, monja descalça. Suas filhas espirituais passaram

a chamá-la de Madre. Nos primeiros cinco anos neste convento conclui a redação de

sua obra, Vida, bem como do Caminho da Perfeição. Aplica-se ainda à redação das

novas Constituições39. Enfim, trabalhando, rezando, dirigindo o convento, recebendo

visitas; Teresa passa alguns anos de calma. No entanto, é um tempo no qual “os

grandes favores do Senhor” são frequentes e abundantes (cf. V 39, 5).

A reforma carmelitana teve início com a fundação do mosteiro de São José de

Ávila, em 24 de agosto de 1562 (cf. V 32, 10ss), sendo respeitado o que era costume

na Ordem, seguindo-se a Bula de Mitigação40. Continuou pelos últimos vinte anos da

sua vida, até 1582, com a fundação São José de Santa Ana na cidade de Burgos,

para ser mais exato, 19 de abril, oitava da páscoa da Ressurreição do ano de 1582

(Cf. F 31, 26; 31, 45). Uma iniciativa notável, principalmente naquela época, para uma

mulher, em colaboração com São João da Cruz, que se tornou reformadora de

mosteiros masculinos. Às dezessete fundações de mosteiros femininos, devemos

adicionar quinze de mosteiros de frades descalços, com a colaboração de Juan de la

37 Introdução ao CI, p. 436s. 38 Introdução ao CI, p. 436s. 39 SESÉ, cf. p. 53. 40 Ela se refere à Bula “Romani Pontificis”, de Eugênio IV, data de 15 de fevereiro de 1432 (cap. 36, n. 26, nota).

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Cruz e outros (1568-1581). Com determinação, Teresa superou-se, superando todas

as adversidades; confira-se o texto de fundações, capítulo 31 e se terá uma noção da

extensão das adversidades que a Santa e companheiros enfrentaram. “Morreu entre

as nove e as dez horas da noite, numa quinta-feira, 4 de outubro de 1582, dia de São

Francisco de Assis, em Alba de Tormes41”.

Teresa narra que ao retornar de Sória, fizera uma viagem com dificuldades em

função do mau tempo reinante na ocasião, o que abalara profundamente a sua frágil

saúde; julgava que a prioresa de Palência – Inês de Jesus – poderia substituí-la, se

tudo tivesse acertado para a fundação em Burgos. Continua Teresa: “estava

pensando nisso e muito decidida a não ir, quando o Senhor me disse estas palavras,

o que me mostrou que a licença já fora concedida:

“Não te incomodes com estes frios, pois Eu sou o verdadeiro calor. O demônio empenha todas as suas forças em impedir aquela fundação; empenha-te em meu nome para que se faça, e não deixe de ir em pessoa, pois te trará grande proveito” (cf. F 31, 11).

Outro exemplo de seus frutos místicos:

“Senti um grande fogo na alma que eu não chego a entender para poder dizer de que maneira é. As dores corporais são tão incompatíveis [insuportáveis] que, apesar de eu as ter passado nesta vida gravíssimas, tudo é nada em comparação do que ali percebera. Eu fiquei tão aterrada, e ainda agora o estou ao escrever isto, apesar de haver já quase seis anos que, de temor parece-me, e assim é – me falta o calor natural, aqui onde estou. De então para cá tudo me parece fácil em comparação dum momento que se haja de sofrer o que eu ali padeci” (cf. V 32, 1-5). Depois desta lúgubre visão, a santa fez o voto de sempre fazer o mais perfeito42. “Que o sofrimento do tempo presente não tem proporção com a glória que há de ser revelada em nós (cf. Rm 8, 18)”.

1.4 Teresa de Jesus: ascese e maturidade espiritual

Tendo em conta o qualificativo “andarilha43” de Teresa, “As Moradas” podem,

consoante uma dimensão literária, ser consideradas como a meta da sua

peregrinação terrena. Constituem a sua lição magistral, composta na fase de sua

41 A reforma do calendário, promulgada pelo Papa Gregório XIII, fez que o dia 4 de outubro, a Igreja pulou para 15 de outubro de 1582. Foi promulgado pela bula papal Inter Gravissimas (Wuicpedia: Museu de Topografia Prof. Laureani Ibrahim Chaffe, Departamento de Geodésia – UFRGS. Consultado em 19 de junho de 2019). 42 Cf. SOLIMEO: p. 56. 43 SESÉ: [...] chamaram-na de monja andarilha. E ela aplica a si mesma com alegria, esta expressão andariega. Mais tarde hão de chama-la ‘andarilha de Deus, p. 57.

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maturidade espiritual; Teresa escreve as Moradas aos 62 anos, porém, mais do que

a idade, vale a experiência de uma vida amadurecida44. Tal não significa que a obra

tenha sido escrita num clima sereno e de facilidades. Pelo contrário, Teresa escreve

no meio de várias tribulações: saúde precária45, inspiração literária em um contexto

de dores severas castigando o seu corpo, o sequestro do Livro da Vida pela Inquisição

e as preocupações com a reforma do Carmelo, sob as divergências entre os calçados

e os descalços, após a morte do núncio Ormaneto, protetor da reforma, e de sua

substituição por Felipe Sega.

O livro as Moradas do Castelo interior é o ensinamento maior de Santa Teresa,

fruto de sua última jornada terrena; completa o relato autobiográfico da vida; a

pedagogia do Caminho, um mergulho no mistério da vida cristã; finalmente virão os

escritos sobre as fundações e a cartas. O conjunto forma um maravilhoso símbolo do

mistério do homem. Completando as obras anteriores – Vida e Caminho de Perfeição

- apontam para a plenitude da vida cristã e consistem num tratado de oração e de vida

espiritual, entrelaçado com autobiografia, dirigido às suas monjas e a todos quantos

desejam alcançar uma profunda união com Deus (cf. introdução OC, p. 434; p. 435,

plano da obra). Podemos, portanto, identificar, pelo menos três níveis de leitura

distintos na obra: 1) autobiográfico, isto é, história pessoal da autora; este castelo é o

castelo interior de Teresa; 2) simbólico, pois o castelo interior com as suas moradas

sintetiza o mistério da história e da vida interior de todo o homem; 3) teológico, uma

vez que a obra foi escrita com o fito de explicar o sentido profundo da vida mística (cf.

introdução OC, p. 434). Após doze anos de fortes experiências místicas e missionárias

e da redação do Livro da Vida, as vivências do último quinquênio – especialmente a

partir do magistério de São João da Cruz (1572) - Teresa adquire uma nova

44 OC: Teresa começou a escrever As Moradas, em Toledo, a 2 de junho de 1577, a pedido de Jerónimo Gracián, pois o Livro da Vida estava confiscado pela Inquisição. A 29 de novembro, em Ávila, já a obra estava acabada. Pela data da composição, notamos que As Moradas foram escritas não só após as grandes experiências místicas, mas também missionárias, p. 440; cf. SESÉ: p. 133. 45 Cf. SOLIMEO: “[...]; em segundo, por ter a cabeça já há três meses com um zumbido e uma fraqueza tão grandes que mesmo os negócios indispensáveis escrevo a custo. [...]. Porque o Senhor não me deu tanta virtude que o pelejar com a enfermidade contínua e as múltiplas ocupações se façam sem grande contradição da natureza. Faça-o Ele – que tem feito outras coisas mais difíceis para me conceder a graça -, em cuja misericórdia confio” (cf. OC, p. 439, preâmbulo do Castelo Interior). Pelo fim do ano de 1577, Teresa estava no mosteiro de São José de Ávila, para agravar ainda mais a situação, Teresa sofre uma queda na noite de Natal e parte o braço esquerdo, ficando aleijada para o resto da vida. Arranca assim o período mais conturbado da reforma teresiana”, p. 137s.

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compreensão do seu itinerário de Vida e, consequentemente, maiores possibilidades

para elaborar esta síntese teológica (cf. introdução OC, p. 434).

Teresa privilegia uma ascese interior. Neste sentido, As Moradas apresentam

uma ascese orientada para a vida de oração. Conhecer-se e conhecer o seu íntimo –

forças e fraquezas – é a principal tarefa das primeiras moradas. As segundas moradas

convidamos, através da oração, a lutar contra o nosso próprio ego e seus egoísmos

sabendo, no entanto, que Deus nos habita e luta conosco. Nas terceiras moradas,

apesar dos sinais de vitória, somos prevenidos que a luta não pode parar; é necessário

colaborar com Deus neste combate para sermos capazes de superar as grandes

provas e alcançar um amor puro.

Consoante à sua experiência, a Santa recomenda: “quem começou a ter oração

não deve deixá-la, por mais pecados que cometa” (cf. V 8, 5). Isto, contudo, não

significa privar-se de tanto bem e viver uma amizade com o demônio; não há que

temer, mas o que desejar. Diz Teresa: “ao menos irá conhecendo o caminho que leva

ao céu” (cf. V 8, 5); somos sensuais e ingratos, não podemos por nós mesmos chegar

a amá-lo, porque não somos capazes, mas não desprezemos a amizade de Sua

Majestade, o Senhor Deus, amando-o com humildade e com obras.

Bento XVI recordou que o “Livro da Vida”, autobiografia espiritual de Teresa, foi

significativamente intitulado Livro das Misericórdias do Senhor46. Nele, narra o seu

“percurso biográfico e espiritual, escrito, como afirma a própria Teresa, para submeter

a sua alma ao discernimento do Mestre dos espirituais, São João de Ávila”47.

O seu principal objetivo é evidenciar a presença e ação de Deus misericordioso

na sua vida, e por isso, a obra cita com frequência o diálogo de oração com o Senhor.

46 Cf. BENTO XVI – Audiência Geral (2 de fevereiro de 2011), in http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2011/documents/hf_benxvi_aud_20110202.html (consultado em 17-12-2017). 47 BENTO XVI – Audiência Geral (2 de fevereiro de 2011). Juan de Ávila (1499-1569), justamente designado «Mestre dos espirituais», desejou ser missionário no novo mundo, porém, impedido de partir pelo arcebispo de Sevilla, tornou-se apóstolo de Andaluzia. Exerceu um fecundo ministério de objetivo “é evidenciar a presença e a ação de Deus misericordioso na sua vida: por isso, a obra cita com frequência o diálogo de oração com o Senhor. É uma leitura que fascina, porque a santa não só narra, mas mostra que revive a profunda experiência da sua relação com Deus” pregação e missões populares, cuidando dos pobres, dos doentes e formando com outros sacerdotes um grupo dedicado ao estudo, à oração e à pobreza. Acusado de heresia pela Inquisição, esteve preso entre 1531 e 1533. Na prisão, esboçou a sua principal obra: Audi filia. Teve um importante papel na conversão de João de Deus e de Francisco Borja. Relacionou-se com Teresa de Jesus, Inácio de Loyola, Pedro de Alcântara, Juan de Ribera, fray Luis de Granada e outros. O mistério de Cristo, a Igreja como esposa e a vida em Cristo são os temas centrais da sua doutrina. A sua visão sobre a contemplação e as graças místicas aparece delineada principalmente numa carta dirigida a Teresa (Carta 158), na qual também aprova o Livro da Vida (cf. Juan E. BIFET – “Juan de Ávila”, in Ermanno ANCILLI (dir.) – Dicionário de espiritualidade. Tomo II, Barcelona: Editorial Herder, 1983, 408-411).

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É uma leitura fascinante porque a Santa não só narra, mas mostra que vive a profunda

experiência da sua relação com Deus48. O texto é como um prolongamento da

vivência mística.

Podemos apontar uma dupla motivação para a composição de Vida. Por um

lado, obedecer ao mandato de expor o modo de oração e as graças concedidas pelo

Senhor (cf. V prólogo, 1-2). Por outro lado, a necessidade de confessar e transmitir a

ação salvífica de Deus na sua vida, para melhor a examinar, compreender e discernir.

Como tal, cruzam-se, neste escrito, vários planos: a narração biográfica (e auto

hagiográfica), que dá profundidade e unidade ao relato e segue uma dimensão

vertical, pois nela intervém de forma decisiva a misericórdia do Senhor, que lhe

confere um ritmo e uma melodia próprias, com a qual Teresa conta as graças místicas

que lhe foram concedidas; este plano é entrecruzado com outro, o mistagógico49, o

qual evidencia a importância da oração – e não só – como meio de transformação da

vida e de união com Deus50.

De certa forma, a mistagogia manifesta, em si mesma, uma tensão missionária,

pois a experiência mística impulsiona a sair de si mesmo e a partilhar o que se viveu

e experimentou. Teresa pretende atingir um público o mais alargado possível. O seu

verdadeiro objetivo é revelado antes de começar a expor o quarto grau de oração: “a

minha intenção é de motivar as almas com um tão sumo bem, [não dizendo] coisa que

não tenha experimentado muito” (Cf. V 18,8).

Numa época em que a Reforma protestante veiculava uma antropologia

negativa, inserindo um princípio de incerteza na salvação, e a Inquisição, de modo

análogo, fechava e dificultava o acesso à misericórdia salvífica de Deus, Teresa

contrapõe uma antropologia otimista, assente na misericórdia divina (“mas pensando

no amor que me tinha, tornava a animar-me, pois da Sua misericórdia jamais

desconfiei” (Cf. V 9,7), porque há mais alegria no céu por um só pecador que se

48 BENTO XVI – Audiência Geral (2 de fevereiro de 2011). 49 Cf. BENTO XVI – Audiência Geral (2 de fevereiro de 2011). Mistagogia é um termo grego, presente na cultura clássica, composto pela junção de mystes (mistério) – derivado do verbo myo (cerrar os olhos e a boca) – e do verbo ago (conduzir). Etimologicamente é a ação de conduzir/introduzir alguém no conhecimento de uma verdade oculta e nos ritos significativos para a mesma. No cristianismo, adquiriu uma nova importância, pois o próprio Jesus, por meio de parábolas e símbolos, introduziu os discípulos nos mistérios do Reino. Na Igreja Antiga, a mistagogia foi um método usado para introduzir os catecúmenos nos mistérios da fé cristã. Na experiência mística, a mistagogia adquire particular relevância como meio para uma progressiva introdução na experiência do amor de Deus (cf. G.G. PESENTI – “Mistagogia”, in L. BORRIELLO – E. CARUANA – M. R. DEL GENIO – N. SUFFI (dir.) – Dizionario di mistica. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1999, 820-823). 50 Cf. Tomás ÁLVAREZ – “Introdução ao Livro da Vida”, p. 28.

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arrependa do que por noventa e nove justos que não precisem de conversão (cf. Lc

15,7).

O papel da oração é (e será) sublinhado, pois com a oração Teresa via melhor

as suas faltas e era atraída por Deus (cf. V 7, 17). Neste sentido, “mais do que uma

pedagogia da oração, Teresa é uma verdadeira ‘mistagogia’: seus textos ensinam a

rezar, orando ela mesma com ele; com efeito, frequentemente interrompe a narração

ou a exposição para entrar em oração”51.

A partir da sua própria vida e experiência, Teresa sublinha a importância da

oração para o crescimento e maturação espiritual52. A oração constitui o ponto de

encontro que abre a nossa liberdade à vontade de Deus e ao seu desígnio amoroso

sobre nós, não sendo “senão tratar de amizade – estando muitas vezes a sós – com

quem sabemos que nos ama” (Cf. V 8,5). É a porta para receber grandes mercês (cf.

V 8,9). Sem oração – como relação íntima de amizade – é muito difícil que a vida nova

em Cristo cresça e persevere no tempo.

1.5 Conclusão

O cristão tem o direito e o dever de aprofundar no estudo das verdades que ele

deseja transmitir às pessoas a quem ele se dedica. Portanto, a produção literária de

Teresa de Jesus nos oferece uma valiosa ferramenta testemunhal naquilo que pode

conduzir até a mais alta perfeição. A despeito de que Teresa de Jesus viveu em um

momento histórico de grandes e complexas mudanças políticas, religiosas, espirituais

e culturais.

Teresa de Jesus, qualificada monja andarilha, percorreu um caminho com

abundantes pedras de tropeço, que antes de serem obstáculos, dinamizam o seu

crescimento vocacional e espiritual, determina-se a entregar-se fortemente a Deus,

ao seu serviço e ao da Igreja, como escritora e fundadora. Consoante a análise dos

seus textos, a despeito da abundância das pedras de tropeço existentes em seu

51 BENTO XVI – Audiência Geral (2 de Fevereiro de 2011). 52 Teresa considera a oração fundamental para o crescimento espiritual, pois ela própria experimentou a tibieza e estagnação pela sua falta: “por não estar apoiada nesta forte coluna da oração, passei neste mar tempestuoso quase vinte anos” (V 8,2). Por isso, recomenda: “quem começou a ter oração não a deixe, pois é o meio por onde pode emendar-se e, sem ela, será muito mais dificultoso (…) a quem ainda não a começou, por amor do Senhor lhe rogo, não careça de tanto bem” (Cf. V 8,5).

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caminho, o seu crescimento é linear e ascendente, com profunda maturidade pessoal

conduz tudo à maneira de Cristo e segundo um modo de mártir, no qual a oração

perseverante e assídua é a sua força.

Teresa de Jesus, por último, com a ajuda de São José, enxerga além da dor,

ou seja, progride além dos obstáculos, a despeito de seus pecados, como ela mesma

diz, nunca deixa de lutar pelos seus objetivos. Neste contexto “As Moradas do Castelo

Interior”, são como Deus enxugando as suas lágrimas, e, elas refletem a sua profunda

gratidão a Deus, sua Majestade.

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2 CAMINHO DE PERFEIÇÃO

2.1 Introdução

Teresa relaciona as coisas cotidianas com a experiência da oração53,

convencida de que a Deus diz respeito tudo o que toca o nosso ordinário. Em Teresa

tudo se torna pretexto para a oração uma vez que na realidade natural somente o

homem tende para muito além de suas vicissitudes. A Santa passa por uma humilde

conselheira, mas escreve não somente dando pistas, mas definindo objetivos de um

ambiente que lhe é familiar: a oração e seu itinerário, suas exigências, seus efeitos e

seus segredos. Portanto, seguir o caminho de perfeição ensinado por Teresa é tornar-

se cada vez mais configurado a Cristo, em vista do bem comum, direção espiritual.

2.2 Vida contemplativa a serviço da Igreja

As virtudes de que fala Teresa são a pobreza pelo Reino, pois como mulher

sentia-se limitada em trabalhar como desejava para glória de Deus. De acordo com

Teresa tendo o Senhor tantos inimigos e tão poucos amigos, toda a sua ânsia, sempre

foi a busca de pessoas que, como ela mesmo as chama, fossem bons “amigos do

Senhor”. Deseja, portanto, formar uma comunidade, ocupada em orações pelos

defensores da Igreja, pregadores e letrados que sustentam essa comunidade, Igreja,

numa quase busca de evitar que O crucifiquem novamente, deixando-O sem ter onde

reclinar a cabeça (cf. Jo 19, 30; CP 1, 2). Portanto, sua busca de pobreza está

baseada nos critérios evangélicos da confiança na comunhão recíproca. Pobreza

baseada nos critérios evangélicos da confiança na Providência, liberdade interior e

independência exterior, trabalho como forma de pobreza e de comunhão recíproca

(cf. Mt 24, 25). Conversão a Cristo pobre e amor pelos pobres (cf. Relação n. 2).

Preconiza o seguimento e serviço de Cristo pelo caminho da pobreza evangélica: “Não

lhe faltemos nós e não tenhamos medo de que o necessário falte” (cf. CP 2, 2). A

pobreza abraçada por amor de Deus não precisa contentar a ninguém se não a Ele;

53 ORAÇÃO: do latim “oratio”, “fala, discurso”; de “orare: pedir, rezar”; um derivado de “os, boca”, costuma ser o instrumento para esse fim, “orar, falar”; com o advento do cristianismo: significa a palavra que se dirige a Deus, louvando-o e suplicando-lhe (cf. ALDAZÁBAL, José. Vocabulário básico de Liturgia. São Paulo: Paulinas, p. 253).

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esta é a maior honraria do cristão. Duas honras temos na vida: cumprir o que nos

aconselha o Senhor e imitá-lo em alguma coisa (cf. CP 2, 8).

Teresa se empenhava em rogar ao Senhor para que os pregadores e teólogos

fossem os melhores em suas ciências da vida e perfeição, para que assim, as

pudessem bem orientar no seguimento do Caminho de Perfeição. Em seus escritos

sempre se remete à súplica em favor dos servos de Deus. Um bom exemplo reside

no que ela mesmo chama de oração pelas almas. Haverá oração melhor do que esta?

Nas próprias palavras de Teresa: “Se tendes receio de não descontar as penas do

purgatório, fiquem sabendo que também por este meio vos serão descontadas”.

Teresa menciona que o Senhor favoreceu as mulheres, mesmo nas andanças

deste mundo, sofrendo açoites e injúrias e gravíssimos tormentos! Mas isto nunca a

impediu de seguir em frente e avançar naquilo que ela tinha como a missão que Jesus

lhe confiara.

2.3 Caminho de ascese e de comunhão

No caminho de ascese e de comunhão, a Santa sublinha três aspectos

essenciais para o crescimento da vida espiritual: o primeiro é o amor de uns para com

os outros; o segundo, o desapego do tudo criado e o terceiro, a verdadeira humildade;

esta embora seja enumerada por último, para Teresa é a principal e abrange todas as

anteriores (cf. CP 4, 5).

Teresa no seu exigente empenho quanto às virtudes evangélicas, recomenda

o louvável costume do silêncio, habituar-se à solidão, bons requisitos para a oração

e, sendo estes os fundamentos necessários para todos aqueles que desejam afeiçoar-

se ao Senhor (cf. CP, 9). Portanto, de duas espécies de amor deseja tratar: o primeiro

é espiritual, isento de qualquer sentimentalismo e ternura da natureza que o tornem

menos puro. O outro é também espiritual, contudo acompanhado de sensibilidade e

fragilidade humana. Nisto consiste o amor bom e lícito, como o amor aos parentes e

amigos (cf. CP 4, 11).

Teresa retoma a sua insistência no amor pelos confessores, porque, diz ela,

que a primeira pedra do edifício do caminho de perfeição reside na consciência do

homem, logo “com todas as vossas forças livrar-vos de pecados, mesmo veniais e

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seguir o mais Perfeito” (cf. CP 5, 3). É a base sobre a qual assenta devidamente a

oração, e sem este alicerce todo o edifício fica em falso (cf. CP 5, 4).

Ela persiste na matéria, já começada, do perfeito amor, que nos deve unir,

àquele que chama puramente espiritual. Quando Deus dá a conhecer claramente a

uma pessoa o que é o mundo e quanto vale e que há no outro mundo, a diferença que

há entre um e outro, é que um é eterno e o outro um sonho, como diz o salmo, a flor

pela manhã está vicejante e à tarde não se sabe onde estava (cf. Sl 102/103, 14-16).

Amar o Criador ou a criatura, não por fé ou persuasão, mas por experiência, o

que é muito diferente quando esta alma vê e prova o que se ganha com um e se perde

com o outro, que coisa é o Criador e que coisa é a criatura, muitas outras verdades

que o Senhor ensina a quem se deixa instruir por Ele na oração, a quem apraz a Sua

Majestade ensinar, essa pessoa sabe amar muito melhor do que os que ainda não

chegaram a essa perfeição (cf. CP 6, 3). O amor sem interesse próprio deseja e quer

ver a pessoa amada rica dos bens do céu. Isto, conforme a sua pedagogia do amor

de comunhão, sim, é amizade, e não esses amores desastrados que há no mundo, e

nem falo dos maus, destes livre-nos Deus! (cf. CP 7, 1).

Aos que desejam mergulhar no interior da própria alma, no exercício do

caminho de perfeição, o que nos leva à reflexão do desapego das coisas materiais,

da ganância do mundo. Na aceitação de Teresa da total dependência a Deus é o que

a leva a abraçar, não apenas a missão, mas a própria presença Dele no seu eu mais

profundo. O Criador, ou segundo as palavras de Teresa, “Sua Majestade” se

encarregara de infundir nas almas que O buscam, e no caminho da fé54, as virtudes

necessárias para a correta ascese de vida a seguir. Portanto, para a nossa santa, tudo

o que está ao alcance do homem deve ser feito e realizado em nome de Deus, mesmo

com contrariedades ou dificuldades; a disponibilidade do homem deve refletir sempre

a vontade de DEUS: “porque o Senhor se levantará em nossa defesa contra os

demônios e contra o mundo todo” (cf. CP 8, 1).

Entra aqui a verdadeira humildade, pois esta e a virtude do desapego de si

mesmo e do mundo, andam, segundo Teresa, sempre juntas; são duas irmãs

inseparáveis. Exclama Santa Teresa: “Ó soberanas virtudes, senhoras de todo o

criado, imperatrizes do mundo, libertadoras de todos os laços e armadilhas criadas

54 A fé é primeiramente uma adesão pessoal do homem a Deus; é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o assentimento livre a toda a verdade que Deus revelou. É justo e bom entregar-se totalmente a Deus e crer absolutamente no que ele diz. Seria vão e falso pôr tal fé em uma criatura.

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pelo demônio55, tão amadas por Cristo, nosso Mestre, que em nenhum instante se viu

sem elas!” (cf. CP 10, 3).

Tudo ou grande parte, diz a santa de Ávila, reside em deixar o cuidado de si

mesmo e das próprias comodidades, porque quem começa a servir ao Senhor

verdadeiramente o mínimo que pode Lhe oferecer é a vida; se já entregou sua

vontade, o que teme? Claro está que o verdadeiro religioso ou pessoa de oração que

pretende obter graças de Deus não pode recusar o desejo de morrer pelo Senhor e

de por Ele sofrer martírio (cf. CP 12, 2). Logo, Teresa sublinha o empenho em

contradizer a nossa vontade, porque, se tiver esse cuidado, aos poucos se atinge o

auge no caminho de perfeição. Tenha-se, recorda Teresa, ainda muito cuidado no

tocante à primazia, tais como sou mais velho, tenho trabalhado mais, tratam o outro

melhor do que a mim, pois, este é um campo fértil para a ação do demônio, o qual

está sempre atento a quem devorar (cf. 1Pe 5, 8; CP 12, 4).

Santa Teresa continua a sua reflexão a respeito da importância da mortificação

pela perda do amor próprio nas doenças (cf. CP 11) e prossegue sobre a importância

de fugir das questões de honra e das razões do mundo, quem deseja chegar à

sabedoria da verdade, levando-se em conta que a nossa natureza é fraca e sujeita ao

pecado da vanglória. Saibamos, diz a avilense, que próximo ou longe de Jesus Cristo,

carregaremos uma cruz; contudo os méritos que receberemos do Senhor serão

diferenciados. A verdadeira humildade cultiva-se nesta batalha interior que consiste

em não procurar honras e vanglórias (cf. CP 12, 6-7; 13), e nesta luta vence quem

bem se determina (cf. CP 14, 1). Ainda sobre o tema, ela ressalta o papel da

humildade: “Cada um veja em si mesmo o que tem humildade, e verá o proveito que

obteve” (cf. CP 12, 6). Compara o serviço que presta com o que deve ao Senhor, bem

como o enorme favor que Ele fez ao humilhar a Si mesmo para nos deixar um exemplo

de humildade. Ela pensa nos seus pecados e pensa no lugar onde deveria estar por

causa deles (cf. CP 12, 6), e evoca imitar Maria Santíssima:

“Filhas minhas, imitemos um pouco a grande humildade da Virgem Santíssima, cujo hábito trazemos, pois é muito impróprio nos chamarmos monjas suas, já que, por mais que tenhamos a impressão de nos humilhar, bem longe estamos de ser filhas de tal Mãe e esposa de tal Esposo (cf. CP 13, 3).

55 Não entraremos em maiores definições do que vem a ser o “demônio” na obra de Santa Teresa; afirmamos apenas que o “demônio” é o que não tem a sua raiz em Deus.

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Na opinião de Teresa, o desprendimento de si mesmo é o mais difícil (cf. CP

10, 1-2), e aqui reside a verdadeira humildade (cf. CP 10, 3). O desprendimento de si

mesmo começa quando se decide entregar-se totalmente a Cristo (cf. 10, 5-8).

Recordamos a quinta estrofe do seu poema Vossa sou, para Vós nasci:

“Morte dai-me, dai-me a vida; Saúde ou moléstia dai-me; Honra ou desonra mandai-me; Dai-me paz ou guerra lida; Seja eu fraca ou destemida; A tudo direi que sim: Que mandais fazer de mim?” (P II).

2.4 Ascese e a virtude da vida contemplativa

“Vós me pedistes que vos ensine o princípio da oração - Teresa dirigindo-se às

suas monjas, - embora eu não tenha sido levada por Deus a este princípio, pois eu

mesma não possuo essas virtudes; contudo, como não sei um método melhor,

acreditai-me: “quem não sabe mover as pedras no jogo de xadrez, mal saberá jogar,

e, se não souber dar xeque, não saberá dar mate” (cf. CP 16, 1). Destaca a

gradualidade da oração, esclarecendo a via contemplativa e ativa como uma narração

de sua experiência de vida. Diz Teresa não se tratar aqui de ensinar a jogar, mas

fundamentar a explicação sobre o princípio da oração (cf. CP 16, 1):

“A rainha é a que mais guerra Lhe pode mover neste jogo, contando com a ajuda de todas as outras peças. Não há rainha que force o Rei e se render como a humildade; esta O trouxe das entranhas da Virgem e, com ela, nós O traremos preso por um fio de cabelo à nossas almas” (cf. CP 16, 2; Cc 4, 9).

Teresa ressalta que poucos conseguem atingir o grau de contemplação56;

outros demoram e somente mais tarde o conseguem. Insiste na questão da humildade

sincera e efetiva, virtude sem a qual a oração não é o diálogo com Sua Majestade57,

pois se trata de um ritualismo ao qual não corresponde um sentimento interior. Ou

seja, a oração eficaz é um processo inerente ao mistério humano e divino. Todos

procuremos a contemplação; contudo deve-se saber que os contemplativos são como

56 CIC, cf. 2715: “Contemplação é olhar de fé fito em Jesus. “Eu olho para Ele e Ele olha para mim”, dizia Cura de Ars, em oração diante do Tabernáculo. [...]. A contemplação considera também os mistérios da vida de Cristo, proporcionando-nos “o conhecimento íntimo do Senhor”, para mais o amar e o seguir. 57 São três os preceitos do Senhor: a esperança da vida, início e fim de nossa fé; a justiça, início e fim do direito; caridade alegre e jovial, testemunho das obras de justiça (cf. início da chamada carta de Barnabé, sec. II, LH. Livro IV, p. 43).

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soldados que, embora tenham servido muito, estão às ordens de seu capitão para que

ele vos envie a realizar a tarefa que quiser (cf. CP 18, 3).

Teresa recomenda, então, que se pratique a oração mental58: quem não puder

faça oração vocal, leituras e colóquios com Deus, como adiante será melhor

explicado. Não abandoneis as horas de orações comuns; pois não sabeis quando o

Esposo vos chamará, que não aconteça como às virgens desprevenidas (cf. Mt 25, 1-

13). Aqui importa muito alcançar o merecimento mediante a humildade, crendo que

não servis nem para o pouco que fazeis (cf. Lc 17, 10; CP 18).

Santa Teresa chama atenção para a importância e a necessidade da oração

para a alma como a fonte de água viva que o Senhor oferecera à Samaritana (cf. Jo

4, 13). E quão certas e verdadeiras essas palavras saídas da boca da própria Verdade.

Quem dela beber não ficará sedento das coisas desta vida, embora somente muito

mais do que podemos imaginar a partir da sede natural, das coisas da outra vida. E

com que sede se deseja ter esta sede! Porque a alma entende o seu grande valor,

continua Teresa, e mesmo sendo penosíssima, a ponto de fatigar, esta sede traz

consigo a mesma satisfação com que se mata aquela, de modo que é uma sede que

só afoga a das coisas terrenas, trazendo antes fartura. Assim, quando Deus a satisfaz,

a maior graça59 que Ele pode conceder à alma é deixá-la com a mesma necessidade,

sendo cada vez maior a sua vontade de voltar a beber água (cf. CP 19, 2).

A Santa referencia o seu argumento nas propriedades naturais da água: o seu

poder refrescante, quando estamos em um tempo de calor, nos refrescamos

aproximando-nos da água; se houver um grande fogo, um incêndio, matamo-lo com

água, exceto se for o fogo de alcatrão60, o qual se acende mais. Contudo, temos um

fogo refrescante, o fogo do Espírito Santo o qual move o mundo, desejável por todos

quando desejam aproximar-se de Deus, Sua Majestade; também se deseja fosse

inextinguível como o fogo de alcatrão, fogo grego. Então se fora água que chove do

58 O termo “oração mental” não foi criado por Santa Teresa de Jesus. Este termo já existia antes. Podemos encontra-lo nos textos da Filokalia, nas obras lidas por Santa Teresa, como Subida del Monte Sión, de Bernardino de Loredo e Tercer Abecedario Espiritual, de Francisco de Osuña. Também encontramos o termo no livro Imitação de Cristo, de Tomás de Kemps. Porém o termo ganhou maior importância com a obra de Santa Teresa, que fala de oração com colorido, a beleza e a magia de suas experiências místicas e sua enorme devoção. Cf. CIC n. 2709-2724. 59 Padre Grégoire de Saint-Joseph: “Receber de Deus um favor é uma primeira graça; compreender o que é esse favor ou esse dom, é outra; uma terceira, finalmente, é poder explicá-la e expor as suas particularidades” (cf. VASSER, Denis. Leitura Psicanalítica de Teresa d´Ávila. São Paulo: Loyola, 1994). 60 Cf. OC, nota 3, p. 354: Alcatrão: “É uma espécie de betume de que se fazem fogos inextinguíveis para lançar aos inimigos”.

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céu, ela o abafará ainda menos, pois não são contrários, tendo a mesma origem (cf.

CP 19, 3). Logo, conforme o desejo de Deus traz consigo a luz, o discernimento e a

medida, conforme segue:

“Sabeis que essa água viva, essa água celestial, essa água clara quando não está turva, quando não tem lama, mas cai do céu, é limpa como nenhuma outra coisa? Se bebemos dela uma única vez, tenho certeza que deixa a alma clara e limpa de todas as culpas; porque, como tenho escrito61, Deus não permite que se beba dessa água […] se não for para purificar a alma, deixando-a livre do lodo e da miséria nos quais, por suas culpas está mergulhada” (cf. CP 19, 6; Jo 7, 37).

Aos que aceitam o convite universal à contemplação, diz a Santa, o Senhor

atrai a Si essas almas por diversos caminhos, da mesma maneira como há muitas

moradas (cf. Jo 14, 2). Assim como Sua Majestade compreendeu a nossa fraqueza;

“queira o Senhor que não Lhe faltemos nós, amém” (cf. 20, 2). Ele não disse: “venham

uns por este caminho e outros por aquele”. Ao contrário, foi tão grande a Sua

Misericórdia que a ninguém impediu de procurar chegar a essa fonte de vida e dela

beber62. “Bendito seja Ele para sempre! E com que razão Ele me teria impedido!” (cf.

CP 20, 1).

Assim é que quem começa a trilhar o caminho da oração, diz a santa avilense,

mesmo que não continue a segui-lo, receberá, pelo pouco que tiver andado, luz para

percorrer bem outros caminhos; e quanto mais andar, melhor. Basta o “Pai-nosso”63

e a “Ave-Maria”!

Sobre a possibilidade de oração mental ou oral, prossegue Teresa; “necessitais

de uma ou de outra, pois é o ofício dos religiosos“ (cf. CP 21, 6-7). “Todo mestre

quando ensina alguma coisa, afeiçoa-se ao discípulo e gosta que ele se contente com

o que lhe é ensinado, além de ajudá-lo muito para que aprenda. Assim fará conosco

o Mestre celestial” (cf. CP 21, 4). Isto também basta, diz Teresa, quando a exigência

da contemplação é o senso da oração. É sempre um grande bem fundamentar vossa

oração em orações ditas por lábios, como os do Senhor (cf. CP 21, 2-4). Sempre é

61 Observe-se que a “água viva” (contemplação infusa) com a “água lodosa” (oração discursiva). “Aqui” se refere a “água viva”, isto é, a contemplação. 62 Enfim, […] estejamos atentos para que não se cumpra em nós o que está escrito: muitos os chamados, poucos os escolhidos (cf. Mt 22, 14). 63 O Pai-nosso é a principal oração do cristão. O Catecismo da Igreja Católica – citando Tertuliano, santo Agostinho e São Tomás de Aquino – dá-lhe o título de “o resumo de todo o Evangelho”, “compendio das nossas petições”, a mais perfeita das orações (Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2761-2763.) Além disso, a expressão tradicional Oração dominical significa que é do Senhor: Jesus, como Mestre, dá-nos as palavras que o Pai Lhe deu; e ao mesmo tempo, como nosso Modelo, revela-nos a forma de rogar pelas nossas necessidades (cf. Ibid., nº 2765).

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bom ter afeição pelas palavras do Evangelho, recorrer, diz a Santa, a esse Mestre da

Sabedoria, para apreender Dele alguma consideração que vos contente (cf. CP 21,

4). Procurai ter consciência limpa, desprezar o mundo, crer firmemente no

ensinamento da Santa Madre Igreja, “e estareis seguras de seguir bom caminho” (cf.

CP 21, 10).

2.5 O pai-nosso, "Caminho de Perfeição"

Para que a oração seja frutuosa e simples, Teresa ensina o seu modo de

oração, expresso na presença de Cristo, dirigindo o olhar para Ele, acompanhando-O

na meditação dos episódios de sua vida; tudo o que repercute na vida moral de Teresa

se mostra cheia do Evangelho. As bem-aventuranças e o Pai Nosso (cf. CP 27-42)

refletem-se com toda a claridade na sua pessoa.

2.5.1 Relação pessoal com o Mestre

Uma razão para Santa Teresa de Jesus ter dado o título Caminho de

Perfeição a um de seus escritos, está no fato vivencial do Pai-nosso ser caminho

orante. Jesus, Mestre do Pai-nosso, foi o Caminho de Teresa, aquele que disse “Eu

sou o Caminho” (cf. Jo 10, 14): era com Ele que ela o rezava, como todos os cristãos.

Para ensinar às suas primeiras carmelitas o caminho de oração contemplativa, tomou

como ponto de partida o Pai-nosso, considerando-o uma síntese de perfeição para os

que percorrem esse caminho da comunhão com Deus. Teresa não tinha recurso mais

excelente do que o Evangelho para recolher a alma em oração; e, do Evangelho,

privilegiou o Pai-nosso.

Teresa, viu no Pai-nosso “uma maneira de oração que não pede coisas: pede

Deus como Ele se deu em Jesus. E justifica: “É sempre grande bem fundar a vossa

oração sobre orações ditas por uma tal boca como a do Senhor” (CP 21, 3). Lembre-

se, sublinha Teresa, como rezou aqui e tente rezar sempre assim, para que a oração

venha do coração e não apenas da boca ou do pensamento. Refletir, pede a Santa,

“como em tão poucas palavras está encerrada toda a contemplação e perfeição, que

parece não termos necessidade de outro livro senão de estudar esta oração, o Pai

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Nosso” (CP 37,1); Jesus rezou em muitas ocasiões, sobretudo na véspera de Sua

paixão:

Por este modo de rezar, ainda que seja vocalmente, recolhe-se o pensamento com muito mais brevidade e é oração que traz consigo muitos bens. Chama-se de recolhimento, porque a alma recolhe todas as potências e entra dentro de si com o seu Deus e o seu divino Mestre vem ensiná-la e dar-lhe oração de quietude, com mais brevidade que de qualquer outro modo. Porque, metida consigo mesma, pode pensar na Paixão e representar ali ao Filho e oferecê-Lo ao Pai e não cansar o entendimento, andando-O a buscar no monte Calvário, no Horto e atado à Coluna (cf. CP 28, 4).

Teresa fala do “pequeno céu da nossa alma, onde está Aquele que O fez” (cf.

CP 28, 5). Pensa no “estar a sós da alma e do seu Esposo, quando, dentro de si, ela

quer entrar neste paraíso com o seu Deus” (cf. CP 29, 4). Para Teresa, “onde está

Deus é o Céu […]; para falar a seu eterno Pai, a alma não precisa de ir ao Céu” (cf.

CP 28, 2). Porque a oração gratuita é santa relação de pessoas, prossegue Teresa,

cultivá-la é assumir uma vida habitada pelo mistério interlocutor do orante, que o faz

ser e lhe ilumina o caminho na mística da ressurreição de Cristo (cf. CP 26, 3).

2.5.2 Oração do Senhor como caminho de Perfeição

Ao empreender o comentário do Pai nosso64, Teresa é envolvida numa série

de motivações singulares, porque a oração do Pai nosso foi ensinada pelo próprio

Jesus, e todo aquele que a reza sente-se filho no Filho. É a experiência suprema que

o ser humano pode ousar: chamar a Deus seu Pai. Tudo isto repercute na vida moral

de Teresa, que se mostra cheia de Evangelho. Em uma breve síntese podemos traçar

o fio condutor que liga o comentário teresiano a cada uma das petições do Pai nosso,

suficiente para colher o sentido evangélico da oração do Senhor. “Que confissão tão

clara, Senhor meu!” (cf. CP 27, 4), ao tratar do tema: “Pai Nosso, que estais nos Céus”

(cf. CP 27, 1-4).

Pensais que importa pouco saberdes que coisa é o Céu, diz Teresa, e onde se

deve procurar vosso Sacratíssimo Pai? Pois eu vos digo que, para entendimentos

distraídos, importa muito, não só crer nisto, mas procurar entendê-lo por experiência,

porque é uma das coisas que muito prende o entendimento e faz recolher a alma (cf.

64 Cf. CIC, n. 2759-2865. Cf. TOMAS DE AQUINO, II-II, q 83, a9: “A oração dominical, Pai nosso, é a mais perfeita das orações. Nela não só pedimos tudo quanto podemos desejar corretamente mas ainda segundo a ordem em que convém desejá-lo. De modo que esta oração, não só nos ensina pedir, mas ordena também todos os nossos afetos”. Ainda:

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CP 28, 1). Como Ele não quer forçar a nossa vontade, toma o que Lhe damos, mas

não Se dá a Si de todo, até que de todo nos demos a Ele (cf. CP 28, 12), sublinha a

Santa.

A adesão à pessoa de Cristo, que Teresa ensina rezar no recolhimento interior

(cf. CP 29,7), o orante deve acostumar-se a esta presença interior de Cristo e ir

fechando atrás de si a porta a todas as coisas do mundo” (cf. CP 29, 4). Continua

Teresa, ter consciência da paternidade de Deus, ter a alegria contemplativa de dizer

com Cristo: Abbá, Pai, e tirar todas as consequências desta verdade, confiança em

Deus, comunhão com Cristo que se torna nosso irmão no orar, igualdade e comunhão

fraterna entre os cristãos; enfim a gozosa descoberta que “entre tal Pai e tal Filho por

força temos de nos encontrar no Espírito Santo”, a alma da oração e do amor no qual

oramos (cf. CP 27).

2.5.3 O Pai nosso sob o olhar de Teresa

No “venha a nós o vosso reino” Teresa captou o espírito do evangelho: o Pai

e o Reino de Deus65 vêm a nós na pessoa de Jesus. “O grande bem que há no reino

do céu… é um alegrar-se de que se alegrem todos, uma paz perpétua, uma grande

satisfação no íntimo de si mesmos, que lhes vem de ver que todos santificam e louvam

o Senhor” (cf. CP 30, 5).

“Que estais nos céus!” As palavras de Cristo convidam a procurar o Pai

dentro de nós; Teresa dirige o anseio natural do homem à sua interioridade onde ele

pode iniciar um diálogo com o Pai, como a um Amigo, um Irmão, um Esposo. O

recolhimento pedagógico da oração: encontrar Deus dentro de nós, recolhendo-nos

interiormente; exercício psicológico, certamente, mas que supõe uma atitude

espiritual: “doar-se totalmente a Deus” (cf. CP 28-29).

“Seja santificado o vosso nome, venha o vosso reino!” Teresa junta as

duas invocações na oração profunda onde Deus se faz presente e se revela; encontra-

se já o reino de Deus dentro de nós; e nesta atitude interior sente-se o desejo de

65 RANER, Karl. Porque sou cristão. Da coragem de ser cristão na Igreja. Editorial Franciscana, p. 31. www.editorialfranciscana.org: “Ele, crucificado e ressuscitado, é aquele que, ao anunciar a proximidade do Reino de Deus, revela de forma irreversível, a resposta de Deus ao mundo. É aquele que na comunhão com Deus e na incondicional solidariedade com todos os homens se tornou acontecimento de proximidade irrevogável de Deus no mundo. É aquele que assumiu a descida ao vazio e à impotência da morte, e que na experiência da morte como entrega total ao mistério foi recebido e salvo por Deus. É Ele que nós celebramos como ressuscitado”.

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bendizer, glorificar, magnificar, agradecer o Senhor e o Seu santo Nome, como os

Santos já o fazem na glória celeste (cf. CP. 30-31). Estamos na oração sobrenatural,

que Teresa chama de “quietude”, a qual supõe a interiorização da graça, ou seja, […],

“fazeis muito mais com uma palavra, proferida de quando em quando, do Pai-nosso

do que dizendo-o muitas vezes apressadamente” (cf. CP 32, 13).

Seja feita a vossa vontade...! Parece que todo o caminho do Pai-nosso se

orienta para esta petição, exclama Teresa. Só quando Deus nos tomou interiormente

na oração e nos armou a arapuca do amor, o ser humano é capaz de dizer que seja

feita a sua vontade numa adesão totalizante, na qual o próprio Cristo empenhou por

nós sua palavra; “seja feita a vossa vontade...!”, torna-se empenho total de vida na

obediência ao Pai e em comunhão com Cristo (cf. CP 32).

A petição de “o pão nosso” reveste-se, em Teresa, de originalidade. Identifica

“o pão nosso” com o próprio pão eucarístico, colocando-se na plataforma de

numerosos Padres da Igreja: “Sua Majestade deu-nos este Pão sacratíssimo para

sempre, este mantimento e maná da humanidade” (cf. CP 34, 2). “De outro pão não

vos preocupeis […]; deixai essa preocupação ao vosso Esposo: Ele sempre a terá”

(cf. CP 34, 4). “Teria o Senhor de importar-se tanto em pedir de comer, para ele e para

nós”?

Dai-nos hoje o nosso pão...! O comentário teresiano é notadamente

eucarístico e une juntos o sentido da comunhão com Cristo na Eucaristia e adesão à

Sua vontade. A Eucaristia torna-se síntese da oração: momento da mais intensa

comunhão com Deus, da presença de Cristo dentro de nós que convida ao

recolhimento; diante da Eucaristia - que Teresa contempla especialmente neste

capítulo como presença, comunhão, sacrifício, a síntese dos empenhos de fé e de

amor do cristão. Na grande oração Eucarística que encerra a exposição, temos uma

“oração anafórica66 sacerdotal” de Teresa pela presença de Cristo na Eucaristia e pela

Igreja que na Eucaristia encontra a sua razão de ser; agradecimento, oferta,

intercessão brotam do coração de Teresa, a qual vive os eventos eclesiais do seu

tempo (cf CP 33-35).

Perdoai-nos as nossas dívidas como nós as perdoamos...! Para Teresa:

“Deus não aceita oração que negligencie o amor ao próximo”, logo, deve encontrar

66 ALDAZÁBAL, José: Vocabulário básico de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 27: Oração anafórica sacerdotal ou anáfora é o nome que se da a Oração Eucarística.

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empenhos concretos para viver a vontade do Pai: no amor até o dom de si, na

misericórdia até o perdão das ofensas, a exigência fundamental da vida cristã, o

verdadeiro sinal de uma contemplação que se exprime na misericórdia e no perdão.

Teresa defende que a oração forja, desde a própria interioridade pessoal, atitudes de

maturidade cristã; é quando o cristão torna-se “contemplativo”, isto é, empenhado com

Deus e com os irmãos, consumido no amor (cf. CP 36-37).

Não nos deixeis cair em tentação! Na vida cristã, vista sob a ótica da luta e

dos perigos, com suas tentações, seu próprio mal, e a sua consequência: o pecado,

Teresa aponta que a oração se torna fonte de fortaleza para enfrentar o mal e vencê-

lo com a força de Deus; humildade para manter-se sempre na medida de verdade

diante de Deus (cf. CP 38-39). Como numa síntese de vida cristã que deve guiar o

serviço eclesial e o amor ao próximo, Teresa aponta o amor e o temor de Deus. Como

o amor contempla otimistamente tudo o que é bom e justo e dá-lhes sua adesão;

adquire a liberdade de espírito e a “afabilidade apostólica”, para tornar-se tudo a todos

e assim ganhar todos para Cristo; o temor gera a humildade67 no conhecimento de si

e na precariedade da vida com as suas tentações e dificuldades. Enfim, Teresa propõe

Jesus como o único modelo perfeito para todo contemplativo (cf. CP 40-41).

Mas liberta-nos do mal. Amém! Na última petição do Pai-nosso, Teresa

aponta como conforto do coração, a poderosa orientação escatológica do cristão que

deseja adquirir a verdadeira liberdade de poder amar a Deus sem o risco de perdê-lo.

A esperança cristã aponta para a vida eterna e para o desejo de ver Deus, para ficar

Nele livre, porque já libertos de qualquer possibilidade de ser alcançado pelo mal (cf.

CP 42).

Esta chave de leitura não esgota a riqueza dos conteúdos do livro que foi

estudado sob diferentes pontos de vista, especialmente da ascese, da vida religiosa

e da pedagogia da oração, conforme o viés pastoral de Santa Teresa d´Ávila. Isto é a

antessala da oração, escreve Teresa, a mestra: “Parece que finalmente começo a

tratar da oração, mas falta dizer algo, que muito importa, pois se refere à humildade,

[e é necessário nesta casa: Mosteiro de São José de Ávila]” (cf. CP 17, 1).

67 OC, cf. CP 39, 2: “Mesmo que a pessoa, por se considerar ruim, entenda com clareza que merece o inferno, afligindo-se e tendo a impressão de ser justamente condenada por todas as pessoas, quase não ousando pedir misericórdias, se a humildade for boa, esse sofrimento trará consigo uma suavidade e uma alegria de que não gostaríamos de nos ver privadas”.

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2.6 Conclusão

O Caminho de Perfeição é um livro rico, faz a transição entre a mensagem

contida em nível autobiográfico no livro da Vida e ajuda a compreender o sentido do

itinerário espiritual das mansões do Castelo Interior. É um livro estimulante, ajuda a

acolher as exigências da vida cristã através do caminho da oração, a estrada da

oração evangélica. A oração na presença de Cristo, dirigindo o olhar para Ele,

acompanhando-O na meditação dos episódios de sua vida (cf. CP 26).

A Santa Teresa e sua comunhão com a Igreja sublinha que o Espírito Santo é

o Mestre interior da oração cristã. Logo, aqueles que têm esses dons são verdadeiros

servidores da tradição viva da oração:

Por isso se a alma deseja avançar na perfeição, conforme o conselho de São João da Cruz, deve “considerar bem em que mãos se entrega, pois, conforme o mestre, assim será o discípulo; conforme o pai, assim será o filho”. E ainda: “O diretor deve não somente ser sábio e prudente, mas também experimentado… Se o guia espiritual não tem a experiência da vida espiritual, é incapaz de nela conduzir as almas que Deus chama, e nem sequer as compreenderá” (cf. CP 5, 4; CIC n. 2690).

Portanto, todo o sentido da oração Teresiana se exprime em uma relação

pessoal com o Mestre. Procurar a sua companhia e habituar-se à sua presença

sempre e em todos os lugares (cf. CP 26,1-2); contemplar a sua alegria na nossa

alegria: a meditação da ressurreição de Cristo (cf. CP 26,4); saber encontrar consolo

nos seus sofrimentos, numa sentida e participada meditação da sua Paixão (cf. CP

26,4-8). Para despertar o sentido da presença, Teresa dá os seguintes conselhos:

servir-se da ajuda de uma imagem do Cristo que o torna como que presente e próximo

para fitá-lo interiormente (cf. CP 26, 9); ajudar-se também com um bom livro para

alimentar a oração e esconjurar as distrações (cf. CP 26,10). É fundamental esta

atitude para pôr-se a meditar e aprender com Ele o sentido da oração, escutando as

palavras de sua boca e os ensinamentos do Pai nosso (cf. CP 26,10). Desse modo,

a Santa introduz o seu original comentário ao Pai-nosso68, síntese de pedagogia e

68 Este caráter fundamental do Pai-Nosso foi vivido desde o início da Igreja: rapidamente substituiu outras fórmulas da piedade judaica, incorporou-se na liturgia e converteu-se em parte integrante da catequese para receber os sacramentos. Ao longo dos séculos, os grandes mestres de vida espiritual comentaram esta oração, extraindo dela as riquezas teológicas que contém. “Em tão poucas palavras, está encerrada toda a contemplação e perfeição – escreveu Santa Teresa de Jesus –, que parece não termos necessidade de outro livro, senão de estudar este, porque até aqui nos tem ensinado o Senhor todo o modo de oração e de alta contemplação, desde os principiantes na oração mental, até à de quietude e união, que a ser eu pessoa para o saber dizer, poderia escrever um grande livro de oração

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doutrina pastoral. Nisso ecoa a cordial adesão de Teresa às palavras do Mestre: “Não

quem diz Senhor, Senhor, mas quem faz a “vontade” do meu Pai que está nos céus”

(cf. Mt 7, 21).

sobre tão verdadeiro fundamento” (Santa Teresa de Jesus, Caminho de Perfeição, códice de Valladolid, 37, 1).

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3 AS MORADAS DO CASTELO INTERIOR

3.1 Introdução

O presente capítulo será dedicado à exploração das Moradas do Castelo

Interior, cujo objetivo de Santa Teresa de Ávila é pensar em uma vida espiritual séria

e profunda. A porta [chave] para adentrar a esse castelo é a humildade e a oração.

Analisaremos nas três primeiras moradas a vida ascética. Demoraremos nas demais

moradas nas quais se evidencia a vida mística, abertas à ação, onde acontece o

combate de fé rumo à plenitude espiritual, na plena amizade com o Senhor Jesus.

Escrevera Juan Martin Velasco: “Santa Teresa fala de experiência, fala por

experiência”.

3.2 Primeiras moradas

Teresa afirma que há muitas moradas no céu (cf. Jo 14, 2; V 13, 13). Pensemos

numa passagem da Paixão, por exemplo, a do Senhor atado à coluna, e, com o

intelecto, procuremos avaliar as grandes dores e o sofrimento que Sua Majestade teve

ali tão só, e tantas outras coisas que um espírito esforçado pode perceber aí. Esse é

o modo de oração69 conveniente para todos, um caminho excelente e muito seguro

até que o Senhor os leve a outras coisas sobrenaturais. Digo “todos” porque há muitas

almas70 que, em outras meditações, têm mais proveito do que na da Sagrada Paixão,

porque, assim como há muitas moradas no céu (cf. Jo 14, 2), há muitos caminhos;

algumas pessoas se beneficiam considerando-se no inferno e outras no céu; estas se

afligem ao pensar no inferno, e outras, na morte. Todos esses modos são admiráveis,

desde que não se deixem a Paixão e a vida de Cristo, que é de onde nos veio e vem

todo o bem (cf. V 13, 12-13). Este cantinho de Deus, sublinha Teresa, é morada em

69 “O grande filósofo Platão relata uma oração do seu mestre Sócrates, considerado justamente um dos fundadores do pensamento ocidental. Sócrates orava assim: "Fazei que eu seja belo por dentro. Que eu considere rico quem é sábio e que possua de dinheiro somente aquilo que o sábio possa tomar e levar. Não peço mais" (Obras I. Fedro 279c, trad. it. P. Pucci, Bari 1966)”. BENTO XVI: Oração do Ângelus (ou Regina Coeli, durante o tempo pascal), um momento de catequese, publicado pela RCC, em 11 MAIO 2010, às 9h34min. 70 Cf. CIC, n. 363: “Muitas vezes o termo alma designa na Sagrada Escritura a vida humana ou a pessoa humana inteira. Mas designa também o que há de mais íntimo no homem e o que há nele de maior valor, aquilo que mais particularmente o faz ser imagem de Deus: “alma” significa o princípio espiritual no homem”.

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que Sua Majestade se deleita, porque não vejo, Senhor, nem sei como é estreito o

caminho que leva a Vós; a Santa se refere sucessivamente a três passagens bíblicas:

Mt 10, 28; Sl 93, 20; Mt 7, 14 (cf. V 35 ,13).

Pois consideremos que este castelo tem moradas (cf. M 1, 1, 3). Falo de

considerar a nossa alma como um castelo todo de diamante, muito claro, onde há

muitos assentos, tal como no céu há muitas moradas (cf. Jo 14, 2), pois não encontro

outra coisa com que comparar a grande formosura de uma alma. Mas não se chega

a compreender a nossa alma, assim como não se pode compreender Deus; pois Ele

mesmo disse que nos criou à Sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-27; M I, 1).

Consideremos, portanto, que esse castelo tem muitas moradas, como eu disse, umas

no alto, outras embaixo, outras nos lados. E, no centro, no meio de todas está a

principal, onde se passam as coisas secretas entre Deus e a alma (cf. M 1, 3).

Esta é a primeira morada: humildade e conhecimento próprio, ou seja,

ponhamos os olhos em Cristo, nosso bem, e com Ele, bem como com os seus santos,

aprenderemos a verdadeira humildade (cf. M II, 2, 11). Nos primeiros aposentos ainda

abrigam pessoas muito absorvidas pelo mundo, embora nutram desejos de não

ofender a Deus e façam boas obras (cf. M I, 2, 12).

3.3 Segundas moradas

Teresa fala quais são as almas que entram nestas segundas moradas (cf. M II,

1, 1). As segundas moradas são os aposentos dos que já começaram a ter oração e

entenderam a grande importância de permanecer nas primeiras moradas, mas que

em geral não tem maturidade para deixá-las; nesta transição é desejável entender o

que dizem. Teresa recomenda perceber que neste estágio o demônio apresenta à

alma as vantagens do mundo, trazendo à memória os amigos, os parentes e mil outras

maneiras de impedimento (cf. M II, capítulo único, 1-3). Convém observar que o

costume de viver na vaidade e na visão de mundo que só trata dela estragam tudo.

Como a fé se encontra muito amortecida, queremos mais o que vemos do que aquilo

que ela nos diz, embora os nossos olhos mostrem como são desventurados os que

vivem atrás das coisas do mundo (cf. M II, cap único, 4-5). Continua Teresa, apegai-

vos à cruz que nosso Esposo tomou sobre si e entendei que ela deve ser vossa tarefa.

Todo o empenho de quem começa a ter oração, deve ser trabalhar, determinar-se e

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dispor-se, com toda a diligência possível, a amoldar sua vontade à de Deus.

Prossegue Teresa, o próprio Senhor admoestou os seus apóstolos muitas vezes (cf.

Jo 20, 21); portanto, confiai na misericórdia de Deus e não em vós mesmos. Sede,

pois, diligentes; o próprio Senhor confirma, quem anda no perigo nele perece (cf. Ecl

3, 27), e que a porta para entrar nesse castelo é a oração (cf. M II, cap único, 10-11).

Confiem na misericórdia de Deus e nada em si e verão como a sua Majestade as leva

de morada em morada (cf. M 2, 29).

3.4 Terceiras moradas

Há muitas almas que entram na terceira morada no mundo (cf. M III, 1, 5). Ó!

Jesus, quem não desejará um bem tão grande, em especial se já passou pelo mais

trabalhoso? Todos quererão. O mesmo acontece conosco. Como ainda é preciso mais

para que o Senhor possua por completo a alma. Não basta dizer que o desejamos,

como não bastou ao jovem a quem o Senhor perguntou se queria ser perfeito (cf. Mt

19, 16-22). Somos como ele, sem tirar nem pôr, sendo essa a causa mais comum das

agruras da oração, embora também haja outras (cf. M III, 1, 6). Como no Caminho de

Perfeição, aqui a Santa continua insistente no quesito humildade, quando sabemos

que o Senhor não olha para as nossas obras; Ele examina a determinação da nossa

vontade (cf. M III, 1, 8).

3.5 Quartas moradas

Para falar das quartas moradas é preciso encomendar-nos ao Espírito Santo.

Teresa suplica-Lhe que daqui em diante fale por ela, porque agora se começa a falar

de coisas sobrenaturais (cf. M IV, 1, 1). Prossegue a Santa, parece razoável pensar

que, para chegarmos a estas moradas, deveremos ter vivido nas outras durante muito

tempo.

Prossegue Teresa, vou falar sobre contentamentos na oração e gostos.

Podemos chamar contentamentos o que adquirimos com a nossa meditação e nossas

súplicas a Nosso Senhor; eles procedem de nossa natureza, contudo deveis entender

que nada podemos fazer sem Ele (cf. M IV, 1, 4; Jo 15, 5). Sublinha Teresa que a

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perfeição não se encontra nos gostos, nem recompensa, mas em quem mais ama e

em quem melhor age com justiça e verdade (cf. M III, 2, 10).

Para subir às moradas que desejamos não está a coisa em pensar muito, mas

em amar muito (cf. M IV, 1, 7). Sublinha a Santa, conheci algumas pessoas que

afirmam residir tudo no pensamento e conseguem ocupá-lo muito com Deus, mesmo

que com muito esforço; cedo essas criaturas concluem que são espirituais. Entretanto,

a Santa esclarece, a alma não é pensamento, nem é vontade governada por Ele; ao

contrário, o benefício da alma não está em muito pensar, mas em muito amar (cf. F 5,

2). É possível que nem saibamos o que é amar, porque o amor não está no maior

gosto, mas na maior determinação de desejar contentar a Deus, em procurar, na

medida do possível, não ofendê-Lo e em pedir-Lhe o aumento contínuo da honra e

glória de Seu Filho, bem como a prosperidade da Igreja Católica (cf. M IV, 1, 7).

3.6 Quintas moradas

Teresa questiona: como vos poderia dizer as riquezas e tesouros e deleites que

há nas quintas moradas, quando para esse fim são insuficientes as coisas da terra?

(cf. M V, 1,1). A Santa sublinha que são muitas as pessoas que chegam à porta desta

quinta morada; é grande a misericórdia de Deus, porque, ainda que sejam muitos os

chamados, poucos são os escolhidos (cf. Mt 20, 16). Por isso, diz Teresa, devemos

pedir ao Senhor que nos mostre o caminho e nos dê forças à nossa alma para cavar

até encontrar esse tesouro escondido (cf. Mt 13, 44). Verdade é que ele está

escondido em nós mesmos (cf. M V, 1, 1-2).

Eu disse “Forças à alma”, sublinha a Santa. Devemos entender que não somos

dignas de ser servas de um Senhor que é tão grandioso, que sequer podemos

alcançar Suas maravilhas! Seja Ele para sempre louvado. Amém! (cf. M V, 1, 13). Que

sua Majestade mesma seja nossa morada! A Santa refere-se ao bem que pode fazer

à alma, se houvesse possibilidade de receber boa orientação ainda na juventude (cf.

V 2, 5).

Eu gostaria de explicar, diz Teresa, que a lagarta do bicho da seda, fabrica a

seda e com ela, fabrica a casa onde há de morrer; essa casa é para nós Cristo. Creio,

prossegue Teresa, que a “nossa vida está escondida em Cristo, ou que a nossa vida

é Cristo” (cf. M V, 2, 4). Portanto, vede o que podemos fazer com o favor de Deus;

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“que o próprio Senhor seja a nossa morada, como O é na oração de união, edificando-

a nós mesmos! Ele que fez tudo à Sua custa, assim também quer juntar os nossos

trabalhinhos com os grandes sofrimentos que padeceu Sua Majestade, e que tudo

seja uma só coisa” (cf. M V, 2, 5).

Teresa demonstra que a oração não nasce em laboratório de Teologia, mas no

humus dos imperfeitos: “despojando-nos do nosso amor próprio e da nossa vontade,

do apego às coisas da terra, fazendo obras de penitência, oração, mortificação,

obediência e tudo o mais que sabeis”. Morra esse verme, prossegue Teresa, tal como

o da seda quando acaba de realizar a obra para a qual foi criado! (cf. M V, 2, 6). Enfim,

de uma maneira ou de outra, há de existir cruz enquanto vivermos (cf. M V, 2, 9).

Teresa menciona que cada vez que tem oração esse é o seu pesar, talvez

decorrente, de certo modo, da dor que lhe causa ver o quanto Deus é ofendido e

pouco estimado no mundo, bem como quantas almas se perdem, tanto de hereges

como de mouros. O que mais a tortura, no entanto, é a perda de muitos cristãos. Teme

que muitos sejam condenados, embora saiba que a Misericórdia de Deus é infinita e

que esses, mesmo os que levam a pior vida, podem se emendar e salvar (cf. M V, 2,

10).

Sublinha Teresa que não bastará refletir sobre o grande mal que é ofender a

Deus; pensar que esses que se condenam são filhos de Deus e irmãos meus,

considerar enfim os perigos em que vivemos e o bem que adviria de sair desta vida

miserável? Não basta, diz Teresa. Porque a pena que se sente neste estado não é

como as daqui da terra. Depois de muito meditar, bem que poderíamos experimentar

grande dor, se Deus nisto nos ajudasse. Teresa, vedes, que o nosso Deus faz para

que essa alma já se tenha por Sua: dá-lhe do que tem que foi o seu próprio Filho nesta

vida. E não nos poderia conceder maior graça. Quem mais do que Ele queria sair

desta vida? E assim disse Sua Majestade na Ceia: “Com ardente desejo desejei” (cf.

Lc 22, 15). Sublinha Teresa, que Sua Majestade, estava em tão boa ocasião de

mostrar71 ao Pai que cumpria perfeitamente a obediência a Ele devida e o preceito do

amor ao próximo? (cf. M V, 2, 14).

71 “Deus – mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio (cf. Santo Agostinho, Confissões, III, 6, 11) – tem o poder de chegar até nós, nomeadamente através dos sentidos interiores, de modo que a alma recebe o toque suave de algo real que está para além do sensível, tornando-a capaz de alcançar o não-sensível, o não visível aos sentidos; para isso exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a alma (cf. Cardeal Ratzinger. Comentário teológico da

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Começamos a tratar das sextas moradas e vereis como é pouco tudo o que

pudermos fazer para nos dispormos a tão grandes graças. Logo, esqueçamos os

nossos pequenos contentamentos da terra e, voltadas para a sua grandeza, corramos

inflamadas pelo Seu amor (cf. M V, 4, 10).

3.7 Sextas moradas

Santa Teresa inicia a exposição das sextas moradas sublinhando as

dificuldades para que a alma suporte os sofrimentos que a esperam: “sofrimentos

interiores e exteriores, que padece até entrar nas sétimas moradas” (cf. M VI 1, 1). A

Santa alude “quanto à existência de riscos de perdermos algo que o Senhor há de dar

no céu; não será oportuno pensar em descanso que não acabe até o fim da vida, sem

necessidade de trabalhar por tão grande Deus, Senhor e Esposo” (cf. M VI 1, 11). São

trabalhos árduos para a nossa fraqueza natural, ao ponto de se pensar que está tudo

perdido (cf. M VI 1, 2-3).

A Santa, sem mencionar que se trata de sua pessoa, menciona o sofrimento,

visto que a alma vê claramente que, se tem algum bem, é dado por Deus, e não seu,

de maneira nenhuma, pois pouco antes estava pobre e envolvida em grandes

pecados, logo experimenta profundo desconforto ao ser louvada (cf. M VI 1, 4).

A Santa trata do perigo que a alma poderá sofrer em consequência dos

louvores públicos; ela julga que não ofendem a Deus os que a perseguem (cf. M VI 1,

5). A Santa menciona o seu sofrimento ao deparar-se com confessores temerosos e

pouco experientes, que não há coisa que julgue segura e em tudo põe dúvida (cf. M

VI 1, 18): o tormento é tal que a alma julga que não sabe informar bem o confessor e

que, então, o engana (cf. M VI 1, 9).

Assim, alude Teresa, conhece verdadeiramente a sua miséria e sabe o pouco

que podemos fazer por nós mesmos, se o Senhor nos desamparar (cf. M VI 1, 10);

assim experimenta-se a nossa insignificância e miserabilidade e perceber a grandeza

de Deus (cf. M VI 1, 11-12). O remédio, neste caso, prescreve a Santa, é ocupar-se

com as obras de caridade, enquanto se aguarda a misericórdia do Senhor (cf. M VI 1,

13).

Mensagem de Fátima, ano 2000). Sim! Deus pode alcançar-nos, oferecendo-se à nossa visão interior. Bento XVI – Bento XVI em Portugal, discursos e homilias, p. 75-76.

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A Santa declara ter dificuldade em narrar o que acontece com a alma nessas

moradas, pois o Senhor usa para isso meios tão delicados, que a própria alma não os

entende (cf. M VI 2, 1-2). Toda essa passagem, alude Teresa com a dupla experiência

do fogo da seta, o qual segue a descrição da transverberação72 (cf. V 29, 10):

“Vi [o anjo] que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo. “Eu tive a impressão que ele me perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o tirava, parecia-me que as entranhas eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso amor de Deus […]. Não se trata de uma dor corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participe, às vezes e muito. É um contato tão suave entre a alma e Deus que suplico a sua bondade que dê essa experiência a quem pensar que minto” (cf. V 29, 13).

A Santa aponta três razões para a origem divina desta dor: a primeira, o

demônio não pode proporcionar uma dor saborosa como esta; ele pode dar sabor e

deleite que pareçam espirituais, mas com gosto e quietude da alma não é de sua

alçada; a segunda razão: essa tempestade saborosa vem de uma região que o

demônio não pode controlar; a terceira: a alma é grandemente beneficiada (cf. M VI

2, 6). A Santa sublinha que estes desejos dispõem a alma para grandes atos de louvor

e de servir (cf. M VI 2, 5-8).

No terceiro capítulo, Teresa ocupa-se em explicar a maneira que Deus desperta

a alma com “umas falas” (cf. M VI 3, 1); todavia adverte que este modo pode ser ilusão.

Teresa adverte, jamais se deve fazer caso de alguma coisa que contrarie uma verdade

da Escritura73 ou a fé (cf. M VI 3, 4). A Santa falará de outra maneira de falar à alma,

por meio de uma visão intelectual (cf. M VI 3, 12). As visões intelectuais são claras,

se referem a fatos que não se imaginaria possível; a alma está como quem ouve; uma

só palavra nos faz compreender muito; ao lado do que se ouve, compreendem muitos

outros sentidos que nos são expressos sem palavras (cf. M VI 3, 12-16).

72 Transverberação do coração de Santa Teresa de Jesus: todos os anos a 26 de agosto, no Mosteiro de São José e de Nossa Senhora (de la Calle), as filhas de Santa Teresa celebram a transverberação do Coração de Santa Teresa, essa experiência mística da proximidade com Deus e da ferida que sentiu no coração, em que via um anjo introduzir uma lança no seu peito que, segundo as suas palavras, “me deixava totalmente abrasada no amor do grande Deus”. www.carmelitasmensageiras.com.br/.../277-transverberação-do-coracao-de-santa-teresa. Acesso em 9-OUT-2018. 73 Cf. CIC, n. 293: “Eis uma verdade fundamental que a Sagrada Escritura e a Tradição não cessam de ensinar e de celebrar: o mundo foi criado para a glória de Deus. Deus criou todas as coisas, explica S. Boaventura, ‘non propter gloriam augendam, sed propter gloriam manifestandam et propter gloriam suam comunicandam – não para manifestar a [sua] glória, mas para manifestar a glória e para comunicar a sua glória’. Pois Deus não tem outra razão para criar a não ser o seu amor e a sua bondade: ‘Aperta manu clave amoris creature prodierunt – Aberta a mão pela chave do amor, as criaturas surgiram’”.

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Teresa prossegue a descrição de fenômenos místicos; considera que Sua

Majestade, conhecedora da nossa fraqueza, nos capacita para estas e outras coisas

e a ter ânimo74 para nos unir ao Senhor plenamente (cf. M VI 4, 1).

Prossegue Teresa que, para desposar o rei do céu, é necessário mais ânimo

do que pensais, já que a nossa natureza é muito mesquinha e baixa para tão grande

coisa (cf. M VI 4, 2). Teresa fala de arroubos, momentos em que a alma, mesmo sem

estar em oração, Sua Majestade, a partir do interior da alma, uma centelha a faz ficar

abrasada, acreditando ter-lhe sido perdoadas as suas culpas, segundo os meios

postulados pela Igreja (cf. M VI 4, 3).

Neste caso, sublinha Teresa, “a alma nunca esteve tão desperta para as coisas

de Deus, e nem com tão grande luz e conhecimento de sua majestade” (cf. M VI, 4,4).

Teresa fala de visões imaginárias, as quais não explica pelas faculdades naturais,

mas diz ela que ficam na alma certas verdades tão vívidas da grandeza de Deus, que

mesmo se não existisse nela a fé, ela O adoraria como tal nesse momento, como se

faz quando Jacó viu a escada (cf. M VI 4, 5-6; Gn 28, 12). Prossegue Teresa, quando

se trata das coisas ocultas de Deus não devemos buscar razões para entendê-las,

assim como Moisés tampouco soube dizer tudo o que viu na sarça ardente, mas

somente o que Deus quis que dissesse (cf. M VI 4, 7).

Teresa é recorrente ao se referir aos arroubos, pois trata-se de momentos que

Deus rouba toda a sua alma para Si, e, tomando-a já como Sua esposa, vai lhe

mostrando alguns aspectos do reino que mereceu em função dessa sua condição (cf.

M VI 4, 9). Sublinha Teresa, que nesta vida não conseguimos perceber o valor dos

tesouros que poderemos possuir no céu (cf. M VI 4, 10-11). Prossegue Teresa,

lamentar que, se quiséssemos Sua Majestade como Ele nos quer, suas riquezas

seriam distribuídas a todos. “Oh cegueira humana! Até quando, até quando

permaneceremos com os olhos cheios de terra?” (cf. M VI 4, 12).

No quinto capítulo, a Santa refere-se a outra maneira de arroubo75, o qual ela

chama voo do espírito (cf. M VI 5, 1). Teresa emprega diferentes vocábulos para

nomear os êxtases místicos (fenômenos extáticos). Estes fenômenos provocam

grande temor, procuram esquecer as obras que se faz – se é que se faz – para não

74 Cf. OC, p. 525: “O indispensável requisito do “grande ânimo” para poder suportar as graças místicas é tema constante nas obras da Santa”. 75 OC, p. 125: “[...], a diferença que há entre união e arroubo, ou enlevo, ou voo que chamam de espírito, ou arrebatamento, que são uma só coisa. [...], esses diferentes nomes referem-se a uma só coisa, que também é chamado êxtase”.

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se lembrar da imperfeição com que as realiza e, sobretudo, ter diante dos olhos os

seus pecados e esconder-se na misericórdia de Deus, a fim de que não tendo com o

que pagar, supram esta falha à piedade e à misericórdia que Ele sempre demonstra

pelos pecadores (cf. M VI 5, 1-12). No voo do espírito, sublinha a Santa, parece que

a alma sai do corpo e que por outro lado a pessoa não morre (cf. M VI 5, 7).

Teresa narra que a alma fica tão desejosa de fruir por inteiro Àquele que a

concede essas imensas graças, sente ânsia de morrer e, com lágrimas, pede amiúde

que Deus a tire deste desterro, pois todas as coisas do mundo a cansam. Em sua mão

encontrará descanso que perdure (cf. M VI 6, 1-2). Diz Teresa, “é justamente assim

que acontece: esse gozo faz a alma esquecer-se tanto de si e de todas as coisas que

ela não pensa nem consegue falar, a não ser no que diz respeito à felicidade, que são

os louvores de Deus, já que temos tantos motivos para fazê-lo!” (cf. M VI 6, 12-13).

No sétimo capítulo, sublinha Teresa combater a ilusão de que tudo está seguro,

porque quanto mais se recebe de Deus, tanto mais aumenta a dor pelos pecados. É

um sofrimento espiritual, prossegue Teresa, crer que esse pesar nunca nos deixará,

até que estejamos no lugar em que nada pode causar dor (cf.M VI 7,1-2).

Penso, diz Teresa, que esse foi o grande martírio de Pedro e de Madalena,

favorecidos por um grande amor, pelo recebimento de muitas graças e pela

compreensão da grandeza da Majestade de Deus, deve ter sido penoso sofrê-lo,

provocando-lhes um fortíssimo arrependimento (cf. M VI 7, 4). Sublinha a Santa a

necessidade de que se continue meditando sobre os mistérios da sacratíssima

Humanidade de Jesus Cristo, porque se exercita no amor inteiro (cf. M VI 7, 5).

Teresa mostra que o próprio Senhor nos diz que é caminho, assim como luz, e

que ninguém pode chegar ao Pai senão por Ele. “Quem me Vê, vê meu Pai” (cf. Jo

14, 6; 8, 12; 14, 6; 14, 9). E é com estas palavras que a minha alma encontra a

verdade, sublinha Teresa (cf. M VI 7, 6). Logo, que ninguém entra nestas duas últimas

moradas senão pela fé em Jesus (cf. M VI 7,6).

O oitavo capítulo manifesta com nitidez as maneiras e modos pelos quais Sua

Majestade se comunica conosco e nos mostra o amor que tem por nós, usando de

aparições e visões extremamente admiráveis ou visão intelectual; a Santa declara não

saber porque chamam visão intelectual (cf. M VI 8, 1).

A Santa fala de visão ou graça mística intelectual, ou seja, estando a pessoa

descuidada, pode acontecer-lhe de sentir junto a si Jesus, embora não O veja nem

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com os olhos do corpo e nem com os olhos da alma. Teresa entendia claramente ser

Jesus Cristo quem Se mostrava, o que no princípio lhe causava certa confusão76 (cf.

M VI 8, 2). A Santa afirma que sentia a presença do Senhor ao seu lado; não uma

presença física perceptível aos sentidos habituais que nos permite sentir alguém perto

de nós, mas em outro modo, impossível de explicar; a certeza, no entanto, é a mesma,

é até muito maior (cf. M VI 8, 3). Éramos, ela e eu, prossegue a Santa, de tal maneira

uma só coisa que não se passara nada em sua alma que eu ignorasse, e assim posso

ser boa testemunha (cf. M VI 8, 4).

Teresa, como mestra, questiona: “se alma nada vê, como se sabe que é

Cristo?” “Isto, ela, Teresa, não sabe dizer, nem pode entender como sabe, mas tem

grandíssima certeza”. Prossegue a Santa, “não se sabe exprimir, mas entende-se por

elas quão baixa é a nossa natureza para compreender as imensas grandezas de

Deus. Não somos capazes de entender nem mesmo uma dessas pequeninas

parcelas” (cf. M VI 8, 6).

Teresa recomenda que no princípio é bom comunicar essas graças a um

erudito sob sigilo de confissão; prossegue fiel ao Senhor, quem permitirá livre acesso

a quem não pretende outra coisa senão agradar ao Senhor (cf. M VI 8, 8; 1Cor 10,

13).

No capítulo nove Teresa trata das visões imaginárias, as quais são mais

conforme a natureza humana (cf. M VI 9, 1). Aqui, afirma Teresa, a visão pode ser

comparada a um relâmpago; contudo a imagem gloriosíssima fica esculpida na

memória de tal modo, que a Santa considera impossível apagá-la (cf. M VI 9, 3); a

alma “fica toda sossegada, e a alma passa a compreender verdades tão grandes que

não tem necessidade de outro mestre” (cf. M VI 9, 10).

No décimo capítulo, Santa Teresa, aponta que nessas aparições, o Senhor se

comunica com a alma de diversas maneiras: “ora na aflição, no sofrimento, ou com a

intenção de rejubilar-se com ela e fazê-la rejubilar-se Consigo” (cf. M VI 10, 1).

A Santa menciona que não imaginamos fazer algo quando sofremos alguma

injúria; Contudo, Ele tem razões de sobra para querer que todos perdoem, por mais

76 “Deus, mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio (cf. Santo Agostinho. Confissões, III, 6, 11), tem o poder de chegar até nós, nomeadamente através dos sentidos interiores, de modo que a alma recebe o toque suave de algo real que está para além do sensível, tornando-a capaz de alcançar o não-sensível, o não visível aos sentidos. Para isso exige-se uma vigilância interior do coração que, na maior parte do tempo, não possuímos por causa da forte pressão das realidades externas e das imagens e preocupações que enchem a alma (Cf. Cardeal Joseph Ratzinger. Comentário teológico da Mensagem de Fátima, ano 2000). Sim! Deus pode alcançar-nos, oferecendo-se à nossa visão interior”.

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injúrias que lhe façam (cf. M VI 10, 4). Recorda aqui de Pilatos que perguntou ao

Senhor, durante a sua paixão, o que é a verdade; “pensa, diz a Santa, quão pouco

entendemos aqui dessa suma Verdade” (cf. Jo 18, 36-38; M VI 10, 5).

Neste último capítulo das sextas moradas, que a alma não se julgue apta

porque está muito pior (cf. M VI 11, 1). Porque a alma vai conhecendo a grandeza de

Deus, mas se vê afastada de fruí-lo (cf. M VI 11, 1). Neste caminho espiritual há duas

coisas que oferecem perigo de morte. Uma é a aflição, que tem certos e grandes

riscos, e a outra é a autossuficiência. “Aqui vereis, portanto, se tive razão em dizer

que é preciso ânimo (cf. Lc 7, 44); vereis ainda que ao pedirdes essas graças ao

Senhor Ele terá razão em perguntar, como aos filhos de Zebedeu, se podeis beber o

seu cálice?” (cf. Mt. 20, 22).

3.8 Sétimas moradas

Nesta etapa, diz Teresa: parece que já dissemos tudo a respeito desse caminho

espiritual; ademais sabemos que a grandeza de Deus não tem limites. “Tampouco o

terão suas obras” (cf. M VII 1,1); pois Ele sabe que o meu propósito é que não fiquem

ocultas as suas misericórdias, a fim de que o Seu nome seja mais louvado e glorificado

(cf. M VII 1,1).

Teresa aponta como indutor da oração: ”quando o Senhor é servido,

compadece-se de tudo o que essa alma padece e já padeceu ansiando por sua

presença e amor. Assim, tendo-a já tomado espiritualmente por esposa, antes de

consumar o matrimônio sobrenatural, põe-na em sua morada, que é a sétima” (cf. M

VII 1, 3).

Nesta última, o Senhor quer tirar-lhe as escamas dos olhos, e dessa maneira o

que acreditamos por fé é entendido ali por vista, se assim o podemos dizer, embora

não seja vista aos olhos do corpo nem da alma; na sétima morada, comunicam-se

com ela e lhe falam as três Pessoas. Elas lhe dão a entender as palavras do Senhor

que estão no Evangelho: que viria Ele com o Pai e o Espírito Santo, para morar na

alma que O ama e segue os seus mandamentos (cf. Jo 14, 23; M VII 1, 6).

Teresa considera que no matrimônio espiritual, o Senhor aparece no centro da

alma sem visão imaginária, mas intelectual, ainda mais do que as outras formas

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mencionadas, tal como surgiu aos Apóstolos, sem entrar pela porta, quando lhes

disse: “Pax Vobis” (cf. M VII 2, 3).

Teresa menciona que as bases são as exigências e que as exigências são

salvíficas apesar de desconfortáveis, razão pela qual gosta da passagem em que, ao

fugir São Pedro do cárcere, apareceu-lhe Jesus Cristo e lhe disse que ia a Roma para

ser crucificado outra vez. “Sempre que rezamos o ofício da festa em que se recorda

essas palavras, sinto particular consolo”, diz Santa Teresa em alusão ao “Quo vadis

Domine” (cf. M VII 4, 5).

3.9 Conclusão

As moradas são umas das preciosas reflexões que Santa Teresa de Ávila nos

deixou. Nelas exprime a sua vocação mistagógica através do simbolismo do amor

esponsal. Elas sintetizam o mistério da vida em Cristo como um caminho de

aprofundamento progressivo até se chegar à morada central, na qual se consuma o

matrimônio espiritual. Estas Moradas do Castelo Interior são o caminho da vida da

própria Santa, a partir da sua experiência pessoal de oração e maturidade espiritual,

o qual a Santa considera válido para todos aqueles que desejem trilhar o mesmo

caminho.

Apesar deste caminho espiritual ser apresentado como a descida de um

conjunto de degraus que acessam um a um as moradas do Castelo Interior, até

alcançar a sétima morada, ele pode ser visto como um todo. Percebe-se, conforme a

pedagogia mística de Teresa, que à medida que a alma se aproxima da sétima

morada, o desejo de conversão espiritual aumenta, o esforço para permanecer fiel a

Deus e à própria vocação continua a ser necessário, com abertura para acolher a

graça de Deus e, sobretudo, fazer a Sua vontade. Sublinha a Santa que nesta vida

terrena, devemos sempre levar em consideração as nossas próprias fraquezas e

pecados, mas não abandonar a companhia da Sagrada Humanidade de Jesus Cristo.

Para Teresa, a “experiência autêntica da humildade, alerta para o trato

adequado com a própria vontade e disciplina dessa faculdade demonstra que a oração

não nasce em laboratório de Teologia, mas no humus dos imperfeitos: “despojando-

nos do nosso amor próprio e da nossa vontade, do apego às coisas da terra, fazendo

obras de penitência, oração, mortificação, obediência e tudo o mais que sabeis que

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Jesus é o modelo perfeito e acabado de todo contemplativo”. “Enfim, de uma maneira

ou de outra, há de existir cruz enquanto vivermos” (cf. M V, 2, 9).

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CONCLUSÃO GERAL

Teresa, lamenta quando não procuramos saber quem somos, mas que

somente nos interessa o corpo! A respeito de nossa alma sabemos alguma coisa por

ouvir dizer, não nos importa saber sobre a sua formosura; portanto o castelo a que

Teresa se refere é a própria alma. A reflexão teresiana deseja nos levar ao

conhecimento da própria alma como um gesto de humildade; perceber que ainda

neste desterro, é possível comunicar-se com tão grande Deus, não obstante não

passarmos de uns vermezinhos, nós os homens (cf. M 1,1-3).

Consciente de que este trabalho e a sua conclusão não tem nada de original,

nem inovador e muito menos esgota o tema; o mesmo foi elaborado sob o pano de

fundo da carta do Papa Francisco, ao Bispo de Ávila, na ocasião do Ano Jubilar

celebrativo do V Centenário do nascimento de Santa Teresa (1515-2015)77. Os

objetivos estabelecidos verificaram-se referentes ao caminho vital de Teresa;

conseguimos perscrutar a sua ligação entre o seu itinerário oracional, vida ascética e

que culmina na ação, ou seja, a fundadora da reforma do Carmelo78.

Todos, não somente os espanhóis deveriam conhecer a história dessa insígnia

fundadora, ler os seus livros, os quais, a par das suas filhas nos numerosos carmelos

espalhados pelo mundo, nos continuam a dizer quem e como foi a Santa Teresa e o

que pode ensinar aos homens e mulheres de hoje, observa o Papa Francisco.

Porém, antes de se chamar a atenção para as diferentes experiências orantes,

importa sublinhar o realismo da descrição dos diferentes modos experienciais na

perspectiva da expressão biográfica que se encontra em Santa Teresa. A

característica fundamental está em que Santa Teresa se contenta em descrever os

fenômenos, enquanto a explicação filosófica e teológica ela busca na pessoa de

teólogos amigos e de seus confessores. Razão pela qual ela tem particular cuidado

no sentido de que esses homens de Deus tenham boa formação espiritual e teológica.

Pode-se concluir que nem a oração e nem a ascese foram um fim para Teresa,

mas um meio para mais amar a Deus e ao próximo com gestos e obras. A grande luta

de Teresa neste mundo consistiu no desapego de si mesma, seu profundo sentido de

77 O Papa Francisco dirige a seguinte carta ao bispo de Ávila, Monsenhor Jesús García Burillo, por ocasião do início do Ano Jubilar celebrativo do V Centenário do nascimento de Santa Teresa (1515-2015). Vaticano, 15 outubro 2014. Disponível em: http://www.carmelitas.pt/site/noticias/noticias_ver.php. Acesso em 3 de agosto de 2018. 78 SESÉ, Bernard. Teresa de Ávila, mística e andarilha de Deus. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 7.

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mortificação pessoal. Portanto, a oração e a ascese foram um meio para o

crescimento espiritual ordenado ao serviço de Deus e dos homens, na Igreja.

Santa Teresa vive em um momento peculiar da história, não único, mas um

desafio para os homens de seu tempo. Trata-se do fator da relação com a cultura

hebraica e muçulmana dos 'conversos', da presença de um fundo de sensibilidade

oriental que se torna particularmente presente em Portugal e Castela, as condições

que sobrevêm também do ponto de vista eclesiástico por causa do Concílio de Trento,

da Contra-Reforma e do aparelho inquisitorial, então vigente. Isto é fato, mais do que

a marca de uma tradição judaica, ela constitui uma ponte de união e uma via de

compreensão para a própria espiritualidade mística de Castela no século XVI. Em

particular, no caso de Santa Teresa, sua ascendência judaica, lhe confere um

temperamento decidido, pelo voluntarismo intelectual aplicado à vida, que se exprime

menos pela estrutura lógica conceitual, mas na sua sensibilidade pessoal79.

Ela viveu as dificuldades do seu tempo – tão complicado – sem ceder à

tentação do lamento amargo, mas antes aceitando-as na fé como uma oportunidade

para dar um passo a mais no caminho.

Ela atribui à meditação da Paixão e à Eucaristia, como presença de Cristo na

Igreja, pela vida de cada crente e como centro da liturgia. Santa Teresa vive um amor

incondicional à Igreja: manifesta um sensus Ecclesiae vivo diante dos episódios de

divisão e conflito na Igreja do seu tempo. Reforma a Ordem carmelita com a intenção

de melhor servir e defender a “Santa Igreja Católica Romana”, disposta a dar a vida

por ela (cf. V 33, 5; Bento XVI, audiência geral, 2-FEV-2011).

Na escola da santa andarilha aprendemos a ser peregrinos. A imagem do

caminho pode sintetizar muito bem a lição da sua vida e da sua obra. Ela entendeu a

sua vida como caminho de perfeição pelo qual Deus conduz o homem, morada após

morada, até Ele e, ao mesmo tempo, o põe em caminho para os homens. Por quais

caminhos quer levar-nos o Senhor seguindo as pegadas e pela mão de Santa Teresa?

Em sua obra ela sintetiza quatro questões que fazem muito bem: o caminho da alegria,

da oração, da fraternidade e do tempo próprio.

79 Cf. FELDMANN, Christian. EDITH STEIN, judia, ateia e monja. Bauru-SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, p. 94: “[...], cujo avô, aliás, foi judeu convertido ao cristianismo e ainda assim perseguido pela inquisição[...]” WALSH, p. 16.

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E, por sentir o seu amor, experimentava uma alegria contagiosa que não podia

dissimular e que transmitia à sua volta. Esta alegria é um caminho que temos de andar

durante toda a vida. Não é instantânea, superficial, barulhenta. É preciso procurá-la já

«nos princípios» (cf. V 13, 1). Expressa o gozo interior da alma, é humilde e modesta

(cf. F 12, 1). Não se alcança pelo atalho fácil que evita a renúncia, o sofrimento ou a

cruz, mas que se encontra padecendo trabalhos e dores (cf. V 6,2; 30,8), olhando para

o Crucificado e procurando o Ressuscitado (cf. CP 26,4).

Daí que a alegria de Santa Teresa não seja egoísta nem auto referencial. Como

a do céu, consiste em alegrar-se que se alegrem todos (cf. CP 30,5), pondo-se ao

serviço dos demais com amor desinteressado. Da mesma forma que disse a um dos

seus mosteiros em dificuldades, a Santa diz-nos também hoje a nós, especialmente

aos jovens: “Não deixem de andar alegres!” (Carta 284,4). O Evangelho não é uma

bolsa de chumbo que se arrasta pesadamente, mas sim uma fonte de gozo que enche

de Deus o coração e o leva a servir os irmãos80.

A Santa transitou também o caminho da oração, que definiu de forma bela como

um “tratar de amizade estando muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama”

(cf. V 8,5). Quando os tempos são “difíceis”, são necessários amigos fortes de Deus

para sustentar os fracos (cf. V 15,5).

Rezar não é uma forma de fugir, também não é evadir-se, nem isolar-se, mas

sim avançar numa amizade que tanto mais cresce quanto mais se trata com o Senhor,

“amigo verdadeiro” e “companheiro” fiel de viagem, com quem “tudo se pode sofrer”,

pois sempre “ajuda, dá esforço e nunca falta” (cf. V 22,6). Para orar não está a coisa

em pensar muito, mas sim em amar muito81 (cf. M IV,1,7); em voltar os olhos para

olhar Aquele que não deixa de olhar-nos amorosamente e sofrer por nós

pacientemente (cf. CP 26,3-4).

Estes conselhos da Santa são perenes. Sigamos, pois, pelo caminho da

oração, com determinação, sem deter-se, até ao fim! Isto vale não somente para os

membros da vida consagrada, mas para todos os cristãos, sobretudo no momento no

qual se vive a cultura do provisório; ´singular viver a fidelidade na dimensão “para

sempre, sempre, sempre” (cf. V 1, 5). Em uma sociedade com tantos ídolos,

certamente a Santa aponta: sejam testemunhas de que “só Deus basta” (cf. P 9).

80 Carta do Papa Francisco, dirigida ao bispo de Ávila, Monsenhor Jesus Garcia Burillo, por ocasião do início do Ano (1515-2015), de 5 de outubro de 2014. 81 Axiamo teresiano (cf. F 5, 2).

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Este caminho não podemos fazê-lo sozinhos, mas sim juntos. Para a santa

reformadora, o caminho da oração transcorre na via da fraternidade no seio da Igreja

mãe. Esta foi a sua resposta providencial, nascida da inspiração divina e da sua

intuição feminina, aos problemas da Igreja e da sociedade do seu tempo: fundar

pequenas comunidades de homens e mulheres que, à imitação do “colégio

apostólico”, seguiram Cristo vivendo simplesmente o Evangelho e sustendo toda a

Igreja com uma vida feita oração (cf. CP 2, 5) e que “Cristo andaria conosco” (cf. V

32,11).

Fraternidade na Igreja: andar juntos com Cristo como irmãos! Para isso não

recomenda Teresa de Jesus muitas coisas, simplesmente três: amar-se muito uns aos

outros, desprender-se de tudo e verdadeira humildade, que “ainda que a digo por

último é a base principal e as abraça todas” (cf. CP 4, 4).

Como desejaria, nestes tempos, umas comunidades cristãs mais fraternas

onde se faça este caminho: andar na verdade da humildade que nos liberta de nós

mesmos para amar mais e melhor aos demais, especialmente aos mais pobres! Nada

há mais belo do que viver e morrer como filhos desta Igreja mãe!82

A santa escritora e mestra de oração foi ao mesmo tempo fundadora e

missionária pelos caminhos de Espanha. A sua experiência mística não a separou do

mundo nem das preocupações das pessoas. Pelo contrário, deu-lhe novo impulso e

coragem para a ação e para os deveres de cada dia, porque também «entre as

panelas anda o Senhor» (cf. F 5,8).

A oração vence o pessimismo e gera boas iniciativas (cf. M VII, 4,6). Este é o

realismo teresiano, que exige obras em vez de emoções, e amor em vez de sonhos,

o realismo do amor humilde ante um ascetismo trabalhoso! Algumas vezes a Santa

abrevia as suas saborosas cartas dizendo: «Estamos de caminho» (Carta 469,7.9),

como expressão da urgência em continuar até ao fim com a tarefa começada.

“Já é tempo de caminhar!” (cf. Ana de São Bartolomeu, Últimas ações da vida

de santa Teresa). Estas palavras de santa Teresa de Ávila às portas da morte são a

síntese da sua vida e convertem-se para nós, não somente para a vida carmelita, mas

para todos quantos, ainda nesta vida, desejam desfrutar desta preciosa herança que

82 Carta do Papa Francisco dirigida ao bispo de Ávila, Monsenhor Jesus Garcia Burillo, por ocasião do início do Ano Jubilar celebrativo do V Centenário do nascimento de Santa Teresa (1515-2015). Vaticano, de 5 de outubro de 2014. http://www.carmelitas.pt/site/noticias/noticias_ver. Acesso em 3 ago 2018.

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nos fora deixada por Santa Teresa de Jesus. Isto é, para Santa Teresa de Jesus a

imagem de Cristo humano e glorificado, é tão inalienável quanto a própria palavra,

símbolo e expressão pedagógica que obedientemente se manifesta na sua obra

escrita e nas fundações da grande reformadora carmelita.

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