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FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
Rodrigo Vieira de Almeida
Uma propedêutica para uma reflexão sobre o conceito de imortalidade do homem
na filosofia de Charles Sanders Peirce.
São Paulo
2011
FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
Uma propedêutica para uma reflexão sobre o conceito de imortalidade do homem
na filosofia de Charles Sanders Peirce.
Rodrigo Vieira de Almeida
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Filosofia da
Faculdade de São Bento do Mosteiro de São
Bento de São Paulo, como requisito parcial para
a obtenção de título de Mestre em Filosofia.
Área de Concentração: Semiótica
Orientador: Prof. Dr. Ivo Assad Ibri
São Paulo
2011
Banca examinadora:
_________________________________
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 9
1. A CLASSIFICAÇÃO GERAL DAS CIÊNCIAS SEGUNDO CHARLES
SANDERS PEIRCE .................................................................................................................. 13
2. A FILOSOFIA .............................................................................................................. 16
2.1 A Fenomenologia .......................................................................................................... 17
2.1.1 A Primeiridade ............................................................................................................... 18
2.1.2 A Segundidade ............................................................................................................... 21
2.1.3 A Terceiridade ................................................................................................................ 24
2.2 As Ciências Normativas ............................................................................................... 28
2.2.1 O bem lógico .................................................................................................................. 30
2.2.2 O bem ético .................................................................................................................... 33
2.2.3 O bem estético ................................................................................................................ 37
2.2.4 A relação entre estética, ética e lógica ............................................................................ 42
2.3 A Metafísica .................................................................................................................. 45
2.3.1 A realidade da Terceiridade............................................................................................ 49
2.3.2 A realidade da Primeiridade ........................................................................................... 53
2.3.3 A realidade da Segundidade ........................................................................................... 58
2.3.4 O Realismo ..................................................................................................................... 62
2.3.5 Síntese da Classificação Geral das Ciências .................................................................. 63
3. O IDEALISMO OBJETIVO ....................................................................................... 65
4. SINEQUISMO E CONTINUIDADE .......................................................................... 72
4.1 O conceito de Continuidade ......................................................................................... 73
4.2 Continuidade e senso-comum ...................................................................................... 76
4.3 Continuidade e Terceiridade ....................................................................................... 76
4.4 Continuidade e Segundidade ....................................................................................... 78
4.5 Continuidade e Primeiridade ...................................................................................... 79
4.6 Continuidade e Realismo ............................................................................................. 81
4.7 Continuidade e Idealismo Objetivo ............................................................................ 82
4.8 Corolário: a relação entre Continuidade, Evolucionismo e Falibilismo .................. 83
5. O PRAGMATISMO ..................................................................................................... 84
5.1 O pragmatismo Inicial ................................................................................................. 85
5.2 O pragmatismo tardio .................................................................................................. 91
5.3 O pragmatismo e a arquitetura filosófica peirciana. ................................................. 97
6. A SEMIÓTICA ........................................................................................................... 101
6.1 Semiótica, Semiose e Signos. ...................................................................................... 101
6.2 O signo, o objeto e o interpretante ............................................................................ 105
8
6.3 As três principais tricotomias de Signos. .................................................................. 108
6.3.1 Qualissignos, sinsignos e legissignos. .......................................................................... 110
6.3.2 Ícones, Índices e Símbolos ........................................................................................... 112
6.3.3 Rema, Dicissigno e Argumento .................................................................................... 117
6.3.4 As dez classes de Signos .............................................................................................. 119
6.4 A vida do Símbolo....................................................................................................... 120
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 125
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 133
9
INTRODUÇÃO
Charles Sanders Peirce nos legou uma filosofia de extraordinária riqueza e
variedade que pode ser comparada com uma imensa árvore de diversos galhos e
múltiplas folhas, que se renovam a cada primavera, apontando para infinitas direções.
Cada pequena folhinha deve ser considerada como possuidora de um importante papel
diante de um universo sempre em evolução. Desejamos seguir a direção para a qual
aponta uma destas „folhinhas‟, a saber, a configurada pelo tema Imortalidade do
homem. No entanto, trata-se de um tema cuja abordagem satisfatória exigiria um
aprofundamento que extrapolaria os limites de uma pesquisa de mestrado. Assim, o
trabalho que o leitor tem em mãos pretende ser um primeiro passo em direção a uma
futura pesquisa de doutorado que tomará para si a tarefa de aprofundar a riqueza
proporcionada por este tema, sobre o qual falta literatura tanto no Brasil como no
exterior.
Qual é a natureza deste primeiro passo? Respondemos de imediato: sua natureza
é a de uma propedêutica1. Assim, o objetivo deste trabalho é oferecer, como
preparação, uma apresentação do que constitui os requisitos mínimos para uma
problematização do tema Imortalidade do homem no interior da obra do autor.
Quais são estes requisitos mínimos? Partindo do pressuposto que Peirce
construiu ao longo de toda a sua obra aquilo que pode ser conceituado como uma
arquitetura filosófica, que consiste, grosso modo, em um sistema onde todas as partes
relacionam-se umas com as outras de maneira articulada segundo uma relação de estrita
dependência, os requisitos mínimos não podem ser outros se não o entendimento geral
das doutrinas centrais que compõem tal arquitetura filosófica. Pretendemos, assim,
explicar sucintamente cada uma destas doutrinas e, ao mesmo tempo, tornar
paulatinamente manifesta a relação de dependência que elas mantêm entre si.
Temos plena consciência de que, para explicar de maneira satisfatória qualquer
uma destas doutrinas centrais seria necessário o espaço de um volumoso livro. Portanto,
antecipamos ao leitor que não pretendemos esgotar tema algum. No entanto, isto não
1 Propedêutica significa segundo o Caldas Aulete: “1 Ciência preparatória; instrução preliminar;
introdução a uma ciência. 2 Conjunto de estudos que precedem, como etapa preparatória, os cursos
superiores de especialização profissional ou intelectual.”
10
implica que prescindiremos do rigor, sempre necessário a uma exposição de conceitos
considerados chave.
Para levar a cabo esta tarefa, o trabalho divide-se em sete capítulos:
1- No primeiro capítulo introduziremos sucintamente a Classificação geral das
Ciências segundo Peirce, mostrando de partida o quadro lógico que nos guiará
na descrição da arquitetura filosófica do autor.
2- No segundo capítulo efetuaremos um recorte nesta classificação geral, tomando
o foco da divisão da Filosofia, no interior das chamadas Ciências da Descoberta.
Assim, serão abordadas as três ciências que compõem a filosofia no interior do
pensamento peirciano. Em 2.1 trataremos da Fenomenologia, onde faremos uma
breve descrição das três categorias, primeiridade (2.1.1), segundidade (2.1.2) e
terceiridade (2.1.3); em 2.2, abordaremos as Ciências Normativas, onde
consideraremos os três tipos de bens: o bem lógico (2.2.1), o bem ético (2.2.2) e
o bem estético (2.2.3), mostrando, em seguida, a interconexão entre as mesmas
(2.2.4); em 2.3 chegaremos à Metafísica, que vai proporcionar uma ontologia do
real, ancorada nas ciências que a antecedem na classificação. Descreveremos,
nesta ordem, a realidade da terceiridade (2.3.1), a realidade da primeiridade
(2.3.2) e a realidade da segundidade (2.3.3); após isto conceituaremos o realismo
radical do autor (2.3.4). O capítulo chegará a termo com uma breve síntese da
classificação geral das ciências (2.3.5), completando o que fora apenas esboçado
no primeiro capítulo.
3- O terceiro capítulo será dedicado a uma das doutrinas mais complexas do
edifício filosófico peirciano: o Idealismo Objetivo. Primeiramente
apresentaremos os elementos principais desta doutrina, com a esperança de
torná-la compreensível ao leitor. Em seguida pretendemos mostrar que o
Idealismo Objetivo não consiste em uma pequena fase do pensamento peirciano,
mas sim em um dos pilares de toda a sua arquitetura filosófica, tendo sido
assumido, posteriormente, no interior de outra doutrina, o Sinequismo.
4- O quarto capítulo se encarregará exatamente da doutrina do Sinequismo, que
configura um ponto nevrálgico para uma reflexão sobre a Imortalidade do
homem. Portanto seu correto entendimento, dentro dos limites deste trabalho, é
essencial para o objetivo que nos propomos. Entender o sinequismo é entender
aquilo que Peirce conceituou como continuidade (4.1) e como esta deve ser
11
pensada como estando presente em todas as coisas. Assim, veremos como a
continuidade, apesar de envolver complexas teorias que lhe sustentam
epistemologicamente, aparece já no senso comum (4.2). Logo após,
mostraremos como ela também está intimamente ligada com a fenomenologia.
Faremos isso apresentando a relação que o conceito de continuidade mantém
para com as categorias de terceiridade (4.3), segundidade (4.4) e primeiridade
(4.5). Em seguida, veremos como a continuidade também subsume em seu
interior o realismo (4.6), o idealismo objetivo (4.7) e, como um corolário,
evolucionismo e falibilismo peircianos (4.8).
5- No quinto capítulo apresentaremos, em linhas gerais, o pragmatismo do autor.
Descreveremos as origens do pragmatismo como um método lógico de
clarificação de idéias (5.1) e avançaremos sua explicação no período mais
maduro da obra do autor, no qual seu pragmatismo é devidamente aprofundado e
diferenciado dos outros „pragmatismos‟ (5.2). Este aprofundamento nos leva
diretamente ao reconhecimento de que o pragmatismo não é meramente uma
máxima de lógica para a clarificação de conceitos abstratos, mas, alinhado com
as outras doutrinas que compõem a arquitetura filosófica peirciana, pode ser
tomado como uma máxima metafísica, cujo entendimento é de capital
importância para a compreensão de qualquer tema específico na obra peirciana
(5.3).
6- O sexto capítulo, por sua vez, terá por objetivo fornecer o ferramental mínimo
sobre semiótica que se fará necessário para entender o papel que os signos
exercerão no conceito de Imortalidade do Homem tal qual Peirce o pensou. Para
tanto efetuaremos um recorte no vasto campo que constitui a semiótica do autor,
direcionando o conteúdo para dentro do escopo deste trabalho. O capítulo se
inicia com uma breve descrição do que constitui a semiótica, a semiose e os
signos para Peirce (6.1); em seguida introduziremos os três correlatos do
processo de semiose, a saber, o signo ou representamen, o objeto e o
interpretante (6.2); partindo das relações entre os três correlatos, apresentaremos
as três principais tricotomias de signos (6.3): qualissigno, sinsigno, e legissigno
(6.3.1); ícone, índice e símbolo (6.3.2); rema, dicissigno e argumento (6.3.3).
Das possíveis combinações entre estas três principais tricotomias de signos
resultam as dez classes de signos, as quais serão apenas listadas (6.3.4). Por fim,
esta breve apresentação da semiótica se encerrará com um retorno à noção de
12
símbolo (6.4), onde mostraremos como este pode ser comparado,
metaforicamente, com uma criatura viva. Tal comparação culminará em uma
polêmica afirmação sobre um possível caráter imortal dos símbolos.
Analisaremos esta afirmação, cuja importância salta à vista: ela constituirá o
ponto de partida de Peirce para a reflexão sobre a Imortalidade do homem.
7- Para concluir, levantaremos algumas questões que surgem do entrelaçamento do
conceito de Imortalidade com a propedêutica que constituiu o objeto deste
trabalho. As questões não serão respondidas e, portanto, esta será uma conclusão
que permanecerá em aberto, apontando para o futuro.
Não pretendemos fazer uma exposição original da arquitetura filosófica
peirciana e muito menos deter últimas palavras: isso seria, aliás, uma heresia para quem
trabalha com a filosofia de Peirce. Apenas desejamos, com este trabalho, realmente
proporcionar uma propedêutica que elabore uma estrutura teórica e conceitual que
permita problematizar futuramente o tema a Imortalidade do homem na filosofia
peirciana e, assim, fazer “parte da criação”, unindo nossas idéias às de tantos outros que
estudam Peirce com amor e dedicação.
13
1. A CLASSIFICAÇÃO GERAL DAS CIÊNCIAS SEGUNDO CHARLES
SANDERS PEIRCE
O que procuraremos desenvolver durante todo este trabalho sob a rubrica de
arquitetura filosófica peirciana é um todo orgânico que compreende, a nosso ver, a
totalidade do desenvolvimento filosófico-científico do autor e cuja construção remonta à
aurora da sua carreira intelectual, permanecendo em constante aperfeiçoamento até o
final de sua vida, em 1914. No entanto, não pretendemos fazer um levantamento
cronológico do desenvolvimento desta arquitetura filosófica, mas sim descrevê-la,
dentro dos limites de uma pesquisa de mestrado, a partir de uma estrutura sequencial já
elaborada de forma consistente pelo autor e cujos exemplos se encontram, em sua
maioria, na fase mais madura de seu pensamento, possibilitando, assim, a construção de
um arcabouço lógico e conceitual mínimo para uma futura problematização do tema a
imortalidade do homem à luz de tal filosofia. É por isso que adotamos a estratégia de
começar pela Classificação geral das Ciências, que, sendo uma aquisição tardia do
pensamento de Peirce, datando de 1902 e oriunda de um quadro onde Peirce efetuava
uma revisão daquilo que, como veremos, chamou de categorias2, permite fornecer ao
leitor, de saída, uma visualização diagramática do plano lógico e sequencial da sua
arquitetura filosófica matura. Ao mesmo tempo, a partir do diagrama da Classificação
Geral das Ciências, estaremos apresentando visualmente o mapa do desenvolvimento
lógico da nossa propedêutica, completando, assim, a apresentação meramente abstrata
fornecida na Introdução.
Feitas essas considerações iniciais, convidamos o leitor para, antes de continuar,
olhar detidamente para o diagrama a seguir, que representa a Classificação geral das
Ciências3 conforme a pensou Charles Sanders Peirce:
2 Segundo Parker “A classificação das ciências em Peirce incorpora a noção de que há elementos
materiais e formais em toda ciência. A aplicação deste princípio na lógica permite que Peirce escape do
paradoxo da origem das categorias. As categorias possuem aspecto formal e material. Suas formas gerais
podem ser descobertas racionalmente, mas suas instanciações materiais devem ser experienciadas. As
categorias são primeiramente reveladas na matemática da lógica e não pela lógica que é normativa para o
pensamento. Peirce pôde, assim, ter seu bolo e também comê-lo: o nosso conhecimento das categorias
enquanto leis formais das condições do pensamento derivam da lógica matemática; mas estas categorias
são pressupostas pela lógica normativa peculiar para qualquer estágio de investigação. Em boa forma
escolástica, Peirce dissolveu o paradoxo fazendo uma distinção. A sua classificação das ciências foi
desenvolvida para mostrar que tal distinção era plausível.” Conferir: PARKER, 1998, cap. 2, p.32-33. 3 Para um aprofundamento da Classificação Geral das Ciências em Peirce, conferir LUCAS, 2003.
14
Fig. 1. FONTE: EP 2.258.
Na verdade, em um texto chamado Uma Classificação Detalhada das Ciências4,
Peirce levou a cabo um projeto classificatório tão minucioso, que ultrapassaria em
muito o escopo deste trabalho. O método classificatório utilizado por Peirce, na
construção de sua Classificação Geral das Ciências foi o de proceder das ciências mais
básicas e gerais para as mais particulares. O que faremos aqui será um breve comentário
dos principais tópicos desta classificação, para em seguida nos determos um pouco mais
sobre a divisão da Filosofia dentro das chamadas Ciências da Descoberta. Podemos nos
servir, assim, de um curto texto chamado Um Esboço da Classificação das Ciências5, no
qual nos é dado exatamente um panorama geral do que Peirce desenvolveu
aprofundadamente no texto acima citado.
As ciências estão classificadas em três grandes grupos, a saber, Ciências da
Descoberta, Ciências da Revisão e Ciências Práticas. “As Ciências Práticas são aquelas
4 A Detailed Classification of the Sciences, CP 1.203-83.
5 An Outline Classification of the Sciences, EP 2.258.
Ciências
Ciências da Descoberta
Matemática
Da Lógica
Das Séries Discretas
Dos Continua & Pseudo-Contínua
Filosofia
Fenomenologia
Primeiridade
Segundidade
Terceiridade
Ciências Normativas
Estética
Ética
Lógica
Metafísica
Ontologia
Metafísica Religiosa
Tempo, Espaço, Leis da Natureza
Ciências Especiais
Ciências Físicas
Ciências Psíquicas
Ciências da Revisão
Ciências Práticas
15
que compreendem qualquer inquirição científica que visa a um fim ulterior” 6, ou seja,
possui um objeto prático, sobre o qual deve produzir um efeito. Um exemplo de ciência
prática é o Direito (jurisprudência). “As Ciências da Revisão se ocupam em organizar os
resultados das descobertas, começando por um resumo e procurando formar uma
filosofia da ciência.” 7 Um exemplo desse tipo de ciência é, exatamente, uma história ou
classificação das ciências. As Ciências da Descoberta são a Matemática, a Filosofia e as
Ciências Especiais. Peirce define a Matemática nesse texto como a ciência que estuda
“o que é e o que não é logicamente possível, sem fazer de si mesma responsável pela
existência atual dos seus objetos.”8 Por sua vez, a Matemática está dividida em
“matemática da Lógica, matemática das séries discretas e matemática dos continua e
pseudo-continua.”9
Antes de entrarmos na segunda classe de Ciências da Descoberta, que constitui o
escopo deste trabalho, descrevamos em breves traços a terceira classe, a saber, as
Ciências especiais ou idioscopia. Estas ciências são chamadas de especiais porque se
valem de observações especiais para construírem as descobertas ou descrições de seus
objetos. Todas as ciências especiais assentam na observação de fatos dados pela
experiência, as diferenças entre elas se darão através de como são observadas e
interpretadas tais experiências10
. Peirce as divide em dois grupos: ciências físicas e
ciências psíquicas. As ciências físicas estão por sua vez dividas em três tipos: física
geral ou nomológica, física classificatória e física descritiva. “A física nomológica
descobre os fenômenos gerais do universo físico, formula as suas leis e mede as suas
constantes” 11
(a Gravitação, por exemplo). “A física classificatória tem por escopo
classificar e descrever as formas físicas que foram descobertas em sua generalidade pela
6 Especificamente nesse texto que tomamos por base, Peirce não explica em que consiste as Ciências
Práticas, no entanto, queira o leitor se remeter, por exemplo, a EP 2.458 ou CP 6.391. 7 EP 2.258-259.
8 Ibidem, 259.
9 Ibidem, 259. Peirce define a Matemática de forma geral como “A ciência que tira conclusões
necessárias”, (CP 4.229: definição esta que Peirce remonta como sendo de autoria de seu pai, o brilhante
matemático Benjamin Peirce) e também como “O estudo do que é verdadeiro quanto ao estado de coisas
hipotético. Esta é sua essência e sua definição” (CP 4.233). Como veremos um pouco mais abaixo, existe
uma relação de dependência entre as Ciências, dessa forma a Matemática se constitui para Peirce como a
primeira das Ciências e a única que não depende de nenhuma outra ciência ao passo que todas as outras
ciências dependem da matemática. Não pertencendo ao escopo desse trabalho uma análise detalhada da
Matemática na filosofia de Peirce, lembramos que ela possui estatuto fundamental para o entendimento da
teoria peirciana do contínuo, que será trabalhado dentro do espírito propedêutico deste trabalho, em
tópico específico. Para excelentes panoramas do papel da Matemática na filosofia de Peirce remetemos o
leitor a: MURPHY, 1993, Pat III e ROSA, 2003, cap. III. 10
Conferir CP 7.527. 11
EP 2.259.
16
Física nomológica” 12
(a Química, por exemplo). Já a física descritiva toma para si a
função de descrever objetos individuais, explicando os seus objetos tomando por
pressuposto o que foi descoberto pela física nomológica e classificado pela física
classificatória (a Geologia, por exemplo).
As ciências psíquicas são também dividas em três tipos: psico-nomológicas,
psico-classificatórias e psico-descritivas. “Ciências psico-nomológicas descobrem os
elementos gerais e as leis dos fenômenos mentais”13
(Psicologia). “Ciências psico-
classificatórias têm por escopo a classificação de fenômenos mentais cujas explicações
se darão em termos de princípios psicológicos”14
(Etnologia, por exemplo). “As ciências
psico-descritivas, por sua vez, descrevem fenômenos mentais individuais e os explicam
em termos psicológicos tomados das duas ciências anteriores”15
(História).
2. A FILOSOFIA
A segunda classe de Ciências da Descoberta é a Filosofia. O que é a Filosofia
para Peirce? É uma ciência que lida com verdades positivas, ou seja, com fatos
experienciáveis e observáveis por qualquer homem no seu dia a dia16
. A tarefa da
filosofia é, segundo Peirce, “encontrar o que pode ser encontrado naquelas experiências
universais que confrontam qualquer homem em qualquer momento de sua vida.” 17
Ora,
se a Filosofia é uma ciência positiva, ou seja, que lida com fatos dados na experiência, o
que a diferencia das ciências especiais? Ibri nos explica no capítulo 1 de seu livro
Kosmos Noetos, citando uma passagem por ele traduzida dos Collected Papers:
O que é a experiência sobre a qual se baseia a filosofia? Para qualquer
uma das ciências especiais, experiência é aquilo que diretamente é
revelado pela arte observacional daquela ciência [...] Mas em filosofia
não existe uma arte observacional especial, e não existe conhecimento
adquirido anteriormente à luz do qual a experiência é interpretada. A
12
EP 2. 259. 13
Ibidem, 259. 14
Ibidem, 260. 15
Ibidem, 260. 16
Conferir, CP 1.241. 17
CP 1.246.
17
interpretação em si mesma é experiência [...] Em filosofia, a experiência
é o inteiro resultado cognitivo do viver. 18
Depreende-se daí que o objeto da Filosofia é o universo total da experiência. Ou
seja, é para a experiência, como resultado do próprio ato de viver, que a filosofia está
voltada, e não para observações especiais sobre objetos, como nas Ciências Especiais. E
isso, como acrescenta Ibri, é dotar a experiência de muito importante estatuto, e tomá-la
como fator corretivo de todo pensamento, sendo esse um dos pilares de toda a filosofia
peirciana.19
Para Peirce, a Filosofia está dividida em Fenomenologia, Ciências Normativas e
Metafísica. Cada uma dessas ciências tomará a experiência a seu modo, proporcionando
um todo harmonioso entre si e com as outras ciências da classificação, resultando disso
uma relação de dependência entre as Ciências. Vamos nos deter agora na descrição de
cada uma dessas ciências que compõem a Filosofia, uma vez que elas constituem a base
para a continuidade do nosso trabalho.
2.1 A Fenomenologia
A Fenomenologia, também chamada de Faneroscopia20
ou doutrina das
categorias21
, é a primeira ciência que constitui a Filosofia, e é descrita por Peirce como
a ciência que “descobre e estuda os tipos universais presentes nos fenômenos;
significando por fenômeno qualquer coisa presente à mente, em qualquer momento e
em qualquer aspecto.”22
Ela não pretende descrever a realidade (como veremos, a
descrição da realidade pertencerá à Metafísica), mas apenas a forma como as
experiências aparecem para nós. Essa descrição do modo de aparecer dos fenômenos
(faneron, como Peirce também os chamou23
) se dará através da divisão da forma como
os fenômenos aparecem para nós, em três classes ou conceitos, que são os mais
18
Apud IBRI, 1992, p. 4. (itálicos do autor). 19
Ibidem, p. 5. Ver também SILVEIRA, 2007, p. 208-209. 20
CP 1.284. 21
Ibidem 1.280. 22
EP 2.260. 23
CP 1.284.
18
elementares e universais, chamados de categorias universais.24
Isso significa que, nem
tudo no fenômeno deve ser levado em consideração, mas somente os seus elementos
logicamente indecomponíveis25
e esses são descritos sob os nomes de Primeiridade,
Segundidade e Terceiridade.26
Descrever uma categoria é empreender uma busca pelas experiências que a
tipificam. Dessa forma, devemos fazer, para cada uma das categorias, a pergunta: “qual
o tipo de experiência que a tipifica?”.
2.1.1 A Primeiridade
Perguntemos, então, qual o tipo de experiência que tipifica a Primeiridade?
Tratam-se das experiências que são primeiras, novas, livres, espontâneas, plenas de
frescor, etc. Dizer que uma experiência é da natureza de um primeiro é dizer que, por
um lado, ela está livre de qualquer coisa de outro, de estranho a si (de segundidade,
como veremos) e, por outro lado, que ela também está livre de qualquer coisa que a
medeie, ou seja, livre de qualquer conceito (veremos, de terceiridade), ou seja, não há
nada que se coloque entre a experiência e a consciência experienciadora. Muito
importante é assinalar que essas experiências são imediatas, ou seja, não dependem do
fluxo do tempo para serem experienciadas; está excluída delas qualquer referência ao
passado e qualquer tipo de previsão para o futuro. Exatamente por isso, não são
experiências passíveis de serem analisadas, posto que qualquer análise implica no fluxo
do tempo para o estabelecimento do conceito, bem como no distanciamento do objeto
por parte do analista, algo que não ocorre aqui. Nas experiências de primeiridade, objeto
24
A forma como apresentamos as categorias nesse trabalho já se referem à fase mais madura de Peirce, a
saber, a partir do texto de 1885, intitulado One, two, three: Fundamental Categories of Thought and of
Nature. Portanto, não nos voltaremos para a questão da diferença entre esse texto em relação ao texto de
juventude On a New List of Categories. Para o leitor interessado em aprofundar o desenvolvimento do
pensamento de Peirce em relação às categorias, favor consultar MURPHY, 1993 e HAUSMAN, 1993. 25
CP 1.288. 26
Como nossa descrição das categorias será bem geral, o leitor poderá recorrer à descrição detalhada no
original de Peirce: Primeiridade, CP 1.300-321; Segundidade, CP 1.322-336; Terceiridade, CP 1.337-349.
Comentadores: IBRI, 1992 e MURPHY, 1993.
19
e sujeito são um só, daí a imediatidade da experiência. São puros estados de
consciência. Puros sentimentos: neles desaparece o dualismo sujeito e objeto.27
Embora este ponto só se torne mais claro após abordarmos o realismo do autor,
uma breve reflexão se faz necessária desde já, para evitar que sejamos induzidos a erro
no futuro: deve-se tomar muito cuidado para não pensar a experiência de primeiridade
em termos meramente psicológicos. O assento não está de nenhuma maneira no sujeito
psicológico como o lugar privilegiado da experiência, embora na fenomenologia o
faneron seja descrito conforme aparece para nós. Prova disso é que a primeiridade,
enquanto qualidade está presente de forma abundante na Natureza. Trata-se, nesse caso,
da espontaneidade e variedade dos fenômenos que aparecem na Natureza de forma
irregular, sem necessidade alguma de um sujeito psicológico para vê-los, sendo essa a
sua forma externa de aparecer.28
Nenhuma subjetividade precisa estar presente para
experimentar o sabor singular do mel para que esse possa existir enquanto singular.
Dessa forma, a primeiridade se espraia em tudo que tem qualidade, sentimento,
liberdade, espontaneidade, singularidade29
, assimetria, irregularidade, enfim, em tudo
que é em si e por si, sem necessidade de nada mais.30
Ressaltemos apenas mais dois importantes aspectos da primeiridade para não
nos estendermos muito. A primeiridade só pode ser acessada do ponto de vista lógico
27
Esse é um dos temas pelo qual se pode fazer uma excelente contraposição entre o pensamento de Peirce
e o de Descartes. Não é o caso de nos aventurarmos a tal, posto que isso fugiria ao escopo desse trabalho.
O leitor que tiver interesse em aprofundar esse tema pode consultar SANTAELLA, 2004. 28
Isso foi apontado pela primeira vez por Ivo Ibri em 1992. Um dos traços mais marcantes do mundo
fenomenológico é que ele aparece indiferenciadamente no que pode ser chamado de mundo interior e
mundo exterior. Logo, as categorias vão descrever os fenômenos que aparecem indiferenciadamente pelo
lado interno e externo. Aliás, segundo Ibri, nós só podemos conhecer o mundo interior pela forma como
ele aparece pelo lado exterior. Isto é central para o Pragmatismo, como veremos em capítulo específico. A
sua fundação começa, como se pode perceber, na Fenomenologia. 29
Não confundir singularidade com particularidade. Cada particular possui sua singularidade. Por
exemplo: um aluno tira zero e outro tira dez; o fato de ser avaliado por uma nota, qualquer que seja, é um
fato particular, agora, como cada aluno sentiu isso é uma singularidade. Outro exemplo: imagine que você
está em um mercado, diante de várias peras, cada pêra é um particular, mas por outro lado, cada pêra
possui algo que é só dela, nenhuma pêra é igual à outra, isso é cada pêra também possui sua
singularidade. Conforme Ibri explica, a singularidade é o correto significado da palavra latina haecceitas, tomada por Peirce do escolástico medieval Duns Scotus. Esse conceito, segundo Ibri, é interpretado
erroneamente por vários comentadores de Peirce, que o caracteriza como um conceito ligado à categoria
de segundidade, quando na verdade ele deve ser associado à categoria de primeiridade. O que é
característico da segundidade, como veremos, é o conceito de individual, de particular. (anotações em
sala de aula, curso de Semiótica, ministrado no primeiro semestre de 2010 na Faculdade de São Bento). 30
Conferir IBRI, 1992.
20
como algo da natureza de uma universalidade31
, ou seja, como qualidades passíveis de
serem predicadas de muitas coisas.32
Mas que tipo de universalidade lógica descreve a
primeiridade? Não é uma universalidade necessária, essa universalidade vai pertencer à
categoria de terceiridade. Então que tipo de universalidade? Trata-se da universalidade
da possibilidade. A forma lógica da primeiridade é a possibilidade.33
A primeiridade é a
categoria do possível. O que significa isso? Significa que o possível é uma forma de
generalidade, melhor seria dizer vagueza, exatamente porque não está determinado, por
isso ele é em si e singular, se houver uma determinação, esse algo deixa de ser
meramente possível e se torna algo particular, este e não aquele outro possível, e então
já estaremos no terreno da segundidade. Um ótimo exemplo é o lance de dados:
enquanto o dado está em nossa mão e não foi jogado, todas as seis faces são possíveis;
quando jogamos o dado, uma de suas seis faces se determinará, e, então, o que serão as
outras faces? Absolutamente nada, apenas no próximo lance é que as seis faces voltarão
a ser possíveis novamente.34
As faces possíveis pertencem à categoria de primeiridade.
Mas não interpretemos com isso que nada atual tenha uma qualidade e, portanto uma
primeiridade. Qualquer qualidade atual ou possível é um exemplo de primeiridade, com
a ressalva que, se tratando de uma qualidade atual, ela será exemplo de primeiridade
quando essa qualidade for abstraída do individual que a incorpora.
O outro aspecto importante de ser notado é que existem experiências de pura
primeiridade, cujo exemplo mais claro está na experiência de contemplação.35
A
contemplação se dá quando o sujeito se perde absolutamente diante do objeto,
inexistindo qualquer relação com o tempo, portanto quando sujeito e objeto se tornam
um só, permanecendo uma unidade entre mundo interior e exterior. Na maior parte do
tempo, quando olhamos para um objeto, já o observamos com um olhar judicativo, ou
seja, já olhamos para ele com um conceito formado a respeito dele. Na experiência de
31
Na verdade não só a primeiridade, mas qualquer coisa só pode ser descrita do ponto de vista lógico por
meio de Universais. Todo conceito é universal. 32
É a definição aristotélica de universal: “universal é aquilo que pode ser predicado de muitos.”
Metafísica. (ARISTOTLE, 1989, p. 26). 33
Peirce parece resgatar a Lógica Modal elaborada por Aristóteles, em seu Organon, no século quarto
antes de Cristo. 34
Este exemplo foi dado por Ibri. (anotações em sala de aula, curso de Semiótica, ministrado no primeiro
semestre de 2010 na Faculdade de São Bento). 35
Essa experiência de contemplação encontra-se claramente descrita em dois artigos de Ivo Ibri, IBRI,
2009 e IBRI, 2010a. Aqui, apenas faremos uma descrição sumária, baseados nesses textos. Vale ressaltar
que, a maioria dos comentadores de Peirce, e aqui poderíamos citar como exemplos Murphy, Hausman,
Rosenthal, Machuco Rosa e Silveira, passa direto por essa característica, tomando as categorias por
absolutamente ubíquas.
21
contemplação, ao contrário, esse tipo de olhar conceitual ou analítico desaparece,
permanecendo uma unidade entre sentimento e objeto, uma qualidade de sentimento,
sem relação com nada mais, sem a objeção do mundo exterior, característica da
segundidade, ou necessidade de encontrar uma mediação para o objeto contemplado,
traço característico da terceiridade. Esta experiência só pode ser sentida e não descrita,
exceto por uma arte tal como, por exemplo, a poesia, cuja aproximação em relação ao
objeto a ser descrito não é conceitual, mas sim metafórica, ou seja, captura o que há de
singular no objeto contemplado mediante um deslocamento semântico. Para ilustrar o
que estamos dizendo, transcrevamos um trecho de uma poesia que, a nosso ver, captura
bem essa característica e deixamo-la falar por si, encerrando assim a caracterização da
primeiridade:
“To see a World in a grain of sand
And a Heaven in a wild flower
Hold Infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour.”36
2.1.2 A Segundidade
Qual o tipo de experiência que tipifica a categoria de segundidade? A
segundidade se caracteriza especialmente por ser a categoria do mundo externo.37
Há
nas experiências que tipificam a segundidade um forte sentido de alteridade, ou seja, de
algo que é independente da vontade, do desejo ou da imaginação de qualquer mente ou
coleção de mentes. O que é a alteridade? É tudo aquilo que é outro que não o eu, no
plano da fenomenologia. É o não-ego. Na nossa experiência cotidiana, que, lembramos,
é o espaço onde a Filosofia, de uma forma geral, busca a confirmação de suas hipóteses,
estamos sempre colidindo com algo que nos objeta, tanto faz se são objetos ou situações
particulares. Peirce exemplifica:
36
BLAKE, 1970, p. 481. “Para ver o mundo em um grão de areia/ e o Paraíso em uma flor selvagem/
Abrace o Infinito na palma da sua mão/ E a Eternidade em uma hora.” (Tradução livre). 37
Conferir IBRI, 1992.
22
Isso está presente até mesmo em um tão rudimentar fragmento da
experiência como um simples sentimento. Pois tal sentimento possui
sempre um grau de nitidez, alto ou baixo, e essa vivacidade é um
sentimento de comoção, uma ação e reação, entre nossa alma e o
estímulo.38
O contato com algo outro que não o eu é sempre uma experiência que traz em
seu bojo a dualidade entre duas coisas. Trata-se de um segundo em relação a, que surge
a partir da idéia de negação daquilo que queremos, ou seja, de uma espécie de
experiência de conflito ou luta. 39
Dessa forma, a experiência que tipifica a segundidade
é a experiência de reação. Essa experiência é sempre imediata, por isso Peirce a chamou
de dura.40
Ela é sempre individual, particular, isto e não aquilo. O objeto reage contra a
consciência sempre como algo individual, isso porque toda reação possui uma
individualidade, acontecendo apenas uma vez.41
Voltando ao exemplo do lance de
dados, quando uma de suas faces, após o lançamento, é determinada, por exemplo, o
número seis, essa determinação é absolutamente particular e aniquila todas as outras
possibilidades (as faces 1, 2, 3,4 e 5, no caso). É um fato e jamais poderá ser diferente;
assim é individual, aconteceu apenas essa vez, hic et nunc42
. Se lançarmos o dado
novamente e der novamente seis, esse fato é outra ocorrência, bem como seria com
qualquer face, outro fato individual e não o mesmo. Assim, a segundidade é a categoria
da determinação.
Alguém poderia objetar dizendo que em toda experiência de luta ou esforço, ou
seja, de algo que exerce uma força contra nós, opera uma lei causal, do tipo ação/reação
e, portanto estaríamos como descobriremos em breve, no terreno da terceiridade. Mas
Peirce mesmo explica: “Por luta, devo explicar, me refiro à ação mútua entre duas
coisas independentemente de qualquer mediação e em particular independentemente de
38
CP 1.322. 39
Conforme IBRI, 1992. 40
CP 1.324. Na tradução de Ibri: “Estamos continuamente colidindo com o fato duro. Esperávamos uma
coisa ou passivamente tomávamo-la por admissível e tínhamos sua imagem em nossas mentes, mas a
experiência força esta idéia ao chão e nos compele a pensar muito diferentemente.” (apud IBRI, 1992, p.
7). 41
Conforme IBRI, 1992, p. 7. 42
Expressão latina que quer dizer “aqui e agora”.
23
qualquer lei de ação.”43
Isso significa que a segundidade pretende tipificar uma
experiência também imediata.
Dessa forma, qualquer objeto está sob a categoria de segundidade. Isso está
presente inclusive na etimologia da palavra. Se não vejamos: em Latim, Objecto ou
Obiecto, avi, atum significa pôr diante de, opor, interpor, objetar, repreender, lançar em
rosto.44
Um objeto objeta, resiste contra nós, nisso consistindo um grande exemplo de
uma experiência de segundidade. A que o objeto objeta? Ele objeta à nossa vontade e à
nossa intenção de representá-lo.45
Ele permanece sendo o que é, ou seja, um individual,
independente de qualquer representação ou de querermos que ele fosse alguma outra
coisa diferente daquilo que ele é. Agora, não só objetos, mas qualquer fato nos objeta.
Em outras palavras, um fato é independente da nossa vontade, por exemplo, a
experiência de ser assaltado. Significa: um fato bruto não é redutível ao pensamento.
Outro conceito muito importante que advém da categoria de segundidade é o de
existência, ou seja, a segundidade é também a categoria das coisas que existem. Mas a
compreensão deste conceito exige um passo adiante, em direção à Metafísica. Dessa
forma, pedimos um pouco de paciência ao leitor para aguardar o momento certo de
abordarmos esse tema.
Lembrando que qualquer categoria descreve os fenômenos do lado interno e
também externo, indiferenciadamente,46
podemos dizer que aquilo que explicamos até
aqui constitui o lado externo da categoria de segundidade. Como se daria o
aparecimento do lado interno dessa categoria? Ibri nos explica:
Sob a segunda categoria está, também, toda a experiência pretérita sobre
a qual não se tem qualquer poder modificador... Por ser assim, o
passado exerce sua compulsão sobre a consciência.47
O passado é alteridade sob o aspecto interior, em relação à consciência. Não
podemos fazer nada quanto ao nosso passado, no sentido de operar sobre ele algum tipo
de mudança. Ele está lá, para sempre. É bruto, duro. E, inclusive é um dos principais
43
CP 1.322. 44
TORRINHA, 1997 – Dicionário Latino-Português. Esse insight nos foi dado também por Ibri.
(anotações em sala de aula, curso de Semiótica, ministrado no primeiro semestre de 2010 na Faculdade de
São Bento). 45
A representação de um objeto já pertence, como veremos, à terceira categoria. 46
Ver nota 29. 47
IBRI, 1992, p. 8.
24
fatores que nos constitui enquanto indivíduos.48
Podemos apenas refletir sobre ele, mas
isso já pertencerá à terceira categoria.
2.1.3 A Terceiridade
Diante da segundidade, ou seja, das coisas que permanecem sendo o que são
independentemente da nossa vontade, é necessário mediar: isso é a terceiridade. Como é
possível mediar fatos brutos? Ora, ocorre que as reações de objetos segundos possuem,
além de suas individualidades e determinações, algum tipo de regularidade, de
permanência, de ordem.49
Isso será o pivô de toda representação e mediação em face do
mundo externo e também interno. Então, quais são as experiências que tipificam a
terceiridade? São as experiências que, em seu aspecto interior envolvem cognição,
pensamento, raciocínio, síntese, aprendizado, representação, generalização, predição,
mediação, hábito, e, em seu aspecto exterior, envolvem ordem, permanência, simetria,
semelhança, redundância, repetição, tempo50
etc. Terceiro é tudo aquilo que conecta um
primeiro a um segundo.51
A terceiridade é a categoria do pensamento. O pensamento serve para
mediarmos fatos brutos, para solucionarmos problemas oriundos do desconhecimento
diante de algo. Quando não conhecemos o objeto, a experiência que temos diante dele é
de brutalidade, de objeção. Não sabemos o que fazer, ficamos muitas vezes perdidos. É
o que ocorre sempre que estamos em uma situação nova, na qual temos dúvidas sobre
como agir. Por exemplo, uma pessoa recém contratada por uma empresa, que chega ao
seu escritório sem fazer a menor noção de como funcionam os procedimentos internos
da mesma. Ela deve dar conta dos processos diários e isso se torna um problema para
ela. Ela deve ser rápida, eficaz, proativa, etc. Mas como fazer isso sem o conhecimento
preciso dos objetos que devem ser manipulados? É aí que entra o papel da mediação.
48
Esse ponto será analisado em futura pesquisa de Doutorado, uma vez que está implicado no tema geral,
a imortalidade do homem. 49
Uma ocorrência individual que se repete, ou seja, permanece, já possui algo da natureza do
pensamento, e, portanto, algo de terceiridade. 50
O tempo também possui o seu aspecto interior, a saber, a forma como sentimos o tempo. Mas o tempo
em seu aspecto interior é primeiridade. A terceiridade, por outro lado, tem a ver com o tempo em seu
aspecto exterior, ou seja, o tempo objetivo. 51
Dessa forma o que temos, ao juntar as três categorias visualmente, é 1, 3, 2 e não 1, 2, 3. Mediação e
não mera seqüência.
25
Ela vai começar um processo de aprendizagem dos procedimentos internos da empresa
com o intuito de passar do estágio de desconhecimento para um estado de
conhecimento.52
Quando esse estado for atingido, os processos já não exercerão sobre
ela a objeção bruta.53
Um processo de formação de conhecimento implica aprendizagem. Só podemos
apreender algo que possua alguma espécie de ordem.54
Esse aspecto é muito importante,
se não essencial, para a correta compreensão da epistemologia peirciana.55
Aquilo que
não tem padrão, não é cognoscível. Permanência é uma forma de ordem, dessa forma
tudo o que está sob a linguagem se refere a conceitos que surgiram como generalização
de propriedades que permanecem nos fenômenos. Só a ordem permite conceito. Um
exemplo: o que é aquilo que chamamos de livro? A palavra livro é um conceito que
captura os predicados que todos os livros têm em comum, tais como: possuem capa,
folhas, letras impressas, título etc. São predicados de livros em geral e não apenas deste
sobre o qual estou debruçado agora. É possível dizer “livro”, significando com isso os
predicados referidos, porque em geral os livros permanecem sendo livros com esses
predicados. Há uma ordem, um padrão em jogo aqui. Se eu perguntar para o meu
vizinho o que é um livro, ele vai me responder que um livro é um objeto que possui
mais ou menos essa mesma série de predicados que acabei de descrever, tanto se eu
perguntar hoje, como se eu perguntar daqui a três meses ou um ano. Ele não vai me
responder “olha, esses predicados que você usou para exemplificar o que é um livro,
eram predicados de livros até a semana passada; hoje os livros têm outros predicados
completamente diferentes, tais como são voláteis, não possuem letras ordenadas etc.”
Todos os termos da linguagem são nomes baseados em universais. Tanto os nomes
como os predicados.
Assim, a cognição depende de um princípio de ordem no objeto. Ou seja, não
somos nós que impomos relações, mas as relações têm que ser sugeridas pelo objeto.
52
Esse tema é muito trabalhado por Peirce, sobretudo em um texto intitulado A Fixação das Crenças (The
Fixation of Belief - EP 1. 109), de 1877, o primeiro da série Ilustrações da Lógica da Ciência
(Illustrations of the logic of Science). 53
Ou seja, quando conhecemos um objeto, ele deixa de objetar. Isso quer dizer que a própria razão apenas
surge diante dessa necessidade de mediar a segundidade do mundo. 54
É por isso que jamais podemos ter uma experiência cognitiva da primeiridade, posto ser esta a categoria
do assimétrico, ou seja, daquilo que não tem nenhuma ordem. Não conhecemos a primeiridade, apenas
sentimos algo que aparece como primeiro ou contemplamos algo primeiro com a consciência em
suspenso. Conferir IBRI, 1992 e IBRI, 2009. 55
Conferir IBRI, 1992.
26
Em outras palavras, as relações ocorrem nos objetos.56
Nós representamos objetos
segundo essa ordem, que nos permite formar um conceito sobre eles. Os conceitos nos
permitem conhecer os objetos e abrandar as suas objeções (segundidade). Dizemos
abrandar, porque, mesmo depois de conhecermos um objeto e sabermos como nos
comportar diante dele, ainda permanece a sua característica individual (segundidade), e
mesmo suas qualidades (primeiridade), isso faz da representação cognitiva algo sempre
aproximado.57
Isso exemplifica outra característica da terceiridade, a saber, ela inclui
em si a segundidade e a primeiridade. Não há uma mediação que não seja entre um
primeiro e um segundo.58
A permanência supõe o tempo. O pensamento está sempre no tempo, exatamente
porque ele captura a ordem que permanece independente desse próprio pensamento no
mundo. Trata-se de uma experiência totalmente diferente da primeiridade e da
segundidade, estas imediatas. Todo processo de aprendizagem envolve tempo, um fluxo
contínuo do passado em direção ao futuro. Recolhemos as experiências do passado e
refletimos sobre elas, ou seja, efetuamos um processo de mediação. E para que? Para
que saibamos como nos comportar no futuro. Todo saber é preditivo, ou seja, está
direcionado para o futuro.59
Saber algo é ter um conhecimento geral, que não está nunca
esgotado em uma ocorrência, mas sim vale para todas as situações possíveis que possam
56
Ver HAUSMAN, 1993 e SILVEIRA, 2004, para excelentes análises do papel do objeto como elemento
que constrange a mediação da terceiridade. Para Hausman, aquilo que é chamado de objeto dinâmico, na
semiótica peirciana, exerce o papel principal naquilo que ele chamou de realismo evolucionário de tipo
peculiar de Peirce. Esse traço é tão ressaltado por Hausman que entendemos ser um dos fatores que o
levou a rejeitar um lugar legítimo para o Idealismo Objetivo na filosofia de Peirce. Ou seja, para
Hausman, por mais próximo que se diga que Peirce estava do Idealismo Objetivo ele, na verdade, estava
comprometido com um realismo cuja característica principal era “a visão de que há condições restritivas
para o conhecimento e a experiência que transcendem ou não são redutíveis ao pensamento, mesmo se
tais processos são pensados como sendo independentes de mentes particulares ou agentes conscientes”
(p.4) e o fator fundamental de tais condições restritivas é algo que, do ponto de vista semiótico, é
designado pelo objeto dinâmico, que diz respeito ao objeto independentemente de como ele é pensado no
processo de semiose. A nosso ver o papel do objeto dinâmico de fato é importante em todo o processo
que gera conhecimento, mas realçar esse ponto como um argumento contra o Idealismo Objetivo é uma
estratégia inadequada, pois o Idealismo Objetivo, tal qual será esboçado em momento oportuno não
contradita o realismo radical de Peirce, mas ao contrário o completa, sob um ponto de vista que se pode
chamar de ontológico, acrescentando uma matriz comum para a mente e a matéria, matriz esta
identificada com a mente. De outro lado, esse acréscimo ontológico proporcionado pelo Idealismo
Objetivo também terá consequências que se farão sentir sob o ponto de vista epistemológico, pois se
verificará que o conhecimento sobre a matéria é possível exatamente porque ela é de natureza inteligível. 57
Essa postura está ligada, como veremos, ao sentido forte de realidade em Peirce, bem como em sua
concepção falibilista do universo. 58
Da mesma forma, a segundidade inclui a primeiridade. Ou seja, não há individual que não possua
qualidades, que tomadas em si, são primeiridade. Apenas a primeiridade está sozinha e não possui relação
com nada mais. Se a primeiridade tivesse alguma relação desse gênero, já estaria sobre uma espécie de
ordem e, portanto poderíamos ter uma experiência cognitiva dela. 59
Conferir (IBRI 1992; p.64). Ver também (ROSENTHAL, 1968).
27
ocorrer no futuro e que implicam esse saber. Um exemplo: saber fazer um pudim, não é
apenas saber fazer um pudim agora, este pudim individual, mas sim saber fazer um
pudim a qualquer momento, agora e no futuro. Tanto que existe a receita, e esta é
mediação, está sob a terceira categoria.
O vínculo que toda mediação possui para com o futuro se traduz no seu poder de
predição. Ou seja, quando mediamos uma situação de segundidade estamos prevendo o
curso dos fatos. Um exemplo simples: uma pessoa toma um remédio e logo após
começam a sair várias “bolinhas” vermelhas pelo seu corpo, “bolinhas” que, aliás,
coçam muito. Ela vai ao médico e após os devidos exames este lhe diz que ela é alérgica
ao tal remédio. Uma vez que ela adquiriu esse conhecimento, ela não vai pensar “só
hoje é que esse remédio me causou alergia, amanhã não vai causar”. Ela vai saber que
essa propriedade do remédio lhe causar alergia perdurará no futuro e, portanto, não mais
tomará o remédio quando surgir a ocasião, ela procurará outro que não tenha os mesmos
componentes químicos.60
Isso é, sua conduta foi moldada por uma mediação, pelo
conhecimento, pela aprendizagem adquirida, que se estende sempre para o futuro. Outro
nome para esse processo é hábito. Conhecer é representar hábitos (das pessoas, dos
objetos) e, ao mesmo tempo, adquirir hábitos, pois toda conduta moldada por um
processo de aprendizagem, quando repetida, se torna um hábito. O modo como agimos
é constituído pelas nossas crenças. O hábito é o lado de fora da crença. Agora, não é só
o homem que possui hábitos, a natureza também possui hábitos, por exemplo, a
produção do mel pelas abelhas, ou a construção de sua colméia.61
Sob o ponto de vista lógico, a terceiridade é a categoria da necessidade. Essa
necessidade é a necessidade lógica. Sua forma é a do argumento dedutivo: Todo A é B.
Todo B é C. Logo, todo A é C. Essa conclusão decorre das premissas necessariamente,
em outros termos, a conclusão segue uma regra necessária. Ela é o que é e não poderia
ser diferente. Não é possível que se dê de outra maneira.62
Sob o ponto de vista interior, a terceiridade é a categoria do pensamento, da ação
da mente no tempo, instituindo mediações e criando hábitos. Do ponto de vista exterior
a terceiridade é exatamente o que se dá no tempo: a ordem do mundo. Significa, tudo o
60
Isso ocorre também com os animais, tomemos como exemplo o adestramento de um elefante. 61
O papel do hábito na filosofia de Peirce será mais aprofundado em capítulos vindouros. 62
Aqui se percebe claramente a fragrante diferença entre a terceiridade como categoria do universal
necessário e a primeiridade como categoria do universal possível.
28
que tem ordem aparece como terceiridade. Isso está associado ao nosso mundo
cognitivo e por isso temos a experiência desses fenômenos.63
Uma Lei está sob
terceiridade, mas isso já implica um passo além da fenomenologia em direção à
metafísica. Cabe agora trabalharmos na caracterização das Ciências Normativas no
interior do pensamento de Peirce, para apenas depois estarmos seguros para
adentrarmos no terreno da metafísica, completando, assim, a classificação geral das
ciências.
2.2 As Ciências Normativas
A segunda ciência que constitui a Filosofia, na verdade é uma tríade de ciências,
que Peirce chamou de Ciências Normativas.64
São elas: a Estética, a Ética e a Lógica
(ou Semiótica65
). O que significa dizer que uma Ciência é normativa? Significa dizer
que essa ciência procurará investigar as leis universais e necessárias que caracterizam as
relações dos fenômenos com os seus fins. Fins esses que estão, por sua vez, ligados à
conduta. Que fenômenos são esses sobre os quais as Ciências Normativas vão se
debruçar? São aqueles fenômenos inventariados pela Fenomenologia, ou seja, as
Ciências Normativas assentam na Fenomenologia.66
Significa: em última instância, as
Ciências Normativas estão fundadas na experiência. Assim, cada uma das três Ciências
Normativas, para Peirce, terá por tarefa caracterizar seus fenômenos em relação aos fins
que lhes são próprios e que, exatamente por isso, motivam a conduta deliberada. Isso
equivale a dizer que essas ciências são gerais, e por isso fazem parte das Ciências da
Descoberta e não das Ciências Práticas ou mesmo Especiais. Aliás, são chamadas de
normativas exatamente por causa desse caráter geral que permite conceituação, análise e
63
Entenderemos a natureza dessa associação quando falarmos do Idealismo Objetivo peirciano. 64
Ver, por exemplo, CP 1.573-615. CP 5.120-150. Também EP 2-196-207 e 371-397. 65
Neste capítulo descreveremos de maneira bem geral a Lógica como ciência normativa. Haverá um
capítulo destinado à semiótica, no qual nos aprofundaremos um pouco mais na teoria geral dos signos,
mas lembramos, sempre mantendo o propósito propedêutico deste trabalho. Fugiria totalmente ao escopo
deste trabalho uma descrição da evolução da Lógica na obra peirciana. 66
“Essa ciência, Fenomenologia, então, deve ser tomada como a base sobre a qual as Ciências
Normativas devem ser erguidas.” CP 5.39.
29
definição da conformidade dos fenômenos com os seus fins.67
Dessa forma o tipo de
aproximação que as Ciências Normativas terão para com seus objetos não é meramente
fatual. Veja bem, isso não quer dizer que as Ciências Normativas não devam confirmar
suas hipóteses junto aos fatos. Elas assim o fazem, como qualquer ciência pertencente à
Filosofia, pois lembremos, essas são ciências positivas, ou seja, ciências que se
reportam aos fatos passíveis de serem observados por qualquer um, a qualquer
momento. Mas, ao mesmo tempo, enquanto ciências gerais, suas preocupações estão em
descrever o que há de comum entre os fatos, ou seja, o que há de geral nos fatos
tomados em relação aos seus fins, cada uma segundo o escopo que lhe pertence, e não
em reunir fatos sob um determinado aspecto e, então descrevê-los (escopo das Ciências
Especiais) ou em agir segundo uma técnica para produzir algo cujo fim é prático
(escopo das Ciências Práticas). Em outros termos, as Ciências Normativas são
puramente teóricas. Nas palavras do próprio Peirce:
Por uma ciência positiva, quero dizer uma investigação que busca por
um conhecimento positivo, ou seja, por um conhecimento que possa ser
convenientemente expressado por uma proposição categórica. A Lógica
e outras ciências normativas, embora perguntem não pelo que é, mas
pelo que deveria ser, de qualquer modo são ciências positivas, uma vez
que é por afirmarem verdades positivas e categoriais que elas estão
aptas para mostrar que o que elas chamam de bem realmente é assim, e
que, o raciocínio correto, a ação correta e o ser correto, dos quais elas
tratam, derivam suas características de fatos positivos e categoriais.68
Para entendermos isso corretamente devemos, então, fazer duas perguntas
essenciais: 1) O que significa dizer que um fenômeno está relacionado a um fim que lhe
é próprio e de forma geral? 2) De que maneira essas relações com fins gerais
influenciam a conduta? Respondendo à primeira pergunta, estaremos descrevendo cada
uma das Ciências Normativas. Respondendo à segunda pergunta, estaremos
relacionando as Ciências Normativas entre si.
Pois bem, o que significa dizer que um fenômeno está relacionado a um fim que
lhe é próprio e de forma geral? Fim equivale, aqui, a propósito. Um propósito próprio
67
Para uma excelente análise das Ciências Normativas em Peirce queira o leitor consultar POTTER,
1966. 68
CP 5-39.
30
de um fenômeno é algo outro que o fenômeno.69
É uma questão de conformidade de
fenômenos com fins, portanto, supõe uma dualidade (segundidade, em termos
categoriais). Então, não devemos confundir o termo “próprio” com o termo “imanente”.
As Ciências Normativas, para Peirce, “se relacionam à conformidade dos fenômenos
com fins que não são imanentes nesses fenômenos” 70
, mas que, por outro lado, lhes são
próprios. Significa: há um tipo de propósito que, embora não imanente, pertence
exclusivamente ao fenômeno, descrito em linhas gerais por um tipo de ciência
normativa. Isso distingue as Ciências Normativas de qualquer outra ciência. Dessa
forma, não se trata de propósitos particulares, mas sim de propósitos gerais,71
a saber,
no que concerne à representação da verdade (Lógica), no que concerne aos esforços da
vontade (Ética) e no que concerne aos objetos tomados simplesmente como aparecem
(Estética).72
As Ciências Normativas descrevem tipos de bens e não graus de bens.
Então, mais especificamente, devemos perguntar por três tipos de bens: Qual é o bem
próprio da Lógica? Qual é o bem próprio da Ética? Qual é o bem próprio da Estética?
2.2.1 O bem lógico
Comecemos pelo bem da Lógica. Peirce o define do seguinte modo: “Parece,
então que o bem lógico é simplesmente a excelência do argumento.” 73
A Lógica trata
do pensamento, mais precisamente do pensamento controlado. Controla-se o raciocínio
através de argumentos bem construídos. A Lógica, grosso modo, seria a ciência
normativa que busca estudar o raciocínio correto, através da descrição geral das formas
de raciocínio válidas, com o intuito de proporcionar os meios para se agir
razoavelmente.74
Para isso, a lógica trabalha com a classificação e crítica de argumentos
ou raciocínios. A classificação enumera os tipos de raciocínios existentes. A crítica lhe
69
É por isso que, como veremos um pouco mais abaixo, as Ciências Normativas tratam dos seus objetos
em sua segundidade. 70
Apud. SILVEIRA, 2007, p. 212. 71
No texto Três tipos de Bem (Three Kinds of Goodness - CP 5.120), Peirce adverte que existem ciências
práticas que correspondem às três ciências normativas. Essas ciências práticas seriam as que se
preocupam com as práticas do raciocínio, da conduta da vida e da produção de obras de arte, todas em seu
aspecto mais particular. No entanto, essas ciências recebem ajuda das ciências normativas e não as
constituem, posto que as ciências normativas lhes são mais gerais. 72
Conferir POTTER, 1966. 73
CP 5.143. 74
Conferir POTTER, 1966.
31
permite dizer se um argumento é bom ou ruim. Peirce reconheceu três tipos de
argumentos: a dedução, a indução e a abdução.75
Ele as definiu do seguinte modo:
A dedução é o único raciocínio necessário. É o raciocínio da
matemática. Parte de uma hipótese, cuja verdade ou falsidade nada tem
a ver com o raciocínio; e, naturalmente, suas conclusões são igualmente
ideais [...] A indução é a verificação experimental de uma teoria. Sua
justificativa está em que, embora a conclusão da investigação num
estágio qualquer possa ser mais ou menos errônea, mesmo assim, a
aplicação ulterior do mesmo método deve corrigir o erro. A única coisa
que a indução realiza é a determinação do valor de uma quantidade.
Parte de uma teoria e avalia o grau de concordância dessa teoria com o
fato. Nunca pode dar origem a uma idéia, seja qual for. Tampouco o
pode a dedução. Todas as idéias das ciências a ela advêm através da
abdução. A abdução consiste em estudar os fatos e projetar uma teoria
para explicá-los. A única justificativa que ela tem é que, se devemos
chegar a uma compreensão das coisas algum dia, isso só se obterá por
esse modo.76
A crítica dos argumentos que se dão por raciocínios dedutivos, indutivos e
abdutivos, ou seja, a afirmação de que se trata de argumentos bons ou ruins, consiste na
capacidade ou não desses tipos de raciocínios em representar um objeto
verdadeiramente. Assim, em última instância, a representação do objeto pelos tipos de
raciocínios lógicos deve conduzir à verdade na descrição do fenômeno. Mas que tipo de
verdade é essa? Não será uma „Verdade‟ absoluta, final e acabada. Trata-se de uma
verdade sempre passível de correção ulterior, posto que a representação deve sempre se
curvar ao fenômeno. Não somos nós que imputamos a verdade nos fenômenos através
da nossa linguagem.77
Uma representação deve se adequar ao objeto e não este à
representação. O objeto sempre é representado sob algum aspecto. Isso quer dizer, a
linguagem nunca irá capturar o objeto em sua completude.78
Dessa forma, o bem da
Lógica consiste em representar bem as verdades provisórias, produzidas pelos tipos de
75
Não é o caso, aqui, de nos aprofundarmos na caracterização de cada um desses tipos de raciocínios
lógicos e a relação destes com o desenvolvimento da filosofia peirciana. O leitor que desejar se
aprofundar nesse tema pode consultar: IBRI, 2006; DIPERT, 2004; BACHA. 2002. 76
PEIRCE, 2008, p. 207. 77
Peirce vai se afastar totalmente dessa linha nominalista de pensamento. Compreenderemos ainda
melhor esse ponto depois de termos nos voltado ao Realismo peirciano. 78
Conferir SILVEIRA, 2004.
32
argumentos, desenvolvendo, assim, bons hábitos de raciocínios mediante aplicação de
regras e normas.79
Devemos notar também que, para Peirce, a verdade é um processo no
qual estamos envolvidos durante toda a nossa vida, e que é possível pensar em uma
verdade ideal, nunca atualizada, posto que se fosse assim seria absoluta, mas que serve
como guia para todo pensamento e investigação, na forma de uma esperança no
futuro.80
Dessa forma, afasta-se a possível objeção de relativismo.
O bem lógico está assentado no fato de que todo raciocínio pode ser auto-
avaliativo, ou seja, auto controlado. Alias para Peirce, isso é o único aspecto em que o
raciocínio é superior ao instinto.81
Assim, a classificação e a crítica dos argumentos
servem como normas para fundamentar a conduta deliberada. Conduta deliberada, como
vimos, supõe o autocontrole; isso significa: a lógica não lida com fatos que fogem ao
controle da racionalidade, os inconscientes por exemplo. O raciocínio é, por definição,
sujeito ao autocontrole e é precisamente por causa disso que podemos dizer que são
bons ou maus e não ao contrário82
De outro lado, mencionemos algo que agora só
entenderemos parcialmente83
: como o raciocínio se aplica às relações que existem no
próprio universo, o processo de desenvolvimento de um bom raciocínio, ou seja, um
raciocínio que verdadeiramente represente uma relação real entre fenômenos equivale,
79
As regras e as normas são aplicadas aos tipos de raciocínio e redundam na questão da validade da
dedução, da indução e da abdução. É digno de nota que Peirce afirme: “Se, então, pudermos enunciar
aquilo em que consiste a validade do raciocínio Dedutivo, teremos definido a base do bem lógico de
qualquer tipo.” (PEIRCE, 2008, p. 208). Em que consiste a excelência do argumento dedutivo? Consiste
em que sua forma geral garante a regra básica da Lógica para atingir a verdade de um argumento, a saber,
que não se pode, seguindo essa forma, passar de premissas verdadeiras para conclusões falsas (qualquer
que seja o meio pelo qual as primeiras premissas são tidas por verdadeiras). Todo raciocínio necessário é,
para Peirce, de natureza diagramática, e seu maior exemplo está no raciocínio matemático. Dessa forma,
essa é a característica principal do raciocínio necessário para Peirce e não se pode, para exemplificá-lo
simplesmente usar o famoso exemplo do silogismo em Bárbara aristotélico: Todo homem é mortal. Ora,
Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. Na verdade, deveríamos pensar na geometria, e no papel que
a visão exerce na dedução das propriedades das entidades geométricas. Essa aparente redução do bem
lógico ao argumento dedutivo e, portanto, necessário, parece num primeiro momento conflitar com a
noção móvel de verdade caracterizada logo acima. No entanto, não devemos nos esquecer que a bondade
lógica não se aplica ao real, mas sim aos argumentos, ou seja, à representação. A verdade móvel está na
relação entre a representação e o objeto, e não somente na forma da representação. A forma dedutiva
garante a necessidade do argumento, e quando o argumento é adequado, garante também a verdade da
representação, mas não garante a certeza absoluta dessa representação, posto que o objeto é sempre
dinâmico, e portanto, a relação entre objeto e representação é também dinâmica. 80
Sobre a teoria da investigação em Peirce ver, por exemplo, os textos da série Ilustração da Lógica da
Ciência (PEIRCE, 2008 a). Para uma problematização, consultar MISAK, 2004 e BACHA, 2002. 81
Conferir WAAL, 2007, Cap. 6. 82
Conferir WAAL, 2007. 83
Na verdade só vamos estar mais preparados para entender essa afirmação depois de entendermos o
realismo e o idealismo objetivo de Peirce, o que ocorrerá um pouco mais abaixo.
33
em última instância, a um contínuo trabalho de conformidade da nossa mente com a
razoabilidade do universo.84
O raciocínio razoável que leva a uma conduta deliberada é
uma concretização da generalidade enquanto modo de ser.
2.2.2 O bem ético
A Ética não é a ciência do que é certo e do que é errado, ou seja, não é uma
prática85
, mas sim é a ciência do que faz com que algo seja adotado como sendo certo
ou errado, de uma maneira geral.86
Assim, Peirce define: “A ética é o estudo sobre quais
as finalidades de ação estamos deliberadamente preparados para adotar.” 87
O fim ou
propósito dos fenômenos descritos pela ética residem na ação.88
O que move a nossa
conduta? O que nos faz agir de tal ou qual maneira? A resposta é: algo que aparece
como um bem. A ética deve ser vista como a ciência que estuda os tipos de bens que
podemos adotar deliberadamente. Ora, já vimos que bem equivale a propósito e
finalidade. Dessa forma, a ética estuda, de forma geral, os fins que deliberadamente
adotamos para a nossa conduta. Ora, essa é exatamente a descrição de Ciências
Normativas. É por isso que Peirce tomava a ética por ciência normativa por excelência:
84
Conferir WAAL, 2007. 85
Peirce diferencia ética de moral. A ética enquanto ciência geral pertence às Ciências da Descoberta, a
moral, enquanto ciência do particular pertence às Ciências Práticas. Em CP 1.573, Peirce diz: “A ciência
da moralidade, da conduta virtuosa, do viver corretamente, muito dificilmente poderia clamar por um
lugar entre as ciências heurísticas.” Vincent Potter, em seu já citado artigo (POTTER, 1966), descreve
como Peirce, apenas após 1882 chegou à conclusão de que realmente a ética deveria ser distinguida da
moral, tomando assim o seu lugar nas ciências da descoberta; segundo Potter, antes dessa data, Peirce
tomava a ética “por nada mais que uma arte ou ciência prática que pouco tinha a ver com princípios
teoréticos.” Por outro lado, também não devemos confundir o conceito que Peirce tem da moral como
prática com a forma particular como o ser humano age diante de “tópicos de importância vital”. A moral
seria, então, uma tentativa não heurística de tornar isso assunto de uma prática. De outro lado, a ação
particular diante de dilemas e condutas morais, por exemplo, é mais uma questão de instinto e, para
Peirce, não deve ser confiada à nossa razão. No que diz respeito ao instinto, não se trata de nenhuma
forma de uma desconsideração do seu papel no mundo. Muito pelo contrário, Peirce tem o instinto em
alta conta, no entanto, ele não é objeto das ciências teoréticas, exatamente pelo fato de não estar sujeito ao
autocontrole, e, portanto à crítica. Para um aprofundamento desse tema, queira o leitor consultar AYDIN,
2009 e, para uma maior problematização MISAK, 2004 a. 86
Potter esclarece: “Assim, a ética não concerne diretamente em pronunciar que um curso de ação é certo
e aquele errado, mas em determinar o que faz do certo, certo e do errado, errado.” POTTER, 1966. 87
PEIRCE, 2008, p. 202. 88
Idem, página 201.
34
A Ética, a genuína ciência normativa da ética, enquanto distinta desse
ramo da antropologia que, em nossos dias, é conhecida pelo nome de
ética, esta ética genuína é a ciência normativa par exellence, porque um
fim, o objeto essencial da ciência normativa, está ligado com um ato
voluntário no qual não está ligado a nada mais.89
A ética envolve um ideal de conduta e isso não deve ser confundido em hipótese
alguma com um motivo para agir.90
Um ideal sempre está relacionado com uma linha de
conduta deliberada. Significa: cada ação é por assim dizer revista pelo agente através de
um julgamento. Esse julgamento tem por objeto a adoção da conduta julgada para um
futuro ou não. Ou seja, o julgamento vai estabelecer se a conduta deve ser mantida
aonde quer que surja a oportunidade. Se o julgamento estabelecer essa conduta para o
futuro, tal conduta se torna um ideal. Assim, um ideal é um tipo de conduta que atraí
uma pessoa após uma crítica, que é tanto interna quanto externa, ou seja, tanto é um
julgamento que ocorre na consciência de uma pessoa, como também advém de outras
pessoas, e de forma mais geral ainda, da sociedade.91
A ética define qualquer tipo de ideal, incluso o lógico e o estético. Portanto,
define o ideal em geral, não o ideal em si e nem o particular. Significa: a ética propõe os
fins que podemos razoavelmente perseguir. Isso envolve a escolha da conduta diante de
normas, ideais, propósitos, etc. A ética estuda exatamente essa relação, ou seja, a
relação da conduta com os ideais ou fins.92
Agora, ela estuda e define essa relação das
condutas com os ideais de forma teorética. Ou seja, ela não visa descrever as ações
pelas ações, mas sim a relação das ações com seus propósitos em qualquer situação
possível onde ocorrem na experiência. Assim, os propósitos que podem ser
deliberadamente perseguidos não são as ações particulares, mas sim idéias e ideais que
regulam e justificam as condutas escolhidas nas experiências de ações em geral.93
Controlar a conduta só é possível quando se sabe quais são os fins que estamos, em
89
PEIRCE, 2008, p. 202. 90
Ver CP 1.574. Ciano Aydin, em seu já citado artigo, AYDIN, 2009, p.432, onde observa agudamente
que essa distinção peirciana entre um ideal de conduta e um motivo para agir, equivale à distinção
aristotélica entre causa final e causa eficiente. 91
Segundo Ciano Aydin, é no sentimento social e não no individual que estará contido, para Peirce, o
critério para definir o que é o bem, posto que a sociedade é o resultado de um longo processo de
interação, correção e modificação oriundo de diferentes perspectivas. Ibidem, p. 438. 92
POTTER, 1966, p. 20. 93
AYDIN, 2009, p. 431.
35
geral, preparados para adotar. Dessa forma, a ética também pode ser definida como a
teoria do controle da conduta, e da ação em geral, de tal forma a se conformar com um
ideal.94
A deliberação acerca de qual conduta adotar é, por um lado sempre oriunda de
experiências e, por outro lado, sempre direcionada para o futuro. Ou seja, envolve a
forma como estamos preparados para agir acerca de assuntos cuja escolha já fizemos e
que por isso se tornou um ideal e, portanto guiarão nossa conduta no futuro. É porque
temos um ideal x que agimos de forma y de acordo com tal ideal, sempre que qualquer
situação que implique x surgir. Tomemos um exemplo bem simples: um pai que toma
por um ideal, ou seja, um bem, ensinar o seu filho pequeno a não roubar doces dos seus
colegas na escola. Quais as ações corretas que estarão em conformidade com o fim que
este pai está deliberado a adotar? Podemos descrever várias ações que esse pai pode
executar de acordo com esse ideal: ele deve ensinar isso ao seu filho; ele deve escolher a
forma certa de dizer; ele deve dar o exemplo, etc. Suponha-se que esse pai receba um
bilhete da diretora da escola, dizendo que seu filho fora surpreendido roubando um doce
de seu colega. Diante disso, o pai terá outras possíveis ações a executar, mas todas elas
conforme o mesmo ideal (supondo também, é claro, que esse ideal não tenha mudado).
Por exemplo, ele pode escolher castigar o filho com uma semana sem jogar vídeo game,
para que ele aprenda; ele pode dar-lhe uma surra; ele pode simplesmente sentar junto
com seu filho e conversar, visando reeducá-lo etc. Suponha-se agora uma última coisa
neste exemplo: esse mesmo pai chega a sua casa hoje, após longa jornada de trabalho e
recebe de sua esposa a notícia de que ela está esperando mais uma criança. Nove meses
depois nasce uma bela menina, e conforme ela vai crescendo chega o momento de
ensinar-lhe a não roubar doces de suas colegas na escola. Ou seja, o mesmo ideal que
regulou as ações desse pai para com o primeiro filho estará regulando e justificando as
suas ações para com a nova filha, e regulará, de forma geral, para um possível terceiro e
quarto e etc., desde que não mude o próprio ideal.
As normas e regras que balizam a conduta deliberada não precisam, mas devem
(ought) ser seguidas. Esse “deve” tem o peso semântico de um “pode”. Assim se coloca
a liberdade da vontade. Uma pessoa “pode” escolher agir em conformidade com os
ideais ou o contrário. Significa: sempre é possível agir de forma contrária ao
94
EP 2. 377.
36
“deveria”.95
Isso quer dizer que nada é imposto à vontade de seguir um ideal. Ao
contrario, é a vontade que procura pelo ideal de forma deliberada.96
Sempre haverá a
presença do autocontrole nas experiências fenomênicas que envolvem escolhas de um
bem ou propósito. Isso significa que a decisão ou a relação da conduta com os fins, se
dá sem a necessidade de apelar para algum tipo de mediação, ou seja, literalmente é
uma relação entre duas coisas, a saber, entre a vontade e o fim.97
Nisso reside o caráter
irredutível da ética.
Os fins que estamos preparados para adotar devem ser considerados como fins
últimos, e assim para Peirce “o homem correto é o homem que controla as suas paixões,
e as faz conformarem-se com os fins que ele está deliberadamente preparado para adotar
como fins últimos.” 98
A ética, como acabamos de ver, define de forma geral a relação
da conduta com os seus fins, quaisquer que sejam esses fins, sem necessidade de
nenhuma mediação, dada a liberdade da vontade. Assim à pergunta “qual é o bem
próprio da ética?” a resposta deve ser: a conformidade das ações com os fins
deliberadamente adotados, ou seja, razoavelmente escolhidos. Porém, esses fins são
fins relacionais, ou seja, visam a solução de algum problema dado pelo mundo da
segundidade ou é tomado como se fosse último em virtude de algum tipo de fixação de
crenças. Ou seja, podemos nos devotar a vários fins tomados como se fossem últimos.
Cabe, então, a pergunta: existe algum tipo de fim que funcione como fim último de uma
conduta deliberadamente adotada, sem relação com nada mais? Ou perguntando de
outra forma: os ideais que são pressupostos por qualquer adoção de conduta deliberada,
pressupõem, por sua vez, algum tipo de ideal último, que seja recomendável em si e
sem relação com nada mais? Apesar de isso ser uma questão fundamentalmente ética, a
sua resposta exige que tenhamos entendido, de maneira geral, do que se trata o bem
estético, para o qual nos voltaremos agora. Portanto adiemos essa resposta para quando
95
Conferir POTTER, 1966. 96
É obvio que o grande interlocutor de Peirce no que concerne a esse ponto é Kant, que em sua Crítica da
Razão Prática estabelece o papel do imperativo categórico no que diz respeito aos assuntos de natureza
ética. Peirce aceita o imperativo categórico, posto que a vontade não pode renunciar a escolher, sob pena
de renunciar a si mesma, mas vai se contrapor à interpretação desse imperativo como uma instância
transcendente aos fenômenos. Não seria possível a ética enquanto Ciência Normativa, nos moldes como
Peirce a descreve, se a vontade fosse guiada por um imperativo que não pode ser confirmado na
experiência fenomênica. Não cabe aprofundar aqui essa questão, mas o leitor que tiver interesse pode
consultar COLAPIETRO, 2006, artigo inteiramente dedicado em explorar a complexa relação entre
Peirce e Kant acerca da abordagem da identidade prática. 97
No entanto, isso não significa que essa relação não possa ser representada. Pelo contrário, deve ser
representada e nisso consiste a relação entre as ciências normativas, como veremos logo adiante. As
ciências normativas são irredutíveis entre si, mas são também relacionais, ou seja, uma depende da outra. 98
PEIRCE, 2008, p. 202.
37
formos falar das relações entre as ciências normativas, o que se dará logo depois de
investigarmos o bem estético.
2.2.3 O bem estético
Da mesma forma que a ética, para Peirce, não é a ciência do certo e do errado, a
estética também não é a ciência do belo e do feio, mas sim a ciência que descreve o que
faz do feio, feio e do bonito, bonito, ou seja, é também uma ciência do geral e não do
particular.99
Peirce num primeiro momento relutou em asserir a existência de uma
verdadeira Ciência Normativa do belo, uma vez que a normatividade da adoção de uma
conduta está ligada com um ato voluntário que, por sua vez não tem relação com nada
mais, além dessa relação entre duas coisas, vontade e finalidade, garantindo assim a
liberdade da vontade.100
Dessa forma, as Ciências Normativas parariam na ética. No
entanto, a linha de raciocínio que leva dos ideais deliberados de conduta estudados pela
ética até a pergunta por um fim possível admirável em si para o qual tenderiam todos os
outros ideais, o levou a aceitar o bem estético como pertencente ao escopo das Ciências
Normativas. Isso significa que essa inserção da estética é um tanto problemática,
gerando uma tensão que só pode ser resolvida, a nosso ver, através da consideração do
papel do valor na abordagem geral da conduta humana em relação aos seus fins.
Veremos como isso acontece primeiro descrevendo a estética em geral e depois
abordando a sua inserção no campo das Ciências Normativas.
O que um fenômeno, ou seja, qualquer coisa que aparece à mente deve possuir
para ser considerado esteticamente bom? Peirce diz:
[...] deve ter um sem-número de partes de tal forma relacionadas umas
com as outras de modo a dar uma qualidade positiva, simples e
imediata, à totalidade dessas partes; e tudo aquilo que o fizer é, nesta
99
Conferir POTTER, 1966. 100
PEIRCE, 2008, p. 202.
38
medida, esteticamente bom, não importando qual possa ser a qualidade
particular do total.101
Qual é a consequência que se pode depreender da citação anterior? É Peirce
mesmo quem diz:
Esta sugestão deve ser tomada por aquilo que ela vale, e atrevo-me a
dizer que o que ela vale é muito pouco. Se estiver correta, segue-se que
não existe algo como um mal estético positivo; e dado que por bem,
nesta discussão, o que queremos dizer é simplesmente a ausência do
mal, ou seja, a perfeição, não haverá algo como um bem estético. Tudo
o que pode haver serão várias qualidades estéticas; isto é, simples
qualidades de totalidades incapazes de corporificação completa [...]
Minha opinião é que há inúmeras variedades de qualidade estética, mas
nenhum grau puro de excelência estética.102
A consequência, dessa forma, seria que não haveria nem um mal estético
positivo, ou seja, não poderíamos nunca afirmar que uma qualidade é má em si e, por
outro lado, também não haveria um bem estético em si, ou seja, não poderíamos nunca
afirmar que uma qualidade é boa, posto que para dizer isso, teríamos que afirmar que
nessa mesma qualidade não há o mal estético. A única coisa que poderíamos dizer,
assim, é que existem várias qualidades estéticas e ponto, nem boas nem más, mas
qualidades em si e sem relação com nada mais, em outros termos, puras
potencialidades.103
Poderíamos dizer que essa primeira caracterização da estética nada tem a ver
com uma normatividade, posto que ela trata de qualidades em si sem relação com nada
mais e a normatividade visa definir os fins que, como vimos, são outros em relação aos
fenômenos. Dito de outro modo, se fossemos considerar aquilo que a estética enquanto
ciência tem a dizer dos fenômenos sobre os quais se debruça, deveríamos excluí-la das
ciências normativas, dado que os fenômenos são descritos por ela como sendo o que
são, na qualidade com que aparecem à experiência e, portanto não em relação a um fim
ideal.
101
PEIRCE, 2008, p. 203. 102
Ibidem, p. 203. 103
Em termos de categorias: primeiridade. Um primeiro, como vimos, é algo que não tem relação com
nada mais e, portanto, não pode ser tomado como outro, ou seja, como segundidade e nem como uma
relação, ou seja, como terceiridade. Dessa forma, num primeiro momento, a estética não poderia ser
incluída entre as ciências normativas.
39
Dessa forma, como pode ocorrer de a estética ser tomada como uma ciência
normativa? Como assentar em bases sólidas a tensão existente entre o aspecto
absolutamente imediato das qualidades estéticas com as finalidades da conduta
deliberada? O ponto que permite resolver essa tensão e, dessa forma, inserir a estética
no campo das Ciências Normativas é, segundo Peirce, o momento em que um ideal
estético é proposto como um fim último da ação.104
Ou seja, a estética só pode ser
incluída dentro das Ciências Normativas quando tomada em relação com as outras duas,
ética e lógica, de forma tal que os fenômenos que ela descreve sejam tomados como
ideais de conduta passíveis de serem adotados e bem representados. Em outras palavras,
em um dado momento, uma qualidade estética, em si nem boa nem má, é tomada como
um valor105
, ou seja, como um bem não mais em si, mas relacional, ou ideal, em suma
como um fim a ser perseguido. Relacional no sentido de que vai estar unida a
complexas redes de interações que vão balizar a conduta futura. Isso não significa que a
qualidade sofra uma imposição por parte da linguagem, perdendo assim o seu caráter
imediato, mas sim que ela é considerada como sendo um fim relacional. Clarifiquemos:
a estética deve considerar o bem em si, sem relações, nisso consiste o seu caráter
singular e isso deve começar com uma descrição das qualidades estéticas; mas, em
algum momento, aquilo que a estética separadamente descreve como uma qualidade
estética em si, deve ser tomada como um tipo de fim que é relacional, posto que outro
em relação ao fenômeno, ou seja, o bem que pode ser objeto próprio das Ciências
Normativas. Quando isso ocorre, as qualidades estéticas continuam sendo o que são, ou
seja, puras potencialidades que aparecem de forma imediata, mas, ao mesmo tempo, são
tomadas como fins, ou seja, como outros em relação aos fenômenos. O valor é o que
permite esse passo duplo, um voltado para o caráter estético do que aparece considerado
sem relação com nada mais e o outro voltado para a apropriação desse mesmo caráter
estético por uma forma ética, ou seja, como um fim ideal.
104
PEIRCE, 2008, p. 203. 105
O valor, como veremos, exercerá um importante papel em relação às ciências normativas como um
todo. É por isso que houve até quem pretendesse tomar o valor, enquanto tópico de vital importância,
como uma quarta categoria, que completaria a primeiridade, a segundidade e a terceiridade, posto que o
valor seria um fenômeno impar que não poderia ser reduzido a nenhuma das três categorias descritas por
Peirce, ver SCHNEIDER, 1952. Sem entrar em contenda, apenas mencionemos que não consideramos
correta essa linha de interpretação, simplesmente porque ela não passa pela navalha de Ockham, ou seja,
ela supõe mais elementos elementares do que o necessário. Assim, Carl Hausman, em seu maravilhoso
artigo Value and the Peircean Categories, demonstrou que é possível, sim, explicar o papel do valor, sem
equacioná-lo, mas sim relacioná-lo com as três categorias. Ver HAUSMAN, 1979.
40
O que é o valor e como ele permite esse passo? Segundo Carl Hausman, o valor
é em seu significado profundo exatamente o bem estético.106
Considerado como valor, o
bem estético aparece como condição cooperante e co-presente com as três categorias da
experiência, fundamentando a definição de todo e qualquer fim. Depois de
fundamentados pela estética enquanto valor é que esses fins podem ser definidos pela
ética e representados pela lógica. Estabeleçamos então a estrutura de forma mais clara,
sugerindo a abordagem da estética de duas maneiras: de um lado, a estética descreve de
forma geral os fenômenos conforme simplesmente se apresentam e assim considerados
os seus fenômenos serão exatamente tal como aparecem, ou seja, apenas manifestações
de qualidades estéticas, em si nem boas nem más; por outro lado, a estética também tem
um bem próprio, ou seja, um fim próprio, e esse fim ou propósito próprio é exatamente
o valor. Na primeira abordagem reside o aspecto da estética que não se alinharia à sua
inserção no terreno das Ciências Normativas e na segunda abordagem, o aspecto em que
ela se insere dentro das Ciências Normativas, proporcionando uma fundação para a
definição da conduta ideal definida pela ética enquanto conformidade com fins e
representada pela lógica de acordo a atingir uma verdade móvel. Por isso Peirce pode
dizer:
[...] um fim último da ação deliberadamente adotada, isto é,
razoavelmente adotada, deve ser um estado de coisas que razoavelmente
se recomenda a si mesmo em si mesmo, à parte de qualquer
consideração ulterior. Deve ser um ideal admirável, tendo o único tipo
de bem que um tal ideal pode ter, ou seja, o bem estético.107
O bem estético é a admirabilidade em geral. Dessa forma, é em seu caráter de
valor que o bem estético pode108
ser tomado como um ideal e é nesse momento que,
segundo Peirce, “um imperativo categórico pronuncia-se a favor ou contra ele”.109
E
então, já estamos no terreno das Ciências Normativas, com a estética exercendo o seu
papel junto com a ética e a lógica em direção à conduta deliberada.
106
HAUSMAN, 1979, p. 209. 107
PEIRCE, 2008, p. 202. 108
Dizemos que o bem estético enquanto valor pode ser tomado como ideal porque a sua natureza é ser
pervasivo, ou seja, ele se aplica a qualquer complexo de qualidades presentes no mundo da experiência e
não apenas como ideal. Isso é o que permitirá Peirce dizer que a ética é um bem estético acrescido de um
elemento que se lhe acrescentou. Voltaremos a isso em seguida. 109
PEIRCE, 2008, p.203.
41
Poder-se-ia objetar dizendo: mas o valor não é uma atribuição somente moral?
Responder-se-ia: o bem estético é uma qualidade ou sentimento que funciona como um
valor, melhor dizendo, aparece pelo lado de fora como valor; considerada enquanto
qualidade pertence ao mundo interior e não necessita de justificativa, considerada
enquanto valor surge pelo lado de fora, ou seja, na experiência e pode ser tomada como
objeto de uma descrição científica e colocada em termos de proposições categóricas.
Considerado assim, o bem estético ou valor é condição de possibilidade de qualquer
atribuição moral e não ele mesmo uma atribuição moral.110
A próxima pergunta que se deve fazer é a seguinte: existe um bem que deve ser
considerado como o mais alto bem, um bem último supremo, para o qual todos os ideais
definidos pela ética e representados pela lógica tendem a se conformar? Esse é o ponto
de intersecção entre a pergunta que deixamos em aberto no fim do tópico anterior (o
bem ético) e o bem estético. Esclareçamos: a pergunta por um bem último é uma
pergunta ética, mas a ética não pode dar essa resposta, cabendo apenas à estética dizer
se há e em que consiste um admirável em si, um ideal último. Então, à luz da estética, a
resposta de Peirce é sim, que existe um bem que deve ser considerado como o bem
supremo para o qual todos os ideais tendem a se conformar. A esse bem Peirce chama
de summum bonum.111
Repare que a resposta positiva a essa pergunta não elimina a
pervasividade da qualidade estética, ou seja, o fato de que ela se aplica a vários
complexos de qualidades, conforme definiu Peirce.112
Não há exclusão mútua entre a
qualidade estética pervasiva e o fim último, o admirável em si descrito pela estética
(como se pudéssemos dizer: ou o bem estético se refere a vários complexos de
qualidades ou apenas ao summum bonum).113
Dito isso, devemos perguntar em que
consiste, para Peirce, o bem supremo, o admirável em si e por si?
110
Isso equivale a dizer que, em termos categoriais o bem estético está associado à primeiridade e não à
segundidade. 111
Expressão latina que significa: o sumo bem, o bem supremo. 112
E, logo, não elimina também a asserção, nesta mesma citação de que não há um grau puro de
excelência estética, posto que, o sumo bem é uma questão de valor. 113
Não cremos ser estritamente correto dizer que a estética estuda o ideal em si. A estética estuda os seus
fenômenos em seu caráter de primeiridade e um ideal, que é um fim, é sempre um segundo, um fenômeno
relacionado com algo outro que não ele mesmo. Isso vale para qualquer ideal, mesmo para o ideal em si,
mesmo para o sumo bem. Na verdade, estritamente falando, a estética estuda as qualidades estéticas, ou
seja, as experiências que carregam qualidades possíveis de receberem o atributo de estéticas. Esperamos
ter mostrado que o que leva alguém a pensar que a estética estuda o ideal em si é o fato de que em um
dado momento isso acaba ocorrendo e esse momento é onde a estética de fato se insere no campo das
ciências normativas.
42
O admirável em si, o supremo bem para o qual todos os ideais tendem a se
conformar, para Peirce, consiste na Razão, ou melhor, no crescimento da razoabilidade
concreta. Esse ideal dos ideais seria buscado sobre todas as circunstâncias e sem relação
com nada mais, e consiste na interação de todas as coisas em direção à evolução
razoável do universo e, portanto, não está reduzida à racionalidade humana, como
muitos poderiam pensar em princípio, essa apenas exerce um papel em meio a muitas
outras coisas com as quais interage no seio do seu sempre em curso crescimento. Para
Peirce, a Razão114
assim explicitada, seria a única coisa que é desejável sem necessidade
de nenhuma espécie de explicação ulterior (embora possamos dar razões para pensar
assim, e nisso consiste, por exemplo, a própria explicação peirciana das Ciências
Normativas) e dessa forma seria um tipo de ideal identificado com o bem estético
considerado como valor e, por isso, só a estética poderia ao fim e ao cabo dizer isso.
Agora, logo após a estética dizer isso, a ética toma tal afirmação como um fim com o
qual relacionar os fenômenos e a lógica poderá representar isso verdadeiramente.
Estamos assim no terreno das relações entre as Ciências Normativas, tópico que
encerrará este capítulo.
2.2.4 A relação entre estética, ética e lógica
De que maneira essas relações com fins gerais descritos pela estética, ética e
lógica, influenciam a conduta? Isso é dado pela relação que as três Ciências Normativas
mantém entre si. A natureza dessa relação é de dependência. Dessa forma, Peirce vai
manter que a lógica depende da ética e essa, por sua vez, depende da estética:
[...] o significado de um símbolo115
consiste em como poderia levar-nos
a agir, é evidente que este “como” não pode referir-se à descrição dos
movimentos mecânicos que o símbolo poderia causar, mas deve ser
entendido como referente a uma descrição da ação como tendo este ou
aquele objetivo [...] A fim de que o objetivo pudesse ser imutável sob
114
A razão, para Peirce, possui, então, o sentido de razoabilidade, ou seja, se refere a condutas que
razoavelmente podem ser adotadas diante de um fim admirável, que implicam em consequências práticas.
Uma conduta razoavelmente adotada envolve, assim, os três tipos de bem. 115
Ainda não esclarecemos aqui o significado de símbolo para Peirce, o que faremos no tópico específico
sobre semiótica, por isso, basta neste momento entender o símbolo como o resultado de um processo
lógico de inferência.
43
todas as circunstâncias, sem o que não seria um fim último, é necessário
que ele esteja em concordância com o livre desenvolvimento da
qualidade estética do próprio agente. Ao mesmo tempo, é necessário
que, ao final, não tenda a ser perturbado pelas reações sobre o agente,
provenientes desse mundo exterior pressuposto pela própria idéia de
ação. É evidente que as duas condições podem ser preenchidas de
imediato apenas se acontecer de a qualidade estética, em direção à qual
tende o livre desenvolvimento do agente, e a da ação última da
experiência sobre o agente, forem partes de uma estética total.116
Para explicar essa passagem, devemos em primeiro lugar reconhecer que as
ações humanas são ações razoáveis, ou seja, autocontroladas. Para controlar uma ação
devemos, por um lado, estar movidos por um ideal que admiramos e, por outro,
devemos representar bem esse ideal, para que possamos ter claras as ações que
executaremos para chegar até ele. Assim, o papel da lógica é representar com excelência
tanto a ação como o objetivo. O objetivo é dado, como vimos, pela ética, consistindo
naquilo que estamos preparados, deliberadamente, para adotar sob quaisquer
circunstâncias. “Sob quaisquer circunstâncias” implica que esse fim deve possuir um
caráter de fim último, imutável, sendo o fim ao qual queremos chegar por que o
admiramos. Ora, esse “admirável”, como vimos, é dado pela estética, consistindo nas
qualidades, em si livres, mas tomadas como valor pelo agente. Em outras palavras, as
ciências lógica, ética e estética, devem formar um todo contínuo117
, que move o
pensamento e a ação em direção a algo que se apresente como um bem e que, em última
instância, como já acentuado, será o crescimento da razoabilidade concreta. Ao todo
desse movimento relacional, cremos, Peirce chamou de estética total118
, o que indica o
primordial papel exercido pela estética na construção das Ciências Normativas: ela é a
base sobre a qual se funda as outras duas, ética e lógica. Assim o bem ético seria o bem
estético especialmente determinado por um elemento peculiar que se lhe acrescentou, a
saber, o fato de o bem estético, o admirável em si, ser tomado como um ideal ou fim; o
116
PEIRCE, 2008, p. 204. 117
Depois que estudarmos o papel do contínuo na filosofia de Peirce esta afirmação se tornará mais clara.
Basta por agora, tomá-la como significando que, na essência, a relação entre as ciências normativas é de
natureza geral e não é esgotada por nenhuma ação particular. Só isso já serviria para distanciar totalmente
a filosofia de Peirce daqueles que tomaram o pragmatismo como residindo na ação particular como fim
de qualquer pensamento significativo. 118
PEIRCE, 2008, p. 204.
44
bem lógico, por sua vez, seria o bem moral especialmente determinado por um elemento
especial que se lhe acrescentou, a saber, o fato de um bem estético funcionando como
um fim ser bem representado e chegar a uma verdade que moverá a ação como um todo.
Toda a conduta humana está fundada nessa relação. O movimento que vai do
admirável, passando pela descrição do objetivo e da melhor forma de alcançá-lo, até a
ação em si, é a forma geral como a conduta humana se dá. Uma conduta em direção a
um fim admirável que se torna repetida configura um hábito119
. Hábitos de conduta, por
sua vez, estão também sujeitos à crítica, ou seja, ao autocontrole, sendo assim passíveis
de modificação. Dessa forma, a modificação da conduta está também sob o escopo da
descrição das Ciências Normativas. Um hábito pode, por exemplo, ser modificado pelo
surgimento de um novo ideal admirável ou pelo reconhecimento de que a representação
do objetivo não fora bem executado, e, mudando a representação, percebemos que o
melhor meio para se atingir o fim admirado não deve mais ser o que vínhamos
adotando, e, por isso, passamos a adotar outro. Ou seja, o hábito pode ser modificado
por alterações nos três tipos de bem.
É interessante notar que essa visão das Ciências Normativas oferecida por Peirce
não diz que existem regras a priori que são consideradas corretas e, partindo delas,
devemos classificar se uma determinada ação está em concordância com tais regras e
por isso deve ser chamada de ação eticamente correta. O movimento é na verdade
oposto a esse: observam-se os fenômenos que aparecem ligados às ações, esses não
sendo outros que não a conduta e hábitos humanos, e, partindo deles, vê-se que possuem
formas gerais e relacionais, passíveis de serem descritas pelas ciências ditas normativas,
ou seja, que descrevem (e não impõem) a forma como geralmente agimos em direção a
um fim que admiramos, quaisquer que sejam eles.120
Trata-se de estética, ética e lógica
científicas121
e não apriorísticas.
Por outro lado, esse movimento de descrição normativo - científica pode e é
estendido por Peirce até o universo, não ficando restringido apenas à conduta humana; a
119
Entenderemos melhor o conceito de hábito em Peirce no tópico dedicado ao pragmatismo. 120
Isso poderia levar um espírito apressado a dizer que essa linha de pensamento acabaria levando ao
hedonismo. Não nos cabe aqui discutir isso, mas apenas apontar que, na verdade, ela está diretamente
oposta ao hedonismo. Remetemos o leitor interessado ao já citado artigo de Vincente Potter: Peirce‟s
Analysis of Normative Sciences. Ver POTTER, 1966. 121
Da mesma forma que, veremos, Peirce desenvolveu uma metafísica científica.
45
razoabilidade concreta, o fim último e incondicional, é um movimento evolucionário do
qual participam todas as coisas122
.
Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas o leitor já pode vislumbrar,
desde já, que a filosofia de Peirce não se apresenta fragmentada, mas pretende ser, ao
contrário, uma filosofia bem ordenada, com cada uma de suas partes intimamente
conectadas. Assim, por exemplo, as três ciências normativas mantêm uma relação de
dependência entre si e estão, como certamente o leitor notou, regradas pelas três
categorias inventariadas pela fenomenologia. Assim, a lógica considera os seus objetos
tomados em sua terceiridade, a ética considera os seus objetos tomados em sua
segundidade e a estética considera os seus objetos tomados em sua primeiridade. As
relações regradas pelas três categorias não param por aí: a fenomenologia, vimos,
descreveu seus fenômenos da forma como eles apareciam, em si, ou seja, segundo a
primeiridade; de outro lado, as Ciências Normativas, acabamos de ver, descreveram
seus fenômenos relacionados com os seus fins, com outros que não eles mesmos, ou
seja, segundo a categoria de segundidade. Vejamos como será descrita a última das
ciências que compõem a Filosofia.
2.3 A Metafísica
A Metafísica é a terceira e última ciência que compõe a Filosofia. A exposição
da metafísica tal qual Peirce a pensou constitui tarefa altamente complexa.
Pretendemos, aqui, apenas tratá-la em seus traços essências, seguindo o espírito
propedêutico deste trabalho. Esse tratamento geral consistirá na descrição geral da
metafísica no interior da Filosofia e na caracterização da forma como aparecerão as
categorias consideradas ontologicamente. A metafísica que Peirce elaborou deve, como
122
É difícil descrever um exemplo sem corrermos o risco de errar profundamente, mas sugiramos um: um
leão que precisa se alimentar e age por instinto em conformidade com esse fim. A ação não é deliberada
logicamente e muito menos a sua presa é um objeto por ele admirado esteticamente. Portanto, o único
elemento que aqui permanece da normatividade seria a ação em conformidade com o fim, que, aliás, é a
descrição definidora das ciências normativas. Mas podemos nos arriscar a dizer que o que é descrito pela
estética e pela lógica, enquanto ciências gerais, está inscrito na história da espécie dos leões: as puras
qualidades presentes em todas as experiências de todos os leões e os hábitos de caça formados ao longo
do tempo impulsionados pelo bem qualitativo da alimentação.
46
no caso das Ciências Normativas, receber o predicado de científica. O que isso quer
dizer? Quer dizer que é uma metafísica que se volta para os fatos, ou seja, que parte dos
fenômenos que aparecem para qualquer um e não a partir de instâncias a priori, que, em
último caso, redundam na admissão de alguma espécie de incognoscível123
. É, assim,
uma ciência positiva, que visa representar o seu objeto, a realidade, de acordo com a sua
forma própria de considerá-lo, a saber, ontologicamente. Por outro lado, ela é também
uma ciência positiva profundamente marcada por uma heurística124
, ou seja, há em seu
interior um marcante papel de hipóteses criativas que visam explicar a realidade e não
apenas descrevê-la, e isso em última instância levará a uma cosmologia.
No texto que vimos tomando como base para a descrição geral das ciências
segundo Peirce, An Outline Classification of the Sciences125
, Peirce caracterizou
brevemente a metafísica da seguinte forma:
A metafísica deve ser dividida em (i) metafísica geral ou ontologia; (ii)
metafísica psíquica ou religiosa, que aborda principalmente as questões
de (1) Deus, (2) Liberdade e (3) Imortalidade; (iii) metafísica física, que
discute a natureza real do Tempo, Espaço, Leis da Natureza, Matéria
etc.126
A isso acrescenta: “o segundo e o terceiro ramo, no presente, olham um para o
outro com supremo desprezo.” 127
Peirce se refere ao fato de Teologia e Ciência,
sobretudo em sua época, teimarem em se manter em completa oposição. Mas essa
Ciência e essa Teologia a que Peirce se refere são ciências que não fundam as suas
hipóteses no mundo fenomênico, mas sim sobre dados a priori, sobre os quais nunca
chegam a um acordo, ou seja, trata-se, de um lado, de uma Ciência que faz as suas
proposições lógicas dependerem de uma metafísica apriorística e, de outro lado, de uma
Teologia que faz as suas proposições lógicas dependerem de um método de fixação de
crenças baseado na autoridade de um Deus em particular ou do que é agradável à razão.
Peirce segue um caminho totalmente diferente: a Metafísica deve ser fundada na Lógica
e não a Lógica na Metafísica (como, por exemplo, Descarte o fez). Na verdade, segundo
123
A recusa peirciana de qualquer tipo de apelo ao incognoscível pode ser encontrada sobre tudo em dois
textos da chamada série cognitiva: Questões concernentes a certas faculdades ditas humanas; Algumas
consequências de quatro incapacidades. 124
Ver IBRI, 2006. 125
EP 2.258. 126
Ibidem, 2.260. 127
Idem, 2.260.
47
a arquitetura filosófica peirciana que vimos tentando expor, a Metafísica depende de
todas as Ciências que lhe antecedem na classificação, assim, ela depende da Lógica, da
Ética, da Estética, da Fenomenologia e, considerando o método heurístico, depende
também da Matemática. Portanto, não é de se estranhar que Peirce não via contradição
alguma entre metafísica psíquica ou religiosa e a metafísica física, estando as duas
fundadas na observação do mundo fenomênico, e inclusive dedicando escritos aos dois
ramos, além, é claro do primeiro.128
Porém, a metafísica que pretendemos descrever em
traços gerais, aqui, é a ontológica.
A Metafísica, de forma geral, não ficará restrita à observação e descrição dos
fenômenos tais como eles aparecem para nós. Isso, como vimos, é escopo da
Fenomenologia. A Metafísica dará um passo além e procurará explicar heurísticamente
a realidade das formas com as quais os fenômenos nos aparecem, ou seja, a realidade
das três categorias. Então, segundo Ibri, a pergunta a ser respondida pela metafísica é:
como deve ser o mundo para que ele me apareça assim?129
Perguntando de outro jeito:
de que forma está constituída a realidade, para que ela possa aparecer segundo as três
categorias? Trata-se, então, de descrever a realidade a partir da forma como ela
aparece130
. A resposta constituindo uma ontologia do real. Compreenderemos em que
consiste o Realismo de Peirce à medida que entendermos como se dá a realidade das
três categorias. Assim tomaremos por base o texto The Seven Systems of
Metaphysics131
, não com a pretensão de esgotar o seu conteúdo, demasiado complexo,
mas apenas para seguir o movimento do pensamento de Peirce para chegar a uma
apresentação da realidade das três categorias enquanto acaso, existência e lei. Não
pretendemos fazer uma descrição minuciosa de acaso, existência e lei. Para os
propósitos deste trabalho bastará mostrar como este texto pode ser um bom ponto de
partida para a introdução destes três princípios metafísicos operantes na natureza. Em
seguida, veremos que aquilo que as três categorias, consideradas não mais como meras
aparições, mas sim como representações de princípios operantes no mundo, têm em
comum, será o que caracterizará o conceito de Realidade em Peirce.
128
Os dois volumes já citados Essential Peirce estão repletos de textos em que são abordados assuntos
metafísicos dos três ramos: exemplos, EP 1 textos 9, 11, 15, 17, 19, 22, 23, 24 e 25; EP 2 textos 1, 7, 13,
22, 29. 129
IBRI, 1992, p. 21. (itálicos do autor). Toda a parte dois do livro de Ibri é dedicada a expor
minuciosamente a metafísica peirciana e seus desdobramentos, o Realismo, o Idealismo Objetivo, o
Continuum e a Cosmologia, demonstrando, assim, a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce,
subtítulo do livro. 130
Idem. 131
EP 2. 179.
48
Peirce começa o texto descrevendo aquilo que ele chamou de as classes
possíveis de abordagens metafísicas baseadas na admissão ou não das três categorias
como constituintes reais da Natureza. Seriam sete, segundo o diagrama representado
abaixo:
Fig. 2. FONTE: EP 2.180.
1- Admissão da primeira categoria apenas: nihilismo ou Idealismo sensualista.
2- Admissão da segunda categoria apenas: individualismo estrito.
3- Admissão da terceira categoria apenas: hegelianismo.
4- Admissão da segunda e terceira categorias: cartesianismos de todos os tipos,
leibnizianismo, spinozismo e a metafísica dos físicos em geral.
5- Admissão da primeira e terceira categorias: berkeleyanismo.
6-Admissão da primeira e segunda categoria: nominalismo.
7- Admissão das três categorias: kantismo, reidmismo, platonismo, aristotelismo.
Ressalvando que essa sétima classe deveria ser subdividida também, visto as formas da
admissão das três categorias variarem bastante. No entanto, Peirce não opera essa
subdivisão.132
Peirce, então, caracteriza a si mesmo como “um aristotélico de veia escolástica,
aproximando-se do escotismo, mais indo além em direção a um realismo
132
Esse texto é a impressão de uma Lecture, ou seja, uma conferência, e, o motivo que levou Peirce a não
operar a subdivisão foi a falta de tempo. No entanto, no que diz respeito a sua filosofia, a continuação do
texto demonstra claramente em que ele se diferencia dos outros sistemas que admitem as três categorias
como constituintes reais da natureza.
I II
II I I II
III
III
II
III III
I
49
escolástico.”133
Em outras palavras, a característica da metafísica peirciana é a admissão
das três categorias como constituintes operantes na natureza, e o que o diferenciará dos
outros sistemas que também admitem as três categorias será a radicalidade do realismo
presente nessa admissão. A isso Peirce chamou de realismo escolástico.
Em seguida, Peirce procede à caracterização da forma como cada uma das
categorias surge como constituinte operativa na natureza, o que equivale a dizer que
Peirce ontologizará as três categorias. A ordem seguida por Peirce, nesse texto, é a
realidade da terceiridade, a realidade da primeiridade e, por fim, a realidade da
segundidade. Deve-se ressaltar que uma das peculiaridades deste texto é que em muitos
momentos Peirce utiliza elementos de sua epistemologia. Embora, no espaço deste
trabalho, não tenhamos reservado um capítulo sobre este tema, não consideramos ser
isso um problema. Peirce é bastante claro em sua apresentação e quando se utiliza de
conceitos epistemológicos não pretende obscurecer, mas sim tornar mais compreensível
aquilo que é desde o início o seu foco.
2.3.1 A realidade da Terceiridade
Peirce diz: “Procedo a argumentar que a Terceiridade é operativa na
Natureza.”134
Significa: há princípios gerais operativos na Natureza. Para demonstrar tal
afirmação Peirce sugere um pequeno experimento: tomar uma pequena pedra e largá-la
de forma tal que não haja nenhum obstáculo entre ela e o chão. O que acontecerá?
Qualquer um poderá prever que, assim que a pedra for solta no ar, certamente cairá até o
chão. Este experimento é muito ilustrativo. Supondo que eu pegue uma pedrinha agora
para também realizar este experimento e verificar se a predição está correta; não só a
pedra cairá no chão neste específico momento em que solto a pedra, desde que
cumprida a condição de não ter nada entre os dois, como isso com certeza135
acontecerá
133
EP 2.180. 134
Ibidem, 2.181. 135
Ao menos se a gravidade não for revogada enquanto operativa na natureza. A filosofia de Peirce
oferece espaço para algo desta natureza ocorrer, trata-se do seu Falibilismo. De acordo com essa doutrina,
cuja raiz está na presença do acaso no mundo, não podemos nunca ter certeza absoluta de nada, posto que
50
em qualquer momento que um experimento igual a esse for realizado por mim ou por
qualquer pessoa e em qualquer lugar. Como podemos saber que isso acontecerá? Peirce
diz: “certamente vocês não pensam que é por clarividência, como se eventos futuros,
com suas reatividades existenciais, pudessem me afetar diretamente.” 136
Então por quê?
Diz Peirce: “Eu sei que a pedra irá cair se eu a soltar porque a experiência me
convenceu que objetos desse tipo sempre caem.” 137
Podemos representar esse conhecimento através de uma proposição geral do tipo
“todos os corpos sólidos caem na ausência de qualquer força ou pressão em contrário.”
Ora, uma pessoa que não admite que aquilo que é descrito fenomenologicamente pela
categoria de terceiridade é operante na natureza, dirá que essa proposição não passa de
exatamente uma mera representação, sendo completamente diferente algo ser e ser
representado. Em outras palavras, dirão que a proposição geral, que funciona como uma
fórmula, só tem seu ser na forma de uma representação. Peirce replicará que, não há
dúvida alguma de que aquela proposição geral é uma representação e que algo que é
uma representação não é ao pé da letra real138
. Porém, acrescentará:
O fato de eu saber que a pedra irá cair no chão assim que eu soltá-la,
como vocês devem confessar, se não estiverem cegos pela teoria, que eu
sei isso [...] é a prova que a fórmula, ou uniformidade, fornecendo uma
base segura de predição, é, ou se vocês preferirem, corresponde à
realidade.139
Ora, aonde se encontra a realidade da representação, uma vez que Peirce mesmo
admite que uma coisa é ser e outra ser representada? Ela está no fato de que aquilo que é
representado por uma proposição qualquer não depende da representação para ser o que
é, mas sim do que a experiência reativa mostrar e que, portanto, funcionará como prova
indutiva. Em outras palavras: que a pedra vai cair, cumpridas as condições, tanto se
fizermos o experimento agora como se qualquer um o fizer no futuro, não depende de
dizermos que ela cairá, mas sim do fato de que ela realmente cai e se fizermos o teste
comprovaremos agora ou a qualquer momento. Contrastemos: supondo que Peirce
um novo arranjo das coisas pode surgir em um universo em evolução, por mais improvável que seja. Para
um aprofundamento do Falibilismo, ver IBRI, 1992, cap. 3 e IBRI, 2000a. 136
EP 2.181. 137
Ibidem, 181 138
O que Peirce quer dizer com isso é que o que é ao pé da letra real é algo caracterizado por ser reativo,
ou seja, aquilo que fenomenologicamente fora descrito pela segunda categoria. 139
EP 2. 182.
51
tivesse dito que, ao soltar a pedra, ela se tornaria um cavalo alado e sairia voando pelo
ar; isso continuaria sendo uma proposição, passível inclusive de ser transformada em
uma fórmula de tipo idêntico ao exemplo anterior, a saber, “toda pedra, na ausência de
uma força ou pressão em contrário, quando solta no ar se transforma num cavalo alado e
levanta vôo”; o que aconteceria quando ele, de fato, soltasse a pedra? A experiência iria
mostrar que ela somente iria cair no chão e que sua representação estava incorreta.
Vamos supor uma última coisa: várias pessoas fazem diversas predições, todas bem
diferentes umas das outras, quanto a esse mesmo assunto, o da pedra solta no ar; depois
disso passam a fazer o experimento para verificar o que vai acontecer; todos os
experimentos redundam no mesmo fato, ou seja, a pedra cai no chão; em algum
momento, todos os experimentalistas, se pretendem ser honestos, concordarão que a
única representação que corresponde com o fato é aquela que prediz que a pedra irá cair
sob tais e tais circunstâncias tanto agora como em qualquer momento do futuro140
.
É essencial, aqui, o caráter de ser para o futuro (esse in futuro) das predições
sobre os fatos gerais. Vimos que o papel do pensamento é mediar entre um primeiro e
um segundo, ou seja, o papel da mediação, do aprendizado, em suma de qualquer
conhecimento que obtemos é o de tornar a força bruta, caracterizada
fenomenologicamente pela segundidade, menos bruta. Conhecer um objeto é saber
como ele se comporta para que a sua reatividade seja diminuta. Dessa forma podemos
dizer que todo conhecimento é preditivo. Dizer que um conhecimento é preditivo
equivale a dizer que ele está direcionado para o futuro, e isso como veremos será a base
do pragmatismo. Assim, quando dizemos que um objeto se comporta em geral de uma
certa maneira, como é o caso da pedra, estamos dizendo que ela se comportou assim, se
comporta assim e em qualquer caso análogo no futuro se comportará assim, até que a
experiência diga o contrário. Há uma uniformidade em jogo aqui, uma esperança de que
140
Aqui, estamos preocupados em apenas seguir o movimento do texto de Peirce para mostrar como ele
defende a realidade das três categorias. A disputa acerca da teoria da verdade em Peirce, que surge desse
âmbito não está em questão aqui. Para o leitor interessado nesse rico debate, recomendamos vivamente os
artigos Reflections on inquiry and truth arising from Peirce‟s method for fixation of belief, de David
Wiggins e Truth, Reality, and Convergency, de Christopher Hookway, ambos publicados em MISAK,
2004. Excelente também é o primeiro capítulo do livro de Sandra Rosenthal ROSENTHAL, 1994,
intitulado World, Truth and Science. As implicações de se adotar o modelo de correspondência ou de
coerência ou mesmo negar os dois em favor de um outro modelo (Rosenthal) estão bem delineados nestas
referências.
52
as coisas mantenham seus predicados, que é como já vimos, o princípio pelo qual
podemos conhecer as coisas e nomeá-las de acordo com uma mediação.141
Dessa forma, Peirce mantém que princípios gerais são realmente operantes na
Natureza, estando baseados na uniformidade da mesma e é exatamente por isso que
podem ser representados. A possibilidade de representação de fatos gerais baseada na
uniformidade da Natureza e no caráter predicativo de toda generalidade é o que permite
conectar o princípio geral operante na natureza com a terceiridade em nível
fenomenológico. Significa: os fatos gerais são da natureza da representação.142
Assim:
[...] terceiridade é nada mais que o caráter de um objeto que incorpora
relação ou mediação em sua forma mais simples e rudimentar; e eu o
uso como um nome para o elemento do fenômeno que é predominante
onde quer que a mediação seja predominante e que adquire completude
na representação.143
Dizer que os princípios gerais operantes na natureza são da natureza da
terceiridade, ou seja, da representação, é equivalente a dizer que as duas possuem um
mesmo modus operandi144
, a saber, tanto as palavras quanto os princípios gerais
produzem efeitos físicos observáveis.145
Palavras influenciam a nossa conduta, não de
forma reativa, mas de forma lógica; princípios gerais operam de forma tal a influenciar
a conduta do objeto que governam. Um princípio geral que governa a conduta de um
objeto recebe o nome de lei. “Uma lei é, em si mesma, nada além de uma fórmula geral
ou símbolo.”146
Uma lei difere completamente dos objetos que a incorpora. Os objetos
são reativos e imediatos147
e como tais não são terceiros ou mediatos. A lei só pode
operar em objetos, ou seja, só pode influenciar a conduta de objetos.148
Por outro lado,
nenhuma coleção de objetos esgota uma lei, pois uma lei, como um geral, está voltada
para o futuro, e, assim, transcende qualquer incorporação, permanecendo sempre um
141
Voltaremos a isso no tópico sobre Sinequismo e Continuidade. 142
Peirce nota que “a definição de geral é „geral é aquilo que está naturalmente apto a ser dito de muitos‟
e isso consiste em reconhecer que a sua natureza é essencialmente predicativa e assim da natureza de um
representamen.” EP 2.183. 143
EP 2.183. 144
Expressão latina que significa modo de operar. 145
Isso é uma aplicação de um corolário do pragmatismo, considerado como regra lógica, segundo o qual,
dois conceitos que produzam o mesmo efeito prático devem ser considerados sinônimos. 146
EP 2.184. 147
Veremos a sua característica quando tratarmos da realidade da segundidade. 148
Convém lembrar, para que não ocorram maus entendidos, que o termo “objeto” em Peirce não deve ser
reduzido ao conceito de “coisa”. Objeto se refere a qualquer coisa que chegue a mente em qualquer
sentido. Ver, por exemplo, SANTAELLA, 2004a, p. 33.
53
geral. Isso deve ser considerado como o aspecto ontológico da irredutibilidade das
categorias. Assim, esse princípio ontológico irredutível e realmente operante na
natureza e representado fenomenologicamente pela terceiridade deve ser denominado
Lei.
2.3.2 A realidade da Primeiridade
Aquilo que fenomenologicamente é descrito pela primeira categoria age
realmente na Natureza? Essa é a pergunta que deve ser respondida. E, se for respondida
com um “sim”, em seguida devemos explicar “como”. Peirce começa o texto dizendo
que os físicos e metafísicos de seus dias não aceitam que as qualidades ajam
efetivamente na Natureza e os primeiros parágrafos do texto são dedicados a explicar as
variáveis de tal posição, cujo ponto comum é tomar as qualidades como meras ilusões.
Peirce propõe, assim, considerarmos a questão de um ponto de vista lógico, para
descobrirmos, com tal ponto de vista, que tomar as qualidades como meras ilusões que
não possuem participação no universo real, se mostra como uma posição
particularmente infundada.149
Peirce, então, vai fazer o seguinte processo de pensamento: resumirá a sua
concepção da relação entre as três Ciências Normativas e depois se deterá na
caracterização daquilo que ele chamou de percepto e julgamento perceptual.150
Como já
abordamos as Ciências Normativas, iremos supor isso como já conhecido e começar a
exposição a partir da afirmação de que “a distinção entre a bondade e a maldade lógica
deve começar aonde o controle do processo de cognição começa.” 151
Isso se deve ao
fato de, como também vimos, uma operação cognitiva consistir em um processo
inferencial autocontrolado. Surge a pergunta: Onde começa, no processo de cognição, a
149
EP 2.188. 150
A teoria da percepção em Peirce é também objeto de grande polêmica entre os comentadores. Não
pretendemos tomar parte nessa polêmica, mas apenas seguir o movimento do texto. Para o leitor
interessando sugerimos SANTAELLA, 1998. 151
EP 2.191.
54
possibilidade de controle? Peirce responde: “não antes de o percepto ser formado” 152
e
continua logo abaixo:
Mesmo depois de o percepto ser formado há uma operação que, a meu
ver, é completamente incontrolável. Refiro-me ao fato de julgar o que é
isso que uma pessoa percebe. Um julgamento é um ato de formação de
uma proposição mental combinada com a adoção ou ato de aprová-la.
Um percepto, por outro lado, é uma imagem ou uma imagem em
movimento ou algum outro tipo de exibição.153
Segundo Peirce, a relação entre o percepto e o julgamento perceptual é apenas
de semelhança. Criticar um julgamento perceptual só pode consistir em tornar a
submeter o objeto aos sentidos e, assim, dar origem a um novo percepto com outro
julgamento perceptual, que pode coincidir com o primeiro ou não. A distinção entre
dois perceptos só pode ser dada por comparação. Assim, Peirce completa:
“conseqüentemente, até eu ser convencido do contrário, considerarei o julgamento
perceptual como completamente fora de controle.”154
Notemos que o julgamento
perceptual é também um tipo de inferência, mas um tipo de inferência não sujeita a
crítica por ser incontrolável. Os julgamentos perceptuais são, então, as primeiras
premissas do raciocínio.155
Todos os outros tipos de julgamentos são processos
inferenciais que advém dos julgamentos perceptuais. Dessa forma, a base anti-cartesiana
da sua teoria do conhecimento, cuja origem remonta aos textos da série cognitiva, de
1867-68156
, é mantida, ou seja, o julgamento perceptual não é uma intuição direta
conhecida por uma capacidade de introspecção.
152
EP 2.191. Quando Peirce fala de „percepto formado‟ ele está a falar do fato perceptivo, ou seja, da
percepção, pelo que devemos esclarecer melhor este ponto. Segundo Santaella “o percepto em si
corresponde ao elemento não racional que bate à porta dos nossos sentidos [...] Assim, o percepto é algo
que está fora de nós e fora do nosso controle. É ele que determina a percepção. Embora determine a
percepção, só pode ser conhecido pela mediação do juízo perceptivo. Para que esse conhecimento se dê, o
percepto deve, de algum modo, estar representado no juízo de percepção [...] Nada podemos dizer sobre
aquilo que aparece, senão pela mediação de um juízo de percepção que é dado em uma interpretação.
Como poderíamos interpretar algo externo a nós, qualquer coisa que seja, sem um juízo de percepção que
nos diga o que é afinal que estamos percebendo?” SANTAELLA, 2008. 153
Ibidem, 191. 154
Ibidem, 191. 155
Alhures Peirce diz: “Nossas primeiras premissas, os juízos perceptivos, devem ser considerados como
casos extremos de inferências abdutivas.” (CP. 5.181). Para detalhes sobre a relação entre abdução e
juízos perceptivos, consultar IBRI, 2006 e SANTAELLLA, 1994. 156
Questões concernentes a certas capacidades ditas humanas; Algumas consequências de quatro
incapacidade e Graus de validade das leis da Lógica. EP 1. 11-82.
55
Ora, os julgamentos perceptuais são exatamente as qualidades de sentimento que
os físicos e metafísicos que não reconhecem a realidade da primeira categoria dizem
que não passam de ilusões.157
Por exemplo, olho para a mesa em que estou escrevendo e
digo que ela é cinza. Quando digo que ela é cinza estou emitindo um julgamento
perceptivo do qual não tenho controle; não posso evitar chamar de cinza aquilo que se
me aparece qualitativamente como cinza. A pergunta é: as qualidades dependem do que
pensamos sobre elas ou não? No caso de respondermos que sim, teríamos que aceitar a
teoria de que não passam de ilusões. Mas a filosofia peirciana manterá que as
qualidades são independentes do que pensamos sobre elas. Como Peirce espera provar
isso? Os seus argumentos, nesse texto, consistem em descrições de diversas ocasiões em
que as experiências qualitativas de duas ou mais mentes acerca de um mesmo objeto
resultam no mesmo julgamento perceptivo. Isso seria uma prova de que a qualidade em
questão seria algo independente das representações levadas a cabo por tais mentes, de
uma maneira parecida com a qual os fatos gerais da terceiridade foram demonstrados
anteriormente.
A sequência argumentativa começa se referindo ao fato de que existe
considerável evidência de que as cores e os sons possuem os mesmos caracteres para
toda a humanidade. Quanto a uma possível objeção de que não há evidência de que o
que parece vermelho aos olhos de uma pessoa também pareça vermelho aos olhos de
outra, Peirce responde que ligeiras diferenças podem existir, mas que, de forma geral, as
qualidades são similares aos olhos de diferentes pessoas. Vejamos a sequência da
argumentação nas palavras do próprio Peirce:
Estou confiante de que o touro e eu sentimos de forma muito parecida a
visão de um pano vermelho. Quanto aos sentidos de meu cão, devo
confessar que eles parecem ser bem diferentes dos meus, mas quando eu
reflito sobre o pequeno grau em que ele pensa através de imagens
visuais, e de como o cheiro exerce um papel importante em seus
pensamentos e imaginação, análogo ao papel exercido pela visão sobre
os meus, cesso de ficar surpreso de que os perfumes de rosas ou de
flores de laranjas não atraiam a sua atenção de nenhuma maneira e que
são, para ele, simplesmente desagradáveis, ao passo que os eflúvios,
157
“Mas os julgamentos perceptuais declaram que uma coisa é azul e outra amarela, que uma coisa parece
ser A e outra U e outra ainda I. Estas são as qualidades de sentimentos que os físicos dizem ser meras
ilusões porque não há lugar para elas em suas teorias.” EP 2.191.
56
para mim imperceptíveis, o atraem muito mais... Vocês nunca me
convencerão de que meu cavalo e eu não nos simpatizamos ou de que o
canário que experimenta imenso prazer em brincar comigo não sente
que está comigo e eu com ele. E esta minha confidência instintiva, é
disso que se trata, é, para mim, evidência de que isso é realmente
assim.158
Assim, o que Peirce pretende mostrar é simplesmente que, apesar das pequenas
diferenças, no principal há bastante evidência de que as qualidades são comuns a todas
as formas de vida cujos sentidos são suficientemente desenvolvidos. E isso, por sua vez,
configura uma prova de que as qualidades não dependem do que pensamos sobre elas,
mas que são o que são, independentemente do que pensamos e, portanto, não são meras
ilusões. O movimento que vai dessa passagem até ao final do tópico é, aliás, muito
bonito é merece citação quase integral, com pausas para breves comentários:
Eu ouço vocês dizerem “tudo isso não é fato, é poesia”. Isso não faz
sentido! Má poesia é falsa, eu concordo; mas não há nada mais
verdadeiro do que poesia verdadeira. E deixe-me dizer aos homens de
ciência que os artistas são muito mais finos e argutos observadores do
que eles são, exceto das minúcias que os homens de ciência
procuram.159
Peirce faz, assim, uma belíssima descrição de como as qualidades que
fenomenologicamente aparecem como qualidades de sentimentos, livres e primeiras,
devem ser tomadas como reais e operantes na natureza. Mas isso ainda não é tudo. O
texto continua:
Assim, se vocês me perguntarem sobre o papel que as qualidades
exercem na economia do Universo, respondo que o Universo é um vasto
representâmen, um grande símbolo dos propósitos de Deus,
transformando suas conclusões em realidades vivas.160
Em outras palavras, o universo possui uma dinâmica análoga à da razão humana,
contendo elementos análogos aos constituintes da forma humana de representação, por
158
EP 2.193. 159
Ibidem, 193. 160
Idem, 193.
57
exemplo, ícones, índices e símbolos161
, e pode ser caracterizado como sendo um
resultado dos propósitos de Deus.162
A parte concernente às qualidades nessa dinâmica
universal é, portanto, análoga à do ícone em um argumento, e surge como julgamento
perceptivo, como se pode depreender da continuação da passagem: “nossos julgamentos
perceptivos são as premissas, para nós, e esses julgamentos perceptuais possuem ícones
como seus predicados, ícones nos quais as qualidades estão imediatamente
presentes.”163
No entanto, não devemos pensar que Peirce é um antropomorfista que
caracteriza o universo somente em relação às formas de representação humanas, na
verdade, o elemento antropomórfico existe e tem apoio na experiência, mas Peirce vai
muito além de um antropomorfismo, em direção a um cosmomorfismo164
que vai
heuristicamente explicar a origem dessa partilha entre o Universo e o homem.165
Tanto
não devemos nos ater somente ao elemento análogo ao humano que Peirce continua
“Mas aquilo que é primeiro para nós não é primeiro para a natureza. As premissas
próprias da natureza são todos os elementos independentes e sem causa dos fatos que
vão constituir a variedade da natureza.166
Essas premissas da natureza não são fatos
perceptuais, porém a eles se assemelham de tal forma que “só podemos imaginar o que
elas são comparando-as com aquilo que são premissas para nós.”167
Sintetizando, premissas para nós são qualidades de sentimento, premissas da
natureza são os elementos independentes responsáveis pela variedade da natureza. Ora,
tanto as qualidades de sentimentos como os elementos independentes que aparecem
como variedades na Natureza, foram descritos, do ponto de vista fenomenológico, pela
primeiridade. Isso equivale a dizer que há uma relação entre a primeiridade e um
princípio atuante na natureza, da mesma forma que havia entre a terceiridade e o fato
geral. Em outras palavras, a primeiridade é ontologizada como um princípio operativo e
161
As noções de representamen, índice, ícone e símbolo se tornarão mais claras no tópico dedicado à
Semiótica Geral. 162
Deve-se tomar o cuidado de não supor o conceito „Deus‟ como um pressuposto da metafísica científica
peirciana. Isto, em definitivo, não ocorre. Porém, a concepção de Deus em Peirce, de uma forma a ser
desenvolvida com mais detalhes em pesquisa futura de doutorado, exerce um papel importante em sua
filosofia. Voltaremos a esse ponto no último capítulo deste trabalho. 163
EP 2.194. Para um aprofundamento do conceito de juízos perceptivos, consultar IBRI, 2006. 164
Conforme comenta Ibri: “O antropomorfismo constatado é genuinamente decorrente e não uma
premissa distante de ter apoio na experiência [...] É lícito, assim, pelo que acabamos de ver, substituir o
termo Antropomorfismo, que tanto choca leitores desavisados de sua obra, atribuindo-lhe talvez, uma
ingenuidade mítica similar às das teorias de Hesíodo, por Cosmomorfismo, querendo, com isto, reverter o
eixo de leitura do humano para sua matriz, o Cosmos. IBRI, 1992, p. 87-88. (itálicos do autor) 165
Esse ponto é explicado em detalhes em IBRI, 1992, cap. 5. 166
EP 2.194. 167
Idem, 194.
58
atuante na Natureza. Esse princípio recebe, no interior da filosofia de Peirce, um nome
especial: trata-se do Acaso. O Acaso funciona, então, como o princípio de distribuição
fortuita operante na natureza e responsável por todas as formas como a primeiridade
aparece fenomenologicamente para nós. Peirce chama de Tiquismo, do grego tu/xh
(Acaso), a doutrina metafísica que professa ser o Acaso um princípio real do
Universo.168
2.3.3 A realidade da Segundidade
As experiências de reação e esforço descritas fenomenologicamente pela
categoria de segundidade são como as de primeiridade e terceiridade, realmente
operantes na Natureza? Essa é a pergunta que Peirce vai responder nos últimos
parágrafos do seu texto. Para isso Peirce coloca uma possível objeção a ser feita quanto
à realidade da segundidade, para depois refutá-la.
A objeção consiste em manter que sentimentos e leis de sucessão de sentimentos
são reais, ou seja, primeiridade e terceiridade são reais, mas que sustentar que uma coisa
age sobre a outra é meramente dizer que há certa lei de sucessão de sentimentos e,
assim, nega-se a realidade da segundidade. Seria um caso especial de um dos sete
sistemas de metafísica apresentados por Peirce no começo do texto, a saber, aquele que
foi caracterizado de berkeleyanismo. Peirce toma essa objeção como a única realmente
“formidável”.169
Como Peirce responde a essa objeção? Vamos acompanhar a argumentação:
Todos nós admitimos que a experiência é nossa grande mestra... A
experiência invariavelmente ensina por meio de surpresas. Agora,
quando um homem está surpreso ele sabe que está surpreso. Então,
168
Para um aprofundamento desse tópico queira o leitor consultar IBRI, 1992, cap. 3. 169
EP 2.194.
59
temos um dilema: ele sabe que está surpreso por percepção direta ou por
inferência? 170
Peirce analisa primeiro a hipótese da inferência. Ter consciência de se estar
surpreso por inferência significa que, primeiro, uma pessoa (suposto já ter idade
suficiente para possuir autoconsciência) se torna consciente de uma peculiar qualidade
de sentimento que pertence a toda experiência de surpresa e, segundo, é levada, em
seguida e por alguma razão indutiva, a atribuir este sentimento a um si mesmo. O que
decorre disso? Decorre que, primeiro, a pessoa deveria pronunciar um objeto
surpreendente como sendo, por exemplo, um objeto maravilhoso e, após reflexão,
convencer a si mesma de que tal objeto só é maravilhoso no sentido de que ela está
surpresa com ele, em outros termos, ela o toma como tal. Ora, segundo Peirce, isso está
em conflito com os fatos. Acontece o contrário, a pessoa não conclui que ela deve estar
surpresa porque ela toma o objeto como qualitativamente maravilhoso, mas sim porque
o objeto se apresenta, em sua alteridade, como tal e, só então, a pessoa é levada por um
processo de generalização a uma concepção do objeto como possuindo a qualidade de
ser maravilhoso.
Esse ponto é sutil e devemos tomar cuidado para não interpretarmos
superficialmente o que Peirce quis dizer e sermos levados a acusá-lo de inconsistência.
Peirce não está negando que haja o processo inferencial na experiência de segundidade,
mas esse processo inferencial só ocorre diante da experiência de estar diante de uma
alteridade. A inferência se dá após a experiência de alteridade. Ou seja, o fator
predominante na experiência de segundidade é a clara noção de alteridade, de dualidade
que se força contra a expectativa da pessoa, anteriormente a qualquer espécie de
aproximação cognitiva para com o objeto. Assim Peirce pode completar:
[...] um homem mais ou menos placidamente espera por um certo
resultado e, de repente, encontra algo que contrasta com essa
expectativa, forçando o seu reconhecimento. Uma dualidade é assim
forçada sobre ele: de um lado, sua expectativa, a qual vinha atribuindo à
natureza, mas que agora é compelido a atribuir a algum mero mundo
interior, e, de outro lado, um forte fenômeno que vai de encontro com
sua expectativa e ocupa o seu lugar. A antiga expectativa, com a qual
170
EP 2.195.
60
ele estava familiarizado, é o seu mundo interior ou Eu. O novo
fenômeno, o estranho, provém do mundo exterior ou não-eu.171
Em seguida, Peirce passa a considerar a hipótese da percepção direta. Estar
consciente do fenômeno surpreendente por percepção direta é estar consciente dele
através de um julgamento perceptual. Ou seja, um homem simplesmente sabe que está
surpreso. Peirce pontua que o julgamento perceptual certamente não representa que a
pessoa tenha efetuado uma espécie de engodo sobre si mesma. Ou seja, apesar de o
julgamento perceptual também ser em última instância, como vimos, uma inferência,
com a diferença de ser fora de qualquer controle, esse julgamento perceptual, dizíamos,
não significa manipulação do objeto, como se ele não fosse nada além da minha
representação inferencial incontrolável.172
Qual é, então, o papel do julgamento
perceptual nas experiências de segundidade? Só pode ser o de reconhecer que os objetos
das experiências de segundidade são um não-eu, ou seja, algo outro que o eu. Dessa
forma, o julgamento perceptual tem o papel de apresentar o eu e o não-eu de forma
direta.
Peirce sintetiza a resposta da seguinte forma:
Agora, como eu disse antes, é inócuo e na verdade realmente impossível
criticar fatos perceptuais como falsos. Podemos somente criticar suas
interpretações. Assim, tão logo vocês admitam que a percepção
realmente represente dois objetos para nós, um eu e um não-eu, - um eu
passado que se torna em um mero eu e um eu que possui a esperança da
verdade num futuro, - tão logo vocês admitem que isso é representado
pelo fato perceptual, isso é um ponto final. Nada resta se não aceitar
isso como uma experiência.173
Assim, a resposta para a pergunta “como nos tornamos conscientes de um
fenômeno surpreendente?” é que é por percepção direta e não por inferência, embora a
inferência, posteriormente, exerça o seu papel no processo de generalização com o qual
conhecemos qualquer objeto. Ora, a experiência de dualidade e reação é algo que se
171
EP 2.195. 172
O objeto aparece de forma peculiar para nós na forma de percepto. O percepto é,
epistemologicamente, uma interpretação do objeto real, mas também é constrangido por esse objeto. De
modo que, epistemologicamente somos co-autores do processo de semiose. No entanto, ontologicamente,
o objeto real é completamente independente dos nossos processos cognitivos. Ver ROSENTHAL, 1994,
cap. 2. 173
EP 2.195.
61
força sobre nós, ou seja, é independente do que possamos pensar sobre ela. E é
exatamente por isso que a experiência é a nossa maior mestra. Com ela aprendemos a
reconhecer que as coisas não são como queremos que sejam. Há o outro, há a alteridade.
Resta ainda estabelecer de que forma a segundidade é ontologizada, tornando-se,
assim, não mais apenas uma questão de Fenomenologia, mas também de Metafísica.
Ibri esclarece esse ponto, primeiro citando Peirce e depois explicando a argumentação,
vejamos:
Embora em toda experiência direta de reação, um ego, alguma coisa
interna, seja um membro do par, atribuímos, ainda, reações a objetos
fora de nós. Quando dizemos que uma coisa „existe‟ queremos
significar que ela reage sobre outras coisas. Evidencia-se que estamos
transferindo para ela nossa experiência direta de reação, ao dizermos
que uma coisa age sobre outra. Esta é a hipótese para explicar os
fenômenos – hipótese na qual, à semelhança das hipóteses de trabalho
de uma investigação científica, podemos crer como não sendo
absolutamente verdadeira, mas que é útil por nos tornar aptos a
conceber o que o ocorre. [E também em:] E esta noção, de ser tal qual
as outras coisas nos moldam, é algo de tal modo proeminente em nossas
vidas que concebemos que as outras coisas existem em virtude de suas
reações umas com as outras.174
Significa: reconhecer que algo seja independente do nosso eu, ou seja, que se
trata de um não-eu, equivale a dar um passo metafísico. Em que consiste esse passo?
Trata-se da concepção de existência: transferimos nossas experiências de reação
(objeção) às coisas fora de nós, dizendo que, de maneira análoga, elas reagem entre si e
que, por isso, existem. Assim, a categoria de segundidade vista ontologicamente é
conceituada como Existência. Peirce, então, pode dizer: “O que quer que exista, ex sists,
isto é, realmente age sobre outros existentes, obtém-se, assim uma auto-identidade e é
definidamente individual.” 175
174
Apud IBRI, 1992. p. 27. 175
Apud IBRI, 1992, p. 28.
62
2.3.4 O Realismo
Acabamos de ver que as três categorias fenomenológicas, primeiridade,
segundidade e terceiridade, representam três princípios ativos e operantes na natureza, a
saber, Acaso, Existência e Lei, respectivamente, e que esses mesmos princípios são
reconhecidos como sendo reais. Dissemos no começo deste tópico que entenderíamos
em que consiste o conceito radical de Realidade em Peirce na medida em que
verificássemos em que consiste o que há de comum na descrição da realidade das três
categorias. Então, perguntemos: o que há de comum nas três categorias tomadas,
ontologicamente, como princípios ativos e operantes na natureza? A resposta é clara: os
três princípios ativos na natureza possuem como característica comum o fato de serem
completamente independentes do que possamos pensar sobre eles. E nisso consiste o
conceito de Realidade em Peirce, que, como Ibri explica, fora tirado do escolástico
Duns Scotus.176
Em outras palavras, o real é aquilo que tem uma existência totalmente
independente do que qualquer mente, tanto individual como coletiva, possa dele pensar.
Significa: dado o mundo de particulares, descritos fenomenologicamente pela categoria
de segundidade, mas que implicam as qualidades, descritas pela categoria de
primeiridade, supõe-se heurísticamente que esses particulares não somente existem, mas
que estão em relação, e, embora possamos representar essa relação, ela nada tem a ver,
ontologicamente, com tal representação. Assim, como a Metafísica é a ciência da
Realidade177
, e Realidade é relação entre particulares, pode-se dizer que a Metafísica, de
forma geral, toma os seus objetos segundo o modo de ser da terceiridade, dado que
relação, como vimos, é apanágio da terceiridade.
Podemos resumir dizendo que, a Metafísica peirciana mantém a realidade das
três categorias e, portanto, tomando o diagrama dos sete sistemas de metafísica, ele
professaria o sétimo sistema de uma forma distintivamente radical, sob o nome de
realismo escolástico, dado o papel que o Real possui, em sua filosofia, na economia do
Universo. O Realismo assim caracterizado está espraiado por toda a filosofia peirciana,
em todos os seus aspectos, permeando desde as mais fundamentais experiências da vida
comum até a complexidade de uma teoria científica. Em Peirce, sempre haverá a
176
IBRI, 1992, p. 25. 177
Ibidem, p. 21.
63
necessidade de olhar para as condições restritivas de qualquer conhecimento e qualquer
experiência. Ibri explica o quão fundamental é o papel da segundidade, implicado em
toda a concepção de realidade de Peirce178
e logo após cita duas passagens que,
unificadas, deixam isso muito claro:
Na idéia de realidade, a Segundidade é predominante; pois realidade é
aquilo que insiste, forçando seu modo de ser à recognição como alguma
outra coisa que não a criação da mente, [e] o que é realidade? Não
haveria tal coisa chamada verdade a menos que existisse alguma outra
coisa que é como é, independentemente de como possamos pensar que
seja. Isso é a realidade, e temos de investigar o que é a sua natureza.
Falamos de fatos duros. Desejamos que nosso conhecimento se
conforme aos fatos duros. Contudo, a „dureza‟ do fato reside em sua
insistência sobre o percepto, sua insistência inteiramente irracional – o
elemento de segundidade nele presente. Este é um fator muito
importante da realidade.179
2.3.5 Síntese da Classificação Geral das Ciências
Terminando a caracterização da Metafísica peirciana, chegamos também ao final
da classificação geral das ciências. Esperamos ter explicitado, mesmo que de forma bem
sucinta, o caráter orgânico, ou seja, de dependência entre todas as ciências que
compõem a filosofia. Vale dizer, no entanto, que o mesmo raciocínio se aplica às outras
ciências da classificação geral, com as quais a filosofia também se relaciona. Assim, as
ciências da Revisão dependem das Ciências da descoberta como material de trabalho
classificatório. As Ciências Práticas dependem dos resultados consolidados das Ciências
da Revisão e das Ciências da Descoberta para viabilizar o fim prático para o qual estão
unicamente voltadas. Dentro das Ciências da Descoberta, a “Matemática é a mais geral
de todas as Ciências” 180
e não depende de nenhuma outra ciência. A Filosofia depende
178
IBRI, 1992, p. 26-27. 179
Apud IBRI, 1992, p. 26. 180
CP 1.53. Peirce continua: “Que isso é assim, tem sido manifesto em nossos dias; porque todos os
matemáticos agora veem claramente que a matemática somente se ocupa como questões puramente
64
da Matemática, enquanto ciência mais geral, como auxílio para a realização de seus
raciocínios, posto estes serem da natureza do raciocínio diagramático e este, por sua
vez, ser apanágio da Matemática. Dentro da Filosofia, a Fenomenologia foi
caracterizada como abordando os seus objetos segundo o modo de ser da primeiridade;
as Ciências Normativas abordando os seus segundo o modo de ser da segundidade e,
por fim, a Metafísica, fazendo suas hipóteses explicativas sobre a realidade segundo o
modo de ser da terceiridade. Dentro da Fenomenologia, temos a própria relação entre as
três categorias, pilares de toda a filosofia de Peirce. No interior das Ciências
Normativas, observamos o mesmo processo de dependência regado pelas categorias;
assim, vimos que a Lógica (terceiridade) depende da Ética (segundidade), que por sua
vez depende da Estética (primeiridade). Quanto à Metafísica, também dividida
triadicamente observou-se que a sua forma mais geral é a ontologia, da qual nos
ocupamos detidamente; dependendo dessa ontologia estão a metafísica religiosa e a
metafísica física, posto que as duas vão fundar as suas hipóteses pressupondo o mundo
de relações reais tal qual descrito pela primeira. Saindo da filosofia, e considerando,
ainda dentro das Ciências da Descoberta, as Ciências Especiais, é notório a dependência
que elas mantêm para com a Matemática e a Filosofia na construção de seus raciocínios
e na necessidade de uma descrição de um mundo fenomênico/ontológico anterior a toda
investida particular sobre os objetos do mundo. Dentro delas, a mesma relação de
dependência da mais particular para a mais geral se mantém.
Fechado o círculo classificatório, esperamos ter deixado claro que a filosofia de
Peirce exibe um notório caráter arquitetônico que não pode ser ignorado. Porém, essa
arquitetura não pára na Classificação Geral das Ciências. Ainda temos de estudar em
separado duas outras doutrinas essenciais para a totalidade do pensamento arquitetônico
de Peirce, a saber, o Idealismo Objetivo e o Contínuo. Na verdade, essas são doutrinas
metafísicas, estando supostas na caracterização que fizemos da metafísica geral, mas,
devido à complexidade das suas descrições, mesmo que explicitadas em linhas gerais,
achamos por bem descrevê-las separadamente. Depois disso teremos de abordar o
pragmatismo e a Semiótica.
hipotéticas. E, quanto ao que a verdade da existência possa ser os matemáticos, enquanto matemáticos,
não se importam nem um pouquinho.”
65
3. O IDEALISMO OBJETIVO
Acompanhamos Ibri na posição de que o Idealismo objetivo deve ser
considerado como uma doutrina absolutamente correlata do Realismo e já anunciada na
Fenomenologia, uma vez que as categorias descritas por essa ciência se aplicavam
homogeneamente, tanto ao mundo interior quanto ao mundo exterior.181
Realismo e
Idealismo, juntos com a doutrina do Contínuo, tema do nosso próximo capítulo,
assentados na Fenomenologia, formam a base da Metafísica Científica de Peirce.
Portanto, devemos esclarecer em que consiste o Idealismo Objetivo e qual o seu papel
na arquitetura filosófica peirciana, que vimos tentando ilustrar.
O texto no qual Peirce estabelece a sua posição favorável ao Idealismo objetivo
é relativamente curto, transcrevamo-lo na íntegra:
A antiga noção dualista de mente e matéria, tão proeminente no
cartesianismo, como dois tipos radicalmente diferentes de substância,
dificilmente encontrará defensores nos dias atuais. Rejeitando essa
doutrina, chegaremos a um tipo de hilozoísmo também chamado de
monismo. Então surge a questão de saber se, de um lado, as leis físicas
ou, de outro lado, as leis psíquicas devem ser tomadas: a) como
independentes, uma doutrina usualmente chamada de Monismo, mas
que eu chamarei de Neutralismo; b) a lei psíquica como derivada e
181
Ver IBRI, 1992. Cap. 4 e IBRI, 2000 c. Nossa posição tem o caráter de uma premissa da qual
partimos. Não está em questão, nesse trabalho, provar tal premissa contra as outras opiniões acerca do
mesmo assunto. No entanto, devemos constatar que existe uma considerável controvérsia acerca desse
ponto entre os comentadores de Peirce, que defendem as mais diversas opiniões. Citemos apenas alguns
exemplos: Robert Meyers, em MEYERS, 1985, considera que Peirce “progrediu” de um Idealismo em
direção a um realismo escolástico, mas, no entanto, não chegou a abandoná-lo totalmente até o final da
sua vida; porém a forma como Peirce manteve esse idealismo não foi como uma doutrina metafísica, essa
seria incompatível com seu realismo, mas sim como uma espécie de crença metodológica. Carl Hausman,
em HAUSMAN, 1993, defende que a arquitetônica construída por Peirce indica uma forma de realismo
único que deve ser distinguido do idealismo objetivo e, portanto, essas não são doutrinas correlatas.
Recentemente foi publicado na revista Cognitio número 2, ano 2010, um artigo de Thomas Short,
SHORT, 2010, no qual é defendida a tese de que o Idealismo Objetivo foi apenas uma fase na carreira de
Peirce, que durou entre 1891-1893, tendo sido abandonada por Peirce logo após a última data, devido a
sua incompatibilidade com outras doutrinas principais. Claudine Tiercelin, em TIERCELIN, 1998,
defende que Realismo e Idealismo Objetivo são doutrinas que devem ser mantidas juntas, sem
contradição, apesar de essa relação ser um tanto problemática, devendo passar por esclarecimentos
epistemológicos. Para encerrar nossos exemplos, citemos Sandra Rosenthal, em ROSENTHAL, 1994,
que recusa que Peirce seja ou um mero Idealista Objetivo ou um mero Realista, defendo que o atributo
correto seria o de um “pluralista pragmático”, termo esse que representaria a inadequação de rótulos
redutores aplicados à Peirce. Enfim, longe está o acordo acerca dessa questão.
66
especial, a lei física sendo, sozinha, primordial, o que é Materialismo;
ou, c) a lei física como derivada e especial, sendo a lei psíquica,
sozinha, primordial, o que é Idealismo. A doutrina materialista parece,
para mim, tão repugnante para uma lógica científica quanto para o senso
comum; uma vez que ela exige de nós que suponhamos que uma
espécie de mecanicismo sempre se faria sentir, o que seria uma hipótese
absolutamente irredutível à razão, em última instância, uma
regularidade inexplicável; ao passo que a única justificativa de qualquer
teoria é tornar as coisas claras e razoáveis. O neutralismo é
suficientemente condenado pela máxima lógica conhecida como a
navalha de Ockham, a saber, que não devemos supor mais elementos
independentes do que o necessário. Ao colocar os aspectos internos e
externos da substância em pé de igualdade, essa doutrina parece manter
que as duas são primordiais. A única teoria inteligível do Universo é
aquela do Idealismo Objetivo, que a matéria é mente esgotada, hábitos
arraigados se tornando leis físicas.182
A primeira coisa a ser notada nessa passagem é o fato de Peirce rejeitar a
dualidade mente e matéria, sujeito e objeto, característica do cartesianismo. Para Peirce,
essa seria uma posição nominalista que faria todo o peso da inteligibilidade recair sobre
a subjetividade, o que contraditaria o seu realismo. Em outras palavras, para as
filosofias nominalistas a ordem, que permite a mediação e a inteligibilidade, não estaria
em algo independente de nós, mas sim apenas em nossa subjetividade, ou seja, a ordem
é constituída pelo sujeito. Rejeitado o dualismo, a pergunta inevitável é: qual tipo de
monismo é lógico abraçar? Sobram três opções: o neutralismo, o materialismo e o
idealismo. Peirce descarta o neutralismo por este supor mais elementos do que o
necessário, contrariando a navalha de Ockham, o que equivaleria a dizer que mente e
matéria seriam ambas primordiais. Na verdade, esse argumento depende do fato de
Peirce admitir a raiz de tudo como sendo o Uno183
, portanto, não caberia dissolver esse
Uno em nenhuma espécie de dualidade ou pluralidade substancial. Sobram, então,
materialismo e idealismo. O materialismo toma a lei física como sendo primordial e a
lei psíquica como derivada. A lei física, à luz dos defensores do materialismo, seria uma
lei determinada e absoluta, caracterizada por uma exatidão, que, se ainda não
perfeitamente conhecida, se deve apenas a uma questão de tempo. Ou seja, à luz dessa
182
CP 6.24-25. 183
CP 1.487.
67
doutrina, o homem será capaz de, mais cedo ou mais tarde, chegar ao complexo total de
leis físicas que atuam no universo. Isso leva ao determinismo184
, a doutrina que mantém
que tudo tem uma causa determinada, embora nem todas sejam ainda conhecidas, na
qual não há nenhum espaço para o acaso e a liberdade. O Universo seria, assim, um
mecanismo, com todas as suas partes ligadas por uma necessidade absolutamente rígida.
Peirce não olhava com bons olhos tal descrição do universo, e isso já se fazia explícito
desde a Fenomenologia, que reservou, sob a categoria de primeiridade, um espaço
primordial para as experiências caracterizadas pela liberdade e sem relação com nada
mais, ou seja, sem causalidade necessária e, portanto, relacionadas ao Acaso como
princípio ativo no mundo. Assim, Peirce rejeita em absoluto a postura materialista.185
Sobra, por fim, o Idealismo, que Peirce caracteriza como a única teoria aceitável
sobre o universo. Essa teoria consiste em tomar a lei psíquica como primordial e a lei
física como derivada da lei psíquica.186
A lei psíquica se refere à mente, a lei física se
refere à matéria, mas ambas não são estranhas entre si, em outras palavras, não devem
ser pensadas como separadas. Trata-se de um tipo de monismo (como é o neutralismo e
o materialismo). Mas que tipo de monismo? Um monismo mente-matéria187
. Peirce
mantém, então, que ambas são conaturais, pois advém de um mesmo substrato
eidético188
, identificado com a mente e, por isso essa deve ser considerada como
primordial e a matéria como derivada.
Torna-se evidente que para tornar isso um pouco mais claro, dentro dos limites
desse trabalho, devemos primeiro verificar como Peirce identifica eidos com mente.
Eidos é inteligibilidade do real. Então, o que é a mente? A mente, para Peirce, não está
resumida à consciência humana, muito menos é sinônimo de cérebro. Mesmo se a
considerarmos meramente sobre o prisma humano, a mente estaria mais fora do que
184
Ibri esclarece a posição contrária de Peirce quanto ao determinismo de forma detalhada em IBRI,
1992. Cap. 3. Peirce assumiria, então, um indeterminismo ontológico e cognitivo, ligado a um
Evolucionismo, que toma lei e representação da lei como em contínuo crescimento. Indeterminismo e
Evolucionismo pretendem responder à pergunta: de onde vieram as leis? E isso, por sua vez, além de abrir
as portas para a cosmologia peirciana, da qual não trataremos aqui, leva diretamente à questão do
Idealismo Objetivo, conforme estamos verificando. 185
Claudine Tiercelin desenvolve a argumentação peirciana acerca da rejeição do materialismo,
resultando no determinismo, em TIERCELIN, 1998. P. 12. 186
Ibri demonstra que há no Idealismo Objetivo de Peirce uma grande influência do romantismo alemão,
em especial de Schelling. Consultar IBRI, 2010a; IBRI, 2010b; IBRI, 2009 e IBRI, 2008. 187
IBRI, 2010b, p. 6. 188
Ibri explica que devemos tomar o termo “eidético” em sentido platônico, ou seja, como designando a
estrutura do Real e sua inteligibilidade. Conferir IBRI, 1992, p. 55.
68
dentro de nós.189
Vista de forma ampla, a mente deve ser considerada como pervasiva.
Assim, podemos observá-la atuando em muitos lugares. Peirce diz que ela “aparece no
trabalho das abelhas, dos cristais, e em todo o mundo puramente físico. Ninguém pode
negar que ela se encontra realmente ali, mais do que as cores, as formas, etc. dos objetos
realmente se encontram.”190
Peter Skagestad sugere que, para entendermos corretamente
a concepção de mente em Peirce, deviríamos tomá-la como sendo virtual.191
Significa: a
mente está aonde nós podemos procurar por ela, de acordo com o que ela apresenta
como resultado sensível. Bem ao espírito do pragmatismo, segundo veremos. A
característica principal da mente é a tendência à aquisição de hábitos.192
Adquirir
hábitos é uma tendência pervasiva que consiste no crescimento da terceiridade, ou seja,
no crescimento da inteligibilidade. Assim, eidos e mente se tornam absolutamente
identificáveis, sendo uma e a mesma coisa. A mente é o substrato ideal, isto é, de
natureza inteligível, que pervade todo o universo.
No entanto, não podemos deixar de pontuar que, na tendência à aquisição de
hábitos podemos verificar uma espécie de dupla característica da mente. De um lado, a
mente deve ser vista como pensamento em constante crescimento e evolução, estando
com isso relacionada à terceiridade. Isso equivale a dizer que algo que é inteligível é
dotado de propósito, donde a ligação patente com o que estudamos acerca das ciências
normativas. De outro lado, porém, deve-se levar em conta que a mente também exibe
como característica a disponibilidade e abertura para aquisição de novos hábitos de
crescimento; ou seja, a mente não é fixa e rígida, pelo contrário, ela é caracterizada pela
facilidade de mudança contínua e, nesse sentido ela deve ser relacionada com o frescor
e liberdade característicos da primeiridade. Essa dupla tendência da mente resulta no
fato de que a ação mental, onde quer que virtualmente se encontre, jamais deve ser
reduzida a algum tipo de certeza, ou seja, ela jamais será absolutamente hábitos
arraigados completamente determinados. Ao contrário, a mente em crescimento flui
continuamente, adquirindo hábitos e mudando de hábitos. Em outras palavras, funciona
como se fosse uma espécie de pêndulo oscilando entre ordem e caos. Ela exibe
plasticidade e, por isso, nunca estanca em um dos extremos. Se a mente atingisse
qualquer um dos dois extremos, teríamos ou determinismo ou a ausência de qualquer
189
Ver SKAGESTAD, 1985. 190
CP 4.551. 191
SKAGESTAD, 1994. 192
Peirce desenvolve essa noção no texto A Lei da Mente, The Law of Mind, EP 1.312-333.
69
tipo de ordem, ou seja, caos. Em última instância, mesmo a matéria totalmente rígida
ainda guarda um resquício de vivacidade, ou seja, ainda possui algo de mental. Em
outras palavras, a primeira característica da mente apontada acima gera a tendência que
faz com que tal mente tenda a se tornar matéria, ou seja, mente com hábitos
extremamente arraigados, espaço onde surgem as leis físicas. Por outro lado, a segunda
característica apontada, sugere que a mente, sofrendo a influência do princípio cósmico
responsável pelos desvios na tendência à aquisição de hábitos, a saber, o acaso,
permaneça sempre virtualmente capaz de mudança, gerando, assim, um novo processo
de aprendizado e comportamento.
Ora, a mente, assim caracterizada como elemento pervasivo no universo,
consiste no substrato ontológico comum que explica a origem das leis físicas e das leis
psíquicas. Esse substrato é de natureza Ideal, ou seja, inteligível. Esse monismo
substancial mente-matéria completa, ao invés de contradizer, o realismo radical de
Peirce, que toma os princípios ontológicos do Acaso, da Existência e da Lei, como
independentes do que qualquer mente ou coleção de mentes possa deles pensar. Isso
porque ele dá conta das duas tendências de um mesmo substrato ideal, o mental, que,
tendo gerado o universo, está em constante crescimento e evolução, consistindo no
crescimento da terceiridade, mas, ao mesmo tempo, dando espaço para a liberdade do
acaso, que produz os desvios nas leis. Por outro lado, leis e desvios de leis devem ser
atualizados nas existências particulares. Isto é, lei e acaso precisam se incorporar em
particulares, ou seja, no mundo da existência, de segundidades. É também papel da
segundidade bruta oferecer ocasião para a necessidade de se mudar um hábito, ou seja, a
experiência de um fato bruto nos faz buscar por um novo estado de crença habitual.193
O
mundo real, caracterizado pela presença das três categorias deve ser então, um mundo
dinâmico, onde não cabe o determinismo rígido e nem o absoluto caos. Trata-se de um
mundo de particulares que se configura como um misto de ordem e de acaso, estes de
natureza geral, ambos independentes de qualquer mente particular ou conjunto de
mentes, mas conaturais às mesmas, posto que oriundos de uma mesma matriz, a mente
pervasiva.
A realidade é independente do pensamento, mas é pensável. A realidade é
pensável, sendo independente do pensamento, porque ela é da natureza do pensamento.
193
Ibri caracterizou isso como o “fator corretivo da experiência”. Conferir IBRI, 1992, p. 60.
70
Em outros termos, o pensamento em geral, precisa de ordem, essa ordem está no mundo
e por isso não é criação da nossa subjetividade, não obstante, essa ordem é similar ao
nosso pensamento. Podemos também inverter as posições e nada será alterado: a ordem
do nosso pensamento é correlata da ordem do mundo, por isso podemos pensá-la, o que
equivale a dizer que, no plano epistemológico, objeto e representação são também
conaturais. Significa: realidade é ordem, e, já vimos, só podemos pensar algo que possui
ordem. Não podia ser outra a consequência da negação da dualidade sujeito e objeto,
efetuada por Peirce logo de saída. Em suma, a realidade possui natureza inteligível. E é
por isso que o Idealismo de Peirce deve ser acrescentado do predicado de objetivo, se
diferenciando, assim, dos idealismos centrados no sujeito, os quais Peirce rejeita
terminantemente.194
Disso decorrem várias consequências para a arquitetura filosófica de Peirce. Em
primeiro lugar, o Idealismo Objetivo, que procurou explicitar o substrato comum que
está por detrás dos fenômenos físicos e psíquicos, se constitui como um primeiro passo
em direção a uma cosmogênese, que procurará explicitar como todas as coisas vieram a
ser.195
Em segundo lugar, a conaturalidade entre mente e matéria, representação e
objeto, que surgiu no seio do Idealismo Objetivo tem profundas consequências para a
semiótica peirciana, na qual se instaura um processo de diálogo onipresente no
universo, posto que inteligível, um diálogo permanente que não se reduz à linguagem
humana. Todo o Universo, em cada minúscula parte, está impregnado de signos.196
Em
terceiro lugar, o crescimento da terceiridade não vai redundar no determinismo, mas, ao
contrário, no indeterminismo ontológico, uma vez que o idealismo objetivo postulou
uma matriz comum ideal cujo crescimento oferece espaço para a tendência à criação e
mudança constante de hábitos. Dessa forma, não há como termos certeza absoluta de
nada; não há nada absolutamente determinado em si, e, portanto, também não há nada
que possa ser representado como tal. Assim, o conhecimento científico será sempre de
caráter aproximativo. Essa postura epistemológica também recebe um nome específico
em Peirce: trata-se do Falibilismo. Em quarto lugar, o Idealismo Objetivo se fará sentir
194
No seu já citado artigo, Claudine Tiercelin oferece um excelente panorama da diferenciação entre o
idealismo objetivo de Peirce e os outros tipos de idealismos por ele rejeitados. TIERCELIN, 1998. 195
Como já explicamos, não trataremos da cosmogênese nesse trabalho. No entanto, é necessário pontuar
o seu papel na arquitetura filosófica de Charles Peirce. Queira o leitor recorrer ao capítulo cinco,
intitulado: A Cosmologia: O fundamento ontológico das categorias; do já citado livro de Ivo Ibri, Kosmos
Noetos. 196
Iremos estudar uma pequena faceta dessa teoria dos signos no capítulo sobre semiótica. Em futura
pesquisa de doutorado, veremos como isso também tem profundas consequências para a concepção de
homem oriunda da filosofia de Peirce.
71
na doutrina do Pragmatismo, onde como um reflexo da conaturalidade entre mundo
interior e exterior, será exigido dos conceitos que seus predicados apareçam pelo lado
exterior, o que configurará o critério de significado a eles aplicado.197
Podemos chamar essas consequências de cosmológica, semiótica,
epistemológica e pragmática, respectivamente. Muitos de seus aspectos já estavam
presentes em todos os temas que trabalhamos anteriormente, o que mostra que o
Idealismo Objetivo é uma doutrina necessária para a filosofia peirciana, considerada
como uma arquitetura filosófica. O texto em que a doutrina foi enunciada pela primeira
vez data de 1891198
, como bem apontado por Short em seu recente artigo What was
Peirce‟s Objective Idealism?199
Mas isso não significa que não haja nenhum sinal do
seu processo de construção em textos anteriores a essa data e muito menos que ela não
tenha continuado como um dos pilares da filosofia de Peirce após 1893, como defende
este autor. Ao contrário, entendemos que sinais da sua paulatina construção já
apontavam desde os textos sobre a cognição200
, datados de 1868, onde Peirce rompe
com o dualismo e intuicionismo cartesianos. Quanto a sua permanência como um dos
pilares da arquitetura filosófica peirciana após 1893, deve-se reconhecer que, até onde
pudemos mapear Peirce não usa o termo Idealismo Objetivo após essa data. Porém, a
doutrina do Sinequismo exige assumir o Idealismo Objetivo e, uma vez que a doutrina
do Contínuo permanece como um dos pontos centrais da arquitetura filosófica peirciana
pelo resto de sua vida, pode-se inferir, ao menos indiretamente, que o mesmo ocorre
com o Idealismo Objetivo. Dessa forma, basta citar o próprio Peirce:
Em particular, o sinequista não admitirá que fenômenos físicos e
psíquicos sejam inteiramente distintos, tanto pertencendo a diferentes
categorias de substância como sendo dois lados totalmente separados de
uma entidade, mas insistirá que todos os fenômenos são de um mesmo
caráter, embora alguns sejam mais mentais e espontâneos, e outros mais
materiais e regulares. Ainda, os dois juntos mostram a mistura de
197
IBRI, 1992, cap. 6. 198
No texto The Architeture of Theories, EP 1.285. 199
SHORT, 2010. 200
Por exemplo, os textos Questões concernentes a certas faculdades ditas humanas e Algumas
conseqüências de quatro incapacidades, EP 1.11-55.
72
liberdade e coação, que permite que sejam, ou melhor, faz com que
sejam teleológicos, ou dotados de propósito.201
Ou seja, embora esse texto seja de 1893, o que em princípio daria razão ao
argumento de Thomas Short, o requisito de ter de assumir o Idealismo Objetivo para se
manter a doutrina do Sinequismo, como dissemos, perdurará até 1914, ano da morte de
Peirce. Assim, isso servirá como uma ponte para adentrarmos no próximo capítulo.
4. SINEQUISMO E CONTINUIDADE
Chegou o momento de abordar a última das doutrinas metafísicas centrais para a
arquitetura filosófica de Peirce: o Sinequismo. O próprio Peirce chamou essa doutrina
de “pedra angular do arco”202
, significando com isso que todo o seu edifício filosófico
dela depende, de forma tal que, entender essa doutrina é de fundamental importância. O
Sinequismo envolve o conceito de Continuidade. Fugiria à nossa competência abordar
em toda a sua complexidade o conceito de Continuidade, o que implicaria enveredar
pelo seu desenvolvimento histórico, a partir de sua origem e ao longo da carreira
filosófica de Peirce, bem como a sua relação com a Matemática, Geometria e
Topologia.203
Assim, abordaremos os conceitos de sinequismo e continuidade apenas
em seus elementos essenciais, com o intuito de torná-los inteligíveis dentro do escopo
desse trabalho e mostrar de que forma eles realmente envolvem e completam tudo o que
abordamos até aqui.
O que é Sinequismo?204
Peirce diz: “O Sinequismo é aquela tendência do
pensamento filosófico que insiste na idéia de continuidade como de prima importância
na filosofia e, em particular, sobre a necessidade de hipóteses envolvendo o verdadeiro
201
EP 2.2 202
CP 8.257. 203
O leitor que tiver interesse em acompanhar o desenvolvimento minucioso do conceito de Continuidade
na obra de Peirce, deve consultar o excelente livro de Antônio Machuco Rosa, O conceito de
Continuidade em Charles S. Peirce, ROSA, 2003. Nesse livro, o autor expõe sistematicamente o percurso
da teoria do Contínuo, desde 1868 até os últimos textos de Peirce, relacionado-o com os principais
momentos de sua carreira filosófica, com especial atenção à hipótese cosmológica. Consultar também
MURPHY, 1993 e MOORE, 2007. 204
O próprio Peirce esclarece a origem da palavra na seguinte passagem: “A palavra synechism
(sinequismo é a forma portuguesa) é a forma inglesa do grego sunexismov de sunexhv, continuidade.”
EP 2.1. Conferir IBRI, 1992, p. 62.
73
contínuo.”205
Sinequismo é a doutrina de que tudo o que é, é contínuo. Essa doutrina
pode ser tomada como a principal doutrina metafísica da arquitetura filosófica de
Peirce, pois ela subsume tudo o que foi explicitado até aqui. Entender o que significa
Sinequismo é entender o que significa o conceito de Continuidade, pois, em última
instância, o Sinequismo é a extensão do que se entende por Continuidade à totalidade do
Universo. Assim, o sinequismo é a doutrina que diz que “devemos tomar as coisas
como contínuas na medida em que podemos.”206
4.1 O conceito de Continuidade
O que vem a ser continuidade para Peirce? Como Potter e Shields comentaram, as
definições técnicas sobre o conceito de continuidade, oferecidas por Peirce ao longo de
toda a sua obra sofreram muitas mudanças, na medida mesma em que o seu pensamento
sobre o tema também evoluiu.207
Não é necessário, para os objetivos deste trabalho,
especificar uma a uma essas mudanças. Vamos nos deter apenas naquilo que de forma
geral perdurou ao longo de todas as tentativas peircianas de definir a continuidade.
Ibri demonstrou que o conceito de continuidade é definido por Peirce através de
uma reunião das concepções kantiana e aristotélica sobre o que consistiria dizer que
algo é contínuo.208
Desta forma, para Peirce, Kant teria confundido continuidade com
infinita divisibilidade, dizendo que o caráter essencial de uma série contínua é que entre
dois de seus membros quaisquer, um terceiro pode sempre ser encontrado. Aristóteles,
de outro lado, definiu continuidade como alguma coisa cujas partes têm um limite
comum.209
Assim, Ibri completa:
Peirce considera que a reunião das concepções kantiana e aristotélica
pode produzir uma definição completa daquele conceito, eliminando-se
a possibilidade de se encontrar elementos de uma classe que não
estejam subsumidos à continuidade. Assim, a definição peirciana seria:
205
CP 6.169. 206
CP 6.277. 207
POTTER, V. G. , SHIELDS, S. J. , SHIELDS P. B, 1977. Neste artigo, os autores mostram a evolução
do pensamento peirciano sobre o conceito de continuidade dividindo-o em quatro principais períodos: o
período pré-cantoriano: até 1884, o período cantoriano: 1884-1894, o período kantiano: 1895-1908 e o
período pós-cantoriano: 1908-1911. 208
IBRI, 1992, p.66. 209
Ibidem, p. 65-66.
74
continuum é alguma coisa infinitamente divisível cujas partes têm um
limite comum.210
Peirce entendia a continuidade como algo de potencial ou possível. Por exemplo,
seja uma linha que represente a continuidade. Se a linha for tomada como sendo
composta por uma coleção infinitamente divisível de pontos definidos, não teremos o
contínuo peirciano, mas sim aquilo que Peirce entendia ser a definição de Cantor e
Dedekind sobre o contínuo, onde o contínuo seria constituído por indivíduos.211
Para
que esta linha represente o contínuo peirciano, seus pontos infinitamente divisíveis não
podem ser definidos, mas passíveis de determinação. Assim, no modelo peirciano, a
linha é contínua na medida em que permite a atualização de qualquer número de pontos,
pois os pontos já estão todos inseridos enquanto possibilidades inesgotáveis. Em outros
termos, trata-se de pontos possíveis e não de pontos que constituem partes últimas.
Deste modo o contínuo peirciano designa uma entidade geral, que consiste na
possibilidade inesgotável de determinar um número de indivíduos maior que qualquer
número já dado. Por isso Peirce pode dizer que “um verdadeiro continuum é algo cujas
possibilidades de determinação nenhuma multidão de individuais pode exaurir.”212
Ou
seja, apesar de o conceito de „partes‟ se encontrar presente na definição peirciana de
contínuo, este não pode nunca ser esgotado por suas partes, não importa quantas sejam.
Isto porque a continuidade é a conexão ininterrupta entre as partes e não um conjunto de
partes que configuram uma pluralidade. Melhor seria dizer que o que constitui um
continuum é o modo de conexão entre as partes: “E isto é dizer que o tipo de partes
conectadas é que é ininterrupto no continuum.”213
Em outros termos, o contínuo é a
relação, a conexão das partes com o todo de modo que “os indivíduos cessam de possuir
existência individual e ficam fundidos.”214
Este estar fundido é uma forma de unidade e
generalidade.
Por outro lado, deve-se sublinhar que o continuum é algo sobre o qual ocorrem
descontinuidades. Uma descontinuidade é uma determinação. No exemplo da linha,
quebra-se a sua continuidade definindo um ponto:
210
Ibidem, p.66. 211
ROSA, 2003, p. 210-211. “O contínuo de Cantor-Dedekind é composto por indivíduos, pois o limite
em R de uma sucessão infinita define um número em relação ao qual uma certa propriedade é
universalmente verdadeira ou universalmente falsa.” 212
CP 6.170. 213
HAUSMAN, 1993, p.185. 214
ROSA, 2003, p.223.
75
No momento em que ocorre uma descontinuidade o continuum deixa de ser
perfeito, posto que “um continuum, onde ele é contínuo e ininterrupto, não contém
partes definidas, essas partes são criadas no ato de defini-las, e as suas definições
precisamente quebram a continuidade.”215
No entanto, o contínuo é exatamente a
possibilidade dessas descontinuidades. Reforça-se, então, mais propriamente a
generalidade do contínuo peirciano como contexto ininterrupto que abarca
possibilidades inesgotáveis de descontinuidades:
Aquilo que é possível é, nessa medida, geral, e, enquanto geral, deixa de
ser individual. Assim, recordando que a palavra „potencial‟ significa
indeterminado mas passível de determinação em cada caso específico,
pode haver um agregado potencial de todas as possibilidades que são
consistentes com certas condições gerais; e isto pode ser tal que, dado
um qualquer conjunto de indivíduos distintos, um conjunto de maior
multitude que o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse
agregado potencial. Portanto, o agregado potencial é, estritamente,
maior em multitude do que qualquer conjunto de indivíduos. Mas, visto
ser apenas um agregado potencial, ele não é composto por qualquer
número de indivíduos. Ele apenas contém condições gerais que
permitem a determinação de indivíduos.216
Assim, a doutrina do sinequismo consiste em pregar a realidade dos continua,
estendendo-a, na medida em o possamos, a todas as coisas. Cabe agora relacionar o
princípio da continuidade com os outros aspectos da filosofia peirciana, mostrando em
215
CP 6.168. 216
Apud, ROSA, 2003, p. 224.
Quebra da continuidade: Definição de um ponto
Contínuo
76
que sentido ela deve ser tomada como a “pedra angular”217
do arco, ou seja, em que
sentido ela subsume todas as doutrinas e teorias da arquitetura filosófica peirciana.”
4.2 Continuidade e senso-comum
Embora o conceito de continuidade rigorosamente falando envolva complexas
teorias matemáticas, o seu sentido pode ser encontrado também no senso-comum. Não
poderia ser diferente, dado o caráter científico da metafísica peirciana. É a partir do
contínuo fenomenológico que se deve procurar construir uma teoria do contínuo. No
nosso dia-a-dia vivemos fazendo planos, por exemplo, quando alguém diz: “amanhã
acordarei bem cedo, farei minha caminhada matinal e, logo após irei ao mercado fazer a
compra mensal”. Em um exemplo banal como esse, podemos perceber que em nenhum
momento nos surpreendemos duvidando de que o estado de coisas de hoje se encontrará
mais ou menos da mesma forma amanhã. Ou seja, está implicada em qualquer plano ou
projeto futuro a noção de que as coisas estão conexas e fazemos nossos planos baseados
nessas conexões. Planejar é utilizar mediações disponíveis ou construir uma nova
mediação. Mediar é estabelecer conceitos. Conceitos são sempre gerais, e isso vale tanto
quando estamos tratando de filosofia como quando das situações mais corriqueiras.
4.3 Continuidade e Terceiridade
Quando abordamos a Fenomenologia, vimos que a experiência de mediação,
caracterizada pela categoria de terceiridade, envolve a noção de permanência das coisas,
de regularidade, de repetição, de ordem. Sendo isso o que nos permite fazer
generalizações. Vimos também que terceiridade é generalidade. Dessa forma, podemos
verificar que existe uma ligação muito forte entre continuidade e generalidade. Assim
217
CP 8.257.
77
Peirce pode dizer que “continuidade é nada mais que perfeita generalidade de uma lei da
relação.”218
A continuidade é a garantia de todo o conhecimento. Significa: sem
continuidade não há conhecimento possível. Todo o conhecimento, já o vimos, é
direcionado para o futuro. Em outras palavras, o que afirmamos, afirmamos para o
futuro. Isso depende e está fundado na Continuidade, dado que o conceito precisa de
repetição uma vez que com apenas um fato não é possível construir conceitos. Por outro
lado, uma vez que a continuidade deve ser associada com a terceiridade em seu aspecto
de regras gerais que subsumem os particulares que estão sobre essa regra, segue-se que
nesse âmbito a continuidade também deve ser associada à necessidade. Veja bem que
essa necessidade não é absoluta, ou seja, o conhecimento preditivo é necessário no
sentido de que se baseia em regras gerais e reais que possuem permanência. Esse é o
sentido de esse in futuro que estudamos sucintamente na caracterização fenomenológica
da terceiridade e veremos também, por outro viés, quando estudarmos o Pragmatismo.
O conceito que subsume todos esses aspectos é o conceito de Lei. Uma Lei é uma
fórmula que representa a continuidade necessária de predicados reais no mundo. A Lei é
um contínuo real.
A característica do continuum como generalidade inesgotável por nenhum tipo
de pluralidade já tinha sido evidenciada desde a Fenomenologia. Esta nos ensinou que a
categoria de terceiridade não se reduz à de segundidade, o que é o mesmo que dizer que
algo que é geral não se esgota em suas ocorrências individuais. Ou seja, o geral não se
reduz a uma pluralidade de particulares, embora sempre se incorpore em um individual.
Esse ensinamento da fenomenologia está intimamente ligado com a noção de
continuidade. Assim, segundo Ibri: “a generalidade de um continuum é absolutamente
indefinida na sua referência a qualquer individual que lhe seja afeito.”219
Por exemplo: a
síndrome do pânico, que é um geral, não se reduz a um indivíduo com tal síndrome.
Tanto que dizemos para cada indivíduo que ele é “portador” da síndrome do pânico.
Pode-se dizer, assim, que a terceiridade é uma categoria do contínuo, ou seja,
representa as experiências e o modo de ser onde a continuidade está presente. O
218
CP 6.172 219
IBRI, 1992, p. 65.
78
Contínuo Real é o fundamento ontológico das experiências caracterizadas pela
terceiridade.
4.4 Continuidade e Segundidade
A unidade de um continuum só pode ser quebrada por algo descontínuo, esse
algo descontínuo é o surgimento das determinações particulares. O particular foi
descrito na fenomenologia como o âmbito da segundidade. A segundidade surge no
momento em que ocorre uma determinação, ou seja, no momento em que algo discreto
quebra o continuum antes ininterrupto, que, dessa forma deixa de ser um verdadeiro
continuum. A segundidade, tomada como um modo de ser, é caracterizada pelo conceito
de existência. Um existente é um individual. Um individual não é contínuo, mas sim
completa determinação. Um conjunto de determinações é o que constitui uma
pluralidade. Porém, mesmo havendo uma pluralidade de determinações, o contínuo não
é esgotado. Isso é o mesmo que dizer que o contínuo permanece após uma determinação
em forma de um contínuo que exatamente contém as infinitas possibilidades de
determinações.220
Dito de outro modo, o contínuo verdadeiro, enquanto uno, faz
desaparecer o particular; porém o particular está no continuum virtualmente. Significa:
tudo o que é continuum contém as possibilidades de determinações.
Um exemplo instrutivo seria a relação entre um indivíduo do mundo animal e
sua espécie. Assim, existem várias espécies de formigas com os mais diversos hábitos.
Tomemos uma espécie qualquer, por exemplo, a conhecidíssima espécie que gosta de
fazer seus ninhos nos azulejos das casas, a chamada formiga-fantasma: a espécie será
descrita por características gerais mais ou menos partilhadas por cada formiga
individual que constitui a espécie como um todo, características tais como: tamanho,
cor, e hábitos gerais como o de andar em zigue-zague, fazer trilhas irregulares, mudar de
lugar constantemente, etc. Ora, toda essa descrição é geral, por isso está sob a categoria
da terceiridade, o nome da espécie constitui um conceito e seus predicados devem ser
tomados como contínuos, ou seja, eles não mudarão amanhã, apesar de os mesmos
estarem sujeito à evolução ditada pelas novas formações de hábitos bem como suas
descobertas. Agora, a Espécie formiga-fantasma contém todas as formigas-fantasmas
220
Isso é uma reafirmação da irredutibilidade das categorias.
79
possíveis. No entanto, cada formiga particular dessa espécie é um individual: é essa
formiga e não aquela outra.
Assim, embora a continuidade se relacione com a segundidade, está não é uma
categoria do contínuo, mas sim do descontínuo. De que maneira a continuidade está
relacionada com a segundidade? Uma segundidade está contida no contínuo da terceira
categoria. Isso condiz, convém lembrar, com o fato de a segundidade ser uma categoria
da reação em seu caráter imediato. Ocorrer uma determinação é fator fundamental da
realidade, pois só podemos conhecer o geral examinando a conduta do particular. Daí a
já acentuada importância da segundidade na experiência.
4.5 Continuidade e Primeiridade
Recordemos brevemente: na fenomenologia vimos que a primeiridade é a
categoria daquilo que não tem relação com nada mais, daquilo que é primeiro, livre e
espontâneo. Ou seja, a primeiridade, considerada em si, não é caracterizada por
nenhuma mediação e, portanto, não exige fluxo de tempo nem repetição, sendo, assim,
uma categoria do imediato, decorrendo daí a impossibilidade da primeiridade constituir
conceitos. Outra importante característica a ser lembrada é que, embora enquanto
qualidade, a primeiridade deva aparecer incorporada em um existente particular, ela se
constitui como totalmente independente desse individual, ou seja, desse outro que não
ela mesma. Na Metafísica, essa categoria foi ontologizada, ou seja, verificamos que ela
representa um princípio ativo no Universo, a saber, o Acaso. O Acaso foi caracterizado
como o princípio responsável pela diversidade e espontaneidade do mundo e, ao mesmo
tempo, vimos que essa diversidade se constituía no lado de fora do aparecimento da
primeiridade no mundo.
Todas essas características confluem, num primeiro momento, para dizer que a
primeiridade não se constitui como uma categoria do contínuo. Seria ela uma categoria
do descontínuo? Obviamente não, pois isso implicaria em dizer que a primeiridade
representa existentes particulares, sendo caracterizada por determinações e isso é uma
flagrante contradição com a essência da primeiridade, tal qual abordamos. A relação
entre primeiridade e continuidade constitui, assim, um problema.
80
Para resolvermos esse problema, devemos levar em consideração duas
características da primeiridade que também já tinham sido abordadas nos capítulos
sobre a fenomenologia e a metafísica, a saber, o seu modo lógico caracterizado como
possibilidade e a sua unidade do lado interior.
A primeiridade é a categoria do universal possível. Significa: deixando de lado o
a experiência de sentir os fenômenos de primeiridade, só podemos conhecer tais
fenômenos quando eles aparecem na forma de um conceito universal, sendo essa a única
forma de acessá-los logicamente. Mas essa universalidade não se constitui como
universalidade necessária, como na terceiridade, mas sim como universalidade possível.
A possibilidade lógica é um princípio e enquanto tal deve ser considerado geral.221
Ora,
vimos que o continuum é idêntico à generalidade. Não há interrupções nas infinitas
possibilidades caracterizadas pela primeiridade. Só haverá uma interrupção se o
possível se atualizar em um individual, ou seja, se o possível se determinar de algum
modo, se aparecer uma segundidade.
Por outro viés, a primeiridade pode ser sentida numa experiência de
contemplação, onde ocorre uma unidade entre mundo interior e exterior, que foi
clarificado com o idealismo objetivo, constituindo assim a base para a ruptura com o
dualismo sujeito-objeto. Unidade é outra característica do continuum.
Objetar-se-ia que a relação entre primeiridade e continuidade não pode ser
apenas lógica. O princípio ativo na natureza associado à primeiridade, ou seja, o acaso,
também deve ser contínuo, da mesma forma que as leis, associadas à terceiridade são
contínuas. A objeção está correta. No entanto, ela só ocorreria em alguém que separa a
Lógica da vida, coisa que não acontece na filosofia de Peirce, o que esperamos ter
mostrado no estudo das Ciências Normativas. Disso decorre que o conceito de
possibilidade é a representação modal de algo que no Universo se manifesta
continuamente. Ou seja, o Acaso perfaz o seu papel ininterruptamente no Universo,
violando as leis da natureza e, exatamente por isso, sendo o princípio responsável pela
diversidade no Universo.222
221
Conferir IBRI, 1992, p. 66. 222
Salatiel esclarece muito bem este ponto em seu artigo „O que Peirce quer dizer por violação das leis da
natureza pelo Acaso?‟: “O Acaso viola as leis da natureza por ser um contínuo de possibilidades que
impede a predição exata dos fenômenos sob os auspícios de leis naturais e também por ser fonte de
criatividade e heterogeidade.” SALATIEL, 2009, p.116.
81
Assim, podemos tomar a primeiridade como sendo, junto com a terceiridade,
uma categoria do continuum. Temos num comentário de Ibri uma síntese do que
tratamos sobre a relação entre continuidade e fenomenologia:
[...] cremos ser possível afirmar que a continuidade da lei e do acaso
confluem para o caráter descontínuo da existência, desenhando um
vetor lógico do indefinido geral para o definido individual. Este é um
ponto central em que as categorias podem ser identificadas logicamente
como possibilidade, determinação e necessidade, nesta ordem, e onde o
primeiro e o terceiro modos são cobertos pela generalidade de um
continuum.223
4.6 Continuidade e Realismo
O conceito de continuidade é dado na percepção direta, ou seja, percebemos o
contínuo e, portanto, ele não está sujeito à crítica lógica anterior. Significa: o contínuo é
anterior ao pensamento simbólico. Podemos dar como exemplos de contínuos
diretamente percepcionados, a noção de sucessão espacial e o tempo. Assim, segundo
Machuco Rosa:
O conceito de sucessão forma-se sem o raciocínio crítico; o juízo
perceptivo „A segue-se B‟ não depende de um processo logicamente
controlado. Sublinhamos o argumento usado por Peirce: a própria
relação de sucessão não pode ter sido logicamente derivada de
premissas anteriores, pois, nessas premissas, a mesma relação estaria
ainda presente. Logo, essa relação tem de ser dada diretamente no que
me aparece. „Direto‟ e „percepção direta‟ significa algo que não foi
derivado logicamente de certas premissas [...] pelo que os juízos da
lógica têm a sua origem na percepção. Em suma, a sucessão é a forma
dada em que a lógica se funda.224
A sucessão está ligada à permanência da forma ordenada e isso é um aspecto da
continuidade. Assim, a relação de sucessão aparece diretamente no tempo ordenado.
223
IBRI, 1992, p. 67. 224
ROSA, 2003, p. 355.
82
Machuco Rosa esclarece: “O tempo é um contínuo dado fenomenologicamente, que não
é ainda o contínuo matemático, mas a partir do qual se pode inferir a verdadeira
continuidade.” 225
Que a continuidade é dada diretamente na percepção constitui um forte
argumento a favor da idéia de que a continuidade, ou melhor, o sinequismo, exige
assumir o realismo peculiar de Peirce.226
A realidade da terceiridade é justificada pelo
contínuo, pois a terceiridade, enquanto generalidade é dada na percepção, e essa para
apreender o fluxo do geral, depende do contínuo espaço-temporal.227
Mesmo que um
nominalista argumentasse que apenas “parece” haver terceiridade na experiência, essa
sua própria asserção depende da continuidade real e assim a prova, pois como Peirce
argumenta: “como poderiam os sentidos ter o poder de criá-la?”228
Assim, toda e qualquer teoria deve ter a forma da continuidade. A realidade da
terceiridade implica a realidade da segundidade e da primeiridade. Sinequismo e
Realismo estão intimamente ligados.
4.7 Continuidade e Idealismo Objetivo
Vimos que o Idealismo Objetivo afirmou a conaturalidade entre mente e matéria,
negando assim qualquer forma de dualismo substancial. A consequência disso foi a
asserção de que só é possível o conhecimento na medida que a ordem e a permanência
do Universo é da natureza do inteligível. Parece-nos inquestionável a íntima ligação que
essa doutrina mantém com a continuidade e, logo, com o sinequismo. Em outras
palavras, o sinequismo exige assumir o idealismo objetivo tal qual exposto no tópico
anterior. Isso significa que há uma relação de continuidade entre mente e matéria, para
além do fato de a mente ser primordial e a matéria derivada. Matéria é mente enrijecida
por hábitos extremamente arraigados, onde ainda assim, permanecem resquícios do
mental. A mente tem a tendência de adquirir novos hábitos e se espraiar, conectando-se
225
ROSA, 2003, p.356. 226
Ver IBRI, 2006. 227
Conferir ROSA, 2003, p. 353. 228
Ibidem, p. 358.
83
com outras idéias.229
Por outro lado, hábitos podem se tornar repetitivos e rígidos, sendo
esse o caminho para que a mente se torne matéria. A continuidade deve estar presente
em todo o Universo, posto este ser inteligível. Dizer que a idéia de continuidade é de
prima importância para o pensamento é afirmar que, em última instância, não deve
haver descontinuidades absolutas ou pontos últimos naquilo que é inteligível. A
Continuidade é a garantia da realidade exatamente por tornar possível a inteligibilidade.
Seguindo essa linha de raciocínio poderíamos até afirmar que sinequismo e idealismo
objetivo são indissociáveis.
4.8 Corolário: a relação entre Continuidade, Evolucionismo e Falibilismo
As leis estão para Peirce em constante evolução. Daí decorre o seu
evolucionismo e falibilismo. Significa: o Universo é dinâmico e não estático, por isso
diz-se que ele está sempre em evolução e em constante mudança. O epíteto de certeza
absoluta não pode ser aplicado a nada que não seja definitivo, ou seja, absolutamente
determinado. Segue-se que o Universo peirciano jamais receberá tal epíteto. Ora, isso é
o mesmo que dizer que o Universo está em um fluxo contínuo. Evolução é fluxo
contínuo. O Universo está sempre em crescimento e em processo de formação. Nós
podemos representar a ordem das coisas, esse é o papel preditivo do conhecimento. No
entanto, essa representação será sempre parcial e nunca definitiva. A própria noção de
verdade fora caracterizada como provisória no tópico sobre o bem lógico. É por isso que
podemos aprender. O aprendizado se funda na continuidade e na inteligibilidade do
Universo sempre em evolução.
Aprendemos com novas experiências que sempre envolvem a reação, ou seja, a
quebra do continuum por uma descontinuidade, uma segundidade. Essa quebra é o que
condiciona a evolução das leis.230
O Acaso, apesar de não ser uma descontinuidade,
exerce também o seu papel na evolução das leis, introduzindo a novidade no Universo.
Essa novidade é oriunda da mente em sua tendência a adquirir novos hábitos. O
229
Conferir, The Law of Mind, EP 1. 312-333. 230
Conferir HAUSMAN, 1993, p. 186.
84
contínuo potencial gera o novo que, uma vez gerado, pode se determinar de alguma
forma, tornando-se um existente, e, logo, não será mais potencial e primeiro, e sim
segundo e determinado. Em termos fenomenológicos, a primeiridade atua na
segundidade. Por outro lado, hábitos arraigados são repetições, redundâncias e esses,
por sua vez, constituem o espaço da terceiridade, ou seja, o universo das leis operativas
oriundas das relações reais entre os existentes.
Essa é a dinâmica do Universo, que é uma mistura de Acaso, Existência e Lei. A
dinâmica do Universo conflui para o crescimento da razoabilidade concreta, que, como
vimos no capítulo sobre as ciências normativas, constitui-se no bem admirável por si.
Assim, vemos que o sinequismo está também intimamente ligado ao evolucionismo e ao
falibilismo peircianos.
Pode-se concluir dizendo que o sinequismo é uma doutrina central, que unifica e
torna completo o pensamento peirciano, sendo assim a coluna sustentadora daquilo que
vimos chamando de arquitetura filosófica de Charles Peirce. Agora, isso não quer dizer
que essa doutrina deve ser tomada como absoluta. Peirce mesmo diz: “O sinequismo
não é uma suprema e absoluta doutrina metafísica; ela é um princípio regulativo de
Lógica, prescrevendo uma hipótese que está apta a ser acolhida e examinada.”231
O seu
papel é exclusivamente heurístico, como todas as hipóteses que permeiam a metafísica
científica e a cosmologia peircianas.
5. O PRAGMATISMO
Munidos com tudo o que abordamos até aqui, devemos agora direcionar nossa
atenção ao entendimento geral da máxima do pragmatismo. O pragmatismo é um
aspecto também central e regulador de toda a filosofia peirciana. É claro que essa
doutrina também se desenvolveu ao longo de sua carreira, tendo sido enunciada pela
primeira vez em 1878, no já citado artigo Como tornar as nossas idéias claras232
, da
série Ilustrações da Lógica da Ciência, embora nesse artigo não apareça o nome
231
CP 6.173 232
EP 1.124
85
pragmatismo, e continuado a evoluir paulatinamente até o final da vida de Peirce
(1914). Neste capítulo, a estratégia será a seguinte: primeiro, veremos a enunciação da
máxima de 1878 e seu significado; em seguida discorreremos sobre como Peirce, em
um texto de maturidade, a saber, de 1905, tornou a ligação da máxima com a
generalidade mais explícita; e, por fim, mostraremos como essa doutrina não deve ser
tomada como apenas uma máxima de lógica para clarificação de idéias, mas que se
encontra, de uma forma profunda, ligada a toda arquitetura filosófica de Peirce.
5.1 O pragmatismo Inicial
O pragmatismo se origina no texto „Como tornar nossas idéias claras‟, de 1878,
como um método regulador de Lógica cujo objetivo é clarificar nossas idéias para além
dos meros métodos de clareza e distinção oriundos do cartesianismo.233
Assim, ele
funcionaria como um terceiro método em ordem a tornar as idéias claras, posto ser esse,
segundo Peirce, o primeiro grande ensinamento que devemos exigir da lógica.234
Em que consiste e o quê, de modo geral, Peirce pretendeu estabelecer com a
máxima do pragmatismo tal qual enunciada em 1878? Para respondermos a essa
pergunta, temos que, primeiro, percorrer de maneira sucinta a diferenciação que Peirce
faz no artigo anterior ao „Como tornar as nossas idéias claras‟, a saber, „A fixação da
crença‟235
, entre dúvida e crença.
Nesse texto, Peirce conceitua a dúvida como sendo um estado de desconforto
causado pelo desconhecimento diante de algo. A crença, por sua vez, é simplesmente o
estado oposto à dúvida, um estado de satisfação pelo fato de termos nossas dúvidas
sanadas, mesmo que momentaneamente. Assim, lutamos para sair do estado de dúvida,
que origina a necessidade de uma investigação (inquiry), para atingirmos um estado de
233
O tradutor de toda a série Ilustrações da Lógica da Ciência para o português, Renato Rodrigues
Kinouchi, pontua que Peirce “não critica Descartes por exigir clareza e distinção das idéias. Ocorre que
clareza e distinção são critérios insuficientes, de modo que um terceiro precisa ser adicionado. Ou seja, o
cartesianismo peca por falta e não por excesso.” PEIRCE, 2008 a. p. 15. Pensamos ser importante esse
ponto porque chamar Peirce de anticartesiano sem uma leitura aprofundada dos aspectos filosóficos que
estão por detrás da posição peirciana quanto à sua oposição em relação a Descartes, pode levar, no âmbito
do pragmatismo a tomá-lo como um defensor da ausência de método, o que é uma fragrante distorção do
seu pensamento, como bem assinala o tradutor. 234
PEIRCE, 2008a, p. 64. 235
Ibidem, 2008a, p.35.
86
crença, calmo e satisfatório. A diferença entre dúvida e crença é, sobretudo, uma
diferença prática, relacionada à forma como agimos quando em estado de dúvida ou
crença. Assim, a dúvida nos faz ficar paralisados diante daquilo de que duvidamos e, ao
mesmo tempo, nos coloca basicamente de imediato, no processo de busca de eliminação
dessa dúvida. As crenças, por outro lado, “guiam nossos desejos e moldam nossas
ações.”236
Em suma, a dúvida é um estado incômodo, mas estimulador; a crença gera
hábito e nos coloca em disposição para agir de uma certa forma, quando a ocasião
surgir.237
Em seguida, Peirce descreve os quatro métodos de fixação das crenças: o
método da tenacidade, o método da autoridade, o método a priori e o método científico.
O método da tenacidade é o método da teimosia, da recusa de adentrar numa
investigação que nos leve a questionar nossos fundamentos. Segundo esse primeiro
método, o que se deve fazer é simplesmente confiar inteiramente nas nossas crenças
individuais já estabelecidas. O segundo método, o da autoridade, consiste na força que
uma organização, sociedade ou instituição opera nos indivíduos. Esse método consiste
em ser a crença a opinião da autoridade. O terceiro método, o a priori, consiste em
adotar crenças em conformidade com a razão. Nele estão inseridos todos os sistemas
metafísicos que se fundam em algum tipo de apriorismo. Esse método, para Peirce, já
representa um avanço em relação aos dois anteriores, mas acaba redundando em algo
mais ou menos parecido com a autoridade, só que agora autoridade da razão. O quarto e
último método é o científico que, segundo Peirce, é o único que dá conta de satisfazer
nossas dúvidas, exatamente por ser um método que se baseia em algo independente do
ser humano, a saber, num princípio de permanência externa, sobre o qual o nosso
pensamento não tem efeito e que, como se evidenciou no capítulo sobre a Metafísica
científica, fora conceituado como Realidade:
Para satisfazer nossas dúvidas, por conseguinte, é necessário que se
encontre um método pelo qual nossas crenças possam ser causadas por
algo em nada humano, mas por alguma permanência externa, por
alguma coisa sobre a qual nosso pensar não tenha efeito.238
236
PEIRCE 2008a, p. 43. Examinar também IBRI, 1992, p. 101. 237
WAAL, 2007, p. 32. 238
PEIRCE, 2008 a, p. 53.
87
O método científico é, assim, “oposto aos primeiros três métodos, em que o
entendimento humano estabelece os termos.”239
Ele está fundado no reconhecimento da
alteridade e da realidade das relações contínuas entre as coisas no mundo, tal qual
esboçamos nos tópicos anteriores. Em 1878, Peirce ainda não tinha formulado a versão
final do sinequismo, mas já vemos como ele se encontra presente, como uma exigência
inescapável de que precisamos da permanência para estabelecer qualquer conceito.
É depois de estabelecer esses primeiros conceitos (dúvida, crença e sua fixação
ideal, através do método científico), que Peirce se volta, no artigo „Como tornar nossas
Idéias claras‟, para aquilo que Cornelis de Waal definiu como uma teoria da
significação.240
Essa teoria da significação pretende estabelecer o almejado critério
lógico para se ter clareza das idéias. No entanto, antes de enunciar esse critério, que será
conhecido como a máxima pragmática, Peirce descreve os dois primeiros critérios de
significação que, segundo ele, são insatisfatórios, a saber, o de clareza e distinção:
Diz-se que uma idéia é clara quando ela é aprendida de maneira tal que
a reconhecemos onde quer que ela se apresente, de modo que ela nunca
será confundida com outra. Se faltar essa clareza, dir-se-á que a tal idéia
é obscura.241
Esse primeiro critério insatisfatório envolve o conceito de intuição, de tal forma
que, diante do objeto, não precisaríamos de nenhum processo inferencial para
reconhecê-lo, o mesmo sendo imediatamente reconhecido devido ao fato de possuirmos
tal capacidade inatamente e mais, não só o reconhecemos como não corremos o risco de
enganarmo-nos, dado que o distinguimos claramente em nossa intuição e, além disso,
sabemos intuitivamente que tivemos tal intuição.242
Depois de descrever esse critério de
clareza, Peirce meio que ironicamente acrescenta:
Trata-se de uma terminologia filosófica típica; todavia, já que se está
definindo o que é clareza, eu gostaria que os lógicos tivessem dado uma
definição mais clara. Jamais falhar no reconhecimento de uma idéia, e
239
WAAL, 2007, p. 36. 240
WAAL, 2007, p. 39. 241
PEIRCE, 2008 a, p. 61. 242
Esse tipo de conhecimento intuitivo fora veemente negado por Peirce, desde 1868, na já citada Série
Cognitiva, sobretudo o texto „Questões Concernentes a certas faculdades ditas humanas‟. Nessa série,
Peirce defende a tese de que toda cognição é inferencial, dado que só podemos pensar através de signos e
não temos capacidade intuitiva de distinguir se estamos tendo uma intuição.
88
não confundi-la com outra, em nenhuma circunstância, não importando
quão recôndita possa ser sua forma, na verdade implicaria em tal força e
tal clareza de intelecto, tão prodigiosas, raramente existentes neste
mundo.243
Não sendo esse um critério substancial para atingir a almejada primeira lição da
lógica, Peirce passa a descrever o segundo critério:
Diz-se que uma idéia é distinta quando ela não contém nada que não
seja claro. Trata-se também de uma linguagem técnica; por conteúdos
de uma idéia os lógicos entendem o que quer que esteja contido em sua
definição. Para eles, uma idéia é aprendida de maneira distinta quando
podemos dar uma definição precisa dela, em termos abstratos.244
Esse segundo grau de clareza envolve o uso do processo de abstração, que
define o que está contido ou não na concepção sem nenhuma menção positiva, ou seja,
sem nenhuma espécie de consideração pelo objeto em sua alteridade. É obvio que esse
critério, apesar de ser importante, não poderia consistir, para Peirce, num critério
suficiente e efetivo de clareza posto que ele, tomado isoladamente ou em conjunto com
o primeiro critério, caminha em sentido contrário ao método científico de fixação de
crenças estabelecido anteriormente. Assim, Peirce conclui fazendo uma espécie de
síntese:
Nada de novo se pode aprender analisando definições. Não obstante,
nossas crenças existentes podem ser postas em ordem por esse processo,
e a ordem é um elemento essencial da economia intelectual, assim como
de qualquer outra. Pode-se reconhecer, por conseguinte, que os livros
estão certos em estipular a familiaridade com uma noção como sendo o
primeiro passo em direção à clareza de apreensão, e a definição dessa
noção como sendo o segundo. Mas ao omitir toda a referência a
qualquer perspicácia superior do pensamento, simplesmente refletiram
uma filosofia posta por terra há cem anos. Esse admiradíssimo
“ornamento da lógica” – a doutrina da clareza e distinção – pode ser
muito bonito, mas já está mais do que na hora de relegar à sala das
243
PEIRCE, 2008a, p. 61. 244
Ibidem, 2008a, p. 62.
89
curiosidades tal jóia antiga, e passarmos a usar algo mais adaptado aos
costumes modernos.245
Qual, então, seria o critério lógico suficiente para tornar as nossas idéias claras,
primeira lição que devemos exigir da lógica? É, exatamente, o critério que mais tarde
será conhecido como a máxima pragmática, enunciada nesse texto da seguinte forma:
Considere quais efeitos, que concebivelmente poderiam ter
consequências práticas, concebemos ter o objeto de nossa concepção.
Então, a concepção destes efeitos é o todo de nossa concepção do
objeto.246
Assim, o pragmatismo nasce como uma máxima lógica, como um método para
determinar significados de conceitos. Sua vantagem é, segundo Waal, que ele “relaciona
o significado diretamente ao processo de inquirição, em vez de impô-lo de fora sobre a
inquirição, como se fosse uma definição abstrata.”247
Em 1878 Peirce equacionava consequências práticas com experiências sensíveis:
“Nossa idéia de qualquer coisa é nossa idéia de seus efeitos sensíveis.”248
Ou seja, a
estratégia para se alcançar o significado de algo que é um conceito consiste em conceber
quais são os efeitos sensíveis do objeto da nossa concepção, efeitos que fazem a
diferença em nossas expectativas sobre o objeto em questão. O exemplo do diamante
serviu para clarificar esse ponto: dizer que um objeto, tal como um diamante, tem a
propriedade de ser duro, é dizer que ele não será arranhado por outras substâncias, por
isso se aplica a ele o conceito de dureza. O efeito sensível resultado da tentativa
245
PEIRCE, 2008a, p. 64. Pensamos ser o reconhecimento da importância, embora não suficiência, dos
critérios de clareza e distinção que se pode depreender dessa citação, que levou Renato Kinouchi, em uma
nota de rodapé de sua tradução da série “Ilustrações da Lógica da Ciência” (nota na página 62), a dizer
que Peirce não deve ser chamado de anticartesiano, mas sim de paracartesiano, posto ele reconhecer os
critérios de clareza e distinção como importantes, mas insuficientes e enunciar o seu critério, a máxima
pragmática, como sendo um acréscimo a esses dois. Não cremos ser esse um caminho correto de colocar
as coisas. Peirce é sim um pensador anticatersiano, uma vez que suas idéias de base caminham
exatamente em sentido oposto ao de Descartes, mas deve-se ressalvar como o fizemos em nossa nota 240,
que no âmbito do Pragmatismo, já que o que está em cheque é o método suficiente de clareza de idéias,
anticatersianismo não deve ser tomado como ausência de método, levando ao que hoje se chama de neo-
pragmatismo relativista, cujo exemplo mais comum é Richard Rorty. Nada está mais longe do
pensamento de Peirce do que isso. 246
EP 1.132. Essa é a tradução de Ibri, 1992, p. 96. Renato Kinouchi traduz de forma um tanto diferente,
a qual se cita como forma variante: “Considere-se quais efeitos que concebivelmente teriam atuações
práticas, os quais imaginamos que o objeto de nossa concepção possua. Então, nossa concepção desses
efeitos é o conjunto de nossa concepção do objeto.” Kinouchi, 2008, p. 73. 247
WAAL, 2007, p. 41. 248
Apud HAUSMAN, 1993, p. 40.
90
experimental de riscar o objeto concebido como duro, no caso o diamante, foi que ele
permaneceu sem ser arranhado. Conclusão: dureza é um conceito que prescreve que o
efeito sensível que obteremos caso tentemos arranhar objetos tidos como tendo a
propriedade de serem duros é que eles permanecerão sem ser arranhados. E não há mais
nada, além disso, no conceito de dureza:
A concepção completa dessa qualidade, tal como a de qualquer outra,
reside em seus efeitos concebíveis. Não há absolutamente nenhuma
diferença entre uma coisa dura e uma coisa mole enquanto não forem
postas à prova.249
Devemos interpretar através desse exemplo que Peirce reduzia os significados
dos conceitos a meros experimentos, sendo associado, numa leitura apressada, com os
positivistas? Não. Na verdade, mesmo nessa primeira formulação, a noção de efeitos
sensíveis envolvida é bem mais complexa do que parece.
Deve-se notar que a referência ao aspecto geral da máxima já se encontrava
presente na enunciação de 1878. No entanto, Peirce reconheceu que, equacionar
consequências práticas com experiências sensíveis poderia ser um tanto perigoso, caso
não entendessem o ponto central que estava por detrás dessa concepção, levando um
leitor apressado a julgar que o significado da máxima pragmática deveria ser buscado
exclusivamente nas experiências particulares, dado que experiências sensíveis se
referem sempre a particulares. Isso poderia ocorrer sobremaneira num leitor que não
tivesse percebido o papel das palavras “considere”, “concebivelmente”, “concebemos” e
“concepção”, na enunciação da máxima pragmática de 1878. Ibri pontua a importância
da presença dessas palavras citando uma nota explicativa da passagem em que Peirce
descreve a máxima:
Observe que nestas três linhas encontra-se “concebivelmente”,
“conceber”, “concepção”, “concepção”, “concepção”. Percebo que há
muitas pessoas que detectam a autoria de meus escritos não assinados; e
não duvido que uma das marcas de meu estilo pela qual elas o fazem é
minha excessiva relutância em repetir uma palavra. Este emprego por
cinco vezes das derivações de concipere deve, então, ter tido algum
249
PEIRCE, 2008, p. 75.
91
propósito. Em verdade ele teve dois. Um deles foi de que eu estava
falando de significado em nenhum outro sentido senão o de significado
intelectual. O outro foi evitar todo o risco de ser entendido como
tentando explicar um conceito por perceptos, imagens, esquemas, ou
por qualquer outra coisa senão conceitos. Portanto, não quero dizer que
atos, que são mais estritamente singulares que qualquer coisa, poderiam
constituir o propósito ou a própria e adequada interpretação de qualquer
símbolo.250
E, em seguida explica: “Parece ser nítida a posição de Peirce quanto à
generalidade do significado de um conceito...”251
O pragmatismo inicial, assim, já se
mostra como absolutamente ligado à generalidade, portanto, não reduzido às
particularidades meramente experimentais, embora essas constituam estágio importante
na sua estipulação.
5.2 O pragmatismo tardio
É exatamente para tornar mais precisa essa ligação da máxima lógica do
pragmatismo com a generalidade, que Peirce levou a cabo, a partir de 1903 com as
Conferências de Harvard sobre o Pragmatismo252
, passando pelos textos de 1905-1907
sob o título geral de Pragmaticismo253
, e se estendendo até o final de sua vida, aquilo
que se pode chamar de uma concepção mais estrita sobre o que se deve entender como
sendo a sua versão do pragmatismo, o pragmaticismo. A consideração das reflexões
maduras de Peirce sobre a máxima pragmática consolidará aspectos apontados na
abordagem do pragmatismo inicial e ao mesmo nos preparará para, num último
momento, efetuar uma síntese que mostrará como o pragmatismo configura aspecto
central de toda a arquitetura filosófica peirciana.
Para explicar esse importante aspecto da filosofia peirciana, nos limites desse
trabalho, escolheu-se, dentre as muitas possibilidades, o foco em passagens de um texto
250
Apud IBRI, 1992, p. 97. 251
Ibidem, p. 97 252
Harvard Lectures on Pragmatism. EP 2.133-241. Oferecer uma prova do Pragmatismo era um dos
objetivos centrais de Peirce, que se iniciou com essas conferências e durou até o fim de sua vida. Não
adentraremos nesse trabalho na questão das provas oferecidas por Peirce, sugerimos que o leitor consulte
sobre esse assunto os artigos: HOOKWAY, 2005 e HOOKWAY, 2008. 253
Pragmaticism. EP 2.331-433.
92
específico, a saber, um texto de 1905 chamado “O que é Pragmatismo”254
,
desenvolvendo-as em suas consequências gerais. Este é o texto em que Peirce
exatamente introduz o termo pragmaticismo em substituição ao termo pragmatismo,
com o objetivo de mostrar seu total afastamento em relação a outros pensadores, que
viam se chamando de pragmatistas e buscavam tornar o pragmatismo um princípio
especulativo de filosofia.255
Peirce, após explicar a atitude do experimentalista, em contraste com os
pensadores de formação livresca, diante do significado de um conceito diz:
Procurando, como qualquer outro homem desse tipo faria, formular
aquilo que ele aprovava, arquitetou a teoria segundo a qual uma
concepção, ou seja, o significado racional de uma palavra ou alguma
outra expressão se encontra, exclusivamente, na concepção da sua
influência concebível sobre a conduta da vida; assim, uma vez que é
óbvio que algo que não resulte de um experimento possa exercer
qualquer influência direta sobre a conduta, se alguém for capaz de
definir, com exatidão, todos os experimentos fenomênicos concebíveis
que a afirmação ou negação de um conceito possa implicar, teria, então,
a definição completa do conceito. 256
Essa passagem é uma reformulação da máxima pragmática anteriormente
descrita. Também aqui a palavra concebível tem importância fundamental para a correta
apreciação do significado do pragmaticismo tal qual Peirce o formulou. O que a palavra
concebível designa? Ela não designa o simples conceito, mas sim o conceito
esquematizado.257
Ou seja, designa todo um processo de esquematização que começa na
imaginação das consequências práticas de uma dada representação e se dirige, depois,
254
EP 2.331. 255
O termo “pragmatismo” só apareceu na forma impressa pela primeira vez em um ensaio de William
James intitulado “Concepções filosóficas e resultados práticos”, texto impresso de uma conferência
proferida em 26 de agosto de 1898 ante a União Filosófica da Universidade Berkeley. James usou o termo
como uma interpretação da máxima lógica formulada por Peirce em 1878. Cf. WAAL, 2007, p. 52. Foi a
partir de então que o termo foi popularizado, tendo sido usado para os propósitos mais distantes da
formulação inicial de Peirce. Vendo o termo reportado a ele em tal situação Peirce diz ironicamente no
texto: “Assim sendo, o autor, vendo o seu „pragmatismo‟ promovido a tal ponto, sentiu que é chegada a
hora de dar um beijo de adeus a esse seu filho, abandonando-o aos seus vôos mais altos; ao mesmo
tempo, para exprimir a definição original, ele anuncia o nascimento da palavra „pragmaticismo‟, a qual é
feia o bastante para estar ao abrigo de usurpadores.” EP 2. 334. O sufixo icismo na palavra pragmaticismo
significando, segundo Peirce, uma acepção mais estritamente definida de uma doutrina. Cf. EP 2.334. 256
EP 2. 332. 257
PEIRCE, 1998, nota 94, de autoria do tradutor Machuco Rosa.
93
ao mundo, buscando confirmação. Conceber é antecipar possibilidades gerais, gerando
assim mediações. O concebível está ligado, então, à experiência possível. Só pode haver
significado concebível de experiências possíveis. Esse é o caráter geral de todo o
conceito: ele é aplicável ao contínuo de possibilidades reais e não está reduzido ao caso
particular.258
Como isso se dá é o que pretendemos tornar explícito a seguir:
Um conceito só pode ser aplicado àquilo que possui ordem, e é essa ordem que
pode ser concebida, sob uma forma de terceiridade. O conceito expressa as relações de
ordem entre os objetos. Isso equivale a dizer que ele representa as regras gerais que
governam cada um dos objetos que compõem a classe total desses objetos. Assim, um
conceito representa a permanência de certos predicados. Vimos através do realismo, do
idealismo objetivo e do sinequismo, que a permanência representada no conceito está
nas coisas e não configura, assim, uma imposição da subjetividade humana aos
fenômenos, como querem os nominalistas. Assim, seria mais correto dizer que a
permanência, a ordem nos objetos é representável pelo conceito, e isso devido ao fato
de os objetos que possuem algum tipo de permanência serem inteligíveis e, portanto, de
alguma forma, conaturais à mente que os representa.
Ora, segundo a versão da máxima do pragmaticismo enunciada acima, a
representação conceitual de um objeto tem o poder de influenciar a conduta da vida. A
influência na conduta se dá porque o conceito procura sempre representar a conduta dos
objetos e representar a conduta de um objeto é sempre fazer uma previsão. Em outras
palavras, um conceito é uma forma de mediação que busca descrever o comportamento
futuro de um objeto que possui predicados permanentes. Conhece-se um objeto para que
ele deixe de nos objetar, diminuindo, assim, o seu caráter de segundidade.259
Conhecer
um objeto é conhecer o seu comportamento geral para que, sabendo como ele se
comportará no futuro, também saibamos como nos comportar diante dele. O
conhecimento que tenho sobre um objeto determina a minha conduta diante dele. Por
exemplo, se eu sei o que é um colete salva-vidas, saberei que devo colocar um sob o
meu corpo caso o navio em que esteja viajando começar a afundar.
De outro lado, saber como se comportar diante de um objeto é possuir um hábito
de conduta em relação ao objeto. Um hábito, assim, pode ser descrito como o resultado
interpretado dos significados de um conceito. O significado é um hábito260
. Do ponto de
258
Vê-se que o pragmatismo depende do sinequismo. 259
Para uma consolidação desse ponto, queira o leitor retornar ao tópico sobre as categorias. 260
Conferir ROSENTHAL, 1994, p.21.
94
vista lógico, um hábito é um processo de generalização, de natureza indutiva. Somando-
se a isso o ponto de vista pragmaticista, os hábitos podem ser conceituados como
generalizações de condutas permanentes, ou seja, de crenças estabelecidas. O hábito
tem, assim, a natureza do conceito. É por isso que pode ser dito que o significado de um
conceito aparece nos hábitos que ele origina; a conduta/hábito é como que um espelho
do conceito/crença. Em outras palavras, um conceito gera ações que, se permanecem
tornam-se hábitos; esses hábitos/ações podem ser concebidos numa descrição geral. Isso
é, grosso modo, o significado do que Peirce quis dizer ao afirmar que “o significado
racional de uma palavra ou alguma outra expressão se encontra, exclusivamente, na
concepção da sua influência concebível sobre a conduta da vida.”261
Um hábito é uma tendência para agir de certa maneira geral quando as ocasiões
surgirem. Em outras palavras, o hábito também está vinculado à idéia de futuro. Ou
seja, um significado geral se aplica à conduta humana não nesta ou naquela
circunstância, mas relacionado ao autocontrole que toda previsão contém para o futuro.
Trata-se, em suma, de um significado condicional direcionado para as possibilidades
reais do futuro. O significado de um conceito geral é uma espécie de prescrição, uma
espécie de receituário que descreve o que ocorrerá no futuro, caso sejam preenchidas
certas condições gerais. A previsão efetuada pelo conceito não requer que a atualidade
futura seja em algum sentido real agora, mas sim que as possibilidades presentes das
atualidades futuras sejam reais agora.262
O significado de um termo geral reside no futuro. Significa: o pragmaticismo
exige um “seria” (would-be) e não um “será” (will-be) ou um “têm sido” (have-been).
Ou seja, quando dizemos conhecer um objeto, não dizemos que o conhecemos apenas
como ele tem sido até agora, mas sim que o conhecemos na medida em que cremos que
os predicados com os quais o descrevemos permanecerão no futuro sendo
aproximadamente esses, salvo as possíveis mudanças em seu comportamento. Por
exemplo, saber fazer um bolo de chocolate é conhecer a sua receita, e a receita
prescreve certas ações a serem realizadas que valerão para confeccionar o bolo de
chocolate para qualquer momento no futuro, e que, se as propriedades dos ingredientes
necessários não sofrerem mudança repentina, a receita tende a funcionar no futuro.
Significa: o bolo se encontra potencialmente presente no conhecimento que tenho sobre
como fazê-lo no futuro. Em outras palavras, saber fazer um bolo não é uma atualidade,
261
EP 2.332. 262
Conferir ROSENTHAL, 1968, p.156.
95
mas uma potencialidade que tende a se atualizar no futuro, caso as condicionais
presentes na prescrição venham a se realizar. Isso quer dizer que o pragmaticismo exige
a realidade das três categorias ontológicas, conforme o realismo do autor tornou
explícito.
Por outro lado, existe, a par da generalidade, um segundo aspecto fundamental
do pragmaticismo, a saber, a necessária confirmação do conceito, nos casos particulares
que incorporam as regras gerais descritas pelo conceito. Em outros termos, o significado
geral deve ser procurado nas consequências praticas dele decorrentes, e essas devem ser
associadas ao particular.263
Para se descobrir o significado de um conceito é preciso
fazer experimentos sobre o objeto que ele descreve, como, por exemplo, o experimento
de tentar riscar o diamante do texto de 1878. Assim, vimos que o que um conceito
descreve não é meramente o comportamento particular dos objetos, mas sim, o
comportamento geral de tal classe de objetos; ora, com o experimento pretendemos
confirmar o que diz uma descrição geral, que é uma lei, nos casos particulares que a
incorporam.
Esse ponto se torna bem claro em trechos da resposta dada por Peirce à pergunta
de um hipotético interlocutor:
Questionador: ...você diz que o único significado que, para você,
qualquer asserção possui é que certo experimento resulta de certa
forma: e nada mais além do experimento entra no significado.
Pragmaticista: ... você fala de um experimento em si mesmo,
sublinhando „em si mesmo‟. Evidentemente você pensa cada
experimento como isolado de todos os outros. Não lhe ocorreu, como
podemos presumir, que, por exemplo, toda série conectada de
experimentos constitui um único experimento coletivo... Outra coisa: ao
representar o pragmaticista como fazendo o significado racional
consistir em um experimento (que você toma como sendo um evento no
passado) você claramente falha em capturar sua atitude mental. De fato,
não é em um experimento, mas no fenômeno experimental que o
significado racional consiste... E não esqueça de que a máxima
pragmaticista nada diz acerca de experimentos singulares ou fenômenos
experimentais singulares (pois aquilo que é condicionalmente
263
Conferir IBRI, 2000b, p. 31.
96
verdadeiro in futuro dificilmente pode ser singular), mas somente fala
de tipos gerais de fenômenos experimentais.264
O experimento é fundamental no processo que resulta em conhecimento. Uma
teoria visa explicar um dado fenômeno, essa teoria realmente descreve o fenômeno?
Temos que perguntar para ele. Para Peirce, a última palavra é sempre do objeto. Como
perguntamos algo para um fenômeno? Fazendo experimentos com ele. Fenômeno
experimental é o conjunto geral desses experimentos ininterruptos. Dizemos isso
porque, como vimos com o sinequismo, não se trata meramente de uma pluralidade de
experimentos, isso não configura um processo contínuo, mas sim de um processo
experiencial evolucionário, direcionado sempre para o futuro indefinido, mas cujas
instâncias são as pluralidades de experimentos particulares, que capturam as
determinações que incorporam as regras gerais, sem as esgotar. Só o fenômeno pode
dizer, através da maneira como ele reage aos experimentos que fazemos sobre ele, se a
teoria de fato prevê aproximadamente o seu comportamento ou não. Isso equivale a
dizer que uma teoria, que é uma descrição geral, deve estar submetida à realidade, ou
seja, o que ela diz deve ser confirmado no mundo, fenomenologicamente. Aqui, vemos
aparecer de novo o caráter corretivo da experiência na confirmação ou negação de um
conceito. Significa: a experiência dirá se haverá aderência entre os fatos e as teorias.265
Se houver aderência, a teoria representa parcialmente o objeto e tenderá no caminho
evolucionário a representá-lo cada vez melhor, mas nunca em sua totalidade.266
Caso
não haja aderência, é sinal de que devemos buscar por outra teoria, começando assim
um novo processo heurístico de busca pelo conhecimento.
Os resultados experimentais são os únicos resultados que podem afetar a conduta
humana267
. Assim, completa-se o significado epistemológico da máxima do seguinte
modo: o significado de um conceito deve sempre estar associado à generalidade268
;
dessa forma, uma concepção esquemática, que é o conceito concebível, equivale a uma
prescrição geral; uma prescrição geral, diz que, dadas certas circunstâncias
experimentais, tais e tais consequências aproximadamente se seguiriam (woud-be);
logo, pode-se dizer que um conceito é uma representação dos fenômenos cujo
264
EP 2.339-340. 265
Conferir IBRI, 1992, capítulo 6. 266
Dado o caráter indeterminado do próprio objeto, conforme evidenciou o indeterminismo ontológico e
o falibilismo epistemológico do autor. 267
EP 2.340. 268
Conferir IBRI, 2000b, p.31.
97
significado está totalmente contido nas consequências experimentais efetivas dele
decorrentes ou, dito de outro modo, a totalidade das concepções resultantes de
experimentos equivale à total significação do conceito. É por isso que Peirce pode na
sequência afirmar que:
[...] assim, uma vez que é óbvio que algo que não resulte de um
experimento possa exercer qualquer influência direta sobre a conduta,
se alguém for capaz de definir, com exatidão, todos os experimentos
fenomênicos concebíveis que a afirmação ou negação de um conceito
possa implicar, teria, então, a definição completa do conceito. 269
Teoria e experiência, em Peirce, não estão apartadas, mas ao contrário,
encontram-se integradas uma na outra, sendo esse um dos mais notáveis corolários da
máxima pragmática. O pragmaticismo não aceita a separação entre filosofia e vida.
O pragmaticismo, assim, pode ser lido como uma máxima lógica que prescreve
que os hábitos, que são sempre gerais, possuem consequências práticas experimentais e,
uma vez que qualquer prescrição geral só pode ser verificada nos fatos particulares, o
significado de um conceito será sempre uma relação de necessidade entre o geral e o
particular.270
Esse é um ponto delicado e devemos entender muito bem essa relação para
não sermos induzidos a erro. Ao mesmo tempo, o correto entendimento dessa relação
fará surgir o significado mais profundo do pragmaticismo numa síntese que mostrará
que esta máxima é muito mais que uma mera regra de lógica para clarificar idéias e está,
assim, estritamente ligada a toda arquitetura filosófica peirciana.
5.3 O pragmatismo e a arquitetura filosófica peirciana.
Ibri afirma: “Em verdade, o que, então suporta logicamente a máxima do
pragmatismo é a pressuposição de que deve haver uma relação de necessidade entre o
geral e o particular.”271
Depois de fazer notar que o que está por detrás dessa afirmação
269
EP 2. 332. 270
Ibidem, pg. 32. 271
IBRI, 2000b, p.32.
98
é a estrutura ontológico-categorial de Peirce272
, Ibri esclarece em que sentido deve-se
entender essa relação de necessidade entre o geral e o particular:
Mercê deste enfoque, cabe destacar que não pode haver relação de
estrita necessidade lógica entre significado e consequências práticas,
haja vista a presença sempre marcante da primeiridade no interior da
terceiridade, rompendo a estrita dedutividade na relação entre o geral e
o particular. Por conseguinte, a ação engendrada pelo conceito não
ocorre estritamente segundo o que dele possa decorrer dedutivamente.
Deve, todavia, haver um vínculo entre conceito como antecedente e
ação como consequente, de tal modo que a terceiridade da significação
seja passível de ser identificada na instância da conduta, conquanto esta
possa e deva estar permeada pela erraticidade típica dos desvios da
experiência em relação ao plano teórico.273
Essa passagem se mostra extremamente esclarecedora, apontando que a relação
de necessidade entre o geral e o particular não é de tipo causal, do tipo: dada tal ação,
segue-se, necessariamente, tal e tal efeito (tal posição levaria em última instância a um
tipo de determinismo epistemológico que contraditaria o espaço ontológico reservado
por Peirce aos fenômenos governados pelo acaso), mas trata-se, sim, de uma relação
onde o geral aparece figurado274
no particular. Ou seja, um conceito geral,
necessariamente deve aparecer concretizado na experiência particular, numa existência.
Fenomenologicamente, isso quer dizer que o significado da terceiridade é a forma como
ele aparece na segundidade.275
Isso é o que permite ao pragmaticismo identificar
consequências práticas com consequências experienciáveis.276
No entanto, esse aparecer
no particular não deve ser tomado como um fim, o que levaria à redução do significado
às instâncias particulares277
, mas sim como um meio para a evolução contínua do
272
“... as categorias se entrelaçam pela confluência da generalidade da terceiridade e da primeiridade na
particularidade da segundidade, ou, em outras palavras, pela simultânea concreção singular de
necessidade e possibilidade, como potências, em ato.” IBRI, 2000b, p.32. 273
IBRI, 2000b, p.32. 274
Ibri usou nesse artigo esse termo “não peirciano”, oriundo de Schelling, como recurso pedagógico
para auxiliar o entendimento de como ocorre a relação entre geral e particular no seio do pragmaticismo
peirciano. IBRI, 2000b, p. 32. 275
Conferir IBRI, 1992, capítulo 6. Da mesma forma, a primeiridade e a segundidade, quando tornadas
objeto de uma ciência, no caso a Lógica, também possuem significação: o significado da segundidade é a
reação numa existencialização; o significado da primeiridade é pura possibilidade. 276
Conferir IBRI, 1992, p.101. 277
Esse seria o ponto que se tornou predominante no pragmatismo divulgado erroneamente.
99
propósito racional do universo, que como vimos, consiste no único bem admirável em si
mesmo.278
Assim, Peirce pode afirmar que o traço mais patente da máxima “foi ter
reconhecido uma ligação inseparável entre a cognição racional e a finalidade
racional.”279
Na fenomenologia, assinalou-se o fato de as categorias se aplicarem
indiscriminadamente ao lado interno e externo da experiência. Ora, Peirce afirma que:
“É o mundo externo que observamos diretamente. O que se passa internamente apenas
sabemos pelo modo como ele é refletido em objetos externos.”280
As categorias, sendo
as formas gerais de toda a experiência possível, tem livre fluxo entre a interioridade e a
exterioridade. É por isso que todo conhecimento que pretenda ser um diálogo com os
objetos deve começar pela fenomenologia. Dizer que conhecemos o lado interno pela
forma exterior com a qual este aparece significa, em última instância, que somente
podemos conhecer os hábitos, as condutas permanentes dos fenômenos que se mostram
externamente de alguma maneira sob uma forma de terceiridade. Nada podemos saber
das coisas que não mostram externamente algum tipo de permanência, configurando
seus predicados. Não há coisas-em-si incognoscíveis.281
O conceito, vimos, é sempre
geral e o geral, tanto o necessário (terceiridade) quanto o possível (primeiridade) do
ponto de vista modal, nunca é observável diretamente, mas sim apenas pode ser inferido
pela forma como aparece concretizado nas suas consequências práticas. Por exemplo:
não se conhece a dureza em si, mas somente o comportamento externo dos objetos que
estão sob a classe dos objetos aos quais se aplica o conceito de dureza, a saber, que eles
não são arranhados por outras substancias. Daí a importância do experimento particular,
embora esse não esgote o significado do conceito geral, cuja potencialidade se mantém
no futuro indefinido.
Configura-se, assim, uma dimensão ontológica da máxima pragmaticista que Ibri
caracterizou magistralmente numa passagem que merece transcrição na íntegra:
Toda arquitetônica do autor, aproximando sujeito e objeto, leva-nos a
pensar que o Pragmatismo não se confina a uma regra lógica de estrito
âmbito epistêmico, mas aplica-se, também, à própria estrutura do
mundo. Na medida mesma em que a doutrina, em síntese, se traduz no
278
Ver tópico sobre as Ciências Normativas. 279
EP 2.333. 280
Apud IBRI, 1992, p.101. 281
Sobre esse ponto, conferir IBRI, 1992, p. 108.
100
vínculo lógico entre o geral e o particular, e reconhecendo-se a
generalidade na realidade da primeira e terceira categoria, pode-se dizer
que o Pragmatismo, no seu matiz metafísico, configura-se como a
relação entre a primeiridade e a terceiridade com a factualidade
existencial da segundidade. Assim, a partir destas considerações, parece
ser possível reenunciar a máxima da doutrina, não mais sob a ótica da
determinação do significado que impregna os conceitos na sua
positividade, mas, antes, sob o viés da determinação da realidade de
entidades gerais ou contínuas. Uma possibilidade de enunciação da
máxima seria: A totalidade da manifestação fenomênica de um
continuum perfaz sua realidade; duas outras formas metafísicas da
máxima poderiam, também, ser: um continuum de possibilidades ou de
necessidade perfaz sua realidade na totalidade de sua concreção
existencial, ou o ser de um continuum é dado pela totalidade de sua
manifestação fenomênica, ou seja, pela sua cognoscibilidade.282
O que Ibri assim propõe é que o Pragmatismo não é meramente uma máxima
lógica, mas também possui uma dimensão ontológico/metafísica cujo correto
entendimento exige familiaridade com todo o arcabouço teórico do autor, desde a
Fenomenologia, passando pelas Ciências Normativas, pela Metafísica, pelo
Indeterminismo Ontológico, pelo Evolucionismo, pelo Falibilismo, pelo Idealismo
Objetivo e pelo Sinequismo, sem nos esquecermos da Semiótica, ainda por ser
considerada. Essa dimensão mais profunda do pragmaticismo configura ponto central
para o entendimento da arquitetura filosófica do autor e, a nosso ver, é crucial para a
abordagem de todo e qualquer tema específico na filosofia de Peirce. Pois, qualquer
tema específico configura um conceito, logo esse conceito, que é um geral, deve
aparecer no particular, aparecer pelo lado de fora, ou seja, ele deve ser confirmado
experimentalmente no mundo atual ou ser possivelmente concebível. Assim, perguntar
em que consiste um tema específico em Peirce, equivale a perguntar se esse tema possui
significado pragmático no sentido profundo que acabamos de caracterizar.283
282
IBRI, 1992, p.110. 283
Esse aspecto crucial deve estar guardado em mente durante toda a pesquisa futura que pretendemos
levar a cabo sobre o tema a imortalidade do homem em Charles Sanders Peirce.
101
6. A SEMIÓTICA
Pretendemos com este capítulo proporcionar ao leitor um ferramental teórico
mínimo sobre semiótica, que torne possível uma futura reflexão acerca da imortalidade
da alma à luz da arquitetura filosófica peirciana. Não pretendemos efetuar uma
descrição minuciosa, posto este trabalho não ser um trabalho sobre semiótica. Dessa
forma, o vasto campo da semiótica peirciana, ainda hoje em crescimento em muitas
áreas do pensamento humano, sobretudo na área de Comunicação, não será de maneira
nenhuma esgotado. Também não pretendemos fazer uma descrição cronológica da
semiótica ao longo da obra de Peirce, posto que isso também fugiria ao escopo deste
trabalho, mas sim procuraremos tomar as descrições gerais sobre o tema que são
mantidas ao longo dos seus escritos sem prejuízo de compreensão. Assim, o que
faremos será um recorte nesse vasto arsenal de possibilidades, um recorte que como
qualquer outro é injusto para com o Todo, mas que é suficiente para os nossos
propósitos. Nosso objetivo principal é efetuar uma descrição do papel que o símbolo
exerce dentro da semiótica geral do autor, devido ao fato de este ser o seu ponto de
partida para uma reflexão sobre a imortalidade do homem. Dessa forma, o nosso
caminho será o seguinte: num primeiro momento faremos uma breve introdução ao que
se deve entender por Semiótica, Semiose e Signos em Peirce; num segundo momento
abordaremos os chamados três correlatos do processo de semiose peirciana, a saber, o
signo ou representamen, o objeto e o interpretante; o terceiro momento será o de
descrever sucintamente as três principais tricotomias de signos segundo Peirce, onde a
noção de símbolo, que pertence à segunda tricotomia, será abordada de forma geral. O
quarto e último momento será dedicado à discussão de alguns aspectos peculiares do
símbolo que culminarão na afirmação de sua possível imortalidade.
6.1 Semiótica, Semiose e Signos.
O que Peirce entendia por Semiótica? Semiótica, segundo Peirce, é:
[...] a quase-necessária, ou formal, doutrina dos signos. Descrevendo a
doutrina como “quase-necessária”, ou formal, quero dizer que
102
observamos os caracteres de tais signos e, a partir dessa observação, por
um processo a que não objetarei denominar Abstração, somos levados a
afirmações, eminentemente falíveis e por isso, num certo sentido, de
modo algum necessárias, a respeito do que devem ser os caracteres de
todos os signos utilizados por uma inteligência “científica”, isto é, por
uma inteligência capaz de aprender através da experiência.284
Vemos que Peirce, não podia ser diferente, procurou pensar a semiótica como
uma ciência positiva, ou seja, vale a pena lembrar, uma ciência que deve confirmar as
suas hipóteses, expressas por proposições de tipo categórico, no mundo fenomênico.
Assim, apesar de o processo que origina as proposições desta ciência receber o nome de
abstrativo, essa abstração é de um tipo peculiar: “Quanto a esse processo de abstração,
ele é, em si mesmo, uma espécie de observação.”285
Esta espécie de observação é
chamada por Peirce de observação abstrativa e, na sequência do texto é explicada de
forma a não deixar dúvidas:
A faculdade que denomino de observação abstrativa é perfeitamente
reconhecível por pessoas comuns mas, por vezes, as teorias dos
filósofos dificilmente a acolhem. É experiência familiar a todo ser
humano desejar algo que está totalmente além de seus recursos
presentes, e complementar esse desejo com a pergunta “Meu desejo
dessa coisa seria o mesmo se eu dispusesse de amplos meios de realizá-
lo?” Para responder a essa pergunta, ele examina seu interior e, ao fazer
isso realiza aquilo que denomino observação abstrativa. Faz, na
imaginação, uma espécie de diagrama mínimo, um esboço sumário,
considera quais modificações o hipotético estado de coisas exigiria que
fossem efetuadas nesse quadro e a seguir examina-o, isto é, observa o
que imaginou, a fim de saber se o mesmo desejo ardente pode ali ser
discernido. Por tal processo, que no fundo se assemelha muito ao
raciocínio matemático, podemos chegar a conclusões sobre o que seria
verdadeiro a respeito dos signos em todos os casos, conquanto que fosse
científica a inteligência que deles se serviu.286
284
PEIRCE, 2008, p. 45. 285
Ibidem, p 45. (itálicos meus). 286
PEIRCE, 2008, p. 45. (itálicos do autor).
103
Em outras palavras, trata-se de olhar para o mundo e ver como se comportam os
signos e descrevê-los, tomando por base a forma como aparecem na experiência e
efetuar experimentos hipotético-abstrativos na imaginação, para, a partir daí, chegar-se
a definições que seriam válidas, mas não necessárias, acerca de todos os possíveis
signos utilizados por uma mente científica.287
Obviamente, a próxima pergunta que praticamente se coloca por si mesma é:
afinal o que é um signo? No entanto, antes de respondermos a essa pergunta,
ressaltemos um último aspecto sobre a semiótica peirciana, a saber, a ampla gama de
significação que ela pretende, enquanto ciência positiva, abarcar. A semiótica, tal qual a
entendeu Peirce, não se reduz somente a observação, descoberta e descrição da
linguagem verbal, mas também de toda e qualquer forma de linguagem, desde a mais
primitiva até a mais complexa, de forma a ser aplicável inclusive a processos naturais
que de uma forma ou de outra geram algo da natureza da significação.288
Assim, pode-
se dizer que a semiótica é a ciência geral de todas as linguagens possíveis.289
O seu
campo é o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno que produza
significação e sentido. Pretendendo tornar claro este sentido amplo de se compreender a
semiótica, Peirce, num outro momento, a definiu do seguinte modo: “Semiótica é a
doutrina da natureza essencial e variedades de semiose possível.”290
O que é semiose? Segundo Peirce, semiose é:
[...] a ação, ou influência, que é, ou envolve, a cooperação entre três
elementos, a saber, o signo, seu objeto e seu interpretante; está
influência tri-relativa, não sendo em nenhum sentido, resolvível em
ação entre pares. Shmeiwsij, em grego do período romano, próximo ao
tempo de Cícero, se eu me recordo corretamente, significava quase que
287
Ora, como este também é o escopo da lógica, Peirce pôde dizer: “Em seu sentido geral, a lógica é,
como acredito ter mostrado, apenas outro nome para semiótica.” (ibidem, p. 45) Assim, semiótica e lógica
são identificadas no interior da arquitetura filosófica peirciana. Peirce não via a lógica como reduzida à
silogística ou à lógica meramente dedutiva. Tendo contribuído de forma abundante e original no
desenvolvimento da lógica modal, lógica dos relativos, lógica matemática etc. é com esta lógica em
sentido amplo que a semiótica é identificada. 288
Tal como podemos observar no mundo animal, por exemplo, na comunicação através de sons e gestos.
João Queiros oferece no capítulo 5 de seu livro, „A semiose segundo C. S. Peirce‟, uma brilhante análise
dos processos semióticos de vocalização em macacos-verdes. Conferir QUEIROZ, 2004, cap. 5. 289
Conferir SANTAELLA, 2004. Ver também a definição de Winfried Nöth: “a ciência dos signos e
dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura.” NÖTH, 2003, p. 17. Nöth
ressalva, logo em seguida, que nem todas as escolas aceitam essa definição mais ampla, preferindo pensar
a ciência dos signos como aplicável somente à linguagem humana convencional. 290
CP 5.488.
104
qualquer tipo de signo; e a minha definição confere a qualquer coisa que
assim aja o título de “signo”.
Podemos concluir duas coisas a partir desta definição de semiose. A primeira
conclusão proporciona uma primeira resposta à pergunta “O que é afinal um signo?”, a
saber: Signo, em sentido amplo, é o mesmo que semiose. A segunda conclusão é que a
semiose ou Signo em sentido amplo envolve uma relação irredutivelmente triádica entre
três elementos, chamados de correlatos.291
Estes três correlatos são o signo, em seu
sentido estreito292
, o objeto e o interpretante. Sintetizando, temos outra definição
peirciana:
Um Signo é um Cognoscível que, por um lado, é determinado (i.e.,
especializado, bestimmt) por algo que não ele mesmo, denominado de
seu Objeto, enquanto, por outro lado, determina alguma Mente concreta
ou potencial, determinação esta que denomino de Interpretante criado
pelo Signo, de tal forma que essa Mente Interpretante é assim
determinada mediatamente pelo Objeto.293
O Signo em seu sentido amplo é uma relação triádica, relacional e cognoscível.
Esta relação triádica ocorre entre o signo em seu sentido estreito, que é um primeiro, o
objeto, que é um segundo e o interpretante, que é um terceiro. Certamente o que temos
aqui é uma aplicação das três categorias ao processo de classificação semiótica. Ou seja,
as descrições e divisões tricotômicas que ocorrem no interior da semiótica peirciana são
regradas pelas três categorias fenomenológicas e reais tal qual explicamos nos
respectivos capítulos.294
291
Um Signo, neste sentido amplo, envolve necessariamente uma relação entre três correlatos. No
entanto, Peirce também falou sobre signos que não chegam a exibir essa relação completamente triádica,
chamando-os de signos degenerados. Não vamos abordar aqui esses tipos de signos. Queira o leitor
recorrer, por exemplo, à PEIRCE, 2008, p. 58. 292
Peirce utiliza o termo “signo” em dois sentidos, um amplo e outro mais estreito. No sentido amplo,
signo está identificado com a semiose e, portanto, se refere a uma relação genuinamente triádica. No
sentido estreito, signo equivale ao primeiro correlato da relação. Como normalmente o sentido em que
Peirce utiliza o termo fica claro, não optamos por utilizar nenhum tipo de diferenciador. 293
PEIRCE 2008, p. 160. 294
Os capítulos 2.1 e 2.3.
105
6.2 O signo, o objeto e o interpretante
Cabe agora tratarmos, em seus aspectos essências, das funções desempenhadas
por cada correlato e suas relações de determinação.
O signo ou representamen é o primeiro correlato da relação triádica que produz
a semiose. Assim:
Um signo ou representamen, é algo que, sob um certo aspecto ou
medida, está para alguém em lugar de algo. Dirige-se a alguém, isto é,
cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo
mais desenvolvido. Este signo que ele cria, chamo de o interpretante do
primeiro signo. O signo está no lugar de algo, seu objeto. Está no lugar
desse objeto não em todos os seus aspectos, mas apenas com referência
a uma espécie de idéia, que às vezes chamei de o fundamento do
representamen.295
Em seu sentido estreito, o signo ou representamen é uma espécie de substituto
de algo. Ou seja, está sob um certo modo no lugar de algo outro e, esse estar no lugar de
algo outro tem um efeito de algum tipo para uma mente qualquer de acordo com o
modo com o qual este signo se refere ao objeto. O signo é uma representação, por isso
recebe também o nome de representamen. Ele existe para produzir um efeito através da
sua função na relação triádica. O signo tem função mediadora entre o objeto e o
interpretante. Ele está no lugar do objeto, e esse é o sentido exato de substituir, para
uma mente qualquer que o interprete como tal. Dito de outro modo:
“Minha definição de representamen é a seguinte: um representamen é o
sujeito de uma relação triádica de um segundo, chamado de seu Objeto,
para um terceiro, chamado de seu Interpretante, essa relação triádica
sendo tal que o representamen determina seu interpretante a ficar na
mesma relação triádica para com o mesmo objeto para algum
interpretante.”296
295
CP 2.228. 296
CP 1.541.
106
O signo possui três referências: primeiro, é signo sob algum aspecto ou
qualidade que o liga ao seu objeto; segundo, é signo para algum objeto com o qual
possui algum tipo de ligação em um pensamento; terceiro, é signo para algum
pensamento que o interpreta como tal. Referência ao fundamento, referência ao objeto e
referência ao interpretante. Em termos categoriais, o signo possui aspectos de
primeiridade (fundamento), segundidade (objeto) e terceiridade (interpretante).297
As
tricotomias de signos surgirão conforme cada uma destas referências e suas variações se
tornarem o foco pelo qual se considera um signo.
O objeto é o segundo correlato do processo de semiose. Tomado abstratamente,
ele é aquilo que é substituído pelo signo no processo de significação. O objeto é algo
diverso do signo. É um outro que não o signo e determina o signo. Cabe lembrar aqui
que „objeto‟ pode significar desde uma coisa material presente no mundo perceptível até
entidades mentais de tipo complexo, tais como os imaginários ou os inimagináveis num
certo sentido.298
Assim, qualquer coisa pode ser o objeto em um processo de semiose,
desde um particular até uma classe geral de coisas denotadas por um conceito e até
mesmo uma lei, na medida mesma em que esteja numa relação triádica entre o signo e o
interpretante.
Peirce distinguiu dois tipos de objetos: o objeto imediato e o objeto dinâmico.
Deve-se notar que não se trata de dois objetos diferentes, mas sim de dois aspectos de
um e mesmo objeto. O objeto imediato é o objeto tal qual representado no processo de
semiose, ou seja, numa relação de interpretação. Portanto, trata-se de um objeto inerente
ao processo de semiose. O objeto dinâmico, por outro lado, é o objeto real,
independente da semiose. Nas palavras de Peirce:
Quanto ao Objeto, pode ser o Objeto enquanto conhecido pelo Signo, e,
portanto uma Idéia, ou pode ser o Objeto tal como é,
independentemente de qualquer aspecto particular seu, o Objeto em
relações tais como seria mostrado por um estudo definitivo e ilimitado.
Ao primeiro destes denomino Objeto Imediato, ao último, Objeto
Dinâmico. Pois o último é o objeto que a ciência da Dinâmica (aquilo
que atualmente se chamaria de ciência „Objetiva‟) pode investigar.299
297
O Signo em sentido amplo, em termos categoriais, está associado à terceiridade. 298
PEIRCE, 2008, p.46. 299
PEIRCE, 2008, p. 162.
107
O objeto dinâmico está, portanto, fora do processo de semiose, e, em última
instância, ele é o objeto a que nossos pensamentos devem se conformar, ele é o objeto
real. Outro aspecto do objeto que é importante ressaltar é que o objeto nunca estará
completamente representado pelo signo. O signo só pode representar o objeto segundo
determinados aspectos. Esta é a versão semiótica do falibilismo.
O Interpretante constitui o terceiro correlato do processo de semiose e, tomado
abstratamente, consiste no seu resultado significante. Em um de seus escritos de
juventude (1866), Peirce o definiu como “uma representação mediática que representa o
relato (signo) como sendo uma representação do mesmo correlato (o objeto) que a
representação mediática ela mesma representa [...] cumpre a função de um intérprete
que diz que um estrangeiro diz a mesma coisa que ele mesmo diz”300
Note-se que esta
função pode ocorrer em qualquer processo significativo e não deve ser tomada como
sendo de caráter meramente subjetivo. Assim, não se deve confundir interpretante com
o intérprete de qualquer relação triádica. “O interpretante é uma propriedade objetiva
que o signo possui em si mesmo, haja um ato interpretativo particular que a atualize ou
não”301
. Em outros termos, o interpretante pode ser lido como o efeito virtual ou atual
da semiose.302
O interpretante é outro signo, igual ou mais evoluído que o primeiro
correlato. Isto significa que o interpretante se torna o primeiro correlato de outro
processo de semiose, acerca do mesmo objeto, e assim sucessivamente. Este aspecto do
interpretante instaura o que se chama de semiose ilimitada. Ou seja, a sequência da
semiose é sempre possível, dado que não se pode falar em „primeiro‟ nem em „último‟
signo num processo de semiose. Apenas pode haver a interrupção, mas nunca uma
finalização completa e absoluta da série de interpretantes sucessivos.
Segundo Peirce, há três tipos principais de interpretantes303
de acordo com três
tipos de efeitos que podem resultar de um processo de semiose. O primeiro é o
interpretante imediato, que pode ser descrito como as qualidades de impressões
potenciais que a semiose produzirá, ou que se espera que produzirá sem que nenhuma
espécie de reação ou reflexão se lhe acrescente para que produza tal efeito. Em outros
300
W 1.323 (itálicos meus). 301
SANTAELLA, 2004a, p. 63. 302
Vimos com o Pragmatismo que esse efeito tem o poder de afetar a conduta, gerando hábitos e
mudanças de hábitos. 303
Além desta divisão dos interpretantes em imediato, dinâmico e final, Peirce efetuou outra divisão, a
saber, interpretantes emocional, energético e lógico, associados a sentimentos, ações e mudanças de
hábitos, respectivamente. Ver CP 5.475. Essa divisão não será considerada neste trabalho.
108
termos, o interpretante imediato é a interpretabilidade peculiar de uma semiose
qualquer, sem que seja considerada uma mente que efetivamente venha a ser a instância
do efeito produzido. O segundo tipo de interpretante é o interpretante dinâmico, que
designa o efeito efetivamente produzido pela semiose numa mente qualquer. Deve ser
notado que o efeito da semiose designado pelo interpretante dinâmico se refere a um
efeito particular efetivo. Ou seja, se refere àquilo que é experimentado efetivamente
num ato de interpretação e é diferente em cada ato, do efeito que qualquer outro ato
poderia produzir em outra ou na mesma mente. Por fim, o terceiro e último tipo de
interpretante é designado como interpretante final, que consiste no efeito geral ao qual
um processo de semiose finalmente chegaria se levado longe o suficiente para fazer
surgir uma interpretação verdadeira. Em suma, o interpretante imediato é uma
possibilidade formal do signo; o interpretante dinâmico é uma atualização do
interpretante imediato em um ato particular produzido pelo signo em uma mente
particular; o interpretante final é o interpretante ideal, ao qual a semiose chegaria sob
condições favoráveis carregadas suficientemente longe.
Mediante a apresentação dos três correlatos, parece ter-se evidenciado que o
signo, o objeto e o interpretante possuem uma relação de determinação entre si. Assim,
o objeto determina o signo (relativamente ao interpretante); o signo determina o
interpretante (relativamente ao objeto) e o objeto determina o interpretante
(relativamente ao signo). A determinação do signo pelo objeto é essencial para o
realismo peirciano. Por outro lado, os signos possuem o poder de criar significado ao
determinar seus interpretantes.304
6.3 As três principais tricotomias de Signos.
Consideramos acima os correlatos do processo de semiose da forma a mais
abstrata possível. O objetivo foi apenas introduzir as suas funções no processo de
semiose de uma forma geral. A semiose genuína, no entanto, se encontra na relação
triádica irredutível, onde um signo, como primeiro correlato, traz um objeto, segundo
correlato, para uma relação com um interpretante, terceiro correlato. Agora,
304
Esta característica será essencial para, mais abaixo, se entender a natureza dos símbolos.
109
consideraremos a relação entre os correlatos do processo de semiose sob três aspectos
bem definidos, a saber:
1) O signo considerado em si mesmo.
2) O signo considerado em relação ao seu objeto dinâmico.
3) O signo em relação ao seu interpretante final.
Estes três aspectos, divididos de acordo com as variações próprias das três
categorias que ocorrem em seu interior, geram as três principais tricotomias ou nove
modalidades de signos com as quais nos ocuparemos neste trabalho e que passamos a
apresentar sucintamente:305
Considerados em si mesmos os signos podem apresentar o caráter de serem:
a) Meras qualidades
b) Existências concretas
c) Leis gerais
Considerados em relação aos seus objetos dinâmicos os signos podem estar com eles
conectados:
a) Em virtude de alguma similaridade
305
Uma divisão dos signos em tricotomias é uma apreensão abstrativa que toma os signos isoladamente
para melhor descrevê-los. A descrição do modo de ser de um signo depende, assim, do ponto de
referência que se toma. Isto quer dizer que, normalmente, os signos que podemos observar
fenomenologicamente possuem características de todas as classes de signos. Isto também quer dizer que
um signo não pertence exclusivamente a uma classe e mais ainda, um fenômeno não pertence
exclusivamente a um tipo de signo. Levaremos em consideração neste trabalho apenas aquelas que
consideramos serem as três principais tricotomias e que constituem o ferramental mínimo para a futura
reflexão acerca da imortalidade da alma. No entanto, além destes três aspectos sob os quais o signo pode
ser considerado, existem outros sete aspectos, oriundos do fato de os signos possuírem, conforme
apontado acima, dois objetos (dinâmico e imediato) e três interpretantes (imediato, dinâmico e final).
Assim, dez é o total de aspectos principais sob os quais um signo pode ser considerado. A lista completa
seria: 1) de acordo com o modo de apreensão do signo em si mesmo; 2) de acordo com o modo de
apresentação do objeto imediato; 3) de acordo com o modo de ser do objeto dinâmico; 4) de acordo com
a relação do signo com seu objeto dinâmico; 5) de acordo com o modo de apresentação do interpretante
imediato; 6) de acordo com o modo de ser do interpretante dinâmico; 7) de acordo com a relação do signo
com o interpretante dinâmico; 8) de acordo com a natureza do interpretante final; 9) de acordo com a
relação do signo com o interpretante final e 10) de acordo com a relação triádica do signo com seu
objeto. O original pode ser conferido em CP 8.344, onde a diferença é que Peirce chamou o interpretante
final, neste texto, pelo nome de interpretante normal. (Destacamos as três tricotomias com as quais nos
ocuparemos neste trabalho). Em cada um destes dez aspectos ocorrem as variações oriundas das três
categorias, gerando assim uma totalidade de 30 modalidades de semiose. Combinando as trinta
modalidades entre si, a partir de determinações possíveis entre os correlatos de cada uma, Peirce chegará
a 66 classes de signos. Peirce não trabalhou sobre todas essas classes ao longo de sua obra. Para o leitor
que se interessar em aprofundar um pouco mais a classificação sistemática dos signos em Peirce,
recomendamos: SANTAELLA 2004a; SILVEIRA 2007.
110
b) Em virtude de uma conexão existencial
c) Em virtude de uma lei ou regra geral
Considerados em relação aos seus interpretantes podem ser representados como sendo
signos de:
a) Possibilidades
b) Fatos
c) Leis
6.3.1 Qualissignos, sinsignos e legissignos.
A primeira tricotomia a ser considerada é a que considera os signos em si
mesmos, ou seja, de acordo com o caráter intrínseco ou fundamento que cada signo
possui, para funcionar como tal. De acordo com essa tricotomia, os signos são divididos
em qualissignos, sinsignos e legissignos.
Peirce define Qualissigno da seguinte forma: “Um Qualissigno é uma qualidade
que é um signo. Não pode realmente atuar como um signo até que se corporifique; mas
está corporificação nada tem a ver com seu caráter como signo.”306
O qualissigno está
associado à primeiridade. Qualissignos comunicam qualidades. Uma qualidade tomada
em si é simplesmente o que é, ou seja, é um primeiro sem relação com nada mais.
Porém, se essa qualidade se tornar objeto de uma comparação ou estiver corporificada
em algum existente concreto, e, assim, funcionar como um signo, ou seja, como um
primeiro correlato de uma relação triádica, essa qualidade terá a potencialidade de gerar
semiose. Em outras palavras, qualquer qualidade pode potencialmente representar.
Deve-se notar, por outro lado, que o caráter potencial que uma qualidade tem para
funcionar como um signo é totalmente independente de qualquer corporificação em um
existente concreto. Um exemplo: tome as rosas de um buquê, abstraindo o buquê e a
individualidade das rosas e considerando apenas o perfume das rosas funcionado como
signo de alguma coisa.
306
PEIRCE 2008, p.52.
111
Os qualissignos, sendo potencialidades para representar, estarão envolvidos em
toda semiose, conforme observa Silveira na seguinte passagem:
Não se pode deixar de notar, desde o início, que toda semiose implicará
direta ou indiretamente qualissignos. Os qualissignos conferem toda a
potencialidade aos signos [...] Toda complexificação, ulterior no
processo semiótico, nada mais será do que uma restrição à
espontaneidade livre da potencialidade, consistindo em escolhas feitas
dentre tudo o que as qualidades puderem representar.307
O Sinsigno é definido por Peirce do seguinte modo: “Um Sinsigno é uma coisa
ou evento existente e real que é um signo.”308
Um sinsigno funciona como signo na
medida direta em que existe. Um sinsigno está assim associado à segundidade, trata-se
então de um signo que se constitui como um individual, um particular. Um sinsigno só
pode funcionar como um signo através das qualidades que ele incorpora
individualmente. Dessa forma, um sinsigno envolve um ou vários qualissignos. Mas,
note-se, um sinsigno funciona como signo na medida em que as qualidades que ele
necessariamente possui o determinam como um existente com exatamente tais
qualidades, essa ocorrência individual e não aquela. As qualidades incorporadas em um
individual já não são infinitamente possíveis e livres, mas sim determinadas e, se este
individual determinado funcionar como um signo tratar-se-á de um sinsigno. Começa
aqui, conforme aponta Silveira, o processo de restrição das potencialidades
absolutamente livres que constituem os qualissignos.309
Um exemplo: voltemos ao
nosso buquê, e agora sim consideremos as rosas como existentes individuais,
incorporando certas qualidades.
O Legissigno, por sua vez, tem uma natureza mais complexa e é definido por
Peirce da seguinte forma:
Um Legissigno é uma lei que é um signo. Normalmente, esta lei é
estabelecida pelos homens. Todo signo convencional é um legissigno
(porém a recíproca não é verdadeira). Não é um objeto singular, porém
um tipo geral que, têm-se concordado, será significante. Todo
307
SILVEIRA, 2007, p. 67. 308
PEIRCE, 2008, p. 52. 309
Conferir SILVEIRA, 2007, p. 68.
112
legissigno significa através de um caso de sua aplicação, que pode ser
denominada Réplica.310
O legissigno funciona como signo na medida em que representa uma
regularidade, uma ordem, uma generalidade necessária, algo da natureza de uma lei ou
literalmente uma lei. Está associado, pois, à terceiridade. Peirce diz que normalmente as
leis representadas pelos legissignos são criadas pelos homens, tais como, por exemplo,
as convenções gramaticais. No entanto, os legissignos também se aplicam a leis naturais
que funcionam como signos.311
Um legissigno só pode funcionar como signo através de um caso de sua
aplicação, ou seja, através de um sinsigno, que Peirce chamou de réplica. Um sinsigno,
então, pode ser uma réplica de um legissigno. Quando um sinsigno deve ser considerado
uma réplica de um legissigno? Respondemos: quando for reconhecível que esses
sinsignos guardam permanência de determinadas qualidades. Assim torna-se nítido que,
por implicação, legissignos também envolvem qualissignos corporificados nos
sinsignos. Por outro lado, também se torna nítido que uma lei é expressão da
continuidade. Para dar um exemplo de legissigno voltemos ainda mais uma vez ao
nosso velho buquê de rosas: chamá-lo de buquê de rosas é nomear certos predicados que
permanecem mais ou menos em todos os buquês de rosas que se podem encontrar;
assim, a expressão „buquê de rosas‟ é um legissigno.
6.3.2 Ícones, Índices e Símbolos
A segunda tricotomia a ser considerada é a que considera os signos em relação
ao seu objeto dinâmico. Recordemos que o objeto dinâmico é o objeto real, que se
encontra fora da semiose e que determina o signo através de seus aspectos, cuja
revelação parcial se efetuará mediante a ação do signo para um interpretante, ou terceiro
correlato da tríade, que é assim determinado mediatamente pelo objeto dinâmico que
busca interpretar. Segundo esta tricotomia, os signos podem ser divididos em ícones,
310
PEIRCE 2008, p.52. 311
E este, conforme Silveira, é um dos pontos chave para a explicitação semiótica do realismo peirciano:
“Afirma-se que há leis no universo que não decorrem de convenções, ou seja, que a classe dos legissignos
não é constituída tão-somente dos signos convencionais. Subjaz a essa afirmação o realismo peirciano,
para o qual a lei e o domínio dos universais são reais, não se limitando as formas convencionais de
constituição de um discurso, cujo objeto será sempre o particular.” SILVEIRA, 2007, p. 71.
113
índices e símbolos, conforme as categorias de primeiridade, segundidade e terceiridade
respectivamente.
Peirce define Ícone da seguinte maneira:
Um Ícone é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em
virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui
quer um tal Objeto realmente exista ou não. É certo que, a menos que
realmente exista um tal Objeto, o Ícone não atua como signo, o que
nada tem a ver com seu caráter como signo. Qualquer coisa, seja uma
qualidade, um existente individual ou uma lei, é Ícone de qualquer
coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como
seu signo.312
O ícone, associado à primeiridade, está relacionado ao seu objeto dinâmico em
virtude de uma mera semelhança. Em outras palavras, um ícone é semelhante ao objeto
dinâmico que representa. Para que o ícone funcione como um signo, Peirce ressalva, é
preciso haver um objeto que incorpore qualidades com as quais ele possa se relacionar
comparativamente devido ao fato de possuir as mesmas qualidades que o objeto
incorpora e, assim, poder representá-lo como um signo. No entanto, a incorporação de
qualidades num objeto individual nada tem a ver com o caráter significativo do ícone.
Um ícone é um signo de possibilidades. Um exemplo de um ícone é um retrato de uma
pessoa.
O segundo signo desta segunda tricotomia é o Índice, que é assim definido:
Um Índice é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de
ser realmente afetado por esse Objeto [...] Na medida em que o Índice é
afetado pelo Objeto, tem ele necessariamente alguma qualidade em
comum com o Objeto, e é com respeito a estas qualidades que ele se
refere ao Objeto. Portanto o Índice envolve uma espécie de Ícone, um
Ícone de tipo especial; e não é a mera semelhança com seu Objeto,
mesmo que sob estes aspectos que o torna um signo, mas sim sua
efetiva modificação pelo Objeto.313
312
PEIRCE, 2008, p. 52. 313
PEIRCE, 2008, p. 52.
114
A relação do índice para com seu objeto dinâmico é caracterizada por uma real
afetação entre signo e objeto. Em outros termos, a relação se dá por uma conexão dual
e, portanto, trata-se de um signo associado à segundidade. Assim, este signo pode
indicar o objeto dinâmico exatamente por que é por ele afetado de alguma maneira e de
acordo com certas qualidades que ambos têm em comum. Dessa forma, os índices
envolvem ícones, mas não é a semelhança corporificada nos dois existentes, signo e
objeto, que é responsável pela função significativa do índice, mas sim o fato de o índice
ter uma conexão existencial com o objeto dinâmico, essa conexão existencial sendo a
afetação. Outra característica fundamental dos índices apontada por Peirce é a de que
somente através deles é que podemos distinguir mundo real de mundo fictício: “O
mundo real não pode ser distinguido do mundo fictício por nenhuma descrição. Nada,
exceto um signo indicial pode dar cabo de tal tarefa.”314
Um exemplo sugestivo de
índice: a foto de uma pessoa morta.315
O terceiro tipo de signo desta segunda tricotomia é o Símbolo. Trata-se do tipo
de signo que mais nos concerne neste trabalho.316
Assim, introduziremos, neste
momento, o símbolo de forma geral. Um pouco mais abaixo, logo após termos
caracterizado a terceira tricotomia de signos, voltaremos a ele, para considerá-lo sob
outros aspectos extremamente importantes.
Peirce define o símbolo da seguinte maneira:
Um Símbolo é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude
de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no
sentido de fazer com que o Símbolo seja interpretado como se referindo
àquele Objeto. Assim, é em si mesmo, uma lei ou tipo geral, ou seja, é
um Legissigno. Como tal, atua através de uma Réplica. Não apenas é
ele um geral, mas também o Objeto ao qual se refere é de natureza
314
CP 2.237. 315
Os índices exercerão papel muito importante para uma reflexão heurística sobre a imortalidade do
homem. Até onde pudemos mapear Peirce não associou índices à sua reflexão sobre a imortalidade da
alma, mas apenas os símbolos. No entanto, foi apontado por Cashell, em um excelente artigo chamado Ex
Post Facto: Peirce and the Living Signs of the Dead, o papel dos índices como indicadores da presença de
uma pessoa morta no mundo. Cashell, no entanto, também não associa suas reflexões ao tema da
imortalidade. Consideramos uma possível associação entre índices e a imortalidade da alma humana
como uma sugestiva linha de pensamento, que pretendemos desenvolver futuramente. 316
Veremos um pouco mais abaixo que o símbolo está diretamente ligado ao tema da imortalidade do
homem segundo Peirce. É por isso que dizemos ser ele o tipo de signo que mais nos concerne aqui. Isto,
porém, não quer dizer que os outros tipos de signos não tenham importância para se refletir sobre o tema.
Ao contrário, ícone e índices também exercerão papel importante no que diz respeito à continuidade da
alma humana após a morte, o que esperamos poder mostrar em pesquisas futuras.
115
geral. Ora, o que é geral tem seu ser nos casos que determina. Portanto,
deve haver casos existentes daquilo que o símbolo denota, embora
devamos aqui considerar „existente‟ como existente no universo
possivelmente imaginário ao qual o símbolo se refere. Através da
associação ou de uma outra lei, o Símbolo será diretamente afetado por
esses casos, e com isso o Símbolo envolverá uma espécie de Índice,
ainda que um Índice de tipo especial. No entanto, não é de modo algum
verdadeiro que o leve efeito desses casos sobre o Símbolo explica o
caráter significante do Símbolo.317
O símbolo consiste num signo que, determinado pelo seu objeto somente no
sentido de que assim será interpretado, por um lado determina seu interpretante a
interpretá-lo exatamente como um signo, ou seja, como um representamen de natureza
geral ou lei e, por outro lado e ao mesmo tempo, determina este mesmo interpretante a
interpretar o objeto ao qual se refere como sendo, também ele, um fenômeno de
natureza geral ou lei. O símbolo, assim, é um signo essencialmente triádico.
Dizer que o símbolo é um signo essencialmente triádico equivale a dizer que não
há símbolo que não seja uma relação triádica entre representamen, objeto e
interpretante. Significa: o símbolo só funciona como signo ao representar o objeto para
o seu interpretante. Sua razão de ser signo está no interpretante que ele determina.318
Por
outro lado, pode-se dizer também, que a razão de ser do interpretante de um símbolo é
veicular informação sobre o objeto dinâmico representado pelo símbolo mediante a
regra geral que está contida no próprio símbolo. Por sua vez, o objeto geral, cujos
predicados permanentes estão por força de alguma lei ou hábito conectados ao símbolo,
que assim pode representá-lo para o seu interpretante, também se constitui na razão
imediata de ser do símbolo e na razão mediata de ser do interpretante. Ou seja, a
informação veiculada pelo interpretante através da mediação do símbolo só é possível
por que o objeto assim o determinou. O símbolo é, então, um mediador.
Signo do pensamento e de objetos da natureza do pensamento, o símbolo carrega
a propriedade de representar aquilo que no objeto dinâmico de qualquer natureza possui
permanência e, portanto, pode ser explicitado na forma de um conceito ou regra geral.
Representa, portanto, aquilo que se encontra presente no mundo sob uma forma de
terceiridade. Considerado em si mesmo, o Símbolo só pode ser uma lei, ou seja, um tipo
317
PEIRCE, 2008, p. 52. 318
Conferir SANTAELLA, 2004a, p. 132.
116
geral. Desta forma todo símbolo é também um legissigno.319
Isto quer dizer também,
que um símbolo só pode atuar como tal por meio de réplicas (sinsignos). Os Sinsignos
envolvidos no símbolo são índices de tipo especial e como tais envolvem também
ícones de tipo especial (que considerados em si mesmos são qualissignos). „Tipo
especial‟ quer dizer aqui: que age para aplicar a regra geral da qual o símbolo é portador
num caso particular. Em outras palavras, um símbolo precisa estar vinculado à
experiência fenomênica de qualquer tipo, seja ela imaginária ou fatual. Isto implica que
o ser concreto dos fenômenos gerais só se consuma em alguma forma de particular,
embora não seja nunca esgotada por esta. Na verdade, como vimos, a generalidade é
terceiridade real e consiste na relação entre os particulares. Quando algo deste gênero
atua como um signo relacionado com o objeto dinâmico que pretende representar, este
signo só pode ser um símbolo.
As leis que são representadas pelos símbolos podem ser convencionais ou
naturais. No caso das leis convencionais, “o símbolo está conectado ao seu objeto por
força da idéia da mente que usa o símbolo, sem a qual a conexão não existiria”320
. Deve-
se, no entanto, tomar o cuidado de não interpretá-las como absolutamente arbitrárias. A
ordem que motiva a criação de uma lei convencional deve se encontrar de alguma forma
presente no mundo fenomênico imaginário ou fatual e revelado parcialmente pelo
objeto dinâmico. Aliás, essa é a condição da inteligibilidade das leis. Por outro lado, no
caso de o símbolo ser uma lei natural, será uma lei natural que funciona como signo de
um objeto dinâmico que não é outra coisa senão um hábito da natureza. Este ponto,
embora não caiba aprofundamento aqui, é uma demonstração das proporções cósmicas
da semiótica peirciana, que considera um erro restringir a classe de símbolos aos signos
convencionais.321
Exemplos de símbolos convencionais? Deixemos Peirce falar:
Qualquer palavra comum, como „dar‟, „pássaro‟, „casamento‟, é
exemplo de símbolo. O símbolo é aplicável a tudo o que possa
concretizar a idéia ligada à palavra; em si mesmo não identifica essas
coisas. Não nos mostra um pássaro, nem realiza diante dos nossos
319
Conferir SANTAELLA, 2004 a, p. 135. Por outro lado, nem todo legissigno é simbólico: legissignos
podem ser icônicos ou indiciais. 320
PEIRCE 2008, p. 73. 321
Para um aprofundamento acerca deste assunto, sugerimos consultar NÖTH, 2010.
117
olhos, uma doação ou um casamento, mas supõe que somos capazes de
imaginar essas coisas, e a elas associar a palavra.322
Exemplos de símbolos naturais? Veja-se o comentário de Nöth:
Todos os signos pelos quais os animais se comunicam e que não são
ícones ou índices são símbolos naturais. É verdade que os signos na
zoosemiose são muito mais do tipo indicial e icônico do que no caso
dos humanos, mas entre os signos dos grandes animais, certamente se
encontram signos que dependem de aprendizado, que é uma forma de
aquisição de hábito, e todo animal comunica por hábitos que são
disposições naturais.323
6.3.3 Rema, Dicissigno e Argumento
A terceira e última tricotomia que abordaremos aqui é a que considera os signos
em relação ao seu interpretante final. Esta relação é uma relação onde os signos
determinam os seus interpretantes finais segundo três modos, regrados pelas três
categorias. Recordemos: o interpretante é o terceiro correlato de uma relação triádica,
sendo o primeiro correlato, o signo, e o segundo correlato, o objeto. O interpretante
corresponde ao efeito virtual ou atual de um signo e cumpre a função de um intérprete.
Em última instância, consiste na interpretação potencial ou efetiva de um signo. O
Interpretante final, por sua vez, é um tipo de interpretante que consiste no efeito geral ao
qual um processo de semiose finalmente chegaria se levado longe o suficiente para fazer
surgir uma interpretação verdadeira. Esta terceira tricotomia que estamos considerando
pretende responder à pergunta “como o interpretante final interpreta a ação do signo
sobre si?324
Segundo esta terceira tricotomia, os signos podem ser divididos em Rema,
Dicissigno e Argumento.
Para Peirce, um Rema “é um signo que, para seu interpretante, é um signo de
possibilidade qualitativa, ou seja, é entendido como representando esta ou aquela
322
PEIRCE, 2008, p. 73. 323
NÖTH, 2010, p. 90. Como exemplo experimental ilustrativo deste comentário de Nöth torna-se
indispensável a consulta ao já citado capítulo 5 do livro de João Queiroz “Substratos Neurobiológicos da
Semiose”. QUEIROZ, 2004. 324
Conferir SANTAELLA, 2004a, p. 144.
118
espécie de objeto possível. Todo rema propiciará, talvez, alguma informação, mas não é
interpretado neste sentido.”325
Um rema, assim, é um signo que é interpretado por seu
interpretante final como representando uma possibilidade ou qualidade ou primeiridade,
que pode estar ou não incorporada em um existente ou existentes particulares. O rema é
um signo de ampla extensão. Ou seja, qualquer coisa pode ser interpretada como sendo
uma possibilidade qualitativa. Assim, também, todos os signos podem, na sua relação
com o interpretante final, virem a funcionar como um rema. Um exemplo de rema é
uma cor, tal como o verde, interpretada como sendo a presença de um signo
(qualissigno) que poderia estar incorporado em algum objeto.
Um Dicissigno é definido por Peirce como “um signo que, para seu
interpretante, é um signo de existência real.”326
O dicissigno, dessa forma, é interpretado
pelo seu interpretante final como proporcionando alguma informação acerca de um
existente. Um dicissigno veicula informação sobre um fenômeno determinado; algo é
determinado por ter incorporado certas qualidades e não outras igualmente possíveis.
Assim, um dicissigno envolve um tipo de rema. Mas sua interpretabilidade como ligada
a um existente não é afetada pelas qualidades representadas pelos remas. Uma
característica importante do dicissigno é que sua interpretação no interpretante final será
passível de julgamento quanto a sua verdade ou falsidade. No entanto, as noções de
verdade ou falsidade são atribuídas aos dicissignos não em virtude de alguma lei ou
razão, mas simplesmente com relação ao fato que ele interpreta.327
A citação a seguir
deixa isto bem claro:
O teste mais prontamente característico mostrando se um signo é um
dicissigno ou não, é ser um dicissigno verdadeiro ou falso, mas não
fornece diretamente razões para ser assim. Isso mostra que um
dicissigno deve professar referir-se ou relacionar-se a algo como tendo
um ser real independentemente de sua representação enquanto tal, ainda
mais, que essa referência ou relação não deve se apresentar como
racional, mas deve aparecer como uma segundidade cega.328
325
PEIRCE 2008, p. 53. 326
PEIRCE 2008, p. 53. 327
Conferir SILVEIRA, 2007, p. 82 e SANTAELLA, 2004 a, p. 146. 328
Apud, SILVEIRA, 2007, p. 82.
119
Um dicissigno deve fornecer uma informação efetiva sobre o objeto dinâmico a
que se refere e não meramente potencial como faz um rema. Esta informação efetiva
oferecida pelo dicissigno é interpretada pelo seu interpretante final como a presença de
uma identidade entre o dicissigno e um índice genuíno do objeto dinâmico. Uma última
característica a ser apontada sobre o dicissigno é que ele possui a estrutura de uma
proposição. Ou seja, um dicissigno envolve a estrutura conexa sujeito-predicado, onde o
sujeito equivale ao índice (indica o objeto dinâmico/ sinsigno) e o predicado equivale ao
ícone (qualissigno) incorporado num existente. Sujeito e predicado devem ser
interpretados pelo interpretante final como estando conexos, pois, se forem tomados
separadamente, ambos serão remas. Assim, como exemplo de um dicissigno pode-se
pensar em qualquer proposição.
Por fim, o terceiro e último signo que compõe a terceira tricotomia é o
Argumento.329
Peirce diz: “Um Argumento é um Signo que, para seu Interpretante, é
Signo de lei.”330
O Argumento é, assim, interpretado pelo seu interpretante final como
sendo um signo de lei ou regra geral que, funcionando como signo, representa algo que
possui permanência e continuidade e, assim, também é um geral. Como exemplo de
argumentos pense-se em qualquer silogismo.
6.3.4 As dez classes de Signos
Por fim, Peirce extraiu das combinações possíveis entre estas três tricotomias
aquilo que ele chamou de dez classes de signos.331
Não efetuaremos a descrição
minuciosa332
destas dez classes, visto que isto nos levaria longe demais dos propósitos
deste capítulo. Apenas forneceremos a sua lista seguida de um exemplo dado pelo
próprio Peirce:
329
Peirce dividiu os argumentos em três tipos: abdutivos, dedutivos e indutivos. Associados,
respectivamente, à primeiridade, segundidade e terceiridade. A análise destes três tipos de argumentos
fugiria aos limites deste trabalho, queira o leitor consultar os já citados: IBRI, 2006; BACHA, 2002 e
DIPERT, 2004. 330
PEIRCE 2008, p. 53. 331
Estas dez classes de signos não devem ser confundidas com as dez formas de se considerar um signo
na relação entre os três correlatos da semiose (exposto na nota 305). 332
O leitor pode encontrar esta descrição minuciosa em PEIRCE 2008, p.55. De onde, aliás, retiramos as
informações que compõem a lista apresentada em seguida.
120
1 – Qualissigno icônico remático. Ex: uma sensação de vermelho.
2 – Sinsigno icônico remático. Ex: um diagrama individual.
3 – Sinsigno indicial remático. Ex: um grito espontâneo.
4 – Sinsigno indicial dicente. Ex: um cata-vento.
5 – Legissigno icônico remático. Ex: um diagrama, à parte sua individualidade fática.
6 – Legissigno indicial remático. Ex: um pronome demonstrativo.
7 – Legissigno indicial dicente. Ex: um pregão de mascate.
8 – Legissigno simbólico remático. Ex: um substantivo comum.
9 – Legissigno simbólico dicente. Ex: uma proposição.
10 – Legissigno simbólico ou Argumento. Ex: um silogismo.
6.4 A vida do Símbolo
É hora de, para encerrar este capítulo, retornarmos ao Símbolo. Já descrevemos
acima o que é um símbolo de forma geral, onde se fez perceber o seu caráter
essencialmente triádico. Pretendemos agora descrever em breves linhas alguns aspectos
do símbolo que estão diretamente ligados ao objetivo do nosso trabalho. Estes aspectos
dizem respeito a características bem peculiares do símbolo, que culminarão em uma
notória afirmação de Peirce, a saber, de que “o símbolo necessário e verdadeiro é
imortal.”333
O símbolo pode ser metaforicamente comparado a uma criatura viva: símbolos
nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Um símbolo nasce quando o seu potencial
de gerar um interpretante é associado a um objeto qualquer, com o qual comunga o
caráter de ser geral, por meio de uma convenção ou lei habitual (ou natural). Significa: o
que determina o símbolo é a lei ou hábito por ele representado. Uma vez que o símbolo
existe, seu propósito é gerar outros interpretantes que se referem à relação que ele
mantém para com o objeto que representa, levando este interpretante a manter uma
relação mediata para com esse mesmo objeto. O interpretante assim gerado pelo
símbolo é outro símbolo que carrega a sua mensagem. Assim, pode-se dizer também
que os símbolos possuem o poder de se reproduzir. Símbolos se reproduzem na medida
333
PEIRCE, 2008, p. 311.
121
em que determinam outros símbolos a representarem seus objetos na forma de um
interpretante.
A afirmação peirciana de que “os símbolos crescem”334
está diretamente ligada a
esta propriedade „reprodutiva‟ dos símbolos. Em que consiste e como ocorre o poder de
crescimento do símbolo? Peirce fornece uma pista para se refletir sobre esta „virtude‟ do
símbolo na seguinte passagem: “Um símbolo, uma vez existindo, espalha-se entre as
pessoas. No uso e na prática, seu significado cresce. Palavras como força, lei, riqueza,
casamento veiculam-nos significados bem distintos dos veiculados para nossos
antepassados bárbaros.”335
Um símbolo adquire informação e isto é o mesmo que dizer
que um símbolo pode aprender. Em outro texto Peirce afirma: “Quanto mais não
significa hoje a palavra eletricidade do que significava na época de Franklin? Quanto
mais não significa hoje o termo planeta do que no tempo de Hiparco?”336
Significa: os
símbolos eletricidade e planeta ganharam novas dimensões, perderam outras, se
associaram a outros símbolos com os quais não estavam associados, num fluxo contínuo
que certamente perdura até hoje e perdurará indefinidamente. Assim, ao afirmar que os
símbolos crescem, Peirce quis chamar a atenção para essa propriedade que os símbolos
possuem de poder mudar de significado, se associar a outros símbolos, voltar a
significar algo que se perdeu no tempo, somar novos significados aos que já possuía etc.
Os símbolos crescem em direção ao futuro: “um símbolo é uma lei ou regularidade do
futuro indefinido.”337
O propósito que atua na ação do símbolo, a saber, a potencialidade de gerar
outros símbolos como seus interpretantes e assim crescer em significado pertence ao
símbolo e não à mente que usa o símbolo. Em outras palavras, a potencialidade de gerar
interpretantes é uma característica autônoma do símbolo. Um símbolo cresce
independentemente de qualquer mente que use este símbolo. Uma mente ou conjunto de
mentes, é claro, podem “usar” um símbolo, mas isto não passa de um fato individual. O
símbolo, enquanto um geral, não é esgotado por nenhum fato ou conjunto de fatos
particulares. Ao contrário, quando mentes particulares utilizam um símbolo, essas
mentes estão sendo constrangidas pela regra geral que o símbolo representa. Pode-se
dizer, guardando as devidas reservas, que é o símbolo que usa o intérprete.
334
PEIRCE, 2008, p. 73. 335
Ibidem p. 73-74. 336
Ibidem, p. 307. 337
Ibidem, 71.
122
O símbolo, já o dissemos, representa aquilo que no mundo é dotado de
terceiridade. Isto é, representa as relações permanentes e ordenadas segundo uma regra,
lei ou hábito que governam casos individuais. Símbolos possuem ser real. O ser real do
símbolo consiste no fato de que os individuais existentes se conformarão à regra ou
hábito por ele representado. Por outro lado, o símbolo só possui existência quando está
incorporado em uma réplica. No entanto, o símbolo não pode ser reduzido a nenhuma
instância particular ou conjunto total dos particulares que o incorporam. O que equivale
a dizer que as incorporações particulares das leis representadas pelos símbolos não
esgotam a realidade do símbolo. É por isso que o crescimento não deve ser tomado
como uma característica isolada, mas sim determinante dos símbolos. O símbolo é um
continuum.
O propósito incorporado no símbolo também pode ser associado ao
Evolucionismo e Falibilismo peircianos. Ou seja, o símbolo pode ser tomado como uma
das instâncias pelas quais o crescimento da representação das leis ocorre impulsionado
pelo crescimento das próprias leis. Vimos que o universo, segundo Peirce, é um
universo em evolução.338
Ou seja, estamos em um universo em constante crescimento e
por isso mesmo trata-se de um universo que também erra.339
Decorre desta linha de
pensamento que nenhuma representação das leis pode possuir completude absoluta.340
Significa: não há símbolo que seja completo e de caráter final. Se, por um lado, todo
símbolo possui a tendência ao crescimento, por outro lado, nunca representará o seu
objeto se não parcialmente.
Desta mesma linha de pensamento decorre a explicação do por que também
pode ser afirmado que um símbolo pode morrer. Um símbolo morre quando deixa de se
reproduzir em interpretantes parcialmente verdadeiros. A morte do símbolo é a sua
falsidade como representação parcial de uma lei ou hábito, de onde decorre o seu
paulatino desaparecimento.341
Por outro lado, o ponto culminante destas características peculiares dos símbolos
é que estes podem, inclusive, virem a ser imortais:
338
Ver capítulo sobre a metafísica. 339
Conferir, IBRI, 1992, p. 51. 340
Trata-se da doutrina epistemológica do Falibilismo, conforme abordamos brevemente no
capítulo sobre metafísica e cujo aprofundamento pode ser encontrado em IBRI, 1992, cap. 3. 341
O que mostrará a falsidade de um símbolo é a experiência, ou seja, o objeto dinâmico. Um símbolo
que não tem aderência, ou seja, que não representa uma terceiridade real, tende ao desaparecimento.
123
O princípio de que a essência de um símbolo é formal, e não material,
tem uma ou duas consequências importantes. Suponhamos que apague
esta palavra (seis) e escreva seis. Não se tem aqui uma segunda palavra
mas, sim, a primeira palavra novamente; elas são idênticas. Ora, pode a
identidade ser interrompida ou devemos dizer que a palavra existia
embora não estivesse escrita? Esta palavra implica em que duas vezes
três é cinco mais um. Esta é uma verdade eterna; a verdade que sempre
é e sempre será verdade; e que seria verdade embora não houvesse seis
coisas no universo que pudessem ser contadas, dado que ainda seria
verdadeiro que cinco mais um teriam sido duas vezes três. Ora, esta
verdade é a palavra, seis; se por seis entendemos não este traço de giz,
mas aquilo em que concordam seis, six, sex, e4c, sechs, zes, sei. A
verdade, diz-se, nunca deixa de ter uma testemunha; e, de fato, o
próprio fato – o estado de coisas – é um símbolo do fato geral através
dos princípios da indução; de modo que o símbolo verdadeiro possui
um interpretante na medida em que for verdadeiro. E como é idêntico a
seu interpretante, sempre existe. Assim, o símbolo necessário e
verdadeiro é imortal.342
O ser real de um símbolo consiste na permanência da sua identidade simbólica
independente de qualquer individual que o incorpore. O símbolo deve representar
adequadamente uma terceiridade real. Em outras palavras, o símbolo considerado como
se referindo a um objeto é concebido meramente para incorporar uma verdade343
; esta
verdade constitui-se na referência adequada ao seu objeto e consiste em uma imputação
no caso dos símbolos convencionais e em um hábito natural que funciona como símbolo
no caso dos símbolos naturais. Mas em ambos os casos há um estado de coisas
contínuas que permite e determina o símbolo, a saber, a generalidade real que o próprio
símbolo pretende representar.344
No exemplo oferecido por Peirce, cinco mais um e duas vezes três representam
uma mesma verdade geral, a saber, seis. Seus interpretantes equivalem. Desta forma o
símbolo seis, que é um símbolo que representa um estado de coisas contínuas (gerais e
possíveis em qualquer forma), não depende no que concerne a sua verdade, de que haja
atualmente um estado de coisas no qual existam cinco mais um ou duas vezes três
342
PEIRCE, 2008, p. 311. 343
W 1. 477. 344
Trata-se do objeto do símbolo, que é sempre de natureza geral.
124
objetos para se contar. Seis, cinco mais um e duas vezes três permanecem símbolos
verdadeiros porque representam adequadamente o estados de coisas que podem ser
representados por estes símbolos gerando, assim, a ação de produzir interpretantes que
serão sempre idênticos onde quer e como quer que as réplicas dos símbolos em questão
ocorram.
Porém, um símbolo deve estar incorporado em algum particular para que a lei
por ele representada apareça pelo lado de fora, ou seja, possua significado pragmático.
Ora, é porque em algum momento a terceiridade que o símbolo representa aparecerá de
algum modo que se pode dizer que a verdade nunca deixará de ter uma testemunha. A
verdade aparecerá incorporada num particular, exatamente por que ela é real. Quando
um símbolo cumpre o seu papel normativo, a saber, a função lógica de representar a
verdade de maneira adequada, seu significado pragmático constitui sua verdade e cada
incorporação particular que se conforma a regra ou lei geral representada pelo símbolo é
uma instância da verdade. Assim, uma verdade necessária é uma verdade representada
em sua generalidade por um símbolo que sempre se confirmará pragmaticamente, ou
seja, sempre aparecerá pelo lado de fora, em infinitas réplicas particulares que jamais
esgotarão a generalidade real da qual são instâncias.
O interpretante de um símbolo que representa uma verdade necessária será
sempre idêntico ao próprio símbolo. No exemplo que estamos seguindo, seis, cinco
mais um, duas vezes três, dez menos quatro etc. sempre gerarão um mesmo
interpretante referindo-se sempre ao mesmo possível estado de coisas: o símbolo seis.
Este símbolo seis, representando verdadeiramente o seu objeto geral existirá para
sempre em infinitas réplicas e através de seu interpretante sempre idêntico a seis.
Escreva-se „seis‟ com qualquer instrumento, em qualquer cor e em qualquer língua,
apague-se. Ainda assim, o seis permanecerá como um símbolo verdadeiro que sempre
aparecerá pragmaticamente exatamente como „seis‟. O mesmo raciocínio se aplica a
qualquer outro símbolo verdadeiro. É neste sentido que se pode dizer que o símbolo
necessário e verdadeiro é imortal.345
345
A afirmação de que um símbolo necessário e verdadeiro pode ser imortal constituirá ponto de partida
para uma futura reflexão sobre o homem e sua possível imortalidade à luz da arquitetura filosófica
peirciana. Para Peirce, o homem pode ser considerado imortal na mesma medida que um símbolo pode
ser imortal. Aliás, segundo Peirce, “a resposta genérica à pergunta „o que é o homem? ‟ é que ele é um
símbolo.” (Ibidem, 307).
125
Tudo o que for um símbolo verdadeiro e imortal, por fim, comunga do
crescimento da razoabilidade concreta do universo, que é o ideal admirável por si e em
si346
, para onde caminham todas as coisas:
Um símbolo é uma realidade embrionária dotada com o poder de
crescer até a própria verdade, a própria enteléquia da realidade. Isto
parece místico e misterioso simplesmente porque nós insistimos em
permanecer cegos ao que é claro, a saber, que não pode haver realidade
que não tenha a vida de um símbolo.347
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O diagrama da classificação das ciências apresentado no primeiro capítulo
procurou representar a estrutura geral das relações entre as ciências segundo Charles
Peirce. Vimos que a linha de dependência que constitui o critério classificatório
peirciano procede das ciências mais básicas e gerais em direção as ciências mais
particulares. Foram distinguidos três tipos de ciências: as ciências da descoberta, as
ciências da revisão e as ciências práticas. Após descrevermos de forma bem geral estes
três tipos de ciências, efetuamos o recorte que, dentro das ciências da descoberta,
estabeleceu o foco na filosofia. Assim, no capítulo dois procuramos descrever as três
ciências que compõem a filosofia para o autor, a saber, a fenomenologia, as ciências
normativas e a metafísica. Em seguida, nos capítulos três e quatro, apresentamos
separadamente duas doutrinas que sustentam o complexo sistema filosófico peirciano, a
saber, o idealismo objetivo e o sinequismo. Dentro da descrição geral destas duas
doutrinas, pudemos refletir sucintamente sobre o evolucionismo e o falibilismo, que
346
Rever o capítulo sobre as Ciências Normativas. 347
EP 2. 324. Não cabe aprofundamento aqui, mas, apesar de o capítulo terminar com uma menção ao
crescimento da razoabilidade concreta do universo, o leitor não deve ser levado a interpretar isto como
sendo um índice de que para Peirce tudo tende a se tornar terceiridade, o que obrigaria a espontaneidade
da primeiridade e a particularidade da segundidade a desaparecer. Ao contrário, a nosso ver, o
crescimento da razoabilidade consiste num eterno fluxo de criação espontânea, associada à generalidade
do possível e, portanto casual e livre, que pode, no entanto, adquirir permanência e crescer tornando-se
uma generalidade associada à terceiridade, mas que pode também simplesmente desaparecer, depois de
uma fugaz incorporação num particular, como algo que nunca pôde ser capturado por um nome e nem
carecia disto. Quem entendeu bem o Realismo, o Evolucionismo, o Idealismo Objetivo e o Sinequismo
peircianos certamente não cairá nesta tentação. Suspeitamos também, que esta visão do universo é
dependente de uma concepção de Deus sui generis. Pretendemos, em futura pesquisa de doutorado,
retornar a este posto.
126
também exercem papel muito importante no pensamento do autor. No capítulo cinco
procuramos descrever o pragmatismo inicial e tardio, onde este último clarifica e
completa aspectos já presentes no primeiro. Por fim, no capítulo seis, levamos a cabo
uma breve apresentação da semiótica peirciana, introduzindo seus conceitos elementares
e apresentando aspectos relevantes sobre aquilo que se pode chamar de „vida‟ do
símbolo, chegando, por fim, a interpretação do símbolo como portador de uma possível
e peculiar imortalidade.
Buscamos seguir uma ordem de exposição que mostrasse a estrita relação de
dependência mantida entre as ciências que compõem a filosofia, gerando, assim, aquilo
que conceituamos sob o nome de arquitetura filosófica peirciana. O objetivo que guiou a
totalidade deste trabalho foi o de apresentar uma estrutura teórica e conceitual mínima
que configurasse uma propedêutica para uma futura reflexão sobre a imortalidade do
homem à luz da arquitetura filosófica peirciana. Assim, se recortarmos o diagrama da
classificação das ciências, buscando mapear o lugar onde o tema imortalidade se insere
no interior desta arquitetura filosófica, ter-se-á o seguinte diagrama:
Vemos que a imortalidade constitui tema específico de metafísica religiosa. A
linha de dependência que a imortalidade mantém para com a estrutura geral que
compõem a filosofia exige o entendimento de todas as ciências e doutrinas que
abordamos neste trabalho. Em outros termos, a imortalidade é um tema específico que
depende de todas as ciências mais gerais que lhe antecedem na Classificação geral das
127
Ciências, bem como do idealismo objetivo e, sobretudo do sinequismo. Esperamos,
assim, estar justificados quanto à necessidade desta propedêutica.
No entanto, gostaríamos de encerrar este trabalho apontando possíveis caminhos
pelos quais é possível refletir sobre a imortalidade do homem na obra de Charles Peirce.
Desta forma, a partir das considerações feitas nos capítulos anteriores sobre a
arquitetura filosófica do autor, é possível formular algumas perguntas que serão ponto
de partida para uma futura pesquisa de doutorado sobre o tema. Tais perguntas deverão
permanecer em aberto, aguardando a maturidade de pesquisa exigida para tornar
possíveis suas respostas parciais. Desejamos, aqui, apenas apontar alguns caminhos
futuros, que esperamos possam ser trilhados de forma menos tortuosa, através do
primeiro passo dado pelo presente trabalho.
No atual estado de pesquisa em que nos encontramos, sugerimos que três são as
perguntas gerais que devem nortear uma reflexão futura sobre a imortalidade do homem
à luz da arquitetura filosófica peirciana:
1) Em que sentido é possível conceituar a imortalidade do homem, partindo da
arquitetura filosófica de Peirce?
2) Qual é o sentido pragmático do conceito „imortalidade do homem‟?
3) Para onde aponta a realidade da imortalidade do homem?
Enquanto a primeira pergunta visa contextualizar o sentido estrito de
imortalidade que a metafísica científica de Peirce permite trazer à luz, a segunda explora
diretamente a forma como aparecem, no mundo fenomênico, as predições que
configuram o conceito de imortalidade do homem, e, a terceira pretende especular a
existência de aspectos relevantes decorrentes da realidade de tal conceito. O caminho
que se pretende futuramente traçar a partir destas três perguntas gerais é um caminho de
movimento duplo, onde, por um lado, engendrar-se-á um movimento de especificação,
como deve ocorrer com qualquer explicação de um conceito (escopo das perguntas um e
dois) e, de outro lado, buscar-se-á mostrar que existe também um movimento de
abertura para possíveis outros caminhos que estariam além da especificidade do
conceito de imortalidade do homem (escopo da pergunta três).
Um possível caminho para desenvolver respostas para as três perguntas
fundamentais expostas acima seria começar abordando o conceito de „homem‟. Isto
porque entendemos que, uma vez que a imortalidade que está em questão é a
128
imortalidade do homem, deve-se levar a cabo uma criteriosa investigação sobre o que
Peirce entendia por homem, para depois se direcionar a uma devida caracterização do
quê no homem pode vir a ser imortal. Assim, neste primeiro momento, o seguinte corpo
de questões pode ser sugerido:
a) Como Peirce entendia o homem dentro de sua arquitetura filosófica?
b) Em termos pragmáticos: Como o conceito „Homem‟ aparece pelo lado de fora?
c) Como se manifesta no homem a realidade das três categorias?
d) Como entender a recorrente afirmação peirciana de que o homem é um signo?
e) Que tipo de signo é o homem?
f) Como interpretar a afirmação de que a resposta geral para a pergunta „o que é o
homem?‟ é que ele é um símbolo?
g) Qual é o lugar do „eu‟ e do indivíduo diante da concepção peirciana de homem?
h) Pode-se falar em personalidade individual ou subjetividade?
i) Pode-se afirmar que a personalidade possui uma unidade? Se sim, de que tipo?
j) O que o conceito de pessoa significa e qual a sua relação com o conceito de
homem?
k) O inconsciente exerce algum papel na personalidade de uma pessoa?
l) O que significa afirmar que o homem é um feixe de hábitos?
m) Como o homem se insere, através da conduta deliberada, no crescimento da
razoabilidade concreta?
n) Qual o lugar do homem dentro de uma visão sinequista do universo?
Após ter explicitado o conceito de homem, e supondo que tal explicitação seja
pelo menos satisfatória, deve-se em seguida perguntar o quê, de forma geral, deve-se
entender por imortalidade na filosofia de Peirce e o quê, no homem, pode ser visto
como imortal. Estas perguntas podem ser desenvolvidas a partir de um segundo grupo
de questões:
a) O que é a imortalidade?
b) Há alguma ligação entre imortalidade e as três categorias?
c) Como podemos pensar o sentido pragmático da imortalidade?
d) Em que sentido pode-se dizer que o homem é imortal?
e) Como esta imortalidade do homem pode ser conhecida cientificamente?
f) Quais são os „sinais‟ (signos) da imortalidade?
129
g) Qual a ligação entre a imortalidade e a „vida‟ do símbolo?
h) Se o homem pode ser imortal, como devemos considerar a morte?
i) A morte é uma descontinuidade?
j) Se sim, de que tipo?
k) Todos os homens são imortais?
Esses dois grupos sugeridos de questões poderiam traçar um sugestivo caminho
para se responder às perguntas fundamentais um e dois. Algumas linhas de reflexão que
configuram pontos de partida para se responder a estas questões já foram expostas no
decorrer deste trabalho e outras nem sequer foram tocadas. Sem nos estendermos muito,
cabe agora fazer um breve apanhado geral sobre o que já podemos carregar conosco
acerca de como contemplar estas questões, tendo como horizonte este trabalho
propedêutico.
O símbolo verdadeiro gera infinitos interpretantes idênticos em significado a ele
mesmo. Um símbolo verdadeiro é imortal exatamente neste sentido, ou seja, ele sempre
existe enquanto incorporado em seus infinitos interpretantes determinados a manter uma
relação similar a que o símbolo mantém para com o objeto que representa, exatamente
por causa de uma lei geral que governa a realidade que aparece em cada caso particular
da verdade geral representada pelo símbolo. Neste caso, símbolo, objeto e interpretante
são os três, de natureza geral. Assim, o símbolo que representa verdadeiramente o seu
objeto para um interpretante sempre existirá, crescendo em significado na medida
mesma em que o objeto adquire novos significados, significados estes oriundos de suas
infinitas possibilidades incorporadas em casos particulares ou réplicas da mesma regra
geral, que constitui a unidade do símbolo.
Ora, para Peirce um homem é um símbolo e a sua personalidade pode ser assim
equacionada com a unidade da simbolização. Esta unidade é uma unidade da
generalização. Pessoas são símbolos complexos, vivendo e crescendo e, desta forma
pode-se dizer que o homem é um símbolo na medida em que o homem não é nada mais
que uma associação de idéias gerais, e o tipo de lei que governa o significado de um
símbolo é normalmente uma associação de idéias gerais. Assim, o homem é imortal na
mesma medida em que o símbolo é imortal, ou seja, na medida em que é vivificado pela
verdade e seus hábitos passam a influenciar o significado de qualquer número de
interpretantes.
130
Sendo a personalidade a unidade simbólica de um feixe de hábitos, o que
permanece de um homem após sua morte pode ser tomado como permanência pessoal.
Pessoas não são nada mais que feixes de hábitos coordenados que aparecem na forma
como elas agem de maneira geral. Permanece, assim, um caráter de tipo geral e
pessoal, que pode estar presente como uma influência geral para outra pessoa, para um
grupo seleto de pessoas (a família, por exemplo), para uma comunidade ou mesmo para
mundo. Em outros termos, a influência que um homem deixa a após a sua morte possui
significado pragmático, ou seja, podemos ver no mundo condutas serem influenciadas e
de certo modo determinadas pela permanência de hábitos de pensamentos e sentimento
deixados por pessoas mortas.
Do ponto de vista semiótico, os sinais desta imortalidade podem ser de diversos
tipos. O seu caráter geral pede pelo símbolo como ponto de unidade. No entanto,
lembremos que símbolos incluem necessariamente ícones e índices. Um caminho
sugestivo de pesquisa é como ícones e índices devem ser pensados em ligação com a
imortalidade. Também é interessante refletir sobre os interpretantes dos ícones, índices
e símbolos da imortalidade: haveria algo que se pode chamar de intensidade da
imortalidade?
Certamente a imortalidade, do ponto de vista fenomenológico, é um fenômeno
que está sob a categoria da terceiridade. A terceiridade inclui a primeiridade e a
segundidade. Assim, como devemos pensar a primeiridade e a segundidade nos
fenômenos da imortalidade? Com esta pergunta abre-se caminho para uma ampliação
do significado da imortalidade, contemplando também aspectos internos e externos que
complementam o sentido do conceito.
Se o homem for de alguma forma imortal, isto significa que a morte não deve
representar uma descontinuidade absoluta. Ou seja, a morte, como quer que venhamos a
pensá-la, deixa de ser uma ruptura no continnum vivo de hábitos de pensamentos e
sentimentos que configuram a personalidade. A morte certamente é a dissolução do
hábito, mas o homem (ou a essência ou alma do homem) consiste em um complexo
sistema de hábitos inter-relacionados, e este sistema está ele mesmo conectado, como
um fragmento, com um mais compreensivo modelo de relação contínua, que em
princípio pode ser associado com a sociedade como um todo ou com a cultura se quiser,
mas que, em última instância deve ser equacionado com a dinâmica de crescimento
contínuo do próprio universo.
131
Surge, então, o espaço da terceira e última pergunta fundamental, onde devemos
perguntar: a imortalidade do homem aponta para algo além da sua especificidade
temática? O estado atual de pesquisa em que nos encontramos parece apontar para uma
resposta positiva que, no entanto, exige uma reflexão mais aprofundada sobre a ligação
entre a imortalidade e os outros aspectos da metafísica religiosa peirciana. Ou seja,
apesar de a imortalidade ser um tema específico, ele não pode ser pensado
apartadamente dos outros temas de metafísica religiosa. Esta linha de reflexão deve-se
confessar, encontra-se ainda em processo de gestação e devemos ser bem cautelosos ao
sugerir sua abordagem. Mas, lancemos a hipótese sob a seguinte forma: como estariam
equacionadas as questões de Deus, da imortalidade e da liberdade?
Uma resposta a esta pergunta gerará certamente uma complexa trama conceitual
que deve ser costurada segundo um propósito, a saber, mostrar como a imortalidade do
homem pode ser um rico ponto de partida para uma abordagem que faça jus a
sistematicidade do pensamento peirciano e, ao mesmo tempo, podendo ser um lócus
privilegiado para adentrar em uma questão que, se estivermos corretos, constitui aspecto
muito importante no interior do seu pensamento: a questão de Deus.
Dentro deste horizonte, pode-se perguntar sobre uma possível ligação entre a
permanência do caráter de um homem após sua morte e as ciências normativas, visto
que estas precisamente regulam o processo de semiose dos símbolos. As influências de
um caráter podem se tornar ideais de conduta deliberada? Estaria a liberdade humana
ligada com a questão da imortalidade em algum sentido preciso?
A imortalidade do homem não deve ser interpretada como uma afirmação
metafórica. Para Peirce, o homem pode literalmente ser imortal, pois carrega em si a
essência da razoabilidade do universo. Sugerimos que esta ligação da imortalidade do
homem com o crescimento da razoabilidade concreta do universo aponta exatamente
para uma complexa e peculiar concepção de Deus, na medida em que a razoabilidade do
universo pode ser interpretada como uma espécie de instanciação de Deus.
Para evitar leituras apressadas é necessário precisar bem o que está sendo
sugerido aqui. Não estamos a dizer que o „conceito‟ de Deus constitui uma espécie de
núcleo do pensamento peirciano. Isto seria sucumbir a uma espécie de nominalismo,
assaz absurdo diante de tudo o que já fora exposto neste trabalho. Muito menos estamos
sugerindo que um Deus absolutamente transcendente seja o ponto de partida, quase que
biográfico, do sistemático projeto arquitetônico peirciano. Isto seria fundar a lógica na
metafísica, procedimento que esperamos ter mostrado ser completamente oposto à
132
abordagem peirciana. No entanto, estamos sugerindo que o pensamento peirciano como
um todo parece seguir o propósito de formular uma explicação científica daquilo que ele
entendia ser o ideal dos ideais, que se justifica por si só e para o qual toda a realidade
tende a se conformar. A isto Peirce chamou de razoabilidade concreta do universo. Se
esta razoabilidade concreta, em um contínuo processo de renovação e crescimento, que
abarca em si a realidade das três categorias, for efetivamente identificada com um Deus,
então, ao menos não é um absurdo dizer que o pensamento peirciano pode ser visto
como uma tentativa de descrição rigorosamente científica de como a realidade que
recebe o nome de „Deus‟ aparece no universo. E isto é, sim, uma espécie de panteísmo,
que precisaremos explicar adequadamente em nossa pesquisa de doutorado. No entanto,
não podemos avançar nenhuma espécie de consideração acerca deste assunto no espaço
destas considerações finais. Além do mais, muitas coisas devem se tonar claras,
exigindo uma profundidade de pesquisa que ainda estamos longe de atingir. Portanto
trata-se apenas de uma conjectura, uma hipótese. Mas temos a esperança de confirmar
ou refutar tal hipótese em tempos vindouros.
Por fim, o desenvolvimento adequado das perguntas e caminhos que traçamos
nestas considerações finais, que depende do entendimento de toda a arquitetura
filosófica peirciana, é também um processo evolutivo de conhecimento. Assim, teremos
de voltar a muitos pontos que não puderam ser tratados com a devida profundidade no
espaço deste trabalho ou mesmo repensar aspectos que por ventura possam mudar no
decorrer da pesquisa. No entanto, esperamos que através deste trabalho, tenhamos
proporcionado um sólido ponto de partida, que nos permita prosseguir nossa jornada na
busca de uma compreensão cada vez mais profunda da filosofia de Charles Peirce. Mas,
se aprendemos bem, uma das características mais instigantes desta filosofia é que,
embora possamos conhecer e tratar cientificamente de qualquer assunto, nunca se
atingirá verdades definitivas acerca de nenhum deles. As portas sempre permanecerão
abertas, vários caminhos surgirão e a jornada nunca terá fim.
133
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